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li ·: ; A INOVAÇÃO NO SERIADO 1. O problema do seriado nos meios de comunicação de massa . A estética "modema" nos habituou areconhecercomo "obras de arte" os objetos que se apresentam como "únicos" (isto é, não repetíveis) e "originais", Por originalidade ou inovação entendeu um modo de fazer que põe em crise as nossas expectativas, que nos oferece uma nova imagem do mundo, que renova as nossas experiências.·:ç;ste foi o ideal estético'que se afirmou com o Maneirismo e que se impôs definitiva- mente, das estéticas do Romantismo às posições das vanguardas deste i século. I ' Quando a estética moderna se viu diante de obras produzidas pelos meios de comunicação de massa, negou-lhes qualquer valor artístico exatamente porque pareciam repetitivas, construídas de acordo com um modelo:sempre igual, de modo a dar a seus destinatários o que eles queriam e esperavam. Definiu-as como objetos produzidos em série, assim como se produzem muitos automóveis do mesmo tipo, segundo um modelo :constante. Aliás, a "serialidade" dos meios de comunicação de massa foi considerada mais negativa que a da indústria. Para entender essa natureza negativa dos meios de comunicação de massa em relação às outras produções industriais, é necessário distinguir entre "produzir em série um objeto" e "produzir em série os conteúdos de expressões \1 aparentemente diferentes", I• n A estética, a história da arte, a antropologia cultural conhecem há muito o problema da serialidade. Falaram de "artesanato" (ao invés de arte) mas não negaram um valor estético elementar a estas, assim chamadas, "artes menores", como produção de cerâmica, tecidos, utensílios de trabalho. Tentaram definir de que modo esses objetos podem ser considerados "belos": são repetições perfeitas de um mesmo 'I 120 I, l' tipo ou matriz, concebidas para desempenhar uma função prática. Gregos e romanos entendiam por techne ou ors a habilidade em construir objetos ! que funcionassem de modo ordenado e perfeito. O conceito de excelência era atribuído ao modelo, e as reproduções do modelo eram reconhecidas como belas ou agradáveis, como era belo ou agradável o modelo no qual se baseavam, sem tentarem parecer orig)nais. Além disso, também a estética modema sabia que muitas obras de arte originais podem ser produzidas usando elementos pré-fabricados e "em série" e, para ela, da --<: serialidade podia nascer a originalidade. Acontece assim na arquitetura, mas aeonteceu nssim também na pocsia lradicional, em ql!e o autor podia usar esquemas predeterminados (como o seXLelo e o tercelo) e, todavia, mesmo permitindo ao destinatário reconhecer a presença do esquema, pretendia provocar-lhe a experiência da inovação ou da invenção. Diverso é o caso ele expressões que "fingem" ser sempre diferentes para, em vez disso, transmitirem sempre o mesmo conteúdo básico. É o caso, nos meios de comunicação de massa, do filme comercial, dos quadrinhos cómicos, da música de dança e - sem dúvida - do assim chamado seriado de televisão, onde se tem a impressão de ler, ver, escular sempre alguma coisa nova enquanto, com palavras inócuas, nos contam sempre a mesma história. I E essa serialidade dos meios de comunicação de massa que foi considerada pela cultura "alta" como serialidade degenerada (e insidio- sa) em relação à serialidade aberta e honesta da indústria e do artesanato." Naturalmente, no decorrer dessas esquecia-se que esse tipo de serialidade também esteve sempre presente em muitas fases ela produção arttsticado passado. Nestesentido, muita arte primitivaé serial, eram seriais muitas formas musicais destinadas ao entretenimento (como a sarabanda, ajiga Oll o minueto), e a tal ponto que muitos compositores ilustres não deixavaol de compor, por exemplo, uma suíte de acordo com um esquema fixo, e nela inseriam variações de melodias conhecidas e populares. Por outro lado, basta pensar na commedia dell' arle, onde, com base num esquema preestabelecido, os atores improvisavam, com varia- ções mínimas, as suas representações que contavam sempre a mesma história. A presença hoje maciça da série nos meios de comunicação de massa (pensemos, por exemplo, em gênero como a novela, a comédia de situação ou a saga na TV) nos obriga a refletir com uma certa atenção sobre todo o problema. Em que medida o serial dos meios de comuni- cação de massa é diferente de muitas formas artísticas do passado? Em que medida não está nos propondo formas de arte que, recusadas pela estética "modema", induzem uma estética dila "pós-moderna" a diversas conclusões? 121 i

ECO, Umberto - A Inovação no Seriado (3)

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A INOVAÇÃO NO SERIADO

1. O problema do seriado nos meios de comunicação de massa

. A estética "modema" nos habituou a reconhecer como "obras de arte" os objetos que se apresentam como "únicos" (isto é, não repetíveis) e "originais", Por originalidade ou inovação entendeu um modo de fazer que põe em crise as nossas expectativas, que nos oferece uma nova imagem do mundo, que renova as nossas experiências.·:ç;ste foi o ideal estético'que se afirmou com o Maneirismo e que se impôs definitiva­mente, das estéticas do Romantismo às posições das vanguardas deste

i ~ século. I ' Quando a estética moderna se viu diante de obras produzidas pelos

meios de comunicação de massa, negou-lhes qualquer valor artístico exatamente porque pareciam repetitivas, construídas de acordo com um modelo:sempre igual, de modo a dar a seus destinatários o que eles queriam e esperavam. Definiu-as como objetos produzidos em série, assim como se produzem muitos automóveis do mesmo tipo, segundo um modelo :constante. Aliás, a "serial idade" dos meios de comunicação de massa foi considerada mais negativa que a da indústria. Para entender essa natureza negativa dos meios de comunicação de massa em relação às outras produções industriais, é necessário distinguir entre "produzir em série um objeto" e "produzir em série os conteúdos de expressões

\1 aparentemente diferentes", I •

n A estética, a história da arte, a antropologia cultural conhecem há muito o problema da serialidade. Falaram de "artesanato" (ao invés de

~l arte) mas não negaram um valor estético elementar a estas, assim chamadas, "artes menores", como produção de cerâmica, tecidos, utensílios de trabalho. Tentaram definir de que modo esses objetos podem ser considerados "belos": são repetições perfeitas de um mesmo

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tipo ou matriz, concebidas para desempenhar uma função prática. Gregos e romanos entendiam por techne ou ors a habilidade em construir objetos

! que funcionassem de modo ordenado e perfeito. O conceito de excelência era atribuído ao modelo, e as reproduções do modelo eram reconhecidas como belas ou agradáveis, como era belo ou agradável o modelo no qual se baseavam, sem tentarem parecer orig)nais. Além disso, também a estética modema sabia que muitas obras de arte originais podem ser produzidas usando elementos pré-fabricados e "em série" e, para ela, da --<: serialidade podia nascer a originalidade. Acontece assim na arquitetura, mas aeonteceu nssim também na pocsia lradicional, em ql!e o autor podia usar esquemas predeterminados (como o seXLelo e o tercelo) e, todavia, mesmo permitindo ao destinatário reconhecer a presença do esquema, pretendia provocar-lhe a experiência da inovação ou da invenção.

Diverso é o caso ele expressões que "fingem" ser sempre diferentes para, em vez disso, transmitirem sempre o mesmo conteúdo básico. É o caso, nos meios de comunicação de massa, do filme comercial, dos quadrinhos cómicos, da música de dança e - sem dúvida - do assim chamado seriado de televisão, onde se tem a impressão de ler, ver, escular sempre alguma coisa nova enquanto, com palavras inócuas, nos contam sempre a mesma história.

I E essa serial idade dos meios de comunicação de massa que foi considerada pela cultura "alta" como serialidade degenerada (e insidio­sa) em relação à serialidade aberta e honesta da indústria e do artesanato."

Naturalmente, no decorrer dessas polêmic~L~, esquecia-se que esse tipo de serialidade também esteve sempre presente em muitas fases ela produção arttsticado passado. Nestesentido, muita arte primitivaé serial, eram seriais muitas formas musicais destinadas ao entretenimento (como a sarabanda, ajiga Oll o minueto), e a tal ponto que muitos compositores ilustres não deixavaol de compor, por exemplo, uma suíte de acordo com um esquema fixo, e nela inseriam variações de melodias já conhecidas e populares. Por outro lado, basta pensar na commedia dell' arle, onde, com base num esquema preestabelecido, os atores improvisavam, com varia­ções mínimas, as suas representações que contavam sempre a mesma história.

A presença hoje maciça da série nos meios de comunicação de massa (pensemos, por exemplo, em gênero como a novela, a comédia de situação ou a saga na TV) nos obriga a refletir com uma certa atenção sobre todo o problema. Em que medida o serial dos meios de comuni­cação de massa é diferente de muitas formas artísticas do passado? Em que medida não está nos propondo formas de arte que, recusadas pela estética "modema", induzem uma estética dila "pós-moderna" a diversas conclusões?

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2. Uma tipologia da repetição

Série e serialidade, repetição e retomada, são conceitos amplamente inflacionados. A filosofia ou a história das artes nos habituaram a alguns sentidos' técnicos destes termos, que será melhor eliminar: não falarei de repetição no sentido de "retomada" à Kierkegaard, ou de répétition différeníe, no sentido de Deleuze. Na história da música contemporânea, série e serialidade foram tomados num sentido mais ou menos oposto ao que estamos discutindo aqui. A série dodecafônica é o contrário de repetitividade serial típica do universo dos meios de comunicação de massa, e com mais razão é diferente dela a série pós-dodecafônica (ambas, mesmo em modo diferente, são esquemas a serem usados uma vez, e s6mente uma vez, dentro de uma única composição).

Abrindo um dicionário corrente, vejo que, por "repetir", entende-se "dizer ou fazer alguma coisa de novo", mas no sentido de "dizer coisas já ditas'f ou "fazer monotonamente as mesmas coisas". Trata-se de estabelecer o que é que se entende por "de novo" ou por "mesmas coisas".

Devdmos então definir um primeiro significado de "repetir" segundo o qual o termo significa reproduzir uma réplica do mesmo tipo abstrato. Duas folhas de papel para escrever a máquina são, ambas, uma réplica do mesmo tipo de mercadoria.

Nesse sentido, "a mesma coisa" de uma outra coisa é aquela que exibe as mesmas propriedades~ pelo menos de um certo ponto de vista: duas folhas de papel são as mesmas em termos de nossas exigências'funcio­nais, mas não são as mesmas para um físico interessado na composição m9lecular dos objetos. Do ponto de vísta da produção industrial de massa, def;inemcse como réplicas dois tokens ou ocorrências do mesmo type, dois objetos que, para uma pessoa nom1al com exigências normais, na ausência de imperfeições evidentes, dê no mesmo escolher entre uma

-< réplica oL outra. São réplicas do mesmo tipo duas cópias de um filme ou de um livro.

A repetitividade e a serialídade que nos interessam concernem, cm vez disso', a alguma coisa que à primeira vista não parece igual a qualquer outra coisa.

Vejamos agora quais são os casos em que alguma coisa nos é apresentada (e vendida) como original e diferente, embora percebamos que esta, de algumafonna, repete o quejá conbecíamos, e provavelmente a compramos exatamente por isso.

I2.1 A retomada

Um pnmeiro tipo de repetição é a retomada de um tema de sucesso,

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ou seja, a continuação. O exemplo mais famoso é o Vinte anos depois, de Dumas, e no campo cinematográfico são as diversas retomadas de arquétipos como Gurrra nas estrelas ou Super-homem. A retomada nasce de uma decisão comercial, e é puramente ocasional o fato de que o segundo episódio srja melhor ou pior do que o primeir:o.

2.2 O decalque O decalque consiste em reformular, normalmente sem informar ao

consumidor, uma historia de sucesso. Quase todos os primeiros westerns comerciais eram decalque de obras anteriores, ou talvez fossem todos uma série de decalques de um arquétipo de sucesso.

Uma espécie de decalque explícito e declarado como tal é o remake: I vide as várias edições dos filmes sobre o doutor Jekyl1, sobre A ilha do ·1

tesourá ou sobre O motim do Bounty. Na categoria de decalque podemos classificm tanto os casos de

verdadeiro plágio conioos casos de "reescrita" com explícitas finalidades de interpretação.

I.J 2.3 A série I 2.3.1 Com a verdadeira série temos um fenômeno bem diferente.

Antes de mais nada, enquanto o decalque pode não ser decalque de situações narrativas e sim de procedimentos estilísticos, a série, eu diria, diz respeito, íntima e exclusivamente, à estrutura nanativa. Temos nma situação fixa e um certo número de personagens principais da mesma forma fixos, em ton1.o dos quais giram personagens sccunl1iÍrios que mudam, exatamente para dar a impressão de ,que a bistória seguinte é diferente da história anterior. A série típica pode ser exemplificada, no universo da literatunl popular, pelos romances policiais de Rex Stout (personagens fixos: Nero Wolfe, Archie Goodwin, os criados ela casa Wolfe, o inspelor Cramer, o sargento Stcbbins e poucos mais). c !lO

universo da televisão por Ali inlhefami/y, Slarsky anel I Irttch, Cofomho. elc, Agrupo gêneros televisivos di ['crentes, que vflo desde a novela ~\

comédia de situações e ao seriado policial., A série foi abundantemente estudada, e quando se falou de "estruturas

iterativas na comunicação de massa" visava-se justamente à estrutura da série:2 Na série, o leitor acredita que desfruta' ela novidade da história enquanto, de fato, distrai-se seguindo um esquema narrativo constante e fica satisfeito ao encontrar um personagem conhecido, com seus tiques, suas frases feitas, sua~ técnicas para solucionar problemas... A série neste sentido responde à necessidade infantil, mas nem por isso doentia, de ouvir sempre a mesma história, de consolar-se com o retorno do idêntico, superficialmente ma~carado.

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A série consola o leitor porque premia a sua capacidade de prever; ele :f fica feliz porque se descobre capaz de adivinhar o que acontecerá, e por­

que saboreia o r~tomo do esperado. Satisfazemo-nos porque encontra­mos o que esperávamos, mas não atribuímos este "encontro" à estrutura da narrativa, e sim à nossa astúcia divinatória. Não pensamos "o autor do I \ romance policiaJ'escreveu de modo a me deixar adivinhar", mas sim "eu I', adivinhei o que o autor do romance policial procurava esconder de mim". 1:'1,

2.3.2 Encontramos uma variante da série na estrutura emflash-back: veja-se, por exemplo, a situação de algumas histórias em quadrinhos (como a do Super·homem), onde o personagem não é seguido ao longo do curso linear de sua existência, mas continua,mente encontrado em

,diversos momentos da sua vida, obsessivamente revisitada para desco­brir novas oportunidades narrativas. Quase parece que passaram desper­cebidas ao narrador, por distração, mas que sua descoberta não altera a fisionomià do personagem, já fixada de uma vez por todas. Em termos matemáticos, ess'e subtipo de série pode ser definido corno um.loop.

As séries a loop são criadas normalmente por razões comerciais: .trata-se, a fim de continuar a série, de prevenir o natural problema do envelhecimento do personagem. Em vez de fazê-lo suportar novas

'\ aventuras; (que implicariam na sua marcha inexorável em direção à, ;11li morte) faz-se com que reviva continuamente no passado. A solução a lI! , /oop prod,uz par(}.doxos que já foram objeto de inúmeras paródias: o i' personagem tem pouco futuro, mas tem um passado enorme, e todavia i!

nada do seu passado jamais deverá alterar o presente mitológico em que foi apresentado ao Ileitor desde o início. Não bastam dez vidas para fazer "a pequena ólfã" passar por tudo que de fato passou nos primeiros (e únicos) dez anos de sua vida.

2.3.3 Outra variação da série é a espiral. Nas histórias de Charlie Brown aparentemente acontece sempre a mesma coisa, aliás, não acon­tece nada, ainda assim a cada nova tira o personagem Charlie Brown fica mais rico eprofundo. Coisa que não acontece nem com Nero Wolfe nem com Starsky ou com Hutch: nós estamos sempre interessados em co­nhecer suas novas aventaras, mas já sabemos tudo o que é preciso saber sobre a psicologia, os hábitos e as habilidades deles.

2.3.4 Acrescentaria', por fim, aquelas formas de serialidade moti­vadas, mais do que pela estrutura narrativa, pela própria natureza do ator: a simples presença de John Wayne (ou Jerry Lewis), sem uma direção muito personalizada, só poderia produzir o mesmo filme, porque os acon­tecimentos nascem da mímica, dos esquemas comportamentais, às vezes da própria elementaridade do personagem-ator, que nada sabe fazer a não ser sempre as mesmas coisas. Nestes casos, por maís que o autor se em­

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penhe em inventar histórias diferentes, na verdade o público reconhece (com satisfação) sempre e de qualquer maneira a mesma história.

2.4 A saga A sagaé uma sucessão de eventos, aparentemente sempre novos, que

se ligam, ao contrárid da série, ao processo "histórico" de um perso­nagem, ou melhor, a unJa genealogia de personagens. Na saga os persona­gens envelhecem, a saga é uma história de envelhecimento (de in­div'íduos, famílias, povos, grupos).

A saga pode ser em linha contínuo (um personagem acompanhado do nascimento à morte, depois seu filho, depois seu neto, e assim por diante potencialmente até o infinito) ou ad albera (o: antepassado e as váriasi ramificações narrativa~ que se reportam não só aos descendentes, mas aos

/I, colaterais e aos afillS";' também aqui ramificando infinitamente, e talvez desvíando a atenção para novos núcleos familiares: o exemplo mais

, imediato é, celtamente, Dollos). Nascida com intenções comemorativas e chegando à metamorfose

I mais ou menos degeneratíva nos meios de comunicação d~ massa, a saga ;1 é sempre uma série m~·lscarada. Nela, ao contrário da série, os persona­

gens mudam (mudam quando se substituem uns aos outros e quando 1 I envelhecem): mas na realidade ela repete, de forma historiada, cele­

brando aparentemente o passar do tempo, a mesma história, e revela à ~ análise uma atemporal idade e uma ausência de historicidade básicas. Os j personagens de Dallas passam mais ou menos pelas mesmas situações:

luta pela riqueza e pelo poder, vida. morte, derrota, vitória, adultério, amor, ódio, inveja. ilusão e desilusão. Mas era diferente com os cava­leiros da Távola Redohda que vagavam pelas florestas bretãs?

2.5 O dialogismo inteltextual 2.5.1 Algumas formas de dialogismo vão além dos limites destas

considerações. Veja-se, por exemplo, a citação estilística: um texto cita, de modo mais ou mends explícito, urna cadência, um episódio, um modo de narrar que imita o texto de outrem. Quando a citação escapa ao leitor e é até mesmo produzida inconscientemente pelo autor, estamos na dinâ­mica normal dacriaçã0 artística: os próprios mestres se repetem. Quando a citação deve ser imperceptível para o leitor, e o autor está consciente disso, normalmente estamos diante de um simples caso de plágio.

Mais interessante é quando a citação é explícita e consciente: estamos então próximos da paródia ou da homenagem ou. como acontece na literatura e na arte pós-ínodema, do jogo irânico sobre a intertextualidade (romance sobre o romnnce e sobrc as técnicas narrativas, poesia sobre a poesia, arte sobre a arle).

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2.5.2 Um procedimento típico da narrativa pós-modema, !C1ll sido, entretanto, muito, usado recentemente no âmbito das comunicações dc massa: trata-se de uma citação irânica do topos.

Lembremos o assassinato do gigante árabe 'vestido de preto em Os caçadores da arca perdida. Ou a citação da escadaria de Odcssa em Bananas, de Woody Allen. O que é que estas duas citações têm em comum? Em ambos os casos o espectador, para usufruir da alusão, deve conhecer os "lugares" originais (no caso do gigante, um topos de gênero, no caso de Bananas, um topos que aparece pelaprimeira e única vez numa obra isolada, e em seguida toma-se citação obrigatória - e por con­seguinte topos da crítica cinematográfica e da linguagem cinematorial).

Em ambos os'casos o topos já foi registrado pela "enciclopédia" do espectador, faz parte do imaginário coletivo, e como tal é evocado. O que diferencia as duas citações é, no máximo, o fato de que em Os caçadores o topos é eitado para poder ser desmentido (não acontece o que se espera em casos semelhantes), enquanto em Bananas o topos é introduzido, com as devidas variações, somente devido à sua incongruência. Congruente no primeiro caso, e exatamente por isso eficaz quando desmentido, -incongnlente no segundo caso.J

O primeiro caso lembra a série de cartuns que Mad publicava anos a­trás, em que sempre se contava"um filme que gostaríamos de ver". Por e­xemplo a~eroína;~o Oeste, amarrada pelos bandidos nos trilhos do trem, e depois, numa dramática montagem à Griffith, a alternância de imagens que mostram de um lado o trem que se aproxima e do outro a cavalgada furiosa dos salvadores que tentam chegar antes da locomotiva. Em con­clusão, a moça (contrariamente a todas as expectativas sugeridas pelo topos evoçado) é esmagada pelo trem. Aqui estamos diante de um jogo c6mico que brinca com a pressuposição (exata) de que o público reco­nheça o lugaroriginal, aplique à sua citação o sistema de expectativas que este deveria estimular por definição (quero dizer: por definição doframe ou script, tal como a enciclopédiajá o registra), e depois ria do modo pelo qual as suas expectativas são frustradas. Nessa altura, o espectador ingênuo, uma vez contrariado, supera a sua frustração, transformando-se em especddor crítico, que aprecia o modo como foi passado para trás.

No cas'o de Bananas, estamos num outro nível: o espectador com o qual o texto faz um pacto não é o espectador ingênuo (que no máximo pode ficar impressionado com o aparecimento de um acontecimento incongruente), mas o espectador crítico, que aprecia. o jogo ir6nico da citação e, mais exatamente, a sua proposital incongruência.

Todavia, em ambos os casos temos um efeito crítico colateral: tendo­se apercebido da citação, o espectador é levado a refletir ironicamente so­bre a natureza tópica do evento citado, e a reconhecer o jogo para o qual foi convidado como umjogodemassacre a serregistrado na enciclopédia.

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O jogo se complica, depois, na retomada de Os caçadores, isto é, em Indiana.lones e o templo da perdição: aqui o herói encontra não um, mas dois inimigos gigantescos. No primeiro caso o espectador esperava que, de acordo com os esquemas clássicos do filme de aventuras, o herói esti­vesse desarmado e ria quando descobria que este tinha uma pistola e ma­tavafacilmente oadversârio. No segundo caso, o diretor sabequeo espec­tador, que já viu o filme anterior, espera que o herói esteja annado e, de fato, Indiana Jones procura logo a pistola. Não a encontra, e o espectador ri porque fica frustrado nas expectativas que o primeiro filme havia criado. .

2.5.3 Os casos citados põem em jogo uma enciclopédia intertextual: temos textos que citam outros textos, e o conhecimento dos textos ante­ I,riores é pressuposto necessário para a antecipação do texto em exame.

Mais interessante, para uma análise ela nova intertextualidade e , dialogismo dos meios de comunicação de massa, é o exemplo de ET, II

I!

quando a criatura espi\cial (invenção ele Spielberg) é levada à cidade i I durante o Hal10ween e encontra um outro personagem, fantasiado de I!gnomo de O império contra-ataca (invenção de Lucas). ET sobressalta­l se e tenta ir ao encontrei do gnomo para abraçá-lo, como se se tralasse de um velho amigo. Aqui o espectador deve saber muitas coisas: deve I

~ certamente saberdaexistênciade um outro filme (conhecimento intertex· tual), mas deve também saber que ambos os monstros foram projetados por Rambaldi, que os diretores dos dois filmes estão ligados por várias I,

, Irazões, não só porque são os diretores de maior sucesso ela década, deve, I!! I;

em suma, possuir não somente um conhecimentó dos textos mas também II

um conhecimento do mundo, ou seja, elas circunstâncias externas aos itextos. Observe-se, naturalmente, que tanto o conhecimento dos textos

f como o conhecimento do mundo, não passam de dois, capítulos do

Iconhecimento encjcIo~édicoe que portanto, numa certa medida, o texlo se refere sempre, seja como for, ao mesmo patrimônio cultural.

Antigamente, um fenômeno desse gênero era típico de uma arte experimental que pressupunha um leitor modelo culluralmente assaz sofisticado. O fato de tais procedimentos serem sempre mais comuns no

! universo dos meios de comunicação de massa nos leva a algumas li r considerações: os mas,; media se preocupam com - pressupondo-as­

informações já veiculadas por outros mass media. O texto de ET "sabe" que o público entendeu, através dos jornais ou

da televisão, que relações perpassam entre Rambaldi, Lucas e Spielberg, ~

Os meios de comunicação parecem, no jogo das citações extratextuais, referir-se ao mundo, mas de fato se referem ao conteúdo de outras

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I

mensagens de outros meios de comunicação. A partida é jogada, por as­sim dizer, numa:intertextualidade "ampliada" em relaçiío 11 qu,J! o conhe­cimento ;do mundo (entendido de modo ingênuo como conhecimento

), derivado de uma experiência extratextual) se tornou praticamente nulo. As nossas retlexões a seguir não deverão, portanto, questionar so­

mente o fenômeno da repetição dentro de uma obra isolada ou de uma série de obras, mas sim o fenômeno de entrelaçamento que torna as várias estratégias de repetição produtíveis, compreensíveis e comerciáveis. Em outras palavras, repetição e serialidade nos meios de comunicação de massa propõem novos problemas de sociologia da cultura.

2.5.4 Uma forma de dialogismo é a embalagem de gênero muito comum nos mei:os de comunicação de massa. Pense-se tanto no musical da Broadway (em teatro ou em filmes) que não passa disso - nor­malmente - como na bist6ria de como se monta um musical na Broad­way. E esse tipo parece exigir um vasto conhecimento intertextual: de fato, ele cria e estabelece a competência exigida e pressuposta para entendê-lo, no sentido de que cada filme deva contar-nos como se faz um musical na Broadway, fornece-nos todos os elementos em geral indis­pensáveis para compreender um único espetáculo. O espetáculo dá ao público a sensação de saber o que na verdade ele ainda não sabe e passa a conhecer somente naquele momento. Estamos diante de um caso de colossal preterição. Neste sentido o musical é obra didática que torna conbecidas as regras (idealizadas) da sua produção.

2.5.5 Enfim temos a obra que fala de si mesma: não a obra que fala do gênero ao qual pertence, mas a obra que fala da própria estrutura, do modo como é feíta. A rigor, tal procedimento aparece s6 em relação a obras de vanguarda, e parece estranho às comunicações de massa. A estética conhece esse problema, e até o identificou há muito tempo: é o problema da morte da arte. Mas nos últimos anos aconteceram casos em que produtos dos meios de comunicação de massa foram capazes de ironizar a si meSmos, e alguns dos exemplos acíma propostos me parecem bastante'interessantes. Também aqui, os confins entre arte high brow e arte low brow parecem ser muito sutis.

3. Uma ~'olução estética moderada ou "moderna"

Tentemos agora rever os fenômenos acima relacionados do ponto de vista de uma concepção "modema" do valor estético, segundo a qual se destacam duas características em qualquer mensagem esteticamente bem organizada: .

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- deve realizar-se Úma dialética entre ordem e novidade, ou seja, entre esquematismo e inovação;

- essa dialética deve ser percebida pelo destinatário. Ele não só deve captar os conteúdos da mensagem como deve captar o modo pelo qual a mensagem transmite aqr~eles conteúdos.

Nesse caso nada impede que nos tipos de repetição acima relaciona­dos sUljam as condições para uma realização do valor estético, e a história das artes aí está para fornecer-nos exemplos satisfatórios para todas as designações da nossa c]<lssificação.

Retomada-Orlandofurioso é, no fundo, uma retomada do II/namo­rato e, exatamente dev ido ao sucesso do primeiro, que era por sua vez uma retomada dos temas do ciclo bretão, Boiardo e Ariosto acrescentam I uma boa parcela de ironia ao material deveras "sério" e "levado a sério" I em que se inspiraram, mas também o terceiro Super-homem é irânico em I

relação ao primeiro (místico e metido a sério), de modo que temos a I retomada de um arquétipo inspirado no Evangelho, mas namorando os filmes de Fmnk Tashlin. I'

A retomada pode ser feita com ingenuidade ou com ironia: a ironia diferencia a retomada furtiva da que é feita com pretensões estéticas. Não Ifaltam critérios críticos (e noções de obra de arte) que nos permitam

Idecidir em que sentido a retomada de Ariosto pode ser mais rica e complexa do que a do filme de Lester.

Série - Todo texto pressupõe e constrói sempre um duplo Leitor {/-L... iModelo.4 O primeiro us~ aobra como um dispositivo semântico e é vítima : I

das estratégias do autor que o conduz passo a passo ao longo de uma série de previsões e expectativas; o outro avalia a obra como produto estético ! f

e avalia as estratégias j)OSlas em ação pelo texto para construí-lo jus­tamente como Leitor Modelo de primeiro nível. O leitor de segundo nível é o que se empolga com a serialidade da série e se empolga não tánto com o retorno do mesmo (que o leitor ingênuo acreditava ser outro) mas pela estratégia das variações, ou seja, pelo moela como o mesmo inicial é continuamente elaborado de modo a fazê-lo parecer diferente.

Esse jogo com a variação é obviamente encorajado pelas séries mais sofisticadas. Poderíamos aliás classificar as produções narr<ltivas seria­das num continul/m que leva em consideração as diversas graduações do

.., contrato d~nlr'e texto e leitor de segundo nível ou:leitor crítico j "(éõmo~do o oposto do leitor ingénuo). É evidente que até o produto nanativo mais banal permite ao leitor constituir-se, pordecisãoautânoma,

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em leitor crítico, isto é, em leitor que decide avaliar as eSIJ'atégias inova­ ,I doras, ainda que mínimas, ou registrar a ausência de inovação. Há porém obras seriais que estabelecem um pacto explÍl;ito com o leitor crítico e por assim dizer o desafiam a destacar as habilidades inovadoras cio texto.

Per.tencem a essa categoria os telefjlmcs do tenente Colombo: a tal ponto que os autores preocupam-.se em fazer-nos saber desde o início

I quem é o assassino. O espectador não é convidado tanto aojogo ingénuo .1 das previsões (whodunit?) quanto, por um laclo, a divertír-se com a ii execução das técnicas de investigação de Colombo (apreciadas como o

, 1~ bis de uma peça de bravura muito conhecida e muito querida), e por outro a descobrir como o autor conseguirá vencer seu desafio: que consiste em fazer Çolombo fazer aquilo que faz sempre, e todavia não de modo banalmente rePetitivo.

No;limite extremo podemos ter produtos seriais que apostam pou­:! quíssimo no leitor ingênuo, usado como pretexto, e arriscam tudo no

pacto com o leitor crítico. Pensemos no exemplo clássico das variações 'j musicais: estas podem ser entendidas (e de fato às vezes são usadas) como

música de fundo que gratifica o usuário com o retorno do mesmo, ligeiramente mascarado. Todavia, o compositor está fundamentalmente interessado no pacto com o usuário crítico, do qual quer receber elogios pela criatividade demonstrada ao inovar sobre a trama do já conhecido.

Nesse sentido, a série não se opõe necessariamente à inovação. Nada é mais "serial" do que o esquema-gravata, e contudo nada é mais personalizante do que uma gravata. O exemplo pode ser elementar, mas não é banal, nem limitativo. Entre a estética elementar da gravata e o reconhecido "alto" valor artístico das variações de Goldberg, há um continuum dividido em graus de estratégias serializantes, ajustadas de ... modo diferente para criar um relacionamento com o usuário crítico. Que, pois, a maior parte das estratégias serializantes no âmbito das comuni­cações de massa esteja interessada. somente nos usuários de primeiro nível- ficando os sociológos e semiólogos livres para exercitarem um interesse (puramente tribunalício) pelas suas estratégias de abundante repetitividade e pouca inovação -este é um outro problema. São scriais tanto as naturezas-mortas holandesas, quanto a imagérie d' Épinal. Trata­se, se quisermos, de dedicar às primeiras profundos ensaios críticos e às segundas afetuosos e nostálgicos catálogos de antiquário: o ponto, porém, consiste em reconhecer que em ambos os casos pode existir um problema de serialidade.

A que~tão é que não existe, por um lado, uma estética da arte "alta" (original e não serial) e por outro uma pura sociologia do serial. Existe uma estética das formas seriais que não deve caminhar separada de uma

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sensibilidade histórica e antropológica pelas diferentes formas que em tempos e países diversos a dialética entre repetitividade e inovação assume. Devemos questionar-nos se, por acaso, onde não encontramos inovação no seriado, ISso não depende, mais do que das estruturas elo texto, do nosso horizOlitede expectativas eda estrutura da nossa sensibili-. dade. Sabemos muito bem que em certos exemplos de ane extra­européia, onde nós vefnos sempre a mesma coisa, os nativos conseguem variações infinitesimais e usufruem a seu modo as emoções da inovação. Enquanto onde nós vemos inovação, talvez em formas seriais do passado ocidental, os usuários originais não estavam absolutamente interessados nesse aspecto e, inversamente, apreciavam a recon'ência do esquema.

Saga - Para confIrmar que a nossa tipologia não resolve problemas de excelência estética, diremos que toda a Comédia Iiurnana de Balzac representa um bom exemplo de saga ramificada, pelo menos tanto quanto Dal1as. Balzac é esteficamente mais interessante do quc os autores ele Dallas porque cada romance seu nos diz alguma coisa de novo sobre a sociedade do seu tempo, enquanto cada episódio de Dallas nos diz sempre a mesma coisá sobre a sociedade americana... Mas ambos usam o mesmo esquema narrativo.

Dialogismo intertextual-Aqui parece que a necessidade de expl icar os êxitos estéticos do dialogismo seja menos urgente, porque a própria noção de dialogismo foi elaborada no âmbito de uma reflexão, estética e semiótica ao mesmo tempo, sobre a arte cbamada alta. E todavia, jus­tamente os exemplos que representamos há pouco foram provocatoria­mente assumidos pelo universo das comunicações de massa, para mostrar como também as formas de dialogismo intertcxtual já se transferiram para o âmbito da produção popular.

Típica da literatura e da arte dita pós-moderna (mas já não acontecia o mesmo com a música de Stravinsky?) é a citação entre aspas, de modo que o leitor não presta atenç['io ao conteúdo da citação, mas sim ao modo pelo qual a citação é introduzida na trama de um texto diferente, e para dar lugar a um texto diferente. Mas, como observa Renato Barillis, um dos riscos desse procedimento é o de não conseguir pôr em evidência as aspas, de modo que o queé citado-e muitas vezes cita-se não a arte mas o Kitsch - é recebido pelo leitor ingênuo de primeiro nível como invenção original e nÁo como citação irânica.

Propusemos três eXemplos de citação de um topos: Os caçadores da arca perdida, Bananas e ET.

Vejamos agora o t~rceiro caso: o espectador que nada soubesse sobre

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as origl'llS (k prodlH,:rio <Ins dois filmes (dos quais um cita o outro) não conseguiria wltl'll<!cr por que acontece o que acontece, Se o resultado da Rag lS condi<:fio dc prazer estético (isto é, se a gag deve ser considerada c{)mO COnSIJ'LI,i:lo que aspira a apresentar-se como auto-reflexiva) - e numa mcdida, por mínima que seja, o é, como o é a tirada espirituosa, a piada qUI: espera ser admirnda pela economia de meios alravés dos quais I eons(~guc o deito cômico - então o episódio de ET se rege pela neces­

I sidade das aspas. Mas poder-se-ia repreendê-los por confiar a percepção das aspas ü um saber externo ao texto: nada no filme ajuda o espectador a cntend<.:r quc em determinado ponto deveriam existir aspas, O filme confia 110 saber extratextual do espectador. E se o espectador não sabe? Paciência, o filme sabe que tem outros meios para obter sua con­cordânda.

Essas aspas imperceptíveis, mais do que um artifício estético, são um artifício social, selecionamoshappy few (que, espera-se, sejam milhões). Ao espectador ingênuo de primeiro nível ofilmejádeu até demais: aquele prazer secreto fica reservado, por enquanto, ao espectador crítico de segundo nível.

Outro é o caso de Os caçadores. Aqui, se o espectador crítico falha (e não reconhece otopos desgastado), permanecem amplas possibilidades de divertimento para o espectador ingênuo, que se diverte pelo menos com o fato de que o herói leva sempre vantagem sobre o adversário. Estamos diante de uma construção menos sutil do que a precedente, mais inclinada a satisfazer as exi~ências do produtor que, seja como for, deve vender o produto a alguém. E verdade que é difícil imaginar Os caçadores visto e apreciado por espectadores que não captem o paroxismo citatório, mas é sempre possível que isso aconteça, e a obra está aberta também a essa pos$ibílidade. Não saberia dizer qual, entre os dois textos citados, persegue finalidades esteticamente mais nobres. Basta-me Ce por en­quanto já me dá muito o que pensar) assinalar uma diferença de fun­cionamento e de estratégia textual que pode provocar um juízo crítico diferente. I

Vejamos agora o caso de Bananas. Daquela escadaria desce não só um carrinho de bebê, mas também grupos de rabinos e não lembro mais o quê. O que acontece com o espectador que não percebe a citação do Potemkin ?'Creio que, pela energia orgiástica com a qual são representa­dos a escadaria e a sua incongruente população, até o espectador ingênuo percebe o sentido sinfônico e estranho dessa quenne~se bruegeliana. Mesmo o mais ingênuo entre os espectadores percebe um ritmo, uma invenção, não pode deixar de concentrar sua atenção no modo de constl'llir.

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Colocaremos enfim, no pólo extremo elo inlercsse cslé\'ieo, llll1U obra cujo equivalente não consigo encontrar nos meios de comunicação de massa contemporâneos, e é uma das obra~-primas não só do dialogismo intertextual mas tambem da alta capacidade metalingüística de falar e da

! sua formação e do seu gênero, para encerrar, rapidamente, os úllimos \ itens da minha tipologia. Falo de '!'risllllll'll SlwlIIl)', I É impossível ler ~ apreciar o romance anli-r~mance ele Sterne sem

aperceber-se de que el'eestá ironizando a forma-romance. E o texto o sabe I I

a tal ponto que creio qÍle é impossível encontrar nele um só trecho irânico onde não deixe evidente seu modo particular de usar aspas, levando a LI ma solução estética a técúica retórica da prol1ul1liario - c$scneial para que I o altifício da ironia tenha êxito.

I Creio ter particularizado uma série ascendente de artiflcios do uso de aspas, que, seja como for, deve ter importância para os objerivos de urna I fenomenologia do valor estético e do prazer qne dele resulta. Destaco, mais uma vez, que as estratégias da surpresa e da novidade na repetição, mesmo sendo estratégias semióticas, esteticamente neutras em si, podem I· dar origem a diversa~ soluções diversamente apreciáveis no plano da I

i estética. . I' Poderíamos concluir dizendo que: .

) -cada um dos tipos de repetição que examinamos não está limitado somente aos meios de comunicação de massa, mas pertence por direito a toda história da criatividade artística: o plágio, a citação, a paródia, a retomada irânica, o jogo intertextllal, são típicos de toda a tradição artístico-l iterária;

'- muita arte, por-tanto, foi e é serial; o conceito de originalidade absoluta, em relação á obras anteriores e às próprias regras do gênero, é um conceito contemporâneo, nascido com o romantismo; a arte clássica era amplamente serial e as vanguardas históricas, de vários modos, deixaram em crise a idéia romântica da criação como estréia no absoluto (com as técnicas de colagem, os bigodes na Gioconda, etc.);

- O mesmo tipo de procedimento serial pode produzir tanto ex­celência como banalidade; pode deixar o destinatário em crise consigo mesmo e com a tradição intertextual no seu conjunto; e, por conseguinte, pode provê-lo de fáceis consolações, projeções, identi ficações; pode es­tabelecer um pacto exclusivamente com O destinatário ingênuo, ou exclusivamente com o destinatário crítico, on com ambos em diferentes níveis e ao longo de um continuum de soluções que não pode ser reduzido a uma tipologla elementar;

- portanto, uma tipologia da repetição não fornece os critérios para eSI<tbclcccr dircl'ell~a(: de vulol' cslçtico;

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- tbdavia, ~crtí cXl\lamente aceitando o princípio de.que os vários tipos de repdi,,~ii()constituem características constantes do procedimento 'lrtístico, que ~e poderá partir deles para estabelecer critérios de valor; uma eslétü.;a da repetição requer como premissa Uma semiótica dos procedimentos textuais de repetição.

11~ p'

4. Uma .I'oluçi'ío estética radical ou "pós-moderna"

Percebo, entretanto, que tudo o que disse até agora constitui uma tentativa de reconsiderar as diversas formas de repetição propostas pelos meios de comunicação demassa, nos termos da dialética "moderna" entre ordem e inovação.

O fato é que, quando as pesquisas sobre esse tema falam de estética da serialidade, estas aludem a alguma coisa mais radical, isto é, a uma noção de este.tí~ida~e que não pode .mais fic~r reduzida à.\;ategoria~ ...J..:'}./-J modemo-tradlclOnals - se me permitem o oXlmoro~. 'í.?,t->'F ~'<\.,...'}, .... d ~.J(' ~\Y

Foi observad06 que com o fenômeno dos seriados de televisão encon- 1: tramos um novo conceito de "infinidade do texto": o texto adota os ritmos e os tempos da mesma cotidianidade dentro da qual (e destinado à qual) se move. O problema não é reconhecer que o texto seriado varia indefinHiamente dentro do esquema básico (e nesse sentido pode ser j uIgado do ponto de vis ta da estética "moderna"). O verdadeiro problema é que o que interessa não é tanto a variabilidade quanto o fato de que dentro do esquema se possa variar ao infinito. E uma variabilidade infinita tem todas as características da repetição e pouquíssimas da inovação. O que é aqui celebrado é uma espécie de vitória da vida sobre a arte, tendo como resultado paradoxal que a era da eletrônica, ao invés de acentuar o fenômeno do choque, da interrupção, da novidade e da frustração das expectativas, "produziria um retorno do continuum, do que é cíclico, periódico, regular".

Omar Calabrese aprofundou o problema7: do ponto de vista da dialética ~'moderna"entre repetição e inovação, pode-se certamente ver, por exemplo, ~os episódios da série Colombo, como dentro de um esquemà-base trabalharam como variação alguns dos melhores nomes do cinema americano. Seria por conseguinte difícil falar, em tal caso, de pura repetição: se permanecem imutáveis o esquema da abordagem e a psicologia do personagem, o estilo da narrativa muda a cada vez. O que não é pouco, especialmente do ponto de vista da estética "moderna". Mas é justamente sobre uma noção diferente de estilo que se concentra a conferência de Calabrese. O fato é que nessas formas de repetição "não

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nos interessa tanto o que é repetido, quanto nos interessa segmentar os componentes de um texto e codificá-los para poder estabelecer um sistema de invariantes, onde tudo que não se encaixa é definido como variável independente". E nos casos mais típicos e aparentemente mais "aviltados" de serialidade, as variáveis independentes não são absolu­tamente as mais visíveis, mas as mais microscópicas, como uma solução homeopática onde a porção é bem mais potente quando, por sucessivas manipul~ções,as partículas do produto medicinal quase desaparecem. O que permite a Calabrese falar da série Colombo como de um exercice de style à Queneau. A esse ponto nos encontraríamos diante de uma "estética neobarroca": que funciona com força total não só nos produtos cultos, mas também e principalmente nos mais aviltados. Também a propósito de Dallas pode-se dizer que "as oposições semânticas e a articulação das estruturas elementares da narração podem transmigrar com uma combi­natória de altíssima ühprobabilidade em torno dos vários personagens".

Diferenciação organizada, policentIismo, irregularidade regulada: tais seriam os aspectos fundamentais dessa estética neobarroca, cujo exemplo maior é a vÚiação musical à Bach.

Como na época das comunicações de massa "a condição de escuta... é aquela para a qual {/.),doJáJoi dito e tudo já/oi escrito ... como no teatro Kabuki, será então a I'nais minúscula variante que produzirá O prazer do texto, ou a forma da repetição explfcita do que já se conhece".

É claro o que acontece com estas reflexões. Desloca-se o foco teórico da pesquisa. Se antes tratava-se, para o mass-mediólogo ainda moderno, de salvar ti dignidade do seriado nele rcconhecendo ii possibilidade de uma dialética tradicional entre esquema e inovação (mas nesse ponto era ,''' ainda a inovação que constituía o valor, ou o caminho de salvação para tirar o produto do aviltamento e valorizá-lo), agora a ênfase recai sobre o nó inextlicável do esquema-variação, onde a variação não influi sobre o esquema- e, quando muito, acontece o contrário. O termo neobarroco não deve enganar: aqui fica confirmado o nascimento de uma nova sensibilidade estética, muito mais arcaica, e verdadeiramente pós-mo­dema,

Neste ponto, obse"rva Giovanna Grignaffini, "o seriado de televisão, ao contrário de outros produtos realizados pela ou para a televisão, utili­za este princípio Ce o seu inevitável corolário), num certo sentido no estado puro, chegando a transformá-lo de princípioprodutivo em princípio formal. E é dentro desse deslizamento progressivo que toda noção de unicidade fica destruída até à raiz".B

Triunfo de uma estrutura de encaixes independentes, que vai ao encontro das exigências - primeiro receadas, depois realisticamente

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reconhecidlüi 1'\1I1111 illnhl de l'alo, agora finalmente proclamadas como nova ~(:llIdiljll'ÍI ri'I' i!lllt'lkidade .- do "consumo na distração" (que é, J

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port;1I110, o lIHl' 111'llIlh'l'ill ('Olll a música barroca). Ülll~ ('Ili ll !' vI;llIl, lIao (: que os autores dos ensaios citados não

CnXl:;rl\1Il' 1111 Iililllln lIil dl' (;oInercialmente animador e de "gastronômico" em proJlll1 Iilritl!1lu'i qlle (;ontam sempre a mesma coisa e sempre se fcchanl dll'ldllltll~'Ih' sobre si mesmas (não é, digo, que eles não

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clIxnj\w'llI 1111l'lillnogia c a ideologia expressa por essas histórias no que COll('l',I'JIl.' :IIH; 11'1iP'l'\.)livos contelÍdos). E que eles não só aplicam a tais prodlllm 11111 t' t'11~1 ío ril~idamcnte formalístico, como deixam claro que d\;lVCllm:~ l\llllll.\'m' a üonccher uma audiência capaz de fmir de tais j)rodulos d"ll:,l~ Inmlo. Porque somente com essa convenção pode-se falar de IIl1la Ilova ll'll1~lít'l1 do seriado.

S!');, ['mi ir dessa convellção o seriado n[\o é mais um parente pobre da arte, IlIas :1 l'orma de mlc que satisfaz à nova sensibilidade estética, ou seja, li l'ol'Jlla p6'H110dcrna da tragédia ática,

Nfio nos estandali"aríamos se tal critério fosse aplicado (como foi aplicado) ils ohra.~ d\: arte "minimal", como, por outro lado, à arte abstra­ta. li, de l'ato, aqui se está delineando uma nova estética do "minimal" aplicada aos produtos da comunicação de massa.

Mas ludo isso prevê que o leitor ingénuo de primeiro nível desa­pareça, para deixar lugar somente ao leitor crítico de segundo nível. De fato, nJo existe o leitor ingênuo de um quadrá abstrato ou de uma escultura "minimal" (ou, se existe quem pergunte "o que significa?" este não é leitor nem de primeiro nem de segundo nível, está fora de qualquer leitura). Da obra abstrata ou da escultura minimal faz-se somente leitura, crítica, deJas não interessa a inutilidade que está feita, interessa somente o modo de fazer.

Podemos esperar o mesmo dos produtos seriados da televisão? Devemos pensar no nascimento de um novo público que, indiferente às histórias contadas, que já c'onhece, pretende apenas degustar a repetição e as suas mínimas variações? Embora O espectador ainda hoje chore diante das aflições das famílias texanas, devemos esperar para o futuro próximo uma genuína mutação genética?

Se assim não devesse acontecer, a proposta radical pareceria singu­larmente esnobe: como em 1984, existiriam prazeres de segunda leitura reservados aos membros do partido e prazeres de primeira leitura reser­vados aos prolel. Toda a indústria do seriado existiria, como o mundo de Mallarmé (feito para resolver-se num Livro), com o único objetivo de fornecer o prazer neobarroco a quem soubesse apreciá-lo, reservando lágrimas e alegrias (fictícias e aviltadas) aos muitos que sobram,

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5. Algumas perguntas à guisa de conclusão

Se a hipótese máxima é possível (um universo de audiovisores desinteressados quanto ao que realmente acontece a J.R. - e realmente decididos a captar o prazer neobarroco da forma que suas aventuras assumem), deveremos perguntar-nos se tal perspectiva (por mais precur­sora que seja de uma /lova estética) é permitida por uma velha semiótica.

A música barroca, como a arte minimal, são "assemânticas". Pode-se discutir, e eu sou o primeiro a fazê-lo, se é possível estabelecer uma divisão tão nítida entre artes de pura sintaxe e artes que transmitem significados. Mas pódemos pelo menos reconhecer que existem artes figurativas e artes aqstratas, A música barroca e a minimal ou não são figurativas, e os seriados da televisão o são. Para usar um termo de Greimas, eles põem êm jogo "figuras do mundo".

Até que ponto se poderá apreciar como variações musicais aquilo que varia nas figuras do mundo, sem escapar ao fascínio (e à ameaça) do mundo possível que ~las põem constantemente em cena?

Por outro lado, se não quisermos permanecer prisioneiros de precon­ceitos etnocêntricos, devemos levar a hipótese às suas últimas con­seqüências.

Diremos então que a série neobarroca propõe, ndseu primeiro nível ele fruição (ineliminável, puro e simples mito. Nada tem a ver com a al'le. Uma história, sempre igual. Não será a história de Atreu e será a de J.R. Por que não? Cada época tem os seus mitopoietas, os seus centros de produção mitopoiética, o próprio sentido do sacro. Descontada a repre­sentação (figurativa) e a degustação "orgiástica" do mito (admitida a intensa participação emotiva, o prazer da reiteração de uma só e constante verdade, e as lágrimas, e o riso ~ e enfim uma sã catarse), a audiência reserva-se a possibilidade de passar ao nível estético e opinar sobre a arte da variação no tema mítico - assim como se consegue apreciar um "belo funeral" mesmo quando o morto era uma pessoa querida,

Temos certeza de que isso não acontecia também na antígiiidade clássica?

Quando relemos a Poética de Aristóteles, vemos que era possível descrever o modelo da tragédia como um modelo serial. Das citações do Estagirita entrevemos que as tragédias de que ele tinha conhecimento eram mais numerosa,i; do que as que chegaram até nós, e todas seguiam (variando-o) um esquema fixo. Podemos supor que as que se salvarani foram as que melhor éorrcspondiam aos padrões ela sensibil idade estética antiga. Mas poderíamos também sLLporque adizimação tenha acontecido' com base em critérios de política cultural , e ninguém pode proibir-nos ele

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il11~IHIIU.1 '1111', ;~olod(:;o; tenha sobrevivido em virtude de manobras de pol/n, HlI~'IIII( 1111110 alltores melhores (mas segundo que critério?) do que ele,

~" I\': ti íll\~'dias eram bem mais do que as que conhecclTlos c se todas St~Hlliill\l (variando-o) um esquema fixo, o que aconteceria se hoje pud~ ..~t·'IIIOS vl'Has ou lê-las todas juntas? Seriam diferentes}las usuais as llosrms :llwcciações sobre a originalidade de Sófocles ou de Esquilo? Será qU(' cnconlraríamos nesses autores sérias variações de temas t6picos onde hoje cnl:revemos um modo único (e sublime) de enfrentar os problemas da condição humana? Seria possível que, lá onde nós vemos invenção ubsoluta, os gregos vissem somente a "coneta" variação dentro de um esquema, e que sublime lhes parecesse não a obra isolada, mas justamente o esquema (e não é por acaso que, falando da arte poética, Aristóteles desenvolvia uma discussão sobre esquemas, acima de tudo, e somente a título de exemplo se detinha nas obras isoladas).

Agora, invertamos a experiência e coloquemo-nos, diante do seriado contemporâneo, do ponto de vista de uma estética futura que tenha readquirido o sentido da originalidade como valor. Imaginemos uma sociedabe do ano 3000 depois de Cristo na qual, por razões que não pretend~ teorizar, noventa por cento da nossa produção cultural atual tivessem desaparecido e de todos os seriados de televisão tivesse sobre­vivido só um episódio do tenente Colombo.

Como perceberíamos essa obra? Nos emocionaríamos diante da originalidade com que o autor soube representar um homenzinho em luta contra as potências do mal, contra as forças do capi tal, contra a sociedade

t: opulenta e racista dos wasps dominadores? Apreciaríamos essa represen­tação eficaz, concisa, intensa da paisagem urbana de uma América industrial?

Quando o seriado procede por resumos, porque tudo já foi dito nos episódí<;>s precedentes, será que veríamos manifestar-se uma arte da síntese, uma capacidade sublime de dizer através de alusões?

Em outras palavras, como seria lido um "treeho" de uma série se o resto da. série permanecesse ignorado?

Antecipo aobjeção: o que nos impede de ler assim, agora, os produtos seriados?

A resposta é: nada. Nada nos impede. Aliás, talvez façamos, com freqüência, exatamente assim. .

Mas' assim procedendo, fazemos o que fazem os espectadores nor­mais da! série? Acho que não.

E então, última pergu nta, quando tentamos in terpretar e definir a nova estética: do seriado, situando-nos como intérpretes da sensibilidade

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coletiva, temos certeza de estar lendo como os outros (os "normais") lêem?

E se a resposta fosse negativa, o que teria a estética a ctizerentão sobre o problema do seriado de televisão?

1. cc. a distinção entre serialidade de veículo e serialidade de programa proposta por A, Costa e L. Quaresima em "II racconlo elcttronico: veicolo, programma, durata", Cinema

& Cinema 35·36,1983, págs, 20-24, 2. Sobre essa repetitividade nos meios de comunicação de massa a literatura é muilo ampla. Remeto, por exemplo, aos meus estudos sobre Super.homem, James Bonel ou sobre o folhetim do sécuto XIX (publicados em Apocalillci e integrali e II Superuomo di massa), 3. Para a noção de enciclopédia semiótica cc. os meus Leclor in fabula e Semiolica e filosofia dellinguaggio, !, 4, CE. para a noção de "leitor- modelo" o meu Lector ih fabula, citado. 5. "DaI leggibile all'itleigibile", em L. Russo, ed., Letterarura tra consumo e ricerca, ii

Mulino, Bolonha, 1984.. 6, Cf. o artigo já citado c1e COSIa e Quaresima em Cinema & Cinema 35-36, 7. "I replicanli", Ci"emd & Cinema 35·36. págs, 25·39. 8. "].R,: vi presento iI racconto", Cinema & Cinema 35·36. prigs, 40-5!.

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