11
Artigos Vol. 4N~ 1[10]· marçode1993 Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte Ubiratan D'Ambrosio* o que é Educação Matemática o que vem a ser Educação Matemá- tica? Um ramo da Educação? Sim. Não se pode tirar Educação Matemática de seu lugar muito natural entre as várias áreas da Educação. Mas não seria tam- bém uma especialização da Matemáti- ca? Claro. Tem tudo a ver com Mate- mática. E por que, então, distingui-Ia como uma disciplina autônoma? Não poderíamos simplesmente falar em Educação Matemática como o estudo e o desenvolvimento de técnicas ou mo- dos mais eficientes de se ensinar Ma- temática? Ou como estudos de ensino e aprendizagem da Matemática? Ou comometodologia de seu ensino no sen- tido amplo? Claro, não se pode negar que a Educação Matemática aborda to- dos esses e inúmeros outros desafios da Educação e, portanto, é tudo isso. Não obstante, há certas especificidades que tornam a Educação Matemática mere- cedora de um espaço próprio. A única disciplina que chegou, nos sistemas educacionais, a atingir um caráter de universalidade foi a Mate- mática. Embora, a nosso ver, a descon- textualização da Matemática seja um dos maiores equívocos da Educação moderna, o que efetivamente se cons- tata é que a mesma Matemática é en- sinada em todo o mundo, com algumas variantes que são bem mais estraté- gias para se atingir um conteúdo uni- versalmente acordado como devendo ser a bagagem de toda criança que pas- sa por um sistema escolar. A Matemá- tica é a única disciplina escolar que é ensinada aproximadamente da mesma maneira e com o mesmo conte)Ído para todas as crianças do mundo. E a única disciplina que permite um estudo com- paràtivo avaliando rendimento esco- lar, onde os instrumentos de avaliação são os mesmos (como foi o Second In- ternational Study of Mathematics Education - SIMS e deverá ser o Third International Study of Mathe- matics and Science - TIMS). A crítica a essa postura está na origem do Pro- grama Etnomatemática. Tem se procurado dar às ciências o mesmo caráter de universalidade, so- bretudo devido ao seu crescente estilo matemático. Mas as dificuldades têm sido enormes. O TIMS está procurando fazer face a essa dificuldade, e o que se almeja é a elaboração de instrumentos únicos de avaliação, integrando a Ma- temática às ciências. Há dificuldades enormes, mas a integração parece ser a tendência. Em outros termos, é pos- sível que vejamos a Matemática desa- parecendo como disciplina autônoma nas avaliações globais. E, conseqüente- mente, nas avaliações em geral. Apa- rentemente-o final do parágrafo ante- rior contradiz o tom do início deste trabalho. Se a Matemática é de tal for- ma abrangente e a Educação Matemá- tica tem tantas especificidades, como pensar na eliminação de testes especí- ficos de Matemática, na sua integração * Professor do Instituto de Matemática, Esta- tística e Ciência da Computação da UNICAMP. 7

Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

ArtigosVol. 4N~1[10]· marçode1993

Educação Matemática: Uma Visãodo Estado da Arte

Ubiratan D'Ambrosio*

o que é EducaçãoMatemática

o que vem a ser Educação Matemá-tica? Um ramo da Educação? Sim. Nãose pode tirar Educação Matemática deseu lugar muito natural entre as váriasáreas da Educação. Mas não seria tam-bém uma especialização da Matemáti-ca? Claro. Tem tudo a ver com Mate-mática. E por que, então, distingui-Iacomo uma disciplina autônoma? Nãopoderíamos simplesmente falar emEducação Matemática como o estudo eo desenvolvimento de técnicas ou mo-dos mais eficientes de se ensinar Ma-temática? Ou comoestudos de ensino eaprendizagem da Matemática? Oucomometodologia de seu ensino no sen-tido amplo? Claro, não se pode negarque a Educação Matemática aborda to-dos esses e inúmeros outros desafios daEducação e, portanto, é tudo isso. Nãoobstante, há certas especificidades quetornam a Educação Matemática mere-cedora de um espaço próprio.

A única disciplina que chegou, nossistemas educacionais, a atingir umcaráter de universalidade foi a Mate-mática. Embora, a nosso ver, a descon-textualização da Matemática seja umdos maiores equívocos da Educaçãomoderna, o que efetivamente se cons-tata é que a mesma Matemática é en-sinada em todo o mundo, com algumasvariantes que são bem mais estraté-gias para se atingir um conteúdo uni-versalmente acordado como devendoser a bagagem de toda criança que pas-

sa por um sistema escolar. A Matemá-tica é a única disciplina escolar que éensinada aproximadamente da mesmamaneira e com o mesmo conte)Ído paratodas as crianças do mundo. E a únicadisciplina que permite um estudo com-paràtivo avaliando rendimento esco-lar, onde os instrumentos de avaliaçãosão os mesmos (como foi o Second In-ternational Study of MathematicsEducation - SIMS e deverá ser oThird International Study of Mathe-matics and Science - TIMS). A críticaa essa postura está na origem do Pro-grama Etnomatemática.

Tem se procurado dar às ciências omesmo caráter de universalidade, so-bretudo devido ao seu crescente estilomatemático. Mas as dificuldades têmsido enormes. O TIMS está procurandofazer face a essa dificuldade, e o que sealmeja é a elaboração de instrumentosúnicos de avaliação, integrando a Ma-temática às ciências. Há dificuldadesenormes, mas a integração parece sera tendência. Em outros termos, é pos-sível que vejamos a Matemática desa-parecendo como disciplina autônomanas avaliações globais. E, conseqüente-mente, nas avaliações em geral. Apa-rentemente-o final do parágrafo ante-rior contradiz o tom do início destetrabalho. Se a Matemática é de tal for-ma abrangente e a Educação Matemá-tica tem tantas especificidades, comopensar na eliminação de testes especí-ficos de Matemática, na sua integração

* Professor do Instituto de Matemática, Esta-tística e Ciência da Computação da UNICAMP.

7

Page 2: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

Educação Matemática

às ciências e no seu possível desapare-cimento dos currículos escolares comodisciplina autônoma? Na verdade nãohá contradição. Há, sim, um novo tipode desafio que é o reconhecimento dasua presença total no sistema escolar,da sua penetração em todas as cama-das da sociedade, mas sem uma identi-dade disciplinar restritiva. É óbvioqueestaremos assim encaminhando nos-sas reflexões em direção a uma pós-dis-ciplinaridade. Surpreendentemente, aHistória nos ensina que essa fase estámuito próxima da pré-disciplinaridadeque prevaleceu até o século passado eque atinge primeiramente os setoresdo conhecimento de maior abrangên-cia, comoé ocaso da Matemática. Oseudesaparecimento dos sistemas escola-res reflete a sua integração total nasociedade. A artificialidade de um tra-tamento disciplinar nos sistemas esco-lares se torna incompatível com suapresença muito natural no dia-a-dia. Omesmo se passou comofalar e deverá sepassar coma redação, e sem dúvida esseserá oveículode entrada da Informáticano sistema escolar até atingir sua poten-cialidad~ plena. Essa interpenetraçãodas disciplinas transforma radicalmen-te o papel dos educadores de transmis-sores de conhecimento para facilitado-res de aprendizagem. Esse novo papel éevidente no ambicioso Projeto 2.061, daAmerican Association for the Advance-ment ofScience (AAAS:1989).

Matemática como umaforma de conhecimentoe algumasconsiderações sobrecognição

AMatemática representa a essênciado que é chamado pensamento moder-

no e que a partir do século XVII sealastrou por todo o mundo com cres-cente importância. Essa essência, quealguns se sentiriam mais confortáveisse eu dissesse simplesmente essênciado que é chamado ciência moderna etecnologia em vez de pensamento mo-derno, se manifesta a partir do séculoXVIII. Hoje é impossível trabalhar emciências biomédicas, por exemplo, semum instrumental matemático sofisti-cado. A sociedade como um todo estáimpregnada de Matemática, a ponto deum famoso artigo publicado na décadade setenta na revista The Economist deLondres ter, como título, "You can't bea citizen of the XXthcentury withoutMathematics". Com o advento da In-formática, essa importância ainda seacentua. E isso não é menos verdadenas chamadas ciências humanas. Asvertentes mais ricas da Antropologiatêm na Matemática um importanteinstrumento de trabalho, bem como aPsicologia. Da mesma maneira a His-tória, incluída a Pré-História e a Paleo-grafia, assim como a Lingüística. E aHistória da Arte recorre freqüente-mente à Matemática, assim como aprópria arte. Estaremos entrando noque Michelle Emmer (1992) chama deum novo renascimento. Igualmente, asreligiões sempre têm tido muito a vercom a Matemática, sendo as adivinha-ções (técnicas divinatórias que nosaproximam dos deuses, que são aque-les que conhecem o futuro) quase sem-pre baseadas em idéias matemáticas.Existe mesmo uma Geometria Sagra-da e uma Aritmética Sagrada. Não en-contraremos, no cotidiano de todos ospovos e de todas as culturas, atividadesque não envolvam alguma forma deMatemática. Repito, alguma forma deMatemática. Mas não necessariamen-te a Matemática que está nos currícu-

8

Page 3: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

los. E assim reconhecemos o espaçopara a Etnomatemática.

Têm ocorrido, ao longo da História,grandes polêmicas sobre a natureza daMatemática, causando as mais acirra-das controvérsias. Conseqüentemente,a Matemática é também, de todos ossetores do conhecimento, aquele. qu~causa mais controvérsias fIlosóficas. Eaquele onde há maior discordânciaepistemológica. Desde posições radi-calmente construtivistas e empiricis-tas naturais, até posições de idealistaspuros e materialistas irredutíveis, osespecialistas em Filosofia da Matemá-tica têm sido intransigentes em suasposições. A chamada Filosofia da Ma-temática talvez seja a área que sugereas maiores contradições nos vários ra-mos da Filosofia. Desde a Antigüidadegrega, na qual os impasses do irracio-nal e do infinito foram dominantes, atéos dias de hoje, as correntes filosóficastêm encontrado na Matemática suasmelhores armas para o confronto. Opróprio conceito de verdade é associadocomMatemática, e isso tem influênciasnotáveis na educação do indivíduo,como observa Borba (1992), chegandoao ponto de sistemas políticos e sobre-tudo econômicos repousarem sobre teo-rias matemáticas.

Não se pode negar que ao se fazer oensino de uma disciplina com caracte-rísticas tão peculiares quanto a Mate-mática, abre-se enorme espaço paraconsiderações específicas de cognição,de organização intelectual e social doconhecimento e de política, enfim, dasformas de explicitação, de entendimen-to e de manejo da realidade. Não é semrazão que a raiz da qual se origina apalavra Matemática, isto é, a raiz gre-ga matemata, significa justamenteisto: explicação, entendimento, manejoda realidade, objetivos muito mais am-plos que o simples contar e medir. Na

Pro-Posil -

verdade, através do estudo da Mate-mática se alcançava um estágio"supe-rior",epor issoosestudos matemáticos- no sentido de teorias abstratas comoas organizadas pelos gregos - eramdestinados à preparação das elites di-rigentes, como se lê claramente naRepública de Platão.

A complexidade da Matemática, so-bretudo por suas relações com outrasáreas de conhecimento e por suas im-plicações sociais, políticas e econômi-cas, justifica, desde a Antigüidade, re-flexões, teorias e estudos sobre seu en-sino. Embora matemáticas em formasdiversas, na verdade etnomatemáti-cas, sejam partes de todas as culturas,elas têm uma posição privilegiada nomundo grego. São exercícios de refle-xão por excelência, a forma mais altado pensamento, algo como o jogo tãobem ilustrado por Hermann Hesse nasua obra maior O Jogo das Contas deVidrol.

Algumasconsiderações políticas

A importância da Matemática foiefetivamente firmada no sistema esco-lar com o avanço da ciência moderna eda tecnologia, sobretudo a partir doséculo XVIII, e ganhou um importanteespaço na educação quando se atingiua modernidade européia. No séculopassado as preocupações com o ensinoda Matemática tiveram grande impul-so graças sobretudo à obra de FelixKlein. Na verdade, foi também nessaépoca, meados do século XIX, que aEducação se estabeleceu como umadisciplina acadêmica. Com o adventoda educação para todos, conseqüêncianatural da industrialização, e o apare-cimento da universidade moderna na

9

Page 4: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

Educaçéú> Matemática

Alemanha, surgiram as primeiras cá-tedras de Educação. Quase ao mesmotempo foram iniciadas as reflexões so-bre a Matemática como um assuntoescolar com especificidades tais que sejustificavam reflexões especializadassobre seu ensino.

A importância da industrialização éevidente no esforço de Felix Klein, umdos mais distinguidos matemáticos doséculo passado, consagrado por suaspesquisas em áreas abstratas de Aná-lise. Ele defende a integração das vá-rias modalidades de escolas superioresna Alemanha justamente com o objeti-vo de incentivar as ciências e a indús-tria, e vê na Matemática Aplicada oelemento essencial para isso. Assimprega uma preparação uniforme deMatemática nas escolas secundárias, oque permitiria, em todas as modalida-des de escolas superiores, um elevadonível de estudos matemáticos. As esco-las secundárias já deveriam introduzirmatemáticas mais avançadas, comoGeometria Analítica e Cálculo, trata-das com padrões de rigor. Mas essesassuntos eram tratados com rigor so-mente em cursos universitários, namodalidade iniciada nas décadas de1820 e 1830, por Augustin Cauchy. Umtratamento rigoroso, visando ao ensinosecundário, não era disponível. E FelixKlein propôs-se a desenvolver um cur-rículo de Matemática moderna, incopo-rando os avanços da época. Natural-mente, assim como acontece hoje, aformação de professores é essencial, eum professor deve dominar o assuntode suas aulas de um ponto de vistacrítico e mais avançado. O curso deFelix Klein foi publicado na forma deum livro que se tomou clássico, tratan-do da Matemática Elementar de umponto de vista avançado. A preocupa-ção com o ensino da Matemática entreos matemáticos era tal que em 1908,

durante o Congresso Internacional deMatemática que se realizou em Roma,foi fundada a Comissão Internacionalde Ensino de Matemática, precursorada atual Comissão Internacional deInstrução Matemática (lCMI: Interna-tional Comission of Mathematics In-struction). A partir de então, a Comis-são tem se reunido durante todos osCongressos Internacionais de Mate-mática, que se realizam a cada quatroanos. Somente em 1968 decidiu-se rea-lizar, também quadrienalmente, oCongresso Internacional de EducaçãoMatemática (ICME: InternationalCongress of Mathematics Education),organizado sob responsabilidade daICMI, novo nome da comissão fundadaem 1908 e que em 1950 se tomara umacomissão especializada da União Ma-temática Internacional (IMU: Interna-tional Mathematical Union), uma dasONGs (organizações não-governamen-tais) sob tutela da UNESCO.

Educação Matemáticacomo uma disciplina

Desde o início do século pesquisasem Educação Matemática já haviamencontrado repercussão nos meios aca-dêmicos. Uma síntese histórica da pes-quisa em Educação Matemática foi re-centemente publicada por Jeremy Kil-patrick (1992).

O aparecimento de uma literaturaprópria, com livros e revistas especia-lizadas, bem comode graus acadêmicose de Departamentos de Educação Ma-temática, são indicadores decisivos noreconhecimento de uma nova discipli-na. A partir daí as especialidades co-meçam a se caracterizar. Áreas de in-vestigação são definidas e se refletemna programação dos próprios congres-

10

Page 5: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

sos internacionais. O trabalho da Co-missão de Programa de um congressoé efetivamente um trabalho de pesqui-sa sobre o estado da arte, onde se pro-cura analisar, na literatura, o que temrecebido maior atenção dos pesquisa-dores enaturalmente quais têm sido ospropulsores de novas direções. Os re-sultados dessa pesquisa se traduzemno programa do congresso.

O Terceiro Congresso Internacionalde Educação Matemática - ICME3-estabeleceu uma distribuição de áreasbastante significativa, com um troncovertical de acordo com faixas etárias eum tipo de terminalidade, e outro ho-rizontal, organizado de acordo com asáreas maiores de pesquisa. No total detreze, essas classificações constituíramas sessões e também os capítulos dasatas do congresso, publicados pelaUNESCO em 1976. Elas de fato cons-tituem um elenco das áreas de pesqui-sa em Educação Matemática. Natural-mente ainda refletem muito do tradi-cional.

Um passo muito importante na defi-nição de áreas de pesquisa foi propostopor Edward G. Begle (1979). Sem sepreocupar com oarranjo matricial ado-tado em Karlsruhe, ele propôs capítu-los que sintetizavam as áreas de pes-quisa mais intensas a partir da litera-tura especializada. Assim, a classifica-ção proposta por Begle estabelecia:

1. a natureza da Matemática e dos ob-jetos matemáticos;

2. metas para Educação Matemática;3. docentes (componentes afetivos,

treinamento, conhecimento, avalia-ção);

4. variáveis curriculares;5. variáveis discentes (afetivas, cogni-

tivas, comportamento);6. o ambiente (escola, sala, família,

contexto cultural);

Pro-Posi,-

7. variáveis instrucionais (calculado-ras e computadores, jogos, lições decasa, laboratórios matemáticos, ins-trução programada);

8. testes;9. solução de problemas.

Comojá dissemos o estudo de Beglereflete a situação da época, sendo umaanálise crítica do estado da arte naque-ilemomento. O fato de os capítulos 3, 4e 7 serem dominantes, com 20 a 25páginas cada, de um total de 150, mos-tra o grande tradicionalismo identifi-cado por Begle. No final Begle diz que"pesquisas futuras devem ser precedi-das por uma revisão cuidadosa da lite-ratura disponível" (1979: 152), o queem verdade justifica seu livro e suaimportância até hoje. Seu livro é umguia para essa revisão sistemática. Po-rém, sua influência foi menor do que oesperado e, na minha percepção, a pro-posta de Karlsruhe ainda prevalece,embora sejam necessárias mudançasem um futuro não-distante. O manualde pesquisa Grouws (1992) sintetiza asáreas correntemente mais importan-tes e é um instrumento fundamentalpara o pesquisador em Educação Ma-temática.

Vamos tomar a proposta deKarlsruhe como ponto de partida paranossas considerações e digressionarum pouco sobre o futuro. O tronco ver-tical, essencialmente subordinado afaixas etárias, nos dá:

1. níveis pré-elementar e primário;2. primeiro ciclodo ensino pós-elemen-

tar e ensino secundário;3. ciclo superior da escola secundária

e a transição para a universidade;4. nível universitário;5. educação de adultos e educação con-

tinuada;6. formação evida profissional dos pro-

fessores de Matemática.

11

Page 6: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

Educa.ção Matemática

Embora sejam universalmente acei-tas essas divisões, pergunta-se: o quehá de "sagrado" na distinção entre 12,22 e 32 graus de ensino? Hoje, quasevinte anos após Karlsruhe, questiona-se a própria idéia de terminalidade dosgraus. O desenvolvimento dojovem dehoje, as pressões para que mais cedoadquira autonomia e estabeleça famí-lia, com responsabilidade pela sua ma-nutenção, e para que tenha participa-ção política efetiva, como é o caso doBrasil, em que é dado o direito de votoa partir dos 16 anos, tomam questio-nável a estratificação nos graus tradi-cionais. A possibilidade de se entrar nosistema de produção (isto é, emprego)mais cedo, com uma retomada de estu-dos após alguns anos de experiência ecom o conceito de educação permanen-te aparecem com maior freqüência nosestudos sobre o futuro da educação. Orecente livro de David A. Hamburg(1992), presidente da Carnegie Corpo-ration de Nova Iorque, nos dá umavisão abrangente de quais principaisfatores determinam a vida de umacriança ou de um jovem de hoje. Aconclusão é que ao atingir 18 anos ojovem passou na escola cerca de 8% desua vida. Pergunta-se: qual aprendiza-gem será dominante? Aquela dos ban-cos escolares (cerca de 12.000 horas) ouas cerca de 145.000 restantes? As teo-rias mais recentes de cognição revelamque a aprendizagem é um processo quese dá continuamente e repousa na va-riedade de experiências que se incorpo-ram à história do indivíduo (Varela etalii, 1991). Basicamente esse enfoquecoincide com aquele que eu proponhoem D'Ambrosio (1988 e 1990). O essen-cial é reconhecer que a todo instante,em qualquer ambiente, está se apren-dendo. Ora, isso afeta enormemente oconceito de escola e em particular aEducação Matemática, ainda muito in-

fluenciada pelo mito de hierarquizaçãodo aprendizado. Discutimos isso emD'Ambrosio (1991).

Educação Matemáticano contexto daeducação em geral

O parágrado anterior deixa bem cla-ro que Educação Matemática tem tudoa ver com estrutura do sistema educa-cional. Os resultados dependem muitoda população alvo das avaliações, e issose manifesta principalmente nos estu-dos comparativos, que comentaremosa seguir.

A grande expansão da educação apartir do final do século passado e quese manifesta com maior intensidadenos países menos desenvolvidos a par-tir de meados deste século, leva à uni-versalização da Educação Matemática.Universalização no sentido pleno: en-sinar Matemática para todos e, prati-camente, a mesma Matemática emtodo omundo. Claro, oponto de partidapara isso foi o período colonial, masrealmente se intensificou a partir dosanos 50. O conceito de uma ''Matemá-tica para o trabalho" tomou-se domi-nante. No Brasil isso se manifestouessencialmente na ênfase à profissio-nalização. Recomendo, em especial, aleitura da coletânea organizada porMary Harris (1991). Contudo, em pa-ralelo e ainda mais sutilmente temosuma preocupação com a colocação daprodução, essencial para a sobrevivên-cia dos antigos impérios coloniais. Amudança do perfil do consumidor tor-na essencial omovimento ''Matemáticapara todos", paralelo à grande ênfaseem alfabetização nas línguas das anti-gas metrópoles coloniais. A agressão

12

Page 7: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

cultural e a remoção de capacidade crí-tica através da Matemática é manifes-ta, como bem analisam Marilyn Fran-kenstein (1989) e Sharan-Jeet Shan ePeter Bailey (1991), ao se propor a in-tegração do desenho curricular no mo-mento sócio-cultural do sistema esco-lar. Igual posição é tomada por SérgioNobre (1989). Na verdade, esses trêstrabalhos fundamentais fazem eco,através da Matemática, ao pensamen-to de Paulo Freire, que propõe umaeducação crítica e não-alienante; emessência, ver a educação como um atopolítico, reconhecido e assumido. Naverdade, a postura de Paulo Freire comrelação à alfabetização e a ideologiareconhecida por Michel Apple ao intro-duzir o conceito de currículo oculto tra-zem, em simbiose, um componente quetoca ainda mais de perto o interesse domundo desenvolvido, que é a crítica aoconsumismo implícito. Naturalmenteé aí que se manifestam as grandes dis-torções culturais da Educação Mate-mática e que nos levam a reconhecer asua dimensão política (ver D'Ambrosio,1990).

Voltando ào ICME 3, em Karlsruhe,o tronco horizontal, com as outras seteclassificações, refere-se às áreas depesquisa:

1. análise crítica do desenvolvimentocurricular; .

2. métodos e resultados de avaliação;3. metas e objetivos gerais (aspectos

sócio-culturais );4. pesquisa relacionada comoprocesso

de aprendizagem;5. análise crítica do uso da tecnologia

educativa;6. interação com as outras disciplinas;7. papel dos algoritmos e dos computa-

dores.Essencialmente, todas as áreas ain-

da hoje fundamentais na pesquisa em

Educação Matemática estão contem-pladas nesse elenco, fazendo cruzaressa classificação de tronco horizontalcom as seis classificações verticais. Po-der-se-ia ceder à tentação cartesianade se classificar as áreas de EducaçãoMatemática em um esquema matricialde 6x7.

Metas e objetivosgerais do ensino daMatemática, suaposição no currículo ea nova prática docente

Vamos destacar em especial o capí-tulo relativo a metas e objetivos gerais.De fato, a partir de Karlsruhe as dis-cussões sobre o porquê de se ensinarMatemática ganharam uma importan-te dimensão sócio-cultural e pode-sedizer que representam o início de umpensar mais abrangente sobre Educa-ção Matemática. Esse pensar maisabrangente é sintetizado no reconheci-mento da importância de se contextua-lizar a Educação Matemática. Tida tra-dicionalmente como universal, no sen-tido de cruzar diferenças culturais e derepresentar o único elo absolutamenteintercultural, a Matemática vem sendocada vez mais encarada como um pro-duto cultural. Os trabalhos pioneirosde A. Kroebe,r e de L. A. White, devi-damente reconhecidos por RaymondWilder (1981), tardaram a ser reconhe-cidos como essenciais para a EducaçãoMatemática. Igualmente, a dominân-cia da pesquisa conduzida por J eanPiaget e seus discípulos dava poucoespaço para reflexões cultqrais. Os tra-balhos desenvolvidos na década detrinta por L. S. Vygotsky e seus discí-

13

Page 8: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

Educação Matemática

pulos tornaram-se conhecidos somentemais tarde, e o componente sócio-cultu-ral reforça sua importância. Em 1984realizou-se em Adelaide, Austrália, oICME 5. Sem dúvida esse Congressodeu à dimensão sócio-cultural uma im-portância fundamental (ver D'Ambro-sio, 1985). No congresso seguinte, oICME 6, realizado em Budapeste em1988, essa importância consolidou-se.Havia sido criado em 1985 o Interna-tional Study Group on Ethnomathe-matics - ISGEm -, um canal de co-municação entre educadores matemá-ticos de todo o mundo, tendo como eixodiretor os aspectos sócios-culturais. AEtnomatemática sintetiza esse eixo.Embora ainda se consolidando comouma área de pesquisa, a Etnomatemá-tica penetrou nas considerações daEducação Matemática através de vá-rios flancos. Encontrou seu reconheci-mento na comunidade matemática,atingindo uma situação de área de pes-quisa nas duas revistas básicas de re-ferência, o Mathematical Reviews e oZentralblatt fur Mathematik. Tambémé uma área na principal revista de pes-quisa em Educação Matemática, oJournal for Research in MathematicsEducation, e constitui um capítulo doHandbook ofResearch on MathematicsTeaching and Learning, de 1992, am-bos publicados sob responsabilidade doNational Council ofTeachers ofMath-ematics. Recentemente a AmericanMathematical Society abriu, no seumensárioNoticesoftheAMS, umespa-çopara a Etnomatemática. Filosófica ehistoricamente, isso representa umanova postura com relação à Matemáti-ca e, conseqüentemente, comrepercus-sões em Educação Matemática.

Inevitavelmente a prática docentesofrerá modificações profundas. Hápouco espaço para um currículo defini-doapriori, baseado em conteúdos acor-dados como sendo de importância. Apostura normativa será claramentesuperada ao se falar em currículo. Aprópria conceituação do que é impor-tante resultará de considerações de na-tureza sócio-cultural. Tanto para apesquisa como para a docência serãoessenciais uma postura etnográfica eum comportamento correspondente. Odocente tradicional, cuja missão é en-sinar, não encontrará mais seu lugarna sala de aula e dará lugar ao anima-dor de atividades. O docente no seupapel será efetivamente o docente/pes-quisador, e o resultado de sua ação iráalém da sala de aula (ver, a esse res-peito, o trabalho de Beatriz S. D'Am-brosio nesta revista. (p.35) Ver tam-bém, para um enfoque mais geral queo da Educação Matemática, Susan L.Lytle eMarilyn Cochran-Smith, 1992).A atuação profissional do docente serámuito diferente, e creio que aí está oxisda questão.

O futuro da Educação Matemáticanão depende de revisões de conteúdomas da dinamização da própria Mate-mática, procurando levar nossa práti-ca à geração de conhecimento. Tam-pouco depende de uma metodologia"mágica". Depende essencialmente deo professor assumir sua nova posição,reconhecer que ele é um companheirode seus estudantes na busca de conhe-cimento, e que a Matemática é parteintegrante desse conhecimento. Umconhecimento que dia-a-dia se renovae se enriquece pela experiência vividapor todos os indivíduos deste planeta.

14

Page 9: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

Nota

1.Reflexões, teorias e estudos sobre EducaçãoMatemática vêm desde a Antiguidade. Emborasem outra justificativa que a de ser um exercíciointelectual, a Matemática grega encontra algu-mas poucas utilizações mesmo entre ospr6priosgregos. Não se vê praticidade na Matemáticaabstrata dos gregos. Claramente era o jogo amotivação dominante. De outra maneira não sepode justificar a importância da restrição "ré-gua e compasso" na resolução de certos proble-mas. Naturalmente explicações de natureza es-tética ou busca de perfeição falam a favor dafalta de praticidade da Matemática abstrata. AMatemática prática, aquela que serve no dia-a-dia, coexistia comooutra forma de conhecimen-to. Arquimedes foi talvez o primeiro matemáti-co a usar seus conhecimentos, de forma umtanto marginal, em seus engenhos. Entre osromanos, o livro de Marcus Vitruvius Polio, DeArchitectura (cerca de 100 a.C.), ilustra bem autilização de resultados matemáticos, algunsrazoavelmente sofisticados, porém sem a preo-cupação de "provar" a validade dos resultados.Embora os árabes sejam creditados comoconti-nuadores do pensamento matemático greg?!sua contribuição nessa direção é modesta. J!isurpreendente que, para lidar com problemaspráticos do dia-a-dia do mundo islâmico, a Ma-temática abstrata dos gregos tenha sido rejei-tada. Al-Khuwarizmi (780-850) é omais impor-tante matemático árabe, autor dofamoso trata-doHisab aliabrwa'l- mugabalah (literalmen-

te, ciência da redução e da confrontação, comométodo de resolução de equações), que deu ori-gem à palavra álgebra, assim como o pr6prionome docientista deu origem à palavra algaris-mo. No livro, que é destinado essencialmente acoisas práticas comoheranças e divisão de pro-priedades, recusa-se a utilizar fontes gregas,comoDiofante e Euclides. Além de uma posturaculturalmente nacionalista, a busca de outrasfontes mostra uma procura de enfoques maispráticos e recorre somente a fontes hindus ehebraicas.

De fato, duas formas de Matemática se iden-tificam no mundo grego, a mathématique de lamaitrise e a mathématique de l'intelligibilité,usando a terminologia de René Thom (Apologiedu logos, Paris, Hachette, 1990. p. 325). A pri-meira é assimilada pelo mundo romano e pre-valece na Idade Média, enquanto a segunda élevada adiante pelos pr6prios gregos, sob domi-nação romana, e posteriormente pelo mundoislâmico, chegando à exaustão já no século X.No Renascimento essa Matemática retoma suaimportância, e com oadvento da ciência moder-na vai ganhando a posição de "padrão de rigor",sendo até adotada como critério de verdade."Tão certo como a Matemática" é uma expres-são incorporada à linguagem moderna e refleteum critério de verdade que se moldou na Mate-mática: rigorosa, precisa, desprovida do emo-cional. Daí a definição de Gustave Flaubert"Matemática, [a que] seca o coração". (Bouvardet Pecuchet em Dictionary of Received ldeas,Londres, Penguin Books, 1987).

Referências bibliográficasAAAS. Science for all Americans. Washington, American Association for the Advance-

ment ofScience, 1989.BEGLE, Edward G. Critical Variables in Mathematics Education - Findings from a

Survey of the Empirical Literature. Washington, Mathematical Association ofAmerica and National Council ofTeachers ofMathematics, 1979.

BORBA,Marcelo C.Teaching Mathematics: challenging the sacred cowofmathematicalcertainty. Clearing House, 65(6): 332-3, 1992.

D'AMBROSIO, Ubiratan. Da Realidade à Ação: Reflexões sobre Educação (e)Matemá-tica. 2 ed. São Paulo, Summus Editorial, 1988.

. Etnomatemática- Arte ou Técnica de Explicar e Conhecer. São Paulo, Ática,1990.

15

Page 10: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

Ed!-lCação Matemática

D'AMBROSIO, Ubiratan. Several Dimensions of Science Education: a Latin AmericanPerspective. Santiago, C.I.D.E./Reduc, 1991.

. Socio-cultural Bases for Mathematics Education. Campinas, Editora da Uni-camp, 1985._. The role ofMathematics in building up a democratic society and the civilizatorymission of the European powers since the discoveries. In: NOSS, Richard et alii.Political Dimensions Of Mathematics Education: Action & Critique PDME.l Pro-ceedings of the First International Conference London, Institute of Education,University ofLondon, 1990.

_' What does it mean to be Modern in Mathematics Education? In: Third Interna-tional Conference on Mathematics Education, University ofChicago School Mathe-matics Project (no prelo).

EMMER, Michele. Special issue on visual Mathematics, guest editor Michele Emmer.Leonardo: Journal ofthe International Society for theArts, Sciences and Technology,25(3/4), 1992.

FRANKENSTEIN, Marilyn. Relearning Mathematics. A Different Third R - RadicalMaths. London, Free Association Books, 1989.

GROUWS, Douglas A Handbook ofResearch on Mathematics Teaching and Learning.New York, Macmillan, 1992.

HAMBURG, David A Today's Children - Creating a Future for a Generation in Crisis.New York, Times Books, 1992.

HARRIS, Mary. Schools, Mathematics and Work. Basingstoke, The Falmer Press, 1991.ICMI. Nuevas Tendencias en la Ensenanza de la Matemática. Paris, UNESCO, 1976.KILPATRICK, Jeremy. Handbook ofResearch on Mathematics Teaching and Learning.

New York, Macmillan Publishing Company, 1992.LYTLE, Susan L. & COCHRAN-SMITH, Marilyn. Teacher research as a way of

knowing. Harvard Educational Review, 62(4): 447-74, 1992.NOBRE, Sérgio Roberto. Aspectos Sociais e Culturais no Desenho Curricular da Mate-

mática. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1989.SHAN, Sharan-Jeet & BAILEY, Peter. Multiplique Factors: Classroom Mathematics for

Equality and Justice.Taffordshire, Trentham Books, 1991.VARELA, Francisco J. et alii. The Embodied Mind. Cognitive Science and Human

Experience. Cambridge, The MIT Press, 1991.WILDER, Raymond L. Mathematics as a Cultural System. Oxford, Pergamon Press,

1981.

16

Page 11: Educação Matemática: Uma Visão do Estado da Arte

Resumo Neste trabalho procura-mos identificar a Edu-caçãoMatemática como uma área autôno-ma de pesquisa em Educação, através deconsiderações sobre a própria natureza daMatemática. Abordamos aspectos históri-cos,cognitivos e políticos da Matemática eda sua inserção nos currículos escolares. Aseguir examinamos algumas tendênciasmais recentes da pesquisa em EducaçãoMatemática, esboçando suas principaisáreas de interesse. Após mencionar, emlinhas gerais, as metas e objetivos geraisdo ensino de Matemática fazemos conside-rações sobre o futuro da Educação (emparticular da Educação Matemática), so-bre desenho curricular e sobre um novopapel reservado ao docente.

Palavras-chaves: Educação Matemática;Ensino de Matemática; Cognição; Objeti-vos, Organização curricular.

Pro-Posi, -

Abstract In.this .paper we tryto ldentify Mathemat-

ics Education as an autonomous researcharea in Education through reflexions onthe nature ofMathematics itself. We lookinto historical, cognitive and political is-sues in Mathematics and in its insertioninto school curricula. Next we look into themost recent trends in research in Mathe-matics Education, rapidly mentioning so-me of the main areas of interest. Mertalking, also in a general form, about aimsand general objectives for the teaching ofMathematics, we draw some conclusionabout the future of Education, in particu-lar of Mathematics Education, about cur-ricular design and about a new role for theteacher.

Descriptors: Mathematics Education,Mathematics teaching, cognition, objecti-ves, curriculum designo

17