19
28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 1/19 Em algum lugar do passado Segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil Luís Roberto Barroso* SUMÁRIO Introdução O Tema: organização da matéria Parte I CONCEITOS FUNDAMENTAIS I. A segurança jurídica II. O direito intertemporal III. A proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito no direito brasileiro Parte II O NOVO CÓDIGO CIVIL E OS CONTRATOS A ELE ANTERIORES IV. Os contratos e a proteção do ato jurídico perfeito V. Inconstitucionalidade parcial do art. 2.035 do novo Código Civil. Conclusão Introdução O Tema: organização da matéria O estudo que se segue está ordenado em duas partes. Na Parte I procede-se à análise do princípio constitucional da segurança jurídica e, especialmente, dos temas afetos ao direito intertemporal. Neste domínio, a ênfase recai sobre os conceitos de direito adquirido e de ato jurídico perfeito, ainda hoje envoltos em complexidades diversas e dificuldades de sistematização. A Parte II é dedicada à aplicação das categorias e conceitos desenvolvidos na Parte I a algumas situações criadas pela aprovação do novo Código Civil (Lei n° 10.406, de 10.01.02), vigente desde

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO - BARROSO. SEG. JURÍDICA

Embed Size (px)

Citation preview

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 1/19

    Em algum lugar do passado

    Segurana jurdica, direito intertemporal e o novo Cdigo Civil

    Lus Roberto Barroso*

    SUMRIO

    Introduo

    O Tema: organizao da matria

    Parte I

    CO NC EITO S FUNDA MENTA IS

    I. A segurana jurdica

    II. O direito intertemporal

    III. A proteo do direito adquirido e do ato jurdico perfeito no direito brasileiro

    Parte II

    O NO V O C DIGO CIV IL E O S CO NTRA TO S A ELE ANTERIO RES

    IV. Os contratos e a proteo do ato jurdico perfeito

    V. Inconstitucionalidade parcial do art. 2.035 do novo Cdigo Civil.

    Concluso

    Introduo

    O Tema: organizao da matria

    O estudo que se segue est ordenado em duas partes. Na Parte I procede-se anlise doprincpio constitucional da segurana jurdica e, especialmente, dos temas afetos ao direitointertemporal. Neste domnio, a nfase recai sobre os conceitos de direito adquirido e de atojurdico perfeito, ainda hoje envoltos em complexidades diversas e dificuldades de sistematizao.

    A Parte II dedicada aplicao das categorias e conceitos desenvolvidos na Parte I a algumassituaes criadas pela aprovao do novo Cdigo Civil (Lei n 10.406, de 10.01.02), vigente desde

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 2/19

    janeiro de 2003. Dentre as mltiplas questes de direito intertemporal resultantes da profunda eextensa alterao da disciplina das relaes privadas no pas, avultam as relativas incidncia dalei nova sobre os atos e negcios jurdicos praticados anteriormente ao incio de sua vigncia,especialmente os de natureza contratual.

    No centro da discusso encontra-se o art. 2.035 do Cdigo Civil posto em vigor, cuja dico aseguinte:

    Art. 2.035. A validade dos negcios e demais atos jurdicos, constitudos antes daentrada em vigor deste Cdigo, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no

    art. 2.0451, mas os seus efeitos, produzidos aps a vigncia deste Cdigo, aospreceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinadaforma de execuo.

    Pargrafo nico. Nenhuma conveno prevalecer se contrariar preceitos de ordempblica, tais como os estabelecidos por este Cdigo para assegurar a funo social dapropriedade e dos contratos.

    A seguir, o desenvolvimento do tema.

    Parte I

    Conceitos Fundamentais

    I. A segurana jurdica

    O conhecimento convencional, de longa data, situa a segurana e, no seu mbito, a seguranajurdica como um dos fundamentos do Estado e do Direito, ao lado da justia e, maisrecentemente, do bem-estar social. As teorias democrticas acerca da origem e justificao doEstado, de base contratualista, assentam-se sobre uma clusula comutativa: recebe-se emsegurana aquilo que se concede em liberdade. Consagrada no art. 2 da Declarao dos Direitosdo Homem e do Cidado, de 1789, como um direito natural e imprescritvel, a seguranaencontra-se positivada como um direito individual na Constituio brasileira de 1988, ao lado dosdireitos vida, liberdade, igualdade e propriedade, na dico expressa do caput do art. 5.

    O prprio constitucionalismo francs procurou conceituar o termo, no prembulo da Constituiode 24 de junho de 1793: A segurana consiste na proteo conferida pela sociedade a cada umde seus membros para conservao de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades. Talformulao a aproxima da clusula do devido processo legal do direito anglo-saxo, incorporada

    quase literalmente Constituio brasileira em vigor, no art. 5, LIV2. No seu desenvolvimentodoutrinrio e jurisprudencial, a expresso segurana jurdica passou a designar um conjuntoabrangente de idias e contedos, que incluem:

    1. a existncia de instituies estatais dotadas de poder e garantias, assim como sujeitas aoprincpio da legalidade;

    2. a confiana nos atos do Poder Pblico, que devero reger-se pela boa-f e pela razoabilidade;

    3. a estabilidade das relaes jurdicas, manifestada na durabilidade das normas, na anterioridadedas leis em relao aos fatos sobre os quais incidem e na conservao de direitos em face da leinova;

    4. a previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser seguidos como os que devem sersuportados;

    5. a igualdade na lei e perante a lei, inclusive com solues isonmicas para situaes idnticas ouprximas.

    Um conjunto de conceitos, princpios e regras decorrentes do Estado democrtico de direitoprocura promover a segurana jurdica. A Constituio, assim, demarca o espao pblico e o

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 3/19

    espao privado, organizando o poder poltico e definindo direitos fundamentais. Tem vocao depermanncia e dotada de rigidez. A lei, por sua vez, opera a despersonalizao do poder,conferindo-lhe o batismo da representao popular. Visa, sobretudo, a introduzir previsibilidadenos comportamentos e objetividade na interpretao. De parte isto, cada domnio do Direito temum conjunto de normas voltadas para a segurana jurdica, muitas com matriz constitucional.

    Confiram-se alguns exemplos: a) no direito constitucional, as garantias dos membros de cadaPoder, para que desempenhem com independncia suas funes constitucionais, e que incluem:vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsdios dos juzes; as imunidadesparlamentares; as regras especficas para instaurao de processo contra o chefe do PoderExecutivo, alm da proteo do direito adquirido, do ato jurdico perfeito e da coisa julgada; b) nodireito administrativo, princpios como os da legalidade, publicidade, razoabilidade e o dever demotivar as decises; c) no direito penal, os princpios da reserva legal, da anterioridade da leipenal, da presuno de inocncia e as limitaes ao poder de decretar a priso; d) na teoria geraldo direito, instituies como a prescrio e a decadncia; e) no direito civil, o casamento e oestabelecimento de uma ordem de vocao hereditria.

    Legislao recente tem enfatizado a questo. A Lei n 9.784/99, que disciplina o processoadministrativo federal, positivou determinados princpios na verdade de extrao constitucional

    que devem nortear a atividade administrativa, como o da segurana jurdica (art. 2, caput3) e o

    da boa-f (art. 2, IV4). Alm disso, veda que uma interpretao nova, que venha a ser adotada

    pela Administrao, possa retroagir em prejuzo do administrado (art. 2, XIII5), o que tambm j

    era proibido pelo Cdigo Tributrio Nacional (art. 1466). Por fim, dentre outros exemplos, vale

    registrar a possibilidade criada pelo art. 27 da Lei n 9.868/997, ainda envolta em polmica8, pelaqual se admite a flexibilizao do efeito retroativo nas declaraes de inconstitucionalidade deatos normativos, exatamente com fundamento em razes de segurana jurdica.

    curioso observar, no entanto, que a despeito de todo o arsenal jurdico descrito, a segurana

    enfrenta hoje uma crise de identidade9. A velocidade das mudanas, no s econmicas,

    tecnolgicas e polticas, mas tambm jurdicas10, e a obsesso pragmtica e funcionalizadora, quetambm contamina a interpretao do Direito, no raro encaram pessoas, seus sonhos, seusprojetos e suas legtimas expectativas como miudezas a serem descartadas, para que sejapossvel avanar (para onde?) mais rapidamente. Desse modo, o debate acerca da seguranajurdica, especialmente no que diz respeito aos efeitos da lei nova sobre a realidade existentequando de sua entrada em vigor, vem sem ironia se perpetuando no tempo.

    O prprio Italo Calvino, em suas Seis propostas para o prximo milnio que s foram cinco, poisele faleceu antes de escrever o texto da sexta incluiu dentre elas a leveza e a rapidez. Ningumnesses dias parece impressionar-se com a advertncia do grande jurista uruguaio EduardoCouture, inscrita no stimo mandamento do advogado: O tempo vinga-se das coisas que se

    fazem sem a sua colaborao"11.

    II. O direito intertemporal

    O conflito de leis no tempo envolve a contraposio entre lei nova e lei velha12. No incomumem direito a supervenincia de lei que mude o tratamento jurdico dado a determinada questo.Cabe ao direito intertemporal solucionar esse conflito, fixando o alcance de normas que sesucedem. Seu objeto a determinao dos limites do domnio de cada uma dentre duas

    disposies jurdicas consecutivas sobre o mesmo assunto13.

    O postulado bsico na matria, que comporta excees mas tem aceitao universal, o de que alei nova no atinge os fatos anteriores ao incio de sua vigncia, nem as conseqncias dos

    mesmos, ainda que se produzam sob o imprio do direito atual14. Esse princpio, conhecido comoprincpio da no-retroatividade das leis, tem por fundamento filosfico a necessidade da

    segurana jurdica, da estabilidade do Direito15. Nos Estados Unidos, a Constituio de 1787 vedaa edio de leis retroativas de uma maneira geral (art. 1, seo 9, 1: ex post facto law) eprobe aos Estados que elaborem leis que prejudiquem a obrigatoriedade dos contratos (art. 1,seo 10, 1: law impairing the obligation of contracts). Na Amrica Latina, exceo do

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 4/19

    Mxico16, e na Europa, a regra da no-retroatividade de nvel infraconstitucional, podendo,mesmo, ser derrogada por legislao superveniente.

    No Brasil, o tema constou de todas as Constituies, desde a Imperial, de 1824, excluindo-se aCarta do Estado Novo, de 1937. No texto presentemente em vigor, dispe o inciso XXXVI do art.5:

    a lei no prejudicar o direito adquirido, o ato jurdico perfeito e a coisa julgada.

    Calha observar que, embora a no-retroatividade seja a regra, trata-se de princpio que somentecondiciona a atividade jurdica do Estado nas hipteses expressamente previstas na Constituio,a saber: a) a proteo da segurana jurdica no domnio das relaes sociais, veiculada no art. 5,XXXVI, anteriormente citado; b) a proteo da liberdade do indivduo contra a aplicao retroativada lei penal, contida no art. 5, XL (a lei penal no retroagir, salvo para beneficiar o ru); c) aproteo do contribuinte contra a voracidade retroativa do Fisco, constante do art. 150, III, a (vedada a cobrana de tributos em relao a fatos geradores ocorridos antes do incio da vignciada lei que os houver institudo ou aumentado). Fora dessas hipteses, a retroatividade da norma

    tolervel17.

    bem de ver que a regra do art. 5, XXXVI, dirige-se, primariamente, ao legislador e,reflexamente, aos rgos judicirios e administrativos. Seu alcance atinge, tambm, o constituintederivado, haja vista que a no-retroao, nas hipteses constitucionais, configura direitoindividual que, como tal, protegido pelas limitaes materiais do art. 60, 4, IV, da CF. Dissoresulta que as emendas Constituio, tanto quanto as leis infraconstitucionais, no podemmalferir o direito adquirido, o ato jurdico perfeito e a coisa julgada. O princpio da no-retroatividade s no condiciona o exerccio do poder constituinte originrio. A Constituio o

    ato inaugural do Estado, primeira expresso do direito na ordem cronolgica18, pelo que no devereverncia ordem jurdica anterior, que no lhe pode impor regras ou limites. Doutrina e

    jurisprudncia convergem no sentido de que no h direito adquirido contra a Constituio"19.

    No obstante isso, mesmo na interpretao da vontade constitucional originria, a irretroatividadeh de ser a regra, e a retroatividade a exceo. Sempre que for possvel, incumbe ao exegetaaplicar o direito positivo, de qualquer nvel, sem afetar situaes jurdicas j definitivamente

    constitudas. E mais: no h retroatividade tcita20. Um preceito constitucional pode retroagir,

    mas dever haver texto expresso nesse sentido21. Na Constituio brasileira de 1988 h exemplos

    de retroatividade expressa, como o art. 17 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias22.Com base nele, alis, chegou-se a entender no ser oponvel sequer a preexistncia de coisa

    julgada, impondo-se a reduo dos vencimentos do servidor aos limites constitucionais23. Tal linha

    de entendimento, todavia, foi desautorizada pelo Supremo Tribunal Federal24.

    III. A proteo do direito adquirido e do ato jurdico perfeito no direito brasileiro

    III.1. Status constitucional e alcance

    O primeiro registro a fazer nessa matria, conquanto bvio, merece destaque: a proteo do atojurdico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada tem, no Brasil, status constitucional, napreviso expressa do art. 5, XXXVI, j transcrito. Mais que isso, por sua condio de direitoindividual, constitui clusula ptrea, insuscetvel de supresso at mesmo por emendaconstitucional (CF, art. 60, 4, IV). Como j assinalado, na maioria dos pases esta garantiaconsta de legislao ordinria o que admite sua derrogao por legislao superveniente e noda Constituio. Isso significa, portanto, que a importao de doutrina e jurisprudnciaestrangeiras sobre o assunto deve ter o cuidado de observar essa diferena essencial entre os

    sistemas jurdicos25.

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 5/19

    Quanto extenso da garantia conferida pelo art. 5, XXXVI, da Constituio, h algumasobservaes a fazer. Na verdade, trata-se aqui de tentar definir em que consiste, afinal, o efeitoretroativo que, em ltima anlise, vedado pela Constituio. No h disputa entre os autoresacerca do seguinte ponto: se a lei tentar modificar eventos que j ocorreram e se consumaram oudesfazer os efeitos j produzidos de atos praticados no passado, ela ser retroativa e,conseqentemente, invlida nesse particular. A controvrsia que ops os dois principais

    doutrinadores que trataram do tema e seus seguidores o italiano Gabba26 e o francs Paul

    Roubier27 versava, entretanto, sobre outro tipo de situao, que ensejava a seguinte pergunta:que se passa quando, de um ato praticado no passado, na vigncia da lei velha, decorrem efeitos

    futuros que apenas se concretizam quando a nova lei j se encontra em vigor?28

    Para Roubier, a lei nova aplicava-se desde logo a esses efeitos, e essa circunstncia o autordenominava efeito imediato da lei e no retroatividade (note-se desde logo que, no caso decontratos, o prprio Roubier entendia que a lei velha continuava a aplicar-se, como se ver).Gabba, por sua vez, rejeitava essa soluo com fundamento no conceito de direito adquirido (queser tratado mais adiante), para concluir que, tambm nessa hiptese, haveria retroao invlida.Ainda para Gabba, os efeitos futuros deveriam continuar a ser regidos pela lei que disciplinou suacausa, isto , a lei velha.

    Como se sabe, a posio do autor italiano acabou por preponderar e, no Brasil, as Constituiessempre adotaram a frmula de Gabba de proteo do direito adquirido (ao lado do ato jurdicoperfeito e da coisa julgada). Exatamente nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal consolidou oentendimento de que a retroatividade resultado vedado pela Constituio pode assumir trsformas: a retroatividade mxima, mdia e mnima, todas invlidas. A chamada retroatividademnima descreve exatamente esse tipo de hiptese: a incidncia da lei nova sobre efeitos que,embora pendentes, se ligam a uma causa ocorrida na vigncia da lei velha. Confira-se trecho doacrdo no qual o ponto destacado:

    Quanto graduao por intensidade, as espcies de retroatividade so trs: amxima, a mdia e a mnima. Matos Peixoto, em notvel artigo Limite Temporal daLei publicado na Revista Jurdica da antiga Faculdade Nacional de Direito daUniversidade do Brasil (vol. IX, pgs. 9 a 47), assim as caracteriza: D-se aretroatividade mxima (tambm chamada restitutria, porque em geral restitui aspartes ao statu quo ante), quando a lei nova ataca a coisa julgada e os fatosconsumados (transao, pagamento, prescrio). Tal a decretal de Alexandre IIIque, em dio usura, mandou os credores restiturem os juros recebidos. mesmacategoria pertence a clebre lei francesa de 2 de novembro de 1793 (12 brumrio doano II), na parte em que anulou e mandou refazer as partilhas j julgadas, para osfilhos naturais serem admitidos herana dos pais, desde 14 de julho de 1789. A cartade 10 de novembro de 1937, artigo 95, pargrafo nico, previa a aplicao daretroatividade mxima, porquanto dava ao Parlamento a atribuio de rever decisesjudiciais, sem executar as passadas em julgado, que declarassem inconstitucional umalei.

    A retroatividade mdia quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de ato jurdicoverificados antes dela, exemplo: uma lei que limitasse a taxa de juros e no seaplicasse aos vencidos e no pagos.

    Enfim a retroatividade mnima (tambm chamada temperada ou mitigada), quando alei nova atinge apenas os efeitos dos atos anteriores produzidos aps a data em queela entra em vigor. Tal , no direito romano, a lei de Justiniano (C. 4, 32, de usuris,26, 2 e 27 pr.), que, corroborando disposies legislativas anteriores, reduziu a taxade juros vencidos aps a data da sua obrigatoriedade. Outro exemplo: o Decreto-Lein 22.626, de 7 de abril de 1933, que reduziu a taxa de juros e se aplicou, a partir da

    sua data, aos contratos existentes, inclusive aos ajuizados (art. 3) (pgs. 22/23)"29.

    Na verdade, se apenas os eventos j definitivamente ocorridos no passado estivessem a salvo da

    lei nova, os conceitos de direito consumado e adquirido30 se confundiriam e haveria poucopropsito na existncia da clusula constitucional do art. 5, XXXVI, uma vez que so muito rarasas situaes em que a lei nova pretende modificar o passado de forma direta. O problema de

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 6/19

    direito intertemporal se coloca exatamente em relao aos eventos que comearam a se verificar

    antes, mas cujos efeitos ou parte deles apenas ocorreram depois da vigncia da nova lei31.Ademais, a segurana jurdica seria gravemente vulnerada se apenas se pudesse ter certeza dasregras aplicveis a atos ou negcios instantneos, que se esgotassem em um nico momento;nessa linha de raciocnio, qualquer relao que perdurasse no tempo poderia ser colhida pela leinova, em detrimento evidente da previsibilidade mnima que se espera do Estado de Direito. bemde ver, como j se registrou e se ver mais detalhadamente adiante, que, por esse conjunto derazes, o prprio Roubier no aplicava sua formulao geral aos contratos.

    Em suma: a incidncia da lei nova sobre os efeitos de atos praticados na vigncia da lei antiga modalidade de retroatividade vedada pela Constituio de 1988. Cabe agora verificar que espciede ato normativo est vinculado pelo que dispe o art. 5, XXXVI, da Constituio.

    III.2. A lei nova e sua natureza: a irrelevncia da noo de lei de ordem pblica

    J se consignou linhas atrs que a regra do art. 5, XXXVI, dirige-se ao legislador de todos osnveis, s no se sobrepondo ao constituinte. Quanto ao contedo do ato normativo, no hqualquer distino entre as chamadas leis de ordem pblica e as demais, como faz supor certo

    segmento doutrinrio32. A Constituio no prev excees. Qualquer lei, seja qual for o adjetivoque se lhe vier a agregar, est obrigada a respeitar essas garantias, mesmo porque nenhumsentido haveria em admitir-se que a lei, conferindo a si prpria determinada qualificao, pudesse

    afastar a garantia constitucional. A tese tem robusto suporte doutrinrio33.

    O argumento de que a proteo constitucional no seria oponvel s chamadas leis de ordempblica fundava-se na idia de superioridade do interesse pblico supostamente veiculado pelalei de ordem pblica nova sobre o individual, que consistiria na posio do indivduo titular dodireito adquirido ou do ato jurdico perfeito. Esse ponto de vista no deve prevalecer, por umconjunto de razes.

    Em primeiro lugar, a oposio descrita acima no verdadeira. No se trata de um conflito entreum interesse pblico e um individual, pois tambm a proteo dos direitos adquiridos e atosjurdicos perfeitos (alm da coisa julgada) corresponde a um interesse pblico da maiorimportncia, ao qual o constituinte inclusive atribuiu o status de clusula ptrea. Ademais, comodefinir o que ordem pblica, especialmente considerando que, j h muito, os limites entre o

    Direito Pblico e o Privado deixaram de existir com nitidez34? Praticamente qualquer tipo dedisposio normativa pode receber, com conforto, essa espcie de rtulo. Por fim, o prpriodogma da supremacia do interesse pblico encontra-se hoje em crise. J no mais possvelcompreender o interesse pblico como um conceito abstrato, sem titulares, difusamente associado

    idia de razes de Estado e desvinculado dos indivduos e de seus direitos35.

    Nesse passo, o Supremo Tribunal Federal j decidiu diversas vezes que a caracterizao de lei deordem pblica no tem maior relevncia quando se est diante de direito adquirido, ato jurdico

    perfeito e coisa julgada. Confira-se, por todos36, trecho do acrdo marco na matria, relatadopelo Ministro Moreira Alves, in verbis:

    Se a lei alcanar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente aela, ser essa lei retroativa (retroatividade mnima) porque vai interferir na causa, que um ato ou fato ocorrido no passado.

    O disposto no artigo 5, XXXVI, da Constituio Federal se aplica a toda e qualquer leiinfraconstitucional, sem qualquer distino entre lei de direito pblico e lei de direitoprivado, ou entre lei de ordem pblica e lei dispositiva.

    Alis, no Brasil, sendo o princpio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurdicoperfeito e coisa julgada, de natureza constitucional, sem qualquer exceo aqualquer espcie de legislao ordinria, no tem sentido a afirmao de muitos apegados ao direito de pases em que o preceito de origem meramente legal deque as leis de ordem pblica se aplicam de imediato alcanando os efeitos futuros doato jurdico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se se alteram os efeitos,

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 7/19

    bvio que se est introduzindo modificao na causa, o que vedado

    constitucionalmente"37.

    E isto no se altera caso o argumento de que as leis de ordem pblica no se submetem vedao constitucional de retroatividade se transmude em razes de Estado, ou seja, quandofor invocado para se sustentar pretenso jurdica do Poder Pblico ou que envolva relevanteinteresse coletivo. A propsito, confiram-se os pronunciamentos dos Ministros Ilmar Galvo e Celsode Mello, respectivamente:

    Leis de ordem pblica Razes de Estado Motivos que no justificam odesrespeito estatal Constituio Prevalncia da norma inscrita no art. 5, XXXVI,da Constituio.

    A possibilidade de interveno do Estado no domnio econmico no exonera o PoderPblico do dever jurdico de respeitar os postulados que emergem do ordenamentoconstitucional brasileiro.

    Razes de Estado que muitas vezes configuram fundamentos polticos destinados ajustificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitvel adoo de medidas decarter normativo no podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento daprpria Constituio. As normas de ordem pblica que tambm se sujeitam clusulainscrita no art. 5, XXXVI, da Carta Poltica (RTJ 143/724) no podem frustrar aplena eficcia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e

    desrespeitando-a em sua autoridade"38.

    O Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, teve o ensejo de repelir esseargumento de ordem poltica (RTJ 164/1145-1146, Rel. Min. Celso de Mello), porentender que a invocao das razes de Estado alm de deslegitimar-se comofundamento idneo de impugnao judicial representaria, por efeito das gravssimasconseqncias provocadas por seu eventual reconhecimento, uma ameaainadmissvel s liberdades pblicas, supremacia da ordem constitucional e aosvalores democrticos que a informam, culminando por introduzir, no sistema de direito

    positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilizao"39.

    III.3. A noo de direito adquirido

    Assentado que as razes de Estado e as leis de ordem pblica no exoneram a atividadelegislativa da observncia da proteo constitucional do art. 5, XXXVI, cumpre agora aprofundara questo do direito adquirido. ainda a antiga opinio de Gabba que baliza o tema, apontando-lhe como caractersticas: 1) ter sido conseqncia de um fato idneo para a sua produo; 2)

    ter-se incorporado definitivamente ao patrimnio do titular40. O conhecimento corrente o de quehavendo o fato necessrio aquisio de um direito ocorrido integralmente sob a vigncia de umadeterminada lei, mesmo que seus efeitos somente se devam produzir em um momento futuro,

    tero de ser respeitados na hiptese de sobrevir uma lei nova41.

    O direito adquirido pode ser melhor compreendido se extremado de duas outras categorias que lheso vizinhas, a saber: a expectativa de direito e o direito consumado. Com base na sucesso denormas no tempo e na posio jurdica a ser desfrutada pelo indivduo em face da lei nova, possvel ordenar estes conceitos em seqncia cronolgica: em primeiro lugar, tem-se aexpectativa do direito, depois o direito adquirido e, por fim, o direito consumado.

    A expectativa de direito identifica a situao em que o fato aquisitivo do direito ainda no secompletou quando sobrevm uma nova norma alterando o tratamento jurdico da matria. Nestecaso, no se produz o efeito previsto na norma, pois seu fato gerador no se aperfeioou.Entende-se, sem maior discrepncia, que a proteo constitucional no alcana esta hiptese,embora outros princpios, no desenvolvimento doutrinrio mais recente (como o da boa-f e o daconfiana), venham oferecendo algum tipo de proteo tambm ao titular da expectativa de

    direito42.

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 8/19

    Na seqncia dos eventos, direito adquirido traduz a situao em que o fato aquisitivo aconteceupor inteiro, mas por qualquer razo ainda no se operaram os efeitos dele resultantes. Nestahiptese, a Constituio assegura a regular produo de seus efeitos, tal como previsto na normaque regeu sua formao, nada obstante a existncia da lei nova. Por fim, o direito consumadodescreve a ltima das situaes possveis quando no se vislumbra mais qualquer conflito de leisno tempo que aquela na qual tanto o fato aquisitivo quanto os efeitos j se produziram

    normalmente. Nesta hiptese, no possvel cogitar de retroao alguma43.

    De modo esquemtico, possvel retratar a exposio desenvolvida na sntese abaixo:

    a) Expectativa de direito: o fato aquisitivo teve incio, mas no se completou;

    b) Direito adquirido: o fato aquisitivo j se completou, mas o efeito previsto na norma ainda nose produziu;

    c) Direito consumado: o fato aquisitivo j se completou e o efeito previsto na norma j se

    produziu integralmente44.

    Cumpre fazer uma nota final sobre o que se convencionou denominar de regime jurdico ou regime

    legal45. O chamado regime jurdico designa um espao no qual, segundo a doutrina e, emespecial, a jurisprudncia, no h direito adquirido. Alguns exemplos citados com freqncia paraexemplificar essa figura so as relaes que existem entre o servidor e o ente pblico que o

    remunera46 e entre os indivduos em geral e o padro monetrio existente no pas47. Da aafirmao, sempre repetida, de que, e.g., no h direito adquirido do servidor ao regime jurdicoexistente quando de sua entrada no servio pblico, estando a lei nova autorizada a modificaresse regime mesmo em relao quelas pessoas que j eram, antes de sua entrada em vigor,

    servidores48. Isso no afasta, contudo, a possibilidade de aquisio de direitos mesmo naconstncia de relaes disciplinadas por um regime jurdico, bastando para tanto que os fatosaquisitivos legalmente previstos se realizem na sua integralidade. A prerrogativa de alterarunilateralmente as condies sob as quais se desenvolve o vnculo no poderia ter o condo deafastar a proteo constitucional conferida s situaes j aperfeioadas segundo as exignciasdo Direito ento vigente. Nesse sentido a seguinte passagem de voto do Min. SeplvedaPertence:

    Vale dizer: nem o carter institucional da relao com o FGTS, nem aconseqente improcedncia da pretenso de manter-se inclume alterao do seuestatuto legal implicam no deva a incidncia do regime novo respeitar eventuaisdireitos do trabalhador, adquiridos sob a lei anterior.

    Para sustentar o contrrio, seria preciso como pretendem as razes da Caixa reviver a desgastada tese da inoponibilidade do direito adquirido ou do ato jurdicoperfeito s leis de ordem pblica fruto da importao precipitada de liesdoutrinrias fundadas em ordenamentos em que a sua salvaguarda no tem estaturaconstitucional a qual, por isso, parece definitivamente sepultada na jurisprudnciado Tribunal, pelo menos, desde as solenes exquias que lhe dedicou o primorosoacrdo da ADIN 493, de 25-6-92, da lavra da Ministro Moreira Alves (RTJ 143/724).

    A proteo do direito adquirido tanto mais quanto objeto de garantiaconstitucional tcnica, na feliz expresso de Radbruch (El fin del Derecho,trad., BsAs, 1980, p. 112), da segurana do direito diante de sua mudana:segue-se que a alterao do regime legal de uma relao jurdica, ainda que decarter institucional, no afeta os efeitos jurdicos de fatos anteriores lei

    nova, se bastantes a aperfeioar a aquisio de um direito"49. (negrito

    acrescentado)

    A construo da idia de regime jurdico representa, na verdade, uma tentativa dedelimitar fora das hipteses em que se cuide de ato jurdico perfeito e de coisa julgada assituaes que geram direito adquirido e as que no geram. Nada obstante, a definio do que edo que no regime jurdico tem sido resolvida casuisticamente pela jurisprudncia e at o

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 9/19

    momento no se produziram parmetros claros, capazes de definir esses espaos. Na verdade,duas formulaes tm sido empregadas comumente para identificar o que seria o regime jurdico,uma positiva e outra negativa. Em primeiro lugar, diz-se, h regime jurdico quando a relaodecorre da lei e no de um acordo de vontade das partes. A segunda formulao assim

    enunciada: h regime jurdico quando no se trate de uma relao contratual50.

    III.4. A noo de ato jurdico perfeito

    A clusula constitucional do art. 5, XXXVI, faz referncia a distintas figuras: o ato jurdicoperfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Embora os trs institutos sejam constitucionais, na Lei de Introduo ao Cdigo Civil - LICC (Decreto-Lei n 4.657, de 04.09.42, na redao dadapela Lei n 3.238, de 01.08.57) que se vai encontrar uma tentativa de conceituao de cada um

    deles51, nos seguintes termos:

    Art. 6 A Lei em vigor ter efeito imediato e geral, respeitados o ato jurdico perfeito,o direito adquirido e a coisa julgada.

    1 Reputa-se ato jurdico perfeito o j consumado segundo a lei vigente ao tempo

    em que se efetuou.

    2 Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou algum por ele,possa exercer, como aqueles cujo comeo do exerccio tenha termo pr-fixo, ou

    condio pr-estabelecida inaltervel, a arbtrio de outrem.

    3 Chama-se coisa julgada ou caso julgado a deciso judicial de que j no caiba

    recurso52.

    Parte da doutrina visualiza em cada um deles estruturas diversas, cada qual objeto de proteo

    autnoma da Constituio53. A maioria dos autores, contudo, e tambm o Supremo Tribunal

    Federal54, identificam o direito adquirido como o objeto principal da proteo constitucional,sendo o ato jurdico perfeito e a coisa julgada apenas dois modos tpicos ainda que no nicos de gerao de direitos adquiridos. Ou seja: o ato jurdico perfeito e a coisa julgada do origem adireitos adquiridos.

    Alguns autores chegam a criticar a referncia da Carta ao ato jurdico perfeito e coisa julgada

    como um excesso intil; bastaria a meno ao direito adquirido para abranger todo o fenmeno55.Parecem ter melhor razo, no entanto, aqueles que vislumbram na tradicional opo doconstituinte brasileiro pela referncia trplice um objetivo didtico e simplificador: os conceitos deato jurdico perfeito e de coisa julgada so mais simples e precisos que o de direito adquirido, demodo que a referncia a eles, ainda que o objetivo indireto seja a proteo do direito adquirido por

    eles gerado, simplifica a discusso56. O Ministro Moreira Alves analisa a questo da seguinteforma:

    Esse conceito de direito adquirido para efeito de direito intertemporal um conceitoque se ns examinarmos mais de perto em face de outros dois o ato jurdico perfeitoe a coisa julgada, ns vamos chegar concluso de que, na realidade, os trspoderiam estar compendiados em um s, ou seja, tanto do ato jurdico perfeito quandoda coisa julgada decorreriam necessariamente o direito adquirido. Conseqentementeno haveria em rigor necessidade de valermo-nos desses outros dois conceitos. Mas apergunta que se faz por que isso? A resposta talvez seja uma resposta pragmtica,mas eu nunca encontrei outra.

    que os conceitos de ato jurdico perfeito e coisa julgada so conceitos singelos, arespeito dos quais no h maior discusso, ao passo que o conceito de direitoadquirido um conceito bastante controvertido ou pelo menos um conceito cujocontedo ainda bastante controvertido, e, conseqentemente, d margem a muitosproblemas. Por isso mesmo que os senhores verificam que toda vez que nspodemos lanar mo do ato jurdico perfeito e da coisa julgada, ningum vai lanar

    mo do direito adquirido"57.

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 10/19

    Feita essa breve digresso, volta-se o foco para a noo de ato jurdico perfeito. Na definio daLICC, ato jurdico perfeito o j consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.Em palavras de Pontes de Miranda: O ato jurdico perfeito o negcio jurdico, ou o ato jurdicostricto sensu; portanto, assim as declaraes unilaterais de vontade como os negcios jurdicos

    bilaterais"58. O contrato, como se sabe, constitui o tpico negcio jurdico bilateral e o exemplomais citado de ato jurdico perfeito. Para os fins da discusso aqui proposta, nele que seconcentrar a discusso da matria.

    Em desfecho desse tpico e antes de aprofundar a discusso especfica, possvel compendiar demodo sumrio as principais idias expostas at aqui, consoante as proposies seguintes:

    1. inexiste liberdade de conformao do legislador para aplicar o direito novo a situaes jurdicasj consolidadas, que se subsumam nas hipteses constitucionalmente protegidas de direitoadquirido e ato jurdico perfeito;

    2. irrelevante a qualificao da lei nova como lei dispositiva ou de ordem pblica, para fins de sesolver o conflito intertemporal de leis; e

    3. somente o constituinte originrio pode afetar direito adquirido e ato jurdico perfeito, mas aindaassim dever faz-lo de modo expresso. O legislador infraconstitucional somente poderprescrever a retroatividade quando ela no afetar as situaes constitucionalmente protegidas.

    Parte II

    O Novo Cdigo Civil e os Contratos a Ele Anteriores

    IV. Os Contratos e a Proteo Constitucional do Ato Jurdico Perfeito

    A teoria do ato jurdico perfeito e do direito adquirido teve especial desenvolvimento no campo doscontratos, tendo em conta a importncia da autonomia da vontade nesse particular. Aomanifestarem o desejo de se vincular em um ajuste, as partes avaliam as conseqncias dessadeciso, considerando as normas em vigor naquele momento. incompatvel com a idia desegurana jurdica admitir que a modificao posterior da norma pudesse surpreender as partespara alterar aquilo que tinham antevisto no momento da celebrao do contrato. Por essa razo que mesmo Paul Roubier, o defensor da incidncia imediata da lei nova sobre os fatos pendentes,abria exceo explcita em sua teoria aos contratos. Estes, assinalou Roubier, no se regem pelo

    princpio da incidncia imediata da lei nova, e sim pelo da sobrevivncia da lei antiga59. Em suma: as relaes contratuais regem-se, durante toda a sua existncia, pela lei vigentequando de sua constituio. Isto : a lei nova no pode afetar um contrato j firmado, nem noque diz respeito sua constituio vlida, nem sua eficcia. Os efeitos provenientes docontrato, independentemente de se produzirem antes ou depois da entrada em vigor do direitonovo, so tambm objeto de salvaguarda, na medida em que no podem ser dissociados de suacausa jurdica, o prprio contrato. A lio de Henri de Page sobre o assunto clssica e foireproduzida por Caio Mrio da Silva Pereira nos seguintes termos:

    Os contratos nascidos sob o imprio da lei antiga permanecem a ela submetidos,mesmo quando os seus efeitos se desenvolvem sob o domnio da lei nova. O que ainspira a necessidade da segurana em matria contratual. No conflito dos doisinteresses, o do progresso, que comanda a aplicao imediata da lei nova, e o daestabilidade do contrato, que conserva aplicvel a lei antiga, tanto no que concernes condies de formao, de validade e de prova, quanto no que alude aos efeitos

    dos contratos celebrados na vigncia da lei anterior, preleva este sobre aquele"60.

    A questo, na verdade, como j se tinha destacado desde o incio, no controvertida. A

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 11/19

    doutrina aponta a existncia de consenso no sentido de subordinar os efeitos do contrato leivigente no momento em que tenha sido firmado, mesmo quando tal aplicao importa em atribuir

    ultratividade lei anterior, negando-se efeito lei nova61. A aplicao imediata da lei nova, nessecaso, produziria a denominada retroatividade mnima, que por ser igualmente gravosa seguranajurdica, tambm vedada pelo sistema constitucional. Reaviva-se aqui a passagem clssica doMinistro Moreira Alves sobre o assunto, in verbis:

    Se a lei alcanar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, seressa lei retroativa porque vai interferir na causa, que um ato ou fato ocorrido no

    passado. Nesse caso, a aplicao imediata se faz, mas com efeito retroativo"62.

    Vale ainda observar que as concluses expostas acima no se alteram quando estejam emquesto contratos de trato sucessivo ou de execuo continuada, cuja caracterstica exatamente a produo de efeitos que se protraem no tempo. Parece fora de dvida que tambmesses ajustes consubstanciam atos jurdicos perfeitos e devem reger-se, para todos os seusefeitos, pela lei vigente ao tempo de sua constituio. A doutrina, tanto clssica como mais

    moderna, incontroversa a este respeito63. A jurisprudncia igualmente tranqila nesse mesmo sentido. Tal foi o entendimento adotado peloSuperior Tribunal de Justia em relao aos contratos que se encontravam em curso quando daentrada em vigor do Cdigo de Defesa do Consumidor, sobre os quais o novo diploma no pde

    incidir64, e do Supremo Tribunal Federal, ainda antes de 1988, no que diz respeito aos contratos

    de locao, em relao nova lei que passou a reger a matria65. Aps a nova Constituio, o

    Supremo Tribunal Federal j teve oportunidade de se manifestar reiteradas vezes sobre o ponto66.Recentemente, reiterou seus precedentes no tocante as cadernetas de poupana e pronunciou-seacerca da incidncia da lei dos planos de sade s relaes preexistentes. Confiram-se excertosde cada uma das decises:

    Caderneta de poupana Contrato de depsito validamente celebrado Ato jurdicoperfeito Intangibilidade constitucional CF/88, art. 5, XXXVI Inaplicabilidade delei superveniente data da celebrao do contrato de depsito, mesmo quanto aosefeitos futuros decorrentes do ajuste negocial (...) Os contratos submetem-se,quanto ao seu estatuto de regncia, ao ordenamento normativo vigente poca desua celebrao. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormentecelebrados no se expem ao domnio normativo de leis supervenientes. Asconseqncias jurdicas que emergem de um ajuste negocial vlido so regidas pelalegislao em vigor no momento de sua pactuao. Os contratos que se qualificamcomo atos jurdicos perfeitos (RT 547/215) acham-se protegidos, em suaintegralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguardaconstante do art. 5, XXXVI, da Constituio da Repblica. Doutrina e Precedentes(...) A incidncia imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contratopreexistente, precisamente por afetar a prpria causa geradora do ajuste negocial,reveste-se de carter retroativo (retroatividade injusta de grau mnimo), achando-sedesautorizada pela clusula constitucional que tutela a intangibilidade das situaes

    jurdicas definitivamente consolidadas. Precedentes"67. O Tribunal, por aparente ofensa ao direito adquirido e ao ato jurdico perfeito (CF,art. 5, XXXVI), deferiu em parte o pedido de medida cautelar para declarar ainconstitucionalidade da expresso "atuais e" constante do 2 do art. 10 da Lei9.656/98, com a redao dada pela Medida Provisria 1.908-18/99, delimitando, noentanto, a incidncia da declarao aos contratos aperfeioados at o dia 3/6/98, eaos aperfeioados entre 4/6/98 e 1/9/98 e entre 8/12/98 e 2/12/99 (Art. 10. institudo o plano-referncia de assistncia sade, com cobertura assistencialmdico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizadosexclusivamente no Brasil, com padro de enfermaria, centro de terapia intensiva, ousimilar, quando necessria a internao hospitalar, das doenas listadas na

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 12/19

    Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas Relacionados com aSade, da Organizao Mundial de Sade, respeitadas as exigncias mnimasestabelecidas no art. 12 desta Lei (...) 2 As pessoas jurdicas que comercializamprodutos de que tratam o inciso I e o 1 do art. 1 desta Lei, oferecero,obrigatoriamente, a partir de 3 de dezembro de 1999, o plano-referncia de que trata

    este artigo a todos os seus atuais e futuros consumidores)"68.

    Em suma: os contratos, frutos da autnoma estipulao das partes, bem como seus efeitosfuturos, encontram-se protegidos pela garantia constitucional prevista no art. 5, XXXVI, contra

    os efeitos da lei nova, que no poder atingi-los69.

    V. Inconstitucionalidade Parcial do Art. 2.035 do Novo Cdigo Civil no Que Diz Respeito aosContratos Celebrados na Vigncia do Cdigo de 1916.

    vista dos conceitos expostos at aqui, cabe em desfecho examinar diretamente o art. 2.035 donovo Cdigo Civil. Este o teor literal do dispositivo, que se reproduz mais uma vez, por facilidade:

    Art. 2.035. A validade dos negcios e demais atos jurdicos, constitudos antes daentrada em vigor deste Cdigo, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas noart. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos aps a vigncia deste Cdigo, aospreceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinadaforma de execuo.

    Pargrafo nico. Nenhuma conveno prevalecer se contrariar preceitos de ordempblica, tais como os estabelecidos por este Cdigo para assegurar a funo social dapropriedade e dos contratos.

    Da leitura do enunciado normativo transcrito possvel visualizar, desde logo, dois vcios deinconstitucionalidade bastante claros, quando se pretenda aplic-lo aos contratos. O primeiro vcioest localizado na orao final do caput. A despeito de o artigo iniciar registrando que a validadedos negcios e atos jurdicos constitudos antes da entrada em vigor do novo Cdigo estsubordinada ao que dispunham as normas que lhe eram contemporneas, a sua parte finalpretende que os efeitos desses mesmos negcios sejam agora submetidos ao que prev o novoCdigo Civil. Ora, como se procurou demonstrar, em matria de contratos isto , de atos jurdicosque resultam da disposio autnoma das partes, no apenas as condies de sua validade, mastambm seus efeitos encontram-se protegidos da incidncia da lei superveniente, ainda que setrate de efeitos futuros e no realizados quando da entrada em vigor do novo diploma normativo.

    A segunda inconstitucionalidade do artigo encontra-se em seu pargrafo nico, na medida em quese entenda que a norma pretende fazer aplicar disposies do novo Cdigo Civil aos contratos emcurso (dentre outros atos jurdicos), sob o fundamento de terem o carter de normas de ordem

    pblica, como, e.g., as que envolvam a funo social da propriedade e do contrato70. Comotambm j se exps acima, o fato de uma norma poder ser qualificada como de ordem pblica nolhe confere o poder de afastar a garantia constitucional prevista pelo art. 5, XXXVI, da Carta de1988. Diante de um ato jurdico perfeito, torna-se irrelevante qual a natureza da norma: todaselas devero respeito ao ato, por expressa determinao constitucional.

    Em resumo: o art. 2.035 do novo Cdigo Civil produz duas situaes de invalidade, na verdadeinterligadas, que podem ser descritas da seguinte forma: inconstitucional, por violar a garantiaconstitucional conferida ao ato jurdico perfeito (CF, art. 5, XXXVI), a aplicao do novo CdigoCivil aos efeitos de contratos firmados antes da vigncia desse diploma, como pretende o caputdo art. 2.035, concluso que no se altera pelo fato de as normas do novo diploma poderem ser

    qualificadas como normas de ordem pblica71.

    Concluso

    Em desfecho desse estudo, possvel sintetizar as principais idias nele desenvolvidas em umaconcluso objetiva, enunciada na proposio que se segue.

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 13/19

    A garantia contra a retroatividade da lei prevista no art. 5, XXXVI, da Constituio, impede queos contratos, mesmo aqueles de trato sucessivo, ou quaisquer outros atos jurdicos perfeitos,sejam afetados pela incidncia da lei nova, tanto no que diz respeito sua constituio vlida,quanto no que toca produo de seus efeitos, ainda que estes se produzam j sob o imprio danova lei. Neste sentido, no pode ser aplicada integralmente a regra do art. 2.035 do novo CdigoCivil, sob pena de inconstitucionalidade. Esta concluso no se altera pelo fato de a norma novapoder ser qualificada como norma de ordem pblica. A Constituio no distingue entre espciesde leis e no se pode admitir que a norma infraconstitucional, qualificando a si prpria de umadeterminada forma, afaste a garantia constitucional. A proteo constitucional recai sobre oncleo da manifestao de vontade das partes e seus efeitos, e no sobre o tratamento legal doinstituto ou da matria.

    1O art. 2.045 o que declara revogados, pelo novo Cdigo Civil, o Cdigo Civil de 1916 e a primeira parte do

    Cdigo Comercial.

    2Constituio Federal, art. 5, LIV: ningum ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processolegal. Na Emenda 5 Constituio dos Estados Unidos da Amrica: No person shall be deprived of life, liberty, or

    property, without due process of law.

    3Lei n 9.784/99: Art. 2. A Administrao Pblica obedecer, dentre outros, aos princpios da legalidade, finalidade,

    motivao, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditrio, segurana jurdica, interesse

    pblico e eficincia.

    4Lei n 9.784/99: Art. 2 (...): IV atuao segundo padres ticos de probidade, decoro e boa-f.

    5Lei n 9.784/99: Art. 2 (...): XIII interpretao da norma administrativa da forma que melhor garanta o

    atendimento do fim pblico a que se dirige, vedada aplicao retroativa de nova interpretao.

    6Lei n 5.172/66: Art. 146. A modificao introduzida, de ofcio ou em conseqncia de deciso administrativa ou

    judicial, nos critrios jurdicos adotados pela autoridade administrativa no exerccio do lanamento somente pode ser

    efetivada, em relao a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente sua

    introduo.

    7Lei n 9.868/99: Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razes de

    segurana jurdica ou de excepcional interesse social, poder o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois teros

    de seus membros, restringir os efeitos daquela declarao ou decidir que ela s tenha eficcia a partir de seu

    trnsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

    8O dispositivo objeto de duas aes diretas de inconstitucionalidade, ainda no apreciadas: ADIn 2.154-2 e ADIn

    2.258-0, ambas tendo como relator o Min. Seplveda Pertence.

    9A propsito, veja-se Lus Roberto Barroso, A segurana jurdica na era da velocidade e do pragmatismo. In:

    Temas de direito constitucional, Tomo I, 2002, p. 51.

    10At a edio da Emenda Constitucional n 32, de 11.09.01, j haviam sido editadas 619 Medidas Provisrias

    originrias, tendo havido 5.491 reedies e 22 rejeies. Aps a Emenda, foram editadas mais 139 Medidas

    Provisrias originrias, sendo que 25 tiveram seu prazo de vigncia prorrogado por mais 60 dias, nos termos do

    art. 62, 7 da Constituio , e 14 foram rejeitadas.

    11Eduardo Couture, Os mandamentos do advogado, 1979, traduo de Ovdio Batista da Silva.

    12Paul Roubier, Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps), 1960, p. 3-4.

    13Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, 1946, p. 7.

    14Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, cit., p. 10.

    15Paul Roubier, Le droit transitoire, cit., p. 223. Sobre o tema, no direito brasileiro, v. R. Limongi Frana, A

    irretroatividade das leis e o direito adquirido, 1982.

    16Constituio Poltica dos Estados Unidos Mexicanos, art. 14: A ninguna ley se dar efecto retroactivo en perjuicio

    de persona alguna.

    17Este o entendimento acolhido na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal, como se v em ADInMC 605-DF,

    RTJ, 145:463, 1993, rel. Min. Celso de Mello: O princpio da irretroatividade somente condiciona a atividade jurdica

    do Estado nas hipteses expressamente previstas pela Constituio, em ordem a inibir a ao do Poder Pblico

    eventualmente configuradora de restrio gravosa (a) ao status libertatis da pessoa (CF, art. 5, XL), (b) ao status

    subjectionis do contribuinte em matria tributria (CF, art. 150, III, a) e (c) segurana jurdica no domnio das

    relaes sociais (CF, art. 5, XXXVI). A doutrina, tanto civilista como publicista, chancela este ponto de vista, como

    se colhe, por todos, em: Silvio Rodrigues, Direito civil, v. 1, p. 51 e 53; e Pinto Ferreira, Comentrios Constituio

    brasileira, 1989, v. 1, p. 143.

    18M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judicirio, 1979, p. 3.

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 14/19

    19Na doutrina, vejam-se, por todos, Caio Mrio da Silva Pereira, Direito constitucional internacional, RF, 304:29, 1998,

    e Wilson de Souza Campos Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 438. Na jurisprudncia, v. RTJ, 67:327, Rep. 895, rel.

    Min. Djaci Falco, RTJ, 71:461, RE 75.418, rel. Min. Thompson Flores, e RTJ, 140:1008, AI 134.271, rel. Min. Moreira

    Alves, RDA, 196:107, 1994, ADIn 248-1-RJ, rel. Min. Celso de Mello, onde se lavrou: A supremacia jurdica das

    normas inscritas na Carta Federal no permite, ressalvadas as eventuais excees proclamadas no prprio texto

    constitucional, que contra elas seja invocado o direito adquirido. Tambm no Superior Tribunal de Justia se

    decidiu: A nova Carta Poltica proibiu, no art. 7, IV, a vinculao de valores ao salrio mnimo, para qualquer

    efeito. Dada a vedao, insubsiste qualquer direito adquirido percepo de vencimentos ou proventos expressos

    em nmero desses salrios (RT, 692:162, 1993, RMS 762-0-GO, rel. Min. Demcrito Reinaldo).

    20Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, cit., p. 53.

    21Igual orientao seguida por Wilson Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 438. V., tambm, Manoel Gonalves

    Ferreira Filho, Comentrios Constituio brasileira, 1990, v. 1, p. 9: S se deve aceitar como retroativa uma norma

    constitucional se isto resultar inapelavelmente do texto.

    22Art. 17: Os vencimentos, a remunerao, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria

    que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituio sero imediatamente reduzidos aos limites dela

    decorrentes, no se admitindo, neste caso, inovao de direito adquirido ou percepo de excesso a qualquer ttulo.

    23RT, 685:73, AP. 158.745-1/1, TJSP, rel. Des. Cezar Peluso.

    24A clusula temporria e extravagante do art. 17 do Alto das Disposies Constitucionais Transitrias da Carta de

    1988 no alcana situaes jurdicas cobertas pela precluso maior, ou seja, pelo manto da coisa julgada (STF, RTJ,

    167:656, 1999, RE 146.331-SP, rel. Min. Marco Aurlio). E, nos termos do voto do relator, ficou didaticamente

    consignado: A norma diz da impossibilidade de evocar-se o direito adquirido, silenciando quanto coisa julgada,

    isto , aquelas situaes jurdicas submetidas ao crivo do Estado-juiz e j cobertas pelo manto da precluso maior,

    no que voltada segurana da vida em sociedade. certo que, ao trmino do preceito, h referncia a percepo

    de excesso a qualquer ttulo. Todavia, a meno h de ter alcance perquirido considerada a referncia a direito

    adquirido e ao silncio, j consignado, quanto coisa julgada. induvidoso que o instituto da coisa julgada,

    agasalhado sistematicamente pelas Cartas brasileiras, revela-se possuidor de contornos inerentes s clusulas

    ptreas ....

    25A este propsito, v. o agudo comentrio do ex-Ministro Jos Carlos Moreira Alves, Direito adquirido, Frum

    Administrativo, 15:579, 2002, p. 581: O que certo que se tambm no tivesse sede constitucional seria umatragdia; nos pases do sistema legal as leis a que se d efeito retroativo so relativamente raras, e aqui no Brasil,

    apesar do princpio constitucional, o que sucede exatamente o contrrio. Da a razo pela qual uma multido de

    questes surge a todo momento com referncia a este problema de direito intertemporal no que diz respeito a ato

    jurdico perfeito, direito adquirido e coisa julgada.

    26Gabba, Teoria della retroattivit delle leggi, 1868.

    27Paul Roubier, Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps), 1960.

    28Caio Mrio sintetiza com preciso a disputa: Na soluo do problema [do conflito intertemporal de leis], duasescolas se defrontam. Uma, subjetivista, representada precipuamente por Gabba, afirma que a lei nova no pode

    violar direitos precedentemente adquiridos, que ele define como conseqncias de um fato idneo a produzi-lo em

    virtude da lei vigente ao tempo em que se efetuou, embora o seu exerccio venha se apresentar sob o imprio da

    lei nova (Gabba, Teoria della retroattivit delle leggi, vol. I, p. 182 e segs.). O que predomina a distino entre o

    direito adquirido e a expectativa de direito. Outra, objetivista, que eu considero representada por Paul Roubier,

    para o qual a soluo dos problemas est na distino entre efeito imediato e efeito retroativo. Se a lei nova

    pretende aplicar-se a fatos j ocorridos (facta praeterita) retroativa; se se refere aos fatos futuros (facta futura) no

    o . A teoria se diz objetiva, porque abandona a idia de direito adquirido, para ter em vista as situaes jurdicas,

    proclamando que a lei que governa os efeitos de uma situao jurdica no pode, sem retroatividade, atingir os

    efeitos j produzidos sob a lei anterior (Paul Roubier, ob. cit., vol. I, n. 41 e segs.) (Caio Mrio da Silva Pereira,

    Direito constitucional intertemporal, RF, 304:29, 1988, p. 31).

    29STF, RTJ, 143:744-5, ADIn 493-DF, rel. Min. Moreira Alves., 30Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 32: Como ultimo elemento caracterstico do direito

    adquirido, exige a definio que o direito ainda no tenha sido feito valer, isto , que ainda no tenha sido

    realisado em todos os seus effeitos. Nesta condio est o criterio pelo qual se distingue o direito adquirido

    daquelle que j foi consummado. Desde que o titular de um direito j o fez valer contra quem elle existia, e desde

    que j se realisaram os effeitos delle decorrentes, esse direito entrou para a classe dos factos consummados,

    deante dos quaes nem possivel cogitar de aco retroactiva de lei alguma. O direito adqquirido um direito que

    pertence a alguem, mas que ainda no produziu todos os seus effeitos (...) (transcrio ipsis litteris).

    31Sobre o ponto, v. tb. Celso Antnio Bandeira de Mello, O direito adquirido e o direito administrativo, RTDP, 24:54,

    1998, p. 58: Da que o grande mrito da teoria do direito adquirido no reside na proposta de salvaguardar o que

    j se venceu, mas justamente em oferecer soluo para os problemas suscitados pelos facta pendentia, ao indicar

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 15/19

    quando a lei nova tem que respeitar o que ainda no est clausurado pela cortina do tempo transacto.

    32A propsito da posio que as leis de ordem pblica assumem no conflito intertemporal de leis, Rubens Limongi

    Frana registra a presena de trs correntes doutrinrias razoavelmente bem definidas no direito brasileiro. Na

    primeira delas, a dos partidrios do efeito retroativo, incluir-se-iam Clvis Bevilqua, os Espnolas e Carvalho

    Santos. Na outra mo, autores como Eduardo Theiler, Oscar Tenrio e Caio Mrio propugnam o respeito ao direito

    adquirido. E, por fim, h o grupo dos consectrios do efeito imediato, integrado, entre outros, por Pontes de Miranda

    e Vicente Ro. Peculiar o entendimento do prprio Rubens Limongi Frana, para quem as normas de importncia

    pblica ou social expressiva, que tm efeito imediato como regra, poderiam retroagir desde que: (i) o legislador

    assim determinasse explicitamente e (ii) tal retroatividade, ao sobrepujar direitos adquiridos, no alcanasse

    propores de desequilbrio social e jurdico. V. Rubens Limongi Frana, A irretroatividade das leis e o direito adquirido,

    1982, p. 253 e s.

    33Vejam-se: Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 67: O que convm ao applicador deuma nova lei de ordem publica ou de direito publico, verificar se, nas relaes jurdicas j existentes, h ou no

    direitos adquiridos. No caso affirmativo, a lei no deve retroagir, porque a simples invocao de um motivo de

    ordem publica no basta para justificar a offensa ao direito adquirido, cuja inviolabilidade, no dizer de Gabba,

    tambm um forte motivo de interesse publico; e Caio Mrio da Silva Pereira, Instituies de direito civil, vol. I, 1997,

    p. 107: Costuma-se dizer que as leis de ordem pblica so retroativas. H uma distoro de princpio nesta

    afirmativa. Quando a regra da no-retroatividade de mera poltica legislativa, sem fundamento constitucional, o

    legislador, que tem o poder de votar leis retroativas, no encontra limites ultralegais sua ao, e, portanto, tem a

    liberdade de estatuir o efeito retrooperante para a norma de ordem pblica, sob o fundamento de que esta se

    sobrepe ao interesse individual. Mas, quando o princpio da no-retroatividade dirigido ao prprio legislador,

    marcando os confins da atividade legislativa, atentatria da Constituio a lei que venha ferir direitos adquiridos,

    ainda que sob inspirao da ordem pblica. A tese contrria encontra-se defendida por escritores franceses ou

    italianos, precisamente porque, naqueles sistemas jurdicos, o princpio da irretroatividade dirigido ao juiz e no ao

    legislador.

    34Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 67: Antes de tudo, cumpre ponderar que difficilimo

    discriminar nitidamente aquillo que de ordem publica e aquillo que de ordem privada. So to intimas as

    relaes de direito publico e de direito privado, que j Bacon observava no seu aphorismo III jus privatum, sub

    tutela juris publici, latet. O interesse publico e o interesse privado se entrelaam de tal frma, que as mais das vezes

    no possvel separ-los. (transcrio ipsis litteris) . Note-se que o registro foi feito h quase um sculo.

    35Para uma contestao deste que sempre foi considerado um dos principais paradigmas do direito pblico

    brasileiro, confira-se o trabalho de Humberto Bergmann vila, Repensando o princpio da supremacia do interesse

    pblico sobre o particular, RTDP, 24:159, 1998. Joana Carolina Lins Pereira, que j analisa a posio das leis de

    ordem pblica no conflito intertemporal de leis sob o prisma da ponderao de princpios, conclui igualmente pelaprevalncia da segurana jurdica (Direito adquirido e leis de ordem pblica, Revista Trimestral de Jurisprudnciados Estados, 176:51, 2000). 36Nesse mesmo sentido, dentre outros: STF, DJU, 6 jun. 1997, RE 205.193-RS, rel. Min. Celso de Mello; RTJ, 89:634,

    1979; RE 88.790-RS, rel. Min. Moreira Alves; 90:296, 1979, RE 89.430-BA, rel. Min. Rodrigues Alckmin; 107:394,

    1984, RE 99.601-SP, rel. Min. Rafael Mayer; 112:759, 1985, AgRg no AI 99.655-SP, rel. Min. Moreira Alves; e

    164:1145, 1998, RE 209.519-SC, rel.Min. Celso de Mello.

    37STF, RTJ, 143:724, 1993, ADIn 493-DF, rel. Min. Moreira Alves.

    38STF, RTJ, 164:1145, 1998, RE 209.519-SC, rel. Min. Celso de Mello.

    39STF, RTJ, 174:916, 2000, p. 986, RE 226.855-RS, rel. Min. Moreira Alves.

    40V. Gabba, Teoria della retroattivit delle leggi, 1868, p. 191: adquirido todo direito que: a) conseqncia de um

    fato idneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato se realizou, embora a ocasio de faz-lo valer

    no se tenha apresentado antes da atuao de uma lei nova a respeito do mesmo, e que b) nos termos da lei sob

    o imprio da qual se verificou o fato de onde se origina, passou imediatamente a fazer parte do patrimnio de

    quem o adquiriu. V., tambm, Carlyle Popp, A retroatividade das normas constitucionais e os efeitos da

    Constituio sobre os direitos adquiridos, Paran Judicirio, 36, p. 13.

    41Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 32: Direitos adquiridos so consequencias de factos

    juridicos passados, mas consequencias ainda no realisadas, que ainda no se tornaram de todo effectivas. Direito

    adquirido , pois, todo o direito fundado sobre um facto juridico que j succedeu, mas que ainda no foi feito valer.

    42Almiro do Couto e Silva, Princpios da legalidade da Administrao Pblica e da segurana jurdica no Estado de

    direito contemporneo, RDP, 84:46, 1987.

    43Reynaldo Porchat, Da retroactividade das leis civis, 1909, p. 32.

    44Um exemplo ilustrativo. A Emenda Constitucional n 20, de 15.12.98, instituiu a idade mnima de 60 anos para aaposentadoria dos servidores pblicos do sexo masculino. Anteriormente, bastava o tempo de servio de 35 anos.

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 16/19

    Ignorando-se as sutilezas do regime de transio, para simplificar o exemplo, confira-se a aplicao dos conceitos.

    O servidor pblico de 55 anos, que j tivesse se aposentado pelas regras anteriores, desfrutava de um direito

    consumado, isto , no poderia ser desaposentado. O servidor pblico que tivesse 55 anos de idade e 35 de

    servio quando da promulgao da emenda, mas ainda no tivesse se aposentado, tinha direito adquirido a

    aposentar-se, pois j se haviam implementado as condies de acordo com as regras anteriormente vigentes. O

    servidor que tivesse 45 anos de idade e 25 de servio, e que contava se aposentar da a 10 anos, tinha mera

    expectativa de direito, no desfrutando de proteo constitucional plena (embora se deva cogitar de que pudesse

    pleitear um regime de transio razovel, com base nos princpios da boa-f e da confiana).

    45Jos Carlos Moreira Alves, Direito adquirido, Frum Administrativo, 15:579, 2002, p. 584.

    46STF, DJU, 05 abr. 2002, p. 55, RE 177.072-SP, rel. Min. Seplveda Pertence: Servidores da Universidade de So

    Paulo: limite remuneratrio estabelecido pelos Decretos 28.218 e 28.359, de 1988, de conformidade com o disposto

    no art. 8 da LC est. 535, de 29.2.88: inocorrncia de ofensa garantia constitucional do direito adquirido que no

    impede a aplicao imediata de norma modificadora do regime jurdico do servidor pblico , nem ao princpio da

    isonomia, que no serve de fundamento para concesso por deciso judicial de aumento de vencimentos de

    servidores pblicos (Smula 339);STF, DJU, 19 abr. 1996, RE 178.802-RS, rel. Min. Maurcio Correa: Os proventos

    da inatividade so regulados pela norma vigente ao tempo de sua aposentadoria, mas o servidor no tem direito

    adquirido aos critrios legais com base em que quantum foi estabelecido, nem prevalncia do regime jurdico

    ento vigente, ainda mais quando, em obedincia a preceito constitucional a esse superveniente, lei nova vem

    disciplinar o regime jurdico e o plano de carreira dos servidores, incorporando aos vencimentos e proventos as

    gratificaes antes recebidas em cascata ou repique, que no so permitidas pela nova ordem constitucional.

    No mesmo sentido: RTJ, 143:293, 1993, RE 134.502-SP, rel. Min. Carlos Velloso; RTJ, 99:1.267-SC, 1982, RE 92.511,

    rel. Min. Moreira Alves; RTJ 88:651, 1979, RE 88.305-CE, rel. Min. Moreira Alves.

    47STF, DJU, 01 mar. 1991, RE 114.982-RS, rel. Min. Moreira Alves: Locao. Plano cruzado. Alegao de ofensa ao

    3 do artigo 153 da Emenda Constitucional n 1/69. Decreto-Lei n 2.290/86 e Decreto n 92.592/86. - Falta de

    prequestionamento da questo constitucional (alegao de ofensa ao 3 do art. 153 da Emenda Constitucional n

    1/69), quanto a limitao da clusula de reajuste semestral do aluguel referida no acrdo recorrido. - J se firmou

    a jurisprudncia desta Corte, como acentua o parecer da Procuradoria-Geral da Repblica, no sentido de que as

    normas que alteram o padro monetrio e estabelecem os critrios para a converso dos valores em face dessa

    alterao se aplicam de imediato, alcanando os contratos em curso de execuo, uma vez que elas tratam de

    regime legal de moeda, no se lhes aplicando, por incabveis, as limitaes do direito adquirido e do ato jurdico

    perfeito a que se refere o 3 do artigo 153 da Emenda Constitucional n 1/69. Recurso extraordinrio no

    conhecido.

    48Jos Carlos Moreira Alves, Direito adquirido, Frum Administrativo, 15:579, 2002, p. 584.

    49STF, RTJ, 174:916, 2000, p. 992, RE 226.855-RS, rel. Min. Moreira Alves. Registre-se, todavia, que o voto do Min.

    Seplveda Pertence acabou restando vencido, tendo o Tribunal decidido que os trabalhadores no tinham direito

    adquirido correo do saldo da conta vinculada do FGTS por determinados ndices, embora reconhecida a validade

    dos mesmos para os perodos invocados pelos recorrentes, sob o fundamento de que a relao em tela de carter

    institucional, com o que no seria invocvel a garantia do art. 5, XXXVI, da Constituio. A posio do Ministro

    Pertence a que corresponde melhor s idias desenvolvidas no presente trabalho.

    50STF, DJU, 13 out. 2000, RE 226.855-RS, rel. Min. Moreira Alves,:Fundo de Garantia por Tempo de Servio - FGTS.

    Natureza jurdica e direito adquirido. Correes monetrias decorrentes dos planos econmicos conhecidos pela

    denominao Bresser, Vero, Collor I (no concernente aos meses de abril e de maio de 1990) e Collor II. - O Fundo

    de Garantia por Tempo de Servio (FGTS), ao contrrio do que sucede com as cadernetas de poupana, no tem

    natureza contratual, mas, sim, estatutria, por decorrer da Lei e por ela ser disciplinado. - Assim, de aplicar-se a

    ele a firme jurisprudncia desta Corte no sentido de que no h direito adquirido a regime jurdico. - Quanto

    atualizao dos saldos do FGTS relativos aos Planos Vero e Collor I (este no que diz respeito ao ms de abril de

    1990), no h questo de direito adquirido a ser examinada, situando-se a matria exclusivamente no terreno legal

    infraconstitucional. - No tocante, porm, aos Planos Bresser, Collor I (quanto ao ms de maio de 1990) e Collor II,

    em que a deciso recorrida se fundou na existncia de direito adquirido aos ndices de correo que mandou

    observar, de aplicar-se o princpio de que no h direito adquirido a regime jurdico. Recurso extraordinrio

    conhecido em parte, e nela provido, para afastar da condenao as atualizaes dos saldos do FGTS no tocante aos

    Planos Bresser, Collor I (apenas quanto atualizao no ms de maio de 1990) e Collor II.

    51Quinze anos passados da entrada em vigor da Carta de 1988, no se tem notcia de que a constitucionalidade da

    LICC tenha sido questionada, de modo que, para todos os efeitos, deve-se consider-la recepcionada pela nova

    ordem constitucional. Vale lembrar, no entanto, que os conceitos em questo (ato jurdico perfeito, coisa julgada e

    direito adquirido) so constitucionais e no legais. Sobre o assunto, v. STF, RTJ, 174:932-933, 2000, RE 226.855-RS,

    rel. Min. Moreira Alves,: O prprio Superior Tribunal de Justia j chegou concluso de que, quando h alegao

    de direito adquirido, a questo puramente constitucional, pois no se pode interpretar a Constituio com base na

    lei, sendo certo que o artigo 6 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil nada mais faz do que explicitar conceitos que

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 17/19

    so os da Constituio, dado que o nosso sistema de vedao da retroatividade de cunho constitucional. E para se

    aferir se h, ou no, direito adquirido violado pela lei nova preciso verificar se a aquisio dele se deu sob a

    vigncia da lei antiga, no podendo, pois, ser ele prejudicado por aquela. A no ser que se faa esse confronto,

    jamais teremos hiptese em que esta Corte possa fazer prevalecer a vedao constitucional da retroatividade. Foi o

    que sempre se fez com relao aos reajustamentos de vencimentos em face dos planos econmicos. O contrrio

    no consagrado na jurisprudncia deste Tribunal.

    52 comum ver-se defendida a tese de que a Constituio, pela dico da norma que estabelece o respeito ao

    direito adquirido, ao ato jurdico perfeito e coisa julgada, teria consagrado como princpio a retroatividade, e no o

    contrrio. De fato, a lei pode retroagir legitimamente desde que no fira direito adquirido, ato jurdico perfeito ou

    coisa julgada e nem viole alguma das outras disposies que impedem sua ao retroativa. Todavia, tendo em vista

    a gravidade da retroatividade da lei, e o fato de que, na prtica, tais figuras abarcam parcela mais expressiva das

    situaes controvertidas, o verdadeiro princpio tem o sinal invertido; por isso, o mais apropriado falar em no-

    retroatividade. V. Jos Carlos Moreira Alves,Direito adquirido, Frum Administrativo, 15:579, 2002, p.

    581. Este o entendimento acolhido na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal, como se v naADInMC 605-DF, RTJ, 145:463, 1993, rel. Min. Celso de Mello,: O princpio da irretroatividadesomente condiciona a atividade jurdica do Estado nas hipteses expressamente previstas pelaConstituio, em ordem a inibir a ao do Poder Pblico eventualmente configuradora de restriogravosa (a) ao status libertatis da pessoa (CF, art. 5, XL), (b) ao status subjectionis docontribuinte em matria tributria (CF, art. 150, III, a) e (c) segurana jurdica no domnio dasrelaes sociais (CF, art. 5, XXXVI). A doutrina, tanto civilista como publicista, chancela esteponto de vista, como se colhe, por todos, em: Silvio Rodrigues, Direito civil, vol. 1, pp. 51 e 53; ePinto Ferreira, Comentrios Constituio brasileira, vol. 1, 1989, p. 143. 53Nesse sentido, Pontes de Miranda, Comentrios Constituio de 1967 com a Emenda n 1 de1969, t. V, 1971, p. 102: O ato jurdico perfeito, a que se refere o art. 153, 3 [agora, art. 5,XXXVI], o negcio jurdico, ou o ato jurdico stricto sensu; portanto, assim as declaraesunilaterais de vontade como os negcios jurdicos bilaterais, assim os negcios jurdicos, como asreclamaes, interpretaes, a fixao de prazo para a aceitao de doao, as comunicaes, aconstituio de domiclio, as notificaes, o reconhecimento para interromper a prescrio ou comsua eficcia (ato jurdico stricto sensu); e Jos Afonso da Silva, Curso de direito constitucionalpositivo, 1997, p. 414: A diferena entre direito adquirido e ato jurdico perfeito est em queaquele emana diretamente da lei em favor de um titular, enquanto o segundo negcio fundado

    na lei. 54V. STF, DJU, 28 set. 1984, RE 102.216-SP, rel. Min. Moreira Alves: Direito de preferncia de locatrio deimvel vendido a terceiro. (...) Em face do pargrafo 3 do artigo 153 da Constituio, que no faz qualquer

    distino em matria de ato jurdico perfeito e de direito adquirido, indubitvel que o contrato vlido entre as

    partes ato jurdico perfeito, dele decorrendo, para uma ou para ambas, direitos adquiridos. Se a lei posterior cria

    para terceiro direito sobre o objeto do contrato e oponvel a ambas as partes contratantes, no pode ela, sob pena

    de alcanar o ato jurdico perfeito e o direito adquirido entre as partes, ser aplicada a contratos validamente

    celebrados antes de sua vigncia. V. tambm Informativo STF n 32: A referncia a direito adquirido constante do

    art. 17 do ADCT (Os vencimentos, a remunerao, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de

    aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituio sero imediatamente reduzidos aos

    limites dela decorrentes, no se admitindo, neste caso, a invocao de direito adquirido ou percepo de excesso a

    qualquer ttulo.) compreende a coisa julgada e o ato jurdico perfeito. Com esse fundamento a Turma conheceu e

    deu provimento a RE interposto contra acrdo que deferira mandado de segurana para assegurar aos impetrantes

    (servidores pblicos) reajuste de remunerao idntico ao concedido a outra categoria funcional, sob o argumento

    de que esse direito fora reconhecido por deciso transitada em julgado. Precedente citado: RE 140.894-SP (1

    Turma, 10.05.95). RE 171.235-MA, rel. Min. Ilmar Galvo, 21.05.96.

    55Rubens Limongi Frana, A irretroatividade das leis e o direito adquirido, 1982, p. 212.

    56Nas palavras de Clvis Bevilqua, Teoria geral do direito civil, 1976, p. 26-7: Em rigor, tudo se reduz ao respeito

    assegurado aos direitos adquiridos; mas, como no ato jurdico perfeito e na coisa julgada se apresentam momentos

    distintos, aspectos particulares do direito adquirido, foi de vantagem, para esclarecimento da doutrina, que se

    destacassem esses casos particulares e deles se desse a justa noo.

    57Jos Carlos Moreira Alves, Direito adquirido, Frum Administrativo, 15:579, 2002, p. 582/3.

    58Pontes de Miranda, Comentrios Constituio de 1967 com a Emenda n 1 de 1969, t. V, 1971, p. 102.

    59V. Paul Roubier, Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps), 1960.

    60Caio Mrio da Silva Pereira, Instituies de direito civil, vol. I, 1997, pp. 100-101. 61Confirmando a assertiva, v. Arnoldo Wald, Da doutrina brasileira do direito adquirido e a projeo dos

    efeitos dos contratos contra a incidncia da lei nova, RILSF, 70:143, 1981, p. 145.62Jos Carlos Moreira Alves, As leis de ordem pblica e de direito pblico em face do princpio

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 18/19

    constitucional da irretroatividade, Revista da Procuradoria-Geral da Repblica, 1:13, 1992, p. 14. 63V. Vicente Ro, Ato jurdico, 1999, p. 63: Os atos de execuo continuada (todos e no apenas os contratos)

    caracterizam-se pela unidade orgnica da relao e pelo desdobramento ou pluralidade de suas prestaes, a fim

    de serem cumpridas em momentos ou termos sucessivos e predeterminados por lei, ou por atos dispositivos

    convencionais. Embora distintas quanto ao tempo de vencimento, essas prestaes mltiplas ou desdobradas umas

    s outras se prendem em conseqncia da unidade estrutural da relao que, gerando-as, as disciplina; e Celso

    Antnio Bandeira de Mello, O direito adquirido e o direito administrativo, RTDP, 24:54, 1998, p. 61: de lembrar

    que os contratos de trato sucessivo constituem-se por excelncia em atos de previso. Por meio deste instituto a

    ordem jurdica prestigia a autonomia da vontade ao ponto de propiciar-lhe o poder de fazer ajustes cuja fora

    especfica atrair para o presente eventos a serem desenrolados em um futuro s vezes distante.

    Por via dele, ento, as partes propem-se a garantir, desde j, aquilo que dever ubicar-se no futuro. Donde, ao se

    comprometerem, o que os contratantes esto visando eliminao da precariedade, porque a essncia do pacto

    (...) estabilizar, de logo, eventos que devero suceder mais alm no tempo. O fulcro do instituto, portanto, repousa

    na continuidade dos termos que presidem a avena. Se a lei nova pudesse subverter o quadro jurdico dentro do

    qual as partes avenaram, fazendo aplicar de imediato as regras supervenientes, estaria negando sentido prpria

    essncia deste tipo de vnculo, por instaurar resultado oposto ao que se busca com o instituto do contrato.

    64STJ, DJU, 04 abr. 1994, REsp 31.954-0-RS, rel. p/acrdo Min. Waldemar Zveiter: Por primeiro, considero que,

    formalizado o compromisso de venda e compra anteriormente vigncia da Lei n 8.078, de 11.9.90 (Cdigo de

    Proteo e Defesa do Consumidor), no incide na hiptese sub judice o preceituado art. 53 do mencionado diploma

    legal. Conforme ainda h pouco teve oportunidade de decidir o Sumo Pretrio, o disposto no art. 5, XXXVI, da

    Constituio Federal, se aplica a toda e qualquer norma infraconstitucional, sem qualquer distino entre lei de

    direito pblico e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pblica e lei dispositiva (Ao Direta de

    Inconstitucionalidade n 493-0/DF, relator Ministro Moreira Alves). Alis, no sentido da inaplicabilidade do Cdigo de

    Defesa do Consumidor a contrato celebrado sob a gide do ordenamento jurdico anterior por igual se orientou a C.

    Terceira Turma deste Tribunal, em precedente da relatoria do Ministro Eduardo Ribeiro (REsp 36.455-8-SP). No

    mesmo sentido: DJU, 19 set. 1994, p. 24.694, REsp 50.871-RS, rel. Min. Paulo Costa Leite; DJU, 5 set. 1994, p.

    23.110, REsp 45.666-5-SP, rel. Min. Barros Monteiro; DJU, 12 dez. 1994, p. 34.346, REsp 38.518-0-SP, rel. Min.

    Costa Leite; RSTJ, 65:393, REsp 38.492-3-SP, rel. Min. Antnio Torreo Brs.

    65STF, DJU, 28 set. 1984, RE 102.216-SP, rel. Min. Moreira Alves. 66STF, RTJ, 143:724, 1993, ADIn 493:DF, rel. Min. Moreira Alves: Disso deriva, a nosso ver, que sobrevivncia da

    eficcia das clusulas livremente pactuadas de um contrato, em matria que, poca da sua celebrao, era

    confiada autnoma estipulao das partes, no pode opor-se a lei superveniente, ainda que de ordem pblica. V.

    tambm, dentre outras decises, STF, DJU, 06 jun. 1997, RE 205.193-RS, rel. Min. Celso de Mello; STF, DJU, 19 dez.

    2002, ED no AI 292.979-RS, rel. Min. Celso de Mello; STF, DJU, 19 dez. 2002, ED no AI 358.471-RJ, rel. Min. Celso

    de Mello; STF, DJU, 28 mar. 2003, ED no AI 362.422-PR, rel. Min. Celso de Mello.

    67STF, DJU, 27 jun. 2003, ED no AI 366.803-2-RJ, rel. Min. Celso de Mello. No mesmo sentido, v. STF, DJU, 29 jun.

    2001, p. 48, AgRg no AI 331.432-SP, rel. Min. Seplveda Pertence: Caderneta de poupana: direito adquirido dos

    depositantes manuteno do critrio de correo monetria vigente na data do depsito. O STF, por ambas as

    suas Turmas, firmou entendimento no sentido de que "nos casos de caderneta de poupana cuja contratao ou

    renovao tenha ocorrido antes da entrada em vigor da Medida Provisria n 32, de 15.01.89, convertida em Lei n

    7.730, de 31.01.89, a elas no se aplicam, em virtude do disposto no artigo 5, XXXVI, da Constituio Federal, as

    normas dessa legislao infraconstitucional, ainda que os rendimentos venham a ser creditados em data posterior".

    68STF, Inf. STF, 317, j. 21.8.2003, ADInMC 1.931-DF, rel. Min. Maurcio Corra.

    69Nada obstante, impe-se estabelecer uma distino decisiva entre o ncleo da manifestao de vontade das

    partes, que deve ser intangvel, e a disciplina legal de um instituto ou de determinada matria. O que a

    Constituio impe que seja preservado a integridade da expresso de consenso entre os contratantes. Da no

    resulta, todavia, o congelamento do tratamento jurdico do tema. Por exemplo: uma lei nova que estabelea que o

    regime legal de bens no matrimnio ser o da comunho universal no poder ser aplicada retroativamente,

    colhendo os casamentos j celebrados. O regime de bens objeto de manifestao de vontade das partes e

    legtimo especular que no teria havido o acordo se vigesse o regime que se quer compulsoriamente instituir.

    Diferente a situao em que a lei nova institua, por exemplo, a possibilidade de divrcio. O ato jurdico perfeito,

    representado pelo casamento vlido, no autoriza um dos cnjuges a invocar direito adquirido indissolubilidade do

    vnculo matrimonial, opondo-se, por esse fundamento, pretenso de divrcio ajuizada pelo outro cnjuge. Trata-

    se, aqui, da disciplina legal do instituto, em aspecto situado na periferia da relao jurdica que se estabeleceu, e

    no no ncleo das vontades manifestadas.

    70A clusula da funo social da propriedade, da qual se infere a funo social dos contratos, integra o direito

    positivo brasileiro desde a promulgao da Constituio de 1988 (art. 5, XXIII), no constituindo, em si, uma

    novidade do novo Cdigo Civil. Desse modo, a validade de cada contrato, inclusive quanto adequao s

    exigncias de sua funo social, deve ser examinada em funo do quadro normativo existente quando de sua

  • 28/2/2014 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

    http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm 19/19

    celebrao.

    71Nesse sentido parecem ser as manifestaes dos poucos autores que j escreveram sobre o tema. V. Antnio

    Jeov Santos, Direito intertemporal e o novo Cdigo Civil, 2003, p. 69: Diante da insofismvel tendncia da

    intangibilidade do ato jurdico perfeito que os efeitos dos negcios jurdicos que venham a seperfazer durante a vigncia do Cdigo Civil de 2002 a este Cdigo no se subordinam. O Cdigo de1916 continuar sendo aplicado como proteo quele ato jurdico perfeito celebrado em pocaanterior vigncia do Cdigo Civil de 2002. Somente assim a segurana, a certeza e a justiacontratual gozaro de plenitude e eficcia; e Maria Helena Diniz, Cdigo Civil anotado, 2003, pp. 1.375: Onovo Cdigo Civil apenas poder incidir sobre situaes jurdicas iniciadas aps a data de sua vigncia (situaes

    jurdicas futuras); logo no atingir as consolidadas em pocas passadas (situaes jurdicas pretritas). Vigorar

    para os atos e negcios jurdicos, ou melhor, para as situaes jurdicas ex nunc, respeitando as j constitudas, pois

    no poder vulnerar o ato jurdico perfeito e acabado. Imprescindvel ser o resguardo da validade e da eficcia dos

    atos negociais j praticados para garantia do prprio direito adquirido. Com a consumao de um ato ou negcio

    jurdico sob o amparo da lei anterior, seus efeitos ficaro intocveis, insuscetveis de modificao pela novel norma,

    sendo por ela insuprimvel, pois sobre ele no ter eficcia alguma. A supervenincia do novo Cdigo Civil, portanto,

    no alterar os atos e negcios jurdicos vlidos e j consumados, nem lhes modificar o status quo. A mesma

    autora se manifestou tambm sobre os contratos sucessivos, nos seguintes termos (p. 1.376): O contrato

    sucessivo nascido durante a vigncia da lei antiga e em curso de execuo, ao publicar-se a nova, reger-se- por

    aquela, por ser ato jurdico perfeito e por haver direito adquirido, visto inexistir dependncia de preenchimento de

    quaisquer requisitos exteriores de carter acidental ou contingente.

    ___________

    * Advogado do escritrio Lus Roberto Barroso & Associados e Professor Titular de DireitoConstitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    _____________