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Como profissional da area de Ciencias Socials, acostu- mei-me as analises que tern como referencia! as relacoes sociais e as ideias, e nao a perspectiva do corpo. De repen- te, percebi o homem fragmentado de uma outra forma... Corpos separados na simultaneidade espaco-temporal, cor- pos separados entre si, preparados para o trabalho, distantes do prazer... Mas a reconstrucao polftica, economica e so- cial apresentada pela autora foi dando ao "corpo individual a-historico" uma historia. Ao buscar a genese da Educacao Ffsica nos ideals burgueses do seculo XVIII, contextualizou as "bases cientfficas" que nortearam a inclusao desta, como disciplina, nos colegios brasileiros a partir do seculo XIX. Ao longo do trabalho percebe-se a utilizacao criteriosa de fontes documentais pouco exploradas na area, o que suge- re a abertura de novas vertentes de analise ao profissional de Educacao Ffsica. O livro ainda nos da elementos para percebermos que o que devemos descartar em nossa perspectiva metodolo- gica, seja na Educacao Ffsica ou fora dela, e o mecanicismo do pensamento positivista e nao a observacao, a experi- mentacao e a comparacao, que podem ser instrumentos fundamentals de critica se utilizados de uma forma dinami- ca e processua!. Dulce Maria Pompeo de Camargo AUTORES A5SOCIADOS O CO c (y E fU u Carmen Scares EDUCA^AO FISICA Raizes Europeias z Brasil AUTORES ASSOCIADOS

Educação Física - Raízes européias e Brasil - Carmen Lucia Soares

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Como profissional da area de Ciencias Socials, acostu-

mei-me as analises que tern como referencia! as relacoes

sociais e as ideias, e nao a perspectiva do corpo. De repen-

te, percebi o homem fragmentado de uma outra forma...

Corpos separados na simultaneidade espaco-temporal, cor-

pos separados entre si, preparados para o trabalho, distantes

do prazer... Mas a reconstrucao polftica, economica e so-

cial apresentada pela autora foi dando ao "corpo individual

a-historico" uma historia. Ao buscar a genese da Educacao

Ffsica nos ideals burgueses do seculo XVIII, contextualizou

as "bases cientfficas" que nortearam a inclusao desta, como

disciplina, nos colegios brasileiros a partir do seculo XIX.

Ao longo do trabalho percebe-se a utilizacao criteriosa de

fontes documentais pouco exploradas na area, o que suge-

re a abertura de novas vertentes de analise ao profissional

de Educacao Ffsica.

O livro ainda nos da elementos para percebermos que

o que devemos descartar em nossa perspectiva metodolo-

gica, seja na Educacao Ffsica ou fora dela, e o mecanicismo

do pensamento positivista e nao a observacao, a experi-

mentacao e a comparacao, que podem ser instrumentos

fundamentals de critica se utilizados de uma forma dinami-

ca e processua!.

Dulce Maria Pompeo de Camargo

AUTORESA5SOCIADOS

OCOc(yEfUu

Carmen Scares

EDUCA^AO FISICARaizes Europeias z Brasil

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EDUCAQAO FISICA

RAIZES EUROPEIAS E BRASIL

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.

Uma editora educative a service da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de Oliveira, 901Barao Geraldo - CEP 13084-008Campinas-SP - Pabx/Fax: (19) 3289-5930E-mail: [email protected] on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho Editorial "Prof. Casemiro dos Reis Filho"Dermeval SavianiGilberta S. de M.JannuzziMaria Aparecida MottoWalter E. Garcia

Diretor ExecutiveFlavio Baldy dos Reis

Coordenadora EditorialErica Bombard/

EDUCAQAO FISICA

RAIZES EUROPEIAS E BRASIL

CARMEN LUCIA SCARES

Assistente EditorialA/me Marques

RevisaoRuthjoffily

Diagramacao e ComposicaoJose Sever/no Ribeiro

CapaCriagao e LeiauteMilton Jose de Almeida

Arte-FinalVlad CamargoErica Bombard!

Impressao e AcabamentoGrafica Paym

EDICAO

COLEQAO EDUCAQAO CONTEMPORANEA

AUTORESASSOCIADOS

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Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP)(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Scares, Carmen Lucia,Educagao fisica: raizes europeias e Brasil/Carmen Lucia Soares;prefacios Denise Bernuzzi de Sant'Anna e Dulce Maria Pompeo deCamargo - 3. ed. - Campinas, SP: Autores Assoclados, 2004. -(Colegao educagao contemporanea)

Bibliografia.ISBN 85-7496-018-7

1. Educagao fisica - Aspectos sociais 2. Educagao fisica - Brasil -Historia I. Sant'Anna, Denise Bernuzzi de. II. Titulo. III. Serie.

94-1814 CDD- 613.70981

indices para catalogo sistematico:

1. Brasil: Educagao fisica: Historia 613.70981

la edigao - 1994Impresso no Brasil - agosto de 2004

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Nenhuma parte da publicacao podera ser reproduzida ou transmitida de qualquermodo ou por qualquer meio, seja eletronico, mecanico, de fotocopia, de gravacao, ououtros, sem previa autorizacao por escrito da Editora. O Codigo Penal braslleirodetermina, no artigo 184:

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Pena - reclusao de um a quatro anos e multa."

L

AGRADECIMENTOS

A primeira versao deste livrofol apresentadacomo dissertacao de mestrado na PUC-SP, no Programa de

Pos-Graduacdo em Educacdo, area de concentracdo Filosqflae Historia da Educacdo, no ano de 1990, sob a orientacao

cuidadosa da Prof.a Dr.a Ediogenes Aragao, a quern agradecoprqfundamente. Sem suas criticas e correcoes, sem o seuolhar atento de historiadora, este trabalho nao teria sido

elaborado.

A versao inicial da dissertacdo defendida sofrenimportantes modi/icacoes com base na atenta e cuidadosa

leitwafeita pela Prof.a Dr.a Gilberta Jannuzzi, a querntambemagradefo neste momenta, deformapublica. Semsua

confianea, sua cren$a na necessidade de acolher temasemergentes no campo da educacdo, este livro nao teria sido

possivel naquele momenta, 1994, data de sua primeiraedicdo.

Por Jim, agradefo aos meus amigos e colegas pelascriticas e sugestoes, bem como pelos muitos modos que este

livro tern sido trabalhado... e aos meus alunos, aos queforam, sao e serao.

Campinas, invemo de 2004

Page 5: Educação Física - Raízes européias e Brasil - Carmen Lucia Soares

SUMARIO

PREFACIO A 2a EoigAoDenise Bernuzzi de Sant'Anna

PREFACIODulce Maria Pompeo de Camargo

CAPITULO IAS BASES POLITICAS, ECONOMICAS E SOCIAIS DA EDUCACAO FISICA 5

1. A Ciencia e a construcao do homem novo necessarioao capital: homem produtivo/homem biologico 5

2. Da saude do "corpo biologico" a saude do "corpo social":o pensamento medico higienista e a definigao doshabitos da familia moderna 19

CAPITULO II"EM NOME DA SAUDE DO CORPO SOCIAL..."

1 • Instituicao escolar e educacao fisica: "contribuicao"para manter e prevenir a saude do corpo social

2. O espaco da educacao fisica na educacao3. As escolas de ginastica: saude, disciplina e civismo

33

33

46

51

CAPJTULO IIIA EDUCAQAO FISICA NO BRASIL: SAUDE, HIGIENE, RACA E MORAL 69

1- Construindo um Brasil novo: a educagao fisica comoinstrumento da ordem 69

Page 6: Educação Física - Raízes européias e Brasil - Carmen Lucia Soares

2. A educagao fisica na educagao das elites: um distintivode classe 73

3. A educagao das elites, a educagao do povo e o papelda educagao fisica S3

4. Em busca da educagao e da saude do povo... os "olhares"se voltam para a educagao fisica 88

5. Pensamento medico higienista e educagao fisica naPrimeira Republica: o reforgo "cientifico" a uminstrumento da ordem 95

6. Educagao fisica e eugenia: algumas ideias de Fernandode Azevedo i IQ

CONSIDERAgOES FINAIS 135

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 139

R E F A C I O A 2 a E D i g A O

F J ealizar a historia da educacao fisica nao e somente reconhecer aJ. X. sucessao de seus profissionais e teoricos, nem unicamente listarseus principals metodos e tecnicas ao longo dos anos. Primeiro porque estahistoria e perpassada por relagoes de poder entre ciencia e sociedade, po-litica e cultura. Segundo porque se trata de uma historia que, como tan-tas outras, e plural, atingindo diferentes campos do saber e envolvendoos mais diversos interesses economicos e sociais.

Todavia, a consciencia destas duas razoes ainda nao garante o en-tendimento da historicidade da educagao fisica e, em particular, a com-preensao de suas raizes europeias no Brasil. Seria necessario, tambem,investigar a criacao de suas verdades ao longo dos anos, detectar suaspretensoes em aprofundar o trabalho da cultura no espaco biologico,questionar, enfim, a naturalidade com a qual muitos associaram (e aindahoje associam) a educacao fisica a higiene dos corpos e a produtividadeno trabalho.

E com grande clareza e com uma boa dose de elegancia que CarmenScares enfrenta tais desafios neste livro e demonstra o quanto a ambicaode regenerar a sociedade e o esforco em disciplinar os corpos foram inte-grados a educacao fisica, legando-lhe pretensoes politicas muito maisamplas do que poderia supor qualquer anodino pesquisador de nossos dias.

Logo nas primeiras paginas do livro, o leitor se depara com uma ana-lise que nao se restringe a descricao dos metodos da educacao fisica, iso-lando-os de suas historias. A autora acolhe a complexidade dos interes-ses sociais dedicados a fortalecer e educar os corpos, principalmente aoinvestigar uma epoca assombrada pela ameaca de degenerescencia e en-cantada pelas promessas dos progresses cientificos e tecnologicos damedicina. Sensivel a complexidade das historias que constituem a edu-cacao fisica, a autora reintegra as disciplinas corporais e as herancas cien-tificas da ambicao de educar o corpo na historia politica, social e culturaldas sociedades ocidentais.

Esta perspectiva de trabalho nao poderia, portanto, deixar de con-duzir a autora rumo aos arquivos e ao estudo de documentos diversifica-"Os, permitindo-lhe a compreensao da construcao da educagao fisica,Wstorica e socialmente, para alem de seus detalhes anedoticos e de seusmementos de gloria. Por esta razao, o livro de Carmen Soares e sobre a

cagao fisica, mas tambem sobre a emergencia de coagoes, normas eProblemas nos campos da saude, da beleza, da moral familiar e da medi-

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2 EDUCACAO FlSICA

cina higienica no Brasil. Ela percebe com grande acuidade o quanto oideario burgues de civilidade teceu lacos estreitos entre a biologia e acultura, gracas ao apoio de eugenistas, politicos e educadores: destes la-cos resultou uma nova forma de lidar com o corpo e de conceber a vida,doravante pautada pela busca da conquista individual do organismo sa-dio e da vontade disciplinada.

Aliancas outrora insuspeitaveis foram, portanto, estabelecidas entremedicos e educadores, empresarios e politicos. Regenerar as racas, ten-do como ponto de partida e de chegada o corpo individual e, em particu-lar, os corpos de criancas e mulheres, deixava de ser uma proposta imo-ral, como poderia parecer a diversos religiosos anteriores a Republica, parase tornar um modo sao e virtuoso de investir no future nacional.

Educar fisicamente para enrigecer o carater, combater vicios moralse socials, acelerar a produtividade da Nacao... Carmen Scares mostra oquanto a Educacao Fisica foi transformada numa especie de remediouniversal, como se ela fosse capaz de erradicar do corpo nacional e indi-vidual a presenca de tudo o que era considerado sinonimo de atraso. Alias,boa parte da elite brasileira, das primeiras decadas do seculo XX, acre-ditava na educacao fisica como meio de minimizar os descompassos quesupostamente afastavam o Brasil da possibilidade de ser uma Nacaomoderna e civilizada. Uma visao biologizada da educacao fisica foi entaoestabelecida, demonstra a autora, do mesmo modo que uma medicalizacaoda visao politica pretendia transformar as cidades em corpos saudaveis,livres de todo e qualquer imponderavel. Ambicao de disciplina e tambemde controle, revela Carmen Scares, que nao cessa de atravessar as esco-las, leis, teses e os congresses relatives a Educacao Fisica.

Neste estudo pioneiro, a ambicao de disciplinar e controlar o corpoaparece com toda a sua forca e a sua violencia, expressando os meandrosde poderes tao sedutores quanto dominadores. E, por isso mesmo, a lei-tura deste livro abre questoes nao apenas sobre o passado mas, tambem,sobre o presente. E Carmen Scares que faz o leitor refletir sobre esta pas-sagem no tempo: talvez os cultos ao corpo de nossos dias sejam muitodistintos daqueles do tempo de Tissie, Rui Barbosa e Fernando Azevedo.Mas, certamente, muitos destes cultos ainda sac, como no passado, cria-dos, vendidos e utilizados como se fossem remedies universais, maneiras"politicamente corretas" de cuidar do corpo e de aproxima-lo dos novosideais de utilidade e de consume hoje em expansao.

Denise Bernuzzi de Sant'AnnaPROFESSORA DOUTORA DO

DEPARTAMENTO DE HlSTORIA DA PUC-SP.

P R E F A C I O

A o desvendar com o saber do saber as entrelinhas escritas porCarminha, sinto como se estivesse, ao mesmo tempo, acompanhan-

do a sua trajetoria academica, sua vibracao, seu rigor metodologico, suainsistencia e consistencia. E nesse caminhar era ouvindo, ora lendo o seutexto, o que eu sempre soube foi ficando cada vez mais claro. Como es-crever um prefacio e o mesmo que escrever um manifesto, considero opor-tuno aqui registrar, manifestar minhas sensacoes frente a obra. Perplexae intrigada, fiquei imaginando por que a sua leitura ampliou o meu cam-po de percepcao. A resposta veio imediata. Como profissional da area deCienclas Socials, acostumei-me as analises que tern como referencial asrelacoes socials e as ideias, e nao a perspectiva do corpo. De repente,percebi o homem fragmentado de uma outra forma. Em alguns memen-tos da leitura o obvio passou a ser rnais obvio. Corpos separados na si-multaneidade espaco-temporal, corpos separados entre si, preparadospara o trabalho, distantes do prazer... Mas a reconstrucao politica, eco-nomica e social apresentada pela autora foi dando ao "corpo individuala-historico" uma historia. Ao buscar a genese da Educacao Fisica nosideais burgueses do seculo XVIII, contextualizou as "bases cientificas" quenortearam a inclusao desta, como disciplina, nos colegios brasileiros a par-tir do seculo XIX. Ao longo do trabalho, percebe-se a utilizacao criteriosade fontes documentais pouco exploradas na area, o que sugere a abertu-ra de novas vertentes de analise ao profissional de Educac/ao Fisica. Apropria Carminha vem realizando pesquisa para a sua tese de doutora-do, sob a minha orientacao, acerca do "Metodo Frances", que muito in-fluenciou a Educacao Fisica Escolar no Brasil.

Outro merito do livro foi o de nos lembrar que e conhecendo e com-preendendo que transformamos. Hoje, a Educacao Fisica busca no movi-mento corporal uma forma de libertacao do homem, em contraposicao aservidao preconizada pelos ideais liberals. Nesse processo, este estudoapresenta grande contribuicao. Ele nos da elementos para percebermosque o que devemos descartar em nossa perspectiva metodologica, seja nakducacao Fisica ou fora dela, e o mecanicismo do pensamento positivistae nao a observacao, a experimentacao e a compara?ao, que podem sermstrumentos fundamentals de critica se utilizados de uma forma dina-TOlca e processual. Esperamos que esta iniciativa sirva como um incenti-

0 de reflexao aos leitores. Para que as atividades fisicas deixem de seraPenas agentes de instrufao, de treinamento e de disciplinarizacao e ne-

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4 EDUCACAO FJSICA

cessario que na organizacao dos movimentos sejam considerados naoapenas o corpo, mas tambem os sentimentos e as relates socials. For terpercebido a importancia e o valor da Historia Social para a Educacao Fi-sica, a professora Carminha realizou um estudo inedito na area, que, noentanto, como ela bem sabe, e apenas o primeiro passo...

Dulce Maria Pompeo de Camargo

C A P I T U L O - U M

As BASES POLITICAS, ECONOMICASE SOCIAIS DA EDUCACAO FISICA

1. A GENOA E A CONSTRUCAO DO HOMEM NOVONECESSARIO AO CAPITAL: HOMEM PRODUTIVO/HOMEMBIOLOGICO

O seculo XIX e particularmente importante para o entendimentoda Educagao Fisica, uma vez que e neste seculo que se ela-

boram conceitos basicos sobre o corpo e sobre a sua utilizagao comoforca de trabalho.

Na Europa e em especial na Franga, este e o periodo no qualse consolidam o Estado burgues e a burguesia como classe, crian-do condigoes objetivas para que as suas proprias contradigoes declasse no poder aparegam, e seja inevitavel o reconhecimento daexistencia de seu oponente historico: a classe operaria. Para man-ter a sua hegemonia, a burguesia necessita, entao, investir na cons-trugao de um homem novo, um homem que possa suportar umanova ordem politica, economica e social, um novo modo de repro-duzir a vida sob novas bases. A construgao desse homem novo,Portanto, sera integral, ela "cuidara" igualmente dos aspectos men-tals, intelectuais, culturais e fisicos.

E nesta perspectiva que podemos entender a Educagao Fisicacorno a disciplina necessaria a ser viabilizada em todas as instan-

, de todas as formas, em todos os espagos onde poderia ser efe-

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6 EDUCAQAO FISICA

tivada a construgao deste homem novo: no campo, na fabrica, nafamilia, na escola. A Educagao Fisica sera a propria expressao fisi-ca da sociedade do capital. Ela encarna e expressa os gestos auto-matizados, disciplinados, e se faz protagonista de urn corpo "sau-davel"; torna-se receita e remedio para curar os homens de sualetargia, indolencia, preguica, imoralidade, e, desse modo, passa aintegrar o discurso medico, pedagogico... familiar.

Na consolidacao dos ideais da Revolugao Burguesa, a EducagaoFisica1 se ocupara de urn corpo a-historico, indeterminado, um cor-po anatomofisiologico, meticulosamente estudado e cientificamenteexplicado. Ela negara o funambulismo, os acrobatas, a especulacao,e buscara as explicates para a sua atuacao na visao de ciencia he-gemonica na sociedade burguesa: a visao positivista de ciencia.

A mesma visao de ciencia que fornecera respostas para as in-dagagoes que se coloca a burguesia no poder. A mesma visao deciencia que se constituira em canal para a veiculagao da visao demundo desta classe e que fornecera as justificativas para o seumodo de ser e de viver.

A Educagao Fisica Integra, portanto, de modo organico, o nas-cimento e a construgao da nova sociedade, na qual os privilegiosconquistados e a ordem estabelecida com a Revolugao Burguesa naodeveriam mais ser questionados. Estava sendo criada pelo homem,sujeito que conhece, uma sociedade calcada nos ideais de liberda-de, igualdade e fraternidade, uma sociedade na qual haveria ummercado livre, uma venda livre da forca de trabalho2. Estava se con-solidando o triunfo do capitalismo, que ocorre sob a diregao da bur-guesia a partir da dupla revolugao3, triunfo este que rompe e abole

1. Ao longo deste trabalho, o termo Educagao Fisica, escrito com letra maiuscu-la, sera utilizado quando nos referirmos as sitematizagoes cientificas ocorridasem torno dos exercicios fisicos, jogos e esportes. O termo "ginastica", que apa-rece em obras da epoca, pode ser considerado como sinonimo de Educagao Fi-sica, e em alguns momentos ele sera por nos utilizado, assim como apareceracom frequencia em citacoes de diferentes autores.

2. "Por forga de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjuntodas faculdades fisicas e mentais, existentes no corpo e na personalidade vivade um ser humano, as quais ele poe em acao toda vez que produz valores-de-uso de qualquer especie." (MARX, 1985, p. 187)

3. "Nao seria exagerado considerarmos esta dupla revolugao - a francesa, bem maispolitica, e a industrial (inglesa) - nao tanto como coisa que pertenga a historia

AS BASES POLfnCAS, ECONQMCAS E SOCIAIS DA EDUCACAO FJSICA

as relagoes feudais em toda a Europa Ocidental, e cria, com seuideario, as condigoes objetivas para a construgao desta nova socie-dade, regida pelas leis do capital e pautada na abordagem positivistade ciencia.

Esta abordagem de ciencia, calcada nos principios da observa-gao, experimentagao e comparagao, e aquela que realizou, ao Ion-go dos seculos XVII a XIX, aquilo que poderiamos chamar de umanaturalizagao dos fatos socials, criando um "social biologizado".

Nesse processo de (re)construgao da sociedade, o homem, umser que se humaniza pelas relagoes socials que estabelece, passaa ocupar o centre de criagao desta nova sociedade. Porem passa aser explicado e definido nos limites biologicos. E o homem biologi-co e nao o homem antropologico o centro da nova sociedade. E e ohomem biologico que se torna o ponto de referenda: tudo o que oenvolve, tudo o que se altera, sera entendido como dominio seusobre o mundo. Nao existem mais milagres divinos para explicar ocurso dos acontecimentos, existem leis proprias a que o mundo fi-sico e humano deve obedecer e que a ciencia deve descobrir.

As descobertas cientificas da epoca, se, por um lado, permitemao homem construir novos instrumentos de trabalho e, assim, au-mentar o seu dominio progressivo sobre a natureza, transforman-do-a para melhor dela usufruir, por outro, criam as condigoes parasedimentar a atuagao da burguesia contra-revolucionaria no poder.

Existe uma clara consciencia de classe por parte da burgue-sia, ela tern a certeza de que e dona de seu proprio destine e de quesao os homens que transformam a natureza e criam as leis da so-ciedade, leis essas que seriam descobertas pela ciencia. E a razaoabsolutizada que determina todos os passes a serem dados para queseja possivel atingir a "plena felicidade".

O desenvolvimento e a complexificagao desta sociedade, das leisda economia, da exploragao desenfreada do capital em relagao aotrabalho, exigiam novas formas de pensar a natureza, a sociedadee as relagoes dos homens entre si. Era necessario que houvesseexplicagoes absolutamente irrefutaveis, portanto, cientificas sobre

dos dois paises que foram seus principals suportes e simbolos, mas sim comoa cratera gemea de um vulcao regional bem maior (...]" (HOBSBAWN, 1982, p. 18).

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8 EDUCAQAO FlSICA

a nova sociedade e sobre as exigencias de urn homem novo ainda emconstrugao.

O pensamento social da epoca, atraves das disciplinas socials,preocupou-se com estas relagoes e com o perfil deste homem novonecessario ao capital.

Nas disciplinas socials que se estruturaram ao longo do secu-lo XIX, predominou o pensamento naturalista do positivismo, quefez nascer a disciplina que tinha como objeto de enunciados posi-tives (cientificos) a propria sociedade como tal e suas leis (ver Luz,1988, p. 74).

O modelo de conhecimento adotado por esta corrente de pen-samento, que se baseia ainda na fisica, mas sobretudo na biologiae na historia natural, e o modelo mecanicista4, no qual a triade for-mada pelo sujeito que conhece, pelo objeto do conhecimento e peloconhecimento como produto do processo cognitivo, nao possui umarelagao dinamica. O conhecimento e copia do objeto, e reflexo cujagenese esta em relagao com a acao mecanica do objeto sobre o su-jeito, razao pela qual este modelo e qualificado de mecanicista(SCHAFF, 1983, pp. 73-74).

Este modelo de conhecimento, que serve de base para a abor-dagem positivista de ciencia, e de natureza individualista. Nele oindividuo - sujeito que conhece - aparece como que isolado da so-ciedade e alheio a sua acao, ou, em outras palavras, aparece comoum ser independente da cultura, podendo deste modo ser

reconduzido a sua existencia biologica que determina de uma ma-neira natural os seus caracteres e as suas propriedades [...] o in-dividuo humano e biologicamente determinado e introduz estadeterminac.ao no processo do conhecimento por intermedio do seuaparelho perceptivo; apenas registra e transforma os impulses vin-dos do mundo exterior [SCHAFF, 1983, p. 78].

A abordagem positivista de ciencia, pautada por este modelodo conhecimento, vai produzir um conjunto de teorias que passa-

4. Sobre o assunto, consultar Henri Lefebvre (1983) e Adam Schaff (1983).

AS BASES POIJnCAS, ECONOMICAS E SOC1A1S DA EDUCACAO FJSICA 9

rao a justificar as desigualdades socials pelas desigualdades bio-logicas, e, como tais, "desigualdades naturals". Uma vez abstraidoo elemento historico-social na determinagao do sujeito que conhe-ce, o que resta e um ser determinado pelas leis biologicas e cujasrelagoes humanas nao vao alem daquelas que estabelece a proprianatureza.

A sociedade passa, entao, a ser comparada ao organico e vistacomo um grande organismo vivo que evolui do inferior ao superior,do simples ao complexo. Consolida-se a ideia de que e regida porleis naturais, invariaveis e independentes da agao humana, porqueate mesmo o homem fica reduzido aos seus determinantes biologi-cos. Organicismo, evolucionismo e mecanicismo unem-se e confe-rem a racionalidade moderna os tragos caracteristicos do seculoXIX, o seculo da grande revolugao cientifica dos laboratories, daindustrializagao e do crescimento das disciplinas e instituigoessocials5.

Michel Lowy evidencia em seus estudos sobre os pressupostosbasicos da abordagem positivista de ciencia a ideia de serem asciencias da sociedade identicas as ciencias da natureza, devendoambas, de igual modo

limitarem-se a observagao e a explicagao causal dos fenomenos deforma objetiva, neutra e llvre de julgamento de valor ou de ideolo-gias, descartando previamente todas as prenogoes e preconceitos[LowY, 1987, p. 17].

A elaboragao de uma concepgao naturalizada do social se co-locava como necessaria, na medida em que a nova sociedade seapresentava de modo cada vez mais contraditorio. Nunca se viutanta riqueza acumulada e nunca as populagoes estiveram sujei-tas a uma miseria tao generalizada, e absolutamente desprovidasde qualquer defesa do ponto de vista social. Os grandes triunfos daindustria eram acompanhados de uma degradagao social jamaisvista e vivida por civilizagoes anteriores.

5- Ver Madel Terezinha Luz, 1988, pp. 78-79; ver tambem Emile Durkheim, 1983.

Page 11: Educação Física - Raízes européias e Brasil - Carmen Lucia Soares

10 EDUCACAO FJSICA

Nas primeiras decadas do seculo XIX, a economia europeia en-contra-se em plena expansao. A necessidade de um grande contin-gente de mao-de-obra se faz presente para atuar em dlferentes seto-res da producao, em dlferentes ramos do capital inerentes a divisaodo trabalho que, a cada momento, fragmenta-se mais e mais.

As desigualdades sociais devem ser justificadas em nome doprogresso e da necessidade de diferentes individuos para ocupa-rem - de acordo com suas "aptidoes naturais" - as diferentes posi-c5es e cargos dentro da nova ordem social estabelecida, posicoesestas que vao sendo hierarquizadas para as diferentes classes so-ciais em funcao do lugar que ocupam na produgao.

A nova sociedade "igualitaria", "fraterna" e "livre", nao o erapara a maioria da populacao. Para esta maioria, o "progresso"advindo dos "beneficios" da industria crescente nada mais era doque miseria, degradacao da vida, descaracterizagao do que aindarestava de humano na sociedade, uma sociedade na qual, segundoMarx e Engels,

todas as nossas invengoes e todos os nossos progresses parecemnao provocar outro resultado senao o de dotar de vida e de inteli-gencia as forgas materials e de embrutecer o homem rebaixando-oao nivel de uma forga puramente fisica [MARX & ENGELS, 1978,pp. 150-151].

A urbanizagao e a proletarizagao da Europa, decorrentes daRevolugao Industrial, especialmente nos paises centrals da duplarevolugao (Franga e Inglaterra), demonstram e exportam para omundo um tipo de vida degradante a que foi sujeita parcela signi-ficativa de sua populagao. O crescimento rapido e desordenado dascidades e areas industriais nao foi acompanhado pela ampliagao dosservigos mais elementares nas cidades, como, por exemplo, a lim-peza das ruas e os servigos sanitarios. O aparecimento das gran-des epidemias, como a colera, o tifo e a febre recorrente entre 1831e 1840, evidencia de forma contundente a deterioragao do espagourbano.

Todavia, os terriveis efeitos desta deterioragao nao eram sen-tidos pelas classes media e alta a esta epoca, pois o desenvolvi-

AS BASES POLfnCAS, ECONpMICAS E SOCIAIS DA EDUCAgAO FISICA 11

rnento urbano empurrava os pobres para as grandes concentra-cdes de miseria distantes dos centres de governo e das novas areasresidenciais da burguesia. Como afirma Hobsbawn, "o desenvol-vimento urbano foi um gigantesco processo de segregagao de clas-ses" (1982, p. 224).

Em 1848, as massas desesperadas que cresciam nos cortigos,alijadas de um processo "civilizatorio" que ajudavam a construircomo forga de trabalho, comegam a tomar consciencia de si comoclasse, evidenciando atraves da revolugao social sua resistencia esua forga. Os miseraveis eram agora uma dupla ameaga a burgue-sia no poder. De um lado, a organizagao da classe operaria, de outro,as suas epidemias, as quais, embora nascendo nos cortigos, come-gavam tambem a atingir os ricos. Este quadro de ameaga exigiu atomada de algumas providencias para a reconstrugao e o aperfei-goamento urbano de forma mais sistematica.

A moralizagao sanitaria na Europa, em meados do seculo XIX,tratara de reorganizar o espago de vida dos individuos. Seu discursonormativo veiculara a ideia de que as classes populares vivem malpor estarem impregnadas de vicios, de imoralidade, por viverem semregras. O discurso das classes no poder sera aquele que afirmaraa necessidade de garantir as classes mais pobres nao somente asaiide, mas tambem uma educagao higienica e, atraves dela, a for-magao de habitos morals. E este discurso que incorpora a Educa-gao Fisica e a percebe como um dos instrumentos capazes de pro-mover uma assepsia social, de viabilizar esta educagao higienica ede moralizar os habitos.

Segundo Singer, Campos e Oliveira (1981, p. 21), fazia-se ne-cessario, sobretudo, justificar um quadro social no qual a prosti-tuigao, o alcoolismo, o infanticidio e a demencia eram comuns. Domesmo modo, outra necessidade se fazia visivel: a de "domesticar"as massas urbanas submetidas a jornadas de trabalho que varia-yam de 13 a 16 horas diarias, incluindo mulheres e criangas, rece-bendo salarios insuficientes ate mesmo para Ihes proporcionar umanutrigao adequada.

Estavam dadas as condigoes para que a forga de resistencia ee revolta das grandes massas se transformasse num grande mo-lrnento operario, constituindo-se como resposta ao grito do homem

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pobre. Em 1848 havia algo de novo no movimento operario, que eraa consciencia de classe e a ambigao de classe.

A burguesia, ameagada com a possivel perda de privilegios ad-quiridos com a exploragao desenfreada da forga de trabalho, refor-ga o seu aparato ideologico e cientifico. Busca explicagoes "cientifi-cas" e acentua os aspectos hereditarios e geneticos nas justificativasque elabora sobre a miseria que se desenvolve justaposta ao pro-gresso - a miseria que e parte constitutiva das leis do capital.

Conter os avangos do movimento operario e desenvolver umconjunto de crengas, ideias e valores capaz de determinar "cienti-ficamente" o "lugar de cada um" torna-se imperioso para a burgue-sia contra-revolucionaria no poder.

Para esta classe, a ciencia, em sua abordagem positivista, de-veria descobrir as "formulas" e as "leis" capazes de manter a "or-dem natural" dos fatos e o desenvolvimento, tambem natural", dasociedade. As metaforas organicistas dao mostras da compreensaoque a classe no poder tinha da sociedade e dos homens.

As revoltas, as crises pelas quais passava a sociedade deveriamser "curadas", assim como se curam doengas. Afinal, este grandeorganismo vivo - a sociedade - nao poderia ceder as suas enfermi-dades. E as suas "enfermidades" seriam curadas atraves de umameticulosa reorganizagao e adequagao de espagos, de individuos,onde cada um receberia uma ocupagao de acordo com suas possi-bilidades individuals e com suas "aptidoes naturals"6. Alem, e cla-ro, de uma boa dose de hierarquia.

Para o pensamento social predominante - o positivismo - o bomfuncionamento da sociedade estaria garantido se esta reorganiza-gao e adequagao de espagos e de individuos fosse acentuadamente

6. Noelle Bisseret afirma que "a historia da palavra 'aptidao' revela descontinui-dades radicals de sentido (...) constata-se que e a partir do seculo XVIII que anogao de aptidao se torna importante, ao se articular com as nocoes de meritoe de responsabilidade individual, elementos da ideologia igualitaria. Apos aRevolucao Francesa, se o seu lugar permanece central nesse sistema ideologi-co, a funcao que ela exerce se altera radicalmente: a nogao de aptidao, a partirdai, serve progressivamente de suporte para justificar a manutengao das desi-gualdades socials e escolares que as traduzem e perpetuam. Como a nova so-ciedade e as instituigoes escolares sao colocadas como igualitarias, a causa dasdesigualdades so pode ser atribuida a um dado 'natural'" (BISSERET, 1978, p. 31).

AS BASES POLJnCAS, ECONOM1CAS E SOCIAIS DA EDUCAQAO FJSICA 13

hierarquizada. Augusto Comte acreditava na necessidade da hie-rarquia, a qual se submeteriam todos os proletaries para que oprogresso seguisse seu curso normal. Para Comte, a organizacaoda sociedade, o seu regime publico consiste na

dupla maxima: dedicacao dos fortes pelos fracos, veneracao dosfracos pelos fortes. Nenhuma sociedade pode perdurar se os infe-riores nao respeitarem os superiores. Nada confirma melhor seme-Ihante lei do que a degradacao atual em que, por falta de amor, cadaum nao obedece sendo a forca, se bem que o orgulho revoluciona-rio deplore o pretendido servilismo de nossos antepassados, quesabiam amar seus chefes [Comte apud BERGO, 1979, pp. 48-49].

De que degradacao fala Comte? Da exploragao do trabalho pelocapital? Da desumanizacao do operario urbano? Da vida miseravelnos cortices lamacentos, das fabricas escuras, umidas, sem venti-lacao? Da fome que gragava livre na sociedade da abundancia? Evi-dentemente, A. Comte considerava "degradagao atual" o fato de ooperario fazer-se classe, ameacar a burguesia, desencadear crisesnum sistema que deveria... "transcorrer sem elas". "Degradagaoatual" era tambem o trabalho de outros intelectuais, como por exem-plo Karl Marx, que buscava explicar a sociedade pelo seu rnodo deproduzir e reproduzir a vida, ou seja, pelo trabalho.

Com sua "filosofia positiva"7, Comte acreditava estar elaboran-do uma solida reorganizagao social, reorganizagao esta que deve-ria por fim ao permanente estado de crise que vivem as nagoes ci-vilizadas ha tanto tempo.

Para A. Comte, a sociedade deveria ser estudada pela "fisicasocial", pois e ela que tern a sociedade como seu objeto proprio deestudo. Para a "fisica social", os fenomenos socials deveriam serentendidos a partir do mesmo referencial dos fenomenos astrono-niicos, fisicos, quimicos e fisiologicos. Isto porque, os fenomenos

7• A "filosofia positiva" de A. Comte encontra-se dividida em cinco ciencias fun-damentals "cuja sucessao e determinada pela subordinacao necessaria e inva-riavel, fundada, independentemente de toda opiniao hlpotetica, na simplescomparacao aprofundada dos fenomenos correspondentes: a astronomia, a fi-

, a quimlca, a filosofia e enfim a fisica social" (COMTE, 1983a, p. 33).

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socials, assim como os fenomenos da natureza, estariam sujeitos aleis naturals e invariaveis, cujas descobertas deveriam ser a finali-dade precipua das pesquisas cientificas.

A sociedade sera entao estudada a partir de, e subordinada aos"fenomenos naturals", porque, para o positivlsmo, "o social e su-bordinado ao organico, ou seja, a filosofia social e subordinada afilosofia natural" (BERGO, 1979, p. 17).

A observagao, a experimentagao e a comparagao, procedimen-tos basicos das ciencias naturals, especialmente as biologicas, saouniversalizadas para o estudo do humano atraves do pensamentopositivista, uma vez que este pensamento nasce no ambito das cien-cias humanas, mas utiliza-se dos metodos e das tecnicas propriasas ciencias naturais.

E a Educagao Fisica, seja aquela que se estrutura no interiorda instituigao escolar, seja aquela que se estrutura fora dela, seraa expressao de uma visao biologica e naturalizada da sociedade edos individuos. Ela incorporara e veiculara a ideia da hierarquia,da ordem, da disciplina, da fixidez, do esforgo individual, da saudecomo responsabilidade individual. Na sociedade do capital, consti-tuir-se-a em valioso objeto de disciplinarizacao da vontade, de ade-quagao e reorganizagao de gestos e atitudes necessaries a manu-tengao da ordem. Estara organicamente ligada ao social biologizado,cada vez mais pesquisado e sistematizado ao longo do seculo XIX,pesquisas e sistematizagoes estas que vem responder, paulatina-mente, a um maior numero de problemas que se coloca a classe nopoder.

Afinal, tendo reivindicado a soberania do povo defronte a nobre-za, a burguesia nao ira recusar a igualdade entre os homens, umavez que, se todos sao considerados livres e iguais no direito, o desti-ne do ser humano na terra nao depende mais da ordem estabeleci-da, mas das capacidades individuals, e aqueles que nao conseguematingir um grau mais elevado na escala social demonstram a suapropria falta de inteligencia pessoal, de energia, de forga moral queos condena, juntamente com a htpotese de uma "heranga racial".

As descobertas cientificas darao suporte a esta ideologia justi-ficadora das desigualdades, trazendo-lhe o respaldo da ciencia.Assim e que as pesquisas antropometricas, surgidas na primeira

AS BASES POllnCAS, ECONOM1CAS E SOCIAIS DA EDUCAgAO FJSICA 15

metade do seculo XIX, suscitaram grande interesse e se estende-ram por varies paises do mundo.

Estas e outras formulagoes cientificas, como veremos adiante,tinham por objetivo determinar espagos e lugares para os individuosna sociedade. Nao se afirmava mais que as desigualdades eramcriagoes humanas, fruto de um regime politico despotico, ou divi-nas, fruto da vontade de um ser supremo. Afirmava-se que elaseram fruto da propria natureza, as desigualdades dependiam ago-ra de causas biologicas, as quais eram determinantes.

Assim como a fisica de Newton e suas leis matematicas domi-naram o pensamento social do seculo XVII, a biologia o fez no finaldo seculo XIX, epoca na qual as transformagoes socials passarama ser pensadas e explicadas a partir de leis da evolugao biologicacujo grande referencial foi a biologia evolutiva de Charles Darwin8.

Para o homem oitocentista, a evolugao como processo continuoque transformava e modificava o mundo era bastante compreensi-vel; chamava-se competigao e impulsionava o progresso. Todavia,o que nao se admitia era que, com a alegagao de estar-se fazendoestudo sobre a evolugao, os homens estivessem tao-somente veri-ficando as praticas socials do capitalismo em relagao a seres hu-manos considerados plantas e animals em estado natural (BERNAL,1976, p. 1118).

As ideias evolucionistas sobre as especies de plantas, conchas,moluscos, aves... e seres humanos, ja eram aceitas nos meios cien-tificos da primeira metade do seculo XIX e davam sustentagao ainumeros trabalhos sobre seres humanos.

Em 1852, por exemplo, Gobineau publica, a partir de estudosbiologlcos, de hereditariedade e geneticos, uma obra claramente ra-cista, o Essal sar I'lnegcdite des races humaines, na qual procura

demonstrar cientificamente que a hierarquia dos povos e das clas-ses socials se fundamenta em diferenc,as biologicas. A dominagaode uns por outros e, portanto, natural e legitima. Certos povos ternuma "aptidao para um desenvolvimento intelectual indeflnldo"; os

Q

• A teoria sobre a origem das especies de C. Darwin foi editada no ano de 1859.

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que sao privados dessa aptidao podem, certamente, imitar os ou-tros, mas a imitacao nao indica necessariatnente uma seria ruptu-ra com as tendencias hereditarias [BISSERET, 1978, p. 43].

E preocupante a reducao que faz Gobineau das diferengas so-cials, seja entre povos ou classe, a "diferengas biologicas", que su-poe serem determinantes. Esta e a ideologia igualitaria da burgue-sia. E e esta ideologia igualitaria que se alimenta constantementeda ciencia. Uma ciencia que contraditoriamente constitui-se emforca estranha para a classe operaria, um deus oculto.

Todas as desigualdades socials, todas as diferengas de classetomam, assim, a aparencia de diferengas hereditarias, geneticas,portanto, naturals, transmitidas de geragao a geragao, sem possi-bilidade historica de serem alteradas. Afinal, sao as pesquisas cien-tiflcas que "demonstram", pelos dados apresentados, esse quadroabsolutamente inalteravel.

Francis Galton9 procura demonstrar com seus estudos, e coma ajuda de um novo metodo cientifico, que as diferengas mentalssao hereditarias e que dependem da mesma ordem de fatores dosquais dependem as diferengas de estatura. Galton desenvolveu ometodo das correlagoes10 e, atraves dele, pode medir, de um lado,a intensidade das ligagoes existentes entre as aptidoes mentals eas aptidoes fisicas, e, de outro lado, as aptidoes dos pals e dos fi-Ihos. Essa "mensuragao" (isenta de paixoes) e que permite a "veri-ficagao" do carater natural e hereditario das aptidoes.

As leis biologicas, ao longo de todo o seculo XIX, subordinamas leis socioistoricas. A "ideologia das aptidoes naturals" permeiaos estudos cientificos e as praticas socials deles decorrentes. As leisbiologicas aprisionam o homem ao seu organismo, percebem assuas necessidades apenas como necessidades organicas e biologi-

9. Francis Galton, estudando a hereditariedade de britanicos de talento excepcio-nal, verificou que "muitos deles eram aparentados e que pertenclam a um re-duzido niimero de familias. Preocupado pela biologla, esqueceu-se do factohistorico de que a classe dirigente da Gra-Bretanha constituia naquele tempouma reduzlda minoria, onde as familias se llgavam constantemente pelo casa-mento e o fato social de que as probabllidades de exlto, mesmo Intelectual, es-tavam e continuam a estar esmagadoramente desequllibradas a favor dos fllhosde familias cultas e bem instaladas na vlda" (BERNAL, 1977, pp. 1118-1119).

10. Conferir Bisseret, 1978, p. 44.

AS BASES POIJnCAS, ECONOMICAS E SOCIAIS DA EDUCACAO FJSICA 1 7

cas, "esquecendo-se" de que, embora algumas necessidades sejamdesta ordem, elas sao satisfeitas socialmente.

E o pagamento da forca de trabalho que permite ao homemprover sua existencia e reproduzir a vida. E o trabalho que deter-rnina, pelo quinhao pago na produgao e reprodugao das relacoeseconomicas, as condigoes que permitem ao homem perceber-sehumano e constituir-se em classe... ser operario, medico, artista,e nao os seus predicados geneticos e hereditarios como advogamas teorias raciais aqui brevemente discutidas.

Estas teorias constituiram-se em instrumentos de poder da bur-guesia, uma vez que, "demonstrando" dados biologicos isolados davida dos individuos em sociedade, ideologicamente confirmavam asuperioridade de uns sobre os outros como sendo "natural" e "here-ditaria". Os estudos de Darwin, se, por um lado, tiveram urn efeitolibertador, visto que destruiram a ideia de estagios permanentemen-te ordenados da sociedade introduzindo a ideia de mudanga (evolu-gao), por outro lado contribuiram significativamente para cimentaruma ideologia justificadora das desigualdades sociais. Tais desi-gualdades seriam causadas por problemas de ordem biologica, poisa ideia de uma concorrencia vital, com selegao natural e a sobrevi-vencia dos mais aptos identificava-se com a ideologia da distribui-gao das fungoes ligadas a espontaneidade (BISSERET, 1978, p. 43).Quanto aos principles da selegao natural, eles permitem, por exem-plo, afirmar que

os caracteres que asseguram a sobrevlvencia aos individuos maisaptos de cada especie, transmitem-se por hereditariedade e acen-tuam-se com o tempo. Assim se opera no piano biologico uma sele-c.ao natural que da origem as diferentes especies: e tambem asdiferentes ragas [Luz, 1982, p. 172].

Com este tipo de pressuposto, a burguesia ira acentuar o "es-forgo pessoal" e o valor individual de cada um, afirmando, ainda,que os mais aptos vencem, portanto, "competem". Competigao econcorrencia, grandes eixos do capitalismo, serao entendidos comonaturais e nao como produto de um processo historico de desen-volvimento da sociedade.

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Vencendo a "competigao" da vida nesta "selegao natural", os"mais aptos" irao melhorar a raga que, geneticamente, ira se depu-rando e... teorias cientificas que comprovassem a ideia do "melho-ramento" e da "depuragao" da raga foram sendo desenvolvidas.

No ano de 1865, Francis Galton, a quern ja nos referimos nes-te estudo, funda em Londres a Eugenic Society para estudar umanova ciencia, a eugenia, cujo conteudo respondera com muita pro-priedade as questoes relativas as desigualdades socials, afirman-do serem elas "naturals".

A eugenia ousou ser a ciencia capaz de explicar biologicamen-te a humanidade, fornecendo uma enfase exacerbada na raga e nonascimento. Postulava uma identidade do social e do biologico,propondo-se a uma intervengao cientifica na sociedade, explican-do o primeiro pelo segundo.

A eugenia, segundo J. D. Bernal, permitiu a utilizagao do "ar-gumento da raga para justificar toda a exploragao de classe ou co-lonial; ate podia ser utilizada para provar que os brancos e os ne-gros pertenciam a espectes diferentes" (BERNAL, 1976, p. 1119).

Nao cabe aqui desenvolver uma discussao mais profunda acer-ca do significado historico das teorias raciais elaboradas ao longodos seculos XIX e XX. O caso da eugenia, teoria racial que se pre-tendeu ciencia, toca-nos mais profundamente, uma vez que traduzde forma mais explicita as preocupagoes de uma determinada classeem manter, de todas as formas e por todos os meios, a sua hegemo-nia, bem como pela sua estreita relagao com a retomada de estudosque visavam o desenvolvimento e a aplicagao da Educagao Fisica noseculo XIX em toda a Europa e as suas repercussoes mundiais.

No caso do Brasil, a Educagao Fisica aparecera vinculada aosideais eugenicos de regeneragao e embranquecimento da raga, fi-gurando em congresses medicos, em propostas pedagogicas e emdiscursos parlamentares.

As teorias raciais, particularmente a eugenia, foram poderososinstrumentos nas maos da burguesia para justificar seu dominiode classe, para auto-intitular-se a unica classe capaz de manter a"ordem" e de viabilizar, a partir dela, o "progresso"11.

AS BASES POLrnCAS. ECONOMCAS E SOCIAIS DA EDUCACAO FJSICA 19

As evidencias da "superioridade racial" da classe dominanteeram apontadas pela ciencia, cujas explicagoes e justificativas, da-das exclusivamente a partir do "observavel", do "demonstravel" edo "quantificavel", eram absolutamente irrefutaveis. O dado isola-do, parcial, unilateral e que explicava a complexidade das relagoessocials e economicas, e que determinava o lugar a ser ocupado pelosindlviduos na sociedade e na produgao. O particular explicava ogeral como mao unica, sem reveses, sem contradigoes. Desse modo,os homens surgem como que determinados por uma natureza bio-logica que os aprisiona num terrivel fatalismo hereditario.

Com a certeza da determinagao biologica, delimitavam-se osespagos de classe, determinavam-se fungoes de classe e papeissocials, e garantia-se, desse modo, a continuidade "harmoniosa" daordem social vigente.

Se o homem e um ser biologico e todas as suas agoes se expli-cam a partir de causas tambem biologicas, como postulam as teo-rias cientificas do seculo XIX, ganharao espago na sociedade pro-fissionals que dominem o conhecimento sobre o biologico, assimcomo praticas que possam, atraves dele, intervir na sociedade.

2. DA SAUDE DO "CORPO BIOLOGICO" A SAUDE DO"CORPO SOCIAL": O PENSAMENTO MEDICO HIGIENISTAE A DEFINICAO DOS HABITOS DA FAMILIA MODERNA

A Europa do seculo XVIII e inicio do seculo XIX , especialmen-te nos paises centrals da "dupla revolugao" politlca e economica,ocorrida respectivamente na Franga e na Inglaterra, vai desenvol-ver, atraves de determinadas politicas de saude12, formas explici-

11. "Ordem e Progresso" e o binomio essencial do positivismo... "A constituigao dopositivismo se fundamenta nesse lema projetando todas as pesquisas e todo

modo de ser na reconstrugao da civilizagao ocidental [...] 'Ordem e Progresso',traduz-se na marcha da civilizagao que deve ser dinamica, mas inalteravel nasrelagoes de poder. Em conseqilencia, focaliza-se a repulsao as revolugoes vio-lentas, que sao entrave no progresso. Para que exista o progresso e necessarioordem e vice-versa" (BERGO, 1979, p. 41).

!2. No livro Microjisica do Poder (1985), Michel Foucault descreve as particulari-dades dos projetos de medicina social desenvolvidos na Franca, Inglaterra eAlemanha, pp. 79-98. Ver tambem Da Policia Medico a Medicina Social deGeorge Rosen (1979).

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tas de controle das populagoes urbanas, para as quais o corpo dosindividuos e o "corpo social" sao tornados como objetos mensuraveis,passiveis de classificagoes e generalizagoes isentas de paixoes e im-pregnadas da neutralidade propria da abordagem positivista deciencia.

O corpo individual, como unidade produtiva, maquina menorda engrenagem da industria capitalista, passa a ser entao umamercadoria13... sera um objeto socializado pelas novas relagoes deproducao, urn instrumento a mais que devera ser meticulosamen-te controlado para ser util ao capital.

Este instrumento a mais no conjunto das forgas produtivas - ocorpo individual - constitui-se em espaco de investimento do po-der que a nova sociedade exerce, uma vez que

o controle da sociedade sobre os individuos nao se opera simples-mente pela consciencla ou pela ideologia, mas comega no corpo, como corpo. Foi no biologico, no somatico, no corporal que antes de tudoinvestiu a sociedade capitalista. O corpo e uma realidade biopolitica[FOUCAULT, 1985, p. 203].

Como o corpo dos individuos e elemento constitutive das for-gas produtivas da nova ordem, constituindo-se desse modo em rea-lidade biopolitica, o poder de que se revestem certas praticas socialsque nele investem e quase absolute. Particularmente, poderiamosnos referir aquelas que se constituent a partir de um "conhecimen-to" deste corpo... biologico e .organico, tais como a medicina, e asformas que ela aprimora para influir de maneira coercitiva e repres-siva na sociedade, formas estas fundamentals para a manutengaoda nova ordem.

Foucault (1985, pp. 202-203) observa que, dentro de uma ma-quinaria de poder estatal que tende a se estender e se afirmar du-

13-. "A mercadoria e, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, porsuas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza,a origem delas, provenham do estomago ou da fantasia. Nao importa a manei-ra como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio desubsistencia, objeto de consume ou indiretamente como meio de produgao"(MARX, 1985, pp. 41-42). No caso do "corpo", ele tomara a forma de mercadoriade modo indireto, ou seja, como rneio de producao.

AS BASES POLfnCAS, ECONOMICAS E SOCIA1S DA EDUCACAO FISICA 21

rante o seculo XVIII, a medicina, ja entendida como tecnica geralde saude, assume lugar de importancia cada vez mais destacada.por sua vez o medico passa a consagrar uma parte cada vez maiorde seu tempo as tarefas mais gerais do ponto de vista administra-tive, as quais Ihe foram fixadas pelo poder. Essas tarefas dizem res-peito a propria dinamica da sociedade, pois abrangem preocupa-goes acerca da saude e da doenga dos individuos, de suas condigoesde vida, de suas habitagoes, costumes e habitos. E neste momen-to que tern inicio a formagao de um saber medico administrative,"o medico se torna o grande conselheiro e o perito, se nao na artede governar, pelo menos na de observar, corrigir, melhorar o 'cor-po' social e mante-lo em permanente estado de saude"14.

Podemos afirmar que o conhecimento medico, ao curar doen-gas, conter epidemias, e, neste sentido, aumentar o tempo de vidautil dos individuos, significou uma certa "libertagao" para o homeme para a sociedade. Entretanto, nao podemos deixar de apontar ocarater contraditorio deste conhecimento que, ao mesmo tempo queliberta, aprisiona; transforma-se em mecanismo de controle porparte do Estado, que o reconstroi em poder disciplinar e, de modoora sutil, ora acintoso, utiliza-o para o controle das grandes mas-sas urbanas. Portanto, o contraponto que nos interessa analisar etudo o que se ousou fazer em "nome da saude" para a manutengaoda "ordem burguesa" e, neste particular, pelo

efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginastica, os exerci-cios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltagao do belocorpo... [...] atraves de um trabalho insistente, obstlnado, meticu-loso, que o poder exerceu sobre o corpo das criangas, dos soldados,sobre o corpo sadio [FOUCAULT, 1985, p. 146].

Se houve um investimento sobre o "corpo sadio", uma exaltagaoate, como se refere M. Foucault, as concepgoes de "corpo doente"

Michel Foucault (1985, p. 203), afirma ainda que e a "fungao de higienista maisdo que (os) prestigios de terapeuta, que [assegura aos medicos] esta posicaopoliticamente privilegiada no seculo XVIII, antes de se-la economica e social-mente no seculo XIX".

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22 EDUCACAO FlSICA

tambem nao podem ser negligenciadas, uma vez que tambem de-sempenham um determinado papel na construgao do individuomoderno e, sobretudo, da sociedade.

Segundo Madel T. Luz, a concepgao de

corpo doente como corpo individual, objeto de intervengao medica,ajuda a constituir o individuo moderno, este atomo de um corpomais amplo que a razao social ordena. A medicina, elaborando nodiscurso a categoria, e na pratica social - atraves da clinica - osujeito "paciente", desviante de um quadro geral de normalidade(media), ajuda a constituir o sujeito individual como objeto de or-denacao da racionalidade social [Luz, 1988, p. 92].

De fato, as concepgoes, os valores e os habitos que a cienciamedica desenvolveu tiveram um papel significativo na construgaoe na ordenagao da racionalidade social, racionalidade esta quenasce colada as exigencias de saude do "corpo biologico" para amanutengao da saude do "corpo social", ou seja, para a produgaoe reprodugao do capital.

A ciencia medica, porem, nao possui uma homogeneidade dediscurso e de pratica. Em seus diferentes ramos, apresenta diferen-tes conceitos sobre a doenca15, a saude, a cura. Do mesmo modo,tambem constroi diferentes formas de intervengao no "corpo social"e no "corpo biologico", chegando ate a conceber o homem para alemdos limites dados pela biologla, pela quimica e pela fisiologia, apro-ximando-se de um entendimento da medicina como ciencia social.Esta compreensao da medicina deu origem a formagao de um novoramo no interior da ciencia medica: a medicina social.

15. Segundo George Rosen "a doenca e um processo biologico mais antigo que ohomem. Antigo como a propria vida, porque e um atributo da vida. Um orga-nismo vivo e uma entidade labil em um mundo de fluxo e mudanga. A doengae a saude sao aspectos desta instabilidade onipresente, sao expressoes das re-lacoes mutaveis entre os varios componentes do corpo, entre o corpo e o am-biente externo no qual existe. Como fenomeno biologico, as causas da doengasao procuradas no reino da natureza; mas no homem a doenga possui aindauma outra dimensao: nele a doenga nao existe como 'natureza pura', sendo me-diada e modificada pela atividade social e pelo ambiente cultural que tal ativi-dade cria" (1979, p. 77).

AS BASES POLfnCAS, ECONOMICAS E SOCIAIS DA EDUCAgAO FJSICA 23

A medicina social16, que se estrutura a partir do seculo XIX,procura demonstrar que a verdadeira origem, causa ou determina-cao da doenga era a realidade social, absolutamente opressora, docapitalismo a partir do seculo XIX. A fome, a miseria e a domina-gao tinham, para esta concepgao de medicina, uma relagao diretacom a origem das doengas, nao sendo suficiente, portanto, apenasa intervengao medica no corpo individual ou no coletivo social parao restabelecimento ou o estabelecimento da saude, como postula-va a medicina clinica. Nao pode haver saude sem que se mude asociedade, pois e a estrutura social que explica o surgimento dasdoengas.

Este discurso da medicina social, mais identificado com os "di-reitos do cidadao" da Revolugao Francesa ou com o ideario socia-lista presente no movimento revolucionario de 184817, nao sera do-minante. Segundo M. T. Luz, serao dominantes as

concepijoes, teorias e categorias higienistas, com profundas impli-cagoes moralizadoras, com propostas politicas implicando adapta-gao de sujeitos, grupos e classes as regras medicas num processoracionalizador civilizatorio [1988, p. 94].

No conjunto das concepgoes apontadas como dominantes pelaautora, terao ainda espago aquelas que tematizam o meio circun-dante ao homem (meio natural, material ou institucional) como oalvo da intervengao medica, tais como o sanitarismo, a policia me-dica e a engenharia sanitaria.

A feigao da sociedade era por demais grotesca. Assumir con-cepgQes de medicina proprias a medicina social, que afirmavam

L

16- George Rosen afirma que desde "o seculo XVIII varios medicos reconheceram anecessidade de abordar a medicina e a higiene levando em consideragao suainsergao social [...] mas coube ao seculo XIX desenvolver a ideia da medicinacomo ciencia social e finalmente formular com maior precisao e clareza o con-ceito de medicina social" (1979, p. 78).

• Para uma analise mais detalhada sobre a participagao dos medicos no movi-mento revolucionario de 1848 e da medicina como aquela capaz de fundir-secom as crengas politicas proprias daquele movimento, ver Rosen, 1979, espe-cialmente o capitulo intitulado "O que e Medicina Social? Uma analise geneti-ca do conceito", pp. 77-141.

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24 EDUCACAO FJSICA

ser a miseria, as condigoes de habitagao, entre outros fatores, oscausadores das doengas, poderia comprometer a reprodugao docapital. Mas, contraditoriamente, esta reprodugao flcava comprome-tida exatamente porque toda esta garna de fatores apontados, ine-quivocamente, atacavam a forga vital das nagoes em suas proprias

raizes18.A industrializagao ocorrida na Inglaterra, Franga e, por volta

da metade do seculo XIX, na Alemanha foi acompanhada, segundoGeorge Rosen, de uma "matanga de inocentes, [pois aqueles] quesobreviviam ao bergo eram abandonados aos ternos cuidados dafabrica e da mina" (ROSEN, 1979, p. 87).

Os "cuidados" da fabrica e da mina poderiam ser traduzidos,ou melhor, se expressavam nas periodicas epidemias, na mortali-dade infantil, assim como tambem na falta de soldados para osexercitos. A debilidade fisica era tal que os homens nao mais atin-giam a altura minima exigida para o ingresso na tropa, problemaque obrigou o exercito frances e o alemao, ao longo seculo XIX, adiminuir paulatinamente a altura minima exigida, pois, caso essamedida nao fosse tomada, nao haveria homens disponiveis para oservigo militar19.

Degeneragao progressiva, diminuigao de peso e estatura, mor-te. Esta era uma das faces mais horripilantes (e que se tentavaocultar) da nova sociedade. Ela expressava de modo contundentea propria contradigao do capital: a riqueza e a miseria. Tornava-se

18. "Os problemas de saude suscitados pela Revolugao Industrial nao afetavamapenas o proletariado mas tambem as classes dominantes. Em primeiro lugar,elas nao ficavam imunes as epidemias que grassavam nos novos centres indus-trials. Em segundo lugar, as mas condigoes de vida e de saude deveriam redu-zir significativamente a produtividade do trabalho. E, em terceiro lugar, asituacao desesperadora em que se encontrava a classe operaria era terreno fertilpara movimentos de revolta, que punham em perigo a ordem constituida. Co-mecou a ficar claro para a propria classe dominante que urgia remediar estasituacao, criando-se condigoes minimas para que a forga de trabalho pudessese dar de modo sistematico e para que a capacidade de trabalho dos operariosfosse preservada" (SINGER, CAMPOS & OLIVEIRA, 1981, p. 21).

19. Dados acerca deste assunto podem ser encontrados em Karl Marx (1985). Trans-crevendo a fala dos inspetores de fabrica, Marx vai mostrando, atraves daque-les relates, como a altura dos soldados, tanto na Franga quanto na Alemanha,foi diminuindo desde o final do seculo XVIII, fato este acompanhado da dimi-nuigao no niimero de soldados aptos para o servigo militar, p. 270.

AS BASES POLfnCAS, ECONOMICAS E SOCIAIS DA EDUCACAO FJSICA 25

jrnperioso amenizar este quadro, nao apenas com leis trabalhistas,pois, afinal, os exercitos deviam ser preservados... e a industria, elatambem se alimentava do vigor fisico dos seus operarios. Os "cor-pos saudaveis" eram uma exigencia do capital.

Todavia se os "corpos saudaveis" eram uma exigencia do capi-tal, os "corpos doentes" nao deveriam ser considerados como pro-duto das condigoes de vida geradas pelas relagoes de produgao ine-rentes a esse modelo economico. Era de fundamental importanciapara a classe no poder encontrar outras causas, que nao as socials,para explicar a degradagao social, fisica e intelectual da maioria dapopulagao.

Se as causas nao podiam ser sociais, elas seriam biologicas,fisicas (meio fisico), "naturals" e... morais. O discurso e a praticamedica oriundos da medicina social em suas concepgoes predomi-nantes, ou seja, naquelas higienistas, de forte carater moralizador,normativo e adaptativo-educativo, irao constituir-se em instrumen-tos de intervengao na sociedade. Irao impor-se no sentido de alte-rar habitos, costumes, crengas e valores. Tern a pretensao de rea-lizar uma assepsia neste meio fisico - fonte de todas as miserias -na mesma medida em que pretendem impor-se a familia, ditando-Ihe uma educagao fisica20, moral, intelectual e sexual.

O discurso higienista na Europa do seculo XIX veiculava aideia de que as classes populares viviam mal por possuirem umespirito vicioso, uma vida imoral, liberada de regras e que, por-tanto, era premente a necessidade de garantir-lhes nao somentea saude, mas fundamentalmente a educagao higienica e os bonshabitos morais.

Poderiamos afirmar que o pensamento medico higienista, ele-gendo a familia como lugar privilegiado de intervengao, "auxilia" oEstado num processo de reorganizagao disciplinar da classe traba-

20. Ao longo deste trabalho o termo "educagao fisica" escrito com letra minuscularefere-se aos cuidados corporals e higienicos considerados pelos medicos comonecessaries a prevengao das doengas e a manutengao da saude. E importanteacentuar que, para os medicos, os exercicios fisicos eram considerados comomedida higienica, portanto, integravam essa "educagao fisica". Todavia, nao se-ria prudente afirmar que toda vez que os medicos escrevem sobre, ou imple-mentam medidas para viabilizar a educagao fisica, os exercicio fisicos estejampresentes.

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26 EDUCACAO FISICA

lhadora, reorganizagao esta que e complementada pela educagaoescolar e por todo o conteiido de classe que ela veiculara.

Foucault observa que, desde o final do seculo XVIII, a "medi-calizagao da familia" foi uma das formas intervencionistas utiliza-das pelo Estado para moralizar e domesticar as classes trabalha-doras e o

corpo sadio, limpo, valido, o espac,o purificado, lirnpldo, arejado, adistribuicjao medlcamente perfeita dos individuos, dos lugares, dosleitos, dos utensilios... constituem algumas das leis morals essen-ciais da familia. E desde essa epoca a familia se tornou o agentemais constante da medicalizagao [1985, p. 199].

A enfase dada pelas instituigoes a familia no decorrer do secu-lo XVIII, acentuada no seculo XIX, e fundamental para a manuten-gao da ordem. A familia moderna burguesa, bem como a familiaoperaria, desempenha uma fungao determinante na estruturagaodos papeis que seus membros, individualmente, deverao desernpe-nhar na sociedade.

Uma das formas medicalizantes de intervencao do Estado so-bre a familia ocorre atraves da Puericultura21, que, traduzida comopratica medica, tera um relevante papel na normatizagao do "cor-po social", uma vez que deseja exercer uma atuagao sobre a formade vida dos individuos em sua intimidade na familia, no trabalho,no cotidiano.

Atuando diretamente sobre a familia, a Puericultura tem, por-tanto, um interlocutor privilegiado dentro desta estrutura. Ela con-versa com a mae sobre a crianga, uma crianga que precisa ser

21. "A Puericultura [...] surge em fins do seculo XIX, na Franga, e propoe-se anormatizar todos os aspectos que dlzem respeito a melhor forma de se cuidardas criangas, com vistas a obtengao de uma saude perfeita. Ela sera ouvidaprinclpalmente atraves da voz dos medicos, dirigir-se-a a todas as criangas,indistintamente, mas se colocara como mais necessaria aquelas que nascemem um meio social desfavoravel, com inumeros riscos para a saude. E e nestemomento que se pode apontar o seu carater ideologico, porque toma uma si-tuagao que e efeito e a transforma em causa: pensa as mas condigoes de sau-de como consequencia de uma falta de informagoes por parte das pessoas e naocomo reflexo de uma situacao de vida em que a ma saude e a ignorancia fazemparte de uma unica condigao de inferioridade social [...]" (NOVAES, 1979, p. 11).

AS BASES POLfnCAS, ECONOMICAS E SOCIAIS DA EDUCACAO FISICA 27

educada, disciplinada, cuja responsavel - a mae - devera domi-nar o conjunto de medidas medicas, que se tornam "normas" decomo educar as criangas, cuidar da casa, do marido e de um es-pago que, de um outro angulo, a sociedade vai delimitando amulher. A transmissao de conhecimentos e valores, bem como aestabilizagao, a harmonia da familia, passam a ser de sua respon-sabilidade, e a figura da mulher-mae aparece como ideal. Ela sera,portanto, a pega fundamental no interior das estrategias elabora-das para a domesticagao da classe operaria. Para isto, devera terum lugar apropriado "dentro do lar", ela sera a "mulher do lar", a"mae dedicada", a "salvagao do homem"... sera o instrumento pri-vilegiado para desencadear o processo racionalizador civilizatorioda classe operaria (COSTA, 1981, p. 8).

O pensamento positivista ira reforgar, ou melhor, respaldar estaconcepgao de mulher.

Augusto Comte afirmava que a mulher deveria ser sustentadapelo homem, pois somente assim ela seria capaz de preencher con-venientemente seu "santo destine social", uma vez que, para o cul-to positive, a mulher, como "sexo afetivo", e considerada como aprovidencia moral da especie. E ela que preserva a familia, com-preendida como "base moral da sociedade". E necessario, portan-to, fazer prevalecer nesta instituigao, a influencia feminina, trans-formando a mulher "... em supremo arbitro privado da educagaouniversal" (COMTE, 1983b, p. 131).

Este discurso positivista sobre a mulher se colocava como res-posta aos problemas inerentes as relagoes de produgao proprias docapitalismo.

O valor pago pela forga de trabalho feminina era infinitamenteinferior aquele pago pela forga de trabalho masculina, criando as-sim uma aparente rivalidade entre ambos, rivalidade esta necessa-ria para ocultar o verdadeiro rival do trabalhador, o capital.

O capital impunha determinadas condigoes de trabalho, visan-do o lucre e a sua propria reprodugao, fazendo com que os homensPerdessem seus empregos para as mulheres, uma vez que elas,executando a mesma tarefa, recebiam salaries menores. As mulhe-res, alem de exploradas pelo processo de trabalho na sociedade in-dustrial, que Ihes permitia no maximo alimentar-se, acabavam nao

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28 EDUCAQAO FISICA

dispondo de tempo algum para cuidar de seus filhos, perdendo-osmuitas vezes pela total falta de cuidados.

Essa exploragao irrefletida do trabalho das mulheres ameaga alongo prazo as forgas produtivas da nagao. Ela se faz cumplice deuma destruigao da familia atraves de um odioso abuso do poder pa-triarcal [DONZELOT, 1986, p. 39].

A necessidade de criar em torno da mulher um conjunto detarefas que ideologicamente so poderiam ser por ela executadastornava-se absolutamente indispensavel. E e dentro de um quadrode ameaga a produgao que a "educacao" da mulher torna-se fun-damental para a manutengao da ordem.

Segundo J. Donzelot (idem, pp. 41-42), a mulher passa a serpreparada para a vida familiar e para o casamento, e as carreirasprofissionais que a ela se abrem nada mais sao do que um prolon-gamento de suas atividades domesticas.

O enquadramento da mulher como "mulher-mae", "esposa""dona-de-casa", fundamentava-se em descobertas cientificas22 queimputavam a "natureza", e nao a sociedade e a cultura, as diferen-gas entre homens e mulheres em relagao ao espago que ambospoderiam ocupar na produgao. O espago da mulher seria o lar, poisesta era uma exigencia da produgao. O que se cria em torno damulher e sobre ela tern a fungao precipua de preservar a capacida-de de trabalho das massas urbanas e fazer dela um individuo ca-

22. E. Durkheim descreve pesquisas nas quais. ao serem comparados um grandenumero de cranios selecionados em sociedades e ragas distintas, pode-se che-gar a seguinte conclusao: "O volume do cranio do homem e da mulher mesmoquando se comparam pessoas de igual idade, estrutura e peso iguais, apresentadiferengas consideraveis em favor do homem e esta desigualdade vai igualmentecrescendo com a civilizagao, de maneira que, do ponto de vista da massa e, porconseguinte, da inteligencia, a mulher tende a diferenciar-se cada vez mais dohomem" (1983, pp. 27-28). A anatomia frenologica de Gall "comprovava" tam-bem a inferioridade da mulher em relagao ao homem. Esta inferioridade pode-ria ser apreendida pela predominancia, na mulher, das "faculdades afetivas"em detrimento das "faculdades intelectuais" pois "Gall observa que as mulhe-res tern geralmente a cabega mais volumosa na parte posterior e a fronte maisestreita, [e Gall] atribui as partes posteriores do cerebro as faculdades afetivase as partes anteriores as faculdades intelectuais" (Jose Joaquim Francisco Mafraapud COSTA, 1983, p. 235).

AS BASES POLfnCAS, ECONdMICAS E SOC1AIS DA EDUCAgAO FJSICA 29

paz de veicular valores e de internalizar e disseminar praticas hi-gienicas moralizadoras.

Com seu "trabalho domestico" revalorizado e colocado a alturade profissao, a mulher podera

introduzir na vida operaria elementos de higiene relatives a cria-gao das criangas, a alimentacao, a regularizagao dos comportamen-tos cuja ausencia explicava a freqiiencia das mortes prematuras,das doengas, das insubordinagoes: o habito de viver em casas decomodos, de fazer as refeigoes em tavernas, de preferir, em suma,viver na rua, viver em cabares, nao esta no principio dessa deca-dencia fisica e dessa independencia moral da classe operaria?[DONZELOT, 1986, p. 38].

Sao esses habitos a "fonte de toda a miseria" da classe opera-ria. E precise reorganizar suas vidas, alterar radicalmente seus ha-bitos... redefinir o seu espago de vida. Os sanitaristas23 se encarre-garao de executar esta "nobre" tarefa a eles outorgada pelo Estado.E em nome da "saude" que se fara uma assepsia no meio fisico... esera promovido o uso higienico da habitagao.

E e assim que os programas de habitagao popular surgem comomats um instrumento de controle social da classe operaria. A ha-bitagao passa, entao, a construir-se neste quadro em espago privi-legiado da mulher, essa "salvadora" da moral e dos bons costumes.E a habitagao que Ihe permitira, enfim, tirar o homem das ruas, doscabares, do vicio... moraliza-lo e afastar dele todos aqueles que fo-rem estranhos ao ambiente domestico.

Segundo N. R. Costa (1984, p. 9), os higienistas da Europa doseculo XIX lutavam ferrenhamente contra a "insania e a imoralida-de" do que foi herdado do antigo regime naquilo que se refere ashabitagoes populares, locals assumidos ate entao pela classe ope-raria como abrigo, refugio, local de defesa e de autonomia...

23. "O sanitarismo representou uma concentragao de forgas em maos do Estadoque garantiria a possibilidade de empreender [...] reformas e o desenvolviraen-to dos servigos de saude representou uma concentragao de poder em maos dosmedicos" (LIMA, 1985, p. 83).

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30 EDUCACAO FJSICA

Era necessario, portanto, organizar um outro espago, um espa-go que fosse amplo o suficiente para ser higienico, porem pequenoo bastante para que nao mais que uma familia nele pudesse morar.E este era o novo "reino" da rnulher popular... o ambiente que ela,atraves de sua competencia domestica, deveria tornar atraente edele ser vigilante... "Se o homem preferir o exterior, as luzes do ca-bare, se as criangas preferirem a rua, seu espetaculo e suas pro-miscuidades, sera culpa da esposa e da mae" (DONZELOT, 1986,p. 46).

Desse modo, a classe no poder isentava-se de qualquer respon-sabilidade, e o agravamento da decadencia fisica e da degradagaomoral da classe operaria passava a ser sempre atribuida a ela mes-ma, quer seja atraves da mulher, quer seja atraves de toda a fami-lia, ou seja, a sua resistencia a novos habitos, a sua ignorancia, asua insensatez.

As altas taxas de morbimortalidade, sempre mais altas no meiooperario, passam a ser de responsabilidade da familia e, particu-larmente, da mulher. E e assim que, contraditoriamente, num mes-mo momento de grandes descobertas24, como foi o final do seculoXIX, vem a ser reforgada a

Tendencia ideologica de pensar a doenca [...] como resultado da res-ponsabilidade individual, [outorgando-se] a classe dominante [...]uma tarefa humanitaria e filantropica - educar, esclarecer, civili-zar enfim esses "novos barbaros" cuja ignorancia e incuria seria apropria causa de sua vitimagao [LIMA, 1985, pp. 84-85].

Sao os medicos higienistas que, investidos de uma autoridadeque Ihes outorga o Estado pelo conhecimento que detem sobre o"corpo biologico" dos individuos, vao pensar e implementar estra-tegias de "bem viver", uma vez que "adoecer deixava de ser umaproblematica social e passava a ser uma questao de conhecimento,

24. "O desenvolvimento da medicina bacteriologica [por exemplo] permite a recon-dugao da pratica medica aos limites do organico [e assim] o desenvolvimentodo estudo das doengas infecciosas [nao seria] perturbado por consideracoes so-ciais e reflexoes sobre politica medica" (DONNANGELO & PEREIRA, 1979, p. 58).

^___ AS BASES POLfnCAS, ECONOMICAS E SOCIAIS DA EDUCACAO FJSICA 31

de boas praticas de vida, de limpeza e de higiene individual" (idem,p. 84).

Nao pairam duvidas sobre a intensa queda da mortalidadeobservada nos paises europeus em fins do seculo XIX apos "medi-das de saneamento25. Entretanto, a grande melhoria da qualidadede vida da classe operaria neste periodo nao se deve, exclusivamen-te, ao saneamento, mas, sobretudo, a sua propria resistencia e or-ganizagao como classe.

O ultimo quartel do seculo XIX traz uma importante transfor-magao nas relagoes entre o Estado burgues e a classe operaria,cujas reivindicagoes principals seriam atendidas atraves de medi-das que nao atingissem o essencial, ou seja, o modo de produgaocapitalista. Como contrapartida as medidas "concedidas", o Esta-do se encarregaria de desenvolver novas formas de controle ideolo-gico. A extensao da escolarizagao primaria, assim como dos servi-gos de saude, representariam duas importantes formas de controleideologico inovadas pelo Estado.

Em nome da saude, da ordem e do progresso, o poder medicoesquadrinha os espagos de vida dos individuos e as suas propriasvidas ao definir normas... regras necessarias para a manutengaoda saude de seus corpos biologicos, individuals. O poder medico naomais ira perder-se em elucubragoes e tergiversagoes sobre a cau-salidade entre pobreza e enfermidade: "cada pessoa e tratada comoindividuo a ser higienizado" (idem, p. 25).

As tecnologias politicas que investirao sobre o corpo, sobre asaude, sobre as formas de se alimentar e morar serao traduzidaspelo discurso da boa higiene, que ira postular as "regras de bemviver", as quais, uma vez "conhecidas", permitiriam o alcance da taoalmejada "saude". Entretanto, o que este discurso omite e que saoas condigoes socials e as diferengas de classes que impedem o ple-no acesso as tao decantadas regras de "bem viver", e nao o seu sim-Ples "(des)conhecimento". O pensamento medico higienista vai criarum universe de modos, atitudes e saberes (que devem ser conhe-

25. Sobre os indices de queda de mortalidade, qualidade de vida, condigoes de tra-balho, ver Singer, Campos e Oliveira (1981), especialmente o capitulo intitulado"Da revolugao vital a medicalizagao da sociedade" (pp. 37-62).

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32 EDUCAQAO FJSICA

cidos) e que sao requeridos pela civilizagao burguesa para a ma-nutengao da ordem.

Dentro deste quadro politico, social e economico e elaboradamais uma forma de intervengao na realidade social, a qual operaratanto no ambito corporal dos individuos isoladamente, quanto noambito do "corpo social", quando tornada habito. Estamos nos re-ferindo a Educagao Fisica, que, ja no seculo XIX, chega aos foroscientificos com seu conteudo medico-higienico e com sua forma dis-ciplinar voltada ao "corpo biologico" (individual) para, a partir dele,moralizar a sociedade, alem de "melhorar e regenerar" a raga.

A Educagao Fisica construida por uma sociedade naturalizadae biologizada sera entao tomada corno a "educagao do fisico", e as-sociada diretamente a saude do "corpo biologico" (leia-se social). Osmedicos higienistas, imbuidos da certeza de que detinham umamaior competencia para redefinir os "habitos" da familia moderna,nao poderiam deixar de influenciar de maneira decisiva o referen-cial de conhecimentos necessaries para o desenvolvimento da Edu-cagao Fisica, um mecanismo a mais utilizado na construgao dohomem novo, este sujeito do capital.

C A P I T U L O ' D O I S

"EM NOME DA SAUDEDO CORPO SOCIAL../'

1. INSTITUigAO ESCOLAR E EDUCACAO FISICA:"CONTRIBUigAO" PARA MANTER E PREVENIR A SAUDEDO CORPO SOCIAL

7\ T o segundo quartel do seculo XIX, a burguesia europeia, par-J. V ticularmente aquela dos paises centrals da dupla revolugao,ja dispunha de elementos suficientes para afirmar que a forga fisi-ca de uma nagao interfere em sua prosperidade. Ja havia, naquelemomento, o entendimento por parte dos proprietarios dos meios deprodugao de que o vigor fisico dos trabalhadores era essencial parao avango do capital.

O corpo dos individuos, corno mais um instrumento da produ-?ao, passava a constituir uma preocupagao da classe no poder. Tor-nava-se necessario nele investir. Todavia, esse investimento deve-rta ser limitado para que o corpo nunca pudesse ir alem de um corpode um "bom animal"1. Era precise adestra-lo, desenvolver-lhe o vi-gor fisico desde cedo... disciplina-lo, enfim, para sua fungao na pro-

e reprodugao do capital.

Esta expressao e utilizada por Herbert Spencer (apud BARBOSA, 1946, p. 75).

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34 EDUCACAO FlSICA

Concorrerao para este adestramento e disciplinarizagao diferen-tes instituigoes socials. Ao longo deste trabalho, ja fizemos referen-da ao investimento realizado pelo Estado (em associagao com os in-teresses estabelecidos) no corpo dos individuos atraves de umamedicalizagao da sociedade. O significado politico-ideologico que as-sume essa medicalizagao no contexto europeu de fins do seculoXVIII e no seculo XIX e inegavel. Referimo-nos ao que se ousou fa-zer, e se fez concretamente em nome da saude do povo, para a ma-nutengao da ordem burguesa.

Ao tratarmos neste capitulo de instituigoes socials que contri-buiram para a disciplinarizagao da classe trabalhadora, nao pode-mos deixar de fazer referencia a Instituigao Escolar, a qual comple-menta de modo organico o processo de construgao do homem novoidealizado pelo Estado burgues. As politicas de educagao escolar,juntamente com as politicas de saude em suas expressoes higienistae sanitarista, completam o cerco ao trabalhador.

Particularmente no ambito da Instituigao Escolar, interessa-nosanalisar como um determinado conteiido - o exercicio fisico - vaisendo construido a partir de conceitos medicos. Neste sentido, eimportante saber como ele contribui para veicular, entre outras, aideia da saude vinculada ao corpo biologico, corpo a-historico, naodeterminado pelas condigoes socials que demarcam o espago queira ocupar na produgao... corpo de um "bom animal".

A expansao da escola primaria juntamente com as medidassanitarias de intervengao no meio fisico e com a pedagogia da "boahigiene" atraves de suas "regras de vida saudavel", constituiram-se em mecanismos de controle social e de difusao de um saber pro-prio de uma classe - a burguesia, pois, como assinala A. Ponce,

a educagao e urn processo mediante o qual as classes dominantespreparam na mentalidade e na conduta das crlangas as condigoesfundamentals de sua proprla exlstencia [...] a educagao nao e umfenomeno acidental dentro de uma sociedade de classes [PONCE,1986, pp. 169-177].

Concordamos com A. Ponce e reafirmamos que a educagao naoe um fenomeno isolado das demais politicas socials. Nao ocorre por

EM NOME DA SAUDE DO CORPO SOCIAL... 35

acaso, descuido ou acidente. Ela Integra de modo organico as for-mas de difusao de uma determinada mentalidade, homogeneizan-do as vontades, os habitos e criando uma certa coesao social.

Calcado no liberalismo, aqui entendido como liberdade de pen-samento e agao individual em oposigao a agao social organizada, ofenomeno educacional e a escola - como espago institucionalizadopara sua difusao - vao adquirir diferentes contornos em fungao dosinteresses de classe no poder. Isto porque o liberalismo, como ideo-logia que da sustentagao a burguesia, nao foi sempre o mesmo emseu processo de estruturagao e difusao. Ele foi progressivamentese alterando e ajustando-se as necessidades que se colocavam comoexpressao do avango e da consolidagao do capitalismo na Europa:seja para dirigir a luta de toda a sociedade para derrubar a antigaordem (aristocracia, clero), seja para criar condigoes subjetivas deaceitagao da nova ordem politica, economica e social, identificadapelos Ideals de progresso, liberdade, democracia e desenvolvimento.

Os direitos basicos que aparecem nas declaragoes revoluciona-rias norte-americanas e francesas dos seculos XVIII e XIX, taiscomo: o direito a liberdade de trabalho, de crengas, de expressaode pensamento e de justiga, direito que engloba os demais e afir-ma o carater juridico como dominante, sao armas burguesas nacontestagao da ordem existente (o antigo regime).

A sociedade igualitaria apregoada pela burguesia revoluciona-ria estabelece-se apenas por principio juridico de direito, mas naode fato. Mesmo porque igualdade nao significa, de modo algum,igualdade material, uma vez que os direitos fundamentals sao in-dependentes do status ou fungao social. Para o pensamento liberalclassico, os homens nao sao iguais em seus "talentos" e "capaclda-des individuals", logo, nao o poderao ser em relagao as riquezas ma-terials, porque estas nada mais sao do que a recompensa de seustalentos.

Sendo todos os homens dotados, individual e naturalmente, detalentos e vocagoes, sua posigao na sociedade sera determinada pelasua condlgao individual/natural, independentemente da classesocial ou credo religioso a que pertengam.

A educagao escolar, na fase em que a burguesia e ainda clas-se revoluclonaria, preocupar-se-a com esse homem abstrato, uni-

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36 EDUCACAO FJSICA

versal e natural, procurando desenvolver nele suas aptidoes, ta-lentos e vocagoes, para que, a partir desse desenvolvimento, elepossa participar da vida em sociedade na exata proporgao de seusvalores intrinsecos. Desse modo, a educagao escolar estara con-tribuindo para a justiga social, uma vez que, com base no meritoindividual e nao mais no nascimento ou fortuna, levara a socie-dade a ser hierarquizada.

Uma sociedade hierarquizada, com individuos desempenhan-do fungoes absolutamente distintas na produgao, era uma neces-sidade do capitalismo - um modo de produgao que cria necessida-des. A instrugao do povo era uma delas, uma vez que os avangosda industria e das novas tecnicas introduzidas no maquinario exi-giam um minimo de instrugao. Para manejar o instrumental do seutempo, o operario ou o campones deveriam dominar os rudimentosda leitura e ser instruidos de acordo com a fungao "natural" para aqual estavam destinados.

A ideologia das aptidoes naturals, dos talentos, das capacida-des circunscritas ao ambito do individual-hereditario-biologico,estava na base das concepgoes educacionais do final do seculo XVIIIe inicio do seculo XIX. Estas concepgoes, embora apresentem al-gumas diferengas em suas formulagoes, na sua essencia postula-vam uma educagao de classe. E e nelas que vamos encontrar apreocupagao com a "Educagao Fisica".

Vejamos como se expressam, nos diferentes paises da Europa,pensadores socials da epoca - aqueles que formularam as bases daeducagao liberal.

A referenda aos pensadores liberals classicos coloca-se comofundamental para este trabalho, uma vez que sao as suas ideiassobre a Educagao Fisica que irao servir de base filosofica e peda-gogica para o seu desenvolvimento ao longo dos seculos XVIII e XIX.

John Locke (1632-1704), teorico politico liberal ingles, e aque-le pensador que "de fato" reconhecia a igualdade "de direitos" en-tre os homens, fossem eles ricos ou pobres. Entretanto, para ele, aordem social ja se encontrava estabelecida: existem ricos e pobres.Sendo assim, a instrugao que cada um deveria receber correspondiaao que fosse necessario para que esta ordem se mantivesse. Paraos ricos, a instrugao deveria ser de tal nivel que estes pudessem

"EM NOME DASAUDE DO CORPO SOCIAL..." 37

ser governantes do estado e bons administradores de seus nego-cios particulares; para os pobres, a instrugao deveria ter por fina-lidade desenvolver a obediencia, extremamente util para uma exis-tencia virtuosa. Locke foi preceptor do neto de um conde, um jovemgentleman, figura que sempre aparecia em suas formulagoes peda-gogicas. E tendo por referenda esse jovem, Locke chegou a discu-tir o conteudo da educagao, o qual deveria fornecer conhecimentosmais uteis para a vida em sociedade.

O conteudo da educagao preconizado por Locke deveria incluiro calculo, considerado util em escritorios, oficinas e ate mesmo emoutras circunstancias da vida cotidiana. Ele tambem achou por bemaconselhar a introdugao da escrituragao comercial, conhecimentonecessario e bastante util para se obter uma correta nogao dosgastos e conhecer seus limites. Alem do calculo e da escrituragaocomercial, os estudos da Geografia, Aritmetica, Historia e DireitoCivil deveriam completar o conteudo da educagao. Uma educagaoque deveria preparar tecnica e politicamente os quadros para a con-solidagao de um outro Estado, um estado liberal no qual o livre co-mercio e a livre produgao seriam garantidos.

Estas formulagoes de Locke sobre a educagao completavam oconjunto de argumentos por ele utilizados na critica ao estadomonarquico absoluto, cuja existencia se converte em obstaculo aodesenvolvimento das forgas produtivas necessarias a implantagaode uma nova ordem politica, economica e social que, baseando-sena liberdade, igualdade e prosperidade, consolida como natural aacumulagao capitalista.

Segundo A. Ponce, a incorporagao dos conteudos propostos porLocke a educagao do "jovem gentleman" indicava uma mudanga deorientagao da nobreza em relagao aos negocios do Estado, uma vezque

o comercio e a industria haviam dlminuido as distanclas que exis-tiam entre o burgues e o nobre, haviam introduzido a necessidadede novos metodos na educagao, e, acelerando o processo cientifico,minavam cada vez mais dogmas veneraveis. Mas, nao se tratavaapenas disso, eles afrouxavam cada vez os entraves que o feudalis-mo impunha a sua propria expansao [...] [PONCE, 1986, p. 129].

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38 EDUCACAO FlSICA

Era necessario, sobretudo, lutar contra todas as barreiras queo feudalismo impunha. Liberdade de comercio, de crengas e deideias.

Particularmente no que se refere a liberdade de crengas e ideias,a burguesia tinha como interlocutor a Igreja. Os seus dogmas se-culares precisavam ser rejeitados, e assim, lentamente, tornar-se-ia possivel para a burguesia separar a fe da lei.

Essa rejeigao a Igreja se expressa no conteudo da educagao quea burguesia quer construir: uma educagao utilitaria, pratica, cola-da as necessidades da industria e do comercio, uma educagao quecorresponda as necessidades da sociedade, enfim... que seja utilpara a vida.

Para Locke, um aspecto importante da educagao cavalheires-ca deveria ser incluido nessa nova nogao de educagao: o cuidadocom o corpo, que figurara nas concepgoes pedagogicas liberals, ga-nhando maior destaque e sistematizagao na segunda fase do libe-ralismo, fase da burguesia como classe contra-revolucionaria.

Se Locke interpretou as ideias pedagogicas da burguesia naInglaterra, Rousseau foi aquele que, na Franga, deu suporte aosideals de educagao sustentados pela Revolugao Burguesa de 1789.As formulagoes teoricas de Rousseau contribuiram, de modo deci-sive, para o desenvolvimento das ideias educacionais do fim doseculo XVIII e do seculo XIX.

Grande teorico da democracia liberal, Rousseau, assim comoLocke, postulava uma educagao de elite, uma educagao para umaluno ideal - o seu "Emilio" -,-um individuo suficientemente abas-tado para poder manter um preceptor que o acompanhasse portodos os lugares e que o orientasse em todos os momentos de suavida.

Nao havia em Rousseau uma preocupagao com a educagao dapopulagao em geral, como tambem nao existe em suas formulagoespedagogicas a preocupagao com a preparagao da crianga para a suavida de adulto, no sentido de molda-la de uma determinada manei-ra. Para ele, seria preciso ter em conta a crianga, fonte primeira daeducagao; suas necessidades, seus impulses e sentimentos esta-beleceriam as linhas gerais do seu "vir-a-ser", um "vir-a-ser" queocorreria, evidentemente, com o auxilio inteligente do mestre.

r: "EM NOME DA SAUDE DO CORK) SOCIAL..." 39

Em seu Emilia, obra na qual coloca as suas impressoes sobre

a educagao da crianga e do jovem, Rousseau se refere a uma novamaneira de se educar: exclui os estudos especulativos, evidencia anecessidade de ensinar nao muitas coisas, mas aquelas que saouteis, condena o excesso de livros para as criangas, que, segundoele, matam a ciencla, advoga um maior contato com a natureza,preconiza uma vida ao ar livre e a pratica de exercicio.

Tais postulates permitem-nos afirmar que em Rousseau estacontida uma proposta de redescoberta da educagao dos sentidos.

Quanto a questao especifica da importancia dos exercicios fi-sicos na educagao, Rousseau, como Locke, dedicou-lhe especialatengao. Podemos afirmar que Locke, num primeiro momento, eRousseau, num segundo, fornecem os elementos essenciais queserao desenvolvidos no seculo XIX sobre a necessidade e a impor-tancia do exercicio fisico na educacao do homem. Nas paginas doseu Emilio, Rousseau nao deixou de abordar os exercicios fisicos,sugerindo que, se ha o desejo de cultivar a inteligencia da crianga,e necessario cultivar as forgas que a regulam. Assim, o exerciciocontinue do corpo tornara a crianga forte e saudavel, e, por conse-qtiencia, ela sera inteligente e cheia de razao. Sugere ainda que epreciso deixar a crianga correr, gritar, fazer, trabalhar, enfim, deixa-la ser um ser de vigor, e prontamente o sera de razao (ROUSSEAU,1990).

Os principios politico-democraticos formulados por Rousseau,nos quais estao presentes a sua concepgao de Homem como seruniversal, liberado e pleno - o homem total que se expressa emEmilio -, tiveram grande influencia sobre os educadores da epocae, particularmente, sobre as primeiras sistematizagoes da Educa-gao Fisica.

Com Rousseau, de modo mais evidente que em outros pensa-dores liberals, a questao do exercicio fisico ganha espago e passa aser uma preocupagao do estado burgues. Essa preocupagao e detal ordem que vamos encontrar mais tarde, com Leppelletier e Con-dorcet, o exercicio fisico como parte integrante da formagao morale intelectual do cidadao.

Para o pensamento liberal, os exercicios fisicos fazem parte daeducagao. A educagao passa a ser considerada instrumento de

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40 EDUCACAO FJSICA

ascensao social e pratica capaz de promover igualdade de oportu-nidades.

A Franga revolucionaria constitui-se em espago onde a crengana educagao como pratica capaz de promover mudangas e radicali-zada, transformando-se em propostas que, no limite, tornam-se leis.

A expressao desse radicalismo liberal com relagao a educagaopode ser percebida atraves dos teoricos que vieram a participar demodo mais direto na Revolugao Francesa, entre os quais o prota-gonista mais significativo desta nova fase na Franga foi, sem duvi-da, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marques de Condorcet (1743-1794).

Mesmo nao sendo um profissional da educagao, Condorcet delase ocupou, elaborando propostas praticas para a solugao dos pro-blemas a ela inerentes. Para ele, as solugoes seriam efetivadas atra-ves de um piano de ensino, que visava a construgao de um sistemapublico, gratuito e laico de educagao, cuja finalidade seria estabe-lecer uma igualdade de oportunidades.

A laicizagao, a democratizagao e a politizagao da instrugao pas-sam a ser objeto de discussoes politicas nas grandes assembleiaslegislativas. As declaragoes revolucionarias na Franga e na Ameri-ca trazem consigo a exigencia de uma instrugao universal.

Condorcet sera aquele que, com o advento da Revolugao Fran-cesa, sera eleito, em 1789, deputado por Paris a Assembleia Legis-lativa e sera encarregado pelo Legislative de redigir um projeto re-lative a instrugao publica na Franga. Tres anos mais tarde, em abrilde 1792, o projeto de Condorcet torna-se famoso e conhecido comoRapport sur ['instruction publique2.

Em seu projeto Condorcet concede ao Estado o poder de con-trolar o ensino e o obriga a dar ao povo instrugao. Ele diferencia ainstrugao da educagao e enfatiza como dever do Estado a primeira,deixando a segunda, mais voltada as crengas filosoficas, religiosase morals, a cargo dos padres.

Enfatizando a instrugao laica sob o dominio do Estado, o Mar-ques acreditava que nenhum "talento" passaria despercebido, e que

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2. Sobre o assunto consultar E. Badinter e R. Badinter (1988).

todos os recursos, ate entao somente ao alcance dos ricos, estariamagora ao alcance de todos. Difundindo as luzes, seria possivel mul-tiplicar as descobertas cientificas e, desse modo, o poder do homemsobre a natureza.

As ciencias deveriam tomar o lugar importante ate entao ocu-pado pelas letras, e as faculdades de teologia deveriam ser supri-midas, pois o estudo das ciencias e mais eficaz que o da filosofiano combate aos preconceitos e a mesquinhez. A. Ponce observa que"como orientagao geral, nao era possivel interpretar de melhor ma-neira o espirito da burguesia nesse instante: cientifica, cetica epratica [...]" (PONCE, 1986, p. 140).

O espirito cientifico e pratico da burguesia revolucionaria, beminterpretado por Condorcet, pode ser apreendido num dos objeti-vos do seu Rapport:

Assegurar a cada um a cultura que desenvolvera plenamente osdiversos talentos pessoais. Para isto, e necessario que a instrugaovarie segundo a natureza e potencial, que ela se diversiflque, porassim dizer, de acordo corn cada Individuo. E necessario, por outrolado, que ela seja proporcional ao tempo que cada um, segundo suasituacao economica, possa dar aos estudos. E necessario entaoobservar essas diferengas e estabelecer diversos graus de instru-cao de acordo com elas, de modo que cada aluno os percorra, maisou menos segundo o tempo de que dlsponha e sua maior ou menorfacilidade de aprender [...] [apud CUNHA, 1980, p. 42].

Evidentemente, o tempo para percorrer os diferentes "graus deensino" e a "facilidade" para aprender nao eram iguais para todasas criangas. Dai a necessidade de "adequar" o ensino em graus, demodo a que todas as criangas tivessem acesso a algum grau, de acor-do com os seus "talentos", o que, em outra perspectiva, nada mais edo que classifica-las de acordo com a sua condigao de classe.

As escolas laicas, piiblicas e gratuitas que Condorcet propu-nha para todos nao eram frequentadas por todos. Apenas a peque-na e media burguesia tinha acesso a elas. As criangas do povo naoas frequentavam por uma razao muito simples: precisavam traba-Ihar para sobreviver.

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A proposta de Condorcet, nos moldes em que pensou a educa-gao, nao foi a unica. Outros pensadores liberals tambern flzeramprojetos na mesma perspectiva.

Louis Michel Leppelletier de Saint-Fargeau (1760-1793), poli-tico frances eleito em 1789 presidente do Parlamento de Paris edeputado da nobreza nos Estados Gerais, elaborou, assim comoCondorcet, um Piano Nacional de Educagao, transformando-o emprojeto que foi votado no ano de 1793. Em seu piano, o sistemanacional de educagao e concebido como pega-chave para o desen-volvimento do novo regime politico e social. Pela educagao formar-se-ia o homem novo, liberto das sujeigoes da antiga ordem e da for-tuna de nascimento.

Assim como outros teoricos liberals de seu tempo, Leppelletierfala da igualdade, gratuidade e obrigatoriedade do ensino e postu-la a sua laicidade.

Em relagao ao conteudo educacional, sera Leppelletier o teori-co que abrira espago para os exercicios fisicos em suas propostaspedagogicas, as quais passam a ter carater de lei. Sobre os exerci-cios fisicos, assim se expressa:

O objetivo da educagao nacional sera fortificar o corpo edesenvolve-lo por meio de exercicios de ginastica; acostumar ascriancas ao trabalho das maos; endurece-las contra toda especie decansaijo, dobra-las ao jugo de uma dlsciplina salutar, formar-lheso coracao e o espirito por meio de instrugoes uteis; e dar conheci-mentos necessaries a todo cidadao, seja qual for sua profissao [...][apud CUNHA, 1980, p. 43].

Esta seria a educagao capaz de formar homens completos, ne-cessarios para desenvolver e aprimorar a nova sociedade e, portan-to, deveria ser um "direito" de todos os cidadaos. Porem, as propos-tas teoricas nao sao colocadas em pratica para todos, e este "direito"mantem-se apenas no discurso, assim como a liberdade e a igual-dade.

As propostas pedagogicas liberals refletem as contradigoesdo poder e a tomada deste mesmo poder em nome do Homem Uni-versal.

Assim como a Franga, a Alemanha tambem busca criar as con-digoes institucionais para educar o homem universal. Seus peda-gogos foram formados e influenciados pelos ideais franceses, par-ticularmente pelo naturalismo romantico de Rousseau e a educagao

de Emilio.Johan Bernard Basedow (1723-1790), pedagogo alemao, cria,

em 1774, o Philantropinum, um estabelecimento de ensino paraaplicar em maior escala as ideias de Rousseau, filosofo que exer-ceu grande influencia em seu pensamento pedagogico. O objetivodo Philantropinum seria o de formar os cidadaos do mundo tornan-do-os aptos a uma vida mats util e tambem mats feliz. Na historio-grafia da Educagao Fisica, particularmente no trabalho de AloisioRamos Accioly, Basedow figura como o pedagogo que criou

a primeira escola dos tempos modernos [que teve] um cunho pro-fundamente democratico, pois seus alunos provinham indiferente-mente de todas as camadas socials. Foi tambem a primeira escolaa incluir a ginastica no curriculo, no mesmo piano das materias cha-madas teoricas ou intelectuais [ACCIOLY, 1950, p. 5]3.

De fato, o pedagogo alemao introduziu a ginastica na escola, or-ganizando o curriculo de modo que ela viesse a figurar como parteintegrante da educagao escolar. As atividades eram assim distribui-das ao longo do dia: "5 horas por dia para o estudo, 3 horas para arecreagao, que compreendia a pratica de esgrima, da equitagao, dadanga e da musica, e 2 horas para os trabalhos manuals" (ACCIOLY,1950, p. 6).

Um curriculo tao diversificado e rico poderia destinar-se a to-dos? Basedow realmente desejava uma escola para todos. So queesta escola nao seria a mesma para todos.

A. Ponce, analisando a obra de Basedow, evidencia, para nos,a superficialidade das colocagoes de Accioly acerca do pensamen-to do pedagogo alemao, do seu Philantropinum e de sua concepgao

3- Ver tambem Inezil Penna Marinho (s.d.-a), em especial o capitulo 10. Para umaleitura mats critica, consultar Jacques Rouyer (1977), Manuel Sergio (s.d.).

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de educagao. Ao abstrair a importancia dada por Basedow a ginas-tica, Accioly coloca-o numa posigao mitificada, o que Ihe impede deperceber, por exemplo, a visao de classe do autor em questao. Va-mos verificar como Basedow pensava sua escola para "formar oscidadaos do mundo", segundo os estudos de A. Ponce:

Antes de tudo, ele distinguia dols tipos de escolas, uma para ospobres e outra para os filhos dos cidadaos mais eminentes. "Nao haqualquer inconveniente em separar as escolas grandes (populares)das pequenas (para os ricos e tambem para a classe media) porquee muito grande a diferenga de habitos e de condicjao existentes en-tre as classes a que se destinam essas escolas. Os filhos das clas-ses superiores devem comec.ar bem cedo a se instruirem, e comodevem ir mais longe do que os outros, estao obrigados a estudarmais... As criangas das grandes escolas (populares) devem, por outrolado, de acordo com a finalidade a que deve obedecer a sua instru-gao, dedicar pelo menos a metade do seu tempo aos trabalhos ma-nuais, para que nao se tornem inabeis em uma atividade que nao etao necessaria, a nao ser por motives de saude, as classes que tra-balham mais com o cerebro do que com as maos... Nas grandes es-colas - diz Basedow, em seguida - alem de ensinar a ler, a escrevere a contar, os mestres tambem devem cuidar daqueles deveres quesao proprios das classes populares... (pois) felizmente, as criangasplebeias necessitam menos instrugao do que as outras, e devemdedicar metade do tempo aos trabalhos manuals" [PONCE, 1986,pp. 136-137].

Ao afirmar que as criangas plebeias necessitam de "menos ins-trugao", Basedow justifica de modo preconceituoso uma dificulda-de de ordem tecnica existente nas grandes escolas populares: umunico professor e turmas imensas constituidas por alunos de ida-des distintas.

Qual das escolas formaria "os cidadaos do mundo"? A respos-ta parece obvia quando pensamos o lugar ocupado pelos estudosnas chamadas escolas populares. Eles nao deveriam predominarsobre os trabalhos manuals e seu tempo seria exiguo. Esta leitura

preconceituosa das necessidades das classes populares e aindamais cruel quando se pensam castigos e punigoes para corrigir vi-cios e defeitos: as horas de estudo transformam-se em horas detrabalhos manuals (idem, p. 137).

Desse modo, alargado o preconceito contra a classe trabalha-dora, o pensamento pedagogico deixa claro em qual dessas esco-las, a danga, a musica, a equitagao e a esgrima figurariam comocomponentes curriculares; em qual dessas escolas ocorreria o res-gate da "educagao dos sentidos" de que tanto falara Rousseau.

As propostas de Basedow para a educagao que incluia os exer-cicios fisicos, apresentavam, portanto, um nitido carater de classe.Estas propostas eram compartilhadas, no mesmo periodo, pelo sui-go J. H. Pestallozzi (1746-1827), que, em suas formulagoes pedago-gicas, considerava importante educar os sentidos das criangas, in-cluindo nos curriculos a musica e a ginastica. Quanto a ginastica,Pestallozzi procurava evidenciar a sua inegavel utilidade para o cor-po e o enorme proveito moral que dela se podia retirar.

Mas ao mesmo tempo em que propunha a ginastica, atividadeentao desconhecida na educagao popular tradicional, Pestallozziacreditava que a ordem social havia sido criada por Deus e concor-dava com a ideia da existencia de "tantos homens e tantas educa-goes quanto classes [...] o filho do aldeao deve ser aldeao e o filhodo comerciante, comerciante" (idem, p. 143).

Pestallozzi interpreta com "sabedoria" as necessidades que secaracterizam pela divisao do trabalho e pela criagao de fungoes cadavez mais especificas a serem desempenhadas por individuos "trei-nados" para tal, quer fisica, quer mental ou moralmente.

Certamente este pedagogo possuia grande benevolencia paracom os pobres. Porem, considerando a sua concepgao de educagaocomo educagao de classe, nao podemos deixar de concordar cornAnibal Ponce quando afirma que Pestallozzi "nunca pretendeu ou-tra coisa a nao ser educar os pobres para que estes aceitassem debom grado a sua pobreza" (idem, ibidem).

Pestallozzi apresentou suas propostas pedagogicas na viradado seculo XVIII para o seculo XIX, periodo de confrontagao, ou mes-mo de antagonismo, da burguesia como classe no poder com a maisnova forga politica da sociedade capitalista: o proletariado. O se-

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culo XIX representa este novo momento no qual a burguesia ja co-mega a deixar de ser "classe revolucionaria". Suas ideias sobre asociedade e sobre os homens vao sendo adaptadas para suportaras novas lutas que se travam pela manutencao do status quo.

2. O ESPACO DA EDUCACAO FISICA NA EDUCACAO

A revolucao operaria de 1848 exige modificagoes entre o Esta-do e a sociedade civil. E este e o momento no qual o liberalismopassa a ter outra fungao.

Segundo M. J. Warde (1984, pp. 58-59), este e o momento noqual comega a existir uma ampliagao dos direitos politicos aos nao-proprietarios, ao mesmo tempo em que o tema da democracia pas-sa a ser incorporado. A Revolugao de 1848 faz surgir tambem umalegislagao trabalhista e o direito de organizagao dos trabalhadoresem sindicatos. Neste quadro, redefinem-se as relagoes entre Estadoe sociedade civil, porque outras necessidades estao colocadas na so-ciedade.

A propria necessidade de instrugao, nesta segunda metade doseculo XIX, passa a ter uma importancia jamais sentida. As trans-formagoes introduzidas no processo produtivo neste periodo, gra-gas aos avangos tecnocientificos, exigem da forga de trabalho nasfabricas, nas industrias e no comercio, modificagoes substantivasna formagao dos recursos humanos necessaries para garantir aacumulagao do capital.

Em fins do seculo XIX, vamos encontrar uma burguesia con-tra-revolucionaria, que tinha plena convicgao da importancia e danecessidade de uma instrugao elementar seletiva e organizada, demodo a acentuar a divisao entre trabalho intelectual e manual - umainstrugao que nao ameagasse os privilegios e a ordem estabelecidaapos o massacre da Comuna de Paris. Foi assim que a burguesiapensou numa

educacao primaria para as massas, uma educacao superior para ostecnicos, [reservando porem] para os seus filhos outra forma deeducagao - o ensino medio - [no qual] as cienclas ocupavam lugar

EM NOME DA SAIJDE DO CORK) SOCIAL... 47

discrete [e] o saber continuava livresco e bastante divorciado da vidareal [PONCE, 1986, p. 146].

Enquanto proclamava o trabalho como a "virtude fundamentaldo homem", a burguesia reservava para os seus filhos um ensinototalmente divorciado do trabalho, o unico considerado "digno dasclasses superiores", no qual figuravam todas as ciencias e as tec-nicas mais modernas, mas no qual as humanidades e as letras naopoderiam deixar de se fazer presentes, porque elas "sao o propriohomem". Essa era a educagao dada nos liceus e direcionada paraaqueles que poderiam ter o estudo como unica atividade ate os 22anos de idade.

Ao construir o seu sistema educacional diferenciado, a bur-guesia mesmo assim se depara com um grave conflito: de um lado,a necessidade de que o trabalhador, para manejar qualquer ins-trumento, soubesse ler; de outro, a consciencia de que esta ins-trugao poderia tornar o trabalhador mais independente e menoshumilde.

A burguesia solucionou esse conflito entre os seus temores e osseus interesses dosando com parcimonia o ensino primario e im-pregnando-o de um cerrado espirito de classe como para nao com-prometer, com o pretexto das "luzes", a exploracao do operario, queconstitui a propria base de sua existencia [idem, p. 150].

Entretanto, ate mesmo esta exploragao comega a ser controla-da pela propria burguesia, que toma consciencia de que a sua "ga-linha de ovos de ouro", conforme expressao de Anibal Ponce, eraconstituida pelo "lar operario", o mesmo lar que ela desarticulou demodo deliberado, priorizando as necessidades do capital.

Atraves de seus teoricos, a burguesia se apressa neste momentoem proclamar as necessidades de reorganizar a familia, preserva-la dos perigos do "mundo do vicio", da prostituigao, do crime, aomesmo tempo em que proclama os "sagrados direitos da infancia",criando leis para protege-la, mas julgando sua criagao suficiente,nao verificando sequer o seu cumprimento, que, na verdade, nun-ca ocorreu.

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Reorganizar a familia, depots de te-la destruido em nome docapital; criar dentro desta reorganizagao familiar um espago pro-prio e "respeitado" para a mulher depois de te-la feito degenerar-se fisicamente, quer pelo trabalho na fabrica, quer pela prostitui-cao, ou por ambas as alternativas apontadas; regenerar fisicamenteo trabalhador depois de te-lo aniquilado pelas condigoes de traba-lho com suas interminaveis horas sem repouso, alimentacao oudescanso.

Como afirmamos no inicio deste segundo capitulo, a classe nopoder, em meados do seculo XIX, tinha plena consciencia da im-portancia da forca fisica do trabalhador."Regenerar", "revigorar"esse corpo debilitado e aviltado, devolver-lhe a "saude fisica", sem,entretanto, alterar substantivamente suas condigoes de vida e detrabalho, era o seu discurso nesta nova fase do capitalismo, na qualnecessitava criar novos mecanismos juridicos e institucionais para"controlar a liberdade", para "garantir a igualdade" e para "asse-gurar a propriedade".

A extensao da escolarizagao primaria foi colocada, entao, comoum dos mecanismos privilegiados para o controle das formas depensamento e de agao do "corpo social", e, dentro da escola, ga-nhava espago um conteudo bastante enaltecido pelo pensamentomedico e pedagogico ao longo de todo o seculo XVIII. Estamos nosreferindo ao exercicio fisico como elemento da educagao, tao enal-tecido por Rousseau, Basedow, Pestallozzi e pelos politicos revolu-cionarios franceses que fizeram da educagao, lei, como Condorcete Leppelletier.

O exercicio fisico, denominado ginastica desde o seculo XVIII,com maior enfase, porem, no seculo XIX, foi o conteudo curricularque introduziu na escola um torn de laicidade, uma vez que passa-va a tratar do corpo, territorio entao proibido pelo obscurantismoreligioso. Desse ponto de vista, so podemos louvar as teses dospedagogos liberals por voltarem sua atengao tambem ao corpo.

Entretanto, quando analisamos o olhar que foi dirigido ao cor-po, deparamo-nos com seu carater conservador e utilitario. O es-tudo do corpo dos individuos, compreendido como importante ins-trumento da produgao, passou a ser rigorosamente organizado soba luz da ciencia, mais especificamente das ciencias biologicas.

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Este conhecimento do corpo biologico dos individuos, se, de umlado, teve um significado de libertagao, na medida em que eviden-ciou as causas das doengas (agora nao mais entendidas como cas-tigo de Deus), bem como sistematizou alguns cuidados para com ocorpo, entre os quais o exercicio fisico, de outro lado limitou pro-fundamente o entendimento do homem como um ser de naturezasocial, cuja "humanidade" provem de sua vida em sociedade4.

Na medida em que o metodo cientifico utilizado para explicar asociedade e tornado das ciencias fisicas e biologicas, as praticassocials e o sujeito que as constroi - o homem - aparecem como queaprisionados nos limites dessas ciencias.

As questoes socials passam a ser "naturals" e o "homem social"passa a ser "homem biologico". Essas concepgoes, em ultima ana-lise, desembocam nas absurdas teorias raciais, por nos ja aborda-das ao longo deste trabalho.

Evidenciar os aspectos da biologizagao e naturalizagao do ho-mem e da sociedade se faz necessario, uma vez que a EducagaoFisica, no seculo XIX, constitui-se, basicamente, a partir de umconceito anatomofisiologico do corpo e dos movimentos que esterealiza. O seu referencial estara carregado de intengoes como: re-generar a raga, fortalecer a vontade, desenvolver a moralidade edefender a patria. As ciencias biologicas e a moral burguesa estaona base de suas formulagoes praticas.

Desta forma, torna-se indispensavel frisar que o espago dadoa Educagao Fisica, se, por um lado, representa avango para a Edu-cagao, constituindo mais um elemento laico na sua estruturagao,por outro, representa atraso, significando disciplinarizagao de mo-vimentos, domesticagao, pois se configura como mais um canal, ab-solutamente dominado pela burguesia, para veicular o seu modelode corpo, de atividade fisica, de saude... a sua visao de mundo.

A Educagao Fisica, filha do liberalismo e do positivismo, delesabsorveu o gosto pelas leis, pelas normas, pela hierarquia, peladisciplina, pela organizagao da forma. Do liberalismo, forjou suas"regras" para os esportes modernos (que, nao por acaso, surgiram

4. Sobre a determina§Eio sociolstorica no desenvolvimento humano, consultarAlexis Leontlev (1978), O desenvolvimento do psiquismo, Lisboa, Horizonte.

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na Inglaterra), dando-lhes a aparencia de serem "universais" e,deste modo, permitindo a todos ganhar no jogo e veneer na vida peloseu proprio esforgo. Do positivismo, absorveu, com muita proprie-dade, sua concepgao de homem como ser puramente biologico eorganico, ser que e determinado por caracteres geneticos e heredi-tarios, que precisa ser "adestrado", "disciplinado". Urn ser que seavalia pelo que resiste.

Uma Educagao Fisica pautada por estes pressupostos deixa-nos muitas indagagoes, especialmente quando o seu texto ganha ocontexto: a Europa que consolida vitoriosa a "Dupla Revolugao" e omodo de produgao capitalista.

Podemos afirmar que, a partir da primeira decada do seculo XIX,a Educagao Fisica e sistematizada em "metodos", ganha foros cien-tificos e e disseminada como "grande bem" para todos os "males",como protagonista de um corpo saudavel... saudavel porque fazexercicios fisicos. Entretanto, o exercicio fisico nao e saudavel emsi, nao gera saude em si, e apenas e tao somente um elemento, numconjunto de situagoes, que pode contribuir para um bem-estar ge-ral e, neste sentido, aprimorar a saude, que nao e um dado natu-ral, um a priori. Ao contrario, saude e resultado, porque, mais queo vigor fisico corporal, compreende o espago de vida dos individuos,dai nao ser possivel medi-la, nem avalia-la apenas pela aparenciade robustez ou de fadiga.

Sempre vinculada a saude biologica, a Educagao Fisica seraprotagonista de um projeto maior de higienizagao da sociedade. Ocorpo, do qual se ocupa, e o corpo anatomofisiologico. E ele sera areferencia fundamental de seu desenvolvimento como pratica so-cial.

Entretanto, uma Educagao Fisica assim construida torna-sea-historica, pois

na medida em que a multiplicidade das determinaijoes que marcamo corpo dizem respeito a forma pela qual o homem se relaciona como meio fisico e com outros homens, e ainda as formas assumidashistoricamente por essas relac.6es, o corpo anatomo-fisiologico apa-rece como um corpo investido socialmente. E atraves das normaselaboradas na vida coletiva que o corpo se dimensiona e adquire o

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significado por referencia a especialidade da estrutura social [...] ocorpo e disposto na sociedade antes de tudo como agente do traba-Iho, o que remete a ideia de que ele adquire seu significado na es-trutura historica da produgao: significado que se expressa na quan-tidade de corpos "socialmente necessaries", no modo pelo qual seraoutilizados, nos padroes de acao fisica e cultural a que deverao ajus-tar-se [DONNANGELO & PEREIRA, 1979, pp. 25-26].

A Educagao Fisica, construida de maneira autonoma em rela-gao a sociedade que objetiva o corpo dos individuos em configura-goes precisas e determinadas historicamente, coloca-se como umapratica "neutra", capaz de alterar a saude, os habitos e a propriavida dos individuos. E e assim que ela comega a ser veiculada comouma necessidade, passando a integrar o conjunto de normas quetratam dos "cuidados com o corpo", cuidados esses que, no discur-so, passam a ser um problema do Estado.

Particularmente, o exercicio fisico seria aquele "cuidado com ocorpo" dotado de poderes capazes de resolver os problemas colo-cados pela sociedade industrial, seria aquele elemento capaz deneutralizar os conflitos socials e "equilibrar" a vida no mundo dotrabalho.

Vale ressaltar que, em plena Revolugao Industrial, o trabalha-dor se transforma em simples acessorio das maquinas e necessita,cada vez mais, atengao e saude para suportar as interminaveishoras sem descanso e em posigoes absolutamente nocivas ao seucorpo. Dai, a importancia atribuida ao exercicio fisico, este novo"remedio" para os males "necessaries" da nova ordem.

3. AS ESCOLAS DE GINASTICA: SAUDE, DISCIPLINAE CIVISMO

A partir do ano de 1800 vao surgindo na Europa, em diferen-tes regioes, formas distintas de encarar os exercicios fisicos. Essas"formas" receberao o nome de "metodos ginasticos" (ou escolas) ecorrespondem aos quatro paises que deram origem as primeirassistematizagoes sobre a ginastica nas sociedades burguesas: a Ale-

/m.

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52 EDUCAgAO FlSICA

manha, a Suecia, a Franga e a Inglaterra (que teve um carater muitoparticular, desenvolvendo de modo mais acentuado o esporte). Es-sas mesmas sistematizagoes serao transplantadas para outros pai-ses fora do continente europeu.

A ginastica, considerada a partir de entao cientifica, desempe-nhou importantes fungoes na sociedade industrial, apresentando-se como capaz de corrigir vicios posturais oriundos das atitudesadotadas no trabalho, demonstrando, assim, as suas vinculagoescom a medicina e, desse modo, conquistando status. A essa feigaomedica, soma-se outra a ginastica: aquela de ordem disciplinar...e disciplina era algo absolutamente necessario a ordem fabril e anova sociedade.

O aprofundamento dessa tematica, certamente necessaria parauma maior compreensao da Educagao Fisica, nao constitui objetode investigagao do presente trabalho. Nossa intengao, ao trazer adiscussao dos "metodos ginasticos", deve-se ao fato de estarem elessempre presentes nos discursos de estadistas, medicos e pedago-gos brasileiros. Para alem de sua presenga nesses discursos, o seuconteudo revela-se marcadamente medicalizante, afirmagao quepode ser traduzida, sobretudo, pelas ciencias que Ihes servem debase.

Isto posto, passaremos a fazer referencia as escolas de ginas-tica que tiveram maior penetragao no Brasil, procurando destacaro vies medico higienista que expressam, as ciencias pelas quais sepautam e a moral que proclamam. Nao nos ocuparemos das ques-toes pedagogicas que estas escolas certamente suscitam.

Apresentando algumas particularidades a partir do pais de ori-gem, essas escolas, de um modo geral, possuem finalidades seme-Ihantes: regenerar a raga (nao nos esquegamos do grande numerode mortes e de doengas); promover a saiide (sem alterar as condi-goes de vida); desenvolver a vontade, a coragem, a forga, a energiade viver (para servir a patria nas guerras e na industrial e, final-mente, desenvolver a moral (que nada mais e do que uma interven-gao nas tradigoes e nos costumes dos povos).

Assim e que passamos a situar o seu surgimento na Europa esua implantagao no Brasil de forma apenas descritiva, tendo porobjetivo trazer um maior numero de informagoes que permitam a

"EM NOME DA SAtJDE DO CORPO SOCIAL..." 53

compreensao da presenga do pensamento medico higienista na

Educagao Fisica.

A Escola Alema

Na Alemanha, a ginastica surge para atingir as finalidadesapontadas anteriormente, particularmente a da defesa da patria,uma vez que este pais, no inicio do seculo XIX, nao havia aindarealizado a sua unidade territorial. Era precise, portanto, criar umforte espirito nacionalista para atingir a unidade, a qual seria con-seguida com homens e mulheres fortes, robustos e saudaveis.

Acreditavam os idealizadores da ginastica alema que este "es-pirito nacionalista" e este "corpo saudavel" poderiam ser desenvol-vidos pela ginastica, construida a partir de "bases cientificas", ouseja, das ciencias que dominavam a sociedade da epoca: a biolo-

gia, a fisiologia, a anatomia.Guts Muths, um dos fundadores da ginastica na Alemanha, as-

sim se expressa sobre o que deve dar fundamento a ginastica:

eu bem sei que uma verdadeira teoria da ginastica devera ser fun-dada sobre bases fisiologicas e que a pratica de cada exercicioginastico devera ser calculada segundo a constituigao de cada in-dividuo [apud MARINHO, s.d.-a, p. 119]5.

Baseada nas lets da fisiologia, a ginastica para este autor de-veria ser organizada pelo Estado e ministrada todos os dias paratodos: homens, mulheres e criangas. Note-se que, no inicio do se-culo XIX, ja aparece uma preocupagao com o corpo da mulher, poisela e que gera os "filhos da patria". A ginastica, entao, ministradatodos os dias, seria o meio educativo fundamental da nagao, disse-minando cuidados higienicos com o corpo e com o espago onde se

vive.As preocupagoes que nortearam os idealizadores da ginastica

na Alemanha deitam raizes nas teorias pedagogicas de Rousseau,

5. Ver tambem Jayr Jordao Ramos, 1982.

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54 EDUCACAO FJSICA

Basedow e Pestallozzi, teorias que justificam a ideia de formar ohomem complete (universal) e nas quais o exercicio fisico ocupa lu-gar destacado.

Outro idealizador da ginastica na Alemanha que acompanha asideias dos pedagogos liberais e Friederich Ludwig Jahn (1778-1825).

Jahn reforgara, para alem da saiide e da moral, o carater mili-tar da ginastica. Ele acreditava que, para formar o "homem total",a ginastica deveria estimular a aplicacao dos jogos, pois eles cons-tituem verdadeira fonte de emulagao social, e dava, especial aten-gao as lutas uma vez que Ihe era sempre presente a possibilidadede uma guerra nacional. Em suas formulagoes praticas para a exe-cugao dos exercicios fisicos, Jahn cria "obstaculos artificials", quemais tarde serao denominados "aparelhos de ginastica".

Com forte orientagao de teor civico e patriotico, a ginastica deJahn encontra grande respaldo na classe dirigente, que acaba porreforgar o carater militar e patriotico de seu movimento de ginasti-ca denominado "Turnen". Este movimento era constituido de

grandes festas gimnicas, grandes encontros de massas muito dis-ciplinadas, [que] sao organizados a partir de 1814, mas sobretudodepois de 1860. Encontra-se [no Turnenl [...] uma primeira formade instrucao fislca militar, destinada as massas, que correspondeas necessidades praticas da burguesia [ROUYER, s.d., p. 117).

Essa forma de instrugao fisica militar, destinada as massas,embora disseminasse, do ponto de vista ideologico, a moral e opatriotismo, apresentava um forte conteudo higienico e tinha porfinalidade primeira tornar os corpos ageis, fortes e robustos. Emmomento algum a saude fisica deixou de pontuar aquelas propos-tas, e o corpo anatomofisiologico sempre foi seu objeto de atengao.O vies medico-higienico emprestava o carater cientifico que, junta-mente com a moral burguesa, completava o carater ideologico.

Se Guts Muths e Jahn preocuparam-se com os exercicios des-tinados as massas, Adolph Spiess (1810-1858) preocupa-se com aginastica nas escolas e, assim como Basedow, propoe que um pe-riodo do dia seja dedicado ao exercicio fisico.

"EM NOME DA SAUDE DO CORPO SOCIAL..." 55

A. R. Accioly (1949, p. 9) assim esquematiza o sistema de gi-nastica escolar de A. Spiess:

c

SISTEMA

DE

GINASTICA

Exercicios Livres(sem aparelhos)

Exercicios de suspensao

Exercicios de apoio

Ginastica Coletiva

membros superioresmembros inferiores

barrasparalelascordas

apoio propriamente ditosuspensoesbalanceamentos

marchas e exercicioou ordem unida

Como podemos verificar, o sistema de ginastica de A. Spiess eabsolutamente mecanico e funcional, muito embora a historiografiada Educagao Fisica enaltega valores "pedagogicos" de seu sistema.

Conforme observa A. R. Accioly, Spiess

conceituava a educacjao como indivlsivel, abracando toda a natu-reza da crianga e sltuando a ginastica como responsavel pela per-feigao do corpo que a poria em equilibrio com a alma [idem, p. 9).

De um modo geral, o movimento de ginastica na Alemanhacaracterizou-se por um forte espirito nacionalista, e os famosos"Turnen" de Jahn desenvolveram-se a partir de 1870 sob quatroorientagoes: nacionalista, socialista, ultranacionalista e racista.

Ja no seculo XX, particularmente apos a Primeira Guerra Mun-dial e a derrota da Alemanha, a tendencia ultranacionalista ira,segundo J. Rouyer,

servir os apetites de espaco vital do imperialismo alemao e o movi-mento e utilizado para mobilizar a juventude, servindo-se da ginas-

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56 EDUCACAO FJSICA

tica e das tecnicas dos desportos individuals. Depots de 1935 [...] omovimento gimnico contribui para a formagao do jovem fascistarigorosamente controlado [s.d., p. 179].

O investimento no corpo dos individuos, atraves da ginasticade massas, ou daquela ministrada nas escolas, considera, no limi-te, cada Individuo como um soldado que repete na disciplina urngesto identico.

O exerciclo fisico, entao, apresenta-se como uma aplicagao rea-lista das teorias educacionais6 que exaltarn o desenvolvlmento com-plete do homem universal. Sob uma teoria da Educagao Fisica idea-lista e individualista, que em outras circunstancias passaria aolargo das preocupagoes da burguesia alema, ela satisfaz uma ne-cessidade pratica: proporcionar uma instrugao fisica de massas eatender, por esta via, a necessidade historica da unidade nacionalpara a defesa da patria, e, mais tarde, para a defesa contra a agres-sao imperialista.

No Brasil, segundo o professor Inezil Penna Marinho (s.d,-b,p. 39), a implantagao da ginastica alema ocorre na primeira metadedo seculo XX.

A historiografia da Educagao Fisica brasileira registra que aimplantagao da ginastica alema, neste periodo, deve-se ao grandenumero de imigrantes alemaes que aqui se instalaram, e que ti-nham, naquela ginastica, um habito de vida. Sua implantagao tam-bem e atribuida aos soldados da Guarda Imperial, que eram de ori-gem prussiana e que, ao deixarem o servigo militar, nao maisregressavam ao pais de origem, preferindo permanecer no- Brasil.

Esse contingente populacional de origem alema cria inumerassociedades de ginastica com as caracteristicas basicas tracadas porJahn, Guts Muths e Spiess7.

6. Sobre teorias educacionais consultar B. Suchodolski (1978), Apedagogiae asgrandes correntesfdosoficas, e B. Chariot (1979), A misti/icacao pedagogica.

7. Em Sao Paulo, em 12 de dezembro de 1888, e fundada a "Uniao de GinasticaAlema", que mais tarde, em 1938, sera nacionalizada por forga do decreto-lein. 383/38 e denominada "Associagao de Cultura Fisica de Sao Paulo, 1938".Em 11 de abril de 1892, em Porto Alegre, foi criada a Sociedade de GinasticaJurnerbund, segundo os moldes preconizados na epoca por Jahn (MARINHO,s.d.-b, p. 40).

"EM NOME DA SAUDE DO CORPO SOCIAL..." 57

Por volta de 1860, o metodo alemao e consagrado como o me-todo oficial do exercito brasileiro, e, em 1870, o Ministro do Impe-rio determina a tradugao e publicagao do "Novo Guia para o Ensi-no de Ginastica nas Escolas Publicas da Prussia". O metodo alemaopermanece oficial na Escola Militar ate o ano de 1912, quando en-tao e substituido pelo metodo frances (idem, p. 40).

Quanto as escolas primarias, o metodo alemao nao foi consi-derado pelos brasileiros como o mais adequado. Rui Barbosa ocombateu para as escolas, preferindo que as mesmas adotassem ometodo sueco.

A Escola Sueca

A sistematizagao da ginastica na Suecia ocorre no inicio doseculo XIX. Voltado para extirpar os vicios da sociedade, entre osquais o alcoolismo, o metodo sueco de ginastica se colocava comoo instrumento capaz de criar individuos fortes, saudaveis e livresde vicios, porque preocupados com a saude fisica e moral. Esseseram os individuos necessaries, ja que seriam uteis a produgao ea patria. Bons operarios, uma vez que por esta epoca a Suecia dainicio ao seu processo de industrializagao, e bons soldados, umavez que a ameaga de guerras estava sempre presente.

Pehr Henrick Ling (1776-1839), poeta e escritor, propoe ummetodo de ginastica impregnado de nacionalismo e destinado aregenerar o povo, formar, enfim, homens de bom aspecto que pu-dessem preservar a paz na Suecia.

Seu metodo ou escola de ginastica se baseia na ciencia, dedu-zindo de uma analise anatomica do corpo uma serie racional demovimentos de formagao.

Ling8 considerava que a sua ginastica poderia ser dividida em4 partes, de acordo com os diferentes fins visados. Assim, ela po-deria ser:

8. Utilizo aqui a estrutura de classificagao elaborada pelo professor Inezil PennaMarinho no livro Sistemas e Metodos de Educacdo Fisica (s.d.-c), especial-mente as paginas 183 a 188. Ainda sobre a Ginastica Sueca ver Neils Bukh.(1939).

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58 EDUCACAO FlSlCA

a) Ginastica pedagogica ou educativa - aquela que todas aspessoas, independentemente de sexo ou idade e ate mesmode condicao material e social, poderiam praticar. O seu maiselevado objetivo seria o de desenvolver o individuo normale harmoniosamente, assegurando a saude e evitando a ins-talacao de vicios, defeitos posturais e enfermidades.

b) Ginastica militar - deveria incluir a ginastica pedagogica,acrescida de exercicios propriamente mill tares, tais como otiro e a esgrima, cujo objetivo era preparar o guerreiro quecolocaria fora de combate o adversario.

c) Ginastica medica e ortopedica - que tambem deveria estarbaseada na ginastica pedagogica, visando eliminar vicios oudefeitos posturais e curar certas enfermidades atraves demovimentos especiais para cada caso encontrado.

d) Ginastica estetica - que, assim como as demais, estaria ba-seada na ginastica pedagogica, e, para alem dela, procurariao desenvolvimento harmonioso do organismo e seria comple-tada pela danca e certos movimentos suaves que proporcio-nam beleza e graca ao corpo.

Com essa divisao da ginastica feita por Ling, na qual detalhaos objetivos a serem por ela alcancados, torna-se evidente o viesmedico higienico, assim como a concepcao anatomofisologica dohomem. A ginastica aparece como um conteudo dotado de "magia"que a faria atingir seus diferentes fins propostos.

Vejamos como e definida uma ligao do metodo sueco (MARINHO,s.d.-c, p. 188):

1 ° - Exercicios de ordem

2° - Exercicios de pernas ou movimentos preparatories formando

uma pequena serie. Esta serie se decompoe assim:

a) movimentos de pernas;

b) movimentos de cabeca;

c) movimentos de extensao dos bracos;

d) movimentos do tronco para frente e para tras;

e) movimentos laterals do tronco;

f) movimentos outros de pernas;

EM NOME DA SAUDE DO CORPO SOCIAL..." 59

3° - Extensao da coluna vertebral

4° - Suspensoes simples e faceis

5° - Equilibrio

6° - Passo ginastico ou marcha

7° - Movimentos dos musculos dorsais

8° - Movimentos dos musculos abdominals

9° - Movimentos laterals do tronco

10° - Movimentos das pernas

11° - Suspensoes mais intensas que as do n" 4°

12° - Marchas ou Movimentos de pernas, executados mais rapi-

damente que os outros para preparar para os saltos

13° - Saltos

14° - Movimentos de pernas

15° - Movimentos resplratorios

A ginastica feminina era identica a masculina, com as seguintes

restricoes:

I - Evitar movimentos muito acentuados para tras;

II - Nao realizar movimentos que possam congestionar a bacia;

III- Abster-se do trabalho fisico durante a menstruagao;

Os principals aparelhos utilizados pelo metodo sueco eram e ain-

da sao:

a) barra movel para exercicio de suspensao e equilibrio;

b) cavalo de pau, plintos, carneiros

c) espaldares e banco sueco.

Como podemos verificar atraves dessa ligao, bem como atravesdos objetivos da ginastica em suas quatro divisoes, o "metodo deLing" e pautado essencialmente na anatomia e na fisiologia. Atra-ves dessa "ginastica pedagogica e higienica" se poderia "assegurara saude [pois ela e] essencialmente respiratoria", assim como a "be-leza, por seus efeitos corretivos e ortopedicos". Alem, e claro, do seupapel na formagao do carater, por ser "energica e viril", empregan-do economicamente as forgas do individuo. E, finalmente, essapanaceia universal chamada ginastica e tambem profundamente"social e patriotica [por contribuir para uma] educagao disciplina-da da celula humana a servigo da sociedade. Por meios simples elaassegura resultados certos (idem, p. 183).

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60 EDUCACAO FJSICA

Resultados tao certos que passam a Integrar o conteiido esco-lar. Segundo I. P. Marinho, em 1807, na Suecia, certamente pelainfluencia de Ling, os estabelecimentos de ensino deveriam desti-nar um local apropriado para os exercicios fisicos, bem como de-veriam ser nomeados professores especiais para ministra-los.

Esse metodo tera grande penetragao na Franga, Alemanha,Estados Unidos, Inglaterra, e chegara ao Brasil.

Como e um "metodo de ginastica" pautado pela ciencia, com finsnao acentuadamente militares, mas "pedagogicos" e "sociais", serautilizado sempre que as nagoes se encontrarem em paz. O fato deapresentar uma "base cientifica", a partir da anatomia e da fisiolo-gia, desperta o interesse dos meios intelectuais, que acabam justi-ficando, seja pelo idealismo, seja pela razao, a necessidade de suapratica.

No Brasil, Rui Barbosa foi um grande defensor da ginasticasueca de Ling, fundamentalmente por ela basear-se na "ciencia" erelacionar-se com a medicina e com os medicos, grandes magos doBrasil republicano.

A sua divulgagao no Brasil parte, portanto, da defesa que fazdela Rui Barbosa, num primeiro momento, e Fernando de Azeve-do, decadas mais tarde. Estes pensadores atribuem a GinasticaSueca uma adequacao maior aos estabelecimentos de ensino, dadoo seu carater essencialmente pedagogico. Esta defesa por parte des-tes intelectuais de epocas subseqtientes serviu para propagar aGinastica Sueca no Brasil. Com isto, lentamente, a ginastica ale-ma vai se restringindo aos estabelecimentos militares e a ginasticasueca vai se tornando a mais adequada para a Educagao Fisica civil,seja no ambito escolar, seja fora dele9.

A Escola Francesa

A Franga e o bergo das concepgoes liberals classicas de edu-cagao, concepgoes essas que incluiam tambem o exercicio fisicocomo elemento indispensavel a educagao do "Homem universal".

9. Em Sao Paulo, em 1901, o Dr. Domingos Jaguaribe funda o Institute Jaguaribe.Esta instituigao, adotando o metodo sueco, alcangou a sociedade paulista, dis-seminando-se no ambito extra-escolar (MARINHO, s.d.-b, p. 41).

EM NOME DA SAUDE DO CORPO SOCIAL... 61

As ideias pedagogicas de Rousseau, assim como as de Condor-cet e Leppelletier, conferem um espago consideravel as questoes docorpo.

Na Franga, a ginastica Integra a ideia de uma educagao volta-da para o desenvolvimento social, para o qual sao necessaries ho-mens completes: todo cidadao tern "direito a educagao".

E nesta perspectiva que a ginastica sera organizada nao somen-te para militares, mas tambem para toda a populagao, colocando-se como uma pratica capaz de contribuir para a formagao do ho-mem "complete e universal".

A ginastica na Franga desenvolveu-se na primeira metade doseculo XIX, baseada nas ideias dos alemaes Jahn e Guts Muths,contendo, desse modo, alem das preocupagoes basicas com o cor-po anatomofisiologico, um forte trago moral e patriotico.

Para seu fundador, D. Francisco de Amoros y Ondeano (1770-1848), a ginastica na Franga deveria abranger

a pratica de todos os exercicios que tornam o homem mais corajo-so, mais intrepido, mais inteligente, mais sensivel, mais forte, maishabilidoso, mais adestrado, mais veloz, mais flexivel e mais agil,predispondo-o a resistir a todas as intemperies das estagoes, a to-das as variacoes dos climas, a suportar todas as privacoes e con-trariedades da vida, a veneer todas as dificuldades, a triunfar detodos os perigos e de todos os obstaculos que encontre, a prestar,enfim, services assinalados ao Estado e a humanidade [apud MARI-NHO, s.d.-a, p. 102]10.

Toda essa gama de qualidades fisicas, psicologicas e moraisseriam desenvolvidas e aprimoradas por este magico conteiido - a"ginastica" - que, alem de desenvolver essas qualidades, teria ain-da por finalidade o alcance da "saude", o prolongamento da vida e,consequentemente, o melhoramento da especie humana. Tudo istoseria conseguido sem alterar a ordem politica, economica e social.Atraves da ginastica, que por si so promoveria a saude, criaria ho-

ld. Alnda sobre a Ginastica Francesa ver Silvana V. Goellner, 1992.

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62 EDUCACAO FJSICA

mens fortes, seria possivel aumentar a riqueza e a forga, tanto doindividuo quanto do Estado.

Da flexao muscular ao sucesso nas lutas industrials e nas guer-ras, este era o slogan da ginastica na Europa do seculo XIX. De fato,as preocupagoes com a debilidade fisica das populagoes era proce-dente. No que tange ao alistamento militar, por exemplo, a Frangateve, na primeira metade do seculo XIX, serias dificuldades emarregimentar soldados para a sua infantaria. Marx observa que, de1818 a 1832, as leis que regulamentavam a altura minima exigidapara o alistamento na tropa sofreu grandes alteragoes. Foi neces-sario diminuir a altura exigida para ter soldados na tropa (MARX,1985, p. 270).

Para alem dos exercitos, o problema da produgao tambem secolocava. Os corpos saudaveis eram tambem uma exigencia do ca-pital. E a ginastica, "receitada" para todos, era como um remedioque teria a capacidade de extirpar a fraqueza e devolver a virilida-de ao povo.

Amoros, imbuido dos ideais patrioticos e morais, criou ummetodo de ginastica bastante semelhante ao de Ling na Suecia. Suaginastica, de acordo com a finalidade, poderia ser: civil e industrial,militar, medica e cenica ou funambulesca.

A ginastica civil foi a que mais despertou interesse entre os bra-sileiros e, por isso foi a mais disseminada. Vejamos como e desen-volvlda uma ligao de ginastica, conforme preconiza o metodo fran-ces de Amoros:

1° - Exerciclos elementares ritmados e sustentados por cantos,com o objetivo de desenvolver a voz e ativar os movlmentos respi-ratorlos.

2° - Exercicios de marchar e correr em terrenos os mais variados,escorregar e patinar, habituar-se as corridas de fundo e velocidade.

3° - Exercicios de saltar em profundidade, altura e largura, emtodas as direcoes, para a frente, para os lados, e para tras, com ousem armas, com o auxilio de uma vara ou de um bastao, ou de umfuzil ou langa.

4° - Exercicios de equilibrlo ou de passagem sobre pinguelas,barra fixa ou oscilante, horizontal ou inclinada, a cavalo ou de pe,

"EM NOME DA SAUDE DO CORK) SOCIAL..." 63

progredindo para frente ou para tras, a fim de habituar-se a pas-sagem de ribeiros ou precipicios, utilizando-se de ramos de arvo-res ou de uma vara.

5° - Exercicios de transposicao de obstaculos naturais, comobarreiras, muros, fossos, etc. conduzindo ou nao uma carga.

6° - Exercicios das mais diversas lutas para desenvolver a forgamuscular, a destreza, a resistencia a fadiga e subjugar o adversario.

7° - Exercicios de trepar em escada vertical ou progredir em es-cada horizontal, fixa ou oscilante, com o auxilio dos pes e das maos,ou entao ao longo de uma corda chela de nos, ou descer escorre-gando ou de qualquer outra maneira.

8° - Exercicios de nadar, nu ou vestido, com ou sem carga, so-bretudo armado, de mergulhar e manter-se longo tempo em equili-brio sobre a superflcie limitada, de aprender a salvar uma pessoa,sem, entretanto, se deixar agarrar por ela.

9° - Exercicios para transpor um espago determinado com sus-pensao variavel de bracos, maos e pes, ou somente com o auxiliodas maos ou ainda com o auxilio de uma vara ou corda esticada.

10° - Exercicios, parado ou em movimento, com habilidade, se-guranga, de suspender corpos de conformagoes varias, incomodos epesados, algumas vezes homens ou criangas: salva-los em perigo;arrastar ou empurrar pesos ou massas consideraveis para poderaplica-los aos casos de utilidade militar ou de Interesse publico.

11° - Exercicios de pratica da esferistica antiga e moderna, atle-tica e militar em todas as suas modalidades de langar bolas, baloes,e pela de diferentes pesos e tamanhos e arremessar toda especie deprojeteis sobre pontos determinados.

12° - Exercicios de tiro ao alvo, fixo ou movel.13° - Exercicios de esgrlma, a pe ou a cavalo, exercicios para

manejo de toda especie de arma branca.14° - Exercicios de equitagao; fazer o treinamento no cavalo de

pau e repeti-lo depols, com o animal.15° - Exercicio para a pratica das dangas pirricas ou militares e

das dangas de sociedade, dando a estas o mais amplo desenvolvi-mento. Existe aqui esta observagao: "...La danse scenique outheatrale appartient au funambulisme et ne peut entre dans notreplan [sic]" [MARINHO, s.d.-a, pp. 102-104].

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64 EDUCACAO FISICA

Podemos apreender o carater utilitario dessas quinze series deexercicios propostos por Amoros, absolutamente conforme a ideo-logia da epoca. Assim tambem e possivel apreender a sua preocu-pagao com o desenvolvimento da forga fisica, da destreza, da agili-dade e da resistencia, qualidades fisicas essenciais, tanto para otrabalho fabril quanto para as lutas pela defesa da patria, na oticade uma burguesia ascendente.

A partir de 1850, a ginastica amorosiana integrara os curriculosde todas as escolas primarias e sera obrigatoria para as escolasnormals, mesmo sem contar com pessoal capacitado para minis-trar as aulas, que eram dadas por suboficiais do exercito, absolu-tamente despreparados do ponto de vista pedagogico e cientifico(LANGLADE & LANGLADE, 1970, p. 278).

A obrigatoriedade da ginastica nas escolas, de um lado, e a au-sencia de profissionais capacitados para ministra-las, de outro, cri-aram uma reacao nos meios cientificos, reagao essa que se acen-tua na segunda metade do seculo XIX, periodo no qual a burguesiaeuropeia ja nao e a unica protagonista da historia moderna. Umanovissima forga politica surge: o moderno proletariado industrial,que, na Franca, instaura a primeira experiencia mundial de PoderOperario, em 1871, a Comuna de Paris11, e faz nascer concepcoesinovadoras na educagao.

O desenvolvimento da ginastica na Franga, na segunda meta-de do seculo XIX, sera pontuado por questoes militares, certamen-te, mas estara mais proximo de cientistas, medicos higienistas elaboratories, do que de generals e batalhas.

A partir dos trabalhos de Amoros, ocorre um crescente envol-vimento de estudiosos da biologia, da fisiologia, assim como de me-dicos em torno da problematica do exercicio fisico. Foram os estu-dos e as pesquisas oriundos da biologia, da fisiologia e da medicinaque contribuiram para "elevar" o nivel dos exercicios fisicos na Fran-ga. Em todos os debates sobre a questao, ressaltava-se o valor hi-gienico e o conteiido anatomico do metodo sueco de Ling, unico quepartia de um estudo "racional e cientifico".

11. Sobre esse assunto consultar Karl Marx, 1983.

"EM NOME DA SAUDE DO CORPO SOCIAL..." 65

Estes estudos e pesquisas deram origem a um movimento desistematizagao dos exercicios fisicos, na Franga, que se pautou peloconteiido medico-higienico, e cujos representantes sao GeorgeDemeny (1850-1917), Philipe Tissie (1852-1935), Fernand Lagrange(1845-1909) e Esteban Marey (1830-1904).

Particularmente os trabalhos de G. Demeny e P. Tissie seraobastante citados no Brasil por Rui Barbosa e Fernando de Azevedoao defenderem as "bases cientificas" da Educagao Fisica e a suainclusao na escola.

George Demeny, biologo, fisiologista e pedagogo, acreditava quea Educagao Fisica deveria abandonar procedimentos empiricos einspirar-se em leis fisicas e biologicas para construir uma doutri-na a partir de resultados de experiencias feitas com o auxilio do"metodo cientifico".

Para Demeny, o problema da Educagao Fisica deve ser tratadopor todos os meios de que a ciencia dispoe, uma vez que e susceti-vel de precisao. Cada vez que um problema e tornado e tratado deforma experimental, a partir de medidas, as nogoes em relagao aele tornam-se mais claras.

Portanto, aproximar novos instrumentos de medida significa,para Demeny, contribuir de modo muito mais significativo para acausa da Educagao Fisica do que simplesmente formular criticas eopinioes preconcebidas (apud LANGLADE & LANGLADE, 1970, p. 259).

Medir, comparar, experimentar. Demeny era um seguidor dopositivismo e buscava naquela abordagem de ciencia e no "meto-do cientifico" as respostas para a Educagao Fisica, a qual definiacomo "o conjunto de meios destinados a ensinar ao homem exe-cutar um trabalho mecanico qualquer, com a maior economia pos-sivel no gasto de forga muscular" (idem, pp. 261-262). Em Demenypodemos encontrar, a partir dessa definigao de Educagao Fisica,os elementos que mais tarde serao desenvolvidos sobre o gesto dotrabalhador, do qual a ciencia se ocupara a partir da crescente com-plexificagao do maquinario moderno e da necessidade de uma pro-dugao maior e mais rapida.

Demeny apresenta em seus trabalhos sobre a ginastica algu-mas preocupagoes que nao estavam presentes de modo tao marcan-te em seus precursores. Para ele, o movimento a ser executado de-

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66 EDUCAQAO FlSICA

via ser complete, continuo, ondulado e basear-se na independenciadas contragoes musculares. Essa conclusao foi obtida a partir de pro-fundos estudos de fisiologia, que Ihe permitiram discordar do meto-do sueco de Ling, cuja caracteristica central sao os movimentos ana-liticos. Tambem afirmava que uma licao de ginastica deveria ser taointeressante a ponto de prender a atengao do aluno e, desse modo,faze-lo, voluntariamente, desejar um esforgo mais acentuado.

Demeny teve uma notavel preocupagao com os exercicios fisi-cos destinados a mulher. Seus estudos sobre o movimento arredon-dado, continuo e tambem com ritmo, influenciados pela danga, le-varam-no a trabalhar com a ginastica feminina.

Com relacao a saude fisica da mulher, alem de preconizar exer-cicios fisicos proprios, procurou combater os ditos "habitos elegan-tes", por julga-los absolutamente nocivos a saude da mulher. Con-denava o uso de saltos altos, de porta-seios, cintas, enfim, todosos meios de sustentagao que fossem artificials, porque eles apenasacentuavam "a flacidez das paredes naturals, facilitando hernias,a prisao de ventre, a ma circulagao e contribuindo para partos di-ficeis (MARINHO, s.d.-a, p. 108).

Essas preocupagoes com a "saude" da mulher, particularmentecom sua fungao de reprodutora, estarao marcadamente presentesnos discursos e nas propostas de intelectuais brasileiros. Tanto RuiBarbosa quanto Fernando de Azevedo, em momentos distintos, ar-ticulados, porem, no piano ideologico, nao pouparao paginas emseus trabalhos12, para enaltecer os efeitos higienicos dos exerciciosfisicos sobre as "formas feminis".

Se Demeny pode ser considerado "inovador", devido as suaspreocupagoes mais totalizantes em relagao ao exercicio fisico, elecontinua, entretanto, sendo conservador, uma vez que, com o seumetodo,

Propoe-se [a] aumentar a energia fisica do individuo e acrescen-tar-lhe rendibilidade [...] Tal metodo diz respeito ao homem universal

12. Refiro-me especialmente ao parecer de n. 224, relative a "Reforma do EnsinoPrimario e varias Instituigoes Complementares da Instrugao Piiblica", proferi-do por Rui Barbosa em 12 de setembro de 1882, e ao livro de Fernando de Aze-vedo intitulado DaEciucacdo Fisica, 1960.

EM NOME DA SAUDE DO CORPO SOCIAL..." 67

Isolado da pratica real e de todas as relacoes socials, tendo comoobjetivo entidades abstratas, a motricidade, o movimento, a ativi-dade humana [ROUYER, s.d., p. 184].

Desse ponto de vista, os "metodos de ginastica" ate agora pornos discutidos assemelham-se. Diferenciam-se apenas na forma,umas mais analiticas, outras mais sinteticas. Todavia, o conteudoanatomofisiologico ditado pela "ciencia", constitui o nucleo centraldas distintas propostas, alem do que, e claro, a moral de classe, oculto ao esforgo (individual), a disciplina, obediencia... ordem, adap-tagao, formagao de habitos...

Orientados para o desenvolvimento fisico e para a saude, o quese evidencia e que esses metodos ginasticos convem a burguesia,porque trazem, marcadamente, a possibilidade de enaltecer o indi-viduo abstrato, descolado das relagoes socials, e sao porta-vozes deuma pratica neutra, cultuando ainda o "mito do homem natural ebiologico".

No Brasil, a ginastica francesa foi oficialmente implantada em12 de abril de 1921, atraves do decreto n. 14.784. Sua chegada, po-rem, deu-se no ano de 1907, atraves da Missao Militar Francesa queveio ao pais corn a finalidade de ministrar instrugao militar a For-ga Publica do Estado de Sao Paulo, onde fundou uma "Sala de Ar-mas" que deu origem, mais tarde, a Escola de Educagao Fisica doEstado de Sao Paulo13.

Anos mais tarde, em 1929, o Ministerio da Guerra, atraves deuma comissao formada por civis e militares, elabora um antepro-jeto de lei, cujo conteudo determinava que "Educagao Fisica fos-se praticada por todos os residentes no Brasil e com obrigatorie-dade em todos os estabelecimentos de ensino" (CANTARINO FILHO,1982, p. 95). Definia tambem, em seu artigo 41, o metodo a seradotado:

Enquanto nao for criado o "Metodo Nacional de Educagao Fisi-ca", fica adotado em todo o territorio brasileiro o denominado Me-

13. Consultar a esse respeito: Inezil Penna Marinho, s.d.-b, Mario Ribeiro CantarinoFilho, 1982; Lino Castellan! Filho, 1988, entre outros.

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68 EDUCACAO FISICA

todo Frances, sob o titulo de "Regulamento Geral de Educagao Fi-

sica" [apud MARINHO, s.d.-b, p. 57).

O anteprojeto em questao recebeu severas criticas da Associa-gao Brasileira de Educagao (ABE), que desde a sua fundagao, em1924, dedicava especial atengao a Educagao Fisica, possuindo emsua estrutura organizacional um Departamento de Educagao Fisi-

ca e Higiene (CANTARINO FILHO, 1982, p. 92).As criticas da ABE foram dirigidas tanto ao orgao burocratico

do governo, considerado incapaz de "resolver um problema educa-tive nacional", quanto as finalidades e inconvenientes de transplan-tar para o Brasil um sistema estrangeiro de ginastica, tornando-o

obrigatorio.

C A P I T U L O ' T R E S

A EDUCACAO FISICA NO BRASIL

SAUDE, HIGIENE, RACA E MORAL

1. CONSTRUINDO UM BRASIL NOVO: A EDUCAgAOFISICA COMO INSTRUMENTO DA ORDEM

A Educagao Fisica no Brasil se confunde em muitos mementosde sua historia com as instituigoes medicas e militares.

Em diferentes mementos, estas instituigoes definem o caminhoda Educagao Fisica, delineiam o seu espago e delimitam o seu cam-po de conhecimento, tornando-a um valioso instrumento de agao ede intervengao na realidade educacional e social, ao longo do pe-riodo de que aqui tratamos: 1850-1930.

Neste trabalho, as instituigoes medicas foram privilegiadas e odiscurso medico higienista, ouvido, pois acreditamos poder encon-trar, nessas instituigoes e no seu discurso1, elementos que nos au-xiliem na compreensao de uma Educagao Fisica como sinonimo de

Segundo Nicolau Sevcenko (1989, pp. 19-20), "[as] potencialidades do homemso fluem sobre a realidade atraves das fissuras abertas pelas palavras. Falar,nomear, conhecer, transmitir, esse conjunto de atos se formaliza e se reproduzincessantemente por meio da fixacao de uma regularidade subjacente a todaordem social: o discurso. A palavra organizada em discurso incorpora em si,desse modo, toda a sorte de hierarquias e enquadramentos de valor intrinse-cos as estruturas socials de que emanam. Dai porque o discurso se articula emfungao de regras e formas convencionais, cuja contravengao esbarra em resis-tencias firmes e imediatas".

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70 EDUCACAO FISICA

saude fisica e mental, como promotora de saude, como regenera-dora da raga, das virtudes e da moral.

A partir de conhecimentos e de teorias gestadas no mundo eu-ropeu, os medicos desenharam um outro modelo para a sociedadebrasileira e contribuiram para a construgao de uma nova ordemeconomica, politica e social. Nesta nova ordem, na qual os medicoshigienistas irao ocupar lugar destacado, tambem colocava-se a ne-cessidade de construir, para o Brasil, um novo homem, sem o quala nova sociedade idealizada nao se tornaria realidade.

O pensamento medico higienista, como pudemos observar aolongo deste trabalho, construiu um discurso normative, disciplina-dor e moral. A abordagem positivista de ciencia2 e a moral burgue-sa estiveram na base de suas propostas de disciplinamento dos cor-pos, dos habitos e da vida dos individuos. Tudo em nome da saude,da paz e da harmonia social... em nome da civilizagao!

E evidente que nao compartilhamos da concepgao maniqueistaque supoe estarem os medicos higienistas pensando, a todo mo-mento, uma nova tatica de intervengao na realidade social a ser-vigo do Estado, no sentido de auxilia-lo a exercer de modo maispleno e eficaz o seu poder e/ou chegar ao consenso. Sao inegaveisos avangos que as descobertas cientificas, particularmente o pro-gresso cientifico da higiene, ocorridos ao longo do periodo anali-sado, tiveram na contengao das doengas, das epidemias e do grandeindice de mortalidade. Conforme assinala Jurandir Freire Costa(1983, p. 32),

[nao] se trata de negar ou desvalorizar a importancia destes fatos. Oque importa e notar que a proprla eficiencia cientifica da higienefuncionou como auxiliar na politica de transformagao dos Individuosem funcao das razoes de Estado. Foi porque a medicina era, de fato,empirica e conceitualmente cientifica que sua acao politica foi maisoperante. Diante de um saber colonial, estribado em nocoes medi-

2. Sobre o processo de hegemonizagao do positivismo na formagao dos medicos bra-sileiros, ver M.T. Luz, Medicina e ordem politica brasileira, 1982, especialmen-te a segunda parte, intitulada "Instituigoes medicas do seculo XIX aos anos 20:os projetos de medicina social e saiide publica".

A EDUCACAO FISICA NO BRASIL 71

cas dos seculos XVI, XVII e XVIII, pre-experimentais e em sua quasetotalidade filosoficas e especulativas, a higiene surgiu arrasadora-mente convincente. No entanto, e precise sublinhar que sua forgafoi impulsionada pelo interesse politico do Estado na saude da po-pulacao. No caso brasileiro esta evidencia e incontestavel. O Estadobrasileiro que nasce com a abdicate e o moto-propulsor do subitoprestigio da higiene. A atividade medica coincidia e reforgava a soli-dez de seu poder, por isso recebeu seu apoio.

Apoiada pelo poder do Estado que "medicaliza suas agoes poli-ticas, reconhecendo o valor politico das agoes medicas" (idem, p. 29),a medicina social, em sua vertente higienista, vai influenciar e con-dicionar de modo decisive a Educagao Fisica, a educagao escolarem geral e toda a sociedade brasileira.

Expressao dessa influencia pode ser apreendida atraves dopensamento pedagogico brasileiro, veiculado por autores represen-tatives deste pensamento, tais como Rui Barbosa e Fernando Aze-vedo, por meio de publicagoes, discursos e conferencias. Estesautores revelam estreita e organica vinculagao de seus discursospedagogicos aos discursos medico-higienistas. Quanto a EducagaoFisica, particularmente a escolar, privilegiam em suas propostaspedagogicas aquela de base anatomofisiologica retirada do interiordo pensamento medico higienista. Consideram-na um valioso com-ponente curricular com acentuado carater higienico, eugenico emoral, carater este desenvolvido segundo os pressupostos da mo-ralidade sanitaria, que se instaura no Brasil a partir da segundametade do seculo XIX.

Essa moralidade sanitaria, em cujo interior esta presente umaEducagao Fisica higienica, eugenica e moral, teve um longo processode desenvolvimento no Brasil ate, de fato, instaurar-se com o ad-vento da Republica, significando o "novo", o "cientifico" e expres-sando, desse modo, tragos da modernidade que por ela sao trazi-dos; suas origens, porem, sao colonials.

E no Brasil colonial que as questoes relativas a saude, a higie-ne, ao corpo dos individuos, comegam a fazer parte das preocupa-goes das elites dirigentes. E o local de atuagao definido pela higie-ne, naquele momento, foi a familia de elite.

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72 EDUCACAO FtSICA A EDUCAQAO FJSICA NO BRASIL 73

Nao interessava ao Estado modlficar o padrao familiar dos escra-vos que deveriam continuar obedecendo ao codigo punitivo de sem-pre. Os escravos, juntamente com os desclassificados de todo tipo,serao trazidos a cena como aliados na luta contra a rebeldia fami-liar. Escravos, mendigos, loucos, vagabundos, ciganos, capoeirasetc, servirao de anti-norma, de casos-limite de infragao higienica.A eles vao ser dedicadas outras politicas medicas. Foi sobre as eli-tes que a medicina fez incidir sua Politica familiar, criticando a fa-milia colonial nos seus crimes contra a saiide [idem, p. 33].

Uma "politica familiar", entabulada pelos medicos higienistas,poderia ser justificada. As precarias condicoes de saiide dos adul-tos e os altos indices de mortalidade infantil eram indicadores su-

ficientes.Foi, portanto, para viabilizar de modo mais eficaz sua "politica

familiar" e, atraves dela, desenvolver "agoes pedagogicas" na socie-dade que os higienistas se valeram tambem da chamada ginastica.Com ela julgavam poder responder a necessidade de uma constru-gao anatomica que pudesse representar a classe dominante e a ragabranca, atribuindo-lhe superioridade.

Esta opgao reforgou e incentivou o racismo e os preconceitos aele ligados, contribuindo para a manutengao dos polos de explora-gao de uma formagao social escravista, que, conforme assinalaOctavio lanni (1988, pp. 27-28), estao, organizados

de maneira a produzir e reproduzir ou criar e recriar, o escravo e osenhor, a mais-valia-absoluta, a cultura do senhor (da casa gran-de), a cultura do escravo (da senzala), as tecnicas de controle, re-pressao e tortura, as doutrinas juridicas, religiosas ou de cunhodarwinista sobre as desigualdades raciais e outros elementos [...].

No que se refere as desigualdades raciais, devemos acentuar opapel desempenhado pela ciencia, que, por meio de comparagoes egeneralizagoes absolutamente descontextualizadas, "comprovava"a superioridade da raga branca em relagao a raga negra, assim comodo homem em relagao a mulher.

As pesquisas que foram desenvolvidas no continente europeu,e por nos ja tratadas no capitulo I deste trabalho, contribuiram demodo significative para cristalizar esta visao na sociedade, refor-gando, desse modo, a hegemonia burguesa.

No Brasil, por volta da segunda decada do seculo XIX, ja emmomento posterior a conquista da independencia, e desencadea-do um vigoroso projeto de eugenizagao da populagao brasileira. Esteprojeto se coloca como possibilidade de alteragao de um quadrono qual a metade da populagao do Brasil era constituida de escra-vos negros, indice que permanece ate por volta de 1850, quando,para uma populagao de 5.520.000 pessoas livres, encontram-se2.500.000 negros3.

Tornava-se necessario, para as elites das colonias, neste qua-dro populacional, acentuar o carater "irracional", "barbaro" e "pri-mitivo" dos negros, reforgar a ideia de sua inferioridade, configura-los como ameaga.

Geradas no panorama do mercantilismo europeu, as coloniasdo Novo Mundo, baseadas no trabalho escravo, foram, segundoOctavio lanni "influenciadas e mesmo determinadas (em graus evariaveis, e certo) pelas exigencias da reprodugao do capital euro-peu, primeiramente o mercantil e em seguida o industrial" (1988,p. 32).

A independencia de muitas colonias (como e o caso do Brasil)e a posterior emancipagao dos escravos sao processos que respon-dem, por um lado, as determinagoes expansionistas do capitalis-mo europeu, particularmente o ingles, e, por outro, ao aumento dascontradigoes internas entre uma formagao social escravista emdecadencia e uma formagao social capitalista em ascensao, que, nocaso do Brasil "foi se constituindo [...] por dentro e por sobre a for-magao social escravista" (idem, p. 41).

3. "Em 1872 os escravos eram 1.510.000, ao passo que os livres totalizavam8.601.255. No ano da aboligao, em 1888, a populagao escrava estava em cercade 500.000, mas a populagao livre continua a crescer de forma acelerada devi-do a intensificagao da imigragao europeia nas ultimas decadas do seculo XIX.Em 1890, a populagao total do Brasil alcangava um pouco mais de 14 milhoesde pessoas." (IANNI, 1988, p. 44.) Ver tambem Caio Prado Jr., Historia Economi-ca do Brasil, 1987.

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74 EDUCACAOFiSICAT

A EDUCACAO FJSICA NO BRASIL 75

E e dentro do quadro das contradigoes internas destas duasformagoes socials que podemos situar a politica populacionista doEstado Nacional, na qual se insere o controle familiar postuladopelos higienistas. Tal politica tinha por meta estabelecer um equi-librio de forgas entre a populagao branca e a populagao negra, de-senvolvendo, na primeira, atraves de uma apurada "educagao", ele-mentos de identificagao racial e social com a elite dirigente branca.

Havia de um lado a necessidade de garantia da procriagao e,de outro, como conseqtiencia, o melhoramento da geragao atual.

Para tal, a "apurada educagao das elites" pensada pelos higie-nistas deveria associar a educagao fisica a educagao sexual, trans-formando homens e mulheres em reprodutores potenciais e, aomesmo tempo, vigilantes da pureza de sua propria raga.

A educagao fisica e entao valorizada pelas elites dirigentes efigura em publicagoes que tratam de questoes de saude em geral,de moral ou de educagao4.

Escritas em sua grande maioria por medicos, estas obras bus-cavam conferir "cientificidade" a Educagao Fisica, reforgando a suaimportancia na obtengao de uma vida mais longa e mais "feliz".

E possivel afirmar que os trabalhos escritos por medicos so-bre o tema Educagao Fisica foram importantes canals de veicula-gao de algo bem mais amplo, foram, por assim dizer, veiculos dedivulgagao daquilo que poderiamos chamar de "pedagogia da boahigiene". Essas obras imiscuiram-se na intimidade das familias, e,em nome de uma educagao fisica, moral, sexual, intelectual e so-cial, ditaram normas de vida, referindo-se a conduta de mulherese homens, aos cuidados com os recem-nascidos, ao asseio, aos ba-nhos, aos exercicios fisicos, chegando ate a vestimenta e aos habi-tos alimentares.

Que alvo tinha em mira esta "pedagogia higienica" no Brasil?Este alvo foi a familia de elite agraria, num primeiro momento, e afamilia burguesa citadina, num segundo momento. Com a popula-gao em geral, a higiene so ira comegar a preocupar-se no ocaso doImperio. Desse momento em diante, o discurso normativo e disci-

4. Sobre as publicagoes acerca desta tematica, ver Marinho, s.d.-b.

plinador da higiene se estendera a toda a populagao, ou seja, quan-do o trabalho assalariado se torna predominante.

As razoes de escolha deste alvo eram obvias, ja que eram asfamilias de elite que geravam os "filhos da patria", ou seja, os qua-dros do governo. Alem do que, assimilando a educagao higienica, apropria elite se encarregaria de veicula-la ao conjunto da populagao.

Segundo Jurandir Freire Costa, os higienistas passaram a con-siderar que a familia de elite era incapaz de criar os seus filhos ede cuidar dos adultos. Mais especificamente, a partir da terceiradecada do seculo passado, comegaram a ser mais incisivos nestasafirmagoes, propondo ate que as criangas fossem retiradas o maiscedo possivel do ambiente familiar, tao nocivo para os "beneficosesforgos da higiene" (1983, p. 2).

Assim, entre a familia e a crianga sao colocados os interessesveiculados pelos medicos e os interesses medicos qUe sao assumi-dos pelo Estado. A natureza da crianga e a representagao das suascaracteristicas fisicas, morals e socials, sao transformadas.

Qual o produto dessa pedagogia higienizada, aplicada por su-cessivas geragoes? Segundo Jurandir Freire Costa, esse produto eo tipico individuo urbano de nosso tempo.

individuo ffsica e sexualmente obcecado pelo seu corpo; moral esentimentalmente centrado em sua dor e seu prazer; socialmenteracista e burgues em suas crengas e condutas; finalmente, politi-camente convicto de que da disciplina repressiva de sua vida de-pende a grandeza e o progresso do Estado brasileiro [idem, p. 214).

Mas quern formaria este tipico individuo urbano? Que institui-gao poderia contribuir para acentuar seus tragos caracteristicosabsolutamente necessaries a construgao da ordem? Qual conteu-do deveria ser ensinado?

Para responder a estas questoes, torna-se necessario fazer re-ferenda a estrutura educacional no Brasil, particularmente aosColegios, locals onde eram educadas as elites.

La e possivel perceber o enquadramento do corpo dos indivi-duos de elite num espago disciplinar determinado pela educagaofisica, a qual incluia, entre os cuidados higienicos, o exercicio fisi-

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76 EDUCACAO FISICA

co. O enquadramento disciplinar do corpo dos individuos passavaa ser visto pelos medicos higienistas como um fator capital na trans-

formagao social.F. F. Padilha, em 1853, traduz com muita propriedade o pen-

samento medico higienista sobre a importancia da ginastica naeducagao fisica dos individuos:

O beneficio e a utilidade comuns sao o objetivo principal da gi-nastica; a pratica de todas as virtudes socials, de todos os sacrifi-cios mais dificeis e generosos sao os seus meios; e a saiide, o pro-longamento da especie humana; o aumento da forga e a riquezaindividual e piiblica sao seus resultados positives [apud COSTA, 1983,p. 179].

Essa educagao fisica, que incluia os exercicios fisicos sob aforma de ginastica, pensada pelos medicos, so poderia ser desen-volvida a contento, se os Colegios que Ihe reservavam espago con-sideravel fossem reorganizados. Eles nao poderiam ser um prolon-gamento da desordem familiar e, muito menos ainda, o espago dereprodugao das ideias dos pais sobre a educagao de seus filhos.Aquelas ideias eram absolutamente nocivas, conforme observa omedico Joaquim Jose de Oliveira Mafra, em tese apresentada aFaculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no ano de 1855. Para ele,os Colegios deveriam ser contraries as ideias educacionais dos pais,porque estes desejam que seus filhos sejam superalimentados, sen-do o paladar o mais importante; exigem leitos confortaveis, maciose o excesso de agasalhos; temem pela fadiga dos filhos, se subme-tidos a passeios longos nos quais a exposigao ao sol e/ou a chuvaseria inevitavel; por fim, negam a exercitagao ginastica, temendopossiveis acidentes (J.J. de Oliveira Mafra apud COSTA, 1983, p. 172).

Ora, era exatamente o contrario o que pensavam os medicos.A higiene protegia os Colegios da influencia nefasta familiar paraconstruir o individuo rijo e saudavel.

Embora os Colegios fossem pensados como o espago ideal paraa construgao do novo homem e da nova sociedade, ainda nao o eramconcretamente, pois faltava-lhes, sobretudo, um compromisso comos problemas relatives a unidade nacional, uma vez que foram cria-

A EDUCACAO FJSICA NO BRASIL 77

dos com o espirito regionalista, que, na abdicagao, foi a tendenciamajor! taria.

A tendencia regionalista consegue expressiva vitoria atraves doAto Adicional de 1834, que deixava ao encargo das AssembleiasProvincials a responsabilidade de regular a instrugao primaria e asecundaria, cabendo a administragao nacional somente o ensinosuperior (COSTA, 1983, p. 180).

Com essa estrutura voltada, entao, exclusivamente aos interessesprovinciais e locals, os Colegios (que nao eram mantidos pelo poderpublico) nao ofereciam condigoes adequadas para educar as elites.

Some-se ainda o fato de que seus diretores, representantes dascorrentes politicas regionalistas que criaram os Colegios, nao se sen-tiam comprometidos com a formagao da consciencia pela unidadenacional. Estavam atentos somente aos seus proprios interesses,ou, quando muito, aqueles das familias de seus alunos. Havia umaespecie de "lacuna civica" que

permitiu e apoiou a invasao higienica na educagao [...] [e a] higie-ne [entao] propos-se a suprir as deficiencias politicas dos diretores,ditando as regras de formagao do corpo sadio do adulto e da cons-ciencia nacionalista [idem, p. 181].

Desse modo, gradativamente, os Colegios foram deixando deser o espago dos interesses locals e provinciais, que reproduzia adesordem familiar, para se tornarem o "espago da ordem", confor-me expressao de J. F. Costa. Neste sentido, o pensamento medicopassou a ditar, meticulosamente, os procedimentos dos Colegiosdesde o desenho de sua arquitetura ate o conteudo curricular.

Tempo e espago, conteudo e forma foram pensados. O estudo,o descanso, o exercicio fisico, a alimentagao... tudo passou a serregulado, controlado e vigiado, e a utilizagao "otima" do tempopassou a ser determinante na metodologia utilizada. Tornava-se im-perioso nao deixar margem a ociosidade pois o "ocio [induz] a va-gabundagem, a capoeiragem e aos vicios prejudiciais ao desenvol-vimento fisico e moral" (idem, ibidem).

Quanto ao lazer, este so passou a existir nos Colegios comorecompensa do trabalho, sendo que a higiene procurou dar-lhe um

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78 EDUCACAO FISICA

novo conceito. Exigiu que a recreagao fosse tambem formativa; quefosse estimulo ao corpo e ao espirito; que influisse na escolha ade-quada e "correta" das brincadeiras, dos exercicios e do entreteni-mento (idem, p. 183). Vinculou o tempo de recreagao ao tempo detrabalho, fazendo deste o seu oponente necessario, ao mesmo tem-po em que disseminou a ideia da recreagao como capaz de recupe-

rar as forgas que o trabalho exigiu.Higlene fisica e mental, entao, passou a ser sinonimo de lazer,

e o ocio passou a ser obrigatorio, porem, e claro, devidamente dis-ciplinado, uma vez que so poderlam dele usufruir aqueles que, de

fato, trabalhassem {idem, p. 184).Segundo J. F. Costa, esta "moral do lazer" correspondia a uma

subita valorizagao do trabalho que comegava a despontar na socie-dade brasileira, valorizagao esta que procurava incutir nas crian-gas e jovens uma "dimensao utilitaria do tempo". Perder tempo era

o mesmo que perder forgas, energia.Encontramos aqui elementos bastante evidentes de inculcagao

de valores caracteristicos do universo urbano capitalista.E nesse ideario - que inclui uma subita valorizagao do traba-

lho e no qual esta contida uma enfase aos valores tipicamente ur-banos - que vamos encontrar indicios de uma renovagao cultural

da sociedade brasileira.

2. A EDUCACAO FISICA NA EDUCACAO DAS ELITES: UMDISTINTIVO DE CLASSE

A chegada da corte portuguesa da inicio a um processo de re-novagao cultural, colocando novas necessidades para a sociedadebrasileira como, por exemplo, a escola e a vida nas cidades. Ate achegada da corte, tanto a escola quanto as cidades nao desperta-vam interesse ou preocupagao por parte das familias da elite nati-va. Foi, portanto, a partir daquele momento que cidade e escolapassaram a pontuar o universo de preocupagoes das elites.

A cidade passa a constituir-se em espago de preocupagoes, poistransforma-se em local de grandes investimentos outrora aplicadosno trafico de escravos. A proibigao do trafico, em 1850, medida in-

A EDUCACAO FISICA NO BRASIL 79

ternacional que visa atender aos interesses do capital, desencadeiaum processo de substituigao do trabalho escravo pelo trabalho as-salariado. A modernizagao das lavouras de cafe pelo investimentode capitals outrora aplicados no trafico, bem como o aparecimentoe a instalagao das primeiras industrias no pais, sao algumas dasprofundas mudangas ocorridas na sociedade brasileira.

A aboligao do trafico de escravos africanos desencadeia umconjunto de processos renovadores, langando o pais num periodode prosperidade e de grande impulso de sua vida economica. Saofundadas inumeras empresas industriais, bancos, caixas economi-cas, caixas de seguros, de mineragao, de transporte urbano, de gas,bem como estradas de ferro. Este era um novo momento para oBrasil, um Brasil que nascia para as atividades financeiras e ondeum capitalismo incipiente dava seus primeiros e modestos passes5.

Sao essas mudangas estruturais da sociedade brasileira, acom-panhadas de uma renovagao cultural de influencia europeia trazidada corte, que tornavam a cidade o centro privilegiado dos aconteci-mentos. Era la que estavam os empreendimentos modernos, as fa-bricas, as industrias, as atividades financeiras.

Para entender este universo urbano, sempre mais complexoe mais valorizado, colocava-se a necessidade da escola. Impunha-se, assim, as elites um determinado tipo de educagao - uma edu-cagao em que disciplina, tempo e ordem eram elementos funda-mentals.

Neste conjunto - disciplina-tempo-ordem - em que se funda-menta a educagao das elites (educagao a ser ministrada pelos Co-legios), ganha espago a Educagao Fisica, uma vez que o fisico disci-plinado era uma exigencia da nova ordem em formagao. Disciplinaro fisico, portanto, era o mesmo que disciplinar o espirito, a moral e,assim, contribuir para a construgao daquela nova ordem.

Conforme afirmagoes dos medicos higienistas, a disciplina dofisico seria apenas um instrumento, e a Educagao Fisica passariaentao a constituir-se em elemento de extrema validade para colo-car em pratica o processo disciplinar dos corpos.

5. Sobre o assunto consultar, entre outros, Caio Prado Jr., 1987, pp. 192-193.

;A

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to FfSICA

Vejamos como isso e possivel a partir de um aspecto conside-rado pelos medicos como basico para o desenvolvimento dessa "Edu-cacao Fisica" das elites: a separagao por idade e por sexo6.

Segundo a argumentagao medica para o cumprimento destaregra considerada basica, toda e qualquer prescrigao de exerciciosfisicos dar-se-ia sempre em fungao das caracteristicas sexuais e dafaixa etaria das criangas. O unico modo comum a todas, de exerci-tar o corpo, seria a ginastica, observando-se apenas as variagoesde intensidade e complexidade em relagao as caracteristicas cita-das. E conveniente assinalar que a definigao de ginastica - "umaserie de movimentos simples e combinados, dispostos em uma certaordem, e proprios para fazerem desenvolver, gradualmente, as pe-gas de que se compoe o nosso organismo" (J. B. de Andrade Jr. apudCOSTA, 1983, p. 185) - era aquela formulada pelos franceses, parti-cularmente o trabalho desenvolvido por Amoros e por nos ja trata-do no capitulo II deste trabalho.

A ginastica podia ser comum a todos dada a sua definigao ge-nerica e utilitaria; ela era como que um trabalho de base. Entre-tanto, para o complete trabalho de educagao do corpo, eram neces-saries tambem exercicios especificos. Exercicios que pudessemdesenvolver os orgaos dos sentidos, que pudessem atender aos pre-ceitos da elegancia e, portanto, variar entre os sexos. Canto, decla-magao, piano eram indicados para as meninas; salto, carreira, na-tagao, equitagao e esgrima, para os meninos; e danga, para meninose meninas.

Das atitudes respeitosas que comunicavam para o corpo ao for-talecimento morfofuncional, passando pelos lisonjeios ao espirito, osexercicios fisicos eram aclamados em suas interminaveis vantagenspelos medicos, que faziam apelo aos mais variados argumentos parajustificar a necessidade e a importancia da educagao do corpo. As-sim, "gregos, romanos, celtas, gauleses, germanos e mil outros po-vos reputados cultos, heroicos e guerreiros eram chamados comotestemunhas do valor do cultivo do corpo (COSTA, 1983, p. 185).

6. A separacao por sexo para o desenvolvimento da Educacao Fisica na escola per-maneceu conforme atesta legislagao especifica, o decreto 69.450/71. Titulo II,Da caracterizacao dos objetivos, paragrafo 1° do art. 3°, ate a promulgagao danova LDB 9.394/96.

A EDUCACAO FISICA NO BRASIL 81

O excessive valor atribuido aos exercicios fisicos pelos medi-cos teve fungoes muito particulares e importantes no processo detransformagao da sociedade e de formagao das elites, num primei-ro momento, assim como para a "educagao" da populagao em ge-ral, num segundo momento. Atraves de conhecimentos especificos,oriundos da biologia, da anatomia e da fisiologia, os medicos higie-nistas conseguiram argumentos suficientes para creditar em suaspalavras e agoes a confianga necessaria das familias de elite, ouseja, do Estado. Cada medida tomada, cada proposta executada,tudo repercutia na estrutura daquela nova sociedade em desenvol-vimento.

O exercicio fisico era, objetivamente, mais um valioso canal paraa medicalizagao da sociedade. Era necessario adequa-lo, discrimina-lo por idade e por sexo, atendendo, assim, exclusivamente ao reco-nhecimento da existencia das diferengas biologicas das criangas.Quern detinha o conhecimento sobre estas diferentes capacidadesbiologicas das criangas, senao os medicos? Ora, se eram os medi-cos que detinham aquele saber, somente eles poderiam prescrevermais este remedio: o exercicio fisico, com todas as suas particula-ridades e para todos os corpos particulares.

A adequagao dos exercicios as particularidades dos corpos ser-

via de modelo a adequagao dos conhecimentos intelectuais e da

educagao moral respectivamente ao intelecto e ao espirito. Da mes-

ma forma que os exercicios violentos ou excessivos prejudicavam a

crianga, tambem os cheques morals ou o esforgo intelectual exor-

bitante sacrificavam sua boa evolugao.

Paralelamente, criava-se nela o habito de aprender a olhar, ad-

mirar e domesticar o corpo proprio desde cedo. O ginasta infantil

nao precisava de professor do corpo, quando adulto. Ele mesmo

cuidaria com desvelo de todas suas faltas e excesses, ele mesmo

saberia cultivar com carinho sua anatomia e reclamar do meio

ambiente quando as condigoes ideals para este cultivo viessem a

Ihe faltar [idem, p. 186].

Na verdade, o exercicio fisico, dimensionado devidamente, acen-tuava em certa medida posturas narcisistas e individualistas nas

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82 EDUCACAO FISICA

criangas e nos jovens de elite, exacerbando-lhes as preocupagoescom a saude fisica. Some-se ainda as finalidades pretendtdas comos exercicios fisicos de tipo especifico, os quais forneciam o distin-tivo de classe burgues tais como: a natacao, a esgrima, a equita-gao, o canto, a danga e o piano.

Conforme observa J. F. Costa, fazer crer que estes exercicios

eram beneficos ao desenvolvimento fisico, foi a maneira de tornarconformes a natureza os sinais de classe da burguesia. A educaijaohigienica, mediante essa manobra, procurava fazer com que ascriancas aprendessem a retirar do comportamento social burguesbeneficios fisicos.

O dispositivo normalizador da higiene oferece, neste oaso, umaamostra exemplar de seu funcionamento. Os individuos sao leva-dos a compactuar com a ordem dominante extraindo prazer da ser-vidao [idem, p. 37].

E a educagao, particularmente a escolar, constitui espago pri-vilegiado de veiculagao destes valores e normas de "bem viver". Ainfluencia exercida pelos medicos no pensamento e na pratica edu-cacional brasileira, de fato, foi marcante e acentuou-se ao longo detodo o seculo XIX, para tornar-se determinante nas primeiras de-cadas do seculo XX.

A educagao higienica das elites, valendo-se da Educagao Fisi-ca, pode ditar as normas do "comportamento saudavel" e, atravesdele, inculcar valores de urbanidade, racismo, superioridade mas-culina, entre outros. Pode, tambem, desenvolver nas elites o gostopelo trabalho fisico, diferenciado de trabalho fisico produtivo, acen-tuando a Educagao Fisica (e com ela a "recreagao formativa") comoo descanso merecido, como o contraponto necessario ao "estafantetrabalho intelectual", este sim considerado digno.

Quanto a educagao do povo, os elevados indices de analfabe-tismo constituem indicadores do descaso das elites para com aquelasignificativa parcela da populagao7.

7. Conforme registra Jose Murilo de Carvalho (1981, pp. 64-65), o indlce de anal-fabetismo da populagao escrava em 1872 atingia 99,9%, sendo o numero de

_A EDUCACAO FISICA NO BRASIL 83

3. A EDUCACAO DAS ELITES, A EDUCACAO DO POVO EO PAPEL DA EDUCACAO FISICA

Durante o Imperio, principalmente a partir da segunda meta-de do seculo XIX, a escola elementar ainda era restrita aos filhosdas elites. Ainda nao se haviam estabelecido as bases de organiza-gao e construgao de uma escola secundaria que buscasse objeti-vos nao exclusivamente direcionados para a preparagao ao ingres-so no ensino superior. Todavia, mesmo nestas condigoes, eclode umdebate em torno da orientagao curricular mais adequada, e as re-formas educacionais que se sucedem buscam expressar as duasorientagoes presentes naquele debate: a orientagao literaria e a cien-tifica8.

Cabe ressaltar que ambas as orientagoes eram sensiveis a ne-cessidade da Educagao Fisica, porem, a sua incorporagao no ensi-no regular nao ocorreu de forma tranquila. Nem sempre os argu-mentos medicos foram suficientes para romper com os preconceitosque ainda cercavam a Educagao Fisica, que era julgada imoral,especialmente no que diz respeito a sua aplicagao as mulheres.

Entretanto, se de um lado existiam aqueles que a consideravamimoral para as mulheres, de um outro, vamos encontrar aqueles quea defendiam por julga-la necessaria. Estes afirmavam que o corpofeminino devia ser fortalecido pela "ginastica" adequada ao seu sexoe as peculiaridades femininas, pois era a mulher que geraria os fi-lhos da patria, o bom soldado e o elegante e civilizado cidadao.

Em que pesem as vozes favoraveis e os argumentos "cientificos",muitos legisladores, temerosos das resistencias, ja antepunham emseus projetos educacionais e nas leis que os regulamentam as res-trigoes feitas as mulheres no que se refere a ginastica. Na provin-cia do Amazonas, por exemplo, no ano de 1852, seu presidente, Tou-reiro Aranha, expede um regulamento para a instrugao publica

alunos matriculados em escolas primarias e secundarias rauito baixo. "De acordocom o censo de 1872, somente 16,85% da populagao entre 6 e 15 anos frequen-tava a escola. E havia menos de 12.000 alunos matriculados nas escolas se-cundarias numa populagao livre de 8.490.910 habitantes."

8. Sobre o assunto consultar Machado, 1989; Ribeiro, 1981;Paiva, 1973- Almeida1989.

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84 EDUCACAO FJSICA

primaria no qual determina que, embora a educagao fisica e moralseja ministrada nas escolas, compondo os curriculos como mate-ria de ensino, "as meninas nao farao exercicios ginasticos" (Primi-tivo Moacyr apud MARINHO, s.d.-b, p. 24).

O Imperio e um periodo prodigo em formulagoes legais sobre aEducagao Fisica nas escolas9, abarcando proibigoes e liberagoesbastante distintas. Especialmente a partir de 1850, as preocupa-goes com a educagao das elites (no sentido utilizado por Locke) seacentuam, e proliferam propostas medicas que, inclusive, respal-dam as propostas legais sobre o detalhamento do espago escolar,incluindo-se ai os componentes curriculares. O final deste periodoe tambem marcado por uma certa preocupagao das elites em rela-gao a educagao da populagao em geral e, portanto, a educagaopublica.

Um adequado funcionamento da educagao publica, entretanto,apresentava serios problemas para ser viabilizado. Os problemas iamdo incipiente numero de escolas piiblicas existentes, passando pe-las precarias condigoes de seu funcionamento, ate a distribuigao doscargos de professor, o que, na maioria dos casos, resultava na indi-cagao de profissionais absolutamente despreparados para a fungao.

Este conjunto de problemas enfrentados na organizagao de umensino publico a ser destinado ao povo nao colocou em segundo pia-no a Educagao Fisica. Mesmo neste momento as preocupagoes emrelagao a ela se fizeram presentes.

Em 1881, Silva Pontes ja se referia em seu Compendia de Pe-dagogia para uso dos alunos da Escola Normal a necessidade daEducagao Fisica na escola para as criangas oriundas da classe tra-balhadora, afirmando que

O professor primario, posto que nao tenha os meninos sob suaguarda, senao durante uma parte do dia, deve todavia continuar otrabalho da educofao fisica, que nao pode ceder lugar absolutamentea educagao intelectual, e antes velar pela preservagao da saiide edesenvolvimento do corpo dos meninos, tendo em vista que dos

9. A esse respeito ver Marinho, s.d.-b, e Cantarino Filho, 1982.

A EDUCACAO FJS1CA NO BRASIL 85

muitos que concorrem a escola a maior parte e destinada a ganhara vida com o suor do seu rosto em trabalhos que exigem antes detudo saude e vigor [Antonio Marcelino Silva Pontes apud C. BRUZZO,1988, p. 19. Grifos nossos],

Nas afirmagoes de Silva Pontes sobre a educagao do povo, epossivel apreender o carater instrumental da Educagao Fisica, noqual o exercicio fisico aparece como o antidoto para todos os ma-les, alem de ser potencialmente capaz de prevenir e curar doengas...de construir um corpo robusto e saudavel, colocando, assim, a res-ponsabilidade da saude sobre o proprio individuo e adestrando-opara os trabalhos manuals (fisicos).

Sendo a cidade o lugar privilegiado dos acontecimentos poli-ticos, economicos e socials da nova sociedade brasileira, que ti-mida e tardiamente vai ingressando no modo capitalista de pro-dugao, a homogeneizagao das mentes e dos corpos, bem como asua adequagao a esta nova ordem que privilegia este novo espa-go, deviam ser promovidas. A educagao, neste sentido, era o meiomais eficaz de promover essa "adequagao" e essa homogeneizagaodas mentes e dos corpos. Atraves dela, particularmente da edu-cagao escolar, era possivel transmitir ao povo certos valores, como,por exemplo, o da urbanidade, fazendo-o prevalecer, uma vez queo modo urbano de ser e de viver passou a ser o dominante numpais quase que exclusivamente rural. No ano de 1872, por exem-plo, apenas 10% da populagao total vivia nas cidades. Mas a ci-dade e a vida urbana tornaram-se, de fato, o centro de preocupa-goes, de investimentos... o centro de poder. A constituigao dessavida urbana no Brasil vai se dando, num primeiro momento, con-forme observa lanni "no espirito e no interior da formagao socialescravista" (1988, p. 41).

Lenta e progressivamente, entretanto, vao surgindo nas cida-des como Rio de Janeiro, Sao Paulo, Porto Alegre, Salvador, Recifee outras, interesses distintos, autonomos e divergentes daqueleshegemonicos no escravismo, e uma classe dirigente mais moderna,mais "preparada" para viabilizar no Brasil uma nova ordem socialcapitalista, dando continuidade aos interesses externos e interna-cionais.

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86 EDUCACAO FISICA

Essa nova classe dirigente procurou atacar os problemas comos quais se defrontava a nova sociedade brasileira, entre eles a di-ficuldade da mao-de-obra, presente nao apenas na cidade, mastambem no campo. Para soluciona-lo, o Brasil precisava entrar naera do trabalho livre, pago, e quebrar, de uma vez por todas, asamarras do servilismo proprio das relacoes escravistas.

Mas como viabilizar o trabalho no campo com maquinas maismodernas, com tecnicas agricolas novas e mais producentes? Comotocar as pequenas fabricas nas cidades? Como, ingressar, efetiva-mente, nesta era do trabalho livre, numa sociedade constituida poruma populagao de maioria escrava ou saida do escravismo, umapopulagao desqualificada profissionalmente pelos seculos de expro-priagao do conhecimento a que foi sujeita, uma populagao analfa-beta e servil, em sua maioria?

A solugao buscada por esta nova classe dirigente situada geo-graficamente na Regiao Sul do Brasil foi, de um lado, a imigragaode europeus e, de outro, a educagao do povo.

A imigragao atendia a duas preocupagoes basicas desta novaclasse no poder: dava conta do trabalho propriamente dito de modomais "competente" e ate certo ponto criativo, e contribuia para au-mentar, no Brasil, a populagao branca, ainda pequena no final doImperio.

Povoar este imenso territorio com trabalhadores europeus al-fabetizados, tementes a Deus e, sobretudo, brancos, foi um dosgrandes empreendimentos desta nova classe dirigente, muito em-bora, decadas mais tarde, ela propria fosse perceber que esse imi-grante europeu branco, idealizado, nao trazia somente o que eladesejava. Trazia, tambem, e principalmente, ideias, ideias revolu-cionarias, ideias de liberdade e de luta contra a opressao.

Nao nos propomos, neste trabalho, a uma discussao detalhadasobre o processo imigratorio ocorrido no Brasil a partir das ultimasdecadas do seculo XIX. Todavia, e precise situar tal processo comoum importante elemento da conjuntura da epoca e assinalar o seupapel nas transformagoes da sociedade brasileira.

A imigragao contribuiu de modo decisive para viabilizar noBrasil a construgao da nova ordem. Foi, por assim dizer, o motordo capitalismo nascente. Entretanto fez nascer, no pequeno opera-

A EDUCACAO FISICA NO BRASIL 87

riado brasileiro, as ideias de liberdade, as ideias revolucionarias,as ideias de luta10.

O processo imigratorio e parte constitutiva do grande impulseque ganha a economia do Brasil, a partir de 1870. Em ritmo acele-rado, multiplicam-se os empreendimentos comerciais, industriaise, sobretudo, agricolas, e ja e possivel observar, com certo vulto, aconcentragao de capitals.

Este e o periodo no qual o Brasil tambem e tecnicamente apa-relhado. Estradas de ferro sao construidas, a navegagao a vapor ea rede telegrafica estendem-se largamente. Tambem e possivel cons-tatar um progresso industrial, particularmente das manufaturastexteis que se instalam nos locals de maior concentragao popula-cional, ou seja, nos centres urbanos, onde, portanto, e possivel en-contrar uma mao-de-obra abundante e barata.

Esta mao-de-obra disponivel, que habitava os centres urbanos,foi fator determinante de "prosperidade" da incipiente industriabrasileira, contribuindo, de modo decisive, para a celebragao davitoria do capital sobre o trabalho em novas relagoes de produgao.

Os centres urbanos podiam ser considerados o espago dos em-preendimentos modernos e da consolidagao da nova ordem capita-lista, mas, em contrapartida, enquanto parte constitutiva do mes-mo processo, eram a expressao concreta da degradacao da vidahumana.

Num sistema economico em que predominava a lavoura, tra-balhada por escravos em sua quase maioria, a populagao urbanaque nao possuisse ocupagao fixa, ou um meio regular de vida, erauma populagao marginal. Isto porque, para a populagao livre, maspobre, nao havia lugar num sistema que ainda se reduzia ao bino-mio "senhor e escravo."

Uma das solugoes buscadas pelas elites dirigentes para pro-mover a integragao e a incorporagao dessas populagoes marginalsao processo civilizatorio imposto pelo capital foi a educagao.

Assim, a imigragao foi buscada para acelerar o processo civili-zatorio imposto pelo capital e a educagao do povo foi buscada paraconsolida-lo.

10. A respeito do processo imigratorio no Brasil, consultar Manuel Diegues Jr., 1964.

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88 EDUCACAO FISICA

4. EM BUSCA DA EDUCACAO E DA SAUDE DO POVO...OS "OLHARES" SE VOLTAM PARA A EDUCACAO FISICA

Nos ultimos anos do Imperio, a nova classe dirigente, mais iden-tlficada com as ideias de progresso e de desenvolvimento, passa avincular a essas ideias a necessidade de uma educagao publica eestatal para o povo, uma vez que a ignorancia deste impedia a en-trada do pais no mundo da modernidade. A eliminagao da ignoran-cia do povo, portanto, passava a ser a chave para todos os proble-

mas da nagao.Nos trabalhos de Rui Barbosa, inumeras sao as passagens nas

quais ele se refere a ignorancia popular como

a mae da servilidade e da miseria; a grande ameaga contra a exis-tencia constitucional e livre da nacjao; o formidavel inimigo, o ini-migo intestine que se asila nas entranhas do pais [BARBOSA, 1946,pp. 121-122].

Sua argumentagao acerca da difusao da escola em paises con-siderados mais cultos como Inglaterra, Franga, Alemanha, EstadosUnidos, pautava-se sempre em dados estatisticos, que Ihe permi-tiam tecer em sua obra uma teia de informagoes que comprovavame relacionavam instrugao com produgao, com desenvolvimento mo-ral, com diminuigao da delinquencia, "com amor a patria" e comoutras tantas virtudes. Ele afirmava ser a "educagao do povo [...] oprimeiro elemento de ordem, a mais decisiva condigao de superio-ridade militar e a maior de todas as forgas produtoras" (idem,p. 140). Para Rui Barbosa, a educagao escolar teria a fungao doartifice e moldaria, conforme os mais caros ideals de liberdade hu-mana, a grande massa que era constituida pelo povo.

Rui Barbosa dialoga com um Brasil que reflete de modo mar-cante os seus tres seculos de regime colonial, e vislumbra o nas-cimento de um incipiente processo de transformagao politica eeconomica que, tendo seu inicio no Imperio, acentua-se com aproclamagao da Republica. Em outras palavras, a Republica se-ria o proprio "passaporte" para o desenrolar "natural" desse novoprocesso em curso.

A EDUCACAO FlSICA NO BRASIL 89

Uma economia urbano-comercial e desenhada, uma elite comideias "burguesas", europeias se projeta; a miseria e a prostituigaocrescem nas cidades; as doengas e as epidemias, de maos dadascom a morte, sao o cartao de visita dos portos... O capitalismo estanascendo no Brasil.

Mas, com que olhos, intelectuais como Rui Barbosa olham onovo modo de produgao? Como pensam eles ser possivel viabilizareste novo modo de produgao no Brasil? Como seria possivel viabi-lizar uma sociedade nova, capitalista com um povo doente? Com ainsalubridade dos portos? Com um enorme contingente populacio-nal impregnado dos valores proprios das relagoes escravistas detrabalho, desqualificados, portanto, para a industria nascente?Como falar de urbanidade, asseio, saude, progresso, desenvolvimen-to para uma populagao arrasadoramente analfabeta, aprisionadapelo misticismo?

E neste quadro que a ideia de educagao como instrumento ca-paz de transformar o pais se faz presente de modo marcante nopensamento das elites identificadas com o novo. E Rui Barbosa eum de seus porta-vozes mais expressivos.

Todavia, em Rui Barbosa, como representante das elites, a ideiada educagao como algo capaz de transformar a sociedade caoticaque se mostra aos seus olhos, nao aparece sozinha. Juntamentecom ela e, principalmente, por meio dela, surge a ideia da saude ede como ser saudavel. Para alcangar este "ser" saudavel seria ne-cessario recorrer a Higiene e, sobretudo, acentuar a sua importan-cia na escola.

Higiene e educagao juntas poderiam mudar a face do pais, pro-mover o seu desenvolvimento, viabilizar o progresso. Higiene e edu-cagao passam a ser os remedies adequados para "curar" as doen-gas do povo e do pais. Dessa uniao bem conduzida nasceria urnoutro Brasil.

A elite dirigente, da qual Rui Barbosa e representante, passa aacentuar a importancia da saude e da educagao, e a pensa-las jun-tamente com toda a sociedade a partir de um processo de importa-gao de teorias oriundas dos paises centrals.

Essas teorias passam a instrumentalizar as diferentes praticassocials, entre elas a educagao e a saude, atraves de uma ruptura

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90 EDUCACAO FlSICA

com o contexto de origem e uma adequagao/adaptagao aos padroesde desenvolvimento das relagoes capitalistas no Brasil.

E importante frisar que nao ha, por parte da elite brasileira,uma assimilacao distraida, indiferenciada ou simplesmente imita-tiva das teorias socials que se encontram plenamente desenvolvi-das na Europa do seculo XIX, sobre as quais tratamos brevementeno prirneiro capitulo deste trabalho. O que existe e uma assimila-gao seletiva e ate hierarquizada de apropriagao/difusao do idearioeuropeu pela elite brasileira mais identificada com o novo.

Nesse quadro de assimilagao seletiva e hierarquizada do idearioeuropeu, o liberalismo compoe o pano de fundo, ja que represen-ta a propria visao de mundo da burguesia. Esta, por sua vez, etraduzida por diferentes correntes, tais como o positivismo, evo-lucionismo, organicismo, correntes que, em diferentes mementos,tiveram maior ou menor espago na construgao da sociedade bra-

sileira11.As metaforas organicistas pontuam o pensamento de estadis-

tas, pedagogos, literates, juristas, cientistas, medicos, e o positi-vismo comteano confere, na exata medida, a ideia de uma realida-de absolutamente externa ao observador. Ao mesmo tempo, oevolucionismo mais grosseiro respalda a ideia da concorrencia, dacompetigao e da vitoria do mais forte, do mais saudavel, daqueleque, seria mais adequado ao progresso e a nova ordem.

A educagao e a saude, como praticas socials, foram fortemen-te influenciadas por estas correntes de pensamento e receberamfungoes muito particulares e importantes no processo de transfor-magao da sociedade brasileira no final do Imperio.

Para nossos estudos e nos limites deste trabalho, destacamosum conteiido que, na otica da elite dirigente e fortemente defendi-do por Rui Barbosa, viria a se constituir na sintese perfeita das duaspraticas socials apontadas e na consecugao dos objetivos propos-tos. Estamos nos referindo a Educagao Fisica, que, ministrada nas

A EDUCACAO FISICA NO BRASIL 91

11. Para maior compreensao sobre as teorias que embasaram o pensamento daselites brasileiras consultar B. Lamounier, "Formagao de um pensamento poli-tico autoritario na Primeira Repiiblica. Uma interpretacao", em Historia Geralda Ciuiliza^ao Brasileira, 1978, vol. 3, cap. 10.

escolas, contribuiria para forjar o individuo forte, robusto, sauda-vel e disciplinado de que tanto carecia a nova sociedade brasileiraem formagao.

Era dever primario, como bem diz Rui Barbosa, da existenciahumana "cuidar do corpo", "da saude", e a ginastica seria o elementocapaz de promover a saude atraves do "saudavel" exercitar dosmusculos, atividade esta que deveria tornar-se habito. Portanto, aginastica nao poderia ficar fora da escola, tambem alertava RuiBarbosa, afirmando ser a sua obrigatoriedade universalmente acei-ta. Uma educagao popular que nao incluisse a ginastica seriaconsiderada indigna desse nome, porque a ginastica deveria acom-panhar todo o ensino e plantar no homem o sentimento de sua ne-cessidade, assim como "do pudor, da urbanidade e do asseio" (BAR-BOSA, 1942, p. 174).

A Educagao Fisica no Brasil, em suas primeiras tentativas paracompor o universe escolar, surge como promotora da saude fisica,da higiene fisica e mental, da educagao moral e da regeneragao oureconstituigao das ragas.

Higiene, raga e moral pontuam as propostas pedagogicas e le-gais que contemplam a Educagao Fisica, e as fungoes a serem porela desempenhadas nao poderiam ser outras senao as higienicas,eugenicas e morals.

A argumentagao utilizada por Rui Barbosa para justificar oingresso da Educagao Fisica no universe escolar traduz com rnuitapropriedade as fungoes apontadas, evidenciando o vies medico hi-gienista presente no ideario dos estadistas brasileiros.

Rui Barbosa observa que

a ginastica, alem de ser o regimen fundamental para a reconstitui-

gao de um povo cuja virilidade se depaupera e desaparece de dia

em dia a olhos vistos, e ao mesmo tempo, um exercicio eminente-

mente, insuperavelmente moralizador, um germem de ordem e um

vigoroso alimento da liberdade. Dando a crianca uma presenga

erecta e varonil, passo firme e regular, precisao e rapidez de movi-

mentos, prontidao no obedecer, asseio no vestuario e no corpo,

assentamos insensivelmente a base de habitos morais, relaciona-

dos pelo modo mais intimo com o conforto pessoal e a felicidade da

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92 EDUCACAO FISICA

futura familia, darnos ligoes praticas de moral talvez mals podero-sas do que os preceitos inculcados verbalmente [BARBOSA, 1946,

p. 98].

Como podemos observar, para o autor, os "beneficios" que sepodia auferir da ginastica eram inumeros e, decididamente, de enor-me importancia para a "educagao" nao apenas "fisica" do povo brasi-leiro, mas para a sua "educagao plena", ou seja, moral e intelectual.

Das inumeras reformas do ensino que buscaram incorporar aginastica nos curriculos escolares, reformas estas que faziam par-te do universe de informagoes de Rui Barbosa, e precise destacaro decreto n. 7.247 de 19 de abril de 1879. Este decreto, ou esta re-forma do ensino assinada por Carlos Leoncio de Carvalho, trazia jaem sua grade curricular o espago obrigatorio para o ensino da gi-nastica nas escolas primarias e secundarias do municipio da Cor-te12.

A orientagao de obrigatoriedade para o ensino da ginastica seraseguida por Rui Barbosa em sua argumentagao sempre eloqiienteacerca do exercicio fisico e da sua efetiva integragao aos curricu-los escolares.

Em seu parecer de n. 224 sobre a Reforma Leoncio de Carva-lho, sob o titulo "Reforma do Ensino Primario e varias InstituigoesComplementares da Instrugao Publica", proferido na sessao daCamara dos Deputados em 2 de setembro de 1882, Rui Barbosaassim sintetiza o conjunto de medidas que considera necessariaspara que a ginastica se integre aos curriculos escolares:

1° - Instituicao de uma secgao especial de ginastica em cadaescola normal.

12.Decreto n. 7.247 de 19 de abril de 1879. Reforma do ensino primario e secun-dario do municipio da Corte e o superior em todo o Imperio. "Art. 4°[...] O ensi-no nas escolas primarias de 1° grau do municipio da Corte constara dasseguintes disciplinas: Instrugao moral, Instrucao religiosa, Leitura, Escrita,Nocoes de cousas, Nocoes essenciais de gramatica, Principios elementares dearitmetica, Sistema legal de pesos e medidas, nocoes de historia e geografia doBrasil, Elementos de desenho linear, Rudimentos de musica, com exercicios desolfejo e canto, Ginastica, Costura simples para meninas", apud Barbosa, 1942,p. 276.

A EDUCACAO FlSICA NO BRASIL 93

2° - Extensao obrigatoria da ginastica a ambos os sexos na for-magao do professorado e nas escolas primarias de todos os graus,tendo em vista, em retacao a mulher a harmonia dasformasfeminise as exigencias da maternidade futura.

3° - Insergao da ginastica nos programas escolares como materlade estudo, em horas distintas das do recreio, e depois das aulas.

4° - Equiparagao, em categorias e autoridade, dos professores deginastica aos de todas as outras disciplinas [idem, grifos nossos],

Essa sintese clara e objetiva evidencia o seu carater obrigato-rio, distingue-a das horas de recreio, confere aos professores des-sa materia igualdade aos demais que compoem o universe escolare estende a ginastica a ambos os sexos, preservando, porem, paraa mulher, as "fungoes" a serem por ela desempenhadas na socie-dade - as de "mulher/mae", de reprodutora dos filhos da patria. Aginastica destinada a mulher deveria, entao, acentuar as suas for-mas feminis e, desse modo, compor o ideario burgues sobre as di-ferengas da mulher em relagao ao homem.

Os elementos apontados por Rui Barbosa expressam as preo-cupagoes da elite brasileira com a regeneragao da raga, com a pro-criagao e com a saiide fisica de homens e mulheres, entendidoscomo soldados da patria. A Educagao Fisica no ambito destas preo-cupagoes surge como instrumento ideal para forjar individuos sau-daveis e uteis para ocupar fungoes especificas na produgao. Expres-sam, ainda, o acentuado interesse do capital na preservagao daforga de trabalho atraves de discursos e praticas que definem pa-peis e fungoes a serem desempenhados por homens e mulheres.

Profundamente moralistas, as ideias sobre os "beneficios" daginastica sao oriundas do pensamento medico higienista e de umavisao medicalizada da sociedade. Este pensamento normativo, dis-ciplinador e moral teve papel determinante nas primeiras siste-matizagoes sobre a ginastica... sobre a "educagao fisica" dos indi-viduos, e Rui Barbosa o captou de modo surpreendente, procurandoampliar-lhe o espago, disseminando-o, por assim dizer.

Considerando fundamental a voz dos medicos, dos anatomis-tas e dos fisiologistas para o desenvolvimento da ginastica, Rui Bar-bosa reitera em sua argumentagao a importancia destes profissio-

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94 EDUCACAO F1SICA

nais nas primeiras sistematizagoes sobre a ginastica ocorridas naEuropa apos a Revolugao Burguesa. Refere-se aos trabalhos desen-volvidos por Ling, na Suecia, e Spiess, na Alemanha, destacandoos importantes estudos anatomicos e fisiologicos realizados nessespaises para o desenvolvimento "cientifico" da ginastica. Rui Barbo-sa faz alusao especial ao diploma de "medico ginasta", que e confe-rido aqueles que passam pela Real Academia de Ginastica de Esto-colmo. Quanto a Alemanha, observa que neste pais

a medicina tern feito uma acertada aplicaQao da ginastica as ideias

da higiene e da terapeutica, tern indicado os meios mais convenien-tes de fortificar todos os orgaos, aumentar a energia das proprie-

dades vitais, e, guiados pelos conselhos dela, os ginasiarcas, ima-ginaram exercicios acomodados ao fim de imprimir uma acaoespecial a cada uma das partes do corpo, principiando pelos maissimples movimentos, ate ir, suave e progressivamente aos maiscompostos [BARBOSA, 1942, p. 77].

Esta ginastica funcional e fragmentada, atravessada pelo viesmedico higienista, constitui um elemento a mais no conjunto denormas morais e disciplinadoras. Ela foi expressao da sociedade naqual foi gerada, e Rui Barbosa soube captar sua singularidade eimportancia na construgao da ordem, conferindo-lhe cientificida-de, e neste sentido, status. A "ginastica cientifica", respaldada nasciencias biologicas e recomendada mundialmente por medicos, re-forgava o reducionismo biologico -presente na sociedade, transfor-mando-se em importante canal de veiculagao da moral burguesaatraves de um exacerbado cuidado higienico com o corpo.

E Rui Barbosa teve habilidade, diplomacia e "competencia" paratransformar a ginastica, esta magica divina, em conteudo de ensi-no integrado aos curriculos escolares. Procurou sempre, em nomedo novo, do moderno, do cientifico, colocar a ginastica como poten-cialmente capaz de, em si mesma, desenvolver corpos saudaveis emmeio a miseria fisica e social do povo, em meio a doencas, epide-mias e morte.

Sendo porta-voz de uma determinada faccao da elite brasilei-ra, aquela identificada com o capitalismo nascente, muito mais vi-

A EDUCACAO FI'SICA NO BRASIL 95

gorosa e em expansao do que aquela identificada ainda com oescravismo, Rui Barbosa se faz presente nos embates travados porestas facgoes do poder. Percebe a necessidade de uma transforma-gao na sociedade que pudesse viabilizar o capitalismo industrial eas novas forgas produtivas em expansao. Dai sua preocupagao coma educagao e com a saude do povo e, particularmente, com a edu-cagao fisica do trabalhador e da mulher/mae.

Rui Barbosa participa ativamente de um momento da socieda-de brasileira, as ultimas duas decadas do seculo XIX, no qual deli-neiam-se de modo mais acentuado os contornos para que novasrelagoes politicas e um novo regime de governo, finalmente, concre-tizem-se.

5. PENSAMENTO MEDICO HIGIENISTA E EDUCACAOFISICA NA PRIMEIRA REPUBLICA: O REFORCO"CIENTIFICO" A UM INSTRUMENT© DA ORDEM

As incompatibilidades existentes no interior da elite brasileira,claramente dividida entre uma formagao social capitalista e umaformagao social escravista, acentuam-se no final do Imperio. As ten-soes resultantes dessas incompatibilidades passam, consequente-mente, a refletir-se nos aparelhos de Estado, e novas relagoes politi-cas, um novo regime de governo, tornam-se necessaries para"administrar" as tensoes, assim como para concretizar o tipo de de-senvolvimento desencadeado no Brasil nos ultimos anos de Imperio.

O advento da Republica, liderado por uma elite declaradamenteliberal, burguesa e, portanto, capitalista, nada mais foi do que umnovo estimulo as atividades economicas brasileiras.

Embora dificil de ser avaliada, a proclamagao do novo regimeteve grande impacto sobre as mentalidades. Ela foi para as elitescomo que um sinonimo de libertagao de ideias, de sentimentos,atitudes, e, sobretudo, mudanga. Essa mudanga pode ser sentidade modo mais acentuado no que se refere aos padroes de moral ehonestidade.

Jose Murilo de Carvalho, analisando este momento da historiabrasileira, observa que

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IFISIC

se deu uma vitoria do espirito do capitalismo desacompanhado daetica protestante. Desabrochou o espirito aquisitivo solto de qual-quer peia de valores eticos, ou mesmo de calculo racional que ga-rantisse a sustentacjao do lucro a medio prazo. Era um capitalismopredatorio, fruto tipico do espirito bandeirante [CARVALHO, 1987,

pp. 26-27].

Um regime assim, se, por um lado, "desenvolve" a sociedadebrasileira, iniciando, ainda que tardiamente, a sua integracao aocapitalismo mundial, por outro, e como face do mesmo processo,acentua a miseria, degrada a vida e destroi os lacos mais singelose ternos que unem os individuos, atirando-os desde muito cedo aum tipo de trabalho degradante e mal pago.

Como testemunho da miseria do povo estao os altos indicesde doengas e de mortalidade nas primeiras duas decadas da Re-

publica.Gerson Zanetta de Lima afirma que

morria-se de uma infinidade de pragas naquela epoca e o interiornao se diferenciava muito das capitals, quanto a variedade. A va-riola, a febre amarela, a malaria, a tuberculose e a lepra eram doen-cas comuns [...] A concentragao urbana facilitava a disseminaQaodessas doenc.as [...] [e de outras] menos comentadas na literaturaa respeito da situacao de saude da epoca, [tals como] o sarampo, acoqueluche a difteria, o tetano, a poliomielite, as diarreias infan-tis, a desnutricao e o parto que tambem faziam inumeras vitimassendo que a traducao geral do quadro era uma elevada mortalida-de geral, uma altissima mortalidade infantil, da ordem de trezen-tos a quatrocentos por mil, e uma baixa expectativa de vida ao nas-

cer [LIMA, 1985, pp. 89-90].

Este quadro, se mantido por um longo tempo, poderia amea-car as forgas produtivas da nagao, impedindo, pelas doengas emortes, a reprodugao da forga de trabalho necessaria a reprodu-cao do capital e a efetiva implantagao do novo regime.

E no contexto republicano, portanto, que podemos situar commaior enfase o discurso medico higienista e os seus pressupostos

A EDUCACAO FtSICA NO BRASIL 97

de moralidade sanitaria, discurso apropriado e difundido por pe-dagogos e estadistas, tais como Rui Barbosa.

Se este discurso acompanha e de certo modo dirige a socieda-de brasileira durante todo o Imperio, conforme observamos nestecapitulo, particularmente no que diz respeito a educagao das eli-tes, e com o advento da Republica que sera colocado em praticaatraves de agoes intervencionistas apoiadas pelo Estado, com oobjetivo de, em nome da saude, manter a ordem, ampliando para oconjunto da populagao a determinagao de normas para conseguiruma vida saudavel, e o "pleno funcionamento da sociedade". Istoporque e com a Republica que os medicos comegam a assumir car-gos e a se imiscuir na vida administrativa do pais.

Com uma formagao europeia (francesa), de acentuado caratercientifico, dado particularmente pela revolugao bacteriologica, de-senvolvida a partir dos estudos de Pasteur, os medicos higienistas,de fato, mostraram-se eficientes no combate a algumas doengas e,especialmente, aos efeitos perversos das epidemias, estas bem maisfreqiientes e arrasadoras no ambito das cidades, centro de poderdecisorio da nova sociedade brasileira.

Nao e, portanto, por acaso que os medicos higienistas elegema cidade, este lugar contraditorio de riqueza e miseria, como um dosalvos principals de seu controle, objeto de meticulosa intervengaohigienica. Quanto ao meio rural, o campo, embora apresentasse osmesmos problemas de saude encontrados nas cidades e as mesmastaxas de mortalidade, nao foi objeto de preocupagao e intervengaoda medicina social em sua vertente higienista, a qual se mostrouintimamente ligada ao urbano, mencionando a zona rural,

apenas para louvar a pureza de suas condicoes atmosfericas quan-do comparadas com a das cidades, as suas belezas naturals, a suapaz. A cidade ao contrario e uma fonte de desordem, de doencjas, ee por isso que deve ser o objeto privilegiado da acao medica [NOVAES,1979, p. 38].

Esta agao medica, que sera implementada pela higiene, ira jus-tificar todas as grandes transformagoes das cidades como umaquestao de saude uma vez que, neste momento, a higiene passa a

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98 EDUCACAO FJSICA

fazer parte das "Ciencias Socials, [e integral sua logica a Estatisti-ca, a Geografia, a Demografia, a Topografia, [torna-se] instrumen-to de planejamento urbano" (COSTA, 1984, p. 47).

As medidas sanitarias a serem tomadas objetivavam, portan-to, implementar estrategias de controle higienico das cidades e al-terar radicalmente a sua estrutura urbana, bem como o modo de

vida de seus habitantes.As medidas tomadas, tais como canalizacao de rios, instalagao

de esgotos, controle e tratamento de aguas, vacinagao obrigatoria,entre outras, nao foram exclusivamente fruto da arbitrariedade eautoritarismo do pensamento medico higienista a favor do Estado.Foram medidas que expressaram, de modo inegavel, o carater civi-lizatorio do capitalismo e foram, ate certo ponto, beneficas a popu-lagao, pois contribuiram para o rompimento com ideias e praticasHgadas a um pensamento e a explicacoes religiosas. Elas faziam par-te do projeto burgues de modernidade e civilidade idealizado para

o Brasil.O que e preciso ressaltar neste projeto burgues e o fato de

que, para a sua consecucao, nao bastava apenas controlar racional-mente a saude, mas tambem, e principalmente, tornava-se ne-cessario controlar a moral das classes subalternas, conter e do-mesticar a irracionalidade das paixoes populares, modificar o seumodo de vida, a sua habitacao, assim como os seus cuidados com

o corpo.Para alem deste forte vies moralizador, ha que se ressaltar tam-

bem o significado da higiene publica sob a otica da produgao daforga de trabalho e da adequagao a nova ordem que se instala sob

a egide do capital.Para Gerson Zanetta de Lima, e possivel resumir este significado

a um conjunto de medidas de intervengao que se estabelecem so-bre o meio, de modo a diminuir sua influencia patogenica sobre oscorpos. Na evolugao das sociedades capitalistas, seu desenvolvimen-to se da quando as fortes taxas de morbimortalidade da populacaoameacam paralisar o desenvolvimento das forgas materials de pro-ducao e, assim, se constituir em uma ameaga a propria existenciada classe dirlgente [...] sao medidas tomadas, portanto, no sentido

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de impedir a deterioragao da forga de trabalho, a mals afetada pelamorbimortalidade [LIMA, 1985, p. 47].

Principalmente nas cidades, locals de grande concentragaopopulacional e mercado por excelencia para a incorporagao da for-ga de trabalho, as medidas sanitarias foram fundamentals para asua preservagao. A cidade precisava alterar a sua imagem, umaimagem tetrica de causar horror.

O Rio de Janeiro, jovem capital da Republica podia ser a sinte-se da imagem da cidade no Brasil republicano, e sobre ela assimse expressava um jornalista da epoca:

A cidade e um monstro onde as epidemias se albergam dancan-do sabats magnificos, aldeia melancolica de predios velhos eacacapados, a descascar pelos rebocos, vielas sordidas cheirandomal, excegao feita da que se chama rua do Ouvldor onde [...] o ho-mem do "burro-sem-rabo" cruza o elegante da regiao tropical, quetraz no mes de fevereiro sobrecasaca preta de la inglesa, e [...] di-lui-se em cachoeiras de suor (...) O povo esta sem instrugao! A in-dustria desprotegida. Os services piiblicos, de molas perras (...) soo comercio progride, o "honrado comercio desta praca" com ocomendador a frente, o quilo de 800 gramas, o metro de 70 cm[EDMUNDO, 1982, p. 21].

Este e o retrato nao apenas da cidade, da jovem capital repu-blicana, mas e tambem o retrato desta nova sociedade que esta seconstruindo, a sociedade do lucro facil, do negocio grandiose a curtoprazo, nao importam os meios nem as conseqiiencias.

A intervengao medico-higienica que ocorre neste cenario ci-tadino e que expressa, sobretudo, a voracidade do novo regime,nao se dara no sentido de alterar as relagoes socials all presen-tes. Estara voltada exclusivamente para o meio ambiente, que seraconsiderado o responsavel direto pela saude, tanto do corpo in-dividual, como do "corpo social". Assim, sanear o meio ambientesignificava para os medicos higienistas (e, portanto, para o Esta-do), garantir, de fato, a formagao de individuos fortes, saudaveise uteis a patria.

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100 EDUCACAO

Desse modo, planificar e restaurar meticulosamente o espagodas cidades, higienizar casas, ruas, demolir antigos casaroes, ras-gar largas avenidas em meio a vielas sombrias, matar insetos atra-ves de continuas desinfecgoes, promover campanhas de vacinagaoem massa, etc, etc... passam a ser as grandes e redentoras tarefasda higiene publica, tarefas essas que associadas a uma educagaohigienica do povo, criariam as condigoes necessarias e suficientespara a consolidagao da ordem. Em nome dessa purificagao, dessaassepsia do meio ambiente urbano, o saber e a autoridade medicainvadem a intimidade dos lares, destroem os seus valores, suaspraticas e desejos e impoem, no seu imaginario, o ideario burguesde civilidade: a ordem, a limpeza, a disciplina, a autoridade, a fa-milia, a moral, a propriedade privada...

O ideario colocado em pratica pela Higiene separa os corpos,designando para cada um deles lugares especificos na sua casa (naqual deve viver apenas a familia, devendo estar fechada aos "ou-tros"), na fabrica, na escola, e na propria cidade onde se vive. Emnome da saude, fala-se em metros cubicos de ar, de ventilagao ede luz necessaries ao espago da casa e do trabalho e, desse modo,processa-se um rigoroso esquadrinhamento da populagao trabalha-dora exercendo-se, assim, um controle "cientifico-politico" do meio.

Impoem-se uma disciplina que pretende adequar o corpo aotrabalho fabril, tornando-o assim mais docil e submisso sob a oti-ca do poder e, ao mesmo tempo (e por isso mesmo), mais agil, fortee robusto sob a otica da produgao como expressao do poder e daordem. Esta disciplina corporal foi elemento constitutive da educa-gao higienica do trabalhador, a qual deveria se dar na escola, casoele viesse a frequenta-la. E frequentar a escola tornava-se neces-sario para o tipo de desenvolvimento para o qual se encaminha ajovem sociedade republicana.

A higiene e, como parte dela, a Ginastica ou Educagao Fisica,continuam a integrar as propostas pedagogicas, sendo considera-das em leis e reformas educacionais. Elas se tornaram, desse modo,a expressao concreta dos "cuidados corporals" normatizados pelopensamento medico-higienista que concede um maior espago emseus congresses aos temas e teses relatives a Educagao Fisica e,particularmente, a sua importancia na escola.

A EDUCACAO FJSICA NO BRASIL 101

A Educagao Fisica preconizada pelo pensamento medico-higie-nista era estruturada em bases fisiologicas e anatomicas, as unicasconsideradas "cientificas". A partir, portanto, de um entendimentoanatomofisiologico do movimento humano, os medicos colocavam oestudo da higiene elementar como complemento preparatorio daEducagao Fisica, tornando-a, particularmente na escola, um proce-dimento higienico a ser adotado naquela instituigao e incorporadocomo habito para toda a vida.

O Dr. B. Vieira de Mello em seu livro A Hygiene na Escola, es-crito em 1902, dedica um capitulo especial a ginastica, alertandopara a sua importancia na escola;

[a ginastica] alem de que Influe no crescimento e na esthetica e umexcellente meio de educacao moral, porquanto forma o caracter,torna o homem corajoso, ensina-lhe a dominar-se e agir rapidamen-te, se as circunstancias o exigirem [p. 36].

O habito da ginastica traria, entao, "inestimaveis beneficios" aosindividuos em todas as idades, sobretudo na juventude. O Dr. Jor-ge de Souza, em pronunciamento sobre o tema "Da educagaophysica e inspecgao medica nas escolas", durante o VI CongressoBrasileiro de Medicina e Cirurgia, realizado em Sao Paulo em 1907,assim se expressa sobre os "inestimaveis beneficios" a serem con-seguidos pelos exercicios fisicos:

[os] exercicios physicos ao ar livre, tao necessaries ao desenvolvi-mento da musculatura e a oxydacao do sangue, tao uteis as crian-cas e aos adolescentes, que tem imperiosa necessidade de movimen-to e que, ao contrario, sao as mais das vezes condemnados aImobilidade, a sedentariedade - quando bem dirigidos, sao proprios[...] a desenvolver qualidades de destreza, de agilidade, de ligeirezae de forca, preciosas em todas as classes da sociedade, mas indis-pensaveis aos alunos das escolas primarias, particularmente, des-tinados as profissoes manuaes [SouzA, 1907, pp. 136-137].

E possivel apreender neste discurso medico a visao funcionalque e atribuida a Educagao Fisica na construgao da ordem impos-

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102 EDUCACAO FJSICA

ta pelo capital, uma vez que os corpos ageis passavam a ser uma

necessidade.Sobre bases cientificas fornecidas exclusivamente pelas cien-

cias biologicas, e fortemente determinados pela hipocrita moral bur-guesa (da qual compartilharam e ajudaram a construir), os medi-cos higienistas formularam suas teses sobre a importancia doexercicio fisico na "educagao popular", buscando com estas formu-lagoes uma adequagao dos corpos aos novos padroes exigidos pelasociedade de mercado. Neste sentido, procuraram acentuar a ne-cessidade de sua presenga no interior da instituigao escolar. Afir-mavam, por exemplo, que cada aluno deveria ser examinado por ummedico, e que este medico determinaria a natureza dos exerciciosaos quais este aluno poderia se entregar13. Desse modo, segundoos medicos, seriam evitados os "excesses", os "exageros", e o exer-cicio fisico, viria de fato contribuir para o engrandecimento da pa-tria, a medida que, segundo palavras do Dr. Jorge de Souza, atra-ves dos exercicios fisicos bem orientados (pelos medicos, e claro),seria possivel melhorar e regenerar a nossa raga. Afirmava ele, em

1907, que seria necessario

accentuar, com todo o vigor da mais profunda conviccao, que e umanecessidade que se impoem e se ressalta a evidencia, palpitante einadiavel, a appllcagao de uma reforma, no sentido de promover omelhoramento physico de nossa raca pela graduacao regidada dosexercicios corporaes corn a supervigilancia incessante por parte domedico. Em nenhum paiz - forcoso e confessal-o - a educacaophysica e mais necessaria do que em nosso, pois talvez em nenhumoutro povo se notem signaes tao manifestos de uma precoce dege-neracao physica, que o vae amesquinhando e que ja tern affectado,sem dvivida sua virilidade civil e politica, tornando-o accessivel aofatalismo absorvente que domina as consciencias, a devastadora epertinaz invasao do sceptcismo politico, e vae atrophiando as ener-

IS.Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, 6, Annaes, 1907, p. 156. Essa po-sicao defendida pelos medicos sera anos mais tarde defendida tambem por aque-les que pensaram a educacao escolar, como e o caso de Fernando de Azevedo.

A EDUCACAO FtSICA NO BRASIL 103

gias e entibiando o sentimento nacional [SouzA, 1907, p. 153. Grifosnossos].

Mas, o que determinava este estado de coisas tao bem descritoneste discurso medico? O que determinava esta degeneragao fisicado brasileiro? Quais os elementos objetivos e subjetivos que o tor-navam "acessivel" ao fatalismo, que afetavam a sua virilidade, queo tornavam descrente de leis, de homens... e de sua propria neces-sidade de viver? Certamente nao era a falta de exercicios fisicos ouo simples (des)conhecimento de formas "saudaveis" de viver.

O que tornava o povo miseravel, doente, degenerado fisica ementalmente eram as condigoes de vida e de trabalho impostas pelocapital, e que somente mais tarde, na decada de 1920, passam aser denunciadas pelos medicos em seus relatorios e em seus con-gressos como ameaga a "saude" da sociedade e da nova ordem,denuncias que tinham o cuidado de isentar de culpa o Estado bra-sileiro. Um Estado que nao possuia leis de trabalho, ou qualquerdispositive legal que obrigasse o patrao a efetuar pagamentos deindenizagao por acidentes de trabalho ou mesmo a simples preo-cupagao de evitar tais acidentes nas fabricas.

Quanto a remuneracao, elas variavam de acordo com o patrao,que tambem estipulava as normas da produgao, como por exemplo:qualquer erro cometido pelo operario obrigava-o a pagar multa, oque muitas vezes diminuia sensivelmente seu salario. Sem falar notratamento disciplinar dos mesmos, muitas vezes submetidos acastigos corporals. Todo esse quadro era controlado pelas forcas derepressao. o que vem a ilustrar ironicamente a tese da maloria dosdirigentes de entao, de que a questao operarla nao e questao sociale sim questao de policia... [Luz, 1982, p. 65).

Tais condigoes de trabalho vividas pelos adultos, nas quaisproliferavam formas coercitivas idealizadas e realizadas a partir deum modelo disciplinar dos dominantes, eram tambem partilhadaspelo trabalhador infantil. Sua Jornada de trabalho nunca era infe-rior a 12 horas diarias, durante as quais executava tarefas das maisnocivas a um desenvolvimento harmonioso.

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104 EDUCACAO FJSICA

O caso do trabalho realizado pelas criangas na industria textile bastante elucidative de nossas afirmagoes. No dizer dos indus-trials, existiam "certos trabalhos que so as criangas podiam fazer"14:esgueirar-se entre teares em espagos exiguos para recuperar fiosou bolas de algodao, permanecer horas e horas em posigoes abso-lutamente incomodas e perniciosas ao seu desenvolvimento fisico,movimentando-se continua e cansativamente entre maquinas pe-rigosas respirando flocos de algodao e odor de dejetos [LIMA, 1985,

p. 104].E, enquanto o trabalhador infantil vivia esta realidade no mun-

do do trabalho, os medicos detalhavam o espago escolar de formameticulosa, alertando para os problemas advindos de vicios postu-rais, para a necessidade de adequar o mobiliario escolar a anato-mia infantil para que se pudesse, assim, "prevenir os distiirbios de

coluna"15.Dizia o Dr. Vieira de Mello que

Ao educador cumpre nao so evitar que os alumnos adquiramattitudes viciosas, como ainda corrigir as que apresentem. Porque,forga e dizel-o, grande parte de defeitos physicos observados emescolares tem sua origem no selo da familia, onde se permitte ascreangas escreverem em mesas desproporcionais a sua estatura,quando nao sobre cadeiras e outros moveis provadamente impro-prios e ate nocivos [1902, p. 22].

Ocorre que nao era exatament& no seio da familia, mas no seioda fabrica (mundo do trabalho) que os defeitos e a degeneragao fi-sica da infancia tinham sua origem e se perpetuavam na vida adul-ta. E, lentamente, entao, passa a existir uma percepgao por parteda classe operaria em formagao no Brasil da necessidade de mos-trar tudo isso a sociedade, de responder ao aparato repressive esempre violento do Estado, de levantar-se contra as miseraveiscondigoes de vida e de trabalho. A partir dessa percepgao, diferen-

14.Estas palavras foram pronunciadas pelo medico e industrial Jorge Street apudGerson Zanetta de Lima, 1985, p. 104.

15. Ibidem, ver tambem Bruzzo, 1988.

A EDUCACAO FJSICA NO BRASIL

tes formas de resistencia vao constituindo-se, e uma profusao demanifestagoes combativas ocorrem alterando o figurino que a so-ciedade oficial - a elite republicana - desenhava para a sociedadebrasileira16.

A revolta da vacina, em 1904, no Rio de Janeiro17, foi uma mos-tra da resistencia do povo a todas as medidas intervencionistas quevinham ocorrendo, a toda especie de invasao a que estava sujeitoseja na privacidade de seus lares, seja na intimidade de seus cor-pos. A vacina obrigatoria era o elemento que se colocava concreta-mente como objeto possivel de revolta, e revoltar-se significava re-sistir, resgatar o seu proprio espago de vida, a sua dignidadeperdida. Significava resistir ao modelo disciplinar/higienico impostopelas classes dominantes.

Essa resistencia popular foi um dos fatores que contribuiudecisivamente para que, pouco a pouco, o modelo disciplinar ado-tado pelo Estado fosse alterando seus contornos e mudando suadiregao. Neste quadro de alteragao de praticas e discursos, os me-dicos, alarmados com os altos indices de mortalidade infantil e aten-tos aos interesses do Estado, passam a alertar as autoridades so-bre a necessidade de cuidar da infancia e de "educa-la".

O Dr. Moncorvo Filho, um dos mais ilustres representantes dopensamento medico voltado a protegao da infancia, chamava a aten-gao das autoridades afirmando que "os pequeninos de hoje seraoos grandes de amanha, e nela [infancia] que ponho as esperangasde grandeza atual do regime pela regeneragao da patria [apud RAGO,1985, p. 120].

Essa mudanga de diregao que assumem os medicos higienis-tas em seu discurso e sua pratica, voltando-se aos "cuidados coma infancia" e com a educagao higienica do povo, traduz-se em dife-rentes formas de intervengao na sociedade, as quais passam a serimplementadas ao longo da decada de 1920.

Nao sao mais formas violentas, coercitivas. Agora sao formassutis, "educativas". Atraves delas os medicos denunciam as condi-

16.Sobre a resistencia da classe operaria em formagao no Brasil, consultar AzizSimao, 1966; Paulo Sergio Pinheiro & M. Hall, 1979; Ricardo Antunes. 1982.

17.Sobre o assunto, consultar Nicolau Sevcenko, 1984.

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106 EDUCAQAO FlSICA

goes de trabalho na industria e passam a fazer propostas sobremedidas higienicas a serem tomadas para o bom funcionamento dasfabricas, das escolas e dos locals publicos em geral. Assim, recomen-dam a ginastica para toda a populagao e responsablllzam os empre-sarios pelo estado de degeneragao fislca e moral da classe operaria,evidenciando, de modo cuidadoso, o descaso do governo para com oestado de miseria do povo. Neste quadro nao deixam de fazer refe-renda "a ma educagao do operario que nao tern orlentadores since-ros e inteligentes nas suas reivindicagoes" [Idem, pp. 41-42].

Estes sinceros orientadores seriam, evidentemente, os medicos,uma vez que eles, mais do que ninguem, sabiam o que era maisadequado ao povo, da crianga ao adulto, sem distingao. Suas agoes,portanto, nao deveriam mais recair somente sobre os focos de con-tagio e contaminagao, elas deveriam recair sobre toda a populagaoe toda a sociedade.

O campo de atuagao dos medicos sanitaristas redefine-se nes-te periodo sob a influencia da escola norte-amerlcana, cujo repre-sentante no Brasil e o medico sanitarista Geraldo Horacio de PaulaSouza, que reorganiza o Servigo Sanitario de Sao Paulo, tecendocriticas ao trabalho autoritario desenvolvido ate entao por EmilioRibas, substituindo as campanhas obrigatorias de vacinas e desin-fecgoes do meio por um trabalho de constante e meticulosa educa-gao dos individuos. Segundo Emerson E. Merhy a concepgao quePaula Souza tern de saude publica e aquela que afirma ser a higie-nizagao do melo e a aquisigao da consciencia sanitaria por parte dosindividuos, elementos suficientes para que ninguem adoega18.

O periodo em que ganham espago as ideias de Paula Souza eaquele no qual ocorrem grandes debates em torno da saude, dadoenga e da educagao do povo. Pelo lado da saude este e o momen-to da realizagao dos Congresses Brasileiros de Higiene organizadospela Sociedade Brasileira de Higiene19, instituigao da sociedade ci-

IS.Ver O capitalismo e a saude publica, de Merhy, 1987.19. "A Sociedade Brasileira de Higiene (SBH), fundada em 1923. permaneceu sem-

pre uma instituigao da sociedade civil, embora seus lagos com o aparelho esta-tal, sobretudo os aparelhos de saude publica tenham sido [...] intensos [...] [As]pretensoes da S.B.H.. [...] nao se resumem apenas em se constituir num espa-go de discussao e de catalisagao dos agentes envolvidos com a higiene. Bern

A EDUCAQAO FfSICA NO BRASIL 107

vil que reunia, no momento de sua criagao, os principals nomes daHigiene e Saude Publica do pais. Os seus quadros eram formadospor funcionarios publicos, em sua maioria pertencentes ao Depar-tamento de Saude Publica, ou a orgaos e instituigoes de SaudePublica em varios estados da federagao.

Pelo lado da educagao este e o momento no qual tern inicio aassimilagao de um novo referencial, oriundo do que se chamou aEscola Nova20, que tera na Associagao Brasileira de Educagao (ABE)um importante canal de veiculagao deste ideario.

A ABE, criada em 1924 no Rio de Janeiro e reunindo educado-res, medicos, advogados, engenheiros e outros profissionais, bus-cava aglutinar os esforgos de todos aqueles que acreditavam serpossivel transformar o pais pela educagao, promovendo atraves decampanhas educacionais uma reforma na merttalidade das elites,"convencendo-as da necessidade de regenerar, pela educagao, aspopulagoes brasileiras, moldando-as como povo saudavel e produ-tivo", e divulgando, assim, um novo ideario educacional [CARVALHO,1989, p. 55]. Assim como outras organizagoes civico-nacionalistas,a ABE se constituiu em espago onde diferentes dispositivos de con-trole, regulagao e produgao do cotidiano das populagoes pobresforam for]ados. Elucidativo de nossa afirmagao e o conteiido que sedepreende de suas Conferencias Nacionais, semanas de Educagao,palestras e festividades, nas quais sao cultuados "signos de auto-ridade e hierarquia e ritualizados no espetaculo civico, modelos decomportamento exemplar [idem, pp. 78-79].

A ABE, bem como a Sociedade Brasileira de Higiene, teve a "for-magao de habitos saudaveis" como objeto de preocupagoes e aten-goes especiais, e a saude nao so foi um dos

temas preferidos das prelegoes civicas nas festividades, como tam-bem objeto de celebragao em inumeras competlcoes esportlvas ofe-

maiores parecem as pretensoes da S.B.H., e claramente, atraves da Higiene eda Saude Publica, exercer maior controle sobre o conjunto da sociedade[...]",Luz, 1982, pp. 174-175.

20.Sobre o assunto remeto o leitor aos trabalhos de Jorge Nagle, 1978; VanildaPaiva, 1973; Marta M. C. de Carvalho, 1989; Anisic Teixeira, 1977; ManuelBergstrom Lourengo Filho, 1978; Raquel Gandini, 1979.

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recidas em espetaculos como modelos exemplares de comportamen-to. O esporte e a vida saudavel simbolizavam a energia, o vigor, afonja, a prosperidade, signos de progresso Inscritos no corpo queconhece o movimento adequadamente util para cada ato [idem,

ibidem].

Nesse novo modelo de educagao que estava sendo assimilado,

[a] pratica educativa, articulando-se com a pratica de saude, naoapenas incorporou no curriculo escolanovista certas disciplinas,mas concedeu-lhes tambem prioridade. E o caso das nogoes de hi-giene, dos trabalhos manuais e da educa?ao fisica. Atraves do do-minio de certas tecnicas corporals, implicitas nestas disciplinas,buscava-se formar um comportamento adequado do ponto de vistabio-psico-social. Todas elas veiculam certas representacoes que asociedade fazia de si mesma, como o aperfeigoamento da rac.a e osentimento nacionalista [...]

A Escola Nova introduzia urna nova construgao social do corpo,mitificada a partir de entao no estereotipo da "regeneracao da raca".O corpo deveria tornar-se saudavel, isto e, manipulavel, habil,multiplicador de forcas e, ao mesmo tempo, exteriorizar as quali-dades psicologicas interiorizadas pelo dominio das tecnicas corpo-rals: a capacidade de previsao e de treinamento da vontade [NUNES,1984, p. 543].

Este ideario educacional, fortejnente influenciado pelo pensa-mento medico higienista, e amplamente veiculado e debatido emseus congresses. Medicos e pedagogos em perfeita harmonia e iden-tidade conceitual buscam viabilizar, na pratica, suas crengas natransformagao social atraves da educagao, este poderoso (e unico)instrumento por eles considerado capaz de formar, desde a infan-cia, os habitos de vida saudavel, o amor ao trabalho, a ordem e adisciplina.

Os Congresses Brasileiros de Hygiene, realizados ao longo dadecada de 1920 pela Sociedade Brasileira de Hygiene, sao testemu-nhos da preocupagao medica com a educagao escolar e da impor-tancia que Ihe atribuem na construgao da ordem.

A EDUCACAO FJSICA NO BRASIL 109

Naqueles congresses a escola, particularmente a escola prima-ria, aparece como o instrumento mats adequado para viabilizar umaboa educagao higienica (ver CONGRESSO BRASILEIRO DE HYGIENE, 1923),o que nada mais era do que a aquisigao de um sistema de habitosque, uma vez integrados na vida dos individuos viriam favorecer asaude individual e, ao mesmo tempo, preservar a saude daquelesque os cercam.

Isto posto, facilmente se deduz que o unico apparelho em condi-goes de diffundir economica e efflcazmente a educagao hygienica e aescolaprimdria por meio do respective professor [...] a escola pri-marla constitue o agente fundamental de tao consideravel tarefa[idem, p. 819. Grifos nossos].

A escola, entao, e vista como o terreno que propicia a implan-tagao de habitos de viver sadiamente. E e neste conjunto de habi-tos saudaveis que compoem o ideario da educagao higienica a serministrada na escola - espago que economicamente poderia disse-minar essa educagao higienica para o conjunto da sociedade - quevamos encontrar os exercicios fisicos.

O I Congresso Brasileiro de Hygiene, realizado em 1923, dedi-ca um espago consideravel ao exercicio fisico no conjunto dos te-mas tratados. O exercicio fisico figura entre as contribuigoes queas instituigoes particulares poderiam oferecer para a educagao hi-gienica do povo. A Associagao Crista de Mogos (ACM)21 empresta,

21.Segundo Inezil Pena Marinho (s.d.-b, pp. 60-61), a "historia das AssociatesCristas de Mogos desponta com o trabalho de um clerigo ingles: Georges Williamsque, em 1844, organiza um clube religioso ao qual deu o nome de Young MenChristian Association (Y.M.C.AJ. Esta organizagao londrina serviu de modelopara muitas outras que se espalharam pelo mundo inteiro. A primeira associa-cao desse tipo foi organizada em Boston, em 1851. Em 1856, foi proposto a Con-vengao nacional que as Y.M.C.A. estabelegam o uso da ginastica e dos banhos.Os primeiros edificios da Y.M.C.A., equipados para essas exigencias, foram cons-truidos em Sao Francisco, New York e Washington, em 1869. A primeira Asso-ciagao Crista de Mogos instalada no Brasil, data de 1893, quando foi fundadaa do Rio de Janeiro, com orientagao norte-americana, primeiro micleo deCalistenia implantado no pais. A A.C.M. teve papel relevante no desenvolvimentode varies desportos, notadamente do Basquetebol e Voleibol. Dez anos maistarde, nos mesmos moldes e com identicas finalidades de suas congeneres no

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110 EDUCAgAO FlSICA

entao, a sua "contribuigao" a educagao higienica do povo, apresen-tando naquele congresso tese especifica sobre a educagao fisica.

J.H. Sinns e Oswald M. Rezende, falando pela ACM, reportam-se as "geniais palavras de Rui Barbosa" e ao seu "monumental Pa-recer sobre a instrucao primaria em 1882", no qual este pensadordedica um capitulo inteiro a educagao fisica. Tendo em mente asrecomendagoes de Rui Barbosa, os dois representantes da ACMafirmam que uma educagao baseada em principios cientificos eministrada aos mogos e um importante meio para difundir princi-pios higienicos.

As teses sobre Educagao Fisica defendidas pela ACM naquelecongresso apresentam as seguintes conclusoes:

1° - A educagao physica e um meio efficaz de propagar a hygienee alcangar a saude.

2° - A educagao physica deve ter por escopo desenvolver no in-dividuo o quantum de vigor physico essencial ao equilibrio da vidahumana, a felicidade da alma, a preservacao da patria e a dignida-de da especie.

3° - A educacao physica, ministrada de accordo com um progra-ma scientifico bem organizado, e para a maioria dos humanos, umanecessidade vital, exigida pela vida artificial que caracteriza assima cidade moderna, como os methodos pelos quaes os homens de hojeganham os meios de subsistencia.

4° - As aulas de gymnastica e os desportos promovem, assim, omais essencial para o bom exito na vida - a saude.

5° - A propaganda hygienica pessoal, v.g., no exame physicovestibular, produz os melhores resultados, sendo de se Ihe aconse-Ihar a pratica a todas as organizacoes.

6° - Nestes exames physicos, verificam-se as condicoes preca-rias dos mocos, ignorantes dos mais comesinhos principios de

Rio de Janeiro, e fundada a A.C.M. de Sao Paulo, que juntamente com oMackenzie College, constitui poderosa fonte de disseminagao da Calistenia [...].As A.C.M. fundadas em outras cidades, dentre as quais Belo Horizonte e PortoAlegre, continuaram a difundir a Calistenia, que teve o seu periodo aureo aposa Segunda Guerra Mundial".

AEDUC

hygiene, de postura defeituosa, denies descuidados e grande por-centagem ja infeccionados pelas doengas venereas.

7° - As conferencias sobre hygiene e educagao physica desper-tam grande interese e sao de grande valor no ensino da prophylaxiaindividual e social principalmente quando feitas com auxilio docinematographo22.

As teses e conclusoes da ACM apresentadas neste I CongressoBrasileiro de Higiene, expressam uma concepgao de Educagao Fi-sica como sinonimo de saude fisica e moral, forgando uma relagaoentre exercicio fisico e saude e acentuando a ideia de que a "apli-cagao correta" do exercicio fisico gera, por si, e de imediato, a taoalmejada saude. Expressam tambem a confianga dos medicos nospoderes do exercicio fisico, o que pode ser traduzido por uma visaotriunfalista e moralista do exercicio fisico, entendido como capaz decurar todos os males da sociedade, sejam eles de ordem fisica, se-jam de ordem moral.

Esse poder quase magico atribuido ao exercicio fisico figuraranos demais Congresses Brasileiros de Higiene realizados ao longoda decada 1920, variando apenas o seu enfoque ou forma de abor-dagem. Esta afirmagao pode ser constatada atraves da leitura dos"Annaes do II Congresso Brasileiro de Hygiene" realizado em 1924na cidade de Belo Horizonte, no qual se enfatizou o carater tecnicodas agoes higienistas, evidenciando o patriotismo das mesmas,assim como o seu significado para a "melhoria da raga". Foi ai queo binomio Educagao Fisica e Higiene tornou-se fundamental. ODr. Amaury Medeiros, em discurso inaugural naquele congresso,assim se expressa sobre o assunto:

Com a visao do Brasil de amanha urge prover inadiavel, a edu-cagao nacional no seu triplice aspecto - physico, intelectual e mo-ral - reservando-se a educacao hygienica fungao essencial na for-magao eugenica da raga23.

22.Congresso Brasileiro de Hygiene, 1923, pp. 21-22. Existern ao todo 10 teses,entretanto transcrevemos apenas aquelas mais diretamente relacionadas como exercicio fisico.

23. Congresso Brasileiro de Hygiene, 2., Belo Horizonte, 1924, Annaes. p. 36.

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2 EDUCACAO FISICA

E a ginastica e parte constitutiva da "educagao higienica", e oseu "complemento necessario" conforme expressao utilizada peloshigienistas, e um complemento que desde o seculo XIX e prescritopelos medicos como receita, uma receita que deveria tornar-se ha-bito e constituir-se em uma "segunda natureza".

O exercicio fisico, entendido como habito saudavel de vida seraamplamente debatido no 3° Congresso Brasileiro de Hygiene, rea-lizado em Sao Paulo em 1926. Na leitura de seus Anais constata-mos que dos doze temas apresentados, o que reuniu um maior nri-mero de trabalhos e teses foi o relative a "Formagao de habitossadios nas criangas, estudo psicologico e higienico".

Afirmava o doutor Waldomiro de Oliveira que

So o habito pode dar elementos indestructiveis para a "forma-gao da consciencia sanitaria". Sem o habito sadio, nao e possivelgarantir a defesa da saude da creanga e garantir cellula capaz de

melhorar a raga de amanha24.

E para que os bons habitos sejam, de fato, incorporados e pre-ciso espago para que possam ser ensinados, portanto,

estender a rede escolar primaria por todos os nucleos onde se en-contrem criangas em idade escolar e obra do mais alto patriotismoe e solido fundamento da instrugao sanitaria e da formacao de ha-bitos de hygiene25.

Ainda sobre o mesmo tema, o Dr. Colombo Spinola fala especi-ficamente sobre o "valor da saude" e acentua a necessidade do exer-cicio fisico para a sua manutengao e prevengao.

Sabemos hoje [...] que a saude pode ser conquistada, bastandopara isto nos cingir as suas leis, estudar e conhecer o nosso pro-prlo organismo, contribuindo para mantelo em hygidez, que sera

24.Congresso Brasileiro de Hygiene, 3., Sao Paulo, 1926, Annaes, p. 801.25.Idem, p. 805.

A EDUCACAO FI'SICA NO BRASIL 113

certamente o resultado de uma maneira sadia de viver, isto e, deum repouso sufficiente, e um trabalho methodico, de exerciciosmoderados ao ar livre, de uma nutricao intelligentemente escolhi-da e adequada, etc. Realmente esta fora de duvida, que o mais pre-cioso capital de um homem e a sua reserva de forca e sua perfeitavitalidade26.

Cuidar dessa "reserva de forga" e "vitalidade", preservando,entao, esse "precioso capital" que e a saude, passava a ser uma res-ponsabilidade individual e, fundamentalmente, exigia obediencia asregras de higiene ditadas pelos "Servigos Oficiais".

Ter saude seria possivel, desde que o individuo possuisse"conhecimentos", que ele fosse "educado higienicamente".

Os servigos oficiais de higiene enfatizavam as suas fungoes deorientagao e fiscalizagao da execugao dos "bons preceitos de higie-ne", envolvendo professores e auxiliares de ensino na nobre tarefade formar higienicamente as criangas. Assim, sao estabelecidas nor-mas para os servigos oficiais. Vejamos aqui as principais normas:

O exame physico de cada aluno, pelos menos uma vez por ano,exercicios physicos diariamente e ao ar livre, nutrigao boa e adequa-da, repouso sufficiente e trabalho methodico, escolas higienicas eapropriadas [Grifos nossos]27.

Na opiniao dos medicos e, por extensao, dos pedagogos, os exer-cicios fisicos ao ar livre tornam-se indispensaveis, pois a "vida es-colar" com suas exigencias tern agido desfavoravelmente sobre odesenvolvimento das criangas. Assim os medicos aconselham a"ginastica natural", traduzida por "jogos ao ar livre, corridas, sal-tos, passeios, patinagao, natagao, remo, etc."28. Quando se referema "ginastica metodica", sugerem a ginastica sueca de Ling, por cor-responder mais adequadamente aos principios da higiene.

26.Congresso Brasileiro de Hygiene, 3., Sao Paulo. 1926. Annaes, p. 861

28.fdem 3 3 8 r° '

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114 EDUCACAO FJSICA

Conforme o Dr. Colombo Spinola, "os exercicios fisicos de Lingdesenvolvem as forcas physicas das criangas e dao aos movimen-tos maior amplitude com a menor forga"29.

Um aspecto que deve ser salientado e que figura com frequen-cia nos discursos medicos e aquele relativo aos cuidados para quenao se cometam exageros e abuses na "dosagem" dos exercicios fisi-cos. Estes devem ser prescritos pelo medico, que sabera faze-lo ade-quadamente em fungao da idade e da constituicao de cada crianca30.

Entre os cuidados com a saude destaca-se a Educacao Fisica quetern o medico como tutor do professor que ministrara a materia naescola piiblica ou nas instituigoes particulares. Essa tutela e tal quea promogao funcional dos professores esta diretamente ligada aoscuidados por eles destinados a Educagao Fisica, a saude das crian-gas e a higiene da classe. Esses sao os elementos considerados nasua avaliagao, os quais sao privativos do medico escolar, conformeprevisto no decreto n. 2.008, de 14 de agosto de 192431.

Uma vez mantido o professor sob sua tutela, atraves de dife-rentes mecanismos de controle, os medicos higienistas tratarao debuscar formas de controlar e fiscalizar tambem as criangas e, paraisso, criam os chamados Pelotoes de Saude.

Estes Pelotoes possuiam estatutos que deviam ser rigorosamen-te seguidos para a sua organizagao e constituigao, incluindo osdeveres que seriam cumpridos diariamente pelos seus membros eregistrados em fichas que ficariam sob a guarda da professora. Men-salmente essa ficha, devidamente registrada, seria visada pela di-retora da escola, pelo inspetor escolar e pelo medico. Os deveres doPelotao de Saude eram os seguintes:

1. Lavei as maos e o rosto ao acordar.2. Tomei um banho com agua e sabao.3. Penteel os cabelos e limpei as unhas.4. Escovel os dentes.5. Fiz gymnastica ao ar livre.

29.Idem, ibidem.30. Idem, ibidem.Sl.Congresso Brasileiro de Hygiene, 3., Sao Paulo, 1926. Annaes, p. 872.

AEDU

6. Fiz uma evacuacao intestinal, lavando depois as maos comagua e sabao.

7. Brinquei mais de meia hora ao ar livre.8. Tomei um copo de leite.9. Bebi mais de 3 copos d'agua.10. Fiz respiracao profunda ao ar livre.

11. Estive sempre direito, quer de pe quer sentado. So li e es-crevi em boa posicao.

12. So bebi agua no meu copo e so limpei os olhos e nariz com omeu lenco.

13. Dormi a noite passada 8 horas, pelo menos, em quarto ventilado.14. Com! fructas ou hervas bem lavadas. Lavei as maos antes

de comer e mastiguei devagar tudo o que comi.15. Andei sempre calgado e com roupa limpa.16. Nao beijei nem me deixei beijar.

17. Nao cuspi nem escarrei no chao. Ao espirrar ou tossir usei omeu lengo.

18. Nao colloquei na bocca, no nariz e nos ouvidos, nem os dedos,nem o lapis nem nada que estivesse sujo ou pudesse machucar-me.

19. Nao tomei alcool. Nao fumei.

20. Nao menti nem brincando [Grifos nossos]32.

Neste conjunto de deveres a serem cumpridos pelas criangas efiscalizados pelo Pelotao, entre os quais encontramos a ginastica,e possivel perceber toda uma disciplina corporal/higienica cujosnovos habitos vao se enraizando. Em nome da saude, a higieneconsegue incutir uma disciplina corporal na qual figuram os prin-ciples da moral burguesa atraves das nogoes de bem e de mal, decerto e errado, contribuindo, assim, para uma aceitagao "pacifica"do modo de ser e viver burgues; e a disciplina corporal, atraves dasnormas higienicas, e tratada como a grande responsavel pela pa-tria de amanha,

32.0 detalhamento da constituicao de um Pelotao de Saiide, bem como o seu "apa-relhamento", pode ser encontrado em Carneiro Leao, Congresso Brasileiro deHygiene, 3., Sao Paulo. 1926, Annaes, pp. 873-875.

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116 EDUCACAO FiSICA

Nao pode deixar de ser particular preocupagao dos paes e doseducadores a colocagao das criangas sob influxo constante da vidaao grande ar, da helioterapia preventiva e da ginastica moderna ossoberanos e Incomparaveis recursos para o mais perfeito e dura-

douro estado de hygidez33.

Ao final dos trabalhos do III Congresso Brasileiro de Hygiene,o relator geral do tema "formacao de habitos sadios nas criangas",Dr. J. P. Fontenelle, apresentou um parecer no qual evidencia a evo-lugao da higiene que de "coercitiva" passa a ser "educativa". Nestemesmo parecer acentua a necessidade do exercicio jisico como ele-mento fundamental da educagao higienica e enquanto habito sau-davel, e acentua tambem o papel da instituigao escolar na forma-gao destes habitos saudaveis. Afirma ele que

[a] escola tern de actuar de varias formas: pelo meio, como possibi-lidade da execugao dos actos sadios (perfeito fornecimento de agua,boas installacoes de latrina, lavatories convenientementeapparelhados, etc); pelo exemplo da professora instruida em hygienee educada sanitariamente pela organizagao dos trabalhos semattentado aos dogmas da hygiene; e, muito particularmente, peloesforco all feito para inculcar bons habitos de saude, physica epsiquica, entre os quais incluidos os exercfcios physicos ao ar livre34.

O V e ultimo Congresso Brasileiro de Higiene35 promovido pelaSBH nesta sua primeira fase e realizado no Recife, no ano de 1929,

SS.Moncorvo Filho, Congresso Brasileiro de Hygiene, 3, Sao Paulo, 1926, Annaes,p. 908.

34. J. P. Fontenelle, Congresso Brasileiro de Hygiene, 3, Sao Paulo, 1926, Annaes,p. 937. Em 1929, o Dr. Fontenelle publica o livro Fundamentos Jlsiologicos daEducacdo Fisica, que demonstra a preocupagao e o interesse dos medicos comesta area do conhecimento.

SS.Quanto ao IV Congresso Brasileiro de Hygiene, nao encontramos em nossa pes-quisa registros sobre os trabalhos e temas la apresentados. Na leitura da pes-quisa realizada por M. T. Luz, intitulada Medicina e Ordem politico Brasileira,1982, constatamos a mesma dificuldade da autora que, entretanto, nos traz al-guns dados sobre aquele congresso obtidos nos "Archives de Hygiene." O IV Con-gresso Brasileiro de Hygiene foi realizado na Bahia, no periodo de 14 a 20 deJaneiro de 1928, e la "foram apresentados 67 trabalhos. Pelas poucas mogoes

A EDUCACAO FiSICA NO BRASIL 117

tambem confere destaque a tematica do exercicio fisico apresentan-do-o como importante fator eugenico no contexto da educagao do povo.

O Dr. Waldomiro de Oliveira, debatendo o tema "Problemas deSaude Publica", refere-se a ginastica como importante fator de hi-giene pessoal, e aos campos de recreagao e esportes como elemen-tos constitutivos de um efetivo saneamento do meio. Em seu pro-nunciamento, acentua a importancia da educagao, transcrevendoas ideias do Dr. Miguel Couto - um dos mais eminentes medicosda epoca - para dar conta desta importante questao nacional.

Sem educagao nao ha superloridade moral, nao ha Patria (...)Porque nao langamos nos, pacificos, de vez em quando, um vastoprograma de Educagao Nacional, para termos amanha a Patria maisbella, dessa beleza moral que irradia a cultura, a mais prosperaporque da cultura nasce a ambigao, da ambigao a atividade, daatividade a riqueza, e desta multlplicada a prosperidade coletiva [.,.]Eis o que e a saude da raga, a saude da Patria. E a sua cultura [...]no Brasil so ha um problema nacional - a educagao do povo36.

Estas ideias sobre a educagao como fator de regeneragao e re-novagao nacional defendidas pelos medicos, serao incorporadas nodiscurso de pedagogos e estadistas em torno da bandeira da Esco-la Nova, movimento de renovagao do pais pela educagao - uma edu-cagao fisica, intelectual e moral.

Ainda sobre a Educagao Fisica, o V Congresso Brasileiro deHygiene, atraves do pronunciamento do Dr. Waldomiro, atribui-lherelevante papel. Afirma este medico que a Educagao Fisica deve ocu-par um lugar de evidencia e isto se faz necessario uma vez que ela,

que o texto apresenta, percebe-se a importancia do combate a peste, a bouba,a luta antivenerea [...] o que sugere a profundidade da situagao endemica e epi-demica no pais e a necessidade politica de seu controle". M. T. Luz tambemregistra um acentuado debate em torno da ideia de um certo "nacionalismo pa-triota" presente na doutrina sanitarista, "mais ligado a 'eugenia', a 'melhoriada raga', reconhecedor da universalidade das 'grandes instituigoes' [...] entre-tanto [salienta a autora), nem as referencias aos discursos nem as mogoes apre-sentadas nos permitem concluir sobre a natureza das principals linhas em lutaneste campo", pp. 182-183.

36. Congresso Brasileiro de Hygiene, 5., Recife, 1929, Annaes, p. 133.

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118 EDUCAgAO FISICA

racionalmente dirigida, aformosea, fortifica e disciplina o carater eo corpo, dirige a populagao para diversoes sas e assim e por tudoisso constitui fonte de profilaxia real37.

Quanto aos parques destinados a pratica da Educagao Fisica,afirma o Dr. Waldomiro que eles devem ser

distribuidos pelos nucleos da populagao, [pois] garantem nao sopermanente e efetiva atuagao, como podem trazer a melhor coope-ragao nas campanhas sanitarias, pelo atratlvo que exercem princi-palrnente sobre as criangas e a mocidade, que para frequenta-lossubmeter-se-iam facilmente as exigencias de assistencia sanitaria38.

O V Congresso traz ainda as conclusoes votadas no II Congressode Educagao, conclusoes estas que tambem tratam da EducagaoFisica, colocando-a a servigo da educagao sanitaria. Elucidativa denossa afirmagao e a conclusao de numero VI, cujo teor transcreve-mos:

VI - Para orientar a Educagao Sanitaria no paiz, e indispensavelque sejam criados institutos de Educagao Physica, destinados aoprepare de instrutores tecnicos39.

Os profissionais ligados a Educagao Fisica seriam os arautosda saiide, vendedores de forca e beleza, robustez e vigor.

A Educagao Fisica, portanto, passa a integrar as propostasdiscursivas dos medicos higienistas e fica gravada em seus escri-tos, em seus pronunciamentos e em seus congresses. E veiculadatanto nas propostas de tipo eugenico, quanto naquelas que tomama higiene moral e a educagao como fundamento da ordem sanita-ria e, portanto, da ordem estatal.

37.Dr. Waldomiro de Oliveira, 1929, p. 140.38.Congresso Brasileiro De Hygiene, 5., Recife, 1929, Annaes. p. 140.39.Idem, p. 141.

A EDUCACAO FISICA NO Bl

6. EDUCACAO FISICA E EUGENIA: ALCUMAS IDEIAS DEFERNANDO DE AZEVEDO

A leitura das Actas e Trabalhos apresentadas no I CongressoBrasileiro de Eugenia realizado no Rio de Janeiro, no ano de 1929,permite-nos apreender o destaque dado a Educagao Fisica como fa-tor fundamental na regeneragao e revigoramento da raga brasileira.

Apresentando o tema "Da educagao physica como fator eugenicoe sua orientagao no Brasil", o Dr. Jorge de Moraes registra as se-guintes conclusoes:

1 ° - A bem da saiide e desenvolvimento da raga, o 1 °. CongressoBrasileiro de Eugenia appella para a classe medica a fim de apro-fundar a cultura nacional no que diz respeito as bases e orienta-goes scientificas da Educagao Physica a comegar pela escolha domethodo apropriado aos brasileiros e ao seu clima.

2° - O 1° Congresso Brasileiro de Eugenia incita o Governo daRepublica a que com maxima urgencia:

a) organise Escolas Superiores de Educagao Physica para con-veniente prepare dos professores indispensaveis a cultura physicanacional.

b) institua o Conselho Superior de Educagao Physica Nacionalorgao consultivo e orientador do grande problema eugenico.

c) estabelega da melhor maneira possivel a fiscalizagao especia-lizada do caso em todos os estabelecimentos de ensino, associagoesdesportivas e outros centres de cultura physica.

d) promova o prepare de Gymnasios, e campos apropriados agymnastica analytica e jogos ao ar livre para use do povo em geral.

3° - O actual Congresso de Eugenia propora para suas futurasreunioes theses relativas a Educagao Pliysica do povo brasileiro40.

O pensamento medico higienista, em sua vertente eugenica,atravessa o pensamento pedagogico e influencia fortemente a cons-trugao e estruturagao da Educagao Fisica no Brasil. O pensamen-

40.Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929, Actas e trabalhos,p. 320.

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120 EDUCACAO FJSICA

to pedagogico representado por intelectuais como Fernando de Aze-vedo e bastante elucidativo desta afirmagao.

Esse pensador brasileiro, autor de vasta obra sob re a educa-gao nas primeiras decadas do seculo, obra que inclui minucioso eextenso trabalho sobre a Educagao Fisica, manteve estreita relacaocom o movimento eugenista brasileiro, tendo sido um dos 140 mem-bros da Sociedade Eugenica de Sao Paulo, fundada em 15 de Janeirode 191841.

Fernando de Azevedo secretariou sessoes da entidade42, profe-riu conferencias, e inscreveu-se para tomar parte do 1° CongressoBrasileiro de Eugenia43 ao qual ja nos referimos.

Na conferencia proferida na Sociedade Eugenica de Sao Paulo,Fernando de Azevedo estabelece estreita relagao entre Atletica ouEducagao Fisica e Eugenia, considerando a cultura atletica ou Edu-cagao Fisica "um dos problemas mais importantes da eugenia" (AZE-VEDO, 1929, p. 231). Para ele, a eugenia e

a ciencia ou dlsclplina que tern por objetivo o estudo dos fatores que,sob o controle social possam melhorar ou prejudicar rnentalmente,as qualidades raciais das geracoes futuras; ou por outras palavras,o estudo das medidas socials, - economlcas, sanitarias e educacio-nais que influenciam, fislca e rnentalmente, o desenvolvlmento dasqualidades hereditarias dos Individuos e, portanto, das geracoes[Idem, ibidem].

Fernando de Azevedo entend.ia a eugenia como uma cienciacapaz de intervir no meio ambiente fisico, valendo-se dos avangos

41.Idem, p. 54. Sobre o movimento eugenista no Brasil, consultar Renato KEHL,Porque sou eugenista, 1937.

42."A Sociedade Eugenica de Sao Paulo promoveu varias conferencias de propa-ganda [...] (a) terceira conferencia (proferida a 25 de Janeiro de 1919) teve comoorador o Dr. Fernando de Azevedo, atual diretor geral da instrugao PublicaMunicipal e se intitulava 'O segredo de Marathona'. O conferencista dlscorreubrilhantemente sobre a necessidade do desenvolvimento integral do homem afim de construir uma nacionalldade composta de individuos saos e patriotas".Renato Kehl, "A Eugenia no Brasil", em Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Riode Janeiro. Actas e trabalhos, 1928, p. 56.

43.As inscricoes feitas para participar daquele congresso estao registradas noBoletim de Eugenia, 4, 1929.

A EDUCAgAO FISICA NO BRASIL 121

conseguidos pela engenharia sanitaria, para exercer uma agao hi-gienica, educacional e sexual; atraves da eugenia via a possibilidadede adogao de medidas que viessem "proteger a procriagao contra adegenerescencia e pela privagao aos reprodutores doentes, dosmeios de serem prejudiciais a raga" (idem, ibidem).

Sobre esse tema e preciso registrar as ideias do Dr. Renato Kehl,fundador e presidente da Sociedade Eugenica de Sao Paulo. Kehlfoi grande articulador e incentivador do movimento eugenista noBrasil, divulgando o pensamento eugenico atraves de um grandenumero de obras publicadas sobre o assunto e cuja lista de titulosencontra-se no livro Porque sou eugenista44.

Segundo Kehl, "um povo se estiola e degenera quando, no seuseio, os inferiores tern mais filhos do que os capazes e bem dota-dos" {1937, p. 35). A unica solugao para evitar o aprofundamentodesse estiolamento e degeneragao do povo e, para Kehl, a aplica-gao das leis eugenicas. Afirmava ele ser necessario

restringir a proliferacao de infra-homens, de semi-alienados e dedementes, pela higiene do corpo e do espirito (...) (alem de] fazer cornque as pessoas fortes, equilibradas, inteligentes e bonitas, tenhamum maior numero de filhos, para que o numero medio destas pes-soas [...] se eleve progressivamente [idem, pp. 21-26).

Num quadro de "planejamento familiar", necessario para a pro-liferagao de "bons exemplares da especie", e importante registrar aatengao especial que passa a merecer a mulher. Ela deve ser "edu-cada", preparada de modo cientifico para contribuir para esse pro-cesso de regeneragao da raga, exercendo de modo competente a suagrande tarefa biossocial: gerar e criar filhos robustos e saudaveis.

44. A relagao dos titulos das obras publicadas e a seguinte: AFadaHigia, 1° livro;Higiene para uso das escolas primaries, 1925; Biblia da saiide (Higiene paratodos), 1926; Formulario da beleza, 1927; Li$6es de eugenia (edigao espanhola-Pedagogia sexual); Sexo e ciuilizafao (politica eugenica); Eugenia e medicinasocial (Problemas da vida), 1923; Melhoremos e prolonguemos a vida (A valori-zacao eugenica do homem), 1924; A cura dafealdade, 1923; Como escolher umbom marido (conselho as mofas); Como escolher uma boa esposa (Amor experi-mental), 1925; Conduta (Lifdes de etica), 1934; Cartilha da higiene.

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122 EDUCACAO FlSICA

Em Fernando de Azevedo a tematica da mulher apresenta-sesempre voltada para as questoes da maternidade. Em suas pala-vras: "e precise ver na menina que desabrocha, a mae de amanha:formar fisicamente a mulher de hoje e reformar a geragao futura

(1960, p. 85).Essa formagao ou educagao fisica da mulher deve abranger os

"trabalhos manuals, os jogos infantis, a ginastica educativa e osesportes menos violentos (os quais sao) de todo incompativeis coma delicadeza do organismo das maes" (Idem, pp. 82-83).

Como medida eugenica, os exerciclos fisicos teriam entao afungao de construir um corpo feminino apto a suportar a nobre ta-

refa da reprodugao.Asslm, tendo a maternidade futura como horizonte para as

mulheres, Fernando de Azevedo a elas se refere como as "obreirasda vida" evidenciando a importancia de uma cultura fisica que con-

venha ao organismo feminino e a sua fungao.Como exemplo de exercicios fisicos e esportes mats adequados

a "delicadeza do organismo das maes" cita, entre outros, a natagaoe a danga. Quanto a danga, evidencia o fato de ela desenvolver tam-bem a "graga", um dos maiores encantos da mulher. As dangasafirma Fernando de Azevedo,

feitas de extensoes e flexoes continuas [...] farao mais tarde, amulher de maternidades faceis e de belos filhos, aumentado-lhe aflexibilidade do tronco, [dando-lhe] como reflexo natural solidas pa-redes abdominals e o desenvolvime-nto complete da bacia pelviana

[idem, p. 83].

Essas consideragoes de Fernando de Azevedo sobre a adequa-gao do exercicio fisico ao organismo da mulher/mulher-mae repor-tam-nos aquelas feitas no final do seculo por Rui Barbosa que, demodo semelhante, advogava uma Educagao Fisica para a mulherque acentuasse as suas "formas feminis" construindo, desse modo,boas condigoes fisicas para uma maternidade futura.

Em Rui Barbosa tambem estavam presentes teses eugenicasvoltadas a regeneragao da raga e a Educagao Fisica da mulher comoimportante instrumento de educagao eugenica.

A EDUCACAO FJSICA NO BRASIL 123

Como membro da Sociedade Eugenica de Sao Paulo, Fernandode Azevedo sugere a entidade, voltada a aplicagao da eugenia, a ne-cessidade de criar, no Brasil, sociedades de educagao fisica paramogas no molde das existentes, ja ha muito tempo, em paises comoos Estados Unidos da America45. Segundo ele, aquelas sociedadesefetuavam a educagao da mulher, preparando-a para ocupar o seulugar na sociedade e desempenhar, a contento, a sua fungaobiossocial, propagando, no interior da familia, as ideias eugenicase higienicas.

Para os intelectuais da epoca que acreditavam nos poderes daeugenia, colocava-se a necessidade de sua divulgagao e propaga-gao para alem do espago familiar, num outro espago tambem ho-mogeneizador - a escola. Isto porque em paises como os EstadosUnidos tal fato ja vinha ocorrendo, conforme atestam eminenteseugenistas brasileiros, tais como o Dr. Renato Kehl.

Fernando de Azevedo e um dos intelectuais que explicita em seudiscurso a crenga nos poderes da eugenia e, ao mesmo tempo, re-vela uma preocupagao "pedagogica" em traduzi-la para que a so-ciedade, de um modo geral, a compreenda e possa dimensionar asua importancia.

45. Fernando de Azevedo refere-se aqui as sociedades de educagao fisica para mo-gas existentes nos Estados Unidos, chamadas Camp-Fire. Segundo ele, aque-las sociedades "...tern como um de seus intuitos primaciais desenvolver, por meioda higiene e trabalhos de campo, corpos sadios e bem trabalhados, nervos pos-tos a prova para a realizagao do proposito do amor e do papel bio-eduticavo queIhes esta destinado. Estes objetivos que se relacionam visceralmente com a ma-ternidade, mostram a primeira vista [...] ser a eugenia a base admiravel da ins-tituicao americana, por cuja iniciagao cerca de 50 a 70 mil mogas - as chamadasjovens de Camp-Fire - ja usufruem os multiples beneficios do ambiente higie-nico do campo, partilhando o tempo entre os exercicios da bola, remo e nata-gao e estudos praticos sobre a formagao e diregao do lar, diferenciagao entreos efeitos imediatos do meio sobre a mae e as modificagoes determinacias pelascircunstancias do tempo de maneira a poderem, pela robustez do organismo,aprimoramento do carater e cultura de espirito, tornar-se a altura de seus de-veres e responsabilidades. Sao estas instituigoes um dos preciosos frutos emque germinou [...] a ciencia do lar, home-science dos ingleses, que tem exata-mente por fim utilizar as conquistas nos varios ramos de nossos conhecimen-tos para obter a mulher, com o minimo esforgo o maximo de predicados fisicose morals para o preenchimento cabal da missao de mae e educadora circuns-critos a orbita que Ihe balizaram a natureza e as fungoes que Ihe incumbem"(1960, pp. 86-87).

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124 EDUCACAO FfSICA

Afirmava ele ser necessario entender que a eugenia

e tambem a aplicac,ao energica para a conquista da plenitude dasforc.as fisicas e morals [...], e o revigoramento do povo por uma sa-bia politica de educaijao; de defesa sanitaria e de cultura atletica[1960, pp. 231-232].

A cultura atletica ou Educagao Fisica e entendida por Fernandode Azevedo como medida eugenica e, portanto, como elemento daeducagao eugenica e higienica do povo. Ha uma afinidade de suasideias com as teses eugenicas presentes no interior do debate me-dico higienista nas primeiras decadas do seculo XX no Brasil. Eletraduz, tambem, a identidade de suas ideias com outras propos-tas discursivas presentes naquele debate que tomam a higienemoral (bons habitos, bons costumes) assim como a educagao, comoo fundamento da ordem sanitaria. Ou seja, e possivel perceber umadeterminacao das teses medico-higienistas nas formulacoes deFernando de Azevedo sobre a Cultura Atletica ou Educacao Fisica.O trecho que segue e elucidative de nossa afirmacao:

uma vez introduzida pela educagao nos habitos do pais. a prati-ca [da] culturajlsica sustentada durante uma largo, serie de geragoes,depuraria nossa gente de didsteses morbidas, Jortificando-a e enri-quecendo-a, progressivamente pela criagao incessante de individuosrobustos [...] As geragoes de amanha apuradaspor sistema, pela edu-cagao Jisica - afinadora da raga e colaboradora do progresso - im-primiriam assim nas que Ihes sucedessem, e submetidas ao mesmotratamento, o cunho de seu cardter, para que pudessem, dentro doslimites do patrimonio biologico hereditdrio, aperfeigoar ainda mais a

natureza Humana [...]O pais que nao tern educagao fisica (tomada esta expressao no

sentido mais amplo), nao podera jamais erguer seu povo a alturada missao que Ihe cabe na construgao de uma sociedade nova. Oque a tern ma, irregular, empirica, rotineira, continuo plagiato deprocesses arcaicos ou de rebotalhos senis, nao tera senao de arras-tar-se para a derrota no aspero caminho em que se chocam as corn-petigoes da era industrial, que e de energia e tenacidade, rigor eprecisao [1960, p. 216, grifos nossos].

A EDUCACAO FISICA NO BRASIL 125

Atribuindo papel de destaque ao medico nos debates em tornode qualquer problema nacional, particularmente naqueles referen-tes a educacao e a Educagao Fisica, Fernando de Azevedo, assimcomo Rui Barbosa, em conjunturas especificas, acreditava ser pos-sivel viabilizar o progresso e o desenvolvimento do pais atraves deum rigido controle da saude e de uma ampla campanha de educa-gao do povo, campanha esta que se traduziu no movimento escola-novista. Dedicando especial atengao a Educagao Fisica, Fernandode Azevedo esboga com apurado requinte intelectual uma obra so-bre a importancia da Educagao Fisica para toda a sociedade e, par-ticularmente, para a instituigao escolar.

Neste trabalho, publicado pela primeira vez em 191646, e rece-bendo complementagoes e revisoes posteriores, sendo reeditadoainda por mais duas vezes, em 1920 e 1960, encontramos um densoreferencial baseado nas ciencias biologicas como o suporte para odesenvolvimento da Educagao Fisica brasileira.

Nesta obra, Fernando de Azevedo estabelece estreita relagaoentre Educagao Fisica e Medicina, e, valendo-se das palavras domedico frances Philipe Tissie, afirma que o professor de EducagaoFisica

deve ter quase os mesmos conhecimentos que o higienista, naobastando ser um pedagogo, mas sendo mister que seja um medico,nao bastando que a sua competencia se estenda aos mais solidosconhecimentos didaticos, mas importando vitalmente que a suapropedeutica abranja noc.6es seguras de higiene e anatomo-flsiolo-gia [...] porque na sua formula precisa [...] a educa?ao fisica e hi-giene e higiene e medicina [Philip Tissie apud AZEVEDO, 1960, p. 91].

46. No prefacio da terceira e ultima edigao desta obra, datada de 1960, Fernandode Azevedo assim se expressa: "Quando apareceu este livro, em 1920, era ain-da muito jovem e ja contava com cinco anos de estudos sobre a educagao fisicae de lutas pela sua organizagao e difusao no pais. Essa campanha eu a iniciaracom todo o calor dos vinte e um anos, em 1915, propondo e obtendo a criagaode uma cadeira de educagao fisica no Ginasio do Estado da Capital de MinasGerais e disputando-a em concurso como prova publica da importancia queatribuia a essa parte, tao menosprezada da educagao geral. Referindo-se a esseruidoso concurso, escreveu Lindolfo Azevedo em 'O Pais', do Rio de Janeiro, umbelo artigo que, depois de haver apreciado a tese que eu defendera, terminavaele com essas palavras: 'a cadeira nao Ihe foi dada, mas o livro ficou"1 (p. 9).

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126 EDUCACAO FISICA

A partir da definicao dos conhecimentos necessaries a forma-gao do professor de Educagao Fisica colocada pelo Dr. Tissie e as-sumida por Fernando de Azevedo, e possivel perceber a determina-cao e hegemonia dos conhecimentos anatomofisiologicos e higienicosoriundos do pensamento medico, naquela formagao profissional.Este fato e tambem perceptivel em outros momentos da obra deFernando de Azevedo sobre a Educagao Fisica.

Nossa afirmagao pode ser constatada na minuciosa analise quefaz o autor citado acerca das escolas ou metodos de ginastica sur-

gidos na Europa do seculo XIXEm suas analises sobre as escolas alema, francesa e sueca47,

consideradas as primeiras sistematizagoes cientificas sobre o exer-cicio fisico, esbogam-se os contornos de uma Educagao Fisica comosinonimo de saude fisica e moral, contornos fornecidos pela fisio-logia, anatomia, biologia como ciencias assim como pelos medicos,biologos, fisiologistas e anatomistas como profissionais e portado-res "legitimos" daquele conhecimento considerado "cientifico".

Por seu lado, Fernando de Azevedo demonstra profundo conhe-cimento destas ciencias ao discutir a superioridade de uma escolaem relagao a outra, assim como demonstra tambem uma estreitavinculagao e concordancia com as conclusoes de medicos, fisiolo-gistas e anatomistas que se dedicavam ao seu estudo.

A aproximagao com estes profissionais e a apropriagao daque-le conhecimento podiam ser justificadas pela "busca de status cien-tifico" para a Educagao Fisica, fazendo com que Fernando de Aze-vedo acentuasse as virtudes das ciencias biologicas quando faziareferenda as escolas de ginastica.

Esta "busca de status cientifico" para a Educagao Fisica naopode ser tratada como via de mao unica e positiva, em si, porquecientifica. Se, de um lado, esta busca contribuiu para conferir cre-

47. Fernando de Azevedo refere-se tambem a outras manifestagoes e estudos so-bre o exercicio fisico, assinalando o trabalho desenvolvido pelos ingleses sobreos esportes e pelos americanos sobre a calistenia, voltada para a mulher. Paranossos estudos, delimitamos apenas as suas analises em torno das tres gran-des escolas, ou seja, aquelas que constituem a genese do movimento ginasticoeuropeu e mundial.

A EDUCACAO FISICA NO BRASIL 727

dibilidade e aceitagao para a Educagao Fisica, seja no ambito es-colar, seja fora dele, de um outro langou as bases para a elabora-gao de uma concepgao biologica e medica de Educagao Fisica, ten-do, portanto, como objeto de trabalho, um corpo biologico destituidode historicidade.

Neste sentido a argumentagao de Fernando de Azevedo sobrea superioridade da ginastica sueca em relagao a ginastica alema ea francesa elucida a nossa reflexao. Tomando por base para a suaargumentagao as consideragoes feitas por anatomistas, fisiologis-tas e, em especial, pelo medico Tissie - para quern a superioridadeda ginastica sueca em relagao as outras deve-se ao fato de estar elaassentada em bases fisiologicas e educativas -, Fernando de Aze-vedo assim se expressa:

[a ginastica] de Ling, educador e poeta sueco e essencialmente fi-siologica; [...] teve uma longa gestac.ao e originou-se de maturadasexperiencias e do desejo de restituir a saude ao povo escandinavo[...] [de] educar a juventude escolar, restaurando-lhe as fonjas, de-senvolvendo-lhe o organismo a fim de, antes de tudo, tornar o ho-mem, na frase de Emerson, "um bom animal" [1960, pp. 125-126].

Estes argumentos - proprios a uma concepgao anatomofisiolo-gica de Educagao Fisica - pontuam as analises de Fernando deAzevedo sobre as escolas de ginastica, seja para consagra-las comoreceitas de saude, seja para critica-las como maleficas e prejudi-ciais ao desenvolvimento "harmonioso" dos individuos.

Observando as diferengas existentes entre a ginastica sueca ea alema, Fernando de Azevedo explica porque a primeira e supe-rior a segunda:

a) [...] a ginastica alema tende a fortalecer, sobretudo, os mus-culos dos bragos e do peito, descurando os segmentos inferiores,de cujo desenvolvimento o metodo de Ling cuida tanto como dossuperiores, de acordo com os principios da estetica e da fisiologia;

b) [...] a ginastica de aparelhos (barra fixa, paralelas, trapezio eaneis), desenvolve a musculatura sob a forma de musculos curtos[...] sobretudo os peitorais, atrai as omoplatas para diante, preju-

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128 EDUCACAO FJSICA

dicando a amplitude da caixa toraclca, ao passo que a sueca, de-senvolvendo os musculos sob a forma de musculos compridos [...]com excecao dos flxadores da omoplata contribui admlravelmentepara a funcao respiratoria.

c) [...] na ginastica de aparelhos [alema] predomina o trabalhoestatico, que anquilosa e tende a imobilizar as articulacoes,enrijando os musculos em posicao determinada, que val produzlrmais tarde os movimentos de contragao dlnamica; na ginasticasueca, ao contrario, e nos exercicios de maos livres em geral (flexao,extensao, rotagao, clrcundacao, pronacao e supinagao), preponde-ra o trabalho dinamico, que e o mais vantajoso de todos, porque domesmo tipo do movimento natural utilizado para os diferentes atosda vida;

d) e, finalmente, porque o sistema de aparelhos, [ginastica ale-ma] congestionando as epifises osseas, deforma e abobada o corpo,contribuindo para o abaixamento da estatura, quando a ginasticasueca, longe de ter estes efeitos congestionantes e de desenvolvermusculos nodosos, macicos e espessos, que o aparelho alcanca,tende, ao contrario, ao desenvolvimento harmonico do corpo e arealizacao da atitude elegante e esbelta [idem, pp. 128-129].

As vantagens e desvantagens da utilizagao de uma ou outra es-cola de ginastica sao levantadas a partir de minuciosa analise ela-borada com argumentos oriundos das chamadas ciencias biologicas.O conhecimento sobre o corpo humano em movimento limita-se averificagao de possibilidades musculares e articulares estando, por-tanto, reduzido a apenas um de seus aspectos: o biologico.

As analises de Fernando de Azevedo sobre as diferencas exis-tentes entre as escolas de ginastica concentram-se tambem naspossiveis contribuigoes das mesmas para o avango da EducagaoFisica. Neste sentido, procura evidenciar na escola francesa, numprimeiro momento, as ideias centrals da obra de seu fundadorAmoros por considera-la bastante completa e por voltar-se para a"renovacao" fisica e viril do povo frances.

A ginastica como fator de regeneragao fisica e viril de um povoaparece, nesta analise inicial, como um dos aspectos relevantes daobra de Amoros. Contudo, no desenvolvimento de sua analise des-

A EDUCACAO FJSICA NO BRASIL 129

ta obra, Fernando de Azevedo incorpora os conselhos da medicinae sem negar os esforgos e as ideias de Amoros em torno do exerci-cio fisico como meio moralizador, registra aspectos que sugerem umolhar mais "cientifico" sobre o exercicio fisico. E o caso, por exem-plo, da utilizagao de todos os aparelhos de ginastica e de esportesviolentos, contra-indicados para os meninos, segundo a medicina.Para complementar estas ideias acerca da ginastica amorosianaFernando de Azevedo valeu-se dos estudos do fisiologista francesGeorge Demeny, para quern aquela ginastica era excessivamentemilitar e atletica devendo modificar-se para melhor atender a infan-cia e as mulheres (idem, p. 100).

Estes breves registros das ideias centrais de Fernando de Aze-vedo acerca das diferengas entre as escolas de ginastica demons-tram, sobretudo, o enorme espago ocupado pelas ciencias bio-logicas, assim como pelas opinioes e conclusoes de medicos efisiologistas em suas consideragoes.

A importancia que assumem estas ciencias e estes profissionaisno pensamento de Fernando de Azevedo sobre a Educagao Fisicanao se restringem exclusivamente as suas analises sobre as esco-las de ginastica. Esta importancia esta na base da concepgao deEducagao Fisica que tern o autor, quer no ambito escolar, quer foradele.

Conforme preconizavam ilustres pedagogos dos anos de 1920,e Fernando de Azevedo era um deles, a Educagao Fisica na escoladeveria ter na fisiologia o seu ponto de apoio, "sua pedra de toque",pois, a partir de um conhecimento seguro desta ciencia, poderia sero professor "o mensageiro feliz e certo [dos] grandes beneficios daginastica" (idem, p. 188).

A colaboragao incessante entre o medico e o professor, espe-cialmente o professor de ginastica, torna-se fundamental para esteautor pois

como conhecer o perfeito estado fisiologico da crianca, sem a intro-ducao do medico na escola, que e alias, absolutamente Indispensa-vel, nao so do ponto de vista higienlco ou profilatico, como tambemsob o ponto de vista educative? [idem, p. 191].

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130 EDUCACAO FJSICA

Percebe-se aqui tambem a identidade entre o discurso peda-gogico e o medico. Os medicos tambem reivindicaram a necessida-de de sua presenga no espago escolar, o carater indispensavel dosseus servigbs para o "bom desenvolvimento" do ensino, para a for-magao dos habitos sadios nas criangas... etc. E Fernando de Aze-vedo foi grande defensor dessas reivindicagoes. Para ele a aula deEducagao Fisica na escola nao poderia acontecer sem a presengado medico. A sua concordancia com a necessidade do medico naescola, e em especial como orientador dos trabalhos a serem desen-volvidos pela Educagao Fisica, encontra respaldo nas formulagoesvotadas no Congresso Internacional de Educagao Fisica, reunido emParis em 1913, as quais transcrevemos:

1° - antes de serein submetidos a educacao fisica todos os me-ninos e meninas serao examinados pelo medlco-inspetor, que osclassificara em normals e retardados;

2° - os meninos normals (ou por outra parte, os regulares fisl-cos) serao confiados ao educador fisico sob a vigilancia efetiva domedico inspetor,

3° - Entre os retardados, aqueles aos quais for recomendavel umtratamento cinesico serao confiados ao medico especialista cinesio-terapeuta [idem, p. 197, grifos nossos].

Estas formulagoes nos confirmam a ideia de que a Educagao Fi-sica na escola e para Fernando de Azevedo, uma questao medica enao pedagogica, pois, quem define o conteudo e "permite" a criangaparticipar ou nao de uma aula, e o medico. O professor desempenhaum papel secundario, digamos assim, um papel de auxiliar direto, umpapel de executor de tarefas pensadas e fiscalizadas pelo medico.

O grande objetivo a ser alcangado atraves desse mutuo auxilioentre medicos e professores de ginastica (tanto os primeiros deve-riam conhecer os metodos de ensino, como os segundos estudarexaustivamente as ciencias biologicas), conforme Fernando de Aze-vedo, era assegurar com eficacia o melhoramento da raga (idem,p. 199).

O melhoramento da raga, todavia, implicava questoes nao ape-nas de ordem biologica, mas tambem, e principalmente, questoes

A EDUCACAO FISICA NO BRASIL 131

de ordem moral (bons costumes, bons habitos, inclusive sexuais),a serem especialmente tratadas na puberdade "periodo das ilusoesperigosas, dos desejos inconfessados e inconfessaveis", conformeafirma Fernando de Azevedo que, assim como Rui Barbosa, perce-be a Educagao Fisica como excelente instrumento de educagao naoapenas fisica mas, fundamentalmente, moral,

a educagao fisica torna-se uma salvaguarda da moralidade privadasobretudo no momento da puberdade, nesta idade critica, em queas forgas por longo tempo armazenadas fazem, de repente, simul-taneamente, a explosao de uma seiva exuberante que tende a con-centrar-se sobre os orgaos da geracao e que o exercicio reparte portodas as partes do corpo hurnano, destruindo ou prevenindo, pelafadiga dos membros e pela excitacao muscular, as perigosas ten-dencias da epoca pubertaria. [...]

Nao se fazendo [na puberdade] uma derivacao energica pelos es-portes e pela ginastica nas horas que o estudo deixa livre, a excita-cao genital criaria todas as perversoes sexuais [idem, pp. 44 e 189].

A partir destas colocagoes, e possivel perceber as razoes quelevam Fernando de Azevedo a acentuar as ciencias em que devebasear-se o professor de ginastica. Ele nos diz que sao muitas asciencias, e o professor "nao deve atender apenas as exigencias daanatomia e da estetica, mas tambem as da Jisiologia elementar, dahigiene dos exercicios corporals, da analise dos movimentos, dapedagogia e da moral" (idem, p. 151, grifos nossos).

Esse amplo espectro de saber deveria, entao, formar um pro-fessor que pudesse ser a um so tempo psicologo e higienista. Reu-nindo tao amplos conhecimentos, o professor de ginastica poderia,desse modo, observar cientificamente as condigoes tanto psiquicasquanto fisicas de seus alunos. Essas observagoes nao poderiam serobra do acaso, ou do espontaneismo. Deveriam ser registradas emuma "folha biologica", cuja finalidade seria aperfeigoar e corrigir ascondigoes dos educandos que foram observadas.

Os resultados empiricos do numero de vezes que uma crianga,um adolescente ou um adulto sao capazes de executar um deter-minado exercicio - "resultado que a folha biologica registra" - vi-

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riam a constituir a referenda fundamental para essa Educagao Fi-sica, referenda essa que serviria de paradigma para todo o seu de-senvolvimento na escola. E o professor, esse "medico auxiliar", de-veria, entao, ser alguem capaz de

constatar [...] pelos processes varies de mensuragoes corporals, osresultados de seu ensino [...] fazer [...] o registro dos beneficios queprovieram dos exercicios, e dos inconvenientes que determinaram[idem, p. 91].

Dentro desta concepgao biologica de Educagao Fisica baseadana abordagem positivista de ciencia e no seu metodo da observa-gao e comparagao de resultados, a formagao das series de alunospara as aulas dessa materia deveria, tambem, obedecer a criteriosbiologicos, ou seja o criteria da equivalencia jisica resultante da ida-de. do coeficiente de robastez, do indice do perimetro tordxico e dacon/brmacdo constitutional de cada urn (idem, p. 185, grifos nossos).

A ideia de homogeneizagao das classes escolares a partir decriterios biologicos e psicologicos, criterios esses mensuraveis ecomparaveis, nao foi exclusivamente da Educagao Fisica. Foi, pelocontrario, o criterio adotado na construgao de uma outra escola apartir do ideario escolanovista.

A escola, particularmente a escola primaria, passou a ser oespago da homogeneizagao a partir de resultados obtidos com asfichas medicas, pedagogicas, com os testes psicologicos e de esco-laridade. Os resultados deste volumoso numero de fichas e testesclassificavam as criangas em debeis, inteligentes, retardados, dis-tribuindo-as em lugares e espagos sociais determinados na escolae na sociedade (NUNES, 1984, p. 545).

A Educagao Fisica desenvolvida no ambito escolar, ou fora dele,acentua as representagoes que a sociedade tem dos individuos, sejado seu corpo - entendido como corpo biologico, a-historico; seja desua moral - entendida como amor ao trabalho, a ordem, a discipli-na; seja de seu espago na sociedade - entendido como resultado doesforgo individual, da tenacidade, da vontade.

Fruto da biologizagao e medicalizagao das praticas sociais, aEducagao Fisica foi estruturada a partir do ideario burgues de ci-

A EDUCACAO FlSICA NO BRASIL 133

vilidade, significando, de um lado, conquista individual e magicade saude fisica, e de outro, disciplinarizagao da vontade. Dessemodo, constituiu-se em importante instrumento de construgao daordem, uma vez que, como afirma F. Azevedo, "um organismo sa-dio e de musculos adestrados e de certo mats facil a moralizar doque uma maquina humana enfraquecida e emperrada" (1960,p. 238).

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C O N S I D E R A g O E S F I N A I S

j Tm projeto burgues de civilidade e esbogado para o Brasil al_X partir da segunda metade do seculo XIX. Seu desenho, po-rem, torna-se de fato visivel com a proclamagao da Repiiblica, e so-mente nas decadas iniciais do seculo XX e que se pode apreciar oscontornos finals desse projeto. Os medicos higienistas, atraves deseu discurso e de sua pratica, auxiliam de forma decisiva na suaconcepgao e execugao, por meio de inumeros rnecanismos de con-trole das populagoes. Tudo em nome da saude, da ordern e do pro-gresso. Entre os mecanismos por eles utilizados, destaca-se a Edu-cagao Fisica, disciplinadora dos corpos e da vontade... apologia dasaude fisica como responsabilidade individual.

Assim, a Educagao Fisica, idealizada e realizada pelos medicoshigienistas, teve por base as ciencias biologicas, a moral burguesae integrou de modo organico o conjunto de procedimentos discipli-nares dos corpos e das mentes, necessario a consecugao da novaordem capitalista em formagao. Acentuou de forma decisiva o tra-gado de uma nova figura para o trabalhador adequado a essa novaordem: um trabalhador mais produtivo, disciplinado, moralizado e,sobretudo, fisicamente agil.

Fruto da biologizagao e naturalizacao que dirige a construgaoda nova sociedade a Educagao Fisica foi utilizada pelos medicos hi-gienistas como instrumento de aprimoramento da saude fisica e mo-

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136 EDUCAQAO FJSICA

ral, acoplada aos ideals eugenicos de regeneragao e purificagao daraga. Ela se fez protagonista de um corpo saudavel, robusto, disci-plinado, e de uma sociedade asseptica, limpa, ordenada e morali-zada, enquadrada, enfim, nos padroes higienicos de conteudo bur-gues. Podia ser a "receita" e o "remedio" para a cura de todos os"males" que afligiam a caotica sociedade brasileira capitalista emformagao.

Objeto do saber e do fazer medico, a Educagao Fisica atuou na"preparagao" do corpo feminino para o desempenho de sua nobretarefa: a reprodugao dos filhos da patria, reforcando, assim, oideario burgues sobre espagos e papeis socials permitidos a mu-Iher ocupar e desempenhar. Atuou, tambem, tanto na "preparagao"do corpo do soldado, fazendo-o litil a patria, quanto no corpo dotrabalhador manual, tornando-o mais litil ao capital.

A Educagao Fisica das criangas - e isso e possivel afirmar ten-do em vista os documentos e obras analisados - sempre foi um polode atengao especial dos medicos higienistas. Exigindo a sua obri-gatoriedade desde os primeiros anos de escolaridade, desejaramfazer do exercicio fisico um habito capaz de gerar saude em si mes-mo, disciplinar os gestos e a vontade atraves dos exercicios fisicosdesde cedo e, em nome da saude, incutir a ideia de que da discipli-na fisica individual depende o futuro da patria.

Nas paginas deste trabalho foram evidenciados os elementosconstitutivos de uma visao biologizada da Educagao Fisica, e naanalise do processo de construgao desta visao, o pensamento me-dico higienista revelou-se como_,a expressao mais acabada dabiologizagao e naturalizagao nao apenas da Educagao Fisica, masdo Homem e da sociedade em geral, a qual surge simultaneamenteao processo de desenvolvimento do capitalismo mundial, com suasrepercussoes e adaptagoes no Brasil.

A Educagao Fisica no periodo analisado (1850-1930) apresen-tou-se como "cientifica" e, portanto, convincente, uma vez que pra-ticas socials que se apresentassem como tal, gozavam de status eeram assimiladas como hierarquicamente superiores. Atendeu, noseu tempo e espago, aos criterios de cientificidade propostos pelaabordagem positivista de ciencia (hegemonica no periodo), e foi res-peitada e aclamada por assim se apresentar. Cabe salientar que

CONSIDERACOES FINAIS 137

expressoes do pensamento pedagogico brasileiro, tais como RuiBarbosa e Fernando de Azevedo, nao pouparam paginas em seusescritos sobre a Educagao Fisica, para evidenciar o carater "cienti-fico" a ela emprestado pelas ciencias biologicas e pelos medicoshigienistas. Sintonizados com os valores dominantes do seu tem-po, o tempo da crenga na ciencia que experimenta, comprova, ge-neraliza e descobre leis, estes pensadores, de fato, promoveram aEducagao Fisica e tematizaram o corpo biologico ao mergulharemnas propostas higienistas de forte carater disciplinar. Assim, mos-traram o corpo a sociedade, que passa a querer "educa-lo".

A diregao dada a Educagao Fisica no periodo analisado naomerece elogios, todavia precisa ser compreendida de modo maisabrangente para que nao seja reproduzida nos dias de hoje valen-do-se, apenas, de nova roupagem. E perguntamos se os apelos damidia as formulas freneticas de "cuidar do corpo", hoje, nao seriama nova roupagem de um higienismo e eugenismo pos-moderno?

Aqui colocamos o nosso ponto final... mas a resposta a estapergunta indica que a problematica tratada apenas comega a serdiscutida.

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