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Entrevista//Laurence Freeman O monge beneditino, importante divulgador da meditação cristã, reflete sobre as mudanças da igreja e a busca pela espiritualidade em nossos dias CORREIO B RAZILIENSE Brasília, domingo, 29 de dezembro de 2013 8 e 9 Encontro de si mesmo em Cristo A eleição do papa Francisco como “o homem do ano” pela revista ameri- cana Time mostrou que os olhos do mundo continuam a mirar a igreja católica. Nas mudanças visadas pelo novo sumo-pontífice, os católicos en- contram um retorno aos preceitos de Cristo. E, na tentativa de fazer os fiéis regressarem à igreja, os braços estão abertos a outras formas de espirituali- dade de fundo cristão. Dom Laurence Freeman é conside- rado o maior divulgador da meditação cristã no planeta e trabalha para que as práticas contemplativas recuperam espaço no seio do catolicismo. Em suas viagens pelo mundo, Freeman prega a repetição do mantra como um cami- nho rumo à espiritualidade plena. De passagem por Brasília para coordenar um retiro de meditação, ele falou com exclusividade à Revista. Fotos: Leonardo Correa/Divulgação POR RAFAEL CAMPOS Por que o senhor decidiu se tornar um monge? Você nunca pensou em se tornar um monge? Posso dizer que nunca pensei que iria me tornar um monge até eu passar seis meses em um retiro aprendendo como meditar. Esse tempo foi muito importante e me en- sinou bastante sobre mim mesmo. Nesses meses, para me decidir se continuaria por esse caminho da me- ditação, pessoalmente, eu precisava me tornar monge. Então, me esforcei ao máximo, pensando: “Por que que- ro me tornar um monge aos 26 anos? Devo esperar ficar rico e famoso ou devo desistir dessa ideia?” Mas eu de- cidi tentar. Me senti em paz comigo mesmo e isso foi gratificante. O senhor acha que encontrou sua espiritualidade com essa decisão? Pessoas diferentes têm cami- nhos diferentes para encontrar a própria espiritualidade. Mas a parte essencial é sempre a mesma: você deve adquirir autoconheci- mento, temos de transcender nós mesmos, temos de aprender a amar, temos de saber quais são as nossas qualidades e transcender nosso próprio ego. Há quem en- contre isso no casamento, em uma vida de solteiro, como um missio- nário, como um médico. Qualquer forma de vida, se é a forma certa para você — e é esperado que você encontre isso —, fará você encon- trar o seu lugar. O que o senhor acredita que represen- ta a espiritualidade nos dias de hoje? Espiritualidade tem sido a mesma coisa desde sempre. Basicamente, se você olha para a meditação, percebe que ela é uma forma muito simples de espiritualidade. Não é mágica, não é sobre mudar o mundo fora de você, mas mudar você mesmo. E, claro, se você consegue mudar a si mesmo, transforma o mundo. Todas as mu- danças externas têm de começar pe- las internas. Espiritualidade está rela- cionada à transformação pessoal e entrar nesse processo por completo e aceitar o risco. Jesus disse que você não vai encontrar a si mesmo a me- nos que perca a si mesmo. Esse é o ponto de partida para tudo.

Entrevista de Dom Laurence ao Correio Braziliense

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Entrevista de Dom Laurence Freeman publicada na Revista do Correio Braziliense em dezembro de 2013

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Page 1: Entrevista de Dom Laurence ao Correio Braziliense

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O mongebeneditino,importantedivulgador

da meditaçãocristã,

reflete sobreas mudançasda igreja e abusca pela

espiritualidadeem

nossos dias

CORREIOBRAZILIENSE

Brasília, domingo, 29 de dezembro de 2013

8 e 9

Encontro de simesmo em Cristo

A eleição do papa Francisco como“o homem do ano” pela revista ameri-cana Time mostrou que os olhos domundo continuam a mirar a igrejacatólica. Nas mudanças visadas pelonovo sumo-pontífice, os católicos en-contram um retorno aos preceitos deCristo. E, na tentativa de fazer os fiéisregressarem à igreja, os braços estãoabertos a outras formas de espirituali-dade de fundo cristão.

Dom Laurence Freeman é conside-rado o maior divulgador da meditaçãocristã no planeta e trabalha para queas práticas contemplativas recuperamespaço no seio do catolicismo. Em suasviagens pelo mundo, Freeman prega arepetição do mantra como um cami-nho rumo à espiritualidade plena. Depassagem por Brasília para coordenarum retiro de meditação, ele falou comexclusividade à Revista.

Fotos: Leonardo Correa/Divulgação

POR RAFAEL CAMPOS

Por que o senhor decidiu se tornarum monge?

Você nunca pensou em se tornarum monge? Posso dizer que nuncapensei que iria me tornar um mongeaté eu passar seis meses em um retiroaprendendo como meditar. Essetempo foi muito importante e me en-sinou bastante sobre mim mesmo.Nesses meses, para me decidir secontinuaria por esse caminho da me-ditação, pessoalmente, eu precisavame tornar monge. Então, me esforceiao máximo, pensando: “Por que que-ro me tornar um monge aos 26 anos?Devo esperar ficar rico e famoso oudevo desistir dessa ideia?” Mas eu de-cidi tentar. Me senti em paz comigomesmo e isso foi gratificante.

O senhor acha que encontrou suaespiritualidade com essa decisão?

Pessoas diferentes têm cami-nhos diferentes para encontrar aprópria espir itualidade. Mas aparte essencial é sempre a mesma:você deve adquirir autoconheci-mento, temos de transcender nósmesmos, temos de aprender aamar, temos de saber quais são asnossas qualidades e transcendernosso próprio ego. Há quem en-contre isso no casamento, em umavida de solteiro, como um missio-nário, como um médico. Qualquerforma de vida, se é a forma certapara você — e é esperado que vocêencontre isso —, fará você encon-trar o seu lugar.

O que o senhor acredita que represen-ta a espiritualidade nos dias de hoje?

Espiritualidade tem sido a mesmacoisa desde sempre. Basicamente, sevocê olha para a meditação, percebeque ela é uma forma muito simplesde espiritualidade. Não é mágica, nãoé sobre mudar o mundo fora de você,mas mudar você mesmo. E, claro, sevocê consegue mudar a si mesmo,transforma o mundo. Todas as mu-danças externas têm de começar pe-las internas. Espiritualidade está rela-cionada à transformação pessoal eentrar nesse processo por completo eaceitar o risco. Jesus disse que vocênão vai encontrar a si mesmo a me-nos que perca a si mesmo. Esse é oponto de partida para tudo.

Page 2: Entrevista de Dom Laurence ao Correio Braziliense

A igreja católica tem perdido seguidores noBrasil. Como a meditação cristã pode ajudara trazer os fiéis de volta?

Não acredito que a meditação cristã seja uminstrumento de marketing (para reconquistarfiéis). Não estamos em uma competição. Acre-dito que uma pessoa religiosa não está em com-petição com outras religiões. Isso não quer dizerque os caminhos de todas as religiões sejamigualmente bons, alguns podem ser, inclusive,corruptos. Eu penso que o uso da meditaçãoatravés da igreja vai ajudar as pessoas a enten-der o sentido dela e os sentidos de outras for-mas de oração. Essas outras formas de oraçãosão capazes de ajudar a lidar com os problemasda vida e continuar crescendo espiritualmente.Mas eu penso que, para muitas pessoas, essasoutras formas de orar perderam o sentido. E aIgreja tem se tornado negligente, impondomuitas regras. As pessoas estão perdendo a es-piritualidade, a espontaneidade e o prazer des-sas formas de oração. Acredito que a meditaçãotraz você de volta à experiência essencial, que éa presença de Deus em você mesmo. E uma vez

que essa experiência floresce, as outras formasde orar ganham mais sentido.

Há um bom momento para isso ser feito?Esse é um bom momento porque temos

um Papa que entende o problema. É um ho-mem tradicional, mas também contemporâ-neo e com profunda fé. Ele sabe os erros queigreja cometeu. E ele está nos levando de voltaa uma atitude e a uma forma de catolicismoque é inclusiva, centrada no ser humano e ba-seada na comunidade, em vez de se compor-tar como uma multinacional. Ele disse que ostrês perigos da igreja são transformar a vaida-de em uma ideologia, organizar a igreja comouma multinacional e o clericalismo. Ele iden-tificou os problemas e está resolvendo. É fan-tástico quão rápido ele está mudando a atitu-de do mundo e os clérigos me dizem que issoestá fazendo as pessoas voltarem à igreja.

Como podemos convencer as pessoas a me-ditar segundo sua própria fé?

Acho que há uma procura natural nas pes-soas por experiências espirituais. E hoje, naigreja, muitas pessoas estão alertas de que aespiritualidade das religiões se tornou muitosuperficial. Então, elas estão querendo expe-riências com mais significado. Mas eu não seicomo as pessoas vão responder ao que vou fa-lar. Algumas podem dizer que estavam espe-rando por isso e começam a meditar no diaseguinte. Outras podem achar interessante,mas não fazer. Nunca se sabe. Em qualquergrupo, há pessoas prontas para a meditaçãoagora. A melhor resposta é a liderança da igre-ja. Conheci diversos clérigos nessa viagemque estão abertos à meditação. Eles reconhe-cem os problemas atuais e o que precisamosna igreja é profundidade. Não precisamos demais atividades, serviços religiosos, mas pro-fundidade. E há uma fé natural muito forteaqui, no Brasil. As pessoas são tão religiosas,muito mais que na Europa. Aqui, ainda hámuito com o que trabalhar.

Quais são seus questionamentos espirituais hoje?

Questionamentos são mais importantesque respostas. Um dos importantes é aqueleque Jesus perguntou aos seus dicípulos: “E vós,quem dizeis que eu sou?” Essa é a perguntaque deveríamos nos fazer todos os dias. A res-posta vem com a experiência. Outro questio-namento: sou um monge e há uma históriaque um jovem monge pergunta para um maisvelho “o que significa ser um monge?” E eleresponde: “Ser um monge significa se questio-nar todos os dias ‘o que é um monge?’”.

O que, na sua opinião, a meditação traz?Encontramos a meditação em todas as tradi-

ções religiosas. É uma sabedoria espiritual uni-versal. Eu a encontrei por meio da tradição cris-tã. Mas a vejo como um terreno comum das re-ligiões e, também, da humanidade. Para mim, ameditação é uma espiritualidade muito con-temporânea, que nos permite partilhar compessoas de diferentes crenças em um nível pro-fundo de experiência. E ela traz as mudançasem nós, as esperanças em nossas capacidadespara a compaixão e para a sabedoria. E essassão duas coisas que precisamos hoje em dia.

O que é a meditação?Hoje, você pode ouvir do seu terapeuta ou

médico que meditação é algo bom em seu tra-tamento porque ela é uma terapia física e psi-cológica. E faz bem. Faz bem para sua pressãoarterial, para diminuir o colesterol e a ansie-dade etc. Muitas pessoas meditam apenas poresses benefícios. Entretanto, nós somos maisque colesterol, pressão arterial e ansiedade. Equando nós começamos a buscar uma saúdeem harmonia com todo o ser, então estamosprontos para a dimensão espiritual da medi-tação. Essa dimensão é natural, não precisaser importante. É algo que descobrimos emnós mesmos. Então, suas razões para meditaro levarão a um nível mais profundo. Você vaiestar ciente não só dos benefícios físicos e psi-cológicos, mas dos frutos espirituais.

Qualquer pessoa pode praticar a meditação cristã?

Na tradição cristã, os frutos espirituais sãochamados de sangue, alegria, paz, paciência,bondade, gentileza e autocontrole. E essa é umalista similar à tradição budista. Mantive diver-sos diálogos com o Dalai Lama e ele sempre re-comenda que você se mantenha na sua própriatradição. E a razão para isso é que é muito difícilviver em uma linguagem diferente da sua, umacultura diferente da sua. É natural, para nós,crescer mais espiritualmente através da tradi-ção que nos sentimos mais conectados, cultu-ralmente e de forma religiosa, se tivermos essatradição. Algumas pessoas não a têm. Então,um budista deve meditar pela tradição budistae um católico deve meditar através da tradiçãocatólica. E nós podemos meditar juntos. E isso éalgo muito novo para o mundo moderno: essaespiritualidade que respeita a individualidademas, ao mesmo tempo, cria uma experiência deunidade. Eu chamo isso de uma comunidadede fé com pessoas de crenças diferentes. E nóstemos que desenvolver isso como ajuda pararesolver a crise financeira mundial, a crise eco-lógica mundial e a crise social mundial.

Acho que há uma procuranatural nas pessoas porexperiências espirituais. E hoje, na igreja, muitas

pessoas estão alertas de que a espiritualidade das religiõesse tornou muito superficial.”