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Edição 2015
cultura, diversidade e desenvolvimento
disciplina 19
Desenvolvimento cultural: modelos e experiências
Elaboração e texto Flavio Aniceto
Desenvolvimento cultural: modelos e
experiências
Flavio Aniceto
Ao fi nal da disciplina, você deverá ser capaz de:
• Reconhecer modelos, conceitos, debates e experiências nas áreas de participação social, Cidadania Cultural, fi nanciamento colaborativo e territorial, redes culturais – digitais/tecnológicas e/ou presenciais –, parcerias criativas institucionais, públicas ou da sociedade que combinadas possam contribuir para o desenvolvimento, a gestão e as ações culturais em suas realidades socioculturais.
Objetivo
4disciplina 19
Introdução
Após a redemocratização brasileira (ocorrida em 1985) e principalmente com a promulgação
da Constituição Federal de 1988, a “Carta Cidadã”, que refl etiu o momento democratizante e a
emergência de participação social, muitas políticas públicas nas áreas sociais emergiram, ou
ganharam força, assim como alguns mecanismos de gestão e de controle social1.
O Sistema Único de Saúde – SUS – por exemplo, é fruto de uma combinação entre o
movimento de reforma sanitária, a carta de 1988 e a conjuntura da época. Com acertos e
erros, temos um sistema que sobrevive, presta serviços, tem muitos problemas, mas também
serviu de modelo e inspiração para outros sistemas de integração de políticas e de prestação
de serviços no Brasil e fora (o Sistema Nacional de Cultura – SNC, que vimos em outras
disciplinas, por exemplo, é indiretamente um dos “fi lhos” dos SUS, guardadas as proporções e
particularidades da área cultural).
O que queremos destacar aqui é que após 1985/1988, tivemos a ampliação da ideia-força
de cultura como prioridade social básica. A cultura passou a ser enxergada e praticada
para além da justa, porém limitada, abrangência apenas das áreas de Artes e do Patrimônio
Histórico Artístico e Cultural. Assim outros setores foram incorporados. Estas modifi cações
conceituais se deram, inicialmente por intermédio de universidades2 e por instituições da
sociedade como o Instituto Pólis3 (para as políticas públicas) e diversas outras que atuavam
1 Convém fazer uma distinção entre a Participação Social e o Controle Social. A primeira ocorre no planejamento, na execução, no monitoramento e na avaliação de determinada política pública. O que na área cultural está se tentando garantir. No segundo, existem mecanismos formais (de consulta pública ou de deliberação) para que os diversos grupos interessados possam controlar o Estado, fi scalizar as ações governamentais em diversas áreas e formas distintas, interceder quanto à execução de políticas. Conforme as questões abordadas neste curso, nesta e em outras disciplinas, este é um desafi o: a construção de mecanismos de controle social do que é decidido nos espaços democráticos de participação em benefício do setor cultural. Não basta ter conselhos e conferências de cultura, é preciso efetivar as políticas decididas nesses espaços de participação.2 Vale registrar que o primeiro curso universitário em Produção Cultural surgiu na Universidade Federal Fluminense – UFF em 1995, seguido anos depois, por outras instituições privadas e públicas.3 Instituição de São Paulo, fundada em 1987, que “atua na construção de cidades justas, sustentáveis e democráticas, por meio de pesquisas, assessoria e formação que resultem em mais políticas públicas e no avanço do desenvolvimento local”, conforme o informa a própria instituição, a qual mantém uma subárea de cidadania cultural, www.polis.org.br.
Desenvolvimento cultural: modelos e experiências
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diretamente em ações culturais, como o Nós do Morro (surgido em 1986, mas que ganhou um
reconhecimento maior nos anos 1990).
Recuando um pouco, para 1988, lembramos que neste ano diversos municípios de
destaque elegeram prefeitos e prefeitas progressistas e que no clima democratizante
realizaram experiências inovadoras de participação social na formulação de políticas públicas,
como o “Orçamento Participativo”, em Porto Alegre, e as primeiras experimentações ofi ciais
de cidadania cultural, com Marilena Chauí na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Na área pública federal, estas ações se difundiram especialmente após 2003, com o
primeiro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva tendo Gilberto Gil como ministro da
Cultura com a adoção de uma visão tridimensional para área, englobando as suas dimensões
simbólica (criação, artes, patrimônio etc.), econômica (como promotora de desenvolvimento
a partir das várias possibilidades da área) e cidadã (como um direito social básico da maioria,
e não só de fruir o que outros produzem, mas também de produção e fala própria).
A partir daí, termos como cidadania cultural, economia da cultura, economia criativa,
diversidade cultural e desenvolvimento cultural passaram a ser comuns. Mesmo que não
tenham sido totalmente assimilados.
Estes conceitos se tornaram políticas culturais – do governo ou da
sociedade – em seus municípios?
Como exercício: vamos refl etir sobre as experiências de cidadania cultural,
economia criativa e diversidade cultural nas suas realidades, se foram
realmente pensadas e executadas, e se não foram, quais os motivos, quais as
limitações ou difi culdades que aconteceram?
O desenvolvimento em redes culturais
Como pontuamos, os conceitos precisam descer à rua, à praça, ao parque, ao território,
ao local onde moram e atuam as pessoas no geral – e em nosso caso, os agentes e gestores
culturais – resultando em redes.
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Como vimos na disciplina Coletivos, Cidades e Redes, o conceito de cidadania cultural
se espalhou pela ação real dos grupos culturais e por meio de programas como o Cultura
Viva e seu principal derivado, os Pontos de Cultura. Mesmo que nem todos os municípios
fl uminenses tenham sido contemplados em editais – para a sociedade civil – de seleção de
Pontinhos, Pontos e Pontões de Cultura, este é um projeto com boa difusão e conhecimento
no estado do Rio de Janeiro.
As ações ligadas à diversidade cultural, por exemplo, têm mais inserção nos territórios,
uma vez que dizem respeito às várias realidades, muitas das quais, pelas expressões
artísticas, manifestações culturais ou reconhecidas como patrimônios materiais ou imateriais
e que são parte constitutiva dos municípios e regiões.
Mas, outras ideias e conceitos também precisam estar próximos e palpáveis às realidades
locais. É o caso da economia criativa ou da cultura que devem ser adaptadas às condições
objetivas e simbólicas de cada região/território.
O pensador George Yúdice (2004, p. 25-64), tratando os aspectos do desenvolvimento
econômico da área cultural, nos lembra que a “noção de cultura sofreu mutações” uma vez
que o “multiculturalismo e os usos sociopolíticos e econômicos fundiram-se com a economia
cultural ou a economia criativa”.
O multiculturalismo desloca-se de sua condição de (defesa de e promoção da) justiça social
para transformar as cidades em eixos criativos para as tendências da música, da moda, da arte
e do design, criando uma “nova economia” voltada para o “fornecimento de conteúdo”.
Neste novo contexto, as cidades também têm que ser apresentadas como produtos
culturais, revitalizando parte de suas áreas, como as zonas pós-industriais ou até as suas
totalidades.
Yúdice cita, entre outros casos, o do Pelourinho em Salvador, mostrando como o modelo de
desenvolvimento cultural escolhido (e que, infelizmente, vem ocorrendo em outras realidades,
estados e países) abriu janelas de exclusão socioculturais. Ali ocorreu o deslocamento
forçado da população mais pobre (de sua área natural simbólica e histórica) para que a área
seja “revitalizada”, com o argumento de que é um “símbolo cultural”. Mas é necessário lembrar
que estes e outros locais têm este peso simbólico justamente baseado na história daqueles
que são expulsos, não é mesmo?, gerando uma situação singular de modo que determinados
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grupos, na contramão dos seus direitos culturais, podem até fi car nestas áreas “revitalizadas”,
mas como prestadores de serviços subordinados aos novos gerentes e administradores,
inclusive dos “empreendedores criativos”.
Não seria exagero afi rmarmos que este é um caso que guarda semelhanças aos da Lapa e
do Porto Maravilha, no município do Rio de Janeiro, e de outros sítios históricos “revitalizados”
no contexto de cidades culturais a partir dos anos 1990 no Brasil.
Então esta cidade produto cultural é também baseada na mobilização e no gerenciamento
de populações – originais ou já estabelecidas nos locais culturalmente – para um determinado
meio como fonte da “inovação”, mas para isso é preciso que sejam também de alguma forma
domesticadas. Yúdice4 nos alerta que
O maior efeito da cultura é a conscientização das pessoas. O
resto é gato por lebre. A economia criativa funciona em certos
contextos, em geral de elite. No Rio, estão desenvolvendo a
Região Portuária. Isso não vai benefi ciar as classes C e D. Tem
que ter projetos abertos às comunidades, como bibliotecas-
parques em bairros pobres. E é preciso atrair os moradores
dessas áreas a bibliotecas ou museus. Se um local de cultura
só tem coisas feitas por brancos, os negros não vão, se só tem
coisas que os pobres identifi cam como de elite, eles não entram.
Mas este alerta que fazemos, a partir de Yúdice, não quer dizer que estas ideias
não sejam utilizadas e utilizáveis no âmbito dos territórios e municípios fl uminenses.
São, na verdade, precauções, inclusive para estimular que os novos projetos culturais – de
ativação de áreas urbanas, de sítios históricos etc. – que surjam não considerem apenas o que
é “consagrado” pelo “mercado”.
Podemos pensar o quanto estes conceitos parecem ainda mais distantes da realidade da
maioria dos municípios brasileiros e fl uminenses que podem ser classifi cados pelas “regras do
mercado” como sem “atrativos turísticos e culturais”.
4 Disponível em http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/george-yudice-professor-linguista-efeito-da-cultura-a-conscientizacao-18036904#ixzz3rO7Jtfuy . Acesso em 14 nov. 2015.
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É preciso um trabalho desdobrado e mostrar que todas as regiões, estados, municípios,
distritos, bairros etc. têm símbolos, produção e patrimônio cultural. E o desenvolvimento
socioeconômico pode se dar, seja em uma “simples” festa de rua – da paróquia, do padroeiro,
do pagode ou da roda de samba na praça, no sarau realizado em uma padaria e até mesmo no
evento com ingressos caros nas casas de espetáculos, nos grandes festivais etc. É novamente
Yúdice (2004) quem nos salva:
Uma política tem que ser pensada transversalmente. Se
você pensa cultura, tem que pensar moradia, emprego, várias
coisas. A cultura não resolve nada se não for parte de uma
política integral.
Mas também podemos refl etir sobre quais ações podem trazer mais “resultados”,
aqueles que são permanentes e que aglutinam cotidianamente os produtores/realizadores/
prestadores de serviços/comerciantes locais ou os que – mesmo grandiosos – acontecem
esporadicamente?
Como exercício: vamos pensar sobre isso? É possível no âmbito das
regiões, municípios e bairros conciliarmos os grandes eventos – como as feiras
agropecuárias com convidados “nacionais” – e as ações periódicas ou mesmo
eventuais que acontecem nestes locais? Os “grandes eventos” podem contribuir
com o desenvolvimento das culturas e economia locais?
Mas além de discutirmos os “eventos” ou projetos culturais para o desenvolvimento dos
municípios fl uminenses, precisamos pensar também nas novas e colaborativas formas de
produção cultural.
Estamos vivenciando o fl orescimento e a afi rmação dos saraus e mostras culturais,
sendo muito além de encontros literários (o que já seria um feito), mas como movimentos
aglutinadores de diversas expressões artísticas. Música, artes visuais, cultura urbana, teatro,
literatura propriamente dita, artesanato, gastronomia popular, prestação de serviços, entre
outras atividades são possíveis de serem assistidas e produzidas nestes “novos saraus”.
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A zona oeste do município do Rio de Janeiro e a baixada fl uminense, por exemplo, têm sido
polos de surgimento ou ressurgimento destes eventos múltiplos e podemos pensá-los como
uma expressão atual da produção local, de diálogo com outros locais (é comum a colaboração
e a participação de um sarau ou coletivo em outras regiões, como conhecemos, por exemplo,
nas escolas de samba que visitam as chamadas agremiações coirmãs).
Por outro lado, podemos observá-los também como uma forma alternativa de produção
– as regras do “mercado” – e mesmo – indo ao encontro – a ideia de cadeias produtivas das
áreas artísticas, uma vez que reúnem múltiplas expressões e costumam ter um viés de crítica
(se não elaborada, mas prática) aos modos tradicionais, apelando inclusive para colagens,
gambiarras, “piratarias”, entre outros meios de realização.
Um seminário5 acontecido recentemente em Duque de Caxias discutiu como as chamadas
parcerias criativas são a chave para uma nova imagem da baixada fl uminense. Geralmente
vista como “público-alvo” ou “plateia a ser formada” por produções da indústria cultural ou da
“alta cultura” produzida no município do Rio de Janeiro, a região vem mostrando, longe disso,
ser um polo com produção própria e de criação e experimentação de linguagens.
Com o título “Parcerias Criativas: Produção, Consumo e Economia da Cultura na Baixada
Fluminense”, o seminário, realizado em 21 de outubro de 2015, contou com a presença de
autoridades da área cultural nos três níveis de governo e principalmente com agentes culturais
do município sede, da região e da capital, interessados em discutir modelos reais de fomento
e colaboração cultural.
O seminário apresentou quatro experiências concretas que vão nesta perspectiva: o
oCinema de Guerrilha da Baixada – coletivo audiovisual de São João de Meriti; EncontrArte –
baseado em Nova Iguaçu e hoje considerado como um dos maiores festivais de teatro do Rio
de Janeiro, recebendo produções regionais, estaduais e nacionais em Nova Iguaçu; o Site da
Baixada – que é um portal de informações sobre região, também baseado em Nova Iguaçu e
o Terreiro de Ideias – produtora sediada em Duque de Caxias.
5 No período em que escrevíamos esta disciplina, outros seminários estavam acontecendo ou sendo organizados na região, como “Quem é na cultura da Baixada”, organizado pelo Fórum Cultural da Baixada Fluminense, nos dias 13 e 14 de novembro, no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do RJ – IFRJ, em Nilópolis. Vale lembrar que nesta instituição existe um pioneiro curso superior de produção cultural, o que signifi ca bastante para uma região outrora pensada apenas como “consumidora”.
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Conforme avaliou o site Voz das Comunidades6:
Sabe o que é mais legal nisso tudo? Todos estes coletivos
estão interligados de alguma maneira. Todos se conhecem,
se tocam, trocam entre si e compõem uma rede de cultura
que não necessita de uma organização formal. Pra “piorar”, a
turma não espera pelo poder público e realiza suas atividades
na base da resistência – um bom exemplo disso é o Meeting
Of Favela, que realizará uma instalação artística na entrada do
evento. O MOF acontece há 9 anos sem apoio governamental,
realizando anualmente uma grande intervenção artística na
Vila Operária (Duque de Caxias).
Um dos grupos participantes do seminário, o Gomeia Galpão Criativo, é um bom exemplo
desta dinâmica colaborativa e solidária da e na produção cultural da região, agregando coletivos
de cultura digital, audiovisual, arquitetura e produção cultural, como o já citado Terreiro de
Ideias, o Mate com Angu Cineclube e o Observatório Social, entre outros. Ele objetiva criar
um galpão para abrigar todos estes projetos num formato de coworking. O espaço já existe
e está sendo usado para ofi cinas e reuniões, mas tem a necessidade de uma pequena obra
para a melhor estruturação e para viabilizar isto lançaram uma campanha em um site de
fi nanciamento colaborativo de projetos e arrecadaram R$ 30.528,00 (trinta mil, quinhentos
e vinte e oito reais) atingindo 105% (cento e cinco por cento) da meta estipulada com a
contribuição de 225 (duzentos e vinte e cinco) benfeitores.
Ainda na baixada fl uminense, temos o Fórum de Gestores que atualmente discute como
poderá se institucionalizar ou não, fi cando com o modelo atual de organização ou passando a
ser um consórcio regional. Está se articulando também outro grupo, a Rede Baixada Encena,
formada por companhias e grupos da região que vem atuando em diversas frentes, seja de
produção, assim como de articulação institucional.
6 Disponível em http://www.vozdascomunidades.com.br/colunas/diversao-arte/as-parcerias-criativas-sao-a-chave-para-uma-nova-imagem-da-baixada-fl uminense/. Acesso em 17 out. 2015.
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Já no município do Rio de Janeiro, destacamos o Polo de Economia Criativa da Zona
Oeste, que segundo Vinícius Longo, palhaço e produtor cultural, em entrevista por e-mail ao
autor deste texto, tem como missão: “Impulsionar a organização e capacitação da Economia
Criativa da região, oferecer visibilidade e gerar oportunidades de sustentabilidade de uma
nova cadeia de produção...”
O Polo surgiu da união entre grupos locais e foi desenvolvido e pensado em 2014, a partir da
união da experiência profi ssional destes, do conhecimento do espaço territorial (Jacarepaguá
a Santa Cruz) e das relações interpessoais de networking que se desenvolvem na região. Eles
realizam encontros mensais, no Teatro SESI, abertos ao público, e reuniões quinzenais do
grupo de produção e articulação. Fora isso, são cadastrados no polo mais de 100 grupos e
instituições.
Estas e outras experiências abrem caminho para debatermos a territorialização dos
orçamentos culturais, fazendo com que estes alcancem de fato a ponta da produção.
Financiamento cultural territorial – pela sociedade e governamental: fóruns e consórcios
Para pensarmos em orçamentos culturais a partir dos territórios, ou melhor, voltados para
o desenvolvimento e ação concreta nestes, precisamos lembrar que:
Um dos determinantes essenciais da identidade cultural,
ao lado da constituição e preservação de coleções. É no país,
no estado, na cidade, no bairro, numa área no interior do
bairro (como o quartier francês) que se põem em cena e se
teatralizam as linhas básicas do roteiro da identidade. Aquilo
que, sob o ângulo da política cultural, defi ne o território como
tal, e o distingue por exemplo do espaço cultural, é um efeito
de mundo gerado pela inserção física direta, não mediada por
uma representação elaborada, do indivíduo ou grupo nessa
área física específi ca; em outras palavras, é o fato de ter o
indivíduo nascido nessa área ou nela estar morando há algum
tempo de modo a ter já estabelecido alguma convivência
com a área e seus ocupantes. Esse efeito de mundo produz
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a sensação de uma relação natural com o território da qual
decorre a identidade, mediante a elaboração lingüística, o
comportamento cotidiano e as obras de cultura propriamente
dita (COELHO, 2004).
Em acordo com as ideias de Teixeira Coelho, podemos pensar que a ação cultural é
sobretudo local, pois ela parte de representações, de símbolos que nós, os seres humanos,
criamos para viver, para estar.
Também convém registrar que as várias formas de ações e manifestações culturais, em
nosso entendimento, não são opostas. Para Marcus Faustini7, com o qual concordarmos e a
seguir grifamos:
[...] De um lado, os coletivos que expressam em grande maioria
a forma de fazer dos jovens de classe média urbana. Em paralelo,
os bondes, saraus, rodas, cineclubes, clubes de leitura, grupos,
ocupações, batalhas são algumas das realizações dos fazedores
de origem popular. [...] Esse caldeirão fervilha hoje na cidade.
Não é um campo coeso no ideário, mas se encontra numa
cena de fazimentos. Ele não é um estágio anterior, amador,
semiprofi ssional da produção cultural “profi ssional”. Está
se renovando e pode contribuir para o desenvolvimento da
cidade. Um novo desafi o é o apoio ao desenvolvimento da
economia dessa cena e a experimentação estética para que
mais imaginários transbordem. Tanto a economia da cultura
como o desenvolvimento das expressões estéticas urbanas,
o direito à cultura e à cidade passam por esta cena que hoje
extrapola a marca de ação social pela qual fi cou conhecida.
Debates e programas que ignoram estes aspectos e legados têm
parentesco com a elitização da produção cultural do fi nal dos
anos 80, seja de mercado ou de pensadores iluminados.
7 Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/panorama-visto-da-ponte-16859484. Acesso em 23 out. 2015.
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Mas se a cultura é baseada na territorialidade, podemos pensar que é um contrassenso
que as estruturas de fi nanciamento e fomento – salvo raras exceções – ainda são tão distantes
destas bases locais?
Mauro Lima, do já citado Polo de Economia Criativa da Zona Oeste, declarou em uma rede
social:
Cada vez que a gestão pública lança um edital sem tomar
como referência as especifi cidades de cada região a ser
contemplada, é como se ela erguesse um enorme muro e
dissesse aos coletivos, artistas e produtores: “pulem aí!”
No município do Rio de Janeiro, um dos primeiros grupos a levantar a discussão da
territorialização foi o Visão Suburbana8 – que chegou a ter uma boa representatividade no
ano de 2013, inclusive levando autoridades como o prefeito Eduardo Paes e a então secretária
de Estado da Cultura, Adriana Rattes, para inéditos encontros com agentes culturais da região,
outrora vistas apenas como áreas de “amadores”.
Das demandas levantadas nesses e outros encontros surgiram (também) programas que
resultaram nos editais de Ações Locais e de territórios culturais9, lançados pela Secretaria
Municipal de Cultura em 2014 e 2015 e voltados para a produção cultural territorial e realizados
por pessoas físicas e coletivos como os que vimos abordando.
Abaixo elencaremos um conjunto de proposições – que talvez nem sejam de todo viáveis,
mas trazem o debate, e debater é sempre viável e oportuno – sobre o tema que podem
resultar em novas proposições no âmbito dos municípios fl uminenses.
Segundo os debates ocorridos nos anos de 2012–2014, e dos quais tivemos a oportunidade
de participar, e os manifestos e documentos então lançados ou comunicados em redes sociais,
algumas das proposições-refl exões eram (editamos as mesmas, mas no geral, preservamos
os sentidos):
8 Ver algumas ações desse grupo em http://movimentovisaosuburbana.blogspot.com.br/. Acesso em 22 out. 2015.9 Disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/smc/cultura-e-cidadania. Acesso em 23 out. 2015.
14disciplina 19
• Distribuir o orçamento da cultura pelos territórios, de acordo com
a densidade demográfi ca de cada um destes. Esse orçamento não
poderá ser repassado para outros territórios sob o pretexto de falta de
demanda, uma vez que existem ações culturais – e consequentemente
demanda cultural – onde existe ser humano.
• Construir programas de acordo com a demanda de cada território,
a partir do diálogo com os fóruns e/ou conselhos locais de cultura – o
que inverteria a lógica de que os agentes culturais devem se adequar
aos perfi s e metodologias dos editais. Ao contrário, é o poder público
que precisa, pelo reconhecimento das diferentes formas e lógicas de
produção, encontrar meios legítimos para fazer os recursos chegarem
aos artistas, aos produtores e agentes culturais de cada território.
• Longe de criar “guetos” ou “nichos”, a territorialização do orçamento
da cultura pode, fi nalmente, promover a maior circulação pela cidade,
na medida em que potencializa as realizações locais e, por outro lado,
produtores de bairros distintos e até distantes podem criar juntos
projetos que utilizem os orçamentos de ambos os territórios, contanto
que esse projeto seja de interesse comum aos dois lugares.
• Os grandes eventos como Réveillon e Carnaval também devem ser
territorializados, produzindo dessa forma projetos simbolicamente
signifi cativos para todos e evitando gastos que atendam somente aos
“grandes nomes” do mercado. Vale ressaltar que esses grandes nomes
não estão excluídos dessa política de territorialização, mas deverão
ser legitimados pelo desejo popular e não pela lógica de mercado ou
política de balcão.
Se os orçamentos serão territorializados ou não é um caso a se propor e pensar, mas de
todo modo o reconhecimento e a informação do que acontece nos diversos territórios são
os primeiros passos para se pensar em políticas de fomento e apoio a eles. Para isso são
necessários – além da criação de redes – que sejam realizados mapeamentos dos agentes e
manifestações culturais das diversas regiões.
15disciplina 19
Um consórcio de municípios para a ação e a gestão cultural
Vem de São Paulo uma experiência pioneira de associação formal de municípios para a gestão
cultural. É o Consórcio Intermunicipal Culturando, sendo o primeiro específi co para a cultura
no país. É um caso que merece ser estudado pelos municípios do estado do Rio de Janeiro.
As informações que trazemos foram obtidas no site da entidade10 e foram condensadas
em tópicos para dar uma ideia inicial de como o consórcio se estrutura:
• É uma entidade pública que une prefeituras paulistas para
pleitear recursos por meio de projetos e acordos diretos com
esferas governamentais e instituições culturais, de forma a suplantar
questões burocráticas que atravancam o desenvolvimento cultural dos
municípios.
• O consórcio começou reunindo 16 (dezesseis) municípios e hoje
reúne 25 (vinte e cinco). Há outros “na fi la” interessados em aderir a ele.
• Por meio de acordos diretos com o Ministério da Cultura, o repasse
de recursos atingirá R$ 9,17 milhões em ações dos programas Mais
Cultura e Cultura Viva, de forma indireta. Além disso, o apoio a ações
como projetos dos CEUs das Artes, o Curso de Extensão Universitária
de Gestão Cultural e as feiras do livro do Circuito Caminhos da Leitura,
promovidos pelo CIC, alcança valores de R$ 20 milhões.
• O consórcio tem sede no município de Monte Alto e conta com uma
Secretaria Executiva que além de idealizar a formação do ente público,
toca os convênios em andamento: Agentes de Leitura, Modernização de
Bibliotecas, Pontos de Leitura e a Rede de Pontos de Cultura.
• A adesão é feita pelo município de forma ofi cial. O/a prefeito/a faz
a solicitação para aderir, concordando com o Protocolo de Intenções
do Consórcio que precisa ser aprovado pela Câmara Municipal, que
referenda o consorciamento.
10 Disponível em http://www.consorcioculturando.com.br/index.php/sobre-o-consorcio. Acesso em 28 set. 2015.
16disciplina 19
• O consórcio não é uma terceirização da cultura, além de ser um ente
público, é uma força conjunta de municípios que se soma às gestões
locais, que mantêm seus projetos e ações normalmente. As conquistas
do Consórcio são geridas, no âmbito local, pela Prefeitura que, em
diálogo com os consorciados, vai prestar contas das ações aos entes
convenentes (MinC, SEC etc.).
• O órgão municipal de cultura (secretaria, fundação, departamento,
subsecretaria, coordenação etc.) não perde a sua função. Ao contrário,
ganha mais projetos para a sua pasta e tem papel fundamental no
processo, pois intermedeia e gerencia a execução (quando não é a própria
Prefeitura que os executa) e, junto ao Consórcio, forma a prestação de
contas para os entes convenentes.
• Assim como os órgãos do Sistema Municipal de Cultura – conselho,
plano e fundo –, devem ser mantidos e ampliados quando possível,
continuando a cumprir as suas funções legais.
• Pela estrutura do Consórcio, a ideia é dinamizar a conquista de
recursos, bem como ações dos municípios consorciados. Da mesma
forma, quando o Consórcio contrata algum serviço para atuar nos
municípios, segue as leis do Direito Público, como qualquer Prefeitura.
O Consórcio Intermunicipal Culturando atualmente abrange uma população de cerca de
1 milhão de habitantes. Aqui citaremos, para efeito de comparação, alguns dados do IBGE11
sobre municípios do estado do Rio de Janeiro. No ranking, por população, a ordem é:
• 1º Rio de Janeiro 6.320.446 habitantes;
• 2º São Gonçalo 999.728 habitantes;
• 3º Duque de Caxias 855.048 habitantes;
• 4º Nova Iguaçu 796.257 habitantes.
11 Disponível em http://www.cidades.ibge.gov.br/painel. Acesso em 23 out. 2015.
17disciplina 19
Ou seja, descontando a capital, alguns dos maiores municípios do estado do Rio de Janeiro
correspondem em população à soma de todos aqueles abrangidos pelo consórcio. Mas
sabemos que estes não têm uma estrutura de gestão cultural e orçamentos para o setor
compatíveis com as suas necessidades culturais. Os gestores e agentes podem comprovar.
É preciso pensar em alternativas que formalmente contribuam para o desenvolvimento
cultural deles. É verdade que já existem fóruns de gestores, na baixada fl uminense, na
região serrana e eventualmente – seja pela convocação do poder público ou por iniciativa da
sociedade civil – articulações intermunicipais acontecem12.
A propósito, no momento em que escrevemos o texto para esta disciplina, estão se
iniciando as conferências regionais de cultura destinadas à eleição dos representantes da
sociedade civil no Conselho Estadual de Política Cultural conforme a recentemente publicada
Lei 7035/2015 – que cria o Sistema Estadual de Cultura.
A estruturação do Sistema se dará por meio da regionalização, atingindo todas as 10 regiões
do estado: Metropolitana I-Capital; Metropolitana II-Baixada Fluminense; Metropolitana III-
Leste Fluminense; Noroeste Fluminense; Norte Fluminense; Serrana; Baixadas Litorâneas;
Médio Paraíba; Centro Sul-Fluminense; e Costa Verde.
O processo de efetivação do Sistema Estadual de Cultura pode ser um bom momento
para que essas regiões e municípios discutam orçamentos territoriais, economia solidária da
cultura, redes de direitos culturais, consórcios e/ou outros meios orgânicos de articulação
intermunicipal que contribuam para o desenvolvimento local.
Como exercício: vamos desenhar modelos de relação intermunicipal nas suas
regiões e municípios? O que vocês acham mais adequados dentro da realidade
de vocês? Já participaram de algum processo nesse sentido?
12 Uma experiência de consorciamento – não exclusivamente cultural – em nosso estado foi o Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento do Leste Fluminense (Conleste) formado por municípios da região do leste fl uminense (Niterói, São Gonçalo, Itaboraí, Rio Bonito, Maricá e Tanguá), mais alguns da região das baixadas litorâneas, que, por sua vez, agrupa a microrregião da Bacia de São João e a região dos Lagos (Cachoeiras de Macacu, Casimiro de Abreu, Silva Jardim), Araruama, Saquarema, dois da baixada fl uminense (Guapimirim e Magé) e dois da região serrana fl uminense (Nova Friburgo e Teresópolis). E foi criado para discutir políticas públicas para os municípios impactados pelo projeto do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), megaempreendimento da Petrobras instalado em Itaboraí e São Gonçalo. Atualmente, por motivos diversos o Conleste não está mais articulado.
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Bibliografi a
COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras / Fapesp, 2004.
YÚDICE, George. A conveniência da Cultura. In A conveniência da cultura: usos da cultura na
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