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101 ENTRE “ ”: FALTA E EXCESSO NA RELAÇÃO COM O SILÊNCIO Greciely Cristina da Costa Mírian dos Santos Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS) RESUMO: Este trabalho discute, a partir dos pressupostos teóricos da Análise de Discurso, o funcionamento das aspas em textos da Revista Ca- ros Amigos. As autoras buscam dar visibilidade à relação entre o efeito de falta e excesso, através da elipse e da incisa, e o silêncio inscrito nas aspas. ABSTRACT: is paper discusses, in the perspective of Materialist Dis- course Analysis, the functioning of quotation marks in texts taken from Brazilian magazine Caros Amigos. e authors search to show the relation between the effect of lack and excess, through elliptical and embedded ele- ments in a sentence construction, and silence, as it is inscribed in quota- tion marks. Considerações Iniciais A leitura sempre ocupou um lugar de destaque nos estudos da lin- guagem, sendo compreendida com base em diferentes posições, tais como: atribuição de sentidos, concepção (de onde resulta a expressão “leitura de mundo”), alfabetização, “construção de um aparato teórico metodológico de aproximação de um texto”, como nos afirma Orlandi (1999: p.7) e tantos outros. Propomo-nos, neste artigo, centrarmos na perspectiva discursiva que se dedica a compreender a leitura como interpretação e compreen- são de um determinado objeto simbólico, configurado a leitura como um processo instaurador de sentidos. Por essa perspectiva adotada, as práticas de leitura pressupõem um sujeito que interpreta de um lugar o que escreve e também o que lê; leva em conta um mundo de possibili- dades de significação em um texto. Considera também que todo texto é uma realidade concreta, material, física da linguagem. Essa matéria concreta pode tomar corpo na fala oral, escrita ou impressa e esse tex-

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Greciely Cristina da CostaMírian dos Santos

Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS)

RESUMO: Este trabalho discute, a partir dos pressupostos teóricos da Análise de Discurso, o funcionamento das aspas em textos da Revista Ca-ros Amigos. As autoras buscam dar visibilidade à relação entre o efeito de falta e excesso, através da elipse e da incisa, e o silêncio inscrito nas aspas.

ABSTRACT: This paper discusses, in the perspective of Materialist Dis-course Analysis, the functioning of quotation marks in texts taken from Brazilian magazine Caros Amigos. The authors search to show the relation between the effect of lack and excess, through elliptical and embedded ele-ments in a sentence construction, and silence, as it is inscribed in quota-tion marks.

Considerações IniciaisA leitura sempre ocupou um lugar de destaque nos estudos da lin-

guagem, sendo compreendida com base em diferentes posições, tais como: atribuição de sentidos, concepção (de onde resulta a expressão “leitura de mundo”), alfabetização, “construção de um aparato teórico metodológico de aproximação de um texto”, como nos afirma Orlandi (1999: p.7) e tantos outros.

Propomo-nos, neste artigo, centrarmos na perspectiva discursiva que se dedica a compreender a leitura como interpretação e compreen-são de um determinado objeto simbólico, configurado a leitura como um processo instaurador de sentidos. Por essa perspectiva adotada, as práticas de leitura pressupõem um sujeito que interpreta de um lugar o que escreve e também o que lê; leva em conta um mundo de possibili-dades de significação em um texto. Considera também que todo texto é uma realidade concreta, material, física da linguagem. Essa matéria concreta pode tomar corpo na fala oral, escrita ou impressa e esse tex-

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to apresenta formas de linguagem próprias tais como vestígios, pistas, marcas que remetem ao discursivo. São elementos formais, mas não sig-nificam por si, porque o sentido é estabelecido sempre em relação ao texto e sua exterioridade. De acordo com Orlandi (2001), o texto é a unidade de análise afetada pelas condições de produção e pela memória que permite o acesso ao discurso, porque “a ordem do discurso se mate-rializa na estruturação do texto” (p. 88-89).

Elegemos discutir e analisar, neste trabalho, um vestígio muito par-ticular que nos chamou a atenção nos textos da revista Caros Amigos. Trata-se do funcionamento das aspas, cuja ocorrência nesta revista é recorrente. Na busca de compreender como o processo de significação vai instaurando sentidos inscritos nessa pontuação, que, por sua vez, produz através da falta e do excesso efeitos silenciosos ou sentidos si-lenciados, investimos num modo de ler discursivo, tomando o discurso como efeito de sentidos entre locutores (Pêcheux, 1969). Para começar, observamos, então, que as aspas são usadas de três modos, nesta revista, a saber:

• para marcar-isolar a fala de alguém (entrevistado) como no edito-rial, no qual as falas de Itamar Franco quase capuchinho e tentou me derrubar aparecem aspadas;

• para marcar-incluir o dizer do próprio autor ou entrevistador no texto, como acontece em Sem título em Recife, no qual Marilene Felinto recorre às aspas em vários momentos, como por exemplo: “A imprensa e a mídia brasileira não valem nada” (p. 6);

• para marcar-introduzir certas palavras e citações, tais como dou-tor, doutora (p.11), presentes no artigo de Frei Beto e ainda certas expressões como: pressões políticas, violação dos direitos em Desir-mandade nas Cidades Irmãs (p.17). Ainda, no texto assinado por Frei Beto, aparecem poucas, mas aparecem aspas introduzindo trechos de um conto de Machado de Assis, cujo título também é aspado, ou seja, em seu uso mais comum que consiste em pontuar a introdução de citações.

Dentre estes casos, o mais recorrente é o primeiro, seguido pelo se-gundo. Analisando-os a partir de conceitos tradicionais dos estudos de linguagem, diríamos que não há o que se questionar nestes usos das as-pas. Elas servem para pontuar a introdução de falas, no caso dos entre-vistados; pontuar pensamentos, comentários, no caso do entrevistador. Marcar menções. Um mecanismo de pontuação. Porém, ao analisar, não as falas nem as palavras e expressões aspadas, mas o funcionamento discursivo das aspas na relação com a elipse e com a incisa, ou melhor,

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buscando compreender se as aspas se configuram como falta ou excesso, nos voltamos para os conceitos de elipse e de incisa para pensar a ques-tão: que lugar é esse, o da falta, do acréscimo, do excesso? Retomamos ainda a reflexão de Authier-Revuz (2004) acerca das aspas e nos interro-gamos: um discurso-outro?

A compreensão que propomos considera que a linguagem não é transparente, a língua faz sentido na medida em que é afetada pela histó-ria, atravessada pela ideologia. Nessa perspectiva, a exemplo de Orlandi (2001), deslocamos “o estudo da pontuação do domínio da gramática (e da frase) para o domínio do discurso” (p. 110). Assim refletimos sobre o funcionamento discursivo das aspas considerando-as como “manifes-tação da incompletude da linguagem” (Orlandi, 2001, p. 110), lugar ora da falta, ora do excesso num movimento incessante do movimento dos sentidos decorrente da abertura do simbólico.

As aspas e o discurso-outroAuthier-Revuz (2004, p.219) se dedica a estudar as aspas de conota-

ção autonímica visando, primeiramente, definir certas funções das as-pas para depois formular algumas hipóteses acerca do desregramento dessas funções. Seu primeiro gesto é o de afirmar que as aspas são:

a marca de uma operação metalinguística local de distanciamen-to: uma palavra, durante o discurso, é designada na intenção do receptor como o objeto, o lugar de uma suspensão de responsabi-lidade - daquela que normalmente funciona para as outras pala-vras. Essa suspensão de responsabilidade determina uma espécie de vazio a preencher, através de uma interpretação, um “apelo de glosa”, se assim se pode dizer, glosa que, às vezes, se explicita, permanecendo mais frequentemente implícita.

Nesse sentido, através de exemplos distintos, a autora observa que as aspas remetem a um discurso-outro. Daí, perguntamos: àquele que fica no silêncio?

Sobre as funções das aspas, Authier-Revuz (2004) destaca o uso das aspas de familiaridade, que marcam uma expressão familiar; a função habitual das aspas enquanto instrumento de distinção que permite se distinguir as palavras; a aspa de condescendência, que “assinala que uma palavra que é apropriada ao locutor não o é, segundo ele, ao re-ceptor” (ibidem, p. 223); as aspas de proteção que circundam uma pala-vra aproximativa; as aspas que marcam um espaço de questionamento ofensivo que, por sua vez, pode romper com emprego que o discurso dominante faz de uma palavra, ou pode desfazer esse emprego (ibidem,

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p. 225); as aspas de ênfase, entre outras. De modo geral, a autora aponta funções que configuram as aspas como marca, falta, imperfeição. No entanto, para ela “se as aspas são a marca de uma imperfeição, trata-se de uma imperfeição constitutiva; se a palavra aspeada está ‘na margem’ de um discurso, não é no sentido de que seria desprezível, mas no sen-tido de que uma margem delimita e constitui” (ibidem, p. 229 - grifos da autora). Nesta direção, Authier-Revuz formula hipóteses acerca do que chamou “desregramentos” das funções exercidas pelas aspas, ressaltan-do que

as aspas se fazem “na borda” de um discurso, ou seja, marcam o encontro com um discurso-outro. São uma balizagem dessa zona de demarcação mediante a qual, através de um trabalho sobre suas bordas, um discurso se constitui em relação a um exterior. Essa borda é, a um tempo só, reveladora e indispensável: acom-panhar o mapeamento das palavras aspeadas de um discurso é acompanhar a zona fronteiriça reveladora daquilo em relação ao que lhe é essencial se distanciar: “Diz-me o que tu aspeias...”; ao mesmo tempo, é pelo fato de colocar algumas palavras como não apropriadas que um discurso constitui, em si mesmo, o comple-mentar dessas palavras: palavras essas plenamente apropriadas, às quais o locutor supostamente adere sem distância; é o trabalho constitutivo das aspas (ibidem, p. 229).

Com isso, a autora confere às aspas um outro estatuto, no qual elas “são, portanto, em um discurso algo como o eco de seu encontro com o exterior”. Em nossa reflexão, é importante assinalar que, das reflexões acima referidas à autora, é este estatuto que se sobressai, pois “as aspas se fazem ‘sobre as bordas’, [...] há ‘trabalho na borda’ de um discurso na formação de aspas” (Authier-Revuz, 2004, p. 229-230), uma zona, na qual se encontra o sujeito e o mundo. Mas, de que modo se dá esse encontro?

Duplo Funcionamento da Elipse e da IncisaA fim de procedermos à nossa compreensão, retomamos também o

trabalho de Haroche (1992). Segundo a autora, a incisa e a elipse “po-dem então ser consideradas como o lugar onde se exprime a ‘liberdade’ do sujeito, zonas de obscuridade e de ambiguidade necessárias à liber-dade” (1992, p. 116). A partir desta afirmação poderíamos dizer que o efeito de sentido provocado pelo uso das aspas na relação com a elipse e com a incisa é o da liberdade, resultante do ponto de ambiguidade que poderia se instalar nas aspas. Se fosse assim, reduziríamos a ques-

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tão ao plano do conteúdo. Por outro lado, partindo de uma das inter-rogações de Haroche acerca da concepção de elipse, na qual a autora questiona: “Com a elipse, estaríamos tratando de um excedente de valor?” (1992, p.117), vamos além, pois essa pergunta desloca a afirmação de alguns estudos tradicionais que concebem a elipse como falta, uma vez que aponta que a elipse pode ser também pensada como excesso. Neste caso, como se configuraria a incisa, definida pela Grammaire Larousse du Français Contemporain como responsável pela suspensão do curso da frase indicando “que se relatam as palavras ou pensamentos de al-guém” (apud Haroche, 1992, p. 129)? Com mais essa questão, Haroche provoca um outro deslocamento, tendo em vista que a incisa é tradicio-nalmente considerada elemento acessório. Quer dizer, a autora inverte a definição tradicional dessas duas noções mostrando que ambas podem indicar excesso e falta, um funcionamento dúbio. Com efeito, ela chama a atenção para o funcionamento dessas duas categorias que não se dá a priori. Ela afirma que a elipse e a incisa “opõem implicitamente a line-aridade do discurso à afetividade, à subjetividade do sujeito” (Haroche, 1992, p. 132).

Quando a autora menciona termos como discurso e subjetividade do sujeito, ela se situa em um quadro teórico paralelo ao da Análise de Dis-curso, no qual nos inscrevemos. Sua abordagem e propósitos diferem dos nossos. O que faz com que, preocupadas em compreender o fun-cionamento discursivo das aspas, sigamos outros pressupostos. A nossa reflexão avança em outra direção, uma vez que questionamos desta vez se a elipse e a incisa, através do jogo entre falta e excesso, marcariam, explicitariam, nas/pelas aspas, o não-dito, um discurso outro - na mar-gem, na borda.

Silêncio e FronteiraAo mencionamos o termo não-dito, não nos referimos à concepção

de Ducrot (1987), para qual o não-dito é tratado como implícito. O não--dito, cujo funcionamento nos inquieta, tem a ver com o silêncio teori-zado por Orlandi (1993). Para essa autora:

O silêncio é assim a “respiração” (o fôlego) da significação, um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é “um”, para o que permite o movi-mento do sujeito (Orlandi, 1993, p. 13).

O silêncio atravessa as palavras, existe entre elas e/ou ainda indica que o sentido pode ser sempre outro. Através do silêncio se pode reco-

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nhecer que, para dizer, é preciso não-dizer, tese que colabora para reafir-mar o caráter de incompletude da linguagem. Daí advém a possibilidade de pensar a elipse e a incisa na relação com o silêncio. Compreendemos que a incisa e a elipse contidas nas aspas, seja pela falta, seja pelo ex-cesso, remetem ao não-dito (o que é posto em silêncio), configurando assim um lugar do possível, cuja produção de sentidos está submetida a determinadas condições de produção sócio-históricas de significação.

Em seu estudo Orlandi apresenta o silêncio fundador e as políticas do silêncio, subdividas em silêncio constitutivo e silêncio local. O silên-cio fundador refere-se ao “princípio de toda significação” [...] “é a própria condição de produção de sentido”. Assim ele aparece como espaço ‘diferen-cial’ da significação: ‘lugar’ que permite à linguagem significar” (Orlandi, 1993, p. 70). O silêncio fundador é a iminência, a possibilidade de senti-do. É o elemento responsável pela incompletude constitutiva da lingua-gem, dado que o sentido sempre pode ser outro, pois ele é afetado por condições de produção, pela memória discursiva. Através do conceito de silêncio fundador, vemos que a linguagem é sempre um fragmento parcial incompleto.

O silêncio local, por sua vez, resulta da interdição do dizer, como exemplo, podemos mencionar épocas ditatoriais em que a censura pre-domina proibindo “certas palavras para se proibirem certos sentidos” (Orlandi, 1993, p. 79). No entanto, esses sentidos proibidos encontram outras formas para se significarem. Como não vamos trabalhar com o silêncio local, detenhamo-nos no silêncio constitutivo que é aquele que

preside qualquer produção de linguagem. Representa a política do silêncio como um efeito de discurso que instala o anti-implí-cito: se diz ‘X’ para não (deixar) dizer Y, este sendo o sentido a se descartar do dito, é o não-dito necessariamente excluído. Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de uma ‘outra’ formação discur-siva, uma ’outra’ região de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas, determinando os limites do dizer (Orlandi, 1993, p. 75-76).

O silêncio constitutivo estabelece uma cisão entre o dizer o e o não dizer. É responsável pela interdição do sujeito, devido à sua posição. Necessariamente, porque existe o silêncio constitutivo, algum sentido é calado. O silêncio constitutivo se liga ao interdiscurso e possibilita tra-balhar a heterogeneidade constitutiva do discurso.

Lagazzi1, ao discutir a relação da incisa e da elipse com o silêncio, propôs que a incisa seja pensada enquanto acréscimo que remete a vá-

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rias e diferentes possibilidades de dizer (exercício parafrástico), de de-riva de sentidos que implicam na construção de outras incisas. Nesse sentido, para ela, a incisa remonta ao silêncio constitutivo. A elipse, por sua vez, enquanto marca da incompletude constitutiva, remeteria ao si-lêncio fundador. A autora assegura que as duas não estão no mesmo nível quando se trata de pensar o discurso.

O duplo funcionamento da incisa e da elipse na relação com o silên-cio, para nós, repousa sobre as aspas, configura-se como uma fronteira, na qual os limites da incisa e da elipse se tocam produzindo efeito de sentidos. Nessa relação é preciso encarar as aspas como espaço de in-completude, opaco, de não-preenchimento, de possibilidade de dizeres. Lugar atravessado de/pelo silêncio.

Quando Orlandi discorre sobre o silêncio, ela refere-se ao silêncio em sua materialidade significativa. Segundo ela “o silêncio não está ape-nas entre as palavras. Ele atravessa” (Orlandi, 1993, p.71). Com efeito, no caso das aspas, o que observamos é que nelas se instaura uma fron-teira bastante tênue entre incisa e elipse. Silêncio fundante e constituti-vo. Quer dizer, as aspas se configuram como uma fronteira da incisa e da elipse, que por sua vez, marcam um espaço para o (in)dizível.

A relação dito/não-dito, falta/excesso pode ser contextualizada só-cio-historicamente através de dizer/não-dizer/legitimar. Há sempre a tentativa de completar o incompleto ao aspar. Essa tentativa ocorre na medida em que se aspa uma palavra elidindo outro sentido que a mes-ma palavra pode vir a ter, esse é um dos efeitos. Neste caso, em cena entra o silêncio constitutivo. É o que acontece no texto A Mosca Azul (anexo 1). Frei Betto aspa “doutor” e “doutora” ao se referir ao modo como são chamados os funcionários do/no Planalto. Dessa forma, ex-plicita-se, através das aspas, que o sentido dessas duas palavras pode ser outro, no entanto ele não é dito. Ou seja, marca-se a falta de um outro sentido. Esse efeito só é possível porque o silêncio se inscreve nesse me-canismo de pontuação, considerando que para dizer é preciso não-dizer. Ao mesmo tempo, a falta aponta que um sentido, não-dito, excede o limites do dizível ao marcar que algo foi elidido. No exemplo acima, o(s) outro(s) sentido(s) de “doutor” e “doutora” apresentam-ser-iam assim como acréscimos.

Um ponto interessante se observa nas aspas destacadas na fala de Frei Beto. Quando esse sujeito põe entre aspas as palavras e expressões, parece funcionar um discurso pela ironia na junção justamente com as aspas e o silêncio. Nessa direção, podemos dizer que “a pontuação faz parte da marcação entre o dizer e o não-dizer” Orlandi (2001, p. 111).

O não-dito contido nas aspas como acréscimo, acessório pode até silenciar dizeres através da legitimidade que as aspas oferecem quando

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introduzem falas, ou melhor, quando pontuam comentários. No texto Sem título em Recife (anexo 2), falas tanto da autora (que se coloca como personagem) do texto quanto de seu interlocutor são aspadas. O texto ganha destaque ao ser atribuído a alguém como em: “ninguém conhece esse Serra, esse Alckmin, ninguém sabe quem é essa gente, o que fazem, o que fizeram. É por isso que o povo vota errado, porque não conhece, vota pela cara, pelo que diz na televisão” (Caros Amigos, 108, p. 6). O excesso está no fato de que a fala aspada se legitima, pois as aspas marcam que existe alguém que assume o que diz, responsabiliza-se pelo o que é dito. Os enunciados entre aspas correspondem à opinião de alguém – o di-zer de alguém tal qual como ele mesmo disse –, não se questiona se ele disse (não fui eu, autor, autora). “Com efeito, a política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada” (Orlandi, 1993, p. 75).

Sem título em Recife é muito intrigante, pois parte do seu texto apa-rece entre aspas. As falas do taxista: personagem-interlocutor e parte das falas da autora-personagem também aparecem entre aspas. Esse recurso, discursivamente, colabora para a constituição de um sujeito que se posi-ciona enquanto autora e ao mesmo tempo personagem-interlocutora. En-quanto Marilene Felinto ocupa a posição-autora, seu texto não é aspado, é marcado pela primeira pessoa do singular como: Ele me conduziu pela avenida que beira o mar no bairro de Boa Viagem, ao se referir ao taxista com quem estabelece uma relação de interlocução. Já na posição-perso-nagem ou interlocutora, a posição discursiva se constitui na medida em que a autora se coloca tanto como autora quanto interlocutora através de uma divisão do texto em aspado e sem aspas, como em:

Para dar um rumo, uma classificação, um título àquele assunto que nada tinha a ver com a crônica da minha vida, comecei a contar ao taxista: “Pelo menos você já sabe que deve desconfiar da imprensa, da televisão. O que eu sei desses políticos do PSDB de São Paulo, Serra, Alckmin, Fernando Henrique, é que são um grupo de paulistas da classe dominante, intelectuais da academia, de um lado; de outro, ligados a uma ordem católica ultraconser-vadora, a Opus Deis, onde se escondem certos tipos da classe em-presarial e política do mundo todo, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin”.

A partir da divisão do texto em dois – aspado e sem aspas – pode-se refletir também sobre a divisão do sujeito no discurso. Um discurso e um discurso outro. De acordo com Orlandi (2001, p.99):

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o sujeito, na Análise de Discurso, é posição entre outras, subje-tivando-se na medida mesmo em que se projeta de sua situação (lugar) no mundo para sua posição no discurso. Essa projeção--material transforma a situação social (empírica) em posição--sujeito (discursiva).

Essa divisão torna-se viável por meio de uma digressão temática, isto é, o texto comporta um tema político – os candidatos paulistas do PSDB à presidência da República – e um tema de caráter narrativo-pessoal – a infância da autora-(narradora)-personagem em Recife. O sujeito dis-corre sobre esses dois temas, dividindo seu dizer, sua posição através das aspas que abrem para fala de um outro. O efeito de sentido produ-zido é o de dissimulação na medida em que a posição-sujeito-autora se distancia do que é dito, talvez não se responsabilizando pelo o que diz, pelo o que o outro diz, uma posição alheia ao tema política muito mais ligada à crônica da infância enquanto personagem-narradora. Esse é o movimento que observarmos a partir dos vestígios deixados pelas/nas aspas. São aspadas tanto as intromissões do taxista quanto da autora--personagem que também formula um texto sem aspa. Neste espaço, as aspas configuram-se enquanto vestígios da divisão do sujeito, que ora ocupa uma posição discursiva, ora outra. Ou ainda, vestígio de uma dizer dividido que se constitui em uma mesma posição discursiva. Uma falta “necessária” marcada no excesso do gesto de aspar, dizer/não-dizer.

Algumas Considerações: Estar Entre “ ”Orlandi (2001, p.112-116) afirma que, se pensamos o silêncio, a pon-

tuação faz parte da marcação do ritmo entre o dizer e o não-dizer:

a pontuação atesta um duplo trabalho do simbólico: se, de um lado, ela é marca – traços empíricos, signos diacríticos – de ou-tro, ela indica a textualização do discurso, sendo assim índice de sua materialidade, ligando o real ao imaginário (...) A pontuação serve para marcar divisões, serve para separar sentidos, forma-ções discursivas, para distribuir diferentes posições dos sujeitos na superfície textual.

Nesse sentido, pensamos as aspas como mecanismo de pontuação, cujos vestígios deixados por seu funcionamento indicam que no não--dito, na tênue fronteira entre elipse e incisa, instala-se um sentido si-lencioso ou silenciado. Discurso! Formações discursivas. Distintas posi-ções-sujeito. Discurso(s) outro(s). As aspas circulam como pontuações necessárias, como marcas de subjetivação que possibilitam o fechamen-

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to e abertura do simbólico. E é neste lugar do possível, da fronteira, que se produz o sentido no/do silêncio, entre aspas.

As aspas, em sua materialidade formal, ligam-se ao silêncio funda-dor, como vestígio da incompletude da linguagem (abertura do simbóli-co). Mas, ao mesmo tempo, elas atestam seu fechamento, pois anunciam que numa determinada discursividade, o sentido que se constitui é um e não outro, embora saibamos que o outro é parte constitutiva de todo dizer.

Desta forma, arriscamo-nos – com base nesta preliminar análise – a dizer que a edição de número 108 da revista Caros Amigos, enquanto espaço de circulação pública, é marcada pelo estar entre “ ”, que, por sua vez, explicita um espaço de incompletude, de opacidade, de não--transparência nos dois artigos analisados.

Na fronteira entre a falta e o excesso, há tentativa de distanciamen-to ou de aproximação, há o silenciamento do dizer, talvez de um dizer censurado, equívoco que irrompe no e pelo funcionamento das aspas. Também convém assinalar que há interdição de certas posições discur-sivas, negação do político na linguagem/como que negando o político da linguagem, ou seja, “a divisão inexorável do sentido” e a ideologia, visto que não há linguagem sem ideologia.

Essa conclusão só pôde ser formulada a partir de um gesto de leitura, um gesto (analista) de interpretação, que recai, por sua vez, sobre um gesto de interpretação do sujeito não-transparente que se inscreve na Caros Amigos, cujo dizer é opaco.

Nota

1 Em exposição teórico-analítica durante a disciplina Discurso: Linguagem, História e Ideologia, ministrada no Instituto de Estudos de Linguagem (UNICAMP).

Referências Bibliográficas

AUTHIER-REVUZ, J. (2004). “Palavras mantidas a distância”. In: Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS. p. 217-237.

DUCROT, O. (1987). O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes. HAROCHE, C. (1992). Fazer dizer, querer dizer. Trad. Eni P. Orlandi.

São Paulo: Hucitec. ORLANDI, E. P. (1993). As Formas do Silêncio: No Movimento dos

Sentidos. 2ªed. Campinas, SP: Editora da Unicamp.

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ORLANDI, E.P. (2001). Discurso e Texto: Formulação e Circulação dos Sentidos. Campinas, SP: Pontes.

ORLANDI, E.P. (1999). Discurso e leitura. 4ª ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas.

PÊCHEUX, M. (1969). “Análise Automática do Discurso (AAD-69)”. In: GADET, F. & HAK, T. (Orgs.). Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3ª ed. Trad. Coletiva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997. p. 61-162.

Corpus

CAROS AMIGOS, número 108, (2006). São Paulo: Editora Casa Ama-rela.

Palavras-chave: aspas, silêncio, sentidoKey-words: quotation marks, silence, meaning

Anexo1

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Anexo 2