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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 140, outubro 2005 EDITORIAL A o batizar a psicanálise de talking cure, Anna O. indicava que a cura de seus sintomas estava fundada na narrativa que fazia de sua história. A partir dessa experiência inaugural, Freud pôde decifrar a trama discursiva que estrutura as diversas formações do inconsciente. Nossos sintomas, so- nhos, lapsos, esquecimentos e lembranças carregam consigo uma possibili- dade narrativa, que pode ser atualizada a partir do trabalho que acontece em uma análise. Como afirma Lacan, em uma psicanálise trata-se mais de re-escrever a própria história do que recordá-la. O trabalho viabilizado pela transferência torna possível uma nova condição narrativa, a qual permite que um sujeito possa deslocar o eixo desde o qual conta sua história e fala de seu destino. Este número do Correio está articulado em torno do eixo temático da APPOA neste ano: narrativas em psicanálise. Esta questão foi abordada em nossa Jornada de Abertura, “Inventar-se em análise”, passou pela discussão do texto “Construções em Análise”, no “Relendo Freud”, e também esteve presente em outras edições do Correio deste ano. O mês de outubro inicia com a Jornada Clínica da APPOA, que tem como tema “Narrativa e destino na clínica psicanalítica”. Os textos que reunimos neste Correio trazem uma série de elementos para o debate em torno dessa questão. A clínica: tema tão caro aos psicanalistas. O que se passa ali? Que experiência impar é essa, de uma análise? Falar, falar, falar, sobretudo, falar. Mas não uma fala vazia e asséptica, dos modelos publicitários ou científicos, como nos lembra Jaime Betts em seu texto. Tampouco uma fala sem história, desenraizada. A narrativa em análise não é literária, e certamente não seria um romance, como indica Lúcia Pereira. O romance é feito para ser lido só; não há compartilhamento de uma experiência singular e única. Isto que se passa em uma análise – e que implica sempre a transferência, esse particular endereço – é propriedade de uma Narrativa, tal como Benjamin a define.

EDITORIAL - appoa.com.br · psiquiatra), se trataria da presença de sua própria letra na cura. Tomando como referência o texto de Leclaire, “Mata-se uma criança”, Rassial

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Page 1: EDITORIAL - appoa.com.br · psiquiatra), se trataria da presença de sua própria letra na cura. Tomando como referência o texto de Leclaire, “Mata-se uma criança”, Rassial

1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 140, outubro 2005

EDITORIAL

Ao batizar a psicanálise de talking cure, Anna O. indicava que a cura deseus sintomas estava fundada na narrativa que fazia de sua história. A partir dessa experiência inaugural, Freud pôde decifrar a trama discursiva

que estrutura as diversas formações do inconsciente. Nossos sintomas, so-nhos, lapsos, esquecimentos e lembranças carregam consigo uma possibili-dade narrativa, que pode ser atualizada a partir do trabalho que acontece emuma análise.

Como afirma Lacan, em uma psicanálise trata-se mais de re-escrevera própria história do que recordá-la. O trabalho viabilizado pela transferênciatorna possível uma nova condição narrativa, a qual permite que um sujeitopossa deslocar o eixo desde o qual conta sua história e fala de seu destino.

Este número do Correio está articulado em torno do eixo temático daAPPOA neste ano: narrativas em psicanálise. Esta questão foi abordada emnossa Jornada de Abertura, “Inventar-se em análise”, passou pela discussãodo texto “Construções em Análise”, no “Relendo Freud”, e também estevepresente em outras edições do Correio deste ano. O mês de outubro iniciacom a Jornada Clínica da APPOA, que tem como tema “Narrativa e destinona clínica psicanalítica”. Os textos que reunimos neste Correio trazem umasérie de elementos para o debate em torno dessa questão.

A clínica: tema tão caro aos psicanalistas. O que se passa ali? Queexperiência impar é essa, de uma análise? Falar, falar, falar, sobretudo, falar.Mas não uma fala vazia e asséptica, dos modelos publicitários ou científicos,como nos lembra Jaime Betts em seu texto. Tampouco uma fala sem história,desenraizada. A narrativa em análise não é literária, e certamente não seria umromance, como indica Lúcia Pereira. O romance é feito para ser lido só; não hácompartilhamento de uma experiência singular e única. Isto que se passa emuma análise – e que implica sempre a transferência, esse particular endereço –é propriedade de uma Narrativa, tal como Benjamin a define.

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NOTÍCIAS

Do endereço ao destino; não é, no entanto, preciso ser psicanalistapara ser tocado por essa intrínseca amarragem. João Guilherme Biehl nosconta com grande sensibilidade a história de alguém que (quase) virou nin-guém. A possibilidade de uma escuta se dá a partir da suposição de que sóhá destino, construção de um futuro, onde há sujeito. Sujeito do desejo, bementendido, este eterno “não realizado”. É a escuta desse sujeito que carac-teriza o trabalho do psicanalista, o qual Juliana Castro, em seu texto, com-para ao trabalho de um tradutor.

Essas proposições de trabalho, avançadas pelos textos que com-põem a sessão temática deste Correio, terão, certamente, muitos desdobra-mentos em nossas Jornadas.

“PODE-SE CONTAR ANALITICAMENTEUMA CURA QUE SE PRODUZIU?”

SOBRE A CONFERÊNCIA DE JEAN JACQUES RASSIAL

No final do mês de agosto, estivemos reunidos, na sede da APPOA,para ouvir as contribuições de Rassial ao tema que temos nos dedicadonesse ano de trabalho, especificamente no que diz respeito às possibilida-des narrativas da clínica.

Partindo da pergunta que coloca como eixo de sua conferência, sobrequal possibilidade de se contar uma cura analítica, Rassial nos conduz acaminhos inesperados, questionando a posição do analista enquantoracionalidade no relato de um caso clínico. De quê, afinal, poderia se trataresse relato no a posteriori de uma análise? Diria respeito ao sujeito emanálise, ao analisando, ou a uma certa heurística do autor do relato, o analis-ta? Ou ainda, qual subjetividade estaria em jogo?

Segundo Rassial, nos relatos de Freud, aparece mais a lógica freudianado que propriamente algo que diga das pessoas que transitaram por seudivã. Já no relato de Lacan (refere o caso Aimé, em que sua posição é a depsiquiatra), se trataria da presença de sua própria letra na cura.

Tomando como referência o texto de Leclaire, “Mata-se uma criança”,Rassial avança na proposta de que o relato de um caso possa se escrever, nemsobre a subjetividade do analista, nem sobre a do analisando, mas a partir deum testemunho em que a deposição, o de-ser do analista está como condição.

Rassial transita também sobre uma certa análise das razões quefazem com que “a maioria dos relatos de cura sejam tão ruins”. Nessesentido trabalha três pontos onde o relato poderia fazer obstáculo: a trans-ferência, a interpretação e o fim de análise. Desenvolvendo esses pontos,me pareceu especialmente interessante o que propõe como uma posiçãopossível na escuta analítica de uma supervisão, ou seja, ouvir o caso comose tratasse de um sonho, o sonho do analista em supervisão.

Tecendo relações entre história e esquecimento, Rassial afirma quede uma análise é possível resgatar muito pouco: algumas palavras, alguma

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

lembrança, um estilo... Sendo a escrita de uma cura uma espécie de ensaio,em que não é possível distinguir o que vem do paciente do que vem do analista.

Enfim, Rassial nos propõe inúmeras questões muito férteis, nos con-vidando de forma muito estimulante a seguir trabalhando.

Fernanda Breda

NÚCLEO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇAS

Nos dias 27 de agosto e 10 de setembro, estivemos reunidos para otrabalho do núcleo de psicanálise de crianças. Iniciativa que vem ao encontrodo interesse daqueles que trabalham com esta clínica e constantementecolocam-se diante de impasses. A possibilidade de compartilhar questõescom colegas produz deslocamentos e aberturas à nossa escuta, sendo queum espaço como o do núcleo possibilita rever nossa clínica e nos lançanovos desafios frente às diferentes problematizações levantadas pelas diver-sas experiências dos colegas.

Para nos aquecer nesse início, discutimos, no dia 27, o texto de SándorFerenczi “Confusão de língua entre os adultos e as crianças”. É um textohistórico que situa uma série de pontos cruciais na clínica com crianças,aponta para a ética da psicanálise e conseqüentemente para a delicadezadas questões transferenciais no trabalho com as crianças, o que inclui seuspais, a escola, etc. Salienta a importância do analista admitir que a resistên-cia ao tratamento é sua, dizendo que uma das conseqüências de não admitirsuas limitações ao escutar, é o fracasso da análise.

No dia 10 de setembro, em função das discussões que o texto deFerenczi suscitou, discutimos dois textos de Patrick De Neuter, que amplia-ram o debate: “Pai Real, incesto e devir sexual da menina” do livro “O sujeito,o real do corpo e o casal parental” e o texto “O Pai Real e a sexualidade dofilho” do livro “Neurose infantil versus neurose da criança”, ambos da coleçãoPsicanálise de Crianças da editora Ágalma. Entre outros pontos discutiu-seo lugar do pai atualmente e a relação Lei/realidade, ou seja, que necessida-de tem a presença do pai da realidade para a instauração da Lei? Questão

que nos leva a percorrer outros pontos da teoria psicanalítica. Temos muitotrabalho e um instigante espaço de discussão e troca de experiências.

O núcleo de psicanálise de crianças da APPOA se propõe como umespaço sistemático para o desdobramento de interrogações, a partir do es-tudo e discussão das especificidades levantadas pelo trabalho psicanalíticocom a infância. As reuniões são abertas e acontecem com freqüência men-sal, no segundo sábado do mês, das 10:00 às 12:00. O próximo encontroserá no dia 08 de outubro, quando teremos a presença de Diana e MárioCorso, falando sobre seu novo livro: “As Fadas no Divã”, da editora Arte-Med,com lançamento em 26 de setembro. Os textos encontram-se à disposiçãona Secretaria da APPOA. Até lá.

Inajara Erthal Amaral

FEIRA DO LIVRO

A APPOA estará presente na Feira do Livro deste ano, conforme aseguinte programação:

DIA 2/11 – QUARTA-FEIRA18h30min – Lançamento e sessão de autógráfos do livro “Masculinida-

de em crise”, org. APPOA, com a presença de Alfredo Jerusalinsky, Ana Cos-ta, Roseli Cabistani e demais autores.

Local: Pavilhão de autógrafos19 horas – Mesa-redonda “As histórias que nos contam – um olhar

psicanalítico”.Participantes: Miriam Chnaiderman (Psicanalista/SP), Maria do Carmo

Campos (Letras/UFGRS), Carmen Backes (Psicanalista/ APPOA).Coordenação de Robson Pereira (Psicanalista/APPOA)Local: Santander Cultural20h30min – Lançamento e sessão de autógrafos do livro “Narrativas

de Brasil”, org. APPOA, com a presença de Miriam Chnaiderman, Maria doCarmo Campos, Carmen Backes, Robson Pereira e demais autores.

Local: Pavilhão de autógrafos

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

NOVIDADES DA BIBLIOTECA/OUTUBRO 2005

É com satisfação que divulgamos as novidades da biblioteca no Cor-reio da APPOA. Lembramos que esse mesmo informativo também é enviadopor e-mail.

Nesse mês, recebemos a doação de livros e, também, através dapermuta com outras instituições, alguns títulos de periódicos.

Agradecemos todas as doações recebidas e lembramos que as doa-ções são sempre bem-vindas e ajudam a atualizar nosso acervo.

Visite a biblioteca, ela se encontra sempre a sua disposição!!

LIVROS:1. Biehl, João. Vita : life in a zone of social abandonment. Berkeley:

University of california press, 2005.2. Viero, Emília ; Betts, Jaime ; Fleck, Lenira Balbueno. Sob o véu

transparente: recortes do processo criativo com Claudia Stern. Porto Alegre:Território das Artes, 205.

3. Allouch, Jean. Paranóia: Marguerite ou A Aimée de Lacan. Riode Janeiro: Companhia de Freud, 1977.

PERIÓDICOS:1. Primeira Impressão. São Leopoldo, RS: Unissinos, n.23, jul./

2005. 114 p. É real.2. Estilos da Clínica. São Paulo: USP, v.10, n.18, jun./2005. 145

p. Dossiê: intervenções no escolar.3. Percurso: revista de psicanálise. São Paulo: Sedes Sapientiae,

v.15, n.34, jun./2005. 169 p.

PSICANÁLISE E VIDA COTIDIANA UM SARAU PARA CURIOSOS, XERETAS E DESAVISADOS

Tema:  amor.com/sexo.comConvidados: Nei Lisboa, Giba Assis Brasil, Diana CorsoMediador: Mario CorsoData: 07/10 (sexta-feira)Horário: 19h.Local: Sede da APPOA – Rua Faria Santos, 258 – PetrópolisValor: R$ 5,00Informações: Secretaria da APPOA – F: 33332140Coordenadores do evento: Eduardo Mendes Ribeiro, Mariane Mendes

Ribeiro, Maria Cristina Poli e Simone Rickes.

SEMINÁRIO: O DIVÃ E A TELA 

Filme: “Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard)”dirigido por Billy WilderData: 19 de outubro, quarta-feira às 19h30minLocal: Sede da APPOACoord: Enéas de Souza e Robson Pereira

     O próximo “O divã e  a  tela” traz para a discussão um clássico do

cinema: “Crepúsculo dos Deuses - uma história de Hollywood”, dirigido por BillyWilder e interpretado por William Holden, Gloria Swanson e Erich von Stroheim.O olhar crítico de um dos maiores mestres do cinema moderno sobre a máqui-na Hollywood e os efeitos sobre seus artistas, antecipa em vários anos asconcepções sobre a “sociedade do espetáculo” e a subjetividade atual. 

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NOTÍCIAS

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SEÇÃO TEMÁTICA

NOTAS DE LEITURA – O NARRADOR – DE W. BENJAMINPOR QUE ISSO INTERESSARIA A UM PSICANALISTA?

Lucia Serrano Pereira

“Onarrador – considerações sobre a obra de Nicolai Leskov” é um texto de 1936, um dos mais importantes da obra de Walter Benjamin. Seeste tema, o da narração, é sempre retomado ao longo de sua obra

não é sem razão. É sob o significante da narrativa e da narração que Benjaminfaz passar as grandes questões de seu tempo. Concentra em si, de maneiraexemplar, os paradoxos de nossa modernidade, aponta Jeanne M.Gagnebin,(1994).

No âmbito da psicanálise, trabalhar o narrador “benjaminiano” podeser uma oportunidade fecunda de pôr em questão, no contato com um estiloe uma elaboração extremamente interessantes, aquilo que não pára de nosocupar: o campo do sujeito e o campo do Outro.

Poderíamos apontar pelo menos três grandes vertentes de trabalhoque o texto permite e propõe interrogar:

– a questão da enunciação – desde onde se fala – na relação à passa-gem que envolve a modernidade;

– de onde esta fala se autoriza – discussão do lugar da tradição, daautoridade, dos lugares transferenciais;

– a produção na cultura – a arte, o novo, o ato, as inscrições dosprodutos culturais e seus lugares (associada ao texto sobre a reprodutibilidadetécnica da obra de arte, onde trata do declínio da aura dos objetos namodernidade).

Vamos escolher um caminho pontual, alguns elementos do texto (onarrador é desenvolvido em 19 partes) que possam funcionar talvez comodisparadores, notas de leitura, indicações.

Mas primeiro, vale a pena situar, Benjamin vai ligar o termo do narrador aum autor russo do século XIX relativamente desconhecido para nós, NicolaiLeskov.

Eda Tavares informa o novo telefone residencial: (51) 3061-2249 e e-mail: [email protected]

Carla Cumiotto informa o novo endereço residencial: Rua Richard Holetz,30 - Bairro Bom Retiro - Blumenau - SC, telefone do consultório: (47) 3035-3987, telefone celular: (47) 8822-0997 e e-mail: [email protected]

MUDANÇA DE ENDEREÇO

CICLO DE DEBATESMACHADO DE ASSIS NA CULTURA

PSICANÁLISE & LITERATURA

Dia: 27 de outubro (quinta-feira)Hora: 20hLocal: Livraria Cultura (Bourbon Shopping Country – Av. Túlio de Rose, 80 –Loja 302)Realização: Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), LivrariaCultura e Pós-Graduação em Letras da UFRGSEntrada Franca 

A psicanalista Ana Costa e o professor de literatura Flavio LoureiroChaves são os palestrantes deste encontro do ciclo de debates Machado deAssis na Cultura Psicanálise & Literatura. Encerrando o ciclo deste ano,Ana Costa fará suas observações a partir do romance “Esaú e Jacó”. Oprofessor Flávio Chaves, por sua vez, discorrerá sobre tema que ele intitulou:“Machado de Assis: as duas pontas da vida.

O ciclo de debates Machado de Assis na Cultura – Psicanálise &Literatura é uma realização da APPOA, do Pós- Graduação em Letras daUFRGS e da Livraria Cultura. Oferece aos leitores e especialmente aos aman-tes da obra de Machado de Assis a oportunidade de participar de debates apartir da produção do escritor: contos, ensaios, romances e poesia.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Leskov é o escritor da Rússia antiga, dos contos ligados às narrativasorais em circulação. Ele viajava pela Rússia reunindo documentos, lendas,coisas estranhas contadas na linguagem popular.Trabalhava os jogos de pala-vras que reproduzem os erros de linguagem do povo, o estilo é de um humorextraordinário, cheio de expressões, trocadilhos, invenções. A crítica contem-porânea o “descobre” há pouco tempo, relativamente aos outros escritores rus-sos de sua época. Sua narrativa é, muitas vezes, irônica, como na novela “Apulga de aço”, onde os russos e os ingleses se corroem na rivalidade – osingleses vendem aos russos uma pulga de aço, tamanho natural, quase imper-ceptível. Dando corda na pulguinha, ela dança a quadrilha. Os russos humilha-dos e ao mesmo tempo maravilhados com o domínio da engenharia dos ingle-ses (que por sinal cobram uma fortuna não tanto pela pulga, mas pelo estojopara carregá-la sem perdê-la) convocam seus melhores artesãos, os ourives deTula, que trabalham e reapresentam a pulga modificada: não dança mais. Queaconteceu? Os artesãos inacreditavelmente haviam conseguido colocar umaferradura mais do que microscópica em cada patinha da pulga – e ainda porcima a assinatura do artista em cada ferradura. Vitória, sinal da superioridadetotal dos ourives russos sobre a tecnologia inglesa (estrangeiro x nacional,tecnologia x artesanal).

Leskov passa também pelo trágico, pelo religioso, pela tensão dra-mática às vezes alucinada – “Lady Macbeth” de Mzsensk, “Apenas umretrato de mulher”, O anjo lacrado e outras novelas e contos. Segundo OttoMaria Carpeaux, Leskov é um clássico russo da maior importância, à alturade Tolstoi, Tchecov e Dostoievski.

Benjamin escolhe então Leskov para nos dizer que o narrador, “pormais familiar que nos seja este nome, está longe de ser inteiramente presen-te, entre nós, em sua atividade viva” (1994, p.197). Assim inicia o texto, eessa vai ser sua linha de sustentação. A figura do narrador se distancia cadavez mais nos tempos modernos. A experiência cotidiana permite pensar quea arte de narrar está em extinção, nos faz falta a faculdade de intercambiarexperiência, o que antes parecia assegurado. No texto “Experiência e pobre-za” (1933), Benjamin formula uma questão: Qual o valor de todo nosso

patrimônio cultural se a experiência não mais o vincula a nós? O pós-guerrado início do séc. XX produzia uma geração não mais rica em histórias paracontar, mas uma geração confrontada com o desamparo. Os combatentesvoltavam silenciosos dos campos de batalha, “mais pobres” em experiênciae narração (os mesmos que Freud recebe e que possibilitarão as hipótesessobre o trauma – base para seu “Além do princípio do prazer”).

A experiência transmitida oralmente é a fonte na qual beberam osnarradores. Dois estilos de origem são apontados por Benjamin na proposi-ção de uma linhagem dos narradores: “Quem viaja tem muito o que contar”.A narrativa que trazia os lugares distantes na figura do marinheiro; e a narra-tiva de quem nunca saiu de sua terra mas que participa do elo das gerações,suas histórias e tradições: o camponês. O marinheiro e o camponês sãosituados como os primeiros mestres da narrativa. A tradição da Idade Média,com o sistema corporativo, participa também dessa distribuição nas figurasdos mestres sedentários e aprendizes migrantes.

Algo que vale a pena remarcar é o fato de que esse saber, essa auto-ridade que se decanta da experiência do narrador é de um lado de geraçõesque se perdem de vista na articulação temporal e, de outro, de terras distan-tes que também têm seus limites espacialmente difusos. Ou seja, há uminsondável em jogo que nos permite pensar nas formas pelas quais o campodo Outro se apresenta na relação com a narrativa e com o saber. A autorida-de que o saber comporta nestes contextos tem relação com a Erfahrung, aexperiência que traz em seu radical fahr, travessia, viagem. O saber, quevinha de longe, portava uma autoridade válida mesmo que não fosse contro-lável pela experiência (à diferença da informação, que aspira a uma verifica-ção imediata). O narrador retira da experiência sua/dos outros o que conta, etransmite incluindo o narrado na experiência de seus ouvintes. O narradormarca singularmente a fala, mas a partir de falas que lhe vêm de lugaresoutros. O ouvinte não está em uma posição qualquer, as passagens dasnarrativas “são salvas da análise psicológica”, quanto mais o ouvinte se es-quece de si mesmo, mais profundamente a transmissão opera. Grande sa-cada de Benjamin. A narrativa não está interessada em informar, “ela mergu-

PEREIRA, L. S. Notas de leitura...

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SEÇÃO TEMÁTICA

lha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim seimprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila dovaso” (1994, p. 205). O exemplo coincide com aquele que Lacan toma parafalar da relação do simbólico e do real a propósito da ética da psicanálise.

O contraponto (ao narrador tradicional) é tecido no argumento comrelação ao romancista e sua posição no individualismo, o romance valendocomo paradigma da modernidade. Não que o romance fosse novidade en-quanto gênero, mas nunca na história havia sido posicionado centralmente,encontrando com a burguesia ascendente os elementos para seu novo lugar.A origem do romance é o indivíduo isolado que não pode mais “falar exem-plarmente sobre suas preocupações mais importantes, não recebe conse-lhos nem sabe dá-los” (1994, p.201).

Um dos momentos mais bonitos do texto: o narrador é alguém quesabe dar conselhos. Mas, diz Benjamin, se dar conselhos parece hoje algode antiquado, vale lembrar que aconselhar pode ser menos responder a umapergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história.

E aqui encontramos uma diferença na tradução do texto para a ediçãobrasileira, que merece ser considerada. No português, temos: “Para obteressa sugestão, é necessário primeiro narrar a história” (1994, p.200)... Nofrancês, texto autorizado pelo autor, temos: “Pour qu’on nous le donne, ceconseil, il faut donc que nous commencions par nous raconter”...

Nous raconter, nos contarmos, ponto nodal. Nos contarmos, nos di-zermos, dizermos do Outro que nos atravessa, ao mesmo tempo o “se con-tar” da inclusão, lugar desde onde poder se situar.

Seriam necessárias muitas mediações para pensar as relações entreo “se contar” da narrativa tradicional com a fala na situação da clínica psica-nalítica. Não há correspondência nem equivalência, a operação difere (issosem falar que psicanalista tem verdadeira ojeriza com o que se chama deconselho). Mas como estamos em notas de leitura, quem sabe podemosnos permitir algumas associações. Uma vez que a associação com a éticajá se apresentou, nous raconter termina por evocar o que Lacan aponta quantoà proposição da ética da psicanálise, quando enuncia: s’y retrouver dans

l’inconscient, dans la structure, se achar na estrutura. Se o narradorbenjaminiano dispensaria a psicanálise, como nos diz Maria Rita Kehl – porjá compor um elo de transmissão no seu contexto –; por outro lado, nos fazpensar por onde algo da sustentação de uma prática como a psicanalíticarenova a possibilidade de estabelecer uma experiência, travessia, trabalhoque supõe um certo “percorrer”, fala e escuta sustentados por uma relaçãotransferencial, campo do Outro, inconsciente. A experiência e a narração“declinam”. O termo do declínio já vem surrado de tanto uso, mas não éequivalente ao de eliminação. Por quais caminhos se atualizam as condi-ções de um “percorrer” nos nossos tempos?

Benjamin é nostálgico?Pode ser, mas esse não é o forte de seu texto. Complexo, supondo

inúmeras interlocuções – Lukács e sua “Teoria do romance”, Montaigne,Cervantes, Heródoto, situado como o primeiro narrador grego, Kafka,Dostoievski, Gorki, Paul Valery, e vários autores de sua tradição mais próxi-ma, a alemã; “O narrador” trabalha muitos cruzamentos, sem se deixar cairna tentativa de preencher todas as lacunas, de recobrir todas as arestas.Benjamin traz em especial os limites, limiares como a relação com a morte,com a temporalidade, a negatividade, essas zonas cujas passagens, (traba-lho de sua vida), se articulam em cima do real que interroga a cada vez, e acada um na constelação discursiva que o recebe. Se a narrativa se tramacom a literatura, é de se levar em conta, como nos diz Márcio Seligmann-Silva, que ela é sempre marcada pelo real, ou seja, não se trata de trabalhode ilustração. Real que por outros caminhos, na prática analítica, na relaçãocom esse se achar na fala, nos concerne.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994 (sé-tima ed.) Primeira edição – 1985.BENJAMIN,Walter. Écrits français. Paris: Éditions Gallimard, 1991.GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em W.Benjamin. Campinas: Edi-tora Perspectiva, 1994.

PEREIRA, L. S. Notas de leitura...

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SEÇÃO TEMÁTICA BIEHL, J. A vida cotidiana...

A VIDA COTIDIANA DAS PALAVRAS: A HISTÓRIA DE CATARINA1

João Biehl2

“No meu pensamento, as pessoas esqueceram de mim”. Catarina me disse isso enquanto pedalava sua bicicleta de exercícios, seguran-do uma boneca. Essa mulher de trinta e poucos anos tinha um olhar

penetrante e a fala um pouco enrolada. Eu a conheci em março de 1997 aquiem Porto Alegre, num asilo chamado Vita. Eu lembro de ter me perguntado:mas para onde ela pensa que vai? Vita é o destino final. Como muitos outros,Catarina tinha sido deixada lá para morrer.

Vita é conhecido como um centro de reabilitação de drogados, masna verdade é um depósito onde famílias e instituições médicas e do estadoabandonam doentes mentais, deficientes físicos, pacientes com AIDS e pes-soas que cometeram pequenos delitos, jovens e velhos, como se já nãofossem mais seres humanos. Sem direitos, a maioria dos mais de 200 paci-entes da chamada “Infirmaria” não eram cadastrados formalmente e não re-cebiam mais do que cuidados alimentares mínimos. Lembro de que de umhomem os voluntários retiraram as larvas dos olhos com uma mistura de“Pinho Sol” e “Q-Boa”.

Em torno de 50 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobre-za; vinte e cinco milhões são considerados indigentes. À primeira vista, Vitaparecia ser um microcosmo dessa miséria. Mas não só. Uma parte de seusresidentes vinha de famílias da classe trabalhadora e da classe média, elesmesmos tendo sido operários sustentando suas próprias famílias. Algunshaviam vivido em instituições públicas das quais foram jogados na rua outransferidos diretamente para o Vita.

Nesta fala, eu traço os caminhos que Catarina percorreu para chegarnessa “zona de abandono social”. Acompanhar o enredo de uma única vida

nos ajuda a capturar a lógica das infra-estruturas cotidianas que fazem comque certas vidas ganhem forma e outras sejam impossibilitadas. E tambémnos ajuda a iluminar este estranho processo subjetivo que faz com que oabandonado, apesar de tudo, continue antecipando uma outra chance devida. Aqui somos confrontados com as realidades que estão entre ou alémdas estruturas formais de governo e medicina que determinam o curso devida de um número crescente de pobres que não fazem parte de nenhummapeamento ou política específica e que lutam para sobreviver em vão.Suspensa no Vita, Catarina falou de sua ruína humana e também do seudesejo de reconstruir a vida:

“Eu tenho uma filha, Ana; ela tem oito anos. Meu ex-marido a deupara o Urbano, o patrão dele. Eu estou aqui porque tenho problemas comminhas pernas. Para poder voltar, eu tenho que passar por um hospital. Émuito complicado para mim conseguir lugar num hospital, e se eu conse-guisse, provavelmente iria piorar. Eu não ia gostar porque já estou acostuma-da a ficar aqui. Meus irmãos e meu cunhado é que me trouxeram pra cá.Ademar, Armando… eu me exercito que é pra poder caminhar de novo. Ago-ra eu já não posso mais sair daqui. Eu tenho que esperar um tempo. Euconsultei com um psiquiatra particular, umas vezes. Quando é preciso elestambém nos dão medicação aqui. A gente fica dependente. A gente já nempensa mais em voltar para casa. Mas não é que a gente não queira. No meupensamento, as pessoas esqueceram de mim.”

Mais tarde, perguntei aos voluntários se sabiam algo sobre a Catarina.Eles não sabiam nada sobre a vida dela fora do Vita, disseram que ela falavacoisas sem sentido, que ela era “louca”. Sua voz tinha sido anulada pelodiagnóstico psiquiátrico. Mas eu tentei pensar nela não como uma doentemental e sim como uma pessoa abandonada que, contra todos os empeci-lhos, estava reivindicando sua experiência a seu próprio modo. Ela estavatentando melhorar sua condição e se virar com as próprias pernas. Catarinainsistia em pensar que o seu problema era fisiológico e que sua estada noVita era o resultado de várias circunstâncias relacionais e institucionais queela não podia controlar.

1 Palestra proferida na APPOA em 29 de agosto de 2005.2 Professor Assistente de Antropologia, Universidade de Princeton (EUA).

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“Para poder ir para casa, vou ter de ir prá um hospital primeiro”, racio-cinou ela. O hospital era o caminho para a casa que já não mais existia. Maso acesso a cuidados médicos adequados era impossível. Catarina tambéminsinuou que a medicação tinha piorado a condição clínica dela. Esse tipo decuidado era também típico do Vita, “eles também nos dão medicação aqui.”Ela estava se referindo a uma farmacologização da miséria humana. Algo fezcom que o seu retorno para casa se tornasse impossível. Mas o desejocontinuava: “Não é que a gente não queira”.

Os movimentos de Catarina e as lembranças dela no contexto desoladordo Vita ficaram no fundo da minha mente. Ela sabia o que a tinha feito ficarassim – mas como verificar os fatos do relato dela? Ademais, o grau deimprecisão ou inabilidade de articulação do seu pensamento não dependiadela somente – nós, os voluntários e o antropólogo, não tínhamos meios deentender e avaliar isso. A narrativa e desejos labirínticos dela requeriam for-mas analíticas capazes de abordar a pessoa que, afinal de contas, não écompletamente subjugada pela trama das instituições e grupos.

Toda vez que eu voltava para o Vita, mais residentes diziam que que-riam contar “a minha vida”. Eu fiquei pasmo com a condensação e semelhan-ça dos relatos. Quase todos mencionavam terem sido banidos da vida emfamília, falavam do rompimento de relações bem como da perigosa e agoraquase impossível volta para casa. Isso não eram narrativas de doenças vi-sando à busca de um significado último do tipo “por que isto tinha que acon-tecer justo comigo, ou por que agora?” Tampouco eram registrosesquizofrênicos, que Gilles Deleuze e Felix Guattari entendiam como fazen-do paródia social – “nunca fornecendo a mesma explicação de um dia para ooutro.”3 Como pude ouvir e constatar ao longo do tempo, os relatos doschamados “loucos” do Vita não estavam sempre em fluxo. Pelo contrário,fiquei impressionado pela constância, contextualização e veracidade dosrelatos (como constatei ao seguir passo a passo o de Catarina) apesar de osvoluntários dizerem que tais relatos não faziam sentido.

Ao invés de entender estes relatos como prova de que os abandona-dos “se retiram do mundo”4 comecei a vê-los como restos da verdade –chamemo-los de “códigos de vida” – através dos quais a pessoa abandonadatenta se agarrar ao real. À medida que os ouvia, eu me sentia desafiado atratá-los como evidência da realidade da qual os abandonados são expulsose quase nunca voltam a povoar. Como estes fragmentos são uma forma dearticulação de uma ex-humanidade vivida, eles também funcionam como fon-te e meio pelo qual eles articulam sua experiência passada e presente. Es-tes relatos são espaços em que seus destinos são repensados e seus dese-jos ganham uma nova moldura.

Acompanhei o desenvolvimento do Vita ao longo de anos, e recente-mente terminei um livro sobre este espaço de morte social e seus residentes,entitulado “Vita: Life in a Zone of Social Abandonment” (Berkeley: University ofCalifórnia Press, 2005). O livro começa com a crônica do dia-a-dia neste Cen-tro, e explora este espaço não como uma exceção, mas como um “fato socialtotal”. Há mais de 200 instituições como o Vita só em Porto Alegre, a maioria éeufemisticamente chamada de “casa geriátrica”. Estas instituições hospedamabandonados de todas idades em troca da aposentadoria ou auxílio invalidez;um razoável número destas instituições também recebe apoio estadual ou fi-lantrópico. Zonas de abandono são de fato simbióticas com domicílios e servi-ços públicos em transição. Elas absorvem indivíduos considerados sem valor eque não têm mais laços familiares ou recursos para o próprio sustento e tornamsua reabilitação impossível e sua morte iminente.

No meu trabalho etnográfico entre pobres em áreas urbanas no sul eno nordeste, eu descobri que mais e mais as famílias são uma espécie deagente médico do Estado, uma vez que elas fazem a triagem dos cuidadose do tratamento; e que a medicação tornou-se um instrumento fundamentaldas deliberações sobre quem vive, quem morre e a que custo? O aumento deapelos pela descentralização de serviços e a individualização de tratamen-tos, como exemplificado pelo movimento da saúde mental, coincidem com

3 Gilles Deleuze e Felix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. Minneapolis:University of Minnesota Press, 1983, pp. 15.

4 Vide o ensaio de Robert Desjarlais, “Struggling Alone: The Possibilities of ExperienceAmong the Homeless Mentally Ill.” American Anthropologist 96(4):886-901.

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os cortes dramáticos nos subsídios na infra-estrutura da saúde e com aproliferação de tratamentos farmacêuticos. A distribuição gratuita de medi-camentos (que inclui os psicofármacos) é de fato um componente importan-te das iniciativas que visam um sistema universal de saúde mais econômicoe eficiente.

Ao se engajar com esses novos regimes de saúde pública e ao alocarseus já esticados e escassos recursos, as famílias aprendem a agir comoproxy-psychiatrists ou “psiquiatras de fundo de quintal”. As doenças se tor-nam o ponto focal em que a experimentação e as rupturas nas relaçõesdomiliciares íntimas acontecem. As famílias podem se livrar de seus mem-bros indesejados, às vezes sem sanção, baseados no fato de que tais indi-víduos não se submetem aos protocolos de tratamento. Os psicofármacossão centrais na história de como vidas são forjadas dentro deste momentode transformação sócio-econômico e vis-à-vis ao que está, burocraticamentee medicinalmente, disponível à população. Tais possibilidades e a execuçãoprática de certas formas de vida humana acontecem paralelamente às for-mas de discriminação por gênero, à exploração de mercado, e a um Estadoadministrado no que podemos chamar de estilo gerencial, que cada vez maisse distancia das pessoas que governa.

O foco principal do livro está em analisar como esta morte social éexperienciada e entendida pelos próprios residentes do centro Vita, emparticular por Catarina. Seu corpo e sua linguagem estavam tomadospela força dos processos acima descritos; a sua pessoa sendo desfeitae refeita e destruída.

Quando eu voltei ao Vita em dezembro de 1999, Catarina ainda estavalá, só que desta vez a encontrei numa cadeira de rodas – e escrevendo.Parecia confusa, falava devagar e com dificuldade. “Minhas pernas não aju-dam mais”. Ela disse que estava com “reumatismo” e que de vez em quandoos voluntários lhe davam remédios.

O que tu estás escrevendo?“É o meu dicionário”, disse ela. “Eu escrevo pra não esquecer as

palavras... todas as doenças que tenho agora, e as que tive quando cri-

ança”. A letra dela revelava uma alfabetização precária. As palavras eramescritas em maiúsculas e havia poucas frases completas.

Esse foi o primeiro fragmento que li:“Divórcio, dicionário, disciplina, diagnóstico, casamento grátis, casa-

mento pago, operação, realidade, fazer injeção, pegar espasmo, no corpo,espasmo cerebral”.

“Por que tu chamas isto de dicionário?”“Porque não requer nada de mim, nada. Se fosse matemática, eu teria

de encontrar uma solução, uma resposta. Aqui tudo é uma coisa só, docomeço ao fim... Eu escrevo e leio.”

Ela me deixou folhear o dicionário.“Te ofereço minha vida”. “No ventre da dor”. “O sentido presente”. Entre

as várias referências a consultas, hospitais, e documentos, ela escreveusobre “a divisão de corpos”, e sobre as coisas que estão “fora da justiça”.“Aquele que contradiz é condenado”. “Morto vivo, morto por fora, vivo pordentro”. Havia também expressões de saudade: “Recuperação de movimen-tos perdidos”. “Uma cura que encontra a alma”. “Com A eu escrevo Amor,com L eu escrevo Lembrança”.

Eu voltei a falar com ela várias vezes durante aquela visita. Catarinaenveredou por uma série de lembranças da vida fora do Vita, sempre enrique-cendo com detalhes o que relatara no nosso primeiro encontro em 1997. Opassado foi ganhando forma à medida que elaborava pensamentos sobresua origem em uma área rural e sua migração ao Vale dos Sinos para traba-lhar nas fábricas de calçados. Ela contou ter tido três filhos, ter brigado comseu ex-marido; mencionou nomes de psiquiatras, experiências no HospitalEspírita e no São Pedro – tudo contado em pedacinhos e numa cronologiade quebrar a cabeça. Catarina insistia que havia uma história e uma lógicapara explicar seu abandono.

“Quando meus pensamentos concordavam com os do meu ex-maridoe sua família, tudo ficava bem. Mas quando eu discordava, aí eu era louca.Era como se uma parte de mim tivesse de ser esquecida. Minhas pernasnão estavam ‘funcionando’ bem. Eu não queria tomar os remédios.”

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Os médicos alguma vez te contaram o que tu tinhas?“Não, eles não diziam nada... eu sou alérgica a doutores. Eles que-

rem ser sabidos, mas não sabem o que é sofrimento. Eles não te tocam alionde dói”.

De acordo com Catarina, a deterioração fisiológica e o abandono fo-ram mediados por uma mudança na forma de pensar e de dar significado ànova economia doméstica e do seu tratamento farmacológico. Subjetividadetinha se tornado o condutor pelo qual sua exclusão tinha sido solidificada.Aquele apagamento forçado de uma “parte de mim” impossibilitou-a de acharseu lugar dentro de uma vida familiar mutante.

Por que, perguntei à Catarina, familiares deixam as pessoas no Vita?“Eles dizem que é melhor nos deixar aqui do que a gente ficar sozinho

em casa, sem fazer nada... que há mais pessoas como a gente aqui... e quetodos nós juntos formamos uma sociedade.... ‘uma sociedade de corpos’”.

Como ampliar as possibilidades de inteligibilidade social a que Catarinatinha sido deixada para resolver sozinha? Eu tinha de encontrar uma maneirade decifrar o real na vida e nas palavras dela e relacionar estas palavras devolta a pessoas, espaços e eventos específicos dos quais ela fizera parte umdia – uma experiência sobre a qual ela não tinha mais autoridade simbólica.Aceitar as palavras e o texto de Catarina pelo seu valor de face me fezpassar por uma jornada semelhante a de um detetive. Com o consentimentodela, eu coletei protocolos de hospitais psiquiátricos e órgãos locais do sis-tema público de saúde pelos quais ela passou. Também consegui localizarmembros da família – os irmãos, o ex-marido, os cunhados e filhos – numdistrito industrial do Vale dos Sinos. Tudo o que ela me contou sobre afamília, os caminhos médicos que a levaram ao Vita fechavam com as infor-mações que eu encontrei nos arquivos e na pesquisa de campo.

Se eu tivesse me contentado com os relatos da própria Catarina lá noVita, todas as tensões e associações existentes entre a família, os médicose as instituições públicas que deram forma à vida dela teriam permanecidoinvisíveis. O que aconteceu com a Catarina não foi simplesmente ter caídoentre as frestas destes vários sistemas domiciliares e públicos. O seu aban-

dono foi dramatizado e executado na justaposição de diversos contextossociais. Seguir cada passo do enredo da vida dela ajudou a delinear estepoderoso espaço etnográfico não institucionalizado em que famílias se li-vram dos membros indesejados. A tessitura desta atividade doméstica deavaliar e decidir quais vidas merecem continuar e quais não, ainda permane-ce sem grande investigação, não somente no dia-a-dia da vida, como tam-bém na literatura sobre as transformações econômicas, estatais e civis emcontextos de desigualdade e democratização tais como o brasileiro. No quese segue, gostaria de lhes dar uma idéia do que eu descobri neste trabalhoreconstrutivo, particularmente, em relação à realidade da doença mental, àre-transcrição farmacêutica de laços familiares e subjetividades, e à interfaceentre meio-ambiente e expressão genética.

Catarina nasceu em 1966, e cresceu num lugar bem pobre da regiãooeste do Estado. Na quarta série ela foi tirada da escola. O pai dela abando-nou a família e ela se tornou a dona de casa enquanto os irmãos mais novosiam com a mãe para a roça. Em meados dos anos oitenta, dois de seusirmãos migraram e encontraram trabalho na indústria calçadista. Aos 18anos Catarina se casou com Nilson Moraes e um ano mais tarde deu à luzao seu filho Anderson.

Quando o Nilson trouxe a foto dela para nós vermos, Sirlei, a irmã deNilson, disse: “ela era muito bonita”. Não a pessoa, mas a aparição dela foio que primeiro lhes veio à mente quando eu me apresentei aos cunhados deCatarina. Sirlei foi inflexível ao afirmar que a paralisia de hoje não podia serdetectada no passado: “Naquela época ela era uma pessoa perfeita comonós”. Não mais estando naquela imagem da família, ela é passado. Catarinaagora era associada com um corpo se desmembrando: “A mãe dela ‘tam-bém’ perdeu as pernas e as mãos”.

Os irmãos contaram que também eles estavam começando a ter pro-blemas para caminhar, mas não sabiam o que era essa doença: “É um mis-tério”. Nas palavras de Armando, “Quando éramos crianças, ‘Catarina eranormal’”. A esposa dele reiterou a aparência dela: “‘Ela era bem normal’. Eulembro das fotos de casamento”. Eu ficava me perguntando o que será que

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queria dizer esta gradação de normalidade e o que na vida ou que interessesdeterminavam a aplicação deste rótulo a outros membros da família.

Em todo caso, negócios obscuros, várias colheitas ruins e dívidaspara com os comerciantes locais forçou o jovem casal a vender as terras quetinham herdado por terem cuidado da mãe doente. E em meados dos anos80, Nilson e Catarina decidiram juntar-se aos irmãos nas fábricas de sapato.O Vale dos Sinos tinha se tornado uma espécie de Eldorado, atraindo muitosdos que estavam em busca de mobilidade social. As estatísticas mostramque ao final dos anos oitenta, o Vale tinha um dos índices mais altos derenda per capita do Estado, mas também que mais de um quarto da cres-cente população estava vivendo em favelas. A situação piorou ainda maisnos anos 90, quando o Vale passou por uma queda econômica e uma agudafase de empobrecimento, principalmente pela inabilidade do País em articu-lar uma política de exportação mais lucrativa e por causa da competiçãocom a China no mercado mundial de calçados.

Catarina lembra de gostar de trabalhar na fábrica. “Eu tinha minhacarteira de trabalho e ganhava meu dinheirinho”. O marido encontrou trabalhocomo vigia numa Prefeitura. Logo a seguir veio o segundo filho do casal, umamenina que foi chamada Aline. Catarina também tomava conta da mãeadoentada, que tinha ido morar com eles. Para complicar as coisas aindamais, Catarina começou a ter dificuldades para caminhar. “Eles a despedi-ram da fábrica, pois começou a cair lá dentro”, relatou a cunhada. Justamen-te quando ela perde seu valor como trabalhadora, ela também descobre queNilson tinha arranjado outra mulher.

Deprimida, ela, às vezes, saía a perambular pela cidade. E o ma-rido acionou seus contatos na Prefeitura em que trabalhava para que apolícia fosse atrás dela: “Eles tiveram que algemá-la... e na sala de emer-gência tiveram que sedá-la para se acalmar”, ele me contou. Isso acon-teceu algumas vezes e foi aí que Nilson decidiu interná-la em Porto Ale-gre. No turbulento ano de 1992, a mãe dela já tinha morrido quando eladeu a luz a uma criança prematura, uma menina chamada Ana. A maiorparte das internações tiveram lugar entre 1992 e 1994, quando o casal já

não vivia mais junto. “Eles lhe deram o melhor tratamento”, disse Nilson.“Mas ela jogava os remédios no vaso e puxava a descarga. Em casa, elanão continuou o tratamento. Ela não se ajudava”. Nilson agora trabalhanuma fábrica de sapatos e tem uma nova família. Como os outros, elefala abertamente sobre Catarina. “Isso é coisa do passado”, disse ele.“Ela já nem está mais na minha cabeça”.

Os apontamentos sobre o tratamento médico e as conversas com afamília permitem com que se encontre a voz da paciente, e mais do que isso,as narrativas das alterações e das condições de sua suposta intratabilidade.Nos hospitais de Porto Alegre, o diagnóstico dado à Catarina variava de“esquizofrenia” e “psicose pós-parto” a “psicoses não determinadas” e “de-sordens de humor”. Ao traçar a passagem de Catarina por essas institui-ções, eu a vi não como uma exceção, mas sim como uma entidade padrão.Ou seja, ela era submetida ao típico e incerto tratamento que pacientesmentais da classe pobre, trabalhadora, urbana, são submetidos. Tecnologiasmédicas eram cegamente aplicadas e pouco se calibrava o tratamento àcondição distinta dela. Como muitos, consideravam-na agressiva e por issoera sedada exageradamente, para que a instituição pudesse continuar suasfunções sem fornecer os cuidados mais adequados a cada paciente.

A instituição, vítima ela mesma de problemas financeiros e da prolife-ração de novas classificações e tratamentos, exercia uma prática psiquiátri-ca rotineira que não levava em consideração a condição particular e socialdela. Apesar de o seu diagnóstico ter sido suavizado ao longo dos anos(imitando as tendências psiquiátricas mais recentes), ela continuou sendomuito medicada com anti-psicóticos pesados e outros remédios para tratardos efeitos colaterais. Em várias ocasiões os enfermeiros relatavamhipotensão, um claro indicador de supermedicação. Aqui o tratamento co-meça com uma superdosagem e aí é diminuída por tentativa e erro. À medi-da que lia os relatórios médicos, sentia dificuldade em separar sintomas deuma doença psiquiátrica sendo tratada e da medicação que tratava efeitoscolaterais, e ficava estupefato em ver que os médicos pouco se importavamem diferenciar essas duas coisas no tratamento da Catarina.

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Afirmar que isso seja fruto de uma má prática médica é ignorar aqualidade produtiva de um automatismo e experimentalismo médico não-regulamentado: neste contexto, a medicação se encarrega da maior partedo trabalho, e os efeitos farmacológicos tornam-se o corpo que supostamen-te está sendo tratado e, neste processo, ganha forma a moléstia que Catarinachama de “reumatismo”. Como ela escreveu no dicionário: “Querer meucorpo como remédio, meu corpo”. Enquanto os médicos continuaram fixa-dos nas suas supostas alucinações, a etiologia das suas dificuldades demovimentos, relatadas pelos enfermeiros, continuavam sendo ignoradas. Osrelatórios médicos também demonstram a dificuldade de contato com o maridoe a família, pois deixavam números de telefone e endereços falsos, e que emvárias ocasiões ela foi deixada no hospital após ter recebido alta.

O dicionário dela está recheado de referências às deficiências demovimento, à dor nos braços e pernas, às contrações musculares. Às vezesCatarina relacionava suas moléstias e a crescente paralisia a um marcadorbiológico e aludia a um certo “tipo sangüíneo que levava à deficiência física”ou a um “cérebro fora do prazo de validade” e a um “crânio envelhecido” que“impedia a melhora”. Na maioria das vezes, no entanto, Catarina se referia àsua condição como “reumatismo”, como eu havia mencionado anteriormen-te, e falava de suas doenças como sendo man made, ou seja, humanamentefabricadas. Eu segui o verbete “reumatismo” no dicionário dela, prestandoatenção às palavras e expressões circundantes.

“As pessoas pensam que têm o direito de meter as mãos nos fios emexer nos nós. Reumatismo. Eles usam meu nome para o bem e para omal. Eles usam meu nome por causa do reumatismo”.

O sintoma une os fios da vida. É um nó malfeito; é a matéria que tornapossível o intercâmbio social. Ele dá ao corpo a sua estatura e torna-se oconduto da moralidade. É a moléstia do corpo de Catarina e não o nome delaque se converte na mercadoria de troca dentro daquele mundo: “O que eu fui nopassado não tem importância”. Em outro fragmento ela escreve: “Espamosagudos, espasmos secretos, mulher reumática, a palavra do reumático nãotem valor”. A Catarina sabe que existe uma racionalidade e uma burocracia ao

redor do gerenciamento do sintoma: “Espamos crônicos, reumatismo, têm deser carimbados, registrados”. Tudo isso acontece em um contexto democráti-co: “voto a voto”.

A droga anti-psicótica Haldol (Haloperidol) e Neozine (Levomepromazine),o mais forte sedativo dos dois, também aparecem no dicionário de Catarina:

“A dança da ciência. A dor transmite a ciência doente, o estudo doen-te. Cérebro, doença. Buscopan, Haldol, Neozine, Espírito invocado”.

As mercadorias da ciência psiquiátrica tornaram-se tão comuns comoo Buscopan (que pode ser comprado na farmácia sem receita médica, parao alívio de cólicas estomacais) e tornaram-se parte do dia-a-dia domiciliar.Como mostra a experiência da Catarina, eles não só agem sobre a doençacomo também sobre a mente dela. Esses bens farmacêuticos – que àsvezes funcionam como rituais – convertem-se em espíritos imaginários emvez de verdades materiais, concretas, que supostamente representam: mer-cadorias, então, tornam-se sujeitos. Há uma ciência de fazer dinheiro namoléstia de Catarina. Como transmissores desta ciência, seus sintomassão típicos. “Preciso mudar o meu sangue com um elixir. Os remédios dafarmácia custam dinheiro. Viver é caro”, escreveu ela.

“A Catarina te contava o que acontecia no hospital?”, perguntei ao ex-marido.

“Não, ela não se lembrava”.Para Nilson, Catarina não tinha memória. Pega pela polícia, exami-

nada pelos psiquiatras, e submetida a todo tipo de medicação anti-psicótica,e tendo se tornado o motivo de piada e deboche entre membros da família eda vizinhança, a voz de Catarina acabou saindo da sintonia com a realidadeda família dela – não havia mais interesse em dar sentido ao que ela dizia.Eu a questionei sobre as vozes que dizia estar ouvindo: ‘É verdade,” disseela. “Eram gritos... eu estava sempre triste... eu pensava que as vozesvinham do cemitério, de todos aqueles corpos mortos”.

Um enredo complexo se desenrolou. Depois de conversar com todasas partes, entendi que, dados alguns sinais físicos, o marido, os irmãos esuas respectivas famílias acreditavam que Catarina se tornaria uma inválida

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como a própria mãe. Eles não tinham o menor interesse em participar da-quele script genético. O corpo “defeituoso” de Catarina então, tornou-se umaespécie de campo de batalha no qual decisões eram tomadas sobre a suasanidade e humanidade, a partir do entrelaçamento de relações familiares,com vizinhos, médicos e órgãos de saúde pública. Despersonalizada esupermedicada, algo ficou impregnado, quase que preso, na pele de Catarina– os determinantes de vida dos quais ela não mais conseguia se desprender.

Já mais perto do desfecho dessa história, Nilson arrumou uma outramulher com a qual teve outro filho, e um juíz lhe concedeu a separação legalde Catarina – ela nunca assinou os papéis do divórcio. O ex-marido tambémacabou passando a guarda da filha mais jovem, Ana, ao patrão, Seu Urbano,mas insiste em dizer que foi a Catarina que a “passou adiante”. O Nilson esua mãe ficaram com os outros dois filhos, que hoje ajudam no orçamentodoméstico. No auge do desespero da Catarina, o irmão e a cunhada a fize-ram aceitar um negócio de eles se mudarem para a casa dela e ela ficar nobarraco deles, mais para o interior do bairro. Quanto aos irmãos, já que aCatarina tinha sido passada para Nilson e eles dois “jogado fora” as terras dafamília, não se sentiam na obrigação de cuidar dela. Esse é o tecido econô-mico e sexista do seu pensamento moral, que ultrapassava o domínio doslaços sangüíneos. Em mais de uma maneira, Catarina estava repetindo oroteiro da doença da mãe: em ambos os casos, o desenvolvimento da doen-ça estava entrelaçado com a separação conjugal, o abandono das mulherescom a doença, e alegações de prejuízo sobre bens materiais.

Para a completa devastação de Catarina, no final de dezembro de1994, o barraco dela pegou fogo, e ela foi hospitalizada de novo. Desta vez,um tal de doutor Viola escreveu: “Eu sou contra sua admissão. A pacienterequer avaliação neurológica”. Mas segundo os arquivos médicos, ela foiinternada e tratada com medicamentos anti-psicóticos prescritos ao azar.Quando recebeu alta, foi da casa de um irmão a outro. Em um dado momen-to “eu dormi um mês inteiro”, lembra-se Catarina. Apoiados por um psiquia-tra local, familiares e vizinhos estavam experimentando nela uma gama dedrogas em dosagens variadas. Como disse a mãe adotiva de sua filha Ana:

“O doutor explicou como lidar com ela. Disse para a gente dar uma dose e senão melhorasse, simplesmente ir dobrando as doses”.

As famílias tornam-se psiquiatras caseiros, e os produtos farmacêuti-cos constituem o registro do que é a verdade. Assim sendo, segundo aspalavras de Catarina, a gente entra num caminho “sem saída”. O abandonode membros improdutivos e inúteis da família é mediado e legitimizado porpsicofármacos, tanto pelo valor de verdade científica que conferem ao queestá acontecendo, como também pelas alterações químicas que ocasio-nam. Essas drogas acabam funcionando como tecnologias morais – na rea-lidade fazem com que as perdas de laços sociais sejam irreversíveis. Nesteregistro de morte social sancionado relacionalmente e burocraticamente, ohumano, o mental e o químico tornam-se cúmplices: seu entrelaçamentoexpressa um senso comum que autoriza que alguns vivam e outros não.

“No fundo, a ética que a família implementa ao redor do sofrimentomental garante a própria existência física deles”, disse-me a diretora do ser-viço psicosocial pelo qual Catarina também passou no Vale dos Sinos.Catarina tinha se transformado em “sucata” doméstica, que se montava edesmontava, que ganhava formas novas e se deformava, através de interaçõesintricadas. Ela era o valor negativo, o componente desnecessário de umacultura urbana pobre de imigrantes. Finalmente, em 1996, depois de ouvirfalar no Vita através de um programa de rádio, os irmãos a deixaram lá.

Como falar no mal que foi feito e no bem que devemos fazer quando nosdeparamos com a enfermidade em condições tão precárias? Para o irmão Ar-mando e outros membros da família, essa questão é abordada através de umapergunta retórica para a qual a resposta sempre é a mesma: “nada”. “É difícil,fazer o quê?” No final, Catarina é pensada como se fora um tratamento fracas-sado que, paradoxalmente, permite a vida, os sentimentos e os valores dealguns a continuar em um violento campo econômico e social.

Eu não estou aqui dizendo que as desordens mentais são basica-mente uma construção social, mas sim que elas ganham forma naquelenexo mais pessoal que liga o sujeito à sua biologia e à recodificação técnicae intersubjetiva do que vem a constituir normalidade no mundo local. É nesse

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sentido que os representantes do senso comum e da razão estão imbrica-dos nas desordens mentais e é sua responsabilidade dar conta destaimbricação no desdobramento das desordens.

Depositada no Vita para morrer, Catarina escreve que o seu desejoperdera valor de troca humana:

“Catarina chora e quer viver. Desejo. Chorado, molhado, rezado. Sen-timento de lágrimas, medroso, diabólico, traído. Desejo não tem valor. Dese-jo é farmacêutico. Não é bom para o circo”.

A droga Akineton (biperideno) usada para controlar os efeitos colateraisdos antipsicóticos está presente no novo nome que Catarina se deu no dicioná-rio: CATKINE.

Quatorze anos depois de entrar no enlouquecedor mundo psiquiátrico,Catarina finalmente foi vista pela doença que tinha. Em 2002, eu a ajudei aacessar o serviço genético do Hospital de Clínicas. Testes moleculares revela-ram que Catarina sofria da Doença de Machado-Joseph, uma forma de ataxiaespino-cerebelar. 5 Fiquei extremamente feliz em ouvir os geneticistas dizendoque Catarina “tinha consciência da sua condição, passado e presente, e quenão apresentava nenhuma patologia”. Dra. Laura Jardim é inflexível ao afirmarque “não há doença mental, nem psicose, nem demência conectada à essadesordem genética. Na doença Machado-Joseph, a inteligência do indivíduo semantém clara e cristalina”. Obviamente, biopsiquiatras poderiam argumentarque Catarina pode ter tido dois processos biológicos concomitantes, mas paramim a descoberta da Doença de Machado-Joseph ajudou a historicizar comoou porque a condição dela se desenvolveu da forma acima descrita.

Uma vez diagnosticados, pacientes de Machado-Joseph sobrevivem emmédia 15 a 20 anos, morrendo, na maioria dos casos, de pneumonia, presos acadeiras de rodas ou restritos ao leito. Uma coisa que os cientistas consegui-ram estabelecer é que quanto mais séria a mutação genética, mais rapidamen-te a doença começa a aparecer. Em 60% dos casos, a gravidade da mutaçãogenética explica a idade de início da doença. Mas em 40% dos casos, disse

Dra. Jardim, “há fatores desconhecidos que tanto postergam ou antecipam oinício da doença.” Entre irmãos, continuou ela, a idade em que a doença surgeé mais ou menos a mesma”. Como então explicar o fato de que no caso daCatarina a doença já apareceu ao redor dos 20 anos, enquanto que no caso deArmando, os primeiros indícios só apareceram perto dos 30 anos?

Os vários processos relacionais e médicos em que a biologia deCatarina estava inserida e através dos quais “experimentavam” com ela apon-tam para estes 40% ainda não conhecidos, eu arrisquei dizer a Dra. Jardim,ou seja, a ciência social da mutação genética. A isso ela respondeu dizen-do: “No pico do sofrimento dela, eles a estavam desmembrando... esta carnemorrendo foi só o que restou”.

No seu pensar e escrever, Catarina retrabalha essa literalidade.“Eu não sou uma farmacêutica“, ela disse certa vez. “Eu não sei que

medicação cura uma doença, eu não sei dizer o nome do fármaco, mas onome da doença eu sei... Como dizê-la?”

Silêncio.Ela então disse: “Minha é uma doença do tempo”.“O que tu queres dizer com isso?”“O tempo não tem cura”.A subjetividade da Catarina é construída através do ato de furungar nos

labirintos da própria vida. Ao tentar comunicar, recordar e escrever ela preservaalgo único, sobrevive ao intolerável e não se submete ao impossível. Num lugaronde o silêncio é a norma, Catarina luta para transmitir seu senso do mundo ede si. No Vita então – para além do parentesco, do direito de viver e do tabucontra matar – emerge a figura social de Catarina. A sua linguagem, beirando apoesia, autopsia o que é humano hoje e fundamenta uma ética:

“A caneta entre os meus dedos é trabalho.Estou condenado a morte.Eu nunca condenei ninguém e tenho o poder.Este é o pecado maior.Uma sentença sem remédio.O pecado menor é tentar separar o meu corpo do meu espírito.”

5 Jardim, LB., M.L. Pereira, I. Silveira, A. Ferro, J. Sequeiros, and R. Giuliani. “Machado-Joseph Disease in South Brazil: Clinical and Molecular Characterizations of Kindreds.” Archivesof Neurology (2001) 104:224-231.

BIEHL, J. A vida cotidiana...

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SEÇÃO TEMÁTICA BETTS, J. Narrativa ou...

NARRATIVA OU VERBALIZAÇÃO?

Jaime Betts

“Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a psi- canálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidência desse fato não justifica que se o negligencie. Ora, toda fala pede uma

resposta”1.Qual a função da fala no campo da linguagem? A psicanálise dispõe

como meio apenas da fala do sujeito, seja ele paciente, colega ou simples-mente alguém que se pronuncia. Toda fala pede uma resposta... Ora, o quêpode fazer com que se perca isso de vista? É tão óbvio!

Continuando. “Não há fala sem resposta, mesmo que depare apenascom o silêncio, desde que ela tenha um ouvinte”.Ter um ouvinte: outraobviedade. Como podemos nos esquecer disso? Uma fala, um ouvinte, umaresposta. É esse o cerne da função da fala na análise, diz Lacan. A falainstitui o ouvinte ao endereçar-lhe um apelo. O quê pode induzir o analista aignorar que é isso que se dá na função da fala?

Lacan se explica. Há dois apelos de resposta na fala do sujeito: háum “apelo à verdade em seu princípio” e há um “apelo próprio do vazio, nahiância ambígua de uma sedução tentada sobre o outro, através dos meiosem que o sujeito coloca sua complacência e em que irá engajar o monu-mento de seu narcisismo” 2.

Eis um ponto fundamental. O apelo contido na fala do sujeito passaprimeiro pela demanda de uma resposta que confirme o monumento vazio (cas-telo de cartas persistente, diga-se de passagem), erguido em nome do seunarcisismo. Ou seja, primeiro vem a demanda de confirmação do narcisismo.

Só depois, à medida que o sujeito se convence de que não tem outro jeito,pedra por pedra, as certezas vão dando lugar às verdades parciais do sujei-to. Nesse sentido, Lacan afirma que “a arte do analista deve consistir emsuspender as certezas do sujeito, até que se consumam suas últimas mira-gens”, uma vez que “a fala constitui a verdade”··3.

Qual verdade? Ora, a verdade que resulta da castração. Ou seja, deque a verdade desejante é sempre parcial, de que o monumento fálico donarcisismo é falho, de que o desejo é causado pelo objeto que falta, e queele, o indivíduo, não é o objeto fálico que garantiria a integridade do monu-mento narcísico da mãe.

A questão colocada ao analista é conseguir distinguir onde no discur-so do sujeito está o termo significativo do semi-dizer dessa verdade desejante.Onde está a palavra cheia perdida no meio de tanta fala vazia que demandaa confirmação narcísica do indivíduo como alguém digno de ser amado?

A função da fala vazia na análise expõe no limite a vã tentativa dosujeito de falar de alguém que lhe é semelhante, mas que nunca se aliará àassunção de seu desejo. Temos aqui um início de resposta às nossas per-guntas. Quando a fala é tomada somente em sua vertente de fala vazia erespondida enquanto tal, acaba levando à “depreciação crescente de que afala tem sido objeto na teoria e na técnica”.

Por quê? Por mais que o sujeito demande uma confirmação narcísica,ele despreza qualquer fala que se comprometa com esse equívoco, em fun-ção de que seu desejo se encontra alienado nesse monumento. O monu-mento narcísico do qual falamos é o ego do sujeito, miragem que toma formana fase do espelho em que o sujeito se identifica com a imagem que lheantecipa uma unidade que a imaturidade de seu corpo ainda não organizou.

O ego, nesse sentido, “é frustração em sua essência” 4, uma vez que oego gira em torno dessa imagem especular que vem do outro. Não se trata aquide frustração de um desejo do sujeito, “mas de um objeto [o ego] em que seu¹ LACAN, Jacques. Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise (1953). In:

Escritos. Rio de Janeiro: Jorje Zahar Editor 1998, p.248.No presente artigo, retomaremos vários pontos desenvolvidos por Lacan neste texto angu-lar de sua produção, de modo a refletir sobre o tema narrativa e destino na clínica psicana-lítica.2 Op. cit., p. 249.

3 Op. cit., p. 253.4 Op. cit., p. 251.

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desejo está alienado” 5. Por mais que o sujeito possa atingir sua semelhançaideal, ao conseguir isso, simplesmente confirma o gozo do outro.

É a partir dessa inevitável frustração que se desencadeia aagressividade e violência. Trata-se da agressividade do escravo que respon-de com um desejo de morte à frustração de seu trabalho de construçãoimaginária da imagem de si: todos percebemos de alguma forma que nosreencontramos assim com a alienação fundamental do ego construído “comoum outro”, “para um outro” e que está predestinada a “ser furtada por umoutro” 6.

“O desejo, para ser satisfeito no homem, exige ser reconhecido, peloacordo da fala ou pela luta de prestígio, no símbolo ou no imaginário” 7. Vê-seque a violência está intimamente ligada com a tentativa de fazer com que umato no real obtenha reconhecimento simbólico do outro, superando a aliena-ção imaginária frustrante. Evidentemente o sujeito fracassa nesse caminho.

Encontramos aqui o ponto de articulação com os discursos que orga-nizam a sociedade contemporânea e seus sintomas sociais: a surpreenden-te facilidade com que se elimina a palavra do sujeito em nossa cultura. Dian-te desses discursos que atravessam todos, sempre cabe questionar, comofez Lacan no texto que estamos comentando, se a psicanálise e os psicana-listas persistirão no desejo de dar lugar à mesma.

Segundo Roudinesco, “A era da individualidade substituiu a da subje-tividade: dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de umaindependência sem desejo e de uma historicidade sem história, o homem dehoje transformou-se no contrário de um sujeito” 8.

A autora argumenta que a hegemonia da era do indivíduo impôs umagrave derrota ao sujeito, fazendo com que o sofrimento psíquico se manifes-te atualmente sobretudo sob a forma da depressão9. A sociedade dos indiví-duos enterra seus sujeitos. O sujeito do desejo grita como pode através de

seus sintomas tentando se fazer ouvir e, com isso, ser reconhecido por umapalavra que o signifique, inserindo-o numa rede de significantes coletiva. Umavez que fracassa, seu sintoma predominante é a depressão.

O sujeito é derrotado nas duas pontas da lógica significante que oproduz. Em primeiro lugar, a sociedade que produz os indivíduos se caracte-riza justamente pela facilidade com que elimina a palavra, destituindo-a dequalquer valor nas trocas inter-humanas. Assim, a condição humana se vêprivada do seu meio de humanização: a dignidade ética da palavra. O sujeitoé asfixiado num ambiente rarefeito em que os significantes que poderiamrepresentá-lo para outros significantes são sistematicamente eliminados.Como conseqüência, na outra ponta, o sujeito se defronta com dificuldadespara encontrar uma escuta que responda com palavras de reconhecimentoque signifiquem seu desejar para o outro. É verdade que o indivíduo descrêno valor da palavra e tende a procurar soluções que o poupem da angústia deaproximar-se do seu desejar tão cuidadosamente excluído do cenário con-temporâneo.

Na tentativa desesperada de superar o vazio de seu desejo agonizan-te, o sujeito vê-se à beira de um vácuo provocado pela exclusão dossignificantes do seu desejar que ameaça tragá-lo de vez. E ele procuratamponar a voracidade desse vácuo com toda sorte de objetos oferecidospela sociedade do consumo, incluindo-se aí a forçagem do convite ao consu-mo de drogas - legais ou ilegais, prescritas ou não - como solução para ocrescente mal-estar de viver.

No fundamento da derrota do sujeito estão os dois discursos que or-ganizam a sociedade do consumo10, ou a sociedade dos indivíduos11, ouainda a sociedade do espetáculo12 narcísico. São três formas de caracterizaro mesmo mal – o contemporâneo - segundo o discurso desde cuja ótica seopte por enfocar a questão. Os indivíduos das sociedades contemporâneassão necessariamente seres frustrados. Poderíamos ainda re-nomear a soci-edade contemporânea de sociedade dos egos frustrados.

5 Op. cit., p. 251.6 Op. cit., p. 251.7 Op. cit., p. 281.8 ROUDINESCO, Elisabeth. Por quê a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2000.p. 14.9 Op. cit.

10 BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edicões 70. 2003.11 ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994.12 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. 1997.

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Na sociedade de consumo, os efeitos da mercantilização dos laçoshumanos por efeito do discurso do capitalista se fazem notar pelo fato doconsumo surgir como “modo ativo de relação (não só com os objetos, masainda com a coletividade e o mundo), como modo de atividade sistemática ede resposta global, que serve de base a todo o nosso sistema cultural”. Issofaz com que o conjunto das relações sociais do homem já não seja tanto olaço com seus semelhantes quanto a recepção e a manipulação de bens emensagens, afirma Baudrillard13. Os indivíduos se afirmam segundo seu lu-gar no espetáculo das aparências, demonstrando sua independência e auto-nomia segundo as marcas dos produtos que escolhem consumir!

Atualmente há vários comerciais de automóveis que evidenciam esseponto. São direcionados ao público consumidor feminino, que é hoje quemdecide a maior parte das compras. A mensagem é de que para as mulheresconsumidoras independentes, o homem não tem o menor interesse, inclusi-ve atrapalhando a foto que quer tirar do carro, seu objeto/sonho de consumo.O que interessa são os objetos; as pessoas, os homens, atrapalham: me-lhor se ficam de fora da foto.

Por outro lado, está o discurso tecnológico-científico. Cada vez mais,o discurso da ciência se faz hegemônico, determinando os meios do gozocom que fazemos sintoma. Aqui o passado é obsoleto, a historicidade ésem história, e a liberdade é prometida através da eliminação dessa faltaincômoda chamada desejo. Nesse discurso somos cada vez mais cobaiasde nossa própria invenção, somos transformados em puros objetos, pois aexclusão da palavra do sujeito está no fundamento do mesmo.

O discurso da ciência tem por ideal ser uma linguagem sem fala14. Porque uma linguagem sem fala? Talvez porque a propriedade fundamental dafala seja o fato de singularizar o lugar de onde se fala. O lugar de enunciaçãoé sempre singular. Ninguém fala do mesmo lugar que um outro. Conforme dizo ditado popular, somente cada um pode dizer onde o sapato aperta. Essa

singularidade do lugar de enunciação é considerada um viés para a pretensaobjetividade e universalidade visadas pelo discurso científico; logo, deve sereliminada.

Retornemos à questão de como responder ao apelo contido na fala dosujeito sem reforçar a vertente da fala vazia e frustrante do narcisismo.

No outro extremo da experiência analítica, temos a realização da falaplena. Nesta, segundo Lacan, o sujeito mais que simplesmente narra o acon-tecimento, ele o verbaliza, no sentido de que ele “o fez passar para o verbo,(...) para o epos15 onde relaciona com o momento presente as origens de suapessoa”16. Portanto, “A análise só pode ter por meta o advento de uma falaverdadeira e a realização, pelo sujeito, de sua história em sua relação comum futuro”17.

É nos momentos de verbalização que uma análise permite umareordenação da história do sujeito, em que a compulsão à repetição dá lugarà rememoração. A narrativa é, nesse sentido, resistencial, pois o “sujeito vaimuito além do que o indivíduo experimenta ‘subjetivamente’: vai exatamentetão longe quanto a verdade que ele pode atingir”18.

Assim, “o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências pas-sadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constituia escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes”19.

“Isolado entre aspas no fio da narrativa”20. do paciente, podemos tes-temunhar a realização da fala plena enquanto o “nascimento da verdade nafala e, através disso, esbarramos na realidade do que não é nem verdadeironem falso”21.

O fio da narrativa é tecido pelo ego, pelo indivíduo que se consideraautônomo, senhor das palavras, da verdade o do destino. Entretanto, é nos

13 Op. cit., p. 11-15.14 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicaná-lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985.

15 Epos: segundo o dicionário Aurélio, a palavra vem do grego, significando palavra, fala,canção, causo, promessa, dito, mensagem.16 Op. cit., p. 256.17 Op. cit., p. 303.18 Op. cit., p. 266.19 Op. cit., p. 257.20 Op. cit., p. 256.21 Op. cit., p. 257.

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momentos de tropeço, dos lapsus, das formações do inconsciente, que po-demos reconhecer o autor. “Todo ato falho é um discurso bem sucedido”.22 Omomento de autoria é o da colocação em ato do inconsciente. O sujeito sefaz verbo e, assim, a verdade pode ser resgatada, uma vez que já está escri-ta em outro lugar, como no corpo, nas lembranças da infância, na evoluçãosemântica, nas tradições, lendas, nos vestígios das distorções exigidas nare-inserção do capítulo censurado na narrativa. Lacan define aqui o inconsci-ente como sendo “o capítulo de minha história que é marcado por um brancoou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado”23.

Ou seja, o que interessa no fio da narrativa do sujeito é o momento dafala onde o desejo se faz verbo, relacionando o momento presente de suavida com as suas origens. Dito de outra forma, o que nos interessa na narra-tiva é o momento em que o sujeito se faz verbo. “É justamente essa assunçãode sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada aooutro, que serve de fundamento ao novo método a que Freud deu o nome depsicanálise”24.

Quais são as relações entre a fala e a escrita na psicanálise? A histó-ria do sujeito, que se reordena através da fala endereçada ao interlocutor, namedida em que haja escuta, se reescreve. É possível rememorar a históriado sujeito e resgatar sua verdade porque ela está escrita em outro lugar,como mencionado acima. Mas é preciso que seja falada para que o que estáescrito possa se reescrever. A questão nos remete à instância da letra noinconsciente. A letra tem uma borda simbólica e outra real. É a realizaçãosimbólica da letra na fala plena o que faz com que a letra faça instância e sereescreva no real do corpo. Essa mudança operada pelo discurso do analistaresulta para o sujeito na produção de um novo S1 ou de um S1 em novaposição, ou seja, em novo lugar de enunciação de seu desejar.

Parafraseando Freud, lá onde o narrador ergue o monumento aonarcisismo, o autor deve advir.

22 Op. cit., p. 269.23 Op. cit., p. 260.24 Op. cit., p. 258.

O ANALISTA-TRADUTOR

Juliana de Miranda e Castro1

Propomos uma reflexão sobre a prática do analista, o seu fazer, enquanto uma tradução. Como nos diz Freud, trata-se, no trabalho analítico, da tradução do inconsciente: “O conhecemos [o inconsciente]

apenas como consciente, depois que sofreu uma transposição ou traduçãoao consciente.” (FREUD, 1915, p.161). O analista é um tradutor e, como tal,ele está confrontado com a dimensão do impossível e da perda, digamos, doimpossível de tudo traduzir, da correspondência perfeita, do acesso à “puralíngua”.

A tradução está na passagem de uma língua a outra, no íntimo relaci-onamento entre elas. Benjamin (2001) teoriza sobre a “pura língua”, a qualseria inatingível pelas línguas isoladamente. Pensamos esse acesso comopontual e parcial, na íntima relação entre as línguas, que a tradução tende aexpressar. Ela não é capaz de revelar ou instituir essa relação oculta daslínguas entre si, mas pode atualizá-la de modo germinal ou intensivo. Issoporque as línguas são a priori afins naquilo que querem dizer e não estranhasumas às outras. Ou seja, trata-se de algo não alcançável separadamente pornenhuma delas, “mas somente na totalidade de suas intenções reciproca-mente complementares: na pura língua. Pois enquanto todos os elementosisolados – as palavras, frases, nexos sintáticos – das línguas estrangeirasse excluem, essas línguas se complementam em suas intenções mesmas”(BENJAMIN, 2001, p.199). Podemos pensar a pura língua na dimensão dointransponível e do inacessível.

Assim, o que acompanha o trabalho do tradutor, com o que ele seconfronta em sua tarefa, é o tema da integração das várias línguas em umaúnica e verdadeira, na qual as línguas, completas e reconciliadas, coincidiri-am entre si. Nessa língua, se ela existisse – posto que não é alcançável, ela

1 Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, Rio de Janeiro, RJ. Doutorandaem Teoria Psicanalítica, UFRJ.

CASTRO, J. M. O analista-tradutor

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é impossível –, frases isoladas jamais se entenderiam e portanto dependeri-am da tradução. Nessa verdadeira e pura língua “estão guardados sem ten-são e mesmo silenciosamente os últimos segredos que o pensamento seesforça por prosseguir” (Ibid. , p.205). É essa pura língua que está intensa-mente oculta nas traduções.

Nesse ponto, em que encontramos a pura língua como o que operaoculto, vamos fazer uma aproximação com a enunciação, que deixa traçosno enunciado. Podemos pensar a enunciação do lado da língua pura e tam-bém o sujeito, sujeito da enunciação, como próximo do narrador, nos termosem que coloca Benjamin. Nesse sentido, vale lembrar Calvino, quando serefere a Leskov: “Como sempre ocorre em Leskov, é a ‘voz’ do narrador quefaz o conto; e este é um desses casos em que essa ‘voz’ consegue alcan-çar-nos ainda que por meio de uma tradução” (CALVINO, 2004, p.333). Ouseja, a voz do texto é a do narrador, do sujeito da enunciação, e é esta vozque se trata de transmitir na tradução. Em sua tarefa, o tradutor se apaga.

Benjamin fala do elemento não-comunicável como o que resta: “Em to-das as línguas e em suas construções resta, para além do elemento comuni-cável, um elemento não comunicável” (BENJAMIN, 2001, p.211). O autor afirmaque quanto mais uma obra é comunicação, menos a tradução pode se benefi-ciar dela, até ser inviabilizada pela predominância total do sentido. E quantomaior sua poética, mais ela permanece traduzível, mesmo no contato maisfugidio com seu sentido. Assim, na tradução, não se trata de comunicação esentido mas, voltamos a afirmar, de enunciação. Pensamos que é esse ele-mento não-comunicável que opera, esse resto que opera oculto.

Lo Bianco (2005), a partir de Freud (1939), traz à tona a diferença entrea tradição herdada – próxima da enunciação – e a tradição comunicada. Trata-se, na primeira, de algo transmitido a despeito das transcrições. Como o narradorde Leskov, que aparece apesar das traduções. O herdado, ao contrário docomunicado, é de difícil apreensão. Pensamos que o não comunicável, do qualnos fala Benjamin, é marcado pela descontinuidade, pela ruptura, pela lacuna,ele opera oculto, é da ordem do incomunicável, do enigma, que causa o sujeito.Essa ruptura é o que permite um novo entendimento.

Justamente por não se tratar de comunicação é que o texto psicana-lítico permanece vivo. “A cada vez que esses traços são reanimados, sãoatualizados, a cada nova tentativa de retomá-los, de conquistá-los, encontra-mos a transmissão em operação” (LO BIANCO, 2005). Encontramos nessestraços o enigma herdado. Lo Bianco lembra que Freud dá às marcas o valorde fóssil. Vem à idéia a colocação de Benjamin a respeito de Heródoto: “Seurelato é dos mais secos” (BENJAMIN, 1996, p.204). É por isso que, até hoje,causa espanto e reflexão. Benjamin marca uma semelhança entre o textoseco de Heródoto e as sementes de trigo que ficaram fechadas por milharesde anos nas pirâmides e ainda conservam sua “força germinativa”. O queestá em jogo na tradução é justamente transmitir a força germinativa dotexto, a enunciação, que está nas lacunas, no enigma. A secura do texto éo que o mantém vivo, o que o impulsiona. É ao que o analista-tradutor temque estar com os ouvidos bem atentos para ler, na fala do paciente, naslinhas do texto. Na clínica, o analista não pode se perder na profusão desentido da fala do paciente, para poder escutar o texto, enxuto. E se trata,na tradução, de buscar não apagar ou encobrir essa marca para emudecer otexto. Pois a secura, o silêncio, a lacuna causam, operam. O outro ladodisso seria o que emudece – pois esclarece, elucida e comunica – e portan-to não convoca o sujeito a se posicionar.

Benjamin define a tarefa do tradutor como sendo “redimir na própria apura língua, exilada na estrangeira, liberar a língua do cativeiro da obra pormeio da recriação – essa é a tarefa do tradutor” (Ibid.). Nessa tarefa, Lages(2002) nos adverte que “o tradutor corre o risco crescente de cair no silêncio,única forma possível de manifestação da verdadeira língua ou língua da Ver-dade como meio (Médium) de uma redenção possível das inúmeras línguasindividuais e, simultaneamente, sinal da compreensão consumada”(LAGES,2002). O analista, caso se deixe tomar na via da compreensão, silencia, poisimpede a associação livre e o desenrolar da cadeia significante. Lages nosfala do “fulgor ofuscante e silenciador da língua da Verdade” (Ibid. , p.191). Acoincidência perfeita, a completude da relação entre duas línguas, o fazerUm, é da ordem do impossível.

CASTRO, J. M. O analista-tradutor

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SEÇÃO TEMÁTICA

Nesse ponto, tendo em vista o que vimos desenvolvendo, poderíamosfazer uma aproximação com a pulsão de morte, no intuito de fazer avançarnossas questões. A língua pura estaria cerca do domínio, sem tensão esilencioso, da pulsão de morte. Podemos pensar que esse acesso ao im-possível de uma língua verdadeira e pura, levaria ao silêncio da pulsão demorte, pois só temos acesso ao fragmento, ao parcial, pagando o preço daperda, na língua de saída ou na de chegada.

Podemos ainda articular a criação com a ruptura. Gagnebin comentaque, desde que há criação, há também fratura, desordem, squize (GAGNEBIN,2004, p.26). A autora fala da “produtividade da perda e da morte, seja nahistória ou na linguagem” (Ibid. , p.5), o que nos faz pensar na vertente cria-dora da pulsão de morte. Ela fala dos silêncios e fraturas eficazes e afirmaque “é a paragem e o sopro marcados pela cesura que escande o verso aointerrompê-lo” (Ibid. , p.102-103). Benjamin traz à tona o risco originário detoda tradução que é o aprisionamento do tradutor no silêncio, quando o sen-tido se precipita, “até o risco de se perder em profundidades verbais semfundo. Mas há o ponto de parada” (BENJAMIN, 2001, p.32.). Propomos umaoposição entre esse silêncio aprisionador de que nos fala Benjamin, e queaqui trataremos como mutismo, e o silêncio da escansão, que faz corte,parada. É esse “ponto de parada” que entendemos como causa, agente, queimpulsiona o texto na direção de permitir a passagem da enunciação.

Lages fala da tradução como transgressora, instância de ruptura, ci-são e desdobramento. Se é transgressora e produz ruptura, podemos pen-sar em sua dimensão de ato. Tradução que portanto produz conseqüênciasna língua em que chega, cortando-a, forçando-a em seus limites. Traduçãoque pode ter efeito de transmissão. E o que pode vir a fazer transmissão édar ao texto seu caráter de enunciação, que ele seja infectado pelo original eque o equívoco possa ser audível, ou seja, manter o sentido sem apagar amarca da operação poética.

Segundo Benjamin, “a tradução encontra-se a meio caminho entrepoesia e doutrina” (BENJAMIN, 2001, p.205) e o essencial, como vimos, nãoé a comunicação, não é o enunciado, mas o que está além, o misterioso, o

“poético”. A tradução é uma forma (Ibid. , p.190-191) e é preciso retornar aooriginal, pois nele reside a lei dessa forma. O autor traz a metáfora doscacos de um vaso, que devem seguir-se uns aos outros detalhadamente,mas sem se igualar, para poderem ser recompostos, como a tradução quenão deve buscar se assemelhar ao sentido do original. Ela deve reconfiguraramorosamente, em sua própria língua, o modo de designar do original. Des-sa maneira, ambos podem ser reconhecidos como fragmentos de uma lín-gua maior, como cacos são fragmentos de um vaso (Ibid.). Assim, “a verda-deira tradução é transparente, não encobre o original, não o tira da luz; elafaz com que a pura língua, como que fortalecida por seu próprio meio, recaiaainda mais inteiramente sobre o original” (Ibid. , p.209).

Indagamo-nos, então, sobre a tradução de textos psicanalíticos que,se por um lado trata-se da letra, da sintaxe, da forma, do ritmo, do poético,por outro, temos a responsabilidade na transmissão dos conceitos – não épura poesia. Então, qual é o limite, para que não escorreguemos para aininteligibilidade, nem para a compreensão total? Não podemos trabalharcom uma literalidade com relação à sintaxe, pois “as palavras carregamconsigo uma tonalidade afetiva” (Ibid. , p.207). Jesuíno-Ferreto afirma que oelemento poético é necessário para que haja transmissão. Não se esque-cendo que, em se tratando de textos psicanalíticos, está em jogo a trans-missão de conceitos, a autora questiona-se sobre o que sacrificar do senti-do, o que guardar da letra, e propõe uma “tradução nem literária, nem literal,mas na tradição da letra, no que isto implica de impossível e de invenção”(JESUÍNO-FERRETO). O que nos faz pensar que a tradução ultrapassa aquestão da passagem de uma língua a outra. Não se trata apenas de “equi-valências, de fidelidade, do palavra a palavra, do sentido, mas também deliteralidade, de letra e, ao mesmo tempo, de submissão ao significante e aseus efeitos” (Id.). A tarefa do tradutor o obriga a um exercício de perda eisso impõe a ele constatar que o lugar do impossível não é o mesmo emlínguas diferentes. Estarmos referidos a esse impossível afasta-nos de umatradução que responderia com a impotência.

CASTRO, J. M. O analista-tradutor

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BENJAMIN, W. – A tarefa do tradutor. In: Clássicos da teoria da tradução. Trad.: S.Lages. Florianópolis: UFSC, 2001._____________ – Magia e técnica, arte e política. Trad.: S. Rouanet. São Paulo:Brasiliense, 1996.CALVINO, I. – Contos fantásticos do século XIX. Trad.: A. Bernardini. São Paulo:Companhia das Letras, 2004.FREUD, S. – Lo inconciente (1915). Trad.: J. L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu,1998.GAGNEBIN, J. M. – História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspec-tiva, 2004.JESUÍNO-FERRETO, A. – Tradouire. Mimeo.LAGES, S. – Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002.LO BIANCO, A. C. O que a comparação entre a tradição religiosa e os novosmovimentos religiosos nos ensinam sobre o sujeito hoje? – Mimeo, 2005.

SEÇÃO DEBATES

BARTLEBY

Contardo Calligaris¹

“Bartleby, o Escrivão”, de Herman Melville (o autor de “Moby Dick”), está se tornando um pequeno best-seller. O fato é que a editora,CosacNaify, criou um maravilhoso livro-objeto, que reproduz material-

mente o espírito do próprio Bartleby: fechado e costurado, resistente. Bartlebyé um escrivão, aparentemente zeloso, que um belo dia começa a recusar,com monótona e tranqüila determinação, as tarefas que lhe são propostas.“Acho melhor não”: essa frase é tudo o que ele diz. Seu empregador (onarrador da novela) não consegue acesso algum à história de vida de Bartlebye às razões pelas quais ele não aceita ordens e serviços. Bartleby não vaiembora, não se irrita nem esbraveja, apenas se recusa. Exasperador, não é?Bartleby já foi explicado de mil maneiras: um Cristo moderno, um proletáriorevoltado, um precursor das personagens das peças de Samuel Beckett.Como ele não fala nada (segue silencioso, achando melhor não), permito-mesugerir minhas duas maneiras de ler a novela. 1) Não sou um perito emMelville. Li uma boa biografia (“Melville, a Biography”, de Laurie Robertson-Lorent) e sempre leio prefácios e posfácios. Basta-me para saber o quesegue. Melville escreveu uma boa parte de suas ficções curtas entre 1853 e1856. “Moby Dick”, o romance do qual ele esperava fama e fundos, tinha sidoum fracasso de vendas, em 1851. Em 1849 nascera Malcolm, seu primeirofilho, que Melville recebeu atormentado pelo medo de não conseguir susten-tar sua família. Malcolm devia ter quatro ou cinco anos quando Melville es-creveu “Bartleby”. Ora, não consigo me desgrudar desta idéia: o escrivão,que não sai do escritório, não quer falar dele mesmo e se recusa a cumprirtarefas e pedidos, é curiosamente parecido com uma criança que resisteobstinadamente aos pais, não diz nada (porque não pode ou não quer) sobreas razões de sua oposição e, claro, não tem como sair de casa. Muitos paisreconhecerão, no “acho melhor não” de Bartleby, o antagonismo surdo de

¹Publicado no Jornal “Folha de São Paulo”, 11 de agosto de 2005

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SEÇÃO DEBATES CALLIGARIS, C. Bartleby

filhos que, apesar de mil perguntas dos adultos, mantêm-se obstinadamentehostis, silenciosos e enigmáticos. Esse negativismo fechado, sem conver-sa, cresce à medida que ele enfurece os adultos. Se não for encontrado umjeito de trocar palavras e afetos, o prognóstico é delicado. Malcolm, o primei-ro filho de Melville, suicidou-se com um tiro na cabeça, aos 18 anos. 2)Psiquiatras, psicanalistas e críticos se debruçaram sobre a personalidadede Bartleby, que já foi diagnosticado como esquizofrênico, anoréxico etc.Mas há um transtorno da personalidade pelo qual a leitura da novela deMelville vale mais que uma monografia patológica. O “DSM IV - Manual Diag-nóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”, da American PsychiatricAssociation, descreve o “transtorno de personalidade agressiva-passiva” comoum padrão de atitudes negativas e de resistência passiva diante dos pedidosde produzir um desempenho adequado. O sujeito se recusa, passivamente,a cumprir tanto sua rotina social quanto suas tarefas ocupacionais. Amonografia mais recente sobre esse quadro é “Passive-Aggression: a Guidefor the Therapist, the Patient and the Victim” (agressão-passiva: um guiapara o terapeuta, o paciente e a vítima), de Martin Kantor. A personalidadeagressiva-passiva é tipicamente masculina. Nas brigas de casais, o homemagressivo-passivo é a parede contra a qual jogam a louça de casa mulheresenlouquecidas pela fria compostura de seus companheiros. Os psiquiatraspodem discordar quanto às causas do transtorno, que se encontram na vidapregressa do sujeito, mas todos parecem concordar quanto ao seguinte: oagressivo-passivo é cheio de ódio e ressentimento. Talvez ele se limite aresistir passivamente para não soltar uma agressão que, sem isso, seriaexplosiva e mortífera além da conta. Pois bem, o que me impressiona, ao lere reler “Bartleby”, é que essa novela de menos de 40 páginas, em que nãoaprendemos nada sobre a vida do escrivão ou sobre seus pensamentos, émuito, mas muito mais rica em sabedoria (inclusive clínica) do que o livro deKantor (que, aliás, é um bom livro). Em outras palavras, o que me impressi-ona é sobretudo o milagre da literatura, sua inexplicável capacidade de nosdar acesso à experiência humana. Misteriosamente, os silêncios de Melvilleme aproximam de Bartleby mais que as 232 páginas de Kantor. No fim dacoluna da semana passada, mencionei uma idéia segundo a qual a medio-

cridade das “elites” seria o efeito inevitável de uma mobilidade social acelera-da. Nesse caso, as “elites” econômicas ou políticas se constituiriam sem tera chance de crescer culturalmente. Alguns leitores me responderam quenossas elites já são carregadas de MBAs e coisas que os valham. Há ummal-entendido: a cultura não são as coisas que sabemos, a cultura é nossacapacidade de compreender (não só entender) a estranha diversidade denossa espécie. É uma coisa que se encontra nas salas de cinema, nosteatros e ao abrir, sempre que der, as páginas de uma obra de ficção. Bartleby,por exemplo.

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SEÇÃO DEBATES KEHL, M. R. O País no divã...

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O PAÍS NO DIVÃ, ENTRE TAPAS E BEIJOS1

Maria Rita Kehl

A PAIXÃO, A RETÓRICA E O PAINHO QUE O POVO AMA

Temos de distinguir a passionalidade da retórica. Porque, muitas ve-zes, o que vemos é uma retórica de passionalidade para que se consiga aadesão da platéia – é um recurso melodramático que produz certoengajamento do público. Essa ressalva é importante porque o político é um“fingidor” – ele e o poeta sabem fingir a dor que deveras sentem ou nãosentem de jeito nenhum.

Agora, a política é o campo de disputa pela hegemonia de poder. Eessa disputa não se dá sem paixão. Assim, aspectos infantis, narcisistas,estão em jogo. É do humano que essas paixões de glória, essas paixõespúblicas – aquelas que dizem respeito à disputa do poder, à efetivação deprojetos e ideais – acabem por se contaminar pelo infantil, pelo egoísmomais primário, aquele que diz “eu quero para mim, quero ser melhor que todomundo, quero que todos gostem de mim”. É por isso que uma sociedadedemocrática tem de ter mecanismos institucionais e de controle popular quebusquem impedir essa contaminação – ou que pelo menos coíbam os ex-cessos. No Brasil, esse personalismo da política é uma patologia. Tome oexemplo extremo de Antonio Carlos Magalhães. Ali tem uma mistura entrerelação de poder e afeto. ACM é o painho que os eleitores vêem como oprotetor que os ama porque ama a Bahia. O Brasil precisa superar esse tipode contaminação.

A IMPRENSA, O ESPETÁCULO E O PALADINO DA JUSTIÇA

A imprensa considera que o fato vale pela sua versão pública. Aconte-ce que a sociedade do espetáculo tem uma capacidade técnica de gerar

efeitos que não tem precedentes na história da humanidade. Esse aparatocria fatos consumados com muita rapidez. Mesmo um caluniador sendodepois processado e condenado, esses fatos já se criaram, com efeitosavassaladores.

Fiquei impressionada com a servidão e a subserviência dos jornalis-tas que entrevistaram Roberto Jefferson no programa Roda Viva segunda-feira. Havia ali representantes de todos os órgãos de imprensa, o Paulo Markun,que respeito muito. E ninguém lembrou que ele também era acusado, quepoderia prestar contas a respeito das acusações que pesam sobre ele. Nin-guém o encostou contra a parede e ele jantou todas aquelas pessoas. Queimprensa nós temos? Pensar que o governo no qual votei me decepcionahoje em uma série de aspectos – não todos – me deixa tão desamparadaquanto pensar que, para saber o que está acontecendo, dependo de umaimprensa na qual confio cada vez menos. Não estou dizendo que não sedevia levar em conta as denúncias que Jefferson faz. Mas tratá-lo como pala-dino da justiça foi absolutamente horroroso.

O FIM DA ESPERANÇA E UM PRESIDENTE QUE FOIVENDIDO COMO MARCA DE FANTASIA

Em primeiro lugar, uma ressalva que volta à questão da imprensa.Esse assassinato das esperanças de quem acreditou em um governo petistaestá sendo inflado de forma irresponsável desde o primeiro mês do governoLula. Eu me espanto de ver articulistas que nunca defenderam o PT nem aeleição dele de repente se colocarem como decepcionados. Por quê, seachavam Lula incapaz e analfabeto?

Outro aspecto sobre o fim da esperança diz respeito às campanhaseleitorais. Elas têm sido conduzidas com uma ênfase tão grande nas técni-cas publicitárias mais apelativas, espetaculares e infantilizadoras que o elei-tor já virou público-alvo. Indubilavelmente, isso cria muito mais do que espe-rança – cria fantasia, que é o fundamento da publicidade. Participo de umgrupo de intelectuais do PT e por isso posso falar com grande senso de¹Editamos, aqui, parte da matéria feita pelo repórter Fred Melo Paiva, publicada no Jornal “O

Estado de São Paulo”, 26 de junho de 2005, em que a autora aborda a atual crise política.

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SEÇÃO DEBATES

lealdade – nós sempre criticamos o modo como a campanha do Lula foiconduzida. Éramos contra vendê-lo como uma marca de fantasia. No entan-to, parecia que o jogo era esse e a única maneira de vencer era essa. Muitagente votou no Lula como votou antes no Maluf ou no Pitta – com umaexpectativa absolutamente fantasiosa. Assim, Lula, PT, Duda Mendonça sãoco-responsáveis por isso. Bolero de Ravel com grávidas descendo uma coli-na verde (uma das últimas cenas apresentadas pela campanha de Lula em2002) é um universo de sonho que não tem nada a ver com política. Além deser o fim da picada do brega.

Muita coisa interessante nas políticas sociais não é divulgada. A grandedecepção, portanto, não é com os projetos sociais ou a política econômica.Talvez a grande decepção seja com a face propriamente republicana e políti-ca desse governo. O presidente Lula e alguns principais representantes dogoverno se comportam com a ética da cordialidade, que é da pior tradiçãopolítica brasileira. As relações pessoais passam à frente das relaçõesinstitucionais e da própria ética. Estão fazendo da política um jogo de afetose emoções. Quando Lula escolhe Romero Jucá para o Ministério da Previ-dência e aparecem denúncias, ele diz que não vai julgar alguém que não foicondenado. Está certo. Mas tem também obrigação de dizer que, se estásob suspeita, não pode ser ministro. Não é pessoal. Não é questão de seramigo ou aliado. Quando Roberto Jefferson foi acusado, ele repetiu que tinhaali um amigo, amigo até o fim. Não é disso que deveria se ocupar a política.Me parece que Lula não tem a dimensão de uma ética pública. Ou a perdeu.

O MENSALÃO, AS FINALIDADES DO GOVERNO E A DEMOCRACIA

Não gostaria de entrar em particulares que desconheço. Mas, emtese, qualquer política em que os fins justificam os meios já estará corrom-pendo esses fins. O Brasil tem como grave problema a despolitização gene-ralizada, agravada por 20 anos de ditadura. Nesse cenário, é claro que nãovale a política dos fins que justificam os meios – porque um dos fins é oamadurecimento da democracia. Esse governo não foi criado só para cuidardos pobres, e espero que o Lula não esteja aí apenas como novo pai dos

pobres. Ele teria sido eleito para aperfeiçoar um caminho democrático que,ao meu ver, poderia levar a futuros governos de esquerda – para que o povo,mais consciente, possa votar a seu favor em políticas que não sejam populistasou neoliberais.

ROBERTO JEFFERSON E A DIFERENÇA ENTREOPORTUNISMO E RESSENTIMENTO

O ressentimento – note a partícula “re” – é uma mágoa que não ces-sa. Ela provoca uma queixa “re-sentida”, um afeto que se repete e não sequer esquecer nunca. Há interesse em manter essa mágoa ativa. Primeiroporque o sujeito se lembra de sua mágoa para esquecer que, na origem, elepode ter sido cúmplice. Então faz questão de lembrar o que o outro lhe fez –uma recordação que encobre o que ele próprio permitiu que o outro lhe fizes-se. Em segundo lugar – e citando Nietzsche –, essa mágoa, a queixa e olamento são a própria vingança do ressentimento. Porque o que ele pretendeé produzir culpa e má consciência no outro – “Olha que vítima que eu sou,olha que mal você me fez, olha como você é ruim e eu sou bom, olha comopude oferecer a outra face”.

Embora o ressentimento seja malvisto, se você não nomeá-lo, conse-gue fazê-lo aparecer com um certo brilho ético. Por que o ressentido é covar-de e não luta? Porque ele se vê como um puro, como alguém que não sujaas mãos nas disputas da vida, como alguém mais sensível que, por isso,não entrou na feia briga da vida. Muito freqüentemente, aquele que chama-mos de ressentido não é o ressentido – é o revoltado, o indignado que nuncadeixa barato. O ressentido você não percebe, porque ele se apresenta comomelhor do que os outros, o que sofre porque lhe fizeram mal, mas ele é uminocente. Esse é seu trunfo.

No caso particular das denúncias que surgem contra o governo, épreciso diferenciar ressentimento de oportunismo. Eu não sei se RobertoJefferson estava lá sofrendo calado as suas mágoas contra o poderoso JoséDirceu. Realmente ele tinha lá suas broncas e, quando se viu na berlinda,lançou mão de fofocas que ele sabia que iriam criar uma confusão danada.

KEHL, M. R. O País no divã...

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SEÇÃO DEBATES

Não estou dizendo que não sejam verdadeiras as acusações que ele fez –mas me parece oportunismo. Pode até sugerir ressentimento quandoteatralizado. Mas não acredito que ele tenha guardado a história do mensalãoporque fosse um pobre oprimido. Deve ter feito isso pensando em usá-la aseu favor quando chegasse a hora. Vou citar uma frase de Aloizio Mercadantequando ele se elegeu pela primeira vez e foi conhecer a realidade do Con-gresso: “Aqui o Brasil está representado. Tudo que tem no Brasil está noCongresso. Só não tem o bobo.” Ou seja, é uma boa amostra do País,excluindo-se os bobos. Nem quando se fala que o outro é mulherengo consi-go acreditar que haja ali ressentimentos. O que está em jogo, me parece, éuma esperteza baixa. Mesmo quando vem o Bolsonaro e grita “terrorista”, éuma passionalidade calculada. Ele imagina o efeito que aquilo vai ter – nãofala do coração, não exprime sua justa indignação.

PEDRO COLLOR, A SECRETÁRIA KARINA SOMAGGIO E A EX DE VALDEMAR COSTA NETO

Pedro Collor começou a jogada. Poderia ter lá seus ressentimentos,mas se arriscou, o que não é característico do ressentido. Não posso julgara secretária ou a ex-mulher porque não as conheço. Mas o lugar histórico damulher na sociedade favorece muito o ressentimento.

AS METÁFORAS DE LULA E O HOMEM CORDIAL DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

O terreno do amor é muito fértil para o aparecimento do ressentimentoporque mexe com o que temos de mais infantil. As relações de poder noBrasil são muito afetivas, como já se disse. Mas nossa sociedade não sereconhece nunca como ressentida, deixando camuflado esse sentimento. Oresultado disso são efeitos de atraso – por isso nos colocamos diante dasautoridades como crianças que ficam esperando ser reconhecidas por umpai amoroso. É o infantil frente a uma figura de poder maior, de quem seespera reconhecimento e justiça, sem que se tenha de tomar nenhuma atitu-

de. Isso nos remete a Sérgio Buarque de Holanda, quando analisa o estilo decordialidade da política brasileira desde os tempos da colonização. Nele, oscritérios de afeto valem mais do que os critérios da lei – aos amigos, tudo;aos inimigos, Justiça. Assim, os valores da vida privada superam e invademos domínios da vida pública. Nesse ponto, no sentido de seu discurso e desua imagem, Lula se comporta como o homem cordial. Os seus exemplossão sempre da vida familiar – o pai com os filhos, a criança que tem deesperar tantos meses para nascer, a árvore que brota do quintal. São exem-plos da natureza, do afeto, do privado – nunca da política. Com isso, ele falaa linguagem que a sociedade brasileira está acostumada a ouvir. Pode atéter muito sucesso com suas metáforas. Mas não politiza a sociedade, aocontrário – reforça a idéia de que o líder político é o pai bondoso que vaicuidar de nós, que nos ama e por isso devemos amá-lo. O plano dos afetos,no entanto, é ambivalente. Para amor virar ódio é um estalar de dedos, de-pendendo do nível de decepção. Além disso, esse tipo de postura não elegesomente o Lula. Elege, por exemplo, o Garotinho. Aliás, se você não politizao debate, se não combate essa cordialidade da política brasileira, elege umLula para cada dez Garotinhos.

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22/10/05 10h às 12h Sede da APPOA Núcleo Toxicomanias

24/10/05 20h30min Sede da APPOA Núcleo das Psicoses

OUTUBRO – 2005

24 20h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Publicações

08/10/05 10h às 12h Sede da APPOA Núcleo de Psicanálise de Crianças

21 e 28

13 e 27 20h30min Sede da APPOA Reunião do Serviço de Atendimento Clínico

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S U M Á R I O

EDITORIAL 1

NOTÍCIAS 3

SEÇÃO TEMÁTICA 9

NOTAS DE LEITURA - O NARRADOR -DE W. BENJAMIN POR QUE ISSOINTERESSARIA A UM PSICANALISTA?Lucia Serrano Pereira 9A VIDA COTIDIANA DAS PALAVRAS:A HISTÓRIA DE CATARINAJoão Biehl 14NARRATIVA OU VERBALIZAÇÃO?Jaime Betts 30O ANALISTA-TRADUTORJuliana de Miranda e Castro 37

SEÇÃO DEBATES 43

BARTLEBYContardo Calligaris 43O PAÍS NO DIVÃ, ENTRE TAPAS EBEIJOSMaria Rita Kehl 46

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro

Integrantes: Ana Laura Giongo, Fernanda Breda, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos,Maria Cristina Poli, Maria Lúcia Müller Stein, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior,

Robson de Freitas Pereira e Rosane Palacci Santos

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2005/2006

Presidência: Lucia Serrano Pereira1a Vice-Presidência: Ana Maria Medeiros da Costa

2a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees1a Secretária: Marieta Madeira Rodrigues

2a Secretária: Ana Laura Giongo1a Tesoureira: Maria Lúcia Müller Stein

2a Tesoureira: Ester TrevisanMESA DIRETIVA

Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ângela Lângaro Becker, Carmen Backes,Edson Luiz André de Sousa, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,

Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Ângela Cardaci Brasil,Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz, Maria Cristina Poli, Nilson Sibemberg,

Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira e Siloé Rey

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

AGENDA 52

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NARRATIVA E EXPERIÊNCIA

N° 140 – ANO XII OUTUBRO – 2005