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PRISCILA VALVERDE FERNANDES ENTRE PIPAS, LUTOS, APRISIONAMENTOS E MEDICAÇÕES: AS PECULIARIDADES NA RELAÇÃO DO CONSELHO TUTELAR COM AS CRIANÇAS ENCAMINHADAS PELA ESCOLA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Psicologia Institucional do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia Institucional Orientadora: Profª Drª Elizabeth Maria Andrade Aragão Coorientadora: Profª Drª Lilian Rose Margotto VITÓRIA 2009

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  • PRISCILA VALVERDE FERNANDES

    ENTRE PIPAS, LUTOS, APRISIONAMENTOS E

    MEDICAES: AS PECULIARIDADES NA RELAO DO CONSELHO TUTELAR COM AS CRIANAS

    ENCAMINHADAS PELA ESCOLA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia Institucional do Centro de Cincias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Psicologia Institucional Orientadora: Prof Dr Elizabeth Maria Andrade Arago Coorientadora: Prof Dr Lilian Rose Margotto

    VITRIA 2009

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    Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Fernandes, Priscila Valverde, 1981- F363e Entre pipas, lutos, aprisionamentos e medicaes: as

    peculiaridades na relao do Conselho Tutelar com as crianas encaminhadas pela escola / Priscila Valverde Fernandes. 2009.

    116 f. Orientador: Elizabeth Maria Andrade Arago. Coorientador: Lilian Rose Margotto. Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Esprito

    Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais. 1. Conselhos tutelares. 2. Crianas. 3. Famlia. 4. Escola. I.

    Arago, Elizabeth Maria Andrade. II. Margotto, Lilian Rose. III. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. IV. Ttulo.

    CDU: 159.9

  • 3

    PRISCILA VALVERDE FERNANDES

    ENTRE PIPAS, LUTOS, APRISIONAMENTOS E MEDICAES: AS PECULIARIDADES NA RELAO DO CONSELHO TUTELAR COM

    AS CRIANAS ENCAMINHADAS PELA ESCOLA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia Institucional do Centro de Cincias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Psicologia Institucional.

    Aprovada em 18 de maio de 2009.

    Comisso Examinadora

    __________________________________________

    Prof Dr Elizabeth Maria Andrade Arago

    Universidade Federal do Esprito Santo

    Orientadora

    __________________________________________ Prof Dr Lilian Rose Margotto

    Universidade Federal do Esprito Santo

    Coorientadora

    __________________________________________

    Prof. Dr. Estela Scheinvar

    Universidade Federal Fluminense

    __________________________________________

    Prof. Dr. Ana Lcia Coelho Heckert

    Universidade Federal do Esprito Santo

    __________________________________________

    Prof. Dr. Gilead Marchezi

    Universidade Federal do Esprito Santo

  • 4

    Dedico esse trabalho aos meus pais, Joabes e Nilda, por me ensinarem que [...] ainda que eu fale a lngua dos homens e dos anjos, se no tiver amor de nada valeria (II Corntios 13:1).

  • 5

    Uma dissertao algo que nos consome e nos transforma. O ato de escrever nos coloca em frente do que conhecemos e, principalmente do que desconhecemos. Nestes agradecimentos, imprimo muito mais do que gratido aos que nos ajudaram nesta tarefa. Agradeo aos que estiveram juntos, aos que nos acompanharam e aos que, de alguma forma, nos deram fora para continuar. Com essas palavras, estamos afirmando que no possvel uma produo solitria. Por isso, agradeo a todos que, de diferentes formas e intensidades, participaram deste processo:

    A Deus, presena inexplicvel.

    minha famlia pelo apoio, pela preocupao e pela presena constante.

    Aos meus pequenos amores, meus sobrinhos Cau e Bethina que com simplicidade sempre nos fazem ver a vida de forma mais leve.

    Ao Renato pelo amor, cuidado e pacincia que teve durante esse dois anos e tambm por poder compartilhar comigo outros mundos alm deste.

    minha orientadora companheira que fez parte deste trabalho do incio ao fim e soube entender e conversar com meus silncios e olhares. Obrigada, Beth!

    A Lilian Margotto que, com sua chegada, nos presenteou com intervenes pontuais e imprescindveis.

    A Lidi, companheira de turma e de caminhada, pelos momentos de estudo e de desabafos que pudemos dividir.

    A Ana Heckert, Estela Scheinvar e Gilead Marchezi pelas sugestes, intervenes e indicaes importantssimas proferidas na qualificao.

    A Soninha pela sua alegria de vida que nos contagia e por poder contar com ela sempre que precisei.

    A Beth Barros pela confiana depositada, desde as pesquisas de iniciao cientfica.

    s minhas grandes amigas Al, Alinne, Rachel e R que, de diferentes formas, fizeram parte deste trabalho.

    Aos amigos do mestrado, pelos momentos de seriedade e de descontrao, por nossos grupos de estudo, reunies, encontros, congressos, etc.

    A Roberto Cheib e a Alice Marques pelo tempo que lutamos juntos dentro do Programa de Extenso.

    A Snia, da secretaria, pela simpatia e disponibilidade em sempre poder ajudar.

    Aos amigos do Ncleo de Estudos e Pesquisa em Subjetividade e Polticas (NEPESP) pelos bons encontros.

    AGRADECIMENTOS

  • 6

    s ex-conselheiras e s crianas e suas famlias que disponibilizaram um pouco de seu tempo para estar comigo e contribuir imensamente com este trabalho.

    CAPES pela bolsa de estudos concedida.

  • 7

    [...] Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta s isto: um certo modo de ver. O diabo que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. V no-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que voc v todo dia, sem ver. Parece fcil, mas no . O que nos cerca, o que nos familiar, j no desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina como um vazio. Voc sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se algum lhe perguntar o que que voc v no seu caminho, voc no sabe. De tanto ver, voc no v. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prdio do seu escritrio. L estava sempre, pontualssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e s vezes lhe passava um recado ou uma correspondncia. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer. Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? No fazia a mnima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser tambm que ningum desse por sua ausncia. O hbito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas h sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? No, no vemos. Uma criana v o que o adulto no v. Tem olhos atentos e limpos para o espetculo do mundo. O poeta capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ningum v. H pai que nunca viu o prprio filho. Marido que nunca viu a prpria mulher, isso existe s pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. por a que se instala no corao o monstro da indiferena.

    (OTTO LARA RESENDE)

  • 8

    RESUMO

    Esta dissertao se prope a estudar as peculiaridades da relao entre o Conselho

    Tutelar e as crianas que foram encaminhadas pela escola no municpio de

    Cariacica-ES. Divide o trabalho de campo em dois principais momentos: o primeiro

    se efetivou no contato com as ex-conselheiras tutelares que participaram do

    mandato de 2005 a 2007, do municpio de Cariacica, e o segundo, com as crianas

    e suas famlias, que passaram a se relacionar com o Conselho Tutelar a partir de um

    encaminhamento feito pela escola. Visualiza essa situao como um tringulo no

    qual Conselho, escola e familiares/crianas seriam os trs vrtices. A demanda foi

    formulada em um deles, no caso a escola indaga sobre as narrativas e os

    atravessamentos que poderiam ser depreendidos das duas outras partes envolvidas,

    a famlia/criana e os conselheiros. A partir do mtodo qualitativo, percorre esse

    caminho acompanhando as variaes do campo. O referencial terico trabalha com

    autores que compartilham, juntamente com Foucault, da ideia de uma histria que

    pode ser abordada numa perspectiva genealgica, que permite a visibilidade dos

    mais variados saberes existentes em um determinado espao e momento social.

    Foram realizadas entrevistas com quatro conselheiras e quatro crianas e suas

    famlias. A partir dessas entrevistas, compreende uma relao marcada pela

    psicologizao, pelo discurso competente, pelo intimismo, pelo familiarismo e, por

    fim, destaca a formao de um campo de foras no qual a criana empurrada para

    os diversos espaos que produzem e reproduzem os comportamentos das crianas,

    considerados por todos como inaceitveis.

    Palavras-chave: Conselho Tutelar. Criana. Famlia. Escola.

  • 9

    ABSTRACT

    This paper intends to study the particularities concerning the Tutorial Council and

    children that were sent by the schools from the city of Cariacica ES. It divides the

    field work in two main parts: the first was the contact with the ex-tutorial counselors

    from the period between 2005-2007 from the city of Cariacica; and the second with

    the children and their families that started a relation with the Tutorial Council sent by

    the school. It focuses this situation as a triangle in which the Council, the school and

    families-children could be considered as the three angles.The request was made in

    one of them, in this case school; and a question rises concerning narratives and

    crossings that could be taken from the two other parts involved, families-children and

    the counselors. From this qualitative method, it flows through this way according to

    field variations. The theoretical reference works with authors that share the idea of a

    story that can be approached in a genealogical perspective, together with Foucault,

    that allows a vision of all kinds of knowledge existing in a determined space and

    social moment. Interviews were made with four counselors and for children and their

    families. From these interviews, it comes a relation marked by psychology,

    competent speech, proximity, familiarization and a strength field comes in which

    children is pushed to several places that produce and re-produce childrens behavior,

    considered as unacceptable.

    Key words: Tutorial Council. Children. Family. School.

  • 10

    SUMRIO

    1 INTRODUO....................................................................................................12

    1.1 CONSTRUINDO E PERCORRENDO O CAMINHO METODOLGICO: O

    ENCONTRO COM O CAMPO....................................................................................16

    1.2 CONSELHO SEM CONSELHEIRO: O DESENCONTRO..........................................18

    1.3 DEFININDO E REDEFINIDO O CAMPO: O REENCONTRO.....................................19

    1.4 VASCULHANDO AS FICHAS DE ATENDIMENTO....................................................20

    1.5 O ENCONTRO COM AS FAMLIAS...........................................................................22

    2 BREVE HISTRIA DAS LEIS DE ASSISTNCIA INFNCIA E

    ADOLESCNCIA.........................................................................................................25

    2.1 ENTRANDO NA RODA: RASTREANDO AS PRIMEIRAS INICIATIVAS ..................27

    2.2 O CDIGO DE MENORES: CATEGORIZANDO A INFNCIA

    POBRE, DELINQUENTE E MARGINALIZADA..........................................................29

    2.3 A GRANDE RUPTURA: DA SITUAO IRREGULAR PROTEO INTEGRAL...33

    2.4 OS MEIOS LEGAIS PARA EFETIVAO DA POLTICA...........................................37

    3 EXPEDIO TERRA DO CONGO........................................................................42

    3.1 NOSSAS PARADAS: DO MOXUARA ANTIGA CARIACICA...............................43

    3.2 CHEGANDO TERRA DE NINGUM.................................................................47

    3.3 OS CONSELHOS TUTELARES EM CARIACICA......................................................50

    3.4 PELAS VIAS SINUOSAS, CHEGANDO REGIO III...............................................52

    4 O QUE OUVIMOS DAS HISTRIAS.........................................................................55

    4.1 AS PRTICAS COTIDIANAS NO CONSELHO TUTELAR: A FALA DAS

    CONSELHEIRAS........................................................................................................55

    4.1.1 Das velhas s novas configuraes.......................................................................57

    4.1.2 Os entraves com a escola........................................................................................60

    4.1.3 Servios de retaguarda............................................................................................63

    4.2 VIDAS QUE COMPEM HISTRIAS .......................................................................68

    4.3 A HISTRIA DE PEDRO: O MENINO QUE CORRIA ATRS DAS PIPAS...............69

  • 11

    4.3.1 Da escola ao Conselho.............................................................................................72

    4.3.2 Pensando a histria de Pedro..................................................................................75

    4.4 A HISTRIA DE FBIO: O MENINO MEDICALIZADO..............................................78

    4.4.1 Da escola ao Conselho.............................................................................................79

    4.4.2 Pensando a histria de Fbio..................................................................................82

    4.5 A HISTRIA DE DAVI: O MENINO EM LUTO ..........................................................85

    4.5.1 Da escola ao Conselho.............................................................................................86

    4.5.2 Pensando a histria de Davi....................................................................................88

    4.6 A HISTRIA DE JLIO: O MENINO APRIOSIONADO..............................................90

    4.6.1 Da escola ao Conselho.............................................................................................93

    4.6.2 Pensando a histria de Jlio....................................................................................97

    5 CONSIDERAES FINAIS.................................................................................100

    6 REFERNCIAS.....................................................................................................106

    APNDICE A Termo de consentimento: conselheiras....................................113

    APENDICE B Termo de consentimento: crianas e famlias..........................114

    APENDICE C Lista de siglas..............................................................................115

  • 12

    1 INTRODUO

    Para introduzir, o que seria necessrio fornecer a mais? Um resumo? Instrues para uso? Uma declarao decisiva? Uma faanha literria? Como no tenho a impresso de apresentar um produto nitidamente circunscrito e facilmente identificvel assumirei, antes de mais nada, o risco de mostrar seus andaimes, suas impresses de base, os descaminhos de seu mtodo e os esboos de sua demonstrao (JACQUES DONZELOT, 1980, p. 9).

    A temtica Conselho Tutelar nos captura h algum tempo. Durante a graduao,

    tivemos a oportunidade de conhecer os Conselhos Tutelares de Cariacica. Essa

    aproximao foi possvel em virtude da nossa participao no Programa de

    Extenso da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES), chamado

    Trabalhando com os Conselhos Tutelares de Cariacica-ES,1 coordenado pelo

    professor Roberto Jorge Cheib, do Departamento de Psicologia (DPSI) da UFES.

    Com isso, passamos, ento, a conhecer esse municpio e a circular constantemente

    por ele, conhecendo suas ruas, seus movimentos e a luta dos seus muncipes.

    Por meio dessa experincia, inmeros encontros foram possveis. Encontrvamos

    com as crianas que atendamos, com seus pais, com os conselheiros, com alguns

    integrantes da Secretaria de Ao Social, com os conselheiros de direitos e tantos

    outros que compunham aquele cotidiano.

    Esses encontros nos faziam pensar sobre os diversos temas que emergiam naquele

    cenrio. As questes se relacionavam, de forma geral, com a violncia, a burocracia,

    a negligncia, mas uma delas, por ser bastante recorrente, chamava-nos a ateno

    1 O Projeto de Extenso Trabalhando com os Conselhos Tutelares de Cariacica-ES foi criado em

    1997 e esteve vinculado ao DPSI at o ano de 2003, quando se tornou Programa de Extenso. A partir desse ano, estabeleceu-se como permanente e isento de renovao anual. O programa atuava dentro dos Conselhos Tutelares do municpio de Cariacica, fazendo atendimentos individuais a crianas e adolescentes, alm dos pais ou responsveis por essa clientela infanto-juvenil. Esse pblico atendido era encaminhado pelos conselheiros tutelares aos extensionistas, que eram alunos do Curso de Psicologia da UFES. Para o atendimento, usavam as ferramentas da Psicanlise e, mais especificamente, quando se tratava de atendimento de crianas e adolescentes, utilizavam jogos, desenhos, brinquedos, dentre outros. Atualmente, o programa no existe mais.

  • 13

    de forma especial: o elevado nmero de crianas encaminhadas por escolas ao

    Conselho.

    Em muitos desses casos, as crianas chegavam s nossas mos acompanhadas de

    diagnsticos e rtulos. Essas crianas, diversas vezes, desconhecendo o motivo de

    sua ida ao Conselho, questionavam a razo de estarem ali. Por outro lado, as

    escolas ansiavam por solues diante do problema apresentado por esses alunos-

    problema. Entretanto, apesar de nossos esforos, percebamos que esses

    questionamentos deveriam ultrapassar os muros do Conselho Tutelar.

    Foi com essa imagem inicial que fomos trilhando pelos nortes da pesquisa no

    mestrado de Psicologia Institucional da UFES. Diversas vezes, vamo-nos

    preocupada com uma linha nfima que divide as inferncias pessimistas que podem

    nos levar a uma inrcia e s vises romnticas que enfeitam os fatos sem analis-

    los verdadeiramente. Entendemos que muito comum termos uma viso

    romantizada dos Conselhos Tutelares. Isso comumente ocorre, principalmente,

    porque ele veio como uma novidade da Constituio de 1988.

    Do ponto de vista de gesto, a descentralizao possibilitada pelos Conselhos gerou

    um grande entusiasmo para a criao de vrios Conselhos. No que refere a

    Conselho Tutelar e a Conselho de Direito, fato que eles tm buscado assegurar os

    direitos da criana e do adolescente, entretanto no so capazes de fazer

    transformaes bruscas na realidade.

    Percebemos, contudo, aes importantes realizadas cotidianamente por eles, mas

    que, na maioria das vezes, tm poucos resultados imediatos. Em diversos

    momentos, os Conselhos parecem estar na contramo dessa histria. Essa situao

    se coloca muito clara quando o pblico atendido pelos conselheiros, geralmente

    carente de recursos financeiros, est muitas vezes rodeado por autoritarismos e

    clientelismos, prticas que impossibilitam que haja uma melhor participao e faz

    com que o trabalho do Conselho seja entendido como um favor e no como um

    direito do cidado.

    Sobre essa temtica, acompanhamos alguns trabalhos, conhecendo o que tem sido

    produzido. Especificamente sobre Cariacica, encontramos uma dissertao que

  • 14

    discute o processo de implantao dos Conselhos Tutelares nesse municpio

    (FORNACIARI, 2003) e outra que trabalha a relao entre Conselho Tutelar e

    escola, por meio do estudo das fichas de atendimento do Conselho Tutelar

    (MANZINI, 2005). Por fim, destacamos a tese de Arago (2004), 2 que diz respeito

    insistncia dos conselheiros tutelares em suas lutas cotidianas no municpio de

    Cariacica. Nesse estudo, a autora traz percepes a respeito das narrativas dos

    conselheiros tutelares. muito marcante o esforo de enfrentamento desses

    personagens diante de quase todas as condies adversas com que foram

    obrigadas a se defrontar em suas vidas. Muitas dessas aes foram se dando

    porque todos os conselheiros e conselheiras descrevem um processo de luta

    permanente pela vida.

    Articulando-nos com essa pesquisa, compreendendo a importncia da forma como

    essa experincia dos conselheiros tem se vinculado com a vivncia das famlias,

    propusemo-nos a pesquisar essa relao com o intuito de ampliar os estudos acerca

    dessa temtica.

    Nesse sentido, durante toda a pesquisa, buscamos o apoio e a contribuio de

    diversos autores. Escolhemos, como nosso referencial terico, autores que

    compartilham, juntamente com Foucault (2008b), da ideia de uma histria que pode

    ser abordada numa perspectiva genealgica,3 que nos permite a visibilidade dos

    mais variados saberes existentes em um determinado espao e momento social.

    Isso quer dizer que nos propomos a fazer a anlise da gnese e no da origem.

    Buscamos a histria "[...] no para traar a curva lenta de uma evoluo, mas para

    reencontrar as diferentes cenas onde eles (os acontecimentos) desempenharam

    papis distintos; e at definir o ponto de lacuna, o momento em que eles no

    aconteceram" (FOUCAULT, 2008b, p. 15).

    2 Tese intitulada: A gente no desiste porque sonha: a histria annima dos conselheiros tutelares de Cariacica. 3 A genealogia, termo tomado de Nietzsche, definida por Foucault como uma metodologia que se ope pesquisa da origem. Foucault (2008, p.171) [...] delineouse assim o que se poderia chamar uma genealogia, ou melhor, pesquisas genealgicas mltiplas, ao mesmo tempo redescoberta exata das lutas e memria bruta dos combates. E esta genealogia, como acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, s foi possvel e s se pde tentar realizla condio de que fosse eliminada a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilgios da vanguarda terica.

  • 15

    Quando tratamos de acontecimentos, estamos nos remetendo ideia de Foucault

    (2008b, p. 28) diz:

    preciso entender por acontecimento no uma deciso, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relao de foras que se inverte, um poder confiscado, um vocabulrio retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominao que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada. As foras que se encontram em jogo na histria no obedecem nem a uma destinao, nem a uma mecnica, mas ao acaso da luta.

    Nesse caminho, trabalhamos no sentido de questionar o naturalizado e o institudo.4

    Concebemos os fatos como construes histricas passveis de mudana. Em

    Genealogia e Poder, Foucault (2008b, p. 171) diz que essa atividade chamada

    genealgica trata de [...] ativar saberes locais, descontnuos, desqualificados, no

    legitimados, contra a instncia terica unitria que pretenderia depurlos,

    hierarquizlos, ordenlos em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome

    dos direitos de uma cincia detida por alguns.

    Durante todo o nosso trabalho, tambm estiveram presentes os escritos de Patto

    (1999) sobre a produo do fracasso escolar. Levamos em conta o percurso da

    autora sobre a anlise das dificuldades da aprendizagem escolar, na Psicologia,

    influenciada pela viso carregada de pressupostos racistas e elitistas e por uma

    concepo atenta s influncias do meio. Esses aspectos produzem,

    consequentemente, uma explicao impregnada de equvocos, que uma

    caracterstica presente no discurso sobre as causas do fracasso escolar, nos pases

    capitalistas ao longo do sculo XX.

    Para o entendimento do nosso estudo, propomo-nos a apresentar, inicialmente, no

    primeiro captulo, os andaimes dessa construo, discorrendo pelo caminho

    metodolgico e passando pelos desvios que fizemos durante a execuo da

    pesquisa.

    No segundo captulo, trataremos brevemente da histria das leis de assistncia

    infncia e adolescncia. Nesse captulo, teceremos comentrios dessa assistncia

    desde o Brasil Colnia at a criao do Estatuto da Criana e do Adolescente. 4 Por institudo colocaremos no s a ordem estabelecida, os valores, modos de representao e de

    organizao considerados normais, como igualmente os procedimentos habituais de previso econmica social e poltica (ALTO, 2004, p. 47).

  • 16

    No terceiro captulo, chegaremos em Cariacica por meio de uma expedio que nos

    levar a conhecer um pouco de sua histria e, tambm, demarcar os lugares que

    so considerados importantes para o municpio. Conheceremos, ainda, o Conselho

    Tutelar dessa regio, sua localizao e seus aspectos constitutivos.

    No quarto captulo, passaremos a conhecer como as conselheiras descrevem seu

    trabalho e tambm como falam sobre a relao que estabelecem com as escolas e

    com as famlias atendidas. Traremos, tambm, as narrativas das famlias, sobre

    alguns aspectos de seu cotidiano, sobre a vida escolar das crianas entrevistadas e

    seus encontros com o Conselho Tutelar. Discutiremos cada caso, levando em conta

    seus processos de singularizao, pois as histrias se atravessam, se movem, se

    deslocam e se compem.

    No quinto e ltimo captulo, teceremos algumas consideraes finais sobre a

    temtica estudada, bem como as ltimas amarraes feitas diante dos dados

    produzidos.

    1.1 CONSTRUINDO E PERCORRENDO O CAMINHO METODOLGICO: O

    ENCONTRO COM O CAMPO

    Na escolha do mtodo, escolhemos instrumentos que nos auxiliaram no

    entendimento de uma histria no linear e impossvel de ser apreendida como

    causa-efeito, principalmente quando consideramos certos servios pblicos de

    Cariacica e de sua prpria realidade. Dessa forma, utilizamos a pesquisa

    qualitativa,5 com o intuito de acompanhar os movimentos do campo.

    Organizamos, ento, um roteiro que indicava uma primeira direo. Permanecemos

    aberta s variaes entendendo a inexistncia de exigncias a priori. Nosso primeiro

    roteiro foi se definindo e redefinindo constantemente conforme as paisagens se

    organizavam, dessa forma, fomos acompanhando os processos.

    Com o intuito de questionar a linearidade da Histria, como mencionado,

    percorremos nosso caminho com a ideia da genealogia foucaultiana, uma 5 Rey (2002); Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1998).

  • 17

    ferramenta que [...] trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, vrias

    vezes reescritos (FOUCAULT, 2008b, p. 15) e que nos auxiliou em todo o processo.

    Foi assim que, caminhando por uma histria nada assptica, narrada por

    personagens reais que, tentamos buscar a singularidade dos acontecimentos,

    sobretudo naquilo que, geralmente, no participa da histria, como "[...] os

    sentimentos, o amor, a conscincia, os instintos" (FOUCAULT, 2008b, p. 15), que

    nos levam a entender alguns fatos que diversas vezes so excludos,

    desconsiderados, desvalorizados e mesmo apagados do discurso oficial.

    Na genealogia, Foucault (2008b) trata do lugar onde os acontecimentos so acasos

    e no causalidades. A genealogia agita, fragmenta e heterogeniza os fatos. Ele

    ainda nos mostra "[...] que na raiz daquilo que ns conhecemos e daquilo que ns

    somos no existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente"

    (FOUCAULT, 2008b, p. 31).

    A histria tambm emergncia, [...] enquanto que a provenincia designa a

    qualidade de um instinto, seu grau ou seu desfalecimento, e a marca que ele deixa

    no corpo, a emergncia designa um lugar de afrontamento" (FOUCAULT, 2008b, p.

    24), a emergncia fala do combate diante das circunstncias adversas.

    Considerando essas ferramentas, nosso objetivo geral foi trabalhar as

    peculiaridades da relao entre o Conselho Tutelar e as crianas que foram

    encaminhadas pela escola. Assim, propomo-nos a dividir o trabalho de campo em

    dois principais momentos: o primeiro se efetivou no contato com as ex-conselheiras

    tutelares que participaram do mandato de 2005 a 2007 e o segundo, com algumas

    crianas e suas famlias, que se relacionaram com o Conselho Tutelar nesse

    perodo.

    Neste estudo, priorizamos um contato bem prximo com os sujeitos, buscando a

    partir da, efetivamente, apreender as singularizaes de cada histria. Apenas

    quatro famlias foram pesquisadas, pois pretendamos dar maior densidade ao

    contato em detrimento da quantidade de possveis sujeitos a serem entrevistados.

  • 18

    1.2 CONSELHO SEM CONSELHEIRO: O DESENCONTRO

    Em final do ano de 2007, aproximava-se a poca de eleies dos conselheiros

    tutelares de Cariacica. Sentamo-nos ansiosa em circular pelo campo tendo em

    mos o projeto finalizado. Foi nesse momento que comeamos a ouvir rumores de

    que no existia mais Conselho Tutelar em Cariacica. Para entendermos o que

    estava se passando no municpio, enveredamos numa busca de informaes sobre

    o que estava sendo noticiado. Fomos at o Conselho Municipal de Direitos da

    Criana e do Adolescente de Cariacica (COMDCAC), 6 ao Conselho Tutelar da

    Regio III,7 participamos de reunies com a Promotoria,8 mas a explicao parecia

    sempre a mesma: simplesmente no haveria eleio de novos conselheiros.

    Em agosto de 2007, houve a aprovao de uma nova lei9 que regulamentava o

    processo de implantao e eleio dos conselheiros tutelares. No ato de aprovao

    dessa lei, foi revogada a Lei n 2199/91,10 de criao do COMDCAC. De tal modo,

    legalmente, o COMDCAC deixou de existir at dezembro de 2007, quando foi

    aprovada uma nova lei,11 de recriao do COMDCAC, o que viabilizou o processo de

    eleio do Conselho Tutelar. importante lembrar que, dentre as atribuies do

    Conselho Municipal de Direitos, esto a convocao e a realizao das eleies dos

    Conselhos Tutelares. Embora esse Conselho tenha legalmente existido somente at

    agosto de 2007, os conselheiros tutelares continuaram a se encontrar para discutir

    sobre o acerto de toda essa situao, melhor dizendo, buscavam a elaborao de

    um novo projeto de lei para regulamentar a criao dos Conselhos.

    Durante esse perodo, at os casos mais simples, que comumente eram resolvidos

    nos Conselhos Tutelares, passaram a ser encaminhados para o Juizado da Infncia

    6 Durante todo o texto, quando nos referirmos ao Conselho Municipal Direitos da Criana e do

    Adolescente de Cariacica, utilizaremos a sigla COMDCAC e, quando nos referirmos ao Conselho Tutelar, usaremos o termo completo ou apenas a primeira palavra. 7 Em Cariacica existem quatro Conselhos Tutelares divididos por regies. Cada regio concentra um nmero determinado de bairros. 8 Em relao ao Estatuto da Criana e do Adolescente, como funo extrajudicial, a promotoria atua

    na apurao de infrao contida no Estatuto da Criana e Adolescente, inclusive administrativa. 9 Lei n. 4504/2007. Disponvel em: . Acesso em: 19 dez. 2008. 10 Lei n. 2.199/1991. Disponvel em: . Acesso em: 19 dez 2008. 11 Lei n. 4.544/2007. Disponvel em:< http://189.38.58.10/cariacica/images/leis/html/L45442007. html>. Acesso em: 19 dez. 2008.

  • 19

    e da Juventude, o que comprometeu os mais de 2,5 mil processos12 em tramitao

    na Vara da Infncia e da Juventude.

    1.3 DEFININDO E REDEFINIDO O CAMPO: O REENCONTRO

    Encontramo-nos rastreando o campo e sendo guiada por ele. Diante desse

    momento descrito acima, decidimos buscar as conselheiras que participaram do

    ltimo mandato (2005 a 2007). Consideramos que, com a vasta experincia que

    dispunham quanto dinmica de funcionamento do Conselho Tutelar e, com o

    contato com as famlias que atenderam, elas poderiam nos auxiliar.

    Foi, ento, que tivemos um reencontro muito produtivo. Durante trs anos, havamos

    tido a oportunidade de trabalhar com essas conselheiras na Regio III, por ocasio

    da nossa participao no Programa de Extenso mencionado. O fato de ser um

    reencontro fez com que a atmosfera das entrevistas se desse de forma bastante

    vontade.

    Dispusemo-nos a ouvir as conselheiras e, para os nossos reencontros, contamos

    com um roteiro de entrevista semiestruturado que funcionou como um elemento

    norteador. Utilizamos um gravador que garantiu que nada se perdesse. Tambm

    disponibilizamos um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, convidando as

    entrevistadas a autorizarem a realizao e divulgao da entrevista, mantendo em

    sigilo o verdadeiro nome das entrevistadas.

    Os dados produzidos, durante essas entrevistas, foram analisados de forma

    conjunta, no se diferenciando a fala de uma ou outra conselheira, entendendo que

    assim estaramos levando em conta a postura das conselheiras e no as aes

    individuais de cada uma.

    A maioria das entrevistas foi feita nas casas das prprias conselheiras. L pudemos

    adentrar seus lares e conhecer, de outra forma, essas personagens. Em diversos

    momentos, vamo-nos envolvida e relembrando certos acontecimentos dos quais

    tambm fizemos parte. 12 Jornal A GAZETA (2008).

  • 20

    Dessa maneira, a entrevista foi dividida em trs momentos:

    BLOCO I: Experincia no Conselho

    - A escolha de ser conselheira

    - Situaes vividas no Conselho

    - Final do mandato 2005-2007

    BLOCO II: Escola e Conselho Tutelar

    - Contato com a escola

    - Dificuldades na relao

    - Retaguardas

    BLOCO III: Criana/adolescente e Conselho Tutelar

    - Contato com o aluno encaminhado

    - Atendimento aos casos escolares

    - Retorno do aluno atendido

    1.4 VASCULHANDO AS FICHAS DE ATENDIMENTO

    Finalizado o contato com as ex-conselheiras, partimos para o momento de escolher

    as famlias por meio das fichas de atendimento existentes no Conselho Tutelar.

    Entretanto, nesse momento, tornou-se impossvel a realizao dessa tarefa, porque

    os assistentes sociais13 que estavam, excepcionalmente, trabalhando nos Conselhos

    no tinham acesso a nenhum arquivo, ficha ou documento, pois tudo havia sido

    lacrado pela Promotoria.

    As eleies foram realizadas somente no dia 18 de maio de 2008 e depois de 15 a

    20 dias as conselheiras tomaram posse. Aps esse perodo, retornamos ao

    Conselho a fim de tomar contato com as fichas. Com esses documentos em mos,

    notamos uma grande desorganizao no arquivo: os anos se misturavam e no

    havia o mnimo de padronizao na elaborao desses encaminhamentos.

    13

    Como no havia novos conselheiros para assumir o cargo em 2008, a Prefeitura de Cariacica contratou assistentes sociais para assumirem o cargo temporariamente at que se realizassem novas eleies.

  • 21

    Apesar disso, colhemos as informaes de todas as fichas de 2001 a 2007 e depois

    de efetuado o levantamento desses dados, filtramos apenas os anos de 2005 a 2007

    que corresponderiam ao ltimo mandato. No emaranhado de 1.42014 casos,

    atendidos durante esse ltimo perodo citado, 250 diziam respeito a casos

    encaminhados por escolas. Diante desse nmero significativo, deparamo-nos com

    mais um elemento que demonstrou essa intensa busca do Conselho Tutelar por

    parte da escola. Pensamos essa situao como um tringulo no qual o Conselho,

    escola e familiares/crianas seriam trs vrtices. A demanda que foi formulada em

    um deles, no caso a escola, levou-nos a indagar sobre as narrativas e os

    atravessamentos que poderiam ser depreendidos das duas outras partes envolvidas,

    a famlia/criana e os conselheiros. a partir de uma demanda formulada pela

    escola que se cria uma relao e um vnculo que no existia previamente entre a

    criana/famlia e o Conselho. Trata-se, portanto, de compreender o modo como a

    demanda formulada por uma instncia narrada pelos outros atores

    necessariamente envolvidos nesse processo.

    Em contato com os formulrios provenientes das escolas, vimos que, em alguns

    desses documentos, faltavam dados importantes, como o nome da escola que

    formulou a queixa, informaes sobre os pais ou data de elaborao do documento.

    Tambm foi possvel perceber que os casos encaminhados pelas escolas se

    referiam, em sua maioria, a situaes de agresso fsica, principalmente entre

    alunos. Encontramos, ainda, muitos relatos de mau comportamento que englobavam

    atrasos, desinteresse, indisciplina e rebeldia. Alm desses, havia muitas queixas de

    alunos faltosos e alunos com dificuldade de aprendizagem.

    14 Os outros 1.170 casos referem-se a casos variados, como abuso sexual, rebeldia, dependncia qumica, negligncia dos pais, problemas de doena, agresso, explorao sexual, maus-tratos, dentre outros que foram encaminhados para o Conselho Tutelar por meio de denncia annima, pelo pai, pela me, pelo irmo, pelo vizinho ou outros.

  • 22

    1.5 O ENCONTRO COM AS FAMLIAS

    Para escolha das famlias, retornamos ao Conselho Tutelar e, acessando

    novamente as fichas, escolhemos alunos que chegaram at o Conselho em 2007,15

    encaminhados pela escola. Tivemos algumas dificuldades em relao a esses

    contatos, pois muitos haviam mudado de municpio ou o nmero do telefone era

    inexistente. Escolhemos, ento, trabalhar com quatro famlias. Diante desse quadro,

    fomos at suas casas com o intuito de ouvir sobre a relao do Conselho com as

    crianas encaminhadas pela escola.

    Foi nesse contato com as famlias que tivemos uma viso ampliada da

    complexidade do campo que nos propusemos a estudar. Compusemos, ento,

    quatro histrias: a histria de Pedro,16 a histria de Fbio, a histria de Davi e a

    histria de Jlio. Nossa proposio era buscar conhecer os atravessamentos

    presentes nas histrias dos sujeitos que foram produzidos a partir de suas vivncias

    cotidianas, das polticas sociais implementadas, das relaes de poder instauradas e

    de outros componentes que se destacaram no campo pesquisado. Tambm

    utilizamos um roteiro que norteou nossa conversa e, ainda, o Termo de

    Consentimento Livre e Esclarecido, no qual os entrevistados autorizaram a

    realizao e divulgao da entrevista, mantendo em sigilo o verdadeiro nome das

    entrevistadas.

    A entrevista foi dividida em trs momentos:

    BLOCO I: O bairro

    - A chegada no bairro

    - Vivncias nesse local

    BLOCO II: Escola

    - Vida escolar

    - Encaminhamento ao Conselho Tutelar

    15 Escolhemos o ano de 2007 por ser o mais recente. Sendo assim, espervamos que mais fatos pudessem ser relembrados pelas crianas e pelas famlias entrevistadas. 16 Todos os nomes foram trocados para garantir o sigilo dos participantes.

  • 23

    BLOCO III: Chegada ao Conselho Tutelar

    - Conversa com as conselheiras

    - Processo de atendimento criana

    Fomos compreendendo o movimento dos encontros realizados por meio dos

    depoimentos de quatro conselheiras e das histrias de quatro crianas. Com esse

    material, foi possvel conhecer diversos aspectos da atuao das conselheiras, suas

    estratgias de trabalho, suas dificuldades e conquistas. Pelo contato com as

    crianas e suas famlias, percorrendo seus bairros e suas casas, conhecemos

    diferentes modos de vida, sentimentos e comportamentos em relao ao Conselho e

    escola.

    Para tratar dos dados referentes s crianas, percebemos de imediato a

    impossibilidade de entrevistarmos to somente a criana. Demo-nos conta de que,

    ao falar da criana, tambm falvamos de sua famlia e, principalmente, com sua

    cuidadora.17 Nesse sentido, optamos por compor histrias as quais seriam

    formadas por falas dos responsveis e por falas das crianas.

    Durante a trajetria da pesquisa, encontramo-nos com uma srie de fatos que nos

    levaram a diferentes caminhos. Procuramos nos aventurar e no nos afastar do que

    soava como estranho ou angustiante. por conta dessa forma de estar no campo

    que fomos entendendo esses percalos como dados produzidos durante a pesquisa.

    Um deles o fato de que durante algum tempo o Conselho funcionou com

    assistentes sociais18 sem conselheiros tutelares. No se tratava apenas da sada

    dos conselheiros, mas da alterao de um atendimento bsico para as crianas e

    adolescentes de todo o municpio. Uma ex-conselheira que vivenciou esse processo

    nos descreve o fato:

    Simplesmente disseram: Me d a chave e pode embora. Como se a gente fosse uma pessoa qualquer [...] quem me colocou l dentro foi a sociedade, foi a comunidade, eu tinha que dar respostas a essas pessoas que confiaram em mim (EX-CONSELHEIRA).

    17

    Quando falamos cuidadora, estamos nos referindo pessoa que responsvel pela criana e que disponibiliza cuidados a ela. 18

    Os assistentes sociais trabalharam no Conselho de janeiro a maio de 2009.

  • 24

    Entretanto, mesmo ocupando o mesmo local de trabalho de um conselheiro tutelar, o

    assistente social no pode exercer da mesma forma essa funo. Cabia-lhe, ento,

    fazer apenas encaminhamentos e pedidos, tornando o servio deficiente e, em certo

    sentido, distinto ao que prope o Estatuto. O sentimento de obrigao em responder

    sociedade, mesmo no sendo mais conselheira tutelar, diz respeito a um

    sobretrabalho, o que necessariamente se vincula ideia de sobreimplicao de

    Lourau (2004)19. A sobreimplicao garante, de alguma maneira, a existncia do

    trabalho de conselheira, mesmo naquele momento em que oficialmente havia

    deixado de existir o Conselho Tutelar em Cariacica.

    A populao foi mal informada do que estava acontecendo e, por isso, muitas

    pessoas dos bairros prximos continuavam a procurar a ex-conselheiras, como

    forma de tentar solucionar seus problemas. Em nossas reunies e encontros em

    Cariacica fomos informada que a lei passou por diversas instncias e em nenhum

    nvel foi detectado o erro.

    Nesse caso, vrias proposies foram quebradas: a de que o Conselho Tutelar um

    espao de participao popular que conta com cinco pessoas que so escolhidas

    pela comunidade; a de que o Conselho Tutelar tem a caracterstica de ser

    permanente porque desenvolve uma ao contnua e ininterrupta; e, ainda, que o

    Conselho um rgo autnomo em suas decises e no est subordinado a

    pessoas ou rgos, mas ao Estatuto da Criana e do Adolescente.

    Sobre esses episdios questionamos, em muitos momentos, o motivo de tantos

    desacertos. Entretanto, deparamo-nos com o silncio ou com explicaes

    superficiais, as quais nos foravam a pensar que a situao da criana e do

    adolescente tem sido vista como uma questo secundria.

    19

    Para desenvolver o conceito de sobreimplicao o autor parte do conceito de implicao, descrevendo-o como um n de relaes, no sendo boa (uso voluntarista), nem m (uso jurdico-policialesco). J a sobreimplicao, por sua vez, designada como a ideologia normativa do sobretrabalho, gestora da necessidade do implicar-se (LOURAU, 2004)

  • 25

    2 BREVE HISTRIA DAS LEIS DE ASSISTNCIA INFNCIA E

    ADOLESCNCIA

    Pessoal, desculpe incomodar a viagem de vocs, no estou na rua para roubar, mas para trabalhar honestamente. Qual de vocs tem um bom corao e poderia me ajudar comprando minhas deliciosas balas de eucalipto? Trs por um real. Aceitamos dinheiro, vale e cheque assinado em branco. Quem puder me ajudar eu agradeo, pessoal.

    (Muitos meninos e meninas do Brasil)20

    As palavras ditas e ouvidas, dentro dos transportes coletivos, com um tom meldico

    e marcadamente decorado, vm das mais diferentes pessoas, dentre elas, crianas

    e adolescentes. Diante delas, sentimos e participamos das mais variadas reaes: o

    desvio do olhar, a pena, o medo, o incmodo, a indiferena, a admirao, a

    impotncia e o paradoxo diante do conhecimento de um Estatuto21 que probe [...]

    qualquer trabalho a menores de idade. 22 Entretanto, h uma tenso colocada entre

    a formulao de uma lei e as prticas cotidianas. Muitas vezes essas prticas no

    do conta de que esses meninos e meninas, na maioria das vezes, encontram-se

    numa situao em que abrir mo do trabalho significa a reduo da renda familiar,

    um possvel risco de violncia domstica e a no satisfao de seus desejos e

    necessidade de consumo.

    O Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), como tantos outros documentos

    normativos, resultado de seu tempo. Isso no quer dizer que sua criao no

    tenha sido relevante, mas expressa uma forma de pensar e agir de um determinado

    momento histrico no qual existiam mltiplos interesses em jogo nos diversos

    mbitos. Nesse sentido, apropriamo-nos das palavras de Foucault (2008b, p. 25):

    Em si mesmas as regras so vazias, violentas, no finalizadas; elas so feitas para

    servir a isto ou quilo; elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns ou de

    20

    Nas idas ao campo de pesquisa, diversas vezes, dentro do nibus na linha 509, pudemos assistir entrada dessas pessoas que vendiam balas e outros doces. 21

    Ao longo do texto nos referiremos ao Estatuto da Criana e do Adolescente por Estatuto ou simplesmente por ECA. 22

    [...] salvo a condio de aprendiz (BRASIL, 2005).

  • 26

    outros. O grande jogo da histria ser de quem se apoderar das regras. por conta

    desse jogo de foras que o ECA, assim como a maioria das leis, apresenta

    contradies, avanos e retrocessos. Suas condies de aplicabilidade reais se

    movimentam constantemente, pois estamos falando de algo vivo, sempre sujeito s

    presses para constantes reformulaes. A lei se coloca como um instrumento de

    ao, que se faz e refaz na ao dos homens.

    O interesse que essas aes garantam uma rede de atendimento funcionando em

    prol das crianas e dos adolescentes e superem as atuaes fragmentadas e as

    prticas individualizantes que tm se destacado nos servios de atendimento s

    crianas e aos adolescentes.

    Falarmos sobre a efetivao das regras emitidas pelo ECA pressupe mudanas no

    modo de entender e agir de indivduos, famlias, comunidades, gestores pblicos e

    dos demais integrantes da sociedade, especialmente pelas dificuldades histricas

    com que sempre crianas e adolescentes foram tratados no Brasil.

    A criana e o adolescente tm sua histria recontada em muitos espaos. H

    trabalhos publicados que buscam reconstruir as descontinuidades de cada poca.

    Essa histria se efetiva quando os fatos se dispersam, se desdobram e se

    desencadeiam. No h um acontecimento verdadeiro que origina todos os

    processos; h acontecimentos que produzem sujeitos histricos imersos nas

    dinmicas sociais de nossa sociedade. Nesse caminho, importante desnaturalizar

    quaisquer noes totalizantes sobre a infncia que se pretendam permanentes e

    universais. O conceito de criana como o conhecemos hoje recente e passou por

    diversas mudanas.23

    Dessa forma, no se trata de uma tarefa simples. Nosso maior embate organizar

    certos elementos marcantes da histria sem hierarquiz-los ou coloc-los em

    posio de causa e consequncia. Entendemos que, nessas descontinuidades, h

    uma certa continuidade, mas que no absoluta.

    23 Aris (1978) descreve que, na Idade Mdia, a criana era vista como miniatura de adulto. Depois, por volta do sculo XVI, vai sendo delineado uma nova concepo que via a criana como ingnua e inocente, um ser incompleto e imperfeito que servia como fonte de distrao e relaxamento para os mais velhos, e pelo sentimento dos moralistas preocupados com a disciplina e os bons costumes, viam nas crianas frgeis criaturas de Deus que precisavam ser preservadas e disciplinadas. Isso at chegarmos noo atual da criana, como sendo um sujeito com caractersticas prprias.

  • 27

    Ao circular por esse campo, convocamos diversos autores estudiosos da histria das

    crianas no Brasil para nos auxiliarem nessa remontagem. Entendemos que cada

    um deles, junto conosco, compe tambm esta histria. Tais autores, com suas

    leituras e releituras dos acontecimentos, fizeram-nos passear pelas diversas

    mudanas em relao ao tratamento dado infncia e juventude. Nossa proposta

    pensar a partir da inexistncia dos universais (FOUCAULT, 2008a, p. 5) para

    questionar que histria estamos compondo. Para tanto, fizemos um recorte que vai

    desde a utilizao da Roda dos Expostos como meio de salvar as crianas do

    abandono at chegarmos criao do rgo de defesa dos direitos infanto-juvenis,

    os Conselhos Tutelares.

    seguindo por esse caminho que, nos prximos tpicos, trabalharemos com os

    escritos de Jacques Donzelot (1980), Maria Luiza Marclio (1997), Irene Rizzini

    (1995, 2000, 2004), Irma Rizzini (1993, 2004), Francisco Pilloti (1995; 2006), Antnio

    Carlos Gomes Costa (1994), Riolando Azzi (1992), Edson Passetti (2000), Mary Del

    Priore (2000), Emlio Garcia Mendez (1994) e Elizabeth Maria Andrade Arago

    (2004), alm de outros que no foram citados neste momento, mas que nos

    levaram, de alguma forma, a compor essa etapa do trabalho.

    2.1 ENTRANDO NA RODA: RASTREANDO A PRIMEIRAS INICIATIVAS

    Escolhemos iniciar nosso trajeto histrico, em relao construo das polticas de

    assistncia para crianas e adolescentes, pelo estabelecimento que, por quase meio

    sculo, foi praticamente o nico responsvel pela assistncia criana abandonada

    em todo o Brasil: A Roda24 dos Expostos. No sculo XVIII, a assistncia infncia

    era de responsabilidade das Cmaras Municipais, mas importante destacar que

    24 Estruturalmente, a roda possua uma forma cilndrica, dividida ao meio por uma divisria. Era fixada no muro ou na janela da instituio. No tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor depositava a criana enjeitada. A seguir, ele a girava toda e a criana chegava ao outro lado do muro. Puxava-se uma cordinha com uma sineta, para avisar vigilante ou rodeira que um beb acabava de ser abandonado e o expositor, disfaradamente, retirava-se do local, sem ser identificado (MARCLIO, 1997, p. 55).

  • 28

    esse encargo foi, em grande parte, assumido pela Irmandade da Santa Casa de

    Misericrdia.25

    Riolando Azzi (1992) nos traz uma importante anlise para a compreenso das

    relaes entre a Igreja e o menor no Brasil, sob o ponto de vista histrico. Nesse

    estudo, ele destaca que a problemtica do menor se imps como uma questo no

    Brasil ao final do sculo XVII e incio do sculo XVIII, mais exatamente com o incio do

    ciclo do ouro. nesse perodo que a vida urbana se presentificou de forma mais

    intensa, e as crianas enjeitadas passaram a se tornar um problema. O nascimento

    de crianas ilegtimas sempre foi uma constante na histria do Brasil, entretanto,

    quando a sociedade brasileira era marcada pela ruralidade, pelo plantio da cana-de-

    acar e pela criao de gado, as prprias comunidades agrcolas se encarregavam

    de sustentar e criar as crianas enjeitadas.

    no espao urbano que a Roda dos Expostos ganha destaque. O nome da roda

    provm do dispositivo onde se colocavam os bebs que se queriam abandonar. A

    roda teve origem nos mosteiros e conventos medievais, usados para enviar objetos,

    alimentos e mensagens aos internos. O cilindro garantia o isolamento e evitava

    qualquer contato com o mundo exterior. Esses mosteiros recebiam, tambm,

    crianas doadas, pelos pais, para o servio de Deus. Dessa forma, muitos pais

    abandonavam seus filhos utilizando a roda e esperavam com isso que o beb fosse

    cuidado pelos monges.

    A roda foi utilizada para salvaguardar o anonimato do expositor, evitando-se o que

    era considerado o mal maior: o aborto e o infanticdio. Alm disso, a roda poderia

    defender a honra das famlias cujas filhas teriam engravidado fora do casamento. A

    roda tambm serviu ao propsito de regular o tamanho das famlias, dado que, na

    poca, no havia mtodos eficazes de controle de natalidade. Na realidade, nessa

    poltica da roda, parecia predominar no a assistncia criana, mas a garantia da

    ordem social. Nesse sentido, a criana se coloca como um objeto que precisa ser

    escondido, eliminado da sociedade para evitar escndalos e consequncias s

    famlias da poca.

    25

    As rodas eram estabelecidas junto s Casas de Misericrdia.

  • 29

    A partir dos anos de 1860, emergem inmeras instituies de proteo infncia

    desamparada. Marclio (1997) traz vrios dados que nos possibilitam conhecer que,

    em 1887, a cidade do Rio de Janeiro possua uma lista considervel de

    estabelecimentos de abrigo e educao para menores desvalidos, de carter pblico

    ou particular. Durante cerca de trs sculos e meio, as iniciativas de assistncia em

    relao infncia abandonada foram quase todas de carter caritativo e filantrpico

    promovidas por iniciativa de instituies religiosas.

    As primeiras medidas tomadas efetivamente pelos poderes pblicos com relao

    infncia emergem somente a partir da segunda metade do sc. XIX, durante o

    Governo Imperial. Foi, ento, aprovado um decreto que regulava a reforma do

    ensino primrio e secundrio e criou-se o Asilo de Meninos Desvalidos.

    O asilo representava um modelo de atendimento que sobreviveu e permaneceu na

    Repblica. No perodo de Governo Imperial, o Estado adotou uma poltica de

    atendimento baseada na internao, com o objetivo de educar ou recuperar o

    menor. Dessa forma, o modelo asilar de atendimento infncia desvalida foi a

    contribuio daquele Governo para a construo da assistncia pblica infncia no

    Pas.

    2.2 O CDIGO DE MENORES: CATEGORIZANDO A INFNCIA POBRE,

    DELINQUENTE E MARGINALIZADA

    No Brasil Repblica, rompeu-se a forma de governo, mas permaneceram as

    relaes clientelistas e coronelistas que sustentavam o Poder Imperial. A questo da

    criana adquire uma dimenso consolidada no ideal republicano da poca.

    Salientava-se a urgncia de interveno do Estado, educando ou corrigindo os

    menores para que se transformassem em cidados teis e produtivos para o Pas,

    assegurando a organizao moral da sociedade.

    O perodo de 1923 a 1927 destacado por Rizzini (2000) como o mais proveitoso

    em termos de leis referentes organizao da assistncia e proteo infncia

    abandonada e delinquente. Ainda em 1923, o Decreto n 16.273, trata de

  • 30

    reorganizar a Justia do Distrito Federal, incluindo a figura do juiz de menores na

    administrao da Justia e, somente em 1927, foi promulgado o Cdigo de Menores.

    A Doutrina de Situao Irregular, por meio do Cdigo de Menores, trouxe a

    compreenso de que algumas crianas e adolescentes, especialmente pobres,

    abandonados, doentes, infratores, etc., estariam em situao irregular em relao ao

    conjunto da sociedade e s demais crianas e adolescentes brasileiros. Para

    aqueles, deveria funcionar todo o sistema jurdico que tratasse de retir-los do

    convvio social, mantendo, assim, a sociedade de forma harmnica. Essa forma

    irregular, muitas vezes, j se colocava desde o nascimento da criana, ou seja, em

    funo de sua condio de classe, ou da sua situao econmica e de vida.

    A criana e o adolescente no eram vistos como cidados e sim como objeto de

    interveno estatal, e a autoridade detinha o poder de definir o que era e o que no

    era bom para o menor. Sendo assim, podemos dizer que a proteo jurdica era

    categorizada e no integral, porque no alcanava a todos. O Cdigo de Menores

    no era endereado a todas as crianas, mas apenas quelas consideradas em

    "situao irregular. O cdigo definia, j em seu art. 1, a quem a lei se aplicava:

    O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, ser submettido pela autoridade competente s medidas de assistencia e proteco contidas neste Codigo26 (BRASIL, 1927).

    Efetivamente, o menor no era apenas esse indivduo desajustado com idade

    inferior a 18 anos, conforme se pode observar no questionrio Investigaes do

    Comissrio de Vigilncia:

    Menor era aquele que, proveniente de famlia desorganizada, onde imperam os maus costumes, a prostituio, a vadiagem, a frouxido moral e mais uma infinidade de caractersticas negativas, tem a sua conduta marcada pela amoralidade e pela falta de decoro, sua linguagem de baixo calo, sua aparncia descuidada, tem muitas doenas e pouca instruo, trabalha nas ruas para sobreviver e anda em bandos e em companhias suspeitas. Mesmo que ele no se enquadre na descrio acima, retirada dos questionrios, ser sempre um candidato se seus pais no oferecerem suficientes garantias de moralidade, energia e capacidade econmica para educ-lo (apud RIZZINI, 1993, p. 96).

    26

    Grafia original.

  • 31

    O Cdigo de Menores visava a estabelecer diretrizes claras para o trato da infncia

    e juventude excludas, regulamentando questes, como trabalho infantil, tutela e

    ptrio poder, delinquncia e liberdade vigiada. O Cdigo revestia a figura do juiz de

    grande poder. O destino de muitas crianas e adolescentes ficava a merc do

    julgamento e da tica do juiz.

    O Juzo de Menores estabeleceu um novo padro com relao prtica jurdica

    voltada para o menor, que passou a ser avaliado e classificado de acordo com o seu

    enquadramento em funo de caractersticas morais, fsicas, sociais, afetivas e

    intelectuais. Dessa forma, a criana ou o adolescente eram analisados a partir de

    diagnsticos fornecidos inicialmente por mdicos e professores, que utilizavam

    conceitos da Psicologia, Pedagogia e Medicina para atribuir ao menor uma

    personalidade normal ou patolgica.

    Nesse perodo, o menor passou a ser pensado pelo vis da cincia. Irma Rizzini

    (1993) discute a criao do Juzo como resultado de novos ideais de proteo

    assistncia infncia, entendendo que a compreenso, sob o ponto de vista da

    moral, j no mais era satisfatria para abranger a complexidade do universo da

    infncia abandonada. Isso fez com o que os especialistas buscassem com maior

    frequncia respostas no campo cientfico.

    O Servio de Assistncia ao Menor (SAM), criado em 1941, durante a ditadura

    Vargas, foi a primeira tentativa de estabelecer uma poltica para assistir menores

    em instituies oficiais, com o objetivo de centralizar as polticas de atendimento ao

    menor no Pas. Com isso, postulava-se devolver sociedade indivduos que

    pudessem entrar no mercado de trabalho, tornando-se teis:

    Deve-se ressaltar que o SAM, desde a sua origem, responsabilizou-se por sistematizar e orientar os servios para crianas tidas como desvalidas e delinquentes. Sua existncia transcorreu marcada pela corrupo, pelo clientelismo e por abuso contra os internos, de tal sorte que, na dcada de 50, sua representao no imaginrio social brasileiro passou a se configurar como Escola do Crime, Fbrica de Monstros Morais e SAM - Sem Amor ao Menor (ARAGO, 2004, p. 25).

    Com o fim da Era Vargas, em 1945, inicia-se um perodo democrtico-populista.

    Nessa transio, em relao infncia, destacam-se estratgias de preservao da

  • 32

    sade da criana e de participao da comunidade, como tambm as crticas e

    denncias ao SAM. Sobressaem, tambm, tentativas de reformul-lo, o que gerou a

    criao da Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM).

    A FUNABEM foi criada no primeiro ano do Governo militar. Dentre os seus objetivos

    estaturios, constava a formulao e a implantao da Poltica Nacional do Bem-

    Estar do Menor (PNBEM), por meio de estudos que subsidiariam o planejamento de

    solues para o problema do menor no Brasil. As Fundaes Estaduais do Bem-

    Estar do Menor (FEBEMs), na esfera estadual, eram destinadas a garantir o

    atendimento ao menor, alm de aplicar os recursos repassados para esse fim.

    necessrio considerar que, no final dos anos 60, grandes mudanas sociais

    ocorreram em nosso pas. Houve um grande xodo rural e, em virtude desse

    processo migratrio, as cidades foram se tornando cada vez mais populosas.

    Entretanto, no dispunham de infraestrutura suficiente para abarcar o grande

    nmero de pessoas com pouca escolaridade e baixa qualificao profissional.

    Assim, esses trabalhadores acabaram alocados em subempregos.

    Acreditava-se que tais grupos de pessoas, frutos de um processo social perverso,

    tendiam a converter-se em geradores de desarmonia. Pilotti e Rizzini (1995) afirmam

    que essas pessoas passaram da condio de marginalizados a marginalizantes, em

    consequncia dos efeitos nocivos de suas caractersticas comuns (situao de

    pobreza, quebra de valores e de comportamento cultural, alto ndice de natalidade,

    alto ndice de alcoolismo, mendicncia, etc.) sobre a sua prpria reproduo social,

    isto , sobre crianas e adolescentes nascidos e criados nesse meio.

    No mbito da questo social configurava-se, assim, uma questo do menor. O processo de marginalizao de crianas e adolescentes tinha de ser reconhecido como regra geral. Os dados disponveis indicavam uma realidade assustadora. A massa crescente de crianas e jovens marginalizados fazia prever, a curto e mdio prazo, prejuzos considerveis, quer do ponto de vista scio-econmico, quer do ponto de vista poltico (PILOTTI; RIZZINI, 1995, p. 303).

    No final da dcada de 1970, foi criado o Novo Cdigo de Menores, mas no teve

    longa durao. Esse cdigo tratava da ampliao dos poderes da autoridade

  • 33

    judiciria, ou seja, refletia a fidelidade dos juzes de menores velha lei de Mello

    Mattos, 27 adaptando-a aos novos tempos.

    Na dcada de1980, poca marcada por ares democrticos, houve uma rejeio s

    prticas repressivas impostas por lei. Alm disso, abriu-se espao para o que se

    acredita ser a maior e significativa reformulao da histria da legislao para a

    infncia. Foram anos de debate, denncias e demonstraes pblicas de

    descontentamento ao Cdigo de Menores que, numa escala sem precedentes no

    Brasil, produziram movimentos sociais em defesa dos direitos da criana e do

    adolescente.

    2.3 A GRANDE RUPTURA: DA SITUAO IRREGULAR PROTEO INTEGRAL

    Como vimos, no Brasil, a interveno do Estado na elaborao das primeiras

    polticas pblicas para crianas e adolescentes teve como preocupao aes

    voltadas para a limpeza social dos tipos indesejveis.

    A ruptura ocorreu apenas com o Estatuto da Criana e do Adolescente, no bojo de

    um processo de abertura poltica, aps duas dcadas de regime ditatorial e quase

    60 anos de tentativa de reformulao do Cdigo de 1927.

    Embora, para a economia do Pas, os anos 80 tenham sido considerados como a

    dcada perdida, diversos avanos polticos e institucionais em direo ao Estado

    democrtico foram visveis. Encontros aconteceram fazendo com que a histria frgil

    e precria, que nos dava a impresso de um cenrio de desolao, nos

    surpreendesse, evidenciando certo preparo do terreno para um significativo

    movimento social em favor de crianas e adolescentes.

    Aps a intensa movimentao ocorrida nos anos de 1980, podemos contemplar a

    sntese de todo esse o esforo realizado, observando o art. 227 da Constituio

    Brasileira de 1988:

    27

    O primeiro Cdigo de Menores tambm ficou conhecido como Cdigo Mello Mattos, nome do consolidador dessa lei e primeiro juiz de menores do Brasil, nomeado em 1925 (RIZZINI, 1993).

  • 34

    dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso (BRASIL, 1988, p. 148).

    O texto constitucional pronuncia, mesmo que genericamente, todos os direitos que

    so fundamentais infncia e juventude. importante relembrarmos que a regra

    do art. 227 chega Assemblia Nacional Constituinte por meio de uma emenda

    popular. Foi uma intensa mobilizao e participao da populao. Estamos falando

    de pessoas que j lutavam pela infncia e juventude e tinham por objetivo assegurar

    direitos para essa faixa etria. A partir de reunies e congressos em Braslia,

    articulaes se deram entre o setor pblico federal e organismos da sociedade civil

    (juristas, associao de moradores, entidades sindicais, movimentos contra a

    carestia, etc.) em prol de modificaes a serem efetivas nesse mbito.

    O que ganha destaque nesse acontecimento que uma emenda popular, com mais

    de dois milhes de assinaturas, acaba sendo integrada Constituio. Sendo assim,

    depois da Constituio de 1988, o Cdigo de Menores torna-se inteiramente inapto

    para atender a essa nova regra constitucional de reconhecimento das crianas e dos

    adolescentes no mais como meros objetos de interveno do Estado, mas, sim,

    como sujeitos de direito. Partindo desse ponto, surge a necessidade da elaborao

    do Estatuto da Criana e do Adolescente como uma forma de regulamentao do

    preceito constitucional.

    No final dos anos 80 e incio dos anos 90, os objetivos, finalmente, foram atingidos

    com a criao do Estatuto da Criana e do Adolescente, que dispe, como princpio,

    a Doutrina da Proteo Integral, contrapondo-se Doutrina da Situao Irregular

    que fundamentava o Cdigo de Menores, como assinalado.

    A Doutrina de Proteo Integral prope que os direitos de todas as crianas e

    adolescentes devam ser reconhecidos e garantidos com absoluta prioridade. Nela, a

    famlia, o Estado e a sociedade tm o dever de assegurar tais direitos, sendo

    responsveis pelas crianas e pelos adolescentes, colocando-os a salvo de qualquer

    forma de explorao, violao ou opresso. Trata-se de um conjunto de

    instrumentos jurdicos de carter internacional que no se destina apenas infncia

  • 35

    pobre, mas a toda populao infanto-juvenil. Esses direitos so fundamentados na

    Declarao Universal dos Direitos Humanos e em diversos documentos da

    Organizao das Naes Unidas (ONU), como a Declarao dos Direitos da Criana

    e do Adolescente.

    A incluso de novas linhas28 de ao da Poltica da Proteo Integral, contidas no

    Estatuto da Criana e do Adolescente, exigiu uma reestruturao dos servios da

    poltica de atendimento criana e ao adolescente no mbito das polticas sociais.

    Essa incluso decorre de um processo de reconhecimento e de garantia dos direitos

    que suprem as necessidades das crianas e dos adolescentes.

    O Estatuto avana na discusso sobre a discriminao imposta pelo uso do termo

    menor, ao substituir a noo de menor em situao irregular pela de sujeito de

    direitos. Assim, no ECA, ser sujeito de direitos implica compreender que todos

    aqueles que tenham de zero a dezoito anos, as crianas e os jovens de

    qualquer segmento social, possuem a ampla garantia dos direitos pessoais e

    sociais baseada na Doutrina de Proteo Integral, que preconiza que a noo

    de Direitos deve se aplicar infncia e juventude sem restries. Ao

    estabelecer, ento, a lgica de proteo integral, o Estatuto rompe com a doutrina

    de situao irregular enfatizada no Cdigo de Menores que vigorava desde o ano de

    1927, questionando o paradigma institudo que regulamentava essa lei.

    O Estatuto redimensiona o papel do Estado em relao s polticas sociais. A partir

    dessa afirmao, Passetti (2000) aponta que, no mbito nacional, o Estado

    permanece orientando e supervisionando as aes, mas reduz sua atuao na

    esfera do atendimento facilitando o aparecimento, em larga escala, das

    organizaes no governamentais (ONGs).

    Na pesquisa intitulada A poltica de atendimento infncia e adolescncia na

    Regio Metropolitana Grande Vitria 29 (2004), os autores constataram que, entre as

    28

    So linhas de ao da poltica de atendimento: I - polticas bsicas; II - polticas e programas de assistncia social, em carter supletivo, para aqueles que deles necessitem; III - servios especiais de preveno e atendimento mdico e psicossocial s vitimas de negligncia, maus-tratos, explorao, abuso, crueldade e opresso; IV - servio de identificao e localizao de pais, responsvel, crianas e adolescentes desaparecidos; V - proteo jurdico-social por entidades de defesa dos direitos da criana e do adolescente (CALIMAN; MILANEZI; DALTON, 2004). 29

    Nesse caso, os autores se referem aos municpios de Vitria, Serra, Cariacica e Vila Velha.

  • 36

    instituies que oferecem servios criana e ao adolescente, h predomnio das

    instituies no governamentais. Historicamente, as instituies governamentais e

    as no governamentais que atuam na rea de atendimento criana e ao

    adolescente coexistem em nosso pas.

    Tal coexistncia legitimada na Constituio Federal, porm a pesquisa destacou

    que esse dado mostra que, muitas vezes, as instituies no-governamentais esto

    assumindo a poltica de atendimento criana e ao adolescente, preenchendo uma

    lacuna que advm da precria participao do Estado. Alm disso, a criana acaba

    se tornando um meio que propicia a continuidade de burocracias pblicas e privadas

    e, por conta disso, so criados e recriados programas de atendimento e avaliaes

    em torno da criana carente e abandonada, o que faz com que a estigmatizao

    ainda persista.

    Acompanhamos os grandes avanos que aconteceram no sentido de garantir s

    crianas direitos e cidadania30. A partir dessa viso, uma igualdade de direitos e

    mesmo a proposio de equidade se configura j que, perante a lei,

    independentemente de cor, sexo, etnia ou classe social, todos os brasileiros de zero

    a dezoito anos passam a ter direitos e deveres.

    Destacamos as diversas alteraes que se deram na forma de assistir a criana e o

    adolescente. O sentido de assistncia foi configurando-se de variadas formas.

    Inicialmente, eram assistidos de forma filantrpica por ao da Igreja Catlica e pela

    ausncia do Estado. Depois, um olhar assistencialista e repressivo sobre a criana e

    o adolescente, por meio do qual o menor era encarado com um problema de

    segurana nacional. E hoje, mesmo a criana com seus direitos e deveres bem

    definidos, ainda possvel ver resqucios das prticas das pocas anteriores.

    30 Compreendemos o conceito de cidadania como algo que vem sendo transformado ao longo dos tempos. Ser cidado no apenas receber direitos, mas participar ativamente da construo deles. A articulao ativa dos indivduos em suas lutas coletivas o que tem promovido a conquista de direitos na Histria.

  • 37

    2.4 OS MEIOS LEGAIS PARA A EFETIVAO DA POLTICA

    O advento do Estatuto um dos momentos mais vibrantes dessa histria oscilante.

    Ele vem no sentido de incumbir a lei de assegurar s crianas e aos adolescentes a

    possibilidade do exerccio dos direitos fundamentais. A elaborao do Estatuto vai

    se dar exatamente na perspectiva de detalhar aquilo que estava genericamente

    previsto na Constituio de 1988 e tambm de criar um sistema de garantia para

    esses direitos.

    No Estatuto, proposto um sistema de atendimento e garantia de direitos e uma

    nova forma de gesto, com destaque especial aos Conselhos e Fundos Municipais

    dos Direitos da Criana e do Adolescente e Conselhos Tutelares. So esses trs

    meios que tero por finalidade a efetivao das leis contidas no Estatuto.

    O Conselho Municipal dos Direitos, rgo criado por determinao do ECA, possui

    representao paritria e a instncia de mbito municipal responsvel pela

    formulao, deliberao e controle da poltica de ateno criana e ao

    adolescente. Cabe ao Conselho de Direitos administrar o Fundo Municipal dos

    Direitos da Criana e do Adolescente (FUMCAD).

    O Fundo para a Infncia e Adolescncia (FIA) existe nas instncias federal, estadual

    e municipal e objetiva captar recursos destinados ao atendimento de polticas,

    programas e aes voltados para a proteo de crianas e adolescentes. O Imposto

    de Renda a principal fonte de captao de recursos para os Fundos dos Direitos

    da Criana e do Adolescente, e sua utilizao no traz nus a quem contribui.

    Os recursos destinados ao FIA devem ser aplicados em projetos de proteo e

    defesa dos direitos de crianas e adolescentes em situao de risco ou

    vulnerabilidade, na proteo contra violncia (maus-tratos, abuso, explorao sexual

    e/ou moral), em projetos de combate ao trabalho infantil, profissionalizao de

    adolescentes, alm de orientao, apoio sociofamiliar e medidas socioeducativas.

    Um terceiro meio legal proposto pelo Estatuto o Conselho Tutelar. Trata-se de um

    rgo pblico municipal de carter autnomo e permanente, cuja funo zelar

    pelos direitos da infncia e da juventude conforme os princpios estabelecidos pelo

  • 38

    Estatuto da Criana e do Adolescente (no art.131). Juntamente com os Conselhos

    de Direitos, o Conselho Tutelar foi a mais importante inovao poltica de

    atendimento infncia e a adolescncia a partir da implementao do ECA, pois

    este veio regulamentar as conquistas em favor da criana e do adolescente na

    Constituio Federal, alm de promover importantes avanos nessa rea.

    Podemos destacar trs principais vantagens em relao ao atendimento voltado

    criana e ao adolescente: uma delas seria a municipalizao, pois por meio dela,

    cada comunidade, dentro de suas caractersticas, peculiaridades e necessidades,

    encontrariam e definiriam formas de atendimentos possveis; a segunda, vinculada

    diretamente primeira, seria a articulao da comunidade, dessa forma, somente

    quando a comunidade estiver articulada, sensibilizada e participativa que

    ocorrero mudanas significativas; e, por ltimo, a possibilidade de investimento de

    recursos pblicos, garantindo que eles sejam utilizados de forma mais adequada e

    participativa, o que acarretaria um melhor atendimento.

    O Conselho Tutelar vinculado apenas administrativamente Prefeitura Municipal.

    Sua relao de subordinao ocorre em relao s Diretrizes da Poltica Municipal.

    regulado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente

    (CMDCA), pela Justia da Infncia e da Juventude, pelo Ministrio Pblico, pelas

    entidades civis que trabalham com a populao infanto-juvenil e, principalmente,

    pelos cidados.

    de responsabilidade do Conselho Tutelar atender s crianas e aos adolescentes

    que tiverem seus direitos ameaados por ao ou omisso da sociedade ou do

    Estado; por falta, omisso ou abuso dos pais ou responsveis; ou em razo de sua

    conduta. Os Conselhos atendem e aconselham os pais e responsveis, podendo

    aplicar algumas medidas, tais como, encaminhamento a cursos ou programas de

    orientao e promoo famlia e tratamento especializado. Faz, ainda, requisies

    de servios necessrios efetivao do atendimento adequado de cada caso,

    contribui para o planejamento e a formulao de polticas e planos municipais de

    atendimento criana, ao adolescente e s famlias.

    Segundo as prescries do ECA, deve haver, no mnimo, um Conselho Tutelar

    composto por cinco membros, escolhidos pela comunidade local para mandato de

  • 39

    trs anos. Assim, caso haja necessidade, no municpio, haver tantos Conselhos

    Tutelares quantos forem julgados necessrios.

    Ter reconhecida idoneidade moral, idade superior a 21 anos e residir no municpio

    so alguns requisitos bsicos, gerais para todo o pas, exigidos aos candidatos

    funo de conselheiros tutelares. Existem, ainda, requisitos municipais que permitem

    adaptar s caractersticas locais o perfil do conselheiro tutelar mais adequado sua

    comunidade, como: fixar tempo mnimo de residncia, fixar escolaridade mnima,

    exigir experincia anterior comprovada de trabalho social com crianas,

    adolescentes e famlias ou, ainda, exigir uma avaliao psicolgica, visando a

    constatar a aptido do candidato para o trabalho de conselheiro tutelar. Aliado a

    isso, importante que o candidato tenha conhecimento de sua comunidade e dos

    desvios ao atendimento desses direitos e que demonstre conhecimento do Estatuto

    da Criana e do Adolescente, j que ser seu principal instrumento de trabalho.

    Os conselheiros tutelares comumente so pessoas que atuam como porta-vozes

    das suas respectivas comunidades, juntamente com rgos e entidades para

    assegurar os direitos das crianas e adolescentes.

    Para alcanar mudanas significativas no campo das polticas sociais de promoo

    e defesa dos direitos da criana e do adolescente, cabe s administraes

    municipais oferecer todas as condies para a criao e o pleno funcionamento dos

    Conselhos e Fundos.

    Talvez, neste momento, fosse pertinente perguntarmos: diante de todo esse aparato

    legal, como a infncia tem sido abordada atualmente no cenrio nacional?

    Destacamos que h uma relao direta existente entre um conjunto de saberes, leis

    e um determinado grupo de prticas que, quando pensados a partir da histria, nos

    permite constatar e questionar as precrias condies sociais das crianas no Brasil.

    Podemos considerar o Estatuto como um marco, entendendo que, a partir dele, se

    requer uma nova tomada de conscincia pblica em defesa desse projeto poltico e

    tico. No entanto, a efetivao desse conjunto de direitos fundamentais ainda

    caminha lentamente, especialmente quando consideramos certas situaes que

    permeiam o cotidiano de crianas e adolescentes.

  • 40

    Atualmente, temos como parcela expressiva da populao brasileira crianas e

    adolescentes, que representam 33,20% do total. De acordo com dados do Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE),31 47,3% da populao de zero a

    dezessete anos vivem em famlias com renda per capita inferior a meio salrio

    mnimo. Isso quer dizer que so mais de 27 milhes de meninos e meninas que

    ainda sofrem privaes de vrios tipos como a falta de alimentao adequada de

    acesso a saneamento bsico, de gua potvel e de educao de qualidade.

    No Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domiclios

    (PNAD) 32 de 2003, do IBGE (2007), h 2,7 milhes de crianas, na faixa etria de

    cinco a quinze anos, submetidas ao trabalho infantil. A grande maioria trabalha em

    reas rurais. De acordo com o estudo Matriz Intersetorial de Enfrentamento da

    Explorao Sexual Comercial de Crianas e Adolescentes, 33 da Secretaria Especial

    de Direitos Humanos, existem no Pas 932 cidades onde ocorre a explorao sexual

    comercial infanto-juvenil, 495 das quais com populao entre 20 mil e 100 mil

    habitantes, principalmente no Nordeste e no Sudeste. 34

    E em Cariacica, como isso tem se desenrolado? Como anda o entendimento do

    Estatuto e sua efetivao? Como os conselheiros e famlias tm entendido e

    vivenciado a questo dos direitos da infncia no municpio?

    Nosso prximo passo, ento, aproximar nossa lente no municpio de Cariacica

    para tentarmos pensar sobre esses questionamentos. Ao encontrarmos Cariacica

    almejvamos fazer combinaes do que vemos, do que sentimos, do que

    provocamos e do que fomos provocados, enfim dos sentimentos e sensaes que

    puderam compor um certo mundo. Queramos falar de uma certa Cariacica

    constituda dessas amarraes com as quais pudemos nos relacionar. E isso que

    nos faz rememorar a todo instante que somos irremediavelmente parte daquilo que

    pesquisamos e analisamos. Em diversos momentos, fomos levada por caminhos

    31

    Disponvel em: . Acesso em: 2 out. 2008. 32

    Disponvel em: . Acesso em: 2 out. 2008. 33

    Disponvel em: . Acesso em: 27 ago. 2008. 34

    Disponvel em: . Acesso em: 1 out. 2008.

    http://protagonismojuvenil.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/A%20prioridade%2%200para%20o%20publico%20infanto-juvenil.pdfhttp://protagonismojuvenil.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/A%20prioridade%2%200para%20o%20publico%20infanto-juvenil.pdf
  • 41

    sinuosos e imprevisveis, os quais no nos conduziram a um ponto de chegada, mas

    busca de coordenadas. E assim amos decidindo que rumo tomar.

  • 42

    3 EXPEDIO TERRA DO CONGO35

    Cariacica se revela Cidade de encantos mil s esplendor da aquarela Com povo culto e gentil (Josefa Teles de Oliveira) 36

    Ao ler esse pequeno poema, deparamo-nos com algo inesperado: uma cidade de

    encantos mil. Por um instante, pensamos se tratar de outra Cariacica, no do

    conhecido bolso de misria de encantos pouco conhecidos, marcado por

    assassinatos, violncia, pobreza e descaso.

    Ser que estamos falando da mesma Cariacica? Inacreditavelmente sim, mas a

    Cariacica que Josefa recita com saudosismo a de 1914. Cidade animada,

    movimentada por eventos sociais. A populao comparecia em massa ao campo

    para ver o Sporte Club Brasil jogar e fazia da chegada e da partida do trem37 de

    passageiros um festejo singular.

    Visivelmente, ao circular por Cariacica, pelas vias pblicas ou pelos jornais, notamos

    que no mais a terra de maravilhas. Incontveis mudanas ocorreram, algumas

    consideradas produtivas outras nem tanto. Constituiu-se, nesse espao, um intenso

    processo de transformaes nas quais queremos mergulhar e, como Foucault

    (2008b), queremos traar uma expedio conhecendo um pouco das lutas, das

    invases, dos movimentos, das surpresas, das vacilantes vitrias, das derrotas mal

    digeridas, dos disfarces, das astcias, de enxergar o que aconteceu, e tambm o

    que deixou de acontecer. Nossa vontade no escavar at encontrar uma origem

    de todos os males, mas, sim, simplesmente escutar as histrias (FOUCAULT,

    2008b, p. 17).

    35

    O congo um tipo de ritmo musical bastante forte em Cariacica e tambm em outros pontos do Estado. 36Josefa Teles Oliveira nasceu em Frei Paulo, no Estado de Sergipe, em 14-12-1920. Foi poetisa, trovadora. Em 1974, mudou-se para o Esprito Santo, passando a residir em Cariacica, onde desenvolveu atividades de assistncia social no IESBEM e com presidirios. Fundou o Clube da Trova de Cariacica, em 1985, e tem vrios trabalhos publicados em coletneas (OLIVEIRA, [199-]). 37 A ferrovia Vitria-Minas foi construda pelos ingleses e inaugurada em 18 de maio de 1904. Foi incorporada Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), atual Vale, na dcada de 40. hoje uma das mais modernas e produtivas ferrovias brasileiras, transportando 37% de toda a carga ferroviria do Pas. Disponvel em: < http://www.transportes.gov.br/bit/ferro/efvm/inf-efvm.htm>. Acesso em: 20 set. 2008.

    http://www.transportes.gov.br/bit/ferro/efvm/inf-efvm.htm
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    Vamos traar uma expedio por Cariacica com o intuito de conhecer sua histria e,

    tambm, de demarcar os lugares que so considerados importantes para o

    municpio, seja na economia, seja na cultura, seja na poltica. Pretendemos, com

    essa viagem, apresentar aos que no conhecem e reapresentar aos que conhecem

    uma terra de muitos problemas, mas tambm com muitas belezas. Com isso,

    esperamos facilitar a compreenso de alguns funcionamentos muito comuns em

    Cariacica para nos localizarmos sobre como tem sido tratada a temtica da criana e

    do adolescente em articulao com o Conselho Tutelar da regio.

    Nessa expedio, faremos algumas rpidas paradas pelos principais pontos do

    municpio. Primeiro, subiremos o monte Moxuara para conhecer suas lendas e reas

    naturais preservadas. Desceremos do monte em direo ao bairro Roda Dgua,

    local onde acontece o carnaval de congo. Passaremos pela antiga Cariacica, onde

    vamos encontrar os primeiros habitantes e suas contribuies para a formao do

    povo cariaciquense. Finalmente, faremos a ltima parada na Terra de ningum",

    onde conheceremos como Cariacica se coloca hoje dentro de uma conjuntura social,

    poltica e econmica do Esprito Santo.

    No existem muitos trabalhos histricos publicados sobre Cariacica. Quem nos

    conduziu em grande parte do tempo foi o autor Omyr Bezerra Leal, que utilizou

    fontes orais para registrar vrios episdios do municpio no livro Cariacica. Esse livro

    considerado o primeiro e nico livro sobre a histria de Cariacica, uma obra rara

    sobre o municpio, publicada, originalmente, em 1951.

    3.1 NOSSAS PARADAS: DO MOXUARA ANTIGA CARIACICA

    Avista-se ao longe o ponto mais alto do municpio, com uma altitude de 718 metros.

    O Moxuara38 , sem dvida, o mais famoso acidente geogrfico dessa regio.

    tradio dizer-se que o morro serviu de refgio para as tribos indgenas antes da

    chegada dos portugueses e que os negros, muitas vezes, se protegeram das

    38 Uma lenda em torno do Moxuara diz que dois jovens ndios se apaixonaram. Ele era da regio da Serra, ela de Cariacica. Como as tribos eram inimigas e os dois no puderam se casar, ele virou o Mestre lvaro e ela, o Moxuara. Nas noites de lua cheia, os dois se comunicam por meio de uma bola irradiante que corta os cus na noite de Natal e no dia de So Joo.

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    perseguies dos colonizadores brancos refugiando-se nas encostas mais altas do

    monte.

    O monte cercado por histrias. Alguns dizem que seu nome monchuar (muchuar)

    quer dizer veio de diamantes, pois, em tempos passados, no chamado perodo do

    ouro da histria do Brasil, os habitantes supunham que ali continha inmeras minas

    de pedras preciosas. Os ndios, com sua cultura lendria, chamaram o monte de

    Moxuara, que quer dizer pedra irm, em aluso ao Monte Mestre lvaro, no

    municpio Serra.39 J os corsrios franceses, ao chegarem baa de Vitria, teriam

    avistado uma neblina que encobria o monte, e exclamaram: Mouchoir!40 Acharam,

    pois que parecia estar coberto por um leno.

    Descendo o Moxuara, passando por florestas nativas, lagos, quedas dguas e

    fazendas cheias de histrias que compem um recanto desconhecido dos

    capixabas, j podemos ouvir o som contagiante dos tambores do congo e o

    compasso da casaca41 vindo do bairro Roda Dgua. Inebriado pela cultura afro-

    brasileira com forte