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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 28 de abril a 4 de maio de 2011 Ano 9 • Número 426 Vito Giannotti Trabalho decente? Não há trabalho decente no sistema capitalista. Trabalho decente só haverá num outro sistema baseado não no lucro mas na solidariedade e justiça. Este é o sistema socialista. Qual modelo? O desafio é ousar construí-lo. Pág. 3 Frei Betto Espiritualidade O que caracteriza os tempos pós-modernos em que vivemos é a falta de resposta para a questão do sentido da existência. Por enquanto, estamos na zona nebulosa da terceira margem do rio. Pág. 3 Roberto Malvezzi (Gogó) Direitos coletivos Quando a violação dos direitos me atinge, então eu sou pela defesa dos direitos humanos. Quando atinge comunidade inteiras, então justificamos a violação em nome do desenvolvimento. Pág. 3 A direção do socialismo cubano ISSN 1978-5134 Mar Kiddo/CC Desarmamento Após Realengo, sociedade retoma debate Reprodução Após meses de debate e participação popular sobre as diretrizes para as reformas econômicas, ocorreu, entre os dias 16 e 19 abril, o 6º Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC). O evento formalizou a chamada “atualização” do socialismo no país e substituiu parte de seus dirigentes. Há quem diga, entretanto, que essas transformações denotam abertura ao capitalismo. Afinal, qual o futuro de Cuba? Pág. 9 Emancipação feminina no Saara Pág. 10 Vale e os acionistas “inconvenientes” Pág. 4 Moradia e o abuso do poder público Pág. 6 Desarmamento Após Realengo, sociedade retoma debate Pág. 7

Edição 426 - de 28 de abril a 4 de maio de 2011

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Uma visão popular do Brasil e do mundo Trabalho decente? Espiritualidade Uma visão popular do Brasil e do mundo Após meses de debate e participação popular sobre as diretrizes para as reformas econômicas, ocorreu, entre os dias 16 e 19 abril, o 6º Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC). O evento formalizou a chamada “atualização” do socialismo no país e substituiu parte de seus dirigentes. Há quem diga, entretanto, que essas transformações denotam abertura ao capitalismo. Afinal, qual o futuro de Cuba? Pág. 9

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www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 28 de abril a 4 de maio de 2011Ano 9 • Número 426

Vito Giannotti

Trabalho decente?Não há trabalho decente no sistema capitalista. Trabalho decente só haverá num outro sistema baseado não no lucro mas na solidariedade e justiça. Este é o sistema socialista. Qual modelo? O desafi o é ousar construí-lo. Pág. 3

Frei Betto

EspiritualidadeO que caracteriza os tempos pós-modernos em que vivemos é a falta de resposta para a questão do sentido da existência. Por enquanto, estamos na zona nebulosa da terceira margem do rio. Pág. 3

Roberto Malvezzi (Gogó)

Direitos coletivosQuando a violação dos direitos me atinge, então eu sou pela defesa dos direitos humanos. Quando atinge comunidade inteiras, então justifi camos a violação em nome do desenvolvimento. Pág. 3

A direção do socialismo cubano

ISSN 1978-5134

Mar Kiddo/CC

Desarmamento

Após Realengo, sociedade retoma debate

Reprodução

Após meses de debate e participação popular sobre as diretrizes para as reformas econômicas, ocorreu, entre os dias 16 e 19 abril, o 6º Congresso

do Partido Comunista Cubano (PCC). O evento formalizou a chamada “atualização” do socialismo no país e substituiu parte de seus dirigentes.

Há quem diga, entretanto, que essas transformações denotam abertura ao capitalismo. Afinal, qual o futuro de Cuba? Pág. 9

Emancipaçãofeminina no Saara Pág. 10

Vale e os acionistas“inconvenientes” Pág. 4

Moradia e o abusodo poder público Pág. 6

Desarmamento

Após Realengo, sociedade retoma debate Pág. 7

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A resistência em Honduras enfrenta seu grande desafi o

EM 2007, UMARU Yar’Adua era elei-to presidente da Nigéria, tendo co-mo vice Goodluck Jonathan. Esta vi-tória - em 20 dos 36 estados da fede-ração nigeriana – contribuiu para re-afi rmar a supremacia eleitoral do Par-tido Democrata do Povo (PDP), ape-sar de não ter conseguido modifi car o cenário político herdado pelos milita-res. De fato, quando em 1999 os mili-tares devolveram o poder aos civis, os estados do Norte e do Nordeste con-tinuavam empobrecidos e limitados à agricultura de subsistência. No Sul, a situação era totalmente o oposto, vis-to que a extração do petróleo promo-via um acelerado bem-estar econô-mico, associado ao crescimento fl utu-ante da corrupção e a degradação da classe política.

Nesse cenário – tipicamente afri-cano – além do complicador étnico, causa das históricas divisões entre as 250 tribos, há também um problema sócioeconômico herdado dos gover-nos militares que deixaram os esta-dos do Norte em uma situação de po-breza e de subdesenvolvimento crôni-co. A riqueza fi cou concentrada ape-nas nos estados do Sul, em função da prospecção petrolífera realizada mas-sivamente pelas transnacionais euro-peias e dos EUA. Porém, o problema político mais sinuoso sempre foi re-presentado pela divisão religiosa en-tre os islâmicos do Norte e os católi-cos do Sul, que correspondia perfeita-mente à desigual estrutura econômica do PNB, visto que o petróleo, localiza-do no Sul, representava 85% das ex-portações, garantindo ao governo fe-deral 65% de seu orçamento.

A estrela de Goodluck JonathanO presidente Umaru Yar’Adua ca-

racterizou sua gestão com um gover-no voltado às reformas e ao comba-te à corrupção. Porém, em maio de 2010, Umaru faleceu e seu vice, Goo-dluck Jonathan, assumiu a presidên-cia, confi rmando o programa refor-mista do antecessor. Tudo isto provo-cou a reação da oposição encabeçada pelo ex-general Muhammadu Buha-ri, islâmico e ligado às tribos dos esta-dos do Norte.

Com a eleição de Goodluk Jona-than, em 20 dos 36 estados, a máqui-na eleitoral do PDP esmagou a opo-sição no Parlamento Federal, o que não agradou o ex-general Muham-madu Buhari e, sobretudo os setores mais fundamentalistas do movimen-to islâmico nigeriano. Foi neste con-texto que no dia 20 de abril, quando

a INEC começava a veicular os resul-tados eleitorais favoráveis a Goodluk Jonathan, a organização extremista islâmica Boko Haram realizava dois atentados a bomba em um hotel e em uma estação de ônibus de Maidugu-ri – capital do estado nordestino de Borno – provocando, entre os católi-cos, as primeiras vítimas.

Logo, em Zonkwa, no estado do Centro-Leste de Kiduna, houve a ré-plica sob forma de vingança dos cató-licos que, no dia 22 de abril, tomaram de assalto mesquitas, lojas e casas de islâmicos partidários de Muhamma-du Buhari, que não perderam tempo e logo atacaram igrejas católicas, pa-lácios do governo e estabelecimentos do PDP.

Segundo a ONG Civil Right Con-gress, nos primeiros três dias de con-frontos armados entre as duas comu-nidades houve 250 mortos e milhares de feridos.

Diante disso, o novo presidente, Goodluk Jonathan, impôs o recolher obrigatório em todo o país para 17 ho-

ras, dando ao Exército todos os pode-res para prevenir e reprimir os confl i-tos armados. Mesmo assim, nos dias 24 e 25 de abril, o confl ito explodia novamente na cidade de Zonkwa, pa-ra depois alastrar-se até Kafanchan e Zangon Kataf (estado de Kaduna) e no interior do estado de Kano.

No dia 26 de abril, a ONG Civil Ri-ght Congress anunciava que desde o início do confl ito houve 516 assassi-natos, cerca de 2,5 mil feridos e mais de 40 mil refugiados, em sua maio-ria católicos que fogem dos estados do Norte. Na noite do dia 25, o Exér-cito prendeu cerca de 3 mil pessoas, conseguindo assim uma paz momen-tânea. Segundo o analista Clement Nwankwo, “os primeiros ataques ar-mados contra as igrejas e os prédios do PDP foram realizados pelos de-sempregados que os comitês de can-didatos da oposição haviam contata-do para vender seus votos. A violen-ta represália dos católicos ligados ao PDP chamou os pobres para o confl i-to. Eles se aproveitaram da situação caótica para saquear lojas, supermer-cados e casas, sejam elas de cristãos ou de islâmicos”.

Por isso a ONG Civil Right Congress admite que o número de mortos e, so-bretudo, de feridos pode ser maior, pois nas favelas nigerianas o Estado é completamente ausente.

Os observadores da União Africana reconheceram a validade dos resulta-dos eleitoral, que coletou o voto de 76 milhões de eleitores. Porém, para sair da crise, o presidente Goodluck Jo-nathan será obrigado a nomear como seu vice um político do Norte, possi-velmente islâmico, e esperar que após a enésima promessa de reformas eco-nômica os ânimos se acalmem para tudo voltar no tradicional “status quo do Nigerian life”.

Achille Lollo é jornalista italiano, editor do programa TV Quadrante Informativo.

Achille Lollo

Nigéria, 516 mortos em quatro dias

artigo Altamiro Borges

AS GRANDES paralisações convo-cadas pela Frente Nacional de Re-sistência Popular (FNRP) mobiliza-ram toda a nação hondurenha en-tre 30 de março e 12 de abril. Estra-das e portos bloqueados, ocupações de fábricas e escolas, concentrações populares nas principais cidades de-monstraram a força da resistência ao golpe civil-militar.

Honduras segue atravessan-do uma intensa crise econômi-ca, agravada pelo isolamento po-lítico em razão do golpe civil-mili-tar de 2009. A disparada dos índi-ces de desemprego, dos preços dos alimentos e combustíveis afeta in-tensamente a população. O Esta-do hondurenho endividado não en-contra fontes para garantir o paga-mento de dívidas como a que tem com os professores e já sinaliza que não terá como garantir a folha de pagamento se a ação prosseguir.

O imperialismo estadunidense patrocinou o golpe, mas sequer cumpriu suas promessas de apoio fi nanceiro, deixando a direita hon-durenha diante de uma profunda crise. O regime de Pepe Lobo so-brevive às custas da repressão e já assassinou mais de 200 lutadores populares. Desmoralizado interna-cionalmente, sem o apoio econômi-co dos EUA que não quer enfren-tar a pressão internacional e pres-

sionado por mobilizações crescen-tes, os golpistas encaram seu maior impasse.

Com esse cenário de isolamento internacional, o presidente golpis-ta Pepe Lobo articula-se com o pre-sidente colombiano Juan Manuel Santos, propondo uma negociação internacional que envolva o presi-dente legítimo – deposto pelo golpe - Manuel Zelaya.

Os setores golpistas hondurenhos sempre elegeram o presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frias, co-mo seu principal inimigo. Sataniza-ram o governo de Zelaya por sua en-trada na Aliança Bolivariana para as Américas (Alba) e construíram uma intensa propaganda ideológica con-tra a revolução bolivariana.

Agora, isolados internacional-mente e pressionados pela mobili-zação popular, buscam a interme-diação de Hugo Chávez para uma solução negociada. Após o encontro dos presidentes, no começo de abril em Cartagena das Indias (Colôm-bia), realizou-se em 15 de abril, em Caracas, a primeira reunião entre Chávez, dirigentes da FNRP e o pre-sidente legítimo de Honduras, Ma-nuel Zelaya.

A FNRP deixou claro os seus pon-tos para qualquer negociação com os golpistas: retorno imediato do presidente eleito constitucional-

mente e os exilados, fi m da repres-são e garantia aos direitos huma-nos e sociais assegurados na Cons-tituição, realização de um plebisci-to sobre a convocação de uma As-sembleia Nacional Constituinte li-vre, soberana e democrática, e o re-conhecimento da própria FNRP co-mo força política.

Para os golpistas é fundamental assegurar o retorno à OEA (Organi-

zação dos Estados Americanos) e o acesso ao combustível da Petroca-ribe. Mas também romper o cerco internacional que inviabilizou re-cursos de organismos multilaterais, especialmente de países da União Europeia.

A situação é bem complexa. An-tes de tudo, revela o enfraqueci-mento das forças golpistas. Além disso, demonstra ainda a importân-cia da unidade das forças populares que soube fortalecer-se na cons-trução de uma ferramenta de lutas e organização como a FNRP. Co-mo disse Manuel Zelaya: “Em dois anos, esta é a primeira vez, ante as várias tentativas de acordo, que se manifesta a vontade para se ouvir nosso ponto de vista, difi culdades e privações, isso, por si só, constitui um importante avanço”.

Outro aspecto é ressaltar a im-portância de incluir o presidente venezuelano Hugo Chávez no pro-cesso negociador. Inquestioná-vel liderança anti-imperialista, in-tensamente atacado pelos golpis-tas, sua presença demonstra a for-ça da pressão popular que resiste ao golpe.

Ninguém alimenta ilusões nas forças golpistas e principalmente no imperialismo estadunidense re-presentado também pela presen-ça do governo colombiano. Recor-

demos que o principal pretexto pa-ra o golpe em 2009 foi a realização de uma consulta à população sobre a realização ou não de uma Assem-bleia Nacional Constituinte, tendo o golpe ocorrido na data em que es-sa consulta seria realizada (28 de junho de 2009).

Os setores golpistas que acabam de decapitar dois jovens campone-ses que integravam a resistência popular são capazes de trair qual-quer compromisso. A única garan-tia do povo é sua capacidade de mobilização.

Abre-se um intenso debate que se inicia na direção nacional da FNRP, que realizará um encontro no fi nal de abril e deverá envolver todos os organismos de base que a conformam. Trata-se de uma deci-são difícil. Com certeza, a volta de Zelaya, como a maior liderança po-pular, que unifi ca as forças, repre-sentará um novo impulso para a re-sistência e uma inquestionável vi-tória contra o imperialismo.

Um povo que se mobiliza, num exemplo para todo o nosso conti-nente, somente pode confi ar na sua capacidade organizativa e na soli-dariedade internacional. Avançan-do ou não o processo negociador, o elemento principal é que a FNRP não cogita, em nenhuma hipótese, reduzir sua disposição de luta.

de 28 de abril a 4 de maio de 20112editorial

Gama

Dilma e direitos humanos em GuantánamoO WIKILEAKS DIVULGOU, dia 24 de abril, uma sé-rie de documentos secretos do Pentágono que con-fi rmam que o governo dos EUA usou a prisão de Guantánamo ilegalmente para obter informações dos detidos. Diante a revelação bombástica, Barack Obama, o falsário que prometeu fechar Guantána-mo, saiu na defesa dos abusos cometidos e criticou o Wikileaks.

“Motoristas, agricultores e cozinheiros”“As milhares de páginas dos mais de 700 docu-

mentos do Pentágono divulgados revelam que ao menos 150 dos presos em Guantánamo eram afe-gãos e paquistaneses inocentes, incluindo motoris-tas, agricultores e cozinheiros, que foram detidos durante operações de inteligência em zonas de guer-ra. Muitos destes permaneceram presos durante anos devido a confusões de identidade ou simples-mente por terem estado no lugar errado na hora er-rada”, relata a Folha Online.

Segundo os documentos vazados, os EUA cria-ram na prisão de Guantánamo “um sistema policial e penal sem garantias, no qual só importavam duas questões: quanta informação se obteria dos presos, embora fossem inocentes, e eles se podiam ser pe-rigosos no futuro”. Um terço dos 600 detidos sob a presidência do terrorista George W. Bush, vários dos quais foram transferidos para países aliados, foram catálogados como “de alto risco”, antes de serem postos em liberdade ou entregues a outros governos.

Uso político dos direitos humanosA nova revelação do Wikileaks deveria servir de

alerta ao Itamaraty, agora sob a direção do embai-xador Antonio Patriota. No mês passado, o governo Dilma Rousseff condenou a violação dos direitos hu-manos no Irã – o que foi saudado pelo governo dos EUA e pela mídia colonizada. Os editoriais dos jor-nalões elogiaram a “mudança na política externa brasileira, distante do governo Lula”.

Na ocasião, o ex-ministro Celso Amorim, sataniza-do pela mídia, criticou a hipocrisia das potências ca-pitalistas no uso oportunista da questão dos direitos humanos. Disse que concordava com as críticas ao Irã, desde que o governo também condenasse a vio-lação dos direitos humanos dos presos em Guantá-namo e dos imigrantes na Europa.

Será que Antonio Patriota emitirá agora uma no-ta dura contra os abusos cometidos pelos EUA? Se-rá que a ONU condenará o império? Será que a mí-dia colonizada divulgará amplamente os documen-tos vazados pelo Wikileaks?

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB

Um povo que se mobiliza, num exemplo para todo o nosso continente, somente pode confi ar na sua capacidade organizativa e na solidariedade internacional

A nova revelação do Wikileaks deveria servir de alerta ao Itamaraty, agora sob a direção do embaixador Antonio Patriota

O número de mortos e, sobretudo, de feridos pode ser maior, pois nas favelas nigerianas o Estado é completamente ausente

opinião

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda • Subeditores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, DanielCassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi,

Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana• Revisão: Joana Tavares• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – CamposElíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, DelciMaria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

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de 28 de abril a 4 de maio de 2011

tam um debate na sociedade, no caso dos direito co-letivos prevalece a unanimidade da sordidez.

O próprio Lula, assim como Dilma, enquanto gover-nantes, foram e são promotores da violação dos direi-tos coletivos de índios, negros e comunidades tradi-cionais. Embora o Brasil seja signatário da conven-ção 169 da OIT, embora os direitos coletivos dessas populações estejam garantidos constitucionalmente, o fato é que eles são violados sistematicamente pelas grandes obras em andamento no país. Quando a OEA questionou o respeito pelos direitos indígenas em Belo Monte, a reação do governo foi de ira, mas não de exa-minar a fundo o que vem acontecendo com essas po-pulações.

Assim fi ca fácil. Quando a violação dos direitos me atinge, então eu sou pela defesa dos direitos humanos. Quando atinge comunidade inteiras, então justifi ca-mos a violação em nome da necessidade de energia e do desenvolvimento. O petismo enquanto poder, ain-da deve – e muito – satisfações aos direitos humanos coletivos, sob pena de se comportar como o dentista ou o falante da sala da polícia federal.

Direitos coletivosUMA DAS PAUTAS da era petista é os direitos hu-manos. Lula foi perseguido pelo regime militar e preso. Teve que aprender na pele a importância dos direitos humanos individuais, criados para defender o indivíduo perante as arbitrariedades do Estado.

Dilma fez experiência ainda mais trágica. Vincula-da a grupos de esquerda dos anos de 1970, além de presa sofreu torturas. Pessoas que passam por es-sa crueldade jamais poderão esquecer a importância dos direitos humanos.

Hoje há uma confusão generalizada – e intencio-nal – entre a defesa dos direitos humanos e de atos criminosos. É fácil ouvir, até em cadeira de dentis-ta, que o pessoal dos direitos humanos só aparece para defender bandidos. Esses dias ouvi numa sala de espera da polícia federal a defesa daqueles poli-ciais que mataram uma pessoa no cemitério em São Paulo e depois foram denunciados por uma mu-lher que visitava um túmulo. O argumento era esse: “dois policiais matam um cara que tinha passagem pela polícia e agora ainda vão ser condenados pelo que fi zeram”. Se os direitos individuais ainda susci-

Gama

instantâneo

Roberto Malvezzi (Gogó)

SC, hoje são exigidos 90 movimentos por minuto. Trabalho decentíssimo, não é?

E o trabalho nas grandes obras de construção de usinas ou refi narias? É só relembrar as recentes gre-ves que se transformaram em verdadeiras revoltas operárias. Lembram de Girau, Santo Antônio, Suape e o Porto de Pecém? O que a peãozada queria? Dobrar o vale alimentação de R$ 0,8 para R$ 1,60, melhorar as condições de alojamento, melhorar os salários mi-seráveis e diminuir os acidentes. Que peões exigentes! A resposta das grandes empreiteiras do PAC – fi nan-ciadíssimas pelo BNDES – foi um seco não. E aí aque-les endiabrados tacaram fogo em ônibus, caminhões e nos chiqueiros chamados alojamentos. Que horror! Estes peões queriam um “trabalho decente”.

Não há trabalho decente no sistema capitalista. Há trabalho mais ou menos indecente. Mais ou menos mortal. Trabalho decente só haverá num outro sis-tema político-econômico baseado não no lucro mas na solidariedade e justiça. Este é o sistema socialista. Qual modelo? O desafi o é pensá-lo e ousar construí-lo. Uma tarefa para décadas e gerações.

Trabalho decente?HOJE ESTÁ NA moda empresários e seus executivos organizarem seminários, palestras sobre o tal de “tra-balho decente”. De repente, até parece que donos e gerentes do capital estão preocupados com os “seus funcionários”. Fiesp, Firjan, Fiemg, Fiergs viraram to-das humanistas, uns anjinhos.

O que é trabalho decente? Até os postes sabem que o trabalhador só interessa para o patrão enquanto dá lucro. Esta é a lógica do capital, baseada no máximo da exploração da força de trabalho. A este só interes-sa a fl exibilização de todos os direitos, salários baixos e redução de todos os gastos, da alimentação à saúde, à segurança do trabalho.

Há um exemplo claro nos trabalhadores da alimen-tação. Estive um dia num abatedouro de frangos em Uberlândia, com centenas de trabalhadores na “linha de montagem”, ou melhor desmontagem dos frangos. Cada trabalhador tinha que dar 60 cortes por minuto. É claro que havia mais de 30% com problemas sérios de LER/DORT, que em dois anos seriam totalmen-te inutilizados. Em março, me falaram (que tal verifi -car?) que em matadouros de Erechim/RS e Chapecó/

Vito Giannotti

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O QUE CARACTERIZA os tempos pós-modernos em que vivemos, segundo Lyotard, é a falta de resposta para a questão do sentido da existência. Por enquanto, estamos na zona nebulosa da terceira margem do rio.

A modernidade agoniza, solapada por esse buraco aberto no centro do coração pela cultura da abundân-cia. Nunca a felicidade foi tão insistentemente oferta-da. Está ao alcance da mão, ali na prateleira, na loja da esquina, publicitada em todo tipo de mercadoria.

No entanto, a alma se dilacera, seja pela frustração de não dispor de meios para alcançá-la; seja por anga-riar os produtos do fascinante mundo do consumismoe descobrir que, ainda assim, o espírito não se sacia...

A publicidade repete incessantemente que todos te-mos a obrigação de ser feliz, de vencer, de nos des-tacarmos do comum dos mortais. Sobre esses recai o sentimento de culpa por seu fracasso. Resta-lhes, po-rém, uma esperança, apregoam os que deslocam a mensagem evangélica da Terra para o Céu: o caráter miraculoso da fé. Jesus é a solução de todos os proble-mas. Inútil procurá-la nos sindicatos, nos partidos, na mobilização da sociedade.

Vivemos num universo fragmentado por múltiplas vozes, frente a um horizonte desprovido de absolutos,com a nossa própria imagem mil vezes distorcida no jogo de espelhos. Engolida pelo vácuo pós-moderno, a religião tende a reduzir-se à esfera do privado; olvidasua função social; ampara-se no mágico; desencanta-se na autoajuda imediata.

Nesse mundo secularizado, a religião perde espa-ço público, devido à racionalidade tecnocientífi ca, ao pluralismo de cosmovisões, à racionalidade econômi-ca. Sobretudo, deixa de ser a única provedora de sen-tido. Seu lugar é ocupado pelo oráculo poderoso da mídia; os dogmas inquestionáveis do mercado; o am-plo leque de propostas esotéricas.

A crise da modernidade favorece uma espiritualida-de adaptada às necessidades psicossociais de evasão, da falta de sentido, de fuga da realidade confl itiva. Es-piritualidade impregnada de orientalismo, de tradi-ções religiosas egocêntricas, ou seja, centradas no eu,e não no outro, capazes de livrar o indivíduo da confl i-tividade e da responsabilidade sociais.

Agora, manipula-se o sagrado, submetendo-o aos caprichos humanos. O sobrenatural se curva às ne-cessidades naturais. A solução dos problemas da Ter-ra reside no Céu. De lá derivam a prosperidade, a cura, o alívio. As difi culdades pessoais e sociais de-vem ser enfrentadas, não pela política, mas pela auto-ajuda, a meditação, a prática de ritos, as técnicas psi-coespirituais.

Reduzem-se, assim, a dimensão social do Evange-lho e a opção pelos pobres. O sagrado passa ser fer-ramenta de poder, para controle de corações e men-tes, e também do espaço político. O Bem identifi ca-se com a minha crença religiosa. Bin Laden exige que o Ocidente se converta à sua fé, não ao bem, à justi-ça, ao amor.

Essa religião, mais voltada à sua dilatação patri-monial que ao aprimoramento do processo civiliza-tório, evita criticar o poder político para, assim, ob-ter dele benefícios: concessão de rádio e TV etc. Ajus-ta a sua mensagem a cada grupo social que se preten-de alcançar.

Sua ideologia consiste em negar toda ideologia. As-sim, ela sacraliza e fortalece o sistema cujo valor su-premo, o capital, se sobrepõe aos direitos humanos. Como observava Comblin, as forças que hoje domi-nam são infi nitamente superiores às das ditaduras militares.

Aos pobres, excluídos deste mundo, resta se entre-garem às promessas de que serão incluídos, cobertos de bênçãos, no outro mundo que se descortina com a morte. Frente a essa “teologia” fi ca a impressão de que a encarnação de Deus em Jesus foi um equívoco. E que o próprio Deus mostra-se incapaz de evitar que sua Criação seja dominada pelas forças do mal.

Felizmente, nas Comunidades Eclesiais de Base, nas pastorais sociais, nos grupos de leitura popular da Bíblia, fortalece-se a espiritualidade de inserção evan-gélica. A que nos induz a ser fermento na massa e crê na palavra de Jesus, de que ele veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10).

Fomos criados para ser felizes neste mundo. Se há dor e injustiça, não são castigos divinos, resultam de obra do ser humano e por ele devem ser erradicadas. Como diz Guimarães Rosa, “o que Deus quer ver é agente aprendendo a ser capaz de fi car alegre e amar,no meio da tristeza. Todo caminho da gente é resvalo-so. Mas cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta”.

Frei Betto é escritor, autor de Um homem chamado Jesus (Rocco), entre outros livros.

Frei Betto

Espiritualidade pós-moderna

Aos pobres, excluídos deste mundo, resta se entregarem às promessas de que serão incluídos, cobertos de bênçãos, no outro mundo que se descortina com a morte

Se há dor e injustiça, não são castigos divinos, resultam de obra do ser humano e por ele devem ser erradicadas

cional, os sem-terra estavam sendo alimentados com carne. Que despautério! E mais: em vez de fazer suas necessidades na rua, tinham banheiros químicos a seu dispor. Por mais que autoridades afi rmassem que era uma questão de segurança e saúde, este foi o foco da mídia que insistiu, mesmo com a desocupação, com as manchetes dos “ sem-terra que recebiam carne”. Eis a galinha no armário.

Não falaram que os sem-terra enfrentaram a chu-va e o de sol infernal de Salvador debaixo de uma lo-na preta. Não falaram que lutavam pelo cumprimen-to de acordos desrespeitados pelo Estado. Não fala-ram que pediam escolas nos assentamentos, incenti-vos ao pequeno agricultor, enfi m, que cumprissem a Constituição.

Um policial veio conversar comigo, dizendo que queria que terminasse logo aquela ocupação. Eu ga-ranti a ele que quem mais queria que aquilo acabas-se eram os sem- terra. “A resposta é fazer o que tanto prometeram”, respondeu o policial. Um bom começo, talvez, seja ignorar a galinha no armário.

A galinha no armárioLEMBRO DE QUANDO fui ao cinema ver O homem que copiava. No fi lme, o personagem de Lázaro Ra-mos planeja matar o pai de uma namorada em uma explosão. Para desviar a atenção da polícia, tem a sa-cada de pôr uma galinha dentro do armário. Assim, a ave sobreviveria à explosão e atrairia os olhares em busca dos detalhes. Esse, infelizmente, é o olhar da im-prensa. O plano funciona.

Aqui na Bahia, também tivemos a nossa galinha com o início da Jornada Nacional pela Reforma Agrária. Na telinha da fi lial daquela “grande emissora” pergunta-vam ao telespectador: Por que a reforma agrária ain-da não saiu na Bahia? Uma rápida matéria mostrava os sem-terra e falava na importância de se fazer tal re-forma. Isso, é claro, não é uma repentina mudança de comportamento da imprensa, apenas uma forma de atacar o próprio Estado, que não possui a mão carlis-ta. É a tática de mostrar, com insistência, o que não se mostrava anos atrás.

Mas, voltando à galinha, ela apareceu. Foi durante a ocupação da Secretaria de Agricultura. No Jornal Na-

Ana Maria Amorim

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brasilde 28 de abril a 4 de maio de 20114

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

HAVIA CERCA de 30 pessoas dentro da sala. O ambiente era árido, frio. Entre ca-da uma das pessoas sentadas ao redor da mesa, parecia haver enorme distância. Mulheres eram raras. Os homens senta-dos à mesa vestiam-se de forma impecá-vel. Entre eles, dois ou três usavam bar-ba: justamente os que se revelariam os mais distintos. Ao começo da reunião, no centro do Rio de Janeiro, os encaminha-mentos já chegavam prontos, e eram li-dos friamente com o objetivo claro de forjar sua rápida aprovação. Não seria tão simples assim. Alguns dos convida-dos haviam vindo com o objetivo decla-rado de estragar a festa.

A Assembleia Geral Ordinária da Va-le ocorre anualmente. É o encontro anu-al dos acionistas da empresa. Na teoria, seria o espaço da democracia corporati-va, onde os detentores de ações determi-nariam, através do voto proporcional aos papéis que possuem, as decisões da em-presa. Na prática, porém, as decisões já chegam prontas, tomadas por uma cú-pula pequena que controla a empresa – Previ, Bradesco, BNDES e a japonesa Mitsui. Na assembleia apenas se validam os encaminhamentos já determinados em outras instâncias nada democráticas. Presidida por Ricardo Flores, presidente da Previ – fundo de pensão dos funcioná-rios do Banco do Brasil – e do Conselho de Administração da Vale, a reunião du-rou apenas meia hora.

Os acionistas minoritários teriam as-sistido calados à leitura das decisões, não fosse uma forma inovadora de pro-testo, comum na Europa porém ain-da nova no Brasil. Havia entre os pre-sentes quatro acionistas diferentes. Ati-vistas de movimentos sociais distintos, compraram ações ordinárias – com di-reito a voto – somente para participar

do encontro. O objetivo era denunciar os muitos danos socioambientais provo-cados pela Vale em sua atuação em cen-tenas de países dos cinco continentes. Os “acionistas críticos”, como são co-nhecidos, questionavam a preocupação da empresa com os impactos ambientais de seus projetos, com a saúde e a subsis-tência das comunidades do entorno de suas obras, com os direitos trabalhistas e com a geração de empregos.

“Nem todo mundo que está aqui pre-sente tem ideia da enorme poeira dei-xada por essa empresa em cada lugar em que atua. Por trás desses núme-ros [lucros exorbitantes da Vale], exis-te um estrago para o trabalhador”, afi r-mou Karina Kato, economista especiali-zada nos danos socioambientais da em-presa. “Esses números poderiam ser di-minuídos para não prejudicar as pesso-as que estão à margem desses projetos”, defendeu Danilo Chammas, advogado do movimento Justiça nos Trilhos, que há anos atua na resistência à empresa no Maranhão e no Pará. A postura dos executivos era defensiva aos ataques. “Com relação aos impactos, estão sen-do contemplados pelo relatório. A em-presa amplia, a cada dia, seus cuidados com essas questões. Eu enxergo isso co-mo um processo contínuo de aperfeiço-amento”, defendia-se Ricardo Flores.

Barrados na assembleiaA apresentação dos números foi fei-

ta pelo executivo Guilherme Cavalcan-ti, o segundo homem da Vale. Impres-sionantes, os lucros da empresa a teriam alavancado à 20ª posição no mundo, em valor de mercado (leia abaixo). Aos questionamentos dos ativistas, respon-dia com irritação. “A Vale não vai mudar

a estratégia dela, no sentido de fornecer minério ao mundo”. Pela primeira vez, a empresa apresentou seu suposto inves-timento em “responsabilidade social”. Os acionistas críticos acreditam que is-so seja decorrente de sua atuação na As-sembleia de 2010, quando duas pessoas fi zeram o mesmo. Em 2011, entretanto, pela primeira vez, abstiveram-se de vo-tação do relatório da empresa.

Três acionistas críticos não conse-guiram entrar na reunião. Padre Dá-rio Bossi era um deles. Há três anos, o religioso lidera a resistência no Mara-nhão. Como sua ação foi comprada no nome de sua congregação – Missioná-rios Combonianos Brasil Nordeste –, não foi aceito. Na carta que trazia pa-ra ler na Assembleia, dizia: “na cida-de onde moro, Açailândia (MA), o po-voado de Piquiá de Baixo sofre, há mais de 20 anos, violação do direito à saúde e moradia, querendo fugir da poluição provocada pelo programa Grande Ca-rajás. O caso está sendo estudado pe-la Federação Internacional de Direitos Humanos”. O padre também denuncia o licenciamento da duplicação da es-trada de ferro, que seria irregular e ile-gal, causando remoções de população,

intervenções em áreas de preservaçãopermanente e impactos em povos indí-genas e quilombolas.

Os outros dois vieram de mais lon-ge. Carolyn Kazdin e Wayne Rae viaja-ram do Canadá somente para o encon-tro. Rae é presidente da United Steel Workers (USW), sindicato equivalente ao que seria no Brasil uma central sin-dical. No país, a USW realizou uma gre-ve de mais de um ano contra a Vale-In-co, atual Vale-Canadá. Ambos estavamotimistas de que, com a substituição do comando da empresa – principal enca-minhamento da assembleia –, o diálo-go fosse facilitado, e os direitos traba-lhistas dos canadenses voltassem a serrespeitados, como eram antes da anti-ga Inco ser comprada pela Vale. Rae e Carolyn não puderam entrar porque te-riam comprado papéis da Vale negocia-dos em Wall Street, e não ações.

FalecimentoUm fato emblemático ocorreu horas

antes da Assembleia. Um trabalhadorda Realma – empresa terceirizada deum projeto da Vale – faleceu enquanto trabalhava na limpeza do píer do Por-to de Itaguaí. Mesmo com o acidente,a empresa levou a atividade até o fi m, sem interrupção. O corpo só foi retiradono dia seguinte. Entre os dias 25 e 28 deabril, será realizado, em Belo Horizonte,o II Encontro Internacional dos Atingi-dos pela Vale. São esperados represen-tantes dos cinco continentes. O objetivo principal é avaliar os avanços na resis-tência às intervenções danosas da em-presa. Em abril de 2010, foi realizado o I Encontro, no Rio de Janeiro, reunindo160 ativistas, onde se elaborou um rela-tório completo dos impactos.

do Rio de Janeiro (RJ)

Na Assembleia Geral Ordinária da Va-le, foram eleitos os novos membros do Conselho de Administração, aprovadas as contas do ano passado e validados os novos valores de remuneração dos ad-ministradores e do Conselho Fiscal. Foi confi rmada a substituição de Roger Ag-nelli por Murilo Ferreira no cargo de di-retor-presidente da empresa. O presi-dente da Previ, Ricardo Flores, permane-ceu no comando do conselho, e terá ago-ra como suplente Marcos Geovanne, di-retor de participações do fundo de pen-são. O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho, permanece como representante do banco no conse-lho, no qual Nelson Barbosa entrou. Se-cretário-executivo do Ministério da Fa-zenda, foi uma das novidades, como re-presentante do governo.

Os conselheiros terão cargos até 2013. Pela primeira vez na história da Assem-bleia, não houve consenso, já que os ati-vistas que participaram se abstiveram de muitas votações. Guilherme Cavalcanti, diretor de fi nanças e segundo homem da Vale, começou a apresentação dos resul-tados fi nanceiros da companhia com um dado impactante. A Vale tornou-se a 20ª companhia do mundo em valor de mer-cado – em 2002, estava apenas entre as 500. Em 2010, apresentou aumento de receitas equivalente a US$ 45,3 bilhões e lucro líquido de US$ 17,3 bilhões. O vo-lume de investimentos atingiu US$ 19 bi-lhões no ano passado e US$ 79 bilhões de 2005 a 2010.

Segundo o executivo, nenhuma mine-radora jamais teve resultado semelhante, em toda a história. Ressaltando seu “fo-co no crescimento orgânico”, a Vale ava-

liou sua atuação na Ásia como altamente competitiva, e estabeleceu a África como sua “nova fronteira”, devido ao potencial de exploração mineral. Alegou ter inves-tido US$ 1136 milhões em responsabili-dade social. Segundo a empresa, ainda, 76% da água que utiliza seria reciclada. Cerca de 65% de seu investimento seria em logística e minério de ferro. A remu-neração máxima dos diretores e conse-lheiros da empresa subiu para R$ 108,96 milhões.

EsquecidoO nome de Roger Agnelli só foi citado

durante a reunião por um acionista mi-noritário. José Teixeira, que se apresen-tou como um investidor “pertencente à direita”, disse que os resultados de 2010 se deviam à administração de Agnelli. A todo momento, interrompia o andamen-to da reunião para dizer que “fazia ques-tão de falar”, em crítica à tentativa tácita dos comandantes da Assembleia de con-duzir as decisões sem espaço para ques-tionamento. Teixeira elogiou os executi-vos da companhia, mas lamentou a subs-tituição. A troca de Agnelli por Muri-lo Ferreira se deu por pressão do gover-no federal, insatisfeito com as críticas do primeiro ao PT e sua gestão, e por deci-sões unilaterais de demissão massiva do executivo em 2008. “A transição é nor-mal, ocorre em todas as organizações”, defendeu-se Flores. (LU)

do Rio de Janeiro (RJ)

O nome de Roger Agnelli à frente da Vale já vinha sen-do questionado pelo governo federal há alguns anos. Quan-do as pressões por sua substituição se intensifi caram, logono início da gestão Dilma Rousseff, fi cou claro que ele nãoresistiria muito tempo no comando da empresa. No iníciodeste mês, foi anunciado Murilo Ferreira como o novo di-retor-presidente da empresa. A intervenção do governo foicondenada por muitos dos articulistas ofi ciais da mídia cor-porativa, defensores da liberdade máxima ao meio privado.Paulo Uebel, diretor-executivo do Instituto Millenium, afi r-mou que “o governo, ao tomar essa atitude, erra no propó-sito, erra na forma e erra nos resultados buscados”. O Insti-tuto Millenium é uma entidade ultraconservadora, em par-te fi nanciada pelo mercado fi nanceiro, que auxilia na propa-gação do neoliberalismo.

Apenas para se ter uma ideia, o ex-presidente do Banco Central (1999-2003), Armínio Fraga, é o “gestor do fundo pa-trimonial”. A organização paga espaços nos veículos de comu-nicação, ajudando a fi nanciá-los. Também os “ajuda” indican-do as fontes para as matérias. E não se restringe ao Brasil. O Intituto Millenium ajuda a blogueira cubana Yoani Sánchez, pagando uma fortuna por seus artigos contrários ao governo comunista, que são publicados em jornais como O Globo e O Estado de S.Paulo. Com o pagamento, Yoani consegue driblar o alto custo da internet em Cuba. O instituto também patro-cina seminários para discutir a suposta “liberdade de impren-sa” – na verdade, para impedir que o Brasil adote medidas de democratização dos meios de comunicação, conforme exem-plos de países como Argentina e Bolívia. (LU)

O nome de Roger Agnelli só foi citado durante a reunião por um acionista minoritário, José Teixeira, que se apresentou como um investidor ‘pertencente à direita’

Vigésima empresa do mundoNa assembleia, Vale apresenta lucros de US$ 17,3 bilhões e investimentos de US$ 19 bilhões. Nunca, na história, uma mineradora faturou tanto

O Instituto Millenium é uma entidade ultraconservadora, em parte fi nanciada pelo mercado fi nanceiro, que auxilia na propagação do neoliberalismo

Regra trêsDe pouco impacto real, substituição no comando da Vale gera protestos, como os do Instituto Millenium

Água no chopp da ValePROTESTO Ativistas compram ações da mineradora apenas para participar da assembleia anual de acionistas e denunciar os impactos nocivos da atuação da empresa

Os ‘acionistas críticos’, como são conhecidos, questionavam a preocupação da empresa com os impactos ambientais

“Nem todo mundo que está aqui presente tem ideia da enorme poeira deixada por essa empresa em cada lugar em que atua”

Assembleia Geral Ordinária da Vale, encontro anual dos acionistas da empresa realizado no Rio de Janeiro

Leandro Uchoas

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de 28 de abril a 4 de maio de 2011 5brasil

Márcio Zonta de Marabá (PA)

A CIDADE DE Marabá completou 98 anos no dia 5 de abril e, a menos de dois anos de receber o maior projeto in-dustrial da região, a empresa siderúrgi-ca Aços Laminados do Pará (Alpa), um empreendimento da Vale, sofre com fal-ta de infraestrutura como a ausência de boas condições para morar, a precarie-dade de sua malha viária, problemas de abastecimento de água, escassez de va-gas nas escolas, além de um saneamen-to básico insufi ciente.

Segundo um estudo recente solicitado pela própria Vale à empresa Diagonal Urbana, Marabá precisa de R$ 1,619,53 bilhão para sair do caos.

Desse montante, a saúde do municí-pio precisaria de R$12,59 milhões pa-ra sair das condições precárias em que se encontra.

O projeto Alpa colaborará para um crescimento da população de maneira desordenada na cidade, segundo o es-tudo, que também aponta que, em 2014, Marabá terá 261 mil habitantes, repre-sentando um crescimento de mais de 50% no período. Destes, 249 mil seriam moradores da cidade e 12 mil do campo.

Na educação isso refl etiria, segundo o estudo, em um aumento na demanda de Marabá por salas de aula na educação infantil, ensino fundamental e médio, que atualmente é de 168 salas de en-sino. Em 2014, serão necessárias mais 449 salas. Para tanto, seria preciso um investimento de R$ 165, 44 milhões de investimentos, sem contar a criação de creches, inexistentes ainda na quase centenária Marabá.

Condicionantes Mesmo sendo aprovada pela então go-

vernadora, Ana Júlia (PT –PA) com res-trições do Ministério Público Estadu-al e Federal, a licença da Alpa foi acor-dada diante de 36 condicionantes, oito recomendações e dez programas espe-cífi cos de inserção da empresa em Ma-

rabá. Isto determina que a Vale teria de participar de políticas públicas nas áre-as de saúde, educação, meio ambiente, ampliação do sistema de abastecimen-to de água, tecnologia, plano diretor e empregabilidade.

Mas até agora nada foi realizado pela mineradora, o que levou o MPE a mar-car uma reunião em meados de no-vembro passado, com representantes da transnacional, para exigir um cro-nograma de cumprimento das condi-cionantes, previamente estabelecidos em 24 de abril de 2010, quando o EIA-RIMA (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental) foi aprovado.

A Vale comprometeu-se, na oportu-nidade, em converter as obras das con-

dicionantes em três anos, mas nada até o momento andou, segundo a apuração do MPE.

Dentro das condicionantes, a Va-le é obrigada a implementar o Progra-ma de Inserção Regional da Empre-sa (PRIEMP),que envolve uma série de

ações. Dentre elas, consta que a mine-radora teria que construir escolas de en-sino fundamental, acompanhando a de-manda de crescimento da cidade. Nasaúde, a Vale seria responsável por am-pliar e reformar o Hospital Municipalde Marabá, construir centros de saúde eapoiar o Programa de Saúde da Família,hoje com apenas duas equipes para umacidade que precisaria de no mínimo 60.

A velha estratégia No entanto, a velha estratégia da Va-

le, sobretudo depois de sua privatização em 1997, tem prevalecido: captar recur-sos públicos para sanar problemas de suas responsabilidades. À época das ne-gociações, o presidente da Fundação Va-le, Silvio Vaz, não acenou com a possibi-lidade de ajuda da mineradora nas polí-ticas públicas com recursos da transna-cional, avisando que apenas daria apoio para o município na captação de recur-sos junto aos órgãos governamentais.

O fato trouxe à tona novamente a dis-cussão sobre as responsabilidades daVale na geração dos impactos de seus empreendimentos. Assim, os vereado-res Vanda Américo (PV), Ronaldo Batis-ta Chaves (PTB) e Júlia Rosa (PDT) que-rem que a empresa assuma muito mais do que reformar e ampliar o Hospital Municipal, participando permanente-mente de sua manutenção, orçada em cerca de R$ 2 milhões mensais.

Os vereadores argumentam que na ci-dade mineira de Ipatinga a empresa Usi-minas custeia um hospital com 500 leitos para atendimento da população, diferen-te da Vale, que apenas anunciou a cons-trução de um hospital de campanha, con-templada no espaço físico da Alpa, res-trito apenas aos seus funcionários, sem atender a demanda da população local.

“Não aceitamos que a Vale se negue afazer o mesmo em Marabá. Afi nal, umaempresa mais rica que a Usiminas e que vai ganhar bilhões de reais em nossomunicípio não pode fazer vistas grossas para a situação da saúde”, disse Vanda, em entrevista concedida ao jornal Cor-reio de Tocantins.

Dário Bossi eMarcio Zonta

de Açailândia (MA)

UMA AÇÃO TRAMITA na 2 ª Vara Ju-dicial do município maranhense de Açai-lândia, contra a Vale, pelo atropelamento de trem de carga que vitimou fatalmente Maria Lucineide Ninácio de Paula, de 36 anos, em 2008.

Antes mesmo do desfecho da ação, o juiz André B. P. Santos acolheu o pedi-do de antecipação de tutela, determinan-do em caráter liminar que a Vale pague desde já e até o fi nal do processo a quan-tia mensal equivalente a um salário-mí-nimo à família.

Em sua decisão, ainda, no dia 2 de março deste ano, o juiz descreveu que “a responsabilidade da empresa tende a ser objetiva”.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o advogado Danilo Chammas, da Orga-nização Justiça nos Trilhos, que auxilia as comunidades que sofrem interferên-cias da Vale, na busca de elucidar as fa-mílias sobre seus direitos, afi rmou que decisões judiciais como esta “inaugu-ram uma nova tendência”. Confi ra en-trevista abaixo.

Brasil de Fato – Quais são as responsabilidade jurídicas de quem administra uma ferrovia, como a Vale?Danilo Chammas – A estrada de fer-ro de Carajás é uma concessão pública, não é uma propriedade privada. A Va-le tem obrigações que vêm do contrato de concessão estabelecido e das leis. Es-sa concessão é temporária e fi nita e po-de ser revogada a qualquer momento, quando a empresa não cumpre com su-as obrigações pré-estabelecidas, sendo a Agência Nacional de Transportes Ter-restres (ANTT) um dos órgãos respon-sáveis pela sua fi scalização. Por exem-plo, um dos deveres que a Vale tem é to-mar todas as medidas de segurança ne-cessárias para não acontecer qualquer tipo de acidente ao longo da ferrovia. Caso acontecer, a responsabilidade de-la tem que ser colocada como “objeti-va”, o que signifi ca que não importa de quem foi a culpa, cabe a ela ressarcir to-

empresa para fazer uma obra em deter-minado local, a comunidade exige essa licença, ou seja, as pessoas no entorno da comunidade têm total interferência e emitem suas opiniões sobre o empreen-dimento. No caso do Brasil, isso deveria ocorrer nos processos de licenciamentoambiental, pois a lei prevê que as pes-soas participem, que as comunidadesatuem juntas no processo de estudo. Aí caberia ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Re-nováveis (Ibama), que é o licenciador, abrir para a participação da população, criando um diálogo através de audiên-cias públicas e outras maneiras de parti-cipação. Dessa forma, a comunidade co-loca suas necessidades antes da empre-sa fazer a obra.

O que representa essa ação determinada pela 2 ª Vara Judicial de Açailândia (MA) contra a Vale, que acolheu o pedido de antecipação de tutela e pontua que a responsabilidade da empresa tende a ser objetiva no processo?

Trata-se de uma decisão rara e queinaugura uma nova tendência, pois gra-ças aos trabalhos da Justiça nos Trilhos e de outros movimentos sociais, pouco a pouco as pessoas que vivem à beira daestrada de ferro de Carajás vão toman-do consciência do direito à indenização e é capaz que algum dia fi que mais caro para a Vale atuar precariamente como atua nas comunidades e resolva fi nal-mente investir nas medidas de seguran-ça e proteção devidas. Por enquanto, elaainda confi a na falta de informação do povo, na inefi ciência do sistema de Jus-tiça ou na sua eventual vulnerabilidade às pressões da empresa gigante. Mas es-sa decisão mostra que essa aposta pode estar indo por água abaixo.

Empresa sofre ação por atropelamentoVALE Para advogado, decisão da Justiça no Maranhão inaugura uma nova tendência de processos contra a mineradora

dos os danos, pois foi a Vale que não to-mou as medidas cabíveis para que aci-dentes não ocorressem.

Há uma série de atropelamentos de pessoas e animais ao longo da estrada de ferro de Carajás. Quais são as responsabilidades da Vale e os direitos das famílias que sofreram esses danos?

O índice de atropelamento vem sen-do alto pelo que temos apurado. Isso é muito grave, pois mostra que as pesso-as que vivem no entorno da via férrea de Carajás estão sujeitas a esse perigo. As vítimas têm direito a reparação inte-gral desses danos, desde as despesas co-mo funeral, mas não só isso, pois preci-sam ser ressarcidas em seus danos mo-rais e materiais. Por exemplo, se a pessoa que morreu trabalhava e contribuía pa-ra sua família com parte de seu salário, a família terá que ser indenizada pelo tem-po de vida estimado daquela pessoa, ou até uma idade prevista de 70 anos. Re-centemente, temos uma decisão do Tri-bunal de Justiça do Ceará que condenou

a Companhia Ferroviária do Nordeste ao pagamento de R$ 120 mil de indenização a uma família pelo acidente que tirou as duas pernas de uma criança, que não fa-leceu. Outra questão são os animais que morrem nas vias férreas, sobretudo, na de Carajás. As pessoas também devem buscar ressarcimento na Justiça, pois geralmente esses animais são suas fon-tes de renda.

A duplicação da estrada de ferro de Carajás prevê a interferência em comunidades e remoções das famílias de suas moradias. Quais são os direitos dos moradores nesse caso?

Os moradores devem exigir uma com-pensação por esses danos, independente de terem títulos de propriedade ou não. Não só pela perda imediata, quando da remoção, mas por perdas futuras, ou se-ja, o que eles poderiam ter de ganhos naquela propriedade, com uma planta-ção ou criação, por exemplo. Tudo isso tem que ser calculado. No caso de re-moção, é um novo processo que ocorre, pois tudo tem que ser visto e, aceito pela Vale, situadas nas reivindicações coleti-vas advindas das famílias, pois é impor-tante que sejam removidas também co-letivamente para um mesmo local, on-de possam manter seus laços de amiza-de ou familiares, já existentes antes na comunidade.

A ferrovia garante um lucro exorbitante à Vale. De que forma as comunidades que sofrem interferências da mineradora podem ser contempladas com uma compensação?

Em vários países, já existe a licença social. Signifi ca que quando chega uma

Alpa avança obras no Pará, mas sem oferecer contrapartidasAÇO Vale até agora não começou obras das condicionantes estabelecidas em acordo para construção de fi lial

Lula ao lado de Ana Júlia Carepa (ex-governadora do Pará) durante o início das obras da ALPA, em junho de 2010

“Uma empresa mais rica que a Usiminas e que vai ganhar bilhões em nosso município não pode fazer vistas grossas para a situação da saúde”

“Pouco a pouco, as pessoas que vivem à beira da estrada de ferro de

Carajás vão tomando consciência do direito à indenização”

“Em vários países, já existe a licença social. Quando uma empresa faz uma obra em um local, a comunidade exige contrapartidas”

“Caberia ao Ibama abrir para a participação da população, criando um diálogo através de audiências públicas”

O advogado Danilo Chammas, da Organização Justiça nos Trilhos

Reprodução

Agência Pará

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brasilde 28 de abril a 4 de maio de 20116

PrevidênciaNota pública distribuída pelo

presidente nacional da CUT, Artur Henrique, defende o fi m do fator previdenciário, que reduz os valo-res da aposentadoria, e contesta a declaração do ministro da Previ-dência, Garibaldi Alves, que insiste em manter esse redutor criado no governo FHC. A CUT lembra que a proposta do fator 85/95 (bem me-lhor para os trabalhadores) está pa-rada no Congresso Nacional. Afi nal, o governo tem ou não tem maioria parlamentar?

PrecariedadeFicou para o Supremo Tribunal

Federal decidir se as vagas abertas na Câmara dos Deputados devem ser preenchidas pelos suplentes do partido ou da coligação partidária. Até parece que o Brasil acaba de ser inventado e a substituição no Legis-lativo seja algo inédito. Na verdade, o país vive – desde os tempos da ditadura militar – com regras eleito-rais aleatórias, marcadas pelos casu-ísmos dos interesses dominantes.

DemocratizaçãoFinalmente ocorreu no dia 25 de

abril, em várias capitais do país, o lançamento da campanha Banda Larga é Direito, que defende a demo-cratização do acesso à Internet e a expansão desse serviço público sem a extorsiva exploração atual. Alguns poucos provedores privados con-trolam a Internet e chegam a cobrar preços muitas vezes maiores aos que são cobrados nos outros países. Che-ga de abuso!

InformaçãoCriado e mantido por entidades

e pessoas empenhadas na luta pelo direito à moradia, o blog “Pela Mo-radia” (http://pelamoradia.wordpress.com) fornece boas informações sobre o movimento dos sem-teto e ocupações urbanas no Rio de Janei-ro (RJ). O blog tem acompanhado os processos de remoção violenta de moradores para as obras da Copa do Mundo em várias capitais. Toda força à luta por moradia! Contra as remoções!

Desmonte gradualAs peças do dominó econômico

caem lentamente, mas continuam caindo: Islândia, Irlanda, Grécia, Portugal – todos entraram em reces-são. Agora os indícios da quebradei-ra apontam para Espanha e Bélgica. Vale lembrar que de todos esses países o que tem maior peso nas re-lações com o Brasil é a Espanha, que tem desemprego altíssimo e deve pedir socorro ao FMI em breve. Qual será a repercussão no Brasil?

Pergunta básicaO grande fl uxo de capitais para o

Brasil tem sido o responsável pela excessiva valorização do real frente ao dólar, o que, por sua vez, favorece as importações e prejudica as expor-tações, o parque industrial brasileiro sofre com a concorrência estrangei-ra e diminui os postos de trabalho. Questão elementar: se aumento da taxa de juros tem sido o principal atrativo para os capitais externos, por que o Banco Central continua com essa política?

Nova posturaCom base em dados da Fundação

Nacional do Índio e do Ministério da Saúde, o antropólogo Ricardo Verdum, assessor do Inesc, chama a atenção – em artigo veiculado no siteUnião Campo Cidade Floresta – para o elevado número de suicídios entre jovens indígenas, nos últimos três anos, que é quatro vezes maior do que a média nacional. Ele pede uma rápida revisão das políticas públicas para enfrentar os “dilemas culturais” da juventude indígena.

FisiologismoDemonizado durante muito tempo

pela esquerda governista e pela tro-pa de choque do lulismo, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, não apenas abandonou o DEM e está criando o PSD com parlamentares oriundos do PSDB, como também acaba de nomear um secretário mu-nicipal especial indicado pelo PCdoB – que é fi el aliado do PT no governo federal. Isso é o que pode ser cha-mado de pragmatismo político total, sem princípio e sem programa.

Defesa ambiental Dezenas de entidades e movi-

mentos sociais realizam, no dia 7 de maio, em São Paulo, um seminário nacional sobre o projeto de revisão do Código Florestal. Participam do evento, entre outros, dirigentes da ABRA, FASE, Fetraf, MAB, MST, MPA e Pastorais Sociais da CNBB. Maiores informações pelo email [email protected] ou pelo telefone (11) 3392-2660.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Pedro Carrano de Curitiba (PR)

UM TRABALHADOR migrou para Curi-tiba ainda nos anos de 1980, talvez vin-do do campo. Conseguiu trabalho na Ci-dade Industrial de Curitiba (CIC), em ex-pansão desde o período militar. Instalou-se em uma área de ocupação e mais tar-de negociou a regularização da área com a Companhia de Habitação – Cohab, li-gada à Prefeitura. História comum a mi-lhares de operários de Curitiba. Contudo, os moradores no entorno do Sabará (re-gião do CIC) enfrentaram um outro des-fecho para essa história. Em 2010, passa-dos anos de espera, pagas as prestações, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) de-clarou irregulares os contratos. Um cál-culo rasteiro aponta até o valor de R$185 milhões pagos pelos trabalhadores, só que os lotes não eram da Cohab.

O fato político deu nova dimensão a uma organização que já existia no Sa-bará. O processo de organização con-ta com o apoio de organizações como Assembleia Popular, Terra de Direitos, além de estudantes e jornalistas.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Osmano Reis, liderança local, traduz al-guns dos principais desafi os da organi-zação local: o problema da violência na juventude, a cooptação de lideranças pelo poder público, as ferramentas de comunicação etc.

Brasil de Fato – A luta pela regularização das casas do Sabará, no CIC, ganhou outro signifi cado com a denúncia das irregularidades nos contratos da Cohab?Osmano Reis – A partir do ano pas-sado, com todo o trabalho que tivemos com as demais associações de morado-res e com a região toda, principalmen-te quando foram cancelados os contra-tos da Cohab, tivemos alguns avanços, apesar de o ano passado ter sido um ano político, muita gente misturou as coisas. O que avançou? Tivemos uma audiência e agora estamos no aguardo da decisão da juíza da Quarta Vara Cível. A expec-tativa era que ela julgasse em 2010. Co-mo não julgou, estamos aguardando. Os trabalhos da associação de moradores continuam, nós estamos mobilizando esse pessoal que pagou a Cohab. Já há alguns grupos pretendendo entrar com uma ação de ressarcimento do dinhei-ro pago. É difícil? Bastante, mas são di-reitos que os moradores têm, e o pesso-al se sente lesado porque foi enganado por 25 anos. Não é brincadeira. E as au-toridades vão ter que ser cutucadas pa-ra não fazerem mais isso, em Curitiba e no Brasil.

Esses trabalhadores fi caram anos pagando as prestações e descobriram que os lotes não eram da Cohab?

Muitos pagaram dez anos e fi caram 15 anos esperando, terminaram de pa-gar e só agora viram que a Cohab não tem documento, o terreno não é dela, e ela não consegue dar uma resposta pa-ra os moradores. Estamos aguardando a questão do usucapião, e aí entra outro processo que é a devolução desse recur-so que o pessoal pagou. Se, de todos os 37.551 contratos que foram cancelados, o pessoal tomar uma posição dessas, is-so mexe com a prefeitura. Não temos números, mas não vai ser pouco dinhei-ro, tem que ser corrigido e convertido em real. Provavelmente, dá um retorno entre R$ 15 a R$ 20 mil por contrato.

Qual o balanço da experiência das vilas Nova Esperança e Nova Conquista de montar uma associação de moradores paralela à associação cooptada e como foi sobreviver em meio ao governo Beto Richa?

É preciso muita garra. Muita vontade de ver o povo realmente livre do poder político desse grupo que está no poder há mais de 20 anos, porque eles coop-taram 90% das associações. Isso acon-teceu com a gente, tivemos que cortar na carne e aguentar as pressões que vie-ram da Cohab, da Femoclan (Federa-ção de Associação de Moradores) e da prefeitura. Os cortes que a gente sen-te quando se precisa de um órgão pú-blico. Vamos até às autoridades, como eles conhecem a gente, os advogados da Cohab não querem nos receber. Quan-do chega gente de outros grupos e asso-ciações, eles levam para a sala, dão ca-fezinhos, abraços e sorrisos. [Com a de-núncia de 2010], a expectativa era que as associações tomassem os rumos da mobilização popular. É complexo, dá essa sensação de desmobilização. Mas, conversando direto com os moradores, você sente a necessidade de reaver no-vamente essas lutas e fazer com que es-se trabalho avance.

Como o senhor vê a política de realocação de áreas de ocupação irregulares, uma vez que os trabalhadores fi cam sem condições e não participam do planejamento?

Dá uma impressão de que a gente só sabe criticar, mas a gente está vivendo na pele isso aí. Você vai no “valetão”, on-de há quatro anos foi programada a re-alocação das famílias, e há dois anos co-meçaram, mas tiram uma família que está à beira do rio, e quatro meses de-pois tiram mais uma. E deixando os en-tulhos todos no local. O que isso está ge-rando? Uma infestação de insetos, ratos

e baratas, o perigo do foco da dengue é grande. Infelizmente, as autoridades não tomam conhecimento disso; denun-ciamos no Conselho Local de Saúde.

O senhor como militante de base histórico do PT viu a construção do programa democrático e popular, onde constava a bandeira da reforma urbana. Como vê a questão das necessidades do povo, o que hoje fi cou deixado de lado?

Dentro desse contexto de políticas públicas, se a gente negar que deu uma melhorada pode estar pecando, mas se falar que é isso que a gente esperava e sonhava, vamos mentir. O avanço que teve com o PT foi a geração de emprego e de mão de obra, mas a renda deixou a desejar, fi cou muito aquém daquilo que a gente sonhava e sonha, porque o país tem condições disso. Dentro da ques-tão de melhorar de vida, o governo atu-al deu essa abertura, mas, por exemplo, nas questões sociais, a saúde está uma calamidade, o governo tem cumplici-dade nisso, sim. Ajudei a eleger Lula e Dilma, mas não vou dizer que está tudo bem. Não está. No Minha Casa, Minha Vida, as pessoas de zero a três salários mínimos estão fi cando para escanteio. Na Caixa Econômica Federal não tem fi nanciamento. O pessoal nessa faixa de renda vai ter que acordar e ter uma mobilização muito grande. Nesse senti-do está a difi culdade, porque as associa-ções, os sindicatos, os próprios partidos não dão essa oportunidade.

E sobre a necessidade da comunicação?

Olhando a Folha do Sabará, uma das ferramentas que temos no bairro, traz uma esperança de despertar a consci-ência dos moradores, do comércio da região, da juventude e até das próprias crianças, que vão começar a enxergar o que nós temos que fazer para melhorar o nosso bairro. Se esperarmos simples-mente do poder público, econômico do município, nos frustramos, como muita gente já se frustrou: “É o fi m, acabou”, mas a gente sabe que ainda não é o fi m, uma casa quando está caindo você pode melhorá-la. Estamos vendo que as es-colas não dão conta, os pais não estão dando conta de educar os fi lhos, a situ-ação é lamentável, por mais que tenha melhorado. E os vereadores, nos bair-ros, formam a sua “igrejinha”, fazem sua vida, ninguém quer perder o poder, esquecem das políticas básicas. Isso es-tá dentro dos programas do próprio PT, da CUT, das entidades sociais, que é o de defender a vida, mas poucos estão preocupados com isso. O número de jo-vens assassinados na região do CIC au-menta. A questão do tráfi co é iminente, a olho nu vemos coisas terríveis e não podemos falar nada. As autoridades fe-cham os olhos para essas coisas. Esse trabalho de comunicação com a juven-tude é importantíssimo para mostrar à fonte que é possível melhorar. A lei da natureza seria o fi lho enterrar os pais e não o contrário.

MORADIA Militante histórico relata o descaso do poder público em relação ao direito à moradia no Paraná e no Brasil

Quem é:Osmano Reis é militante desde os anos de 1980, é presidente da Associação Comunitária de Moradores da Vila Esperança e Nova Con-quista, fundada em 2007.

“As autoridades vão ter que ser cutucadas para não fazerem mais isso, em Curitiba e no Brasil”

Tradução de uma realidade

“O avanço que teve com o PT foi a geração de emprego e de mão de obra, mas a renda deixou a desejar, fi cou muito aquém daquilo que a gente sonhava e sonha”

“No Minha Casa, Minha Vida, as pessoas de zero a três salários mínimos estão fi cando para escanteio”

Reunião da associação de moradores do Sabará, na região da Cidade Industrial de Curitiba

Reprodução

“É preciso muita garra. Muita vontade de ver o povo realmente livre do poder político desse grupo que está no poder há mais de 20 anos”

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brasil de 28 de abril a 4 de maio de 2011 7

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

NO ÚLTIMO DIA 7 de abril, o país ama-nheceu de luto. O jovem Wellington de Oliveira, de 24 anos, entrou armado na escola Tasso da Silveira, em Realengo, Rio de Janeiro, e matou doze crianças. Chocada, a sociedade brasileira busca-va explicação para a barbárie. No de-bate ofi cial, conduzido principalmen-te pela mídia comercial, algumas ques-tões importantes vinham à tona, entre outras notoriamente preconceituosas. Enquanto era apresentado por alguns como um estudioso do Islã, ou porta-dor de HIV, e até como o nerd que fi ca-va muito tempo no computador, outros buscavam resgatar discussões mais re-levantes, como o bullying e o fanatismo religioso de qualquer ordem. Um deba-te essencial foi retomado, a partir da tragédia: o desarmamento.

O Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, tem anunciado que o gover-no realizará uma ampla campanha pelo desarmamento. Segundo ele, isso inclui medidas nas fronteiras do país, onde armas entrariam ilegalmente. O Brasil já estaria em contato com outros paí-ses para elaborar uma ação conjunta. Cardozo anunciou a criação de um ga-binete de gestão integrada, em parceria com o governo do Paraná, para aumen-tar o policiamento na fronteira e com-bater o contrabando de armas. O presi-dente do Senado, José Sarney (PMDB/AP), propôs a realização, ainda para es-te ano, de novo referendo no Brasil so-bre a venda de armas. Em 2005, o Bra-sil realizou o mesmo processo, resul-tando na não proibição da venda. O presidente do Tribunal Superior Elei-toral (TSE), Ricardo Lewandowski, dis-se que o órgão está preparado para ad-ministrar nova consulta popular.

O líder do PSDB na Câmara dos De-putados, Duarte Nogueira (SP), apre-sentou o Projeto de Lei 997/11, que obrigaria as fabricantes de armas a ins-talar nelas um chip com os dados de identifi cação e segurança. O deputado afi rma que a medida vai contribuir pa-ra o controle da localização de armas de fogo no País.

PrecariedadeEm outra direção, em depoimento na

CPI das Armas da Assembléia Legisla-tiva do Rio de Janeiro (Alerj), o ex-de-putado federal Raul Jungmann disse que o Estatuto do Desarmamento não é cumprido devidamente. Segundo ele, o descontrole das armas, munições e ex-plosivos não ocorre por acaso. Há dois cadastros de armas, realizados pela Po-lícia Federal e pelo Exército, cujas in-formações não seriam cruzadas.

A inspeção em portos, aeroportos e fronteiras seria muito precária. O go-verno federal adquiriu, por R$ 65 bi-lhões, equipamentos para escaneamen-to de containeres, que estariam sucate-ados. Membros do crime seriam cadas-trados como colecionadores ou mem-bros de clubes de tiro. Atualmente, as fábricas não providenciam a marca-ção da munição que permita seu ras-treamento, como exige a lei. “De modo diferente do que ocorre no varejo das drogas, onde as mercadorias já nascem ilegais, no tráfi co de armas, o produto nasce legal para só depois se tornar ob-jeto do crime”, disse o deputado esta-dual Marcelo Freixo (PSOL/RJ), presi-dente da CPI, que ganhou importância com a tragédia de Realengo.

O Rio de Janeiro, cidade onde se deu o crime, tem uma realidade singular no

Mirando no alvo correto?VIOLÊNCIA URBANA Após tragédia em Realengo, Congresso propõe campanha por desarmamento e novo referendo

que diz respeito ao tráfi co de armas. Se-gundo levantamento realizado por pes-quisadores do Viva Rio, há mais de 1 milhão de armas, legais e ilegais, em circulação na cidade – uma para cada seis habitantes. Segundo a ONG, so-mente 7% do armamento comerciali-zado ilegalmente no Brasil entra pe-la fronteira. O restante é de desvios da própria produção brasileira de arma-mentos. Das 10.549 armas apreendidas e rastreadas entre 1998 e 2003 na ci-dade, 68% são originárias de oito lojas legais de armamento, na própria Re-gião Metropolitana fl uminense. Exis-tiriam, aproximadamente, 150 mil ar-mas na Divisão de Fiscalização de Ar-mas e Explosivos (Dfae), no Rio, com origem em apreensões. Segundo o dire-tor do órgão, Cláudio Vieira, 70% delas poderiam estar destruídas, não fosse a burocracia para se fazê-lo.

Bancada da BalaNo Congresso Nacional, os defen-

sores das fabricantes de armas e mu-nições compõem a chamada “banca-da da bala”. As empresas do setor de-clararam doar, na eleição do ano pas-sado, R$ 1,55 milhão a candidatos. O deputado Onyx Lorenzoni (DEM/RS), um dos poucos parlamentares a admitir

do Rio de Janeiro (RJ)

Mais do que emblemático, um fato chamou a atenção dos cariocas nos úl-timos dias. Menos de uma semana de-pois da tragédia de Realengo, o Rio de Janeiro sediou, novamente, a LAAD – Defense & Segurity, maior feira de ar-mamento bélico da América Latina. A cidade já havia abrigado o megaevento há dois anos. Em 2011, apresentou um crescimento incrível. As empresas expo-sitoras cresceram de 336 para 650. Esti-ma-se que o crescimento em número de visitantes atinja mais de 30%, em rela-ção aos 18 mil de 2009. As duas edições ocorreram depois que, em 2008, o go-verno brasileiro anunciou a Estratégia Nacional de Defesa (END). “O Brasil de-fi niu os objetivos e prioridades na END. Mas, no evento de 2009, o mercado ain-da via a proposta com certo descrédi-to”, afi rmou Sérgio Jardim, diretor-ge-ral da Clarion Events, responsável pe-lo evento.

Após os assassinatos na escola Tas-so da Silveira, a realização da “Feira da Morte” – como é conhecida entre os mo-vimentos sociais – foi pouco comentada. Entretanto, isso não impediu que o jor-nal O Globo publicasse um caderno espe-cial sobre sua realização. Os organizado-res da feira celebraram o crescimento da “demanda gerada pelos eventos esporti-vos globais marcados para o Brasil, e a expansão dos desembolsos em seguran-ça pública em ações de combate à crimi-nalidade”. Em outras palavras, comemo-raram o crescimento de receita em de-corrência do aumento no uso de arma-mentos no Rio de Janeiro, cujas conse-quências são fartamente conhecidas da sociedade brasileira.

A respeito da campanha por desarma-mento no país, e a eventual realização de referendo sobre a venda de armas,

Feira da morte e da fomeUma semana após tragédia em Realengo, Rio sedia novamente a feira da indústria de armas

a indústria bélica não divulga posições. Sabe-se apenas que movimentações in-tensas estão sendo feitas nos bastidores. O diretor da Indústria de Material Béli-co do Brasil (Imbel), Alte Saturno Zyl-berberg, foi cauteloso ao falar da cam-panha por desarmamento. “Seguimosrigorosamente a lei. Isso é tudo o que posso dizer. Fazemos o que o governomanda”, disse ele, alertando que há, nosetor, incerteza e atenção quanto ao quepode acontecer. No estande da fabrican-te gaúcha de armamentos, a Taurus, os representantes da empresa saíram ca-minhando, calados, ao ser questionadospor este jornal sobre a campanha.

A crítica mais feroz à realização da Fei-ra da Morte veio de Stela Santos, do Co-mitê de Solidariedade à Luta do Povo Pa-lestino. “A novidade deste ano é o desca-rado apoio ofi cial dos governos estadual e municipal e a grave denúncia dos acor-dos militares milionários entre o Estado brasileiro e o terrorista Estado de Israel, envolvendo a compra de armamentos, equipamentos e aviões não tripulados de empresas comprometidas com o geno-cídio de povo árabe”, afi rmou. Na quin-ta-feira (14), alguns movimentos sociais aproveitaram-se das atividades relacio-nadas aos 15 anos do Massacre de Eldo-rado de Carajás para fazer a denúncia da realização da feira. (LU)

Após Realengo, a feira foi pouco comentada. Mas isso não impediu que o jornal O Globo publicasse um caderno especial sobre sua realização

“No tráfi co de armas, o produto nasce legal para só depois se tornar objeto do crime”, diz Marcelo Freixo

A indústria armamentista brasileira declarou doar, na eleição do ano passado, R$ 1,55 milhão a candidatos

Membros do crime seriam cadastrados como colecionadores ou

membros de clubes de tiro

R$ 250

mil é o valor que a indústria armamentista doou ao deputado

Onyx Lorenzoni (DEM-RS), na última eleição

que é de direita, lidera a lista. Recebeu R$ 250 mil das empresas. O deputado já apresentou quatro projetos de lei em defesa da indústria bélica, e classifi cou a proposta de Sarney como “oportunis-ta e hipócrita”. Sandro Mabel (PR/GO) é o segundo da lista, com R$ 180 mil. Foi o segundo candidato mais votado à presidência da Câmara, em fevereiro. Abelardo Lupion (DEM/PR) é o tercei-ro, com R$ 120 mil. A bancada liderou o boicote à tentativa de proibir a venda de armas no país, em 2005.

Até mesmo a ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosá-rio (PT/RS), recebeu fi nanciamento da Taurus, na campanha de 2008 à Prefei-tura de Porto Alegre. As empresas esta-riam se articulando no Congresso Na-cional contra as medidas divulgadas. O presidente da Câmara, Marco Maia (PT/RS), recebeu com cautela a proposta de

Sarney, de realizar referendo. Foi acu-sado por colegas de ceder à pressão daTaurus, de sede localizada em seu esta-do. O senador Paulo Paim (PT/RS) pro-pôs a criação de uma câmara de conci-liação para tratar do assunto.

Ophir Cavalcanti, presidente da Or-dem dos Advogados do Brasil (OAB),afi rmou que o plebiscito seria uma“cortina de fumaça” na crise de segu-rança, desviando o foco dos reais pro-blemas – o comércio ilegal de armas emunições.

Nas eleições, empresas do setor doaram R$ 1,55 milhão aos deputados da chamada bancada da bala

Homem examina arma em estande da feira LAAD – Defense & Segurity, realizada no Rio poucos dias após a tragédia de Realengo

Fotos: Leandro Uchoas

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culturade 28 de abril a 4 de maio de 20118

Leda Maria Paulani

NO PREFÁCIO da segunda edição de O Capital, que escreve em 1873, Marx de-creta a sentença de morte da economia científi ca burguesa. Para ele, àquelas al-turas, com a burguesia tendo conquis-tado o poder político na Inglaterra e na França e tendo já sido revelada a nature-za da luta de classes que moveria aque-le quadrante da história humana, não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo. Na sua forma fe-rina de falar, ele diz que no lugar da pes-quisa desinteressada entrara a soldades-ca mercenária, no lugar da pesquisa cien-tífi ca imparcial entrara a má consciência e a má intenção da apologética. Marx desconhecia então a chamada “revolu-ção marginalista”, que já estava baten-do à porta, e que desbancaria completa-mente a velha economia política de Smi-th e Ricardo, mas não poderia ter sido mais certeiro.

Inside Job, o documentário de Char-les Ferguson que pretende mostrar co-mo foi possível o mergulho da econo-mia mundial na abissal crise do fi nal de 2008, indica de modo contundente o ca-ráter superlativo desse prognóstico, em tempos de capitalismo fi nanceirizado. A dança das cadeiras dos protagonistas dessa história entre os mais altos cargos do governo, o comando de grandes gru-pos fi nanceiros e as cátedras dos cur-sos de economia e negócios de renoma-das universidades dá a tônica da narra-tiva e é um dos pontos altos do fi lme. A desfaçatez dos economistas professores, ao afi rmarem sem pejo que não há con-fl ito entre seu papel de pesquisadores e elaboradores de “trabalhos científi cos” e os interesses concretos que devem de-fender como consultores, assessores ou CEOs (executivos-chefes) de grandes corporações, só encontra paralelo na impudência com que as agências de ra-ting classifi cam com o famoso “triplo A” instituições a um passo da falência total, bancos e seguradoras já em processo de resgate pelo governo e investimentos ta-chados de lixo, nas conversas reserva-das dos próprios fi nancistas.

“No contexto do mercado”A soldadesca mercenária a que se refe-

re Marx é capturada pelo fi lme em ple-na ação, demonstrando “cientifi camen-te” o caráter estabilizador dos mercados de derivativos, execrando, com base em fundamentos teóricos seguros, qualquer tipo de regulação e explicando, a estupe-fatos senadores de uma comissão de in-vestigação do início de 2010, que, “no contexto do mercado”, não há nada de mais em recomendar a clientes a compra de um ativo fi nanceiro que, pelas costas, a própria instituição se encarrega de des-truir, pois ele foi desenhado para dar tan-to mais lucro a seus idealizadores quan-to maiores sejam as perdas dos incau-tos que os adquirem. Talvez não exista

Trabalho interno

exemplo mais bem acabado da má cons-ciência e da má intenção da apologéti-ca que Marx vaticinara em substituição à falsa consciência da economia política dos bons tempos. Encarado por este ân-gulo, o fi lme é, sem dúvida, extremamen-te bem sucedido. Mas é também aí que se podem perceber seus limites.

Ao temperar com justa indignação mo-ral a sequência de eventos e de persona-gens que apresenta, combinando, sem-pre que possível, esse tipo de pecado com delitos de outra natureza, como as desmedidas quantidades de cocaína sa-bidamente consumidas pelos tipos de Wall Street e a recorrente utilização, pe-las mesmas fi guras, dos serviços de agen-ciamento de prostitutas de alto luxo, In-side Job tende a mostrar como anorma-lidade e aleijão aquilo que singelamente o executivo da Goldman & Sachs mos-tra ao parlamentar da alta corte america-na como sendo normal “no contexto do mercado”. O próprio fi lme, por sinal, in-dica que muitas vezes é muito tênue, pa-ra não dizer inexistente, a linha que se-para a especulação ofi cialmente permiti-da das transações fi nanceiras e a crimi-nalidade pura e simples, como a lavagem de dinheiro do tráfi co de drogas ou o au-xílio qualifi cado a clientes que desejam burlar o fi sco.

Milagre da multiplicaçãoA clivagem normal/anormal, mal re-

solvida no fi lme, é, contudo, atravessa-da por uma outra, igualmente interes-sante, e pouco explorada por ele: assu-mindo-se plenamente como documen-tário, Inside Job passa batido pela ques-tão, formalmente instigante do pon-to de vista da obra cinematográfi ca em si, sobre como um instrumento dese-nhado para produzir fi cção pode fabri-car um fi lme “verdadeiro” a respeito de uma realidade materialmente comanda-da pela própria fi cção.

O tipo de reprodução capitalista que escancara de vez o espaço para a ação da soldadesca mercenária é aquele no qual o andamento da acumulação é pre-sidido pelo que Marx chama de capi-tal portador de juros (capital fi nancei-ro), o qual possui a propriedade de pa-recer milagrosamente produzir valor por si mesmo, “assim como a pereira dá peras”. “Fazendo amor consigo mes-mo” (essa é outra das formas brincalho-nas de Marx ao tratar do objeto), o di-nheiro que é lançado na circulação co-mo capital, ou seja, como coisa que se compra e se vende por sua suposta pro-priedade de se automultiplicar, enseja todo tipo de “formas aloucadas” e fi ctí-cias, da dívida pública ao título de crédi-

to, da ação convencional aos derivativos de todo tipo, dos CDOs (collatered de-bt oligations) aos CDSs (credit default swaps), ativos, estes últimos, sobre os quais George Soros — a velha raposa do mercado fi nanceiro mundial, forte o su-fi ciente para, sozinho, ter quebrado a li-bra inglesa em 1992 — afi rma, no fi lme, não ter conhecimento, por pertencer “à velha guarda”.

O fi lme aborda indiretamente a ques-tão do caráter fi ctício desses capitais que se autorreproduzem, mas a man-tém nos estreitos limites da discussão sobre a formação de bolhas de ativos, que surge naturalmente, sempre que se trata da temática dos mercados de ca-pitais. Assim como no caso das transa-ções fi nanceiras moralmente condená-veis, as bolhas de ativos aparecem co-mo anormalidades, fi guras que escapam da régua e do compasso da boa socieda-de de mercado, defi ciência que pode evi-dentemente ser sanada, desde que o Es-tado disponha dos apetrechos necessá-rios, não seja dominado pelos lobbys fi -nancistas e ponha na cadeia aqueles que maculam o direito à liberdade econômi-ca. O fi lme dá assim pouco espaço pa-ra que se perceba que, no capitalismo de hoje, longe de exceção, a formação de bolhas é processo recorrente e absolu-tamente normal. Com exceção dos pre-cipícios nos quais esse arranjo natural-mente instável de quando em quando despenca, momentos em que todos per-

dem até que o Estado venha em socor-ro, é a formação de bolhas e seu esvazia-mento (que pode ou não ser barulhento) que permite “realizar”, para os espertos do momento, a valorização fi ctícia des-ses capitais fi ctícios.

“Maracutaia” e limitaçõesOs limites do fi lme, portanto, como já

deve ter presumido o leitor, encontram-se no plano ideológico: o diretor esgri-ma seus princípios liberais e sua fé nacapacidade de a sociedade de mercado levar a humanidade ao estágio de “fi mda história” (que teria sido alcançadopela paradigmática Islândia pré-refor-mas desreguladoras que abre o fi lme), contra a loucura neoliberal da falta de regras, da especulação desenfreada eda ganância dos fi nancistas. Um pouco mais de Estado, correntes de ferro pa-ra domar a ferocidade da fi nança (vista quase como inimiga do capital) e bons princípios morais devem resolver o pro-blema e fazer a América voltar a se or-gulhar da Estátua da Liberdade que ga-nha a tela na cena fi nal. Quem sabe até não coloca os professores de economia em seu devido lugar e, mais ainda, dota-os de consciência crítica quanto ao “sa-ber” que professam.

Ironias à parte, por mais que Inside Job (Trabalho Interno) - para cuja tra-dução cultural, pelas insinuações da ex-pressão, já se sugeriu nossa famosa Ma-racutaia - por mais que desperte, enfi m, nossas simpatias e por mais que seja efi -ciente em fazer afl orar no cidadão co-mum a necessária indignação, é limita-do no conteúdo e na forma. No conte-údo porque dá pouca margem para que se perceba que o capital portador de ju-ros não é uma excrescência da socieda-de de mercado, mas seu resultado na-tural, e para que se perceba igualmen-te quão promíscua é a relação não só en-tre professores de economia e seus pos-tos no setor público e privado, mas prin-cipalmente entre o paradigma de ciên-cia econômica que hoje se impõe comviolência nas instituições acadêmicase o apoio intelectual que ele confere aodomínio exercido pela fi nança. Na for-ma, porque o corte reto e clássico do do-cumentário no estilo “é tudo verdade”, praticamente dividindo o fi lme entre bons e maus, entre os que avisaram da catástrofe e os que continuaram a pro-duzir lixo tóxico, entre os que perderamempregos e bônus milionários, mas seretiraram da esbórnia, e os que continu-aram a fraudar e trapacear, não só nãocredita ao sistema enquanto tal qual-quer problema ou defeito, como gira emfalso frente a uma realidade que está ho-je, mais do que nunca, longe de ser sim-ples, linear e binária. Uma narrativa jo-cosa, que completasse as voltas dos pa-rafusos, intervertendo verdades e men-tiras, talvez fosse mais efetiva.

Leda Maria Paulani é professora titular do Departamento de Economia da FEA/USP

OPINIÃO Vencedor do Oscar de melhor documentário de longa-metragem deste ano, o fi lme não explicita que a formação de bolhas é processo recorrente e normal no capitalismo atual

Muitas vezes é muito tênue, para não dizer inexistente, a linha que separa a especulação ofi cialmente permitida das transações fi nanceiras e a criminalidade pura e simples

O fi lme aborda indiretamente a questão do caráter fi ctício desses capitais que se autorreproduzem, mas a mantém nos estreitos limites da discussão sobre a formação de bolhas de ativos, que surge naturalmente, sempre que se trata da temática dos mercados de capitais

Por mais que desperte, enfi m, nossas simpatias e por mais que seja efi ciente em fazer afl orar no cidadão comum a necessária indignação, é limitado no conteúdo e na forma

Como no caso das transações fi nanceiras moralmente condenáveis, as bolhas de ativos aparecem como anormalidades, fi guras que escapam da régua e do compasso da boa sociedade de mercado

Talvez não exista exemplo mais bem acabado da má consciência e da má intenção da apologética que Marx vaticinara em substituição à falsa consciência da economia política dos bons tempos

A dança das cadeiras dos protagonistas dá a tônica da narrativa e é um dos pontos altos do fi lme

Cartaz do fi lme Inside Job, do cineasta estadunidense Charles Ferguson

Reprodução

Reprodução

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de 28 de abril a 4 de maio de 2011 9américa latina

Eduardo Sales de Limada Redação

CUBA CELEBRAVA, há 50 anos, a vitó-ria sobre a invasão anticastrista da Praia Girón, ocorrida em 16 de abril de 1961. De lá pra cá, após meio século de avan-ços sociais e organizativos, e sobretudo de resistência frente ao império estadu-nidense, é chegada a hora do socialismo ser “atualizado” no país; isso segundo os próprios cubanos. E principalmente sob o ponto de vista econômico.

Entre os dias 16 e 19 de abril, após me-ses de massiva participação popular nos apontamentos para as reformas, ocor-reu o 6º Congresso do Partido Comunis-ta Cubano (PCC). De acordo com o his-toriador Luiz Bernardo Pericás, ocorre-ram cerca de 163 mil reuniões no país nos últimos cinco meses e mais de dois terços das diretrizes foram modifi cadas antes da redação fi nal apresentada para os cerca de mil delegados no evento.

O Congresso elegeu o novo Comi-tê Central, com 115 integrantes, e Raúl Castro como seu chefe máximo. Aprovou um programa de 313 medidas para “atu-alizar” o modelo econômico cubano.

Para Frei Betto, um dos principais es-pecialistas em Cuba no Brasil, as mu-danças mais importantes apontadas no Congresso se referem ao aceno positi-vo de Raúl Castro para estabelecimen-to de um prazo para exercício de man-dato (5 anos) e a permissão de apenas uma reeleição.

As resoluções indicaram que a refor-ma econômica primará por um planeja-mento econômico diferenciado, em que modalidades de investimento estrangei-ro, de cooperativas, de apoio a peque-nos agricultores e trabalhadores autô-nomos serão implementadas. No geral, as reformas preveem o fechamento de 500 mil empregos públicos e a conces-são de mais autonomia às empresas es-tatais (públicas).

Trata-se de uma resposta ao que se transformou o sistema econômico cuba-no nos últimos anos, como informou o escritor cubano Félix Contreras, na edi-ção 412 do Brasil de Fato. “A econo-mia cubana tem sido tratada mais co-mo um veículo de domínio político do que um processo de produção e distri-buição, esquecendo uma das principais leis do socialismo: de cada qual segun-do sua capacidade, e a cada qual segun-do sua necessidade”, apontou.

Das novidades que mais chamaram atenção, está a aprovação de compra e venda de imóveis entre particulares. Grande parte dos cubanos têm a pro-priedade formal de sua moradia, mas não podem vendê-la ou comprar outras casas e apartamentos. As mudanças de residência só acontecem sob a forma da permuta, o que gerou a prática de cor-rupção de funcionários públicos devido à existência de um mercado imobiliário paralelo.

Restauração? Entretanto, para o historiador mar-

xista Valério Arcary - não tão otimis-ta - o aceno relativamentre positivo da grande imprensa nacional e internacio-nal às reformas econômicas ratifi cadas no 6º Congresso do Partido Comunista Cubano foi sintomático. “A essência do processo em Cuba caminha para a expe-riência vietnamita, que signifi ca a res-tauração do capitalismo, uma espécie de capitalismo de Estado”, defende.

O dilema fundamental para ele é sa-ber qual a reação do povo cubano a es-sas medidas que “caminham na direção do capitalismo”. “Sobre isso, a história deu uma resposta amarga para o pensa-mento socialista. O processo da contrar-revolução, tanto na antiga União Sovi-ética, como na China e no Vietnã, mos-

O futuro aos cubanos pertenceCAMINHOS DA REVOLUÇÃO 6º Congresso do PCC ratifi ca “atualização” do socialismo. Há quem fale, porém, em abertura capitalista

trou como foram permitidas a acumula-ção de capital ilimitada e a fl exibilização dos direitos trabalhistas nesses países. Há consequências sociais para esse tipo de abertura”, conclui Arcary.

Porém, sua percepção sobre o ocaso do socialismo cubano não chega a ser irredutível. Ele destaca uma caracte-rística do povo cubano que pode fazer toda a diferença em relação a um futu-ro socialista, ou não. “O grau de escola-ridade dos cubanos é muito maior com-parado ao das populações do Vietnã e da China, repleto de massas de campo-neses semianalfabetas à época de suas ‘aberturas’ ao capitalismo”, pondera.

Dessa forma, ao mesmo tempo em que o capital internacional poderá be-nefi ciar-se de uma altíssima produtivi-dade do trabalho justamente pela al-ta escolaridade da população e por su-as conquistas sociais, um regime seme-lhante ao de trabalho semiescravo exis-tente no Vietnã e na China difi cilmen-

te sucederá, segundo a visão de Arca-ry. “Além disso, não será tão simples convencer os cubanos que eles têm de trabalhar para empresas estrangeiras, mesmo por salários mais altos. No fi nal das contas, não há uma resposta histó-rica para isso [atualização do socialis-mo]”, aponta Arcary.

Para Frei Betto, a resposta mais níti-da só virá com o tempo. De acordo com ele, os cubanos têm a consciência de

não quererem reproduzir nem o mo-delo vietnamita, nem o chinês, e mui-to menos voltar ao capitalismo. “Estãotentando perfazer seu caminho pró-prio, tomar suas medidas e agora elasserão implementadas e eu tenho a im-pressão que somente dentro de dois atrês anos é que a gente vai poder teruma avaliação melhor. Se deu ou nãoresultado”, pondera.

Diferentemente do que pensa Arca-ry, Frei Betto enxerga que concessõescomo a instauração de empregos au-tônomos privados e o incentivo a ini-ciativas pessoais e associativas não de-vem ser interpretados como abertura àiniciativa privada aos moldes dos paí-ses capitalistas. Para ele, trata-se sim-plesmente de cortar o vício paternalistae favorecer com que as pessoas possamgerar a sua própria renda, sobretudo apartir de iniciativas individuais, mas,sobretudo, associativas. Também paraele, o futuro aos cubanos pertence.

da Redação

“A nova geração é chamada a retifi car e mudar sem vacilações tudo o que de-ve ser retifi cado e mudado, e seguir de-monstrando que o socialismo é também a arte de realizar o impossível”. A fra-se é de Fidel Castro, em artigo publica-do no jornal argentino Página 12. Ele re-fere-se principalmente à nova composi-ção do Comitê Central (CC) eleito pelos cerca de1 mil delegados do 6º Congres-so do Partido Comunista Cubano (PCC), ocorrido entre os dias 16 e 19 de abril em Havana.

Para o historiador Luiz Bernardo Pe-ricás, ocorreram mudanças perceptíveis dentro das instâncias máximas de poder. Segundo ele, dos 115 integrantes do no-vo CC, 48 são mulheres, ou 41, 7% do to-tal. “Mais do que triplicou o número an-terior”, atesta.

Entre negros e mestiços, o número chega a 36, ou 31,3% do total. “Equiva-lente a 10% a mais que antes; isso por si só já é algo representativo”, reforça.

CritériosTal diversidade presente no novo CC

não blinda o PCC de críticas. A falta de renovação nos altos cargos decisórios, sobretudo após a nomeação de José Ra-món Ventura Machado, de 80 anos, pa-ra o cargo de segundo secretário do PCC, causou polêmica. A partir de agora ele é o sucessor de Raúl Castro na hierarquia de poder em Cuba.

Machado combateu ao lado de Fidel, Raúl e Che Guevara e contribuiu para a queda do ditador Fulgêncio Batista, em 1959. Ele é integrante do Escritório Po-lítico do PCC ( responsável pelas deci-sões executivas) desde a fundação do partido, em 1962.

Frei Betto explica que esse é possivel-mente o último Congresso que a gera-ção histórica de Sierra Maestra parti-cipa, da qual Machado é um dos pou-cos vivos.

Pericás também defende a opção do “velho” Ramón Machado. “A escolha dele era lógica, não há nenhum proble-ma nisto, mostra certa continuidade, já que ele está afi nado com o governo re-volucionário e é um elemento históri-co no processo revolucionário cubano”, defende Luis Bernardo Pericás.

Para os desavisados, um parâme-tro para assumir altos postos do Es-tado cubano poderia ser o da “experi-ência”. Valério Arcary ironiza no deba-te: “A gerontocracia é um mau critério. Mas a gerontofobia também é um mau critério tanto quanto a tirania dos ido-sos”. Arcary lembra qual deveria ser, de fato, o parâmetro que serviria pa-ra barrar ou manter quadros políticos em partidos comunistas. “Em seu úl-timo Congresso, o Partido Comunista Chinês elegeu dois membros para seu Conselho que são milionários. Se uma organização pretende lutar pelo socia-

lismo é um bom critério não colocar nasua direção milionários”, satiriza.

DinâmicoApesar do excesso de “experiência”,

Cuba parece caminhar cada vez mais para a diversidade etária, mesmo com a velha guarda ainda bastante presen-te nas altas instâncias decisórias do par-tido. Políticos que têm entre 40 e 60 anos também ocupam funções-chaves do PCC. Entre os nomes, destacam-se o vice-presidente Marino Murillo, princi-pal operador da reforma, e o ministro de Educação Superior, Miguel Díaz-Canel.

“Há uma geração que continua ad-ministrando o país; só não é conhe-cida porque não ocupa os espaços demaior destaque e portanto não são fo-cados pela mídia, mas já existe”, com-pleta Frei Betto.

O atual quadro dirigente do partido é temporário. Em janeiro de 2012, a Con-venção Nacional do partido vai escolher um novo Comitê Central, que por sua vez escolherá entre os integrantes um novo Escritório Político.

“Este é um processo vivo, dinâmico e contínuo. Mostra que os dirigentes estão em sintonia com a população, oxigenan-do a economia, dando oportunidades de participação nas discussões, dando agi-lidade às instâncias partidárias e crian-do mecanismos para garantir a aplicação das decisões”, defende Pericás. (ESL)

Desafi os para a nova e a velha guardaJosé Ramón Ventura Machado, de 80 anos, foi escolhido para o cargo de segundo secretário do PCC

Ocorreram cerca de 163 mil reuniões no país nos últimos meses e mais de dois terços das diretrizes foram modifi cadas antes da redação fi nal apresentada para mil delegados no evento

Dos 115 integrantes do novo Comitê Central, 48 são mulheres, ou 41, 7% do total. Mais do que o triplo do número anterior

“A gerontocracia é um mau critério. Mas a gerontofobia também é um mau critério tanto quanto a tirania dos idosos”

“A essência do processo em Cuba caminha para a experiência vietnamita, que signifi ca a restauração do capitalismo, uma espécie de capitalismo de Estado”

Das novidades que mais chamaram atenção, está a aprovação de compra e venda de imóveis entre particulares. A prática era proibida e gerava um mercado paralelo

Cerca de mil delegados do PCC se reuniram em Havana, entre os dias 16 e 19 de abril, para o 6º congresso do partido

www.cubadebate.cu

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áfricade 28 de abril a 4 de maio de 201110

Igor Ojeda eTatiana Merlino

de 27 de Febrero, Smara (Saara Ocidental) e Madri (Espanha)

QUASE TODOS os dias, Dajna é a pri-meira a se levantar. Antes do restante de sua família acordar, lava a louça do dia anterior e prepara o pão para o café da manhã. Durante o dia, cuida dos afa-zeres domésticos em geral. Lava a rou-pa, faz o almoço, o jantar. Muitas vezes, conta com a ajuda da fi lha e da cunha-da, mas é ela a dona da casa, quem dá a ordem fi nal. Por recomendação médi-ca, para enfrentar a diabete de que so-fre, diariamente sai para caminhar. Du-as ou três vezes por semana, trabalha na ofi cina de tear de sua comunidade, con-feccionando bolsas, tapetes e panos pa-ra vender.

Essa senhora de 50 anos já casou du-as vezes e teve cinco fi lhos. Viúva do primeiro marido, divorciada do segun-do, foi obrigada a criar a prole sozinha. Além disso, se “provocada”, emite opini-ões fi rmes sobre as mais variadas ques-tões, nacionais ou internacionais. Daj-na Laman Merhi é um bom exemplo de mulher saaraui, como é chamado o na-tural do Saara Ocidental, país do noro-este da África ocupado há 35 anos pe-lo vizinho Marrocos (leia mais detalhes sobre a ocupação nas edições anterio-res do Brasil de Fato).

Dajna não vive, no entanto, sob a ocu-pação. Em 1975, quando a monarquia marroquina enviou 350 mil soldados para invadir o território saaraui, prestes a ser deixado pela Espanha, a então co-lonizadora, ela e alguns parentes – jun-tamente com cerca de 150 mil conter-râneos – fugiram pelo meio do deserto do Saara e se instalaram no sudoeste da Argélia, onde, nos arredores da cidade de Tindouf, foram erguidos cinco cam-pos de refugiados, que existem até ho-je. Dajna vive, com três de seus fi lhos – os dois mais velhos moram no exterior – no campo 27 de Febrero, que, original-mente, era uma escola de mulheres.

Como milhares de outras saarauis, ela foi uma das responsáveis, ao longo de mais de uma década, pela construção de um país no exílio, já que a maioria dos homens estava na guerra, que durou até 1991. Saúde, educação, água, alimenta-ção, toda a administração dos campos de refugiados fi cou a cargo das mulhe-res, que, ainda hoje, mantêm uma im-portante participação na sociedade e na política saaraui.

“Exemplo de emancipação”“Dentro do estereótipo que o Ociden-

te faz do mundo islâmico e árabe, somos um exemplo de emancipação, pois vie-mos de um povo em que a mulher sem-pre foi considerada e respeitada”, explica Zahra Ramdán Ahmed, fundadora e pre-sidenta da Associação de Mulheres Saa-rauis na Espanha.

Os saarauis são originários de uma so-ciedade beduína e nômade. Nela, en-quanto os homens se ocupavam de tocar o gado, caçar e pescar, eram as mulheres

Árabes, muçulmanas e emancipadasSAARA OCIDENTAL Na última parte da série de reportagens sobre o país ocupado pelo Marrocos há 35 anos, o Brasil de Fato relata a participação feminina na sociedade e na luta pela independência e os interesses das potências por trás do apoio à monarquia marroquina

que administravam a economia domésti-ca, no sentido mais político do termo. E a religião nunca foi um impeditivo a essa atuação ativa.

“A religião tem muito a ver com a cul-tura. A sociedade saaraui e mauritana possuem uma cultura muito aberta, to-lerante, e tem sua forma de praticar o islã. Quando o estudamos, podemos ver muitas coisas interessantes, como uma igualdade real de gênero. A religião nun-ca nos impediu de fazer nada do que que-remos”, explica Fatma Mehdi, secretária-geral da União Nacional de Mulheres Sa-arauis (UNMS).

A mulher saaraui é sempre ouvida. Po-de se divorciar e se casar quantas vezes desejar. Tem o direito de trabalhar, via-jar, divertir-se. E não é obrigada a cobrir todo o corpo, embora muitas vezes o faça por questões culturais e religiosas.

“A sociedade beduína é aberta, onde todos vivem e trabalham juntos, sempre com respeito à mulher. Não há violência doméstica. Ela tem sua opinião e partici-pação. É uma característica da nossa so-ciedade de origem, mas de uma maneira espontânea, tradicional”, esclarece Kha-dija Hamdi, ministra da Cultura da Re-pública Árabe Saaraui Democrática, a Rasd, o governo saaraui no exílio.

Todas concordam, porém, que a di-visão de “tarefas” na realidade da guer-ra ajudou para que essa participação al-cançasse o nível da política, pois o papel de administradoras dos campos de refu-giados fez com que as mulheres demons-trassem sua capacidade na área. “Não creio que existiam mulheres nos con-selhos que havia na organização antiga, mas, graças à Frente Polisario, elas pas-

saram a ter maior participação política”, opina Fatma.

Educação e votoA Frente Polisario (Frente Popular de

Libertação de Saguia El Hamra e Río del Oro) é, desde 1973, o movimento que re-úne os independentistas saarauis e espé-cie de partido único que governa a Rasd até que se conquiste a independência. Embora sua direção ainda seja formada majoritariamente por homens, seu tra-balho pelo empoderamento das mulhe-res é reconhecido por elas.

“A Frente Polisario fez esforços para que nossas mulheres se preparassem in-telectualmente e profi ssionalmente pa-ra que pudessem reivindicar seus direi-tos como pessoas. Esse protagonismo se consolidou, sobretudo, com a educação. No começo dos campos de refugiados, em 1975, 70% das mulheres não sabiam ler nem escrever. Foram realizadas cam-panhas de alfabetização para as mulhe-res e erradicamos o analfabetismo”, con-ta Zahra Randám.

No entanto, ela faz a ressalva de que ainda há muito o que avançar. “É preci-

so não apenas libertar o Saara Ocidental, mas fazer com que as mulheres estejam nos lugares de tomada de decisões”. Ho-je, há apenas duas mulheres nos ministé-rios e elas ainda não atingiram a metade do número de cargos eletivos.

“No Parlamento, somos 34%. Nos ní-veis de gestão das whilayas [províncias] e dairas [municípios], representamos 24%. Nos conselhos locais [câmeras de vereadores], compostos por 12 pesso-as, 11 são mulheres, mas o prefeito é um homem. E são elas que o elegem”, expli-ca Fatma.

Segundo ela, muitas mulheres ainda não valorizam o direito ao voto ou votam em candidatos homens. É o preço a ser pago pelo “feminismo” de algumas ações do governo saaraui. “Quando você con-quista algo sem haver lutado, você não o valoriza devidamente. A Frente Polisa-rio, desde o princípio, estava mais cons-ciente e propôs essas políticas. As mulhe-res não lutaram para conseguir o direi-to ao voto e a consequência é que muitas não se interessam pela política e acham que sempre vão ter esse direito”, alerta a secretária-geral da UNMS.

ApatiaEstamos na sede da organização, loca-

lizada no campo de refugiados 27 de Fe-brero. Depois da conversa, Fatma nos le-va para conhecer o espaço. Ela explica o que funciona em cada cômodo: curso de espanhol, de computação, aulas de pintu-ra etc., além de uma pequena quadra po-liesportiva. Nas paredes da casa, diversas frases feministas. “O trabalho na jaima também é de homens. Todos a comparti-lhar o trabalho!”, diz uma delas.

Enorme tenda de pano verde susten-tada por dois grossos e altos bambus, a jaima é onde ocorre a sociabilidade saa-raui. Principalmente nos campos de re-fugiados no sudoeste da Argélia, onde quase não há empregos e onde se espera por uma solução ao confl ito com o Mar-rocos, é na jaima que a vida acontece. Embora todos passem boa parte do dia nela, são as mulheres suas maiores fre-quentadoras: é onde costuram, veem te-levisão, conversam, tomam o tradicional chá verde.

“Estar nas jaimas o tempo todo é mor-rer, pois não há nada para fazer lá. É uma pena deixar que as jovens fi quem o dia inteiro tomando chá, sem aprender na-da”, lamenta Fatma, relacionando es-sa realidade com a falta de consciência e participação política de muitas delas.

“Há, também, outro obstáculo, que é o cansaço. Como os homens estavam na guerra, e muitos morreram nela, as mu-lheres fi caram sozinhas como chefes de família numerosas. Aqui, costuma-se di-zer que, se uma mulher tem fi lhos, é mui-to difícil que tenha papel político. Além disso, há também a situação econômica, porque estamos falando de uma socieda-de que depende totalmente das ajudas internacionais”, acrescenta.

EmbranquecimentoQuando estão na jaima, as mulheres

saarauis se enrolam, por cima da rou-pa, com um grande pano chamado mel-fa. Especialmente na presença de algum homem que não seja da família, apenas o rosto e as mãos fi cam de fora. Quando saem às ruas, em geral vestem luvas e co-brem o rosto com outro pano. Nesse ca-so, contam elas, a questão não é apenas cultural ou religiosa, mas de estética. Pa-ra as saarauis, o bonito é ter a pele mais clara, distinta à da cor mais curtida ca-racterística dos povos árabes de maneira geral. Por isso, fazem o possível para se protegerem dos raios do forte sol do de-serto do Saara.

O desejo de copiar o padrão de beleza ocidental – muito por causa do apelo mi-diático, já que quase todas as casas dos campos de refugiados têm parabólicas – no entanto, traz problemas. Fatma con-ta que, muitas vezes, as saarauis usam cremes para embranquecer a pele pro-venientes da Mauritânia e do Senegal, que não possuem controle de qualidade e que, segundo ela, causam câncer.

Toda a administração dos campos de refugiados fi cou a cargo das mulheres, que, ainda hoje, mantêm uma importante participação na sociedade e na política saaraui

“A religião tem muito a ver com a cultura. A sociedade saaraui e mauritana possuem uma cultura muito aberta, tolerante, e tem sua forma de praticar o islã”

Muitas mulheres ainda não valorizam o direito ao voto ou votam em candidatos homens. É o preço a ser pago pelo “feminismo” de algumas ações do governo saaraui

“Estar nas jaimas [tendas] o tempo todo é morrer, pois não há nada para fazer lá. É uma pena deixar que as jovens fi quem o dia inteiro tomando chá, sem aprender nada”

Para as saarauis, o bonito é ter a pele mais clara, distinta à da cor mais curtida característica dos povos árabes de maneira geral

Dajna no tear: a vida a obrigou a criar os cinco fi lhos sozinha

Igor Ojeda

Tatiana Merlino

Ahjab escolhe lentilha dentro da jaima, a tenda saaraui

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áfrica de 28 de abril a 4 de maio de 2011 11

Igor Ojeda eTatiana Merlino

de Rabouni (Saara Ocidental)e Madri (Espanha)

Até a Organização das Nações Unidas re-conhece: o Saara Ocidental, ocupado pe-lo Marrocos há 35 anos, é a última colô-nia da África. Ofi cialmente, o país é con-siderado, pelo Comitê de Descolonização do organismo, um “território não autô-nomo” ainda por descolonizar.

No entanto, a atuação da ONU no con-fl ito é duramente criticada pelos saa-rauis, que a acusam de indiretamente apoiar a monarquia marroquina.

Em 1975, no mesmo ano em que o exército do Marrocos invadiu o Saara Ocidental, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia já havia negado a sobe-rania do reino norte-africano sobre o ter-ritório invadido. Mesmo assim, o supor-te das potências ocidentais ao rei marro-quino Mohamed VI e a omissão das Na-ções Unidas permanecem até hoje.

A guerra entre o Marrocos e a Frente Polisario – movimento independentis-ta saaraui –, iniciada em 1975, durou até 1991, período em que vigorava a Guer-ra Fria. “Na ocasião, o Marrocos era um país satélite do Ocidente. Ali estavam as bases militares francesas e estaduniden-ses. Por outro lado, a Argélia, apoiadora da Frente Polisario, era vista como pró-soviética”, analisa Bucharaya Beyun, de-legado saaraui na Espanha.

PescaCom a queda do bloco soviético e o

cessar-fogo mediado pela ONU, os inte-resses econômicos passaram ao primei-ro plano. “A zona mais rica do Saara, a região costeira, está ocupada pelo Mar-rocos. A parte liberada é muito desérti-ca”, explica Zahra Ramdán Ahmed, pre-sidenta da Associação de Mulheres Saa-rauis na Espanha.

O Saara Ocidental, banhado pelo oce-ano Atlântico, possui uma das zonas de pesca mais ricas do planeta. São mais de 150 km² habitados por cerca de 200 es-pécies de peixes, 60 de moluscos e várias de cefalópodes e crustáceos.

Em fevereiro, a União Europeia (UE) e o Marrocos renovaram por mais um ano um acordo pesqueiro, vigente des-de 2007, que garante à frota europeia 119 licenças de pesca – a maioria delas, na costa saaraui. Cem delas são somente para os pesqueiros espanhóis.

Desde que saiu do território saa-raui e o entregou ao Marrocos, a Espa-nha, independentemente de quem este-ja no governo, alinha-se ao Marrocos na questão do Saara Ocidental. “Na verda-de, os espanhóis estão divididos. De um lado, um governo que sempre privilegia suas relações com o Marrocos, temen-do que o país norte-africano tire deles Ceuta e Melilla [enclaves em solo mar-roquino]. E o povo espanhol se alinhou de uma forma majoritária com os saa-rauis”, conta Abdelkader Taleb Aomar, primeiro-ministro da República Árabe Saaraui Democrática (Rasd), o governo saaraui no exílio.

FosfatoO território ocupado, além disso, é

muito rico em fosfato, componente fun-damental na fabricação de fertilizan-tes. Juntos, o Marrocos e o Saara Oci-dental possuem 32% das reservas mun-diais do minério. Responsável por apro-ximadamente 30% do mercado, a mo-narquia marroquina é o maior exporta-dor de fosfato, fornecendo-o, principal-mente, para Estados Unidos, Brasil, Es-panha e França.

“O fosfato, hoje [fevereiro], está cus-tando mais de 400 dólares por tonelada. O preço vem aumentando por causa do crescimento dos cultivos para biocom-bustíveis. Então, vende-se muito fosfato para esse cultivo no Brasil, na Malásia... e sabemos que grande parte desse fosfato é nossa. E há empresas desses países que compram fosfato do Marrocos”, esclare-ce Bucharaya.

Em março, o Wikileaks revelou o con-teúdo de um telegrama da embaixada dos EUA no Marrocos que dizia que, durante uma visita ao país, em 2007, o presidente francês Nicolas Sarkozy fi rmou acordos de 3 bilhões de euros com a Companhia Nacional de Fosfatos Marroquina (OCP), a estatal do setor. Segundo a diplomacia estadunidense, em troca, a França deve-ria reforçar o seu apoio à monarquia no caso do Saara Ocidental.

Um dos cinco membros permanen-tes do Conselho de Segurança da ONU, o país europeu regularmente exerce seu poder de veto para barrar qualquer reso-lução que contrarie o Marrocos.

Uma delas diz respeito à Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saa-ra Ocidental (Minurso), instalada no ter-ritório ocupado em 1991 com o objetivo de organizar uma consulta sobre a in-dependência do Saara Ocidental – um dos pontos previstos no acordo de ces-sar-fogo. Principalmente devido a obstá-culos impostos pelo Marrocos – que in-siste que os colonos marroquinos insta-lados no Saara Ocidental também votem – o referendo ainda não foi realizado. Pa-ra piorar, a Minurso não possui a compe-tência de observar a garantia dos direitos humanos, que, segundo os saarauis e or-ganizações internacionais como a Anistia Internacional, são constantemente viola-dos pela monarquia. No Conselho de Se-gurança da ONU, o assunto recebe a opo-sição ferrenha da França.

“As Nações Unidas não fazem o refe-rendo, não controlam os direitos huma-nos... Estão no território ocupado há 20 anos e não vêm cumprindo sua missão. O referendo não acontece, os direitos hu-manos são violados constantemente e os recursos naturais são espoliados regular-mente. Então, a ONU está se converten-do em um instrumento para legitimar a ocupação. É difícil que os saarauis conti-nuem aceitando essa situação. Portanto, há um risco grandíssimo de um retorno às hostilidades”, alerta Bucharaya.

Imigração e terrorismoOutras questões, como imigração, ter-

rorismo e narcotráfi co também são usa-dos como pretextos para o apoio ociden-tal ao Marrocos. O reino marroquino é considerado um dos aliados estratégicos das grandes potências no combate a cé-lulas da Al Qaeda no Magreb.

Além disso, o país, separado da Europa apenas pelo estreito de Gibraltar, cum-pre um importante papel – sob o ponto de vista europeu – de contenção dos fl u-xos imigratórios de africanos para o Ve-lho Mundo. Há cinco anos, a União Eu-

ropeia concedeu 67 milhões de euros ao Marrocos, a serem aplicados em políticas anti-imigração.

“O argumento do Conselho de Segu-rança da ONU para não pressionar o Marrocos o sufi ciente é de que ele é um país estratégico para a segurança euro-peia, que não pode ser desestabilizado. Ou seja, como a monarquia pôs todo seu peso e energia na questão do Saara, se ti-rarem o Saara dela, se desestabilizaria”, explica o primeiro-ministro.

Bucharaya Beyun, no entanto, diz não compreender os motivos de as potên-cias ocidentais, após a Guerra Fria, ain-da apoiarem incondicionalmente os inte-resses marroquinos. “Em primeiro lugar, o Marrocos não é uma potência econômi-ca. Já na Argélia há grandes reservas de petróleo e gás. Em segundo lugar, a Ar-gélia, hoje, é um país pró-ocidente. É o país que mais faz esforço para combater o terrorismo na região. Portanto, só po-dem ser interesses pessoais ou partidá-rios, mais do que de Estado”, opina.

Interesses brasileirosDesde 1984, a Rasd é membro da

União Africana, que a reconhece como o legítimo Estado do povo saaraui. No ano seguinte, em protesto contra tal de-cisão, o Marrocos deixou a organização. Além disso, ela é reconhecida, hoje, por 82 países, entre eles, África do Sul, Méxi-co, Venezuela, Cuba e Irã. O Brasil é um dos poucos países latino-americanos que não estão na lista. “Dizem que, para se reconhecer um Estado, é preciso o cum-

Os amigos do reiSAARA OCIDENTAL Com interesses econômicos e políticos, potências ocidentais ajudam a travar a independência saaraui

32%das reservas mundiais de

fosfato possuem, juntos, o Saara Ocidental e o Marrocos

afi rma que o rei Mohamed VI concen-tra em suas mãos grande parte do po-der. “É uma ditadura, um governo feu-dal. Mohamed VI é um dos reis mais ri-cos do terceiro mundo, enquanto o po-vo está na mais profunda miséria”, de-fende Zahra.

Para os saarauis, a instituição no Mar-rocos de um governo democrático ajuda-ria num eventual diálogo com a Frente Polisario. No entanto, para Bucharaya Beyun, delegado saaraui na Espanha, uma solução para o tema não pode de-pender das mudanças no país ocupan-te ou no restante do mundo árabe. “Não podemos esperar que o mundo árabe mude para buscarmos uma solução”.

Bucharaya é bastante cético quanto auma eventual queda da monarquia noMarrocos. “O regime marroquino estámuito bem assentado. O rei do Marro-cos é mais rico do que o Mubarak [dita-dor egípcio derrubado do cargo em fe-vereiro]. O povo marroquino é mais po-bre e analfabeto do que o egípcio. É umpovo que já está há muito tempo sub-metido, temeroso. Se não romperem abarreira do medo, é difícil que avan-cem”. (IO e TM)

Onda favorável?

“Na ocasião, o Marrocos era um país satélite do Ocidente. Ali estavam as bases militares francesas e estadunidenses”

Em fevereiro, a UE e o Marrocos renovaram por mais um ano um acordo pesqueiro que garante à frota europeia 119 licenças de pesca – a maioria delas, na costa saaraui

primento de três requisitos: um governo, um povo e um território. Nós temos os três”, diz o primeiro-ministro.

“Tínhamos muita esperança quando o presidente Lula subiu ao poder. Acredi-távamos que seria o momento em que o Brasil iria reconhecer a Rasd, sobretudo porque a Frente Polisario tinha muitas relações com o PT. Infelizmente, parece que privilegiaram os interesses econômi-cos com o Marrocos”, lamenta Zahra.

Dos 532,4 milhões de dólares que o Brasil importou do país norte-africano em 2007, 451,7 milhões foram de fertili-zantes. Há alguns anos, a Bunge, trans-nacional cuja divisão de fertilizantes é se-diada em território brasileiro e que tem, como atual presidente, o ex-ministro da Casa Civil de Fernando Henrique Car-doso, Pedro Parente, possui uma joint-venture com a empresa estatal de fosfa-to marroquina, a OCP, para a produção de fertilizantes.

O território ocupado, além disso, é muito rico em fosfato, componente fundamental na fabricação de fertilizantes

de Madri (Espanha)

Esperando há 20 anos por uma solu-ção pacífi ca ao confl ito com o Marrocos, os saarauis veem com muitos bons olhos a recente onda de revoltas no mundo árabe. A grande maioria dos países da região apoia a monarquia marroquina, por meio, principalmente, da Liga Ára-be, da qual a República Árabe Saaraui Democrática (Rasd) não é membro.

“O mundo ocidental fechou os olhos diante dessas ditaduras árabes, que são cúmplices das grandes violações de di-reitos humanos, sobretudo onde não havia justiça social nem democracia, pois está garantindo seu domínio e in-teresse econômico”, analisa Zahra Ra-mdán Ahmed, presidenta da Associação de Mulheres Saarauis na Espanha.

Apesar de, ofi cialmente, o regime marroquino ser uma monarquia consti-tucional – supostamente nos moldes da Grã-Bretanha e Espanha, por exemplo –, os saarauis a defi nem como uma “mo-narquia feudal”. A própria CIA, em seu World Factbook (espécie de banco de dados sobre todos os países do mundo),

“O argumento do Conselho de Segurança da ONU para não pressionar o Marrocos o sufi ciente é de que ele é um país estratégico para a segurança europeia”

A longa espera pela independência é, por vezes, quebrada por momentos de lazer, como o futebol

Família saaraui assiste ao desfi le militar em comemoração dos 35 anos da Rasd, reconhecida por 82 países

Fotos: Igor Ojeda

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internacionalde 28 de abril a 4 de maio de 201112

Franklin C. Spinney

“PEGAR A CAPA” é um termo consa-grado usado pelo Pentágono que sig-nifi ca atrair o oponente para sua solu-ção, especialmente quando esta não é do interesse dele. A analogia é o balan-ço da capa vermelha em frente do tou-ro. Enquanto o jogo psicológico do ofus-camento e ataque tem sido perfeito no Pentágono como um meio de ganhar as guerras orçamentárias nos Estados Uni-dos, as Forças Armadas estadunidenses têm tido muito menos sucesso em ven-cer seus adversários externos em um jo-go que remonta ao tempo de Sun Tzu. Por favor, considerem o que segue.

Na quinta-feira, 22 de abril, o secretá-rio de Defesa dos Estados Unidos, Ro-bert Gates, anunciou que o presiden-te Obama havia aprovado o início de ataques com drones – aviões não tri-pulados – na Líbia. O vice-presidente da Junta de Chefes do Estado Maior, o general James Cartwright, argumen-tou que os drones eram “singularmen-te adequados” para ataques em áreas urbanas porque, presumivelmente, eles podem voar mais baixo e ter uma me-lhor visão dos alvos do que os olhos dos pilotos em caças normais. Gate chegou a afi rmar que os ataques de drones seriam realizados por “razões humanitárias”.

Em outras palavras, alguém vendeu a Obama a ideia de “paquistanização” da guerra da Líbia, por meio da bus-ca de uma estratégia militar que con-te com ataques de drones para destruir um adversário que se esconde no terre-no. O chocante é que Obama pegou a ca-pa, apesar do fato de que, apenas 12 dias antes, uma reportagem no Los Angeles Times, de David Cloud, havia ilustrado uma vez mais o absurdo dos argumen-tos de Cartwright e Gate.

Efeitos psicológicosA matéria de Cloud é digna de um estu-

do meticuloso, pois está cheia de todo ti-po de ramifi cações ainda inexploradas – nenhuma delas boa. Utilizando-se de re-centes transcrições de conversas entre operadores de drones, David Cloud re-vela os sinistros efeitos psicológicos dos chamados bombardeios de precisão e guerra tecnológica nos seus participan-tes estadunidenses.

Os diálogos estéreis mostram vivida-mente como a ideia de uma guerra tec-nológica de precisão travada a partir de uma distância segura “dessensibiliza” nossos “guerreiros” em relação aos san-guinários efeitos físicos de suas ações na população que eles estão mutilando e matando e na propriedade que estão des-truindo. Não há valentia, honra militar ou espírito de autossacrifício nas ações dos operadores de drones abrigados em segurança em Creech AFB, em Nevada; eles são, simplesmente, peças da engre-nagem da máquina disfuncional de desu-manização. Essa disfunção é revelada pe-la completa ausência, em seus diálogos, de qualquer apreciação psicológica de seu “adversário”. Não há sequer indícios de um desejo de realizar tal apreciação. Vejam, por exemplo, o vazio no seguinte diálogo apresentado por Cloud:

Os afegãos abriam o que pareciam ser mantas e se ajoelhavam. “Eles estão re-zando”, disse o operador de câmera do Predator, sentado próximo ao piloto.

A essa altura, a equipe do Predator ti-nha certeza que os homens eram tale-bãs. “Defi nitivamente, é isso, essa é a força deles”, disse o cameraman. “Re-zando? Certamente, é o que eles estão fazendo”. “Eles farão algo abominável”, acrescentou o coordenador de inteligên-cia da equipe.

Conjunto de nódulosA falta de curiosidade sobre a mente

do inimigo contrasta radicalmente com a sutil apreciação psicológica que o Pen-

Paquistanizando a guerra da LíbiaOPINIÃO O avião de guerra não tripulado desconecta o assassino, sentado em seu centro de operações com ar-condicionado a milhares de quilômetros de distância do assassinado e das consequências de suas ações assassinas

tágono faz de seus adversários domésti-cos (no caso, o desafortunado presiden-te Obama, mas, também, seus anteces-sores, chegando até ao presidente Ken-nedy, assim como membros do Congres-so), que tem sido muito bem-sucedida em travar e ganhar as batalhas orçamen-tárias para extrair dinheiro do povo esta-dunidense.

No entanto, a extrema unilateralidade psicológica de nossa parte não é nada no-va em nossas operações militares. Tem sido uma característica central na guer-ra tecnológica estadunidense por mui-tos anos. De fato, a teoria de que o ad-versário é meramente um conjunto físico de alvos (um conjunto desumanizado de nódulos desprovido de qualquer destreza mental ou força moral) que pode ser der-rotado simplesmente pela identifi cação e destruição física desses nódulos é uma doutrina que vem evoluindo e se tornan-do mais extrema desde o desenvolvimen-to da doutrina do bombardeio “estratégi-co” de precisão à luz do dia pelo Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA nos anos de 1930.

Na Segunda Guerra Mundial, um con-junto de nódulos críticos foram as fábri-cas de armamentos; hoje, no Paquistão, os nódulos críticos são os alvos de lide-rança do Talebã e da Al Qaeda (claro, a história tem mostrado repetidamente que o inimigo é adaptável e que os cha-mados nódulos críticos podem ser re-confi gurados ou substituídos indefi nida-mente). Na Líbia, no entanto, talvez este-jamos chegando ao nível mais baixo.

Só Deus sabe quais são, além do as-sassinato de Kadafi , os nódulos críticos

no caso paradoxal dos ataques humani-tários. Na verdade, como Patrick Cock-burn tem mostrado, nós sequer sabe-mos quem são nossos aliados entre os líbios, e alguns deles podem muito bem ser ex-islâmicos antiestadunidenses. No entanto, uma vez mais, as presunções falaciosas da guerra tecnológica vêm fl orescendo.

Desconexão No centro da teoria da guerra tecno-

lógica está a ideia reconfortante de que o bombardeio de precisão (na Segunda Guerra Mundial, por meio da magia téc-nica do visor de bombardeio Norden e dos sistemas de bombardeio cego, co-mo o radar H2X) nos capacitaria a ata-car “alvos militares” em territórios hos-tis e, ao mesmo tempo, evitar a destrui-ção de vidas e propriedades civis.

Na verdade, muitos de seus proponen-tes argumentaram, absurdamente, que um bombardeio de precisão à luz do dia à Alemanha salvaria vidas ao dispensar a necessidade de uma invasão por ter-ra à Europa. O drone equipado com ar-mamento guiado de precisão apenas le-va essa mentalidade original a um no-vo nível de negligência, porque seu efei-

to na nossa psicologia desconecta o as-sassino, sentado em seu centro de ope-rações com ar-condicionado a milharesde quilômetros de distância do assassi-nado e das consequências de suas açõesassassinas.

Essa desconexão clínica cria a ilusão de que a guerra é mais limpa e mais fá-cil de ser travada – mortes de civis se tor-nam moralmente aceitáveis, já que são meros acidentes. O termo médico “dano colateral” diz tudo. David Cloud encerra sua reportagem descrevendo os pedidos de desculpas e as indenizações estadu-nidenses a familiares sobreviventes dos civis que matamos inadvertidamente – embora, dado o vazio do diálogo revela-do por Cloud, a ideia de que essas mortes sejam danos colaterais de uma máquina de matar de precisão chega a ser bizarro, para não dizer coisa pior.

Por outro lado, a ideia das indeniza-ções fi nanceiras de alguns milhares de dólares se encaixa no modelo da guer-ra tecnológica, pois ignora as dimen-sões mentais e morais da guerra. Nesse caso, a natureza psicológica dos concei-tos pashtun de honra e o ethos guerrei-ro dos pashtun [grupo étnico presente no Paquistão e no Afeganistão muitas vezes vinculado aos talebãs] garantem que as compensações fi nanceiras não mitigarão sua sede de vingança, que durará por ge-rações. Mas tais considerações psicológi-cas não têm lugar na mentalidade meca-nicista da guerra tecnológica, que vê o adversário como uma mera coleção de alvos físicos e racionaliza as mortes de ci-vis como infelizes acidentes.

Redistribuição de riquezaAs ilusões da guerra tecnológica são

muito tranquilizadoras para seus gene-ralíssimos, como Clinton, Bush e Oba-ma, e os vídeo games que a acompa-nham fornecem uma ótima distração para uma opinião pública estadunidense que está empobrecendo como conse-quência das políticas governamentais de redistribuição de riqueza para os super-ricos. Além disso, ao travarem as bata-lhas a distância e ao torná-las menos pe-nosas para nós (pelo menos, a curto pra-zo), as falácias da guerra tecnológica se acomodam perfeitamente ao nosso atual estado permanente de guerra. Pequenas guerras contínuas, ou a ameaça delas, são necessárias para a sustentação do complexo militar-industrial-congressu-al da Guerra Fria, ou MICC [na sigla em inglês]. Pequenas guerras permanentes, ou sua ameaça, criam uma demanda in-fi nita para os produtos de guerra de alta tecnologia do MICC, que são legados da Guerra Fria, mas sem os quais o MICC não poderia ter sobrevivido na era pos-terior. Manter os orçamentos do MICC nos níveis da Guerra Fria ou mais alto serve para reforçar as políticas governa-mentais a redistribuir riqueza aos ricos e super-ricos.

E é por isso que, toda vez que a estraté-gia tecnológica fracassa em cumprir su-as promessas – como aconteceu com os bombardeios estratégicos na Segunda Guerra Mundial, Coreia, Vietnã, Guerra do Golfo, Kosovo, Guerra do Iraque, Afe-ganistão e, agora, Líbia –, a solução nun-ca é uma avaliação sobre o porquê des-se fracasso, mas, sim, sempre a mesma: a recomendação de se gastar ainda mais dinheiro em versões mais caras e mais complexas da mesma velha ideia: mais e melhores sensores, mais e melhores sistemas-guias, e mais e melhores siste-mas de comando, controle, comunica-ções, computação e inteligência. (Coun-terpunch)

Franklin “Chuck” Spinney é um ex-analista militar do Pentágono

Tradução: Igor Ojeda

David Cloud revela os sinistros efeitos psicológicos dos chamados bombardeios de precisão e guerra tecnológica nos seus participantes estadunidenses

Só Deus sabe quais são, além do assassinato de Kadafi , os nódulos críticos no caso paradoxal dos ataques humanitários

Essa desconexão clínica cria a ilusão de que a guerra é mais limpa e mais fácil de ser travada – mortes de civis se tornam moralmente aceitáveis, já que são meros acidente

Pequenas guerras contínuas, ou a ameaça delas, são necessárias para a sustentação do complexo militar-industrial-congressual da Guerra Fria

A falta de curiosidade sobre a mente do inimigo contrasta radicalmente com a sutil apreciação psicológica que o Pentágono faz de seus adversários domésticos

U.S. Air Force

Sala de operação de um MQ-9 Reaper, drone não tripulado, na Base Aérea de Kandahar, no Afeganistão

Um drone estadunidense decola em ação da operação Enduring Freedom (Liberdade Duradoura)

U.S. Air Force