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E N T R E V I S T A 6 por Patrícia Mariuzzo Helena Hirata Em julho deste ano o IBGE registrou uma taxa de desemprego de 10,7%, acom- panhada de queda na renda do trabalha- dor. Esta foi a maior marca desde abril do ano passado (10,8%). Os números bra- sileiros acompanham uma realidade mundial em que o desenvolvimento eco- nômico está desvinculado da expansão dos empregos. A socióloga Helena Hirata, pesquisadora do assunto, trabalhando hoje na França, no Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS) e na Universidade de Paris VIII, esteve em setembro no Brasil para participar do colóquio internacional “Novas formas do trabalho e do desemprego: Brasil, Japão e França numa perspectiva com- parada”. O evento divulgou os primeiros resultados do projeto desenvolvido entre 2001 e 2004 por pesquisadores do CNRS e da USP, que analisou os elos entre as mudanças na dinâmica capitalista e a configuração dos sistemas de emprego e das relações de trabalho, com especial interesse nas formas assumidas pelo desemprego. Um dos grandes parado- xos da globalização, além da diminui- ção na oferta de vagas em geral, é a cria- ção de novos empregos com alto nível de precariedade, empregos parciais, nos países do Norte, ou informais, como acon- tece no Brasil. Outra questão polêmica apontada pela pesquisadora é a divisão sexual do trabalho: apenas com mais igualdade na distribuição do trabalho doméstico é possível superar a desigual- dade entre os sexos no mercado profis- sional e acabar com os chamados guetos de trabalho feminino. Helena Hirata falou à revista Inovação Uniemp alguns dias antes da realização do evento, quan- do se deu, também, o lançamento do livro Desemprego: trajetórias, identidades e mobilizações, organizado pela pesqui- sadora e publicado pela Editora do Senac. Quais as principais conseqüências da globalização para o emprego e para a divisão sexual do trabalho? Essas mudanças atingem todos os países, desenvolvidos ou não? Helena Hirata: Uma das dimensões da globalização foi a adoção de políticas neoliberais pelos Estados nacionais. Essas políticas levaram à privatização de várias atividades realizadas tradicio- nalmente pelo setor público. E, embora tenham ocorrido em períodos diferen- tes, aconteceram em todo o mundo, tan- to em países como a França como em paí- ses do hemisfério Sul. É o caso, por exem- plo, da área de telecomunicações na Argentina e no Brasil. Com as privatiza- ções houve diminuição significativa do número de empregos com o objetivo de aumentar a rentabilidade e diminuir os custos das empresas recém-criadas. Outra conseqüência sobre os empregos advém da expansão das novas tecnologias da informação e comunicação (NTIC). Isso possibilitou a criação de vagas em outros países como as que são oferecidas nos call centers na Argélia ou na Índia. Finalmente, uma terceira dimensão da mundialização é o novo papel dos orga- nismos internacionais como ONU, FMI ou Banco Mundial que passam a criar políticas para serem praticadas em nível supranacional. Algumas dessas políti- cas dizem respeito, por exemplo, à regu- lação do trabalho feminino. Atualmente existe em toda Europa um programa para UM DOS GRANDES EFEITOS DA GLOBALIZAÇÃO É A PROLIFERAÇÃO DE EMPREGOS PRECÁRIOS Socióloga discute o desemprego e a questão de gênero no mundo do trabalho

ENTREVISTA Helena Hirata Socióloga discute o desemprego ...inovacao.scielo.br/pdf/inov/v2n5/a02v02n5.pdfHelena Hirata Em julho deste ano o IBGE registrou uma taxa de desemprego de

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  • E N T R E V I S T A

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    por Patrícia Mariuzzo

    H e l e n a H i r a t a

    Em julho deste ano o IBGE registrouuma taxa de desemprego de 10,7%, acom-panhada de queda na renda do trabalha-dor. Esta foi a maior marca desde abrildo ano passado (10,8%). Os números bra-sileiros acompanham uma realidademundial em que o desenvolvimento eco-nômico está desvinculado da expansãodos empregos. A socióloga Helena Hirata,pesquisadora do assunto, trabalhandohoje na França, no Centro Nacional dePesquisas Científicas (CNRS) e naUniversidade de Paris VIII, esteve emsetembro no Brasil para participar docolóquio internacional “Novas formasdo trabalho e do desemprego: Brasil,Japão e França numa perspectiva com-parada”. O evento divulgou os primeirosresultados do projeto desenvolvido entre2001 e 2004 por pesquisadores do CNRSe da USP, que analisou os elos entre asmudanças na dinâmica capitalista e aconfiguração dos sistemas de empregoe das relações de trabalho, com especialinteresse nas formas assumidas pelodesemprego. Um dos grandes parado-xos da globalização, além da diminui-ção na oferta de vagas em geral, é a cria-ção de novos empregos com alto nívelde precariedade, empregos parciais, nospaíses do Norte, ou informais, como acon-

    tece no Brasil. Outra questão polêmicaapontada pela pesquisadora é a divisãosexual do trabalho: apenas com maisigualdade na distribuição do trabalhodoméstico é possível superar a desigual-dade entre os sexos no mercado profis-sional e acabar com os chamados guetosde trabalho feminino. Helena Hiratafalou à revista Inovação Uniemp algunsdias antes da realização do evento, quan-do se deu, também, o lançamento do livroDesemprego: trajetórias, identidades e

    mobilizações, organizado pela pesqui-sadora e publicado pela Editora do Senac.

    Quais as principais conseqüências da

    globalização para o emprego e para a

    divisão sexual do trabalho? Essas

    mudanças atingem todos os países,

    desenvolvidos ou não?

    Helena Hirata: Uma das dimensões daglobalização foi a adoção de políticasneoliberais pelos Estados nacionais.Essas políticas levaram à privatizaçãode várias atividades realizadas tradicio-nalmente pelo setor público. E, emboratenham ocorrido em períodos diferen-tes, aconteceram em todo o mundo, tan-to em países como a França como em paí-ses do hemisfério Sul. É o caso, por exem-plo, da área de telecomunicações naArgentina e no Brasil. Com as privatiza-ções houve diminuição significativa donúmero de empregos com o objetivo deaumentar a rentabilidade e diminuir oscustos das empresas recém-criadas. Outraconseqüência sobre os empregos advémda expansão das novas tecnologias dainformação e comunicação (NTIC). Issopossibilitou a criação de vagas em outrospaíses como as que são oferecidas noscall centers na Argélia ou na Índia.Finalmente, uma terceira dimensão damundialização é o novo papel dos orga-nismos internacionais como ONU, FMIou Banco Mundial que passam a criarpolíticas para serem praticadas em nívelsupranacional. Algumas dessas políti-cas dizem respeito, por exemplo, à regu-lação do trabalho feminino. Atualmenteexiste em toda Europa um programa para

    UM DOS GRANDES EFEITOS DA

    GLOBALIZAÇÃOÉ A PROLIFERAÇÃO

    DE EMPREGOS PRECÁRIOS

    Socióloga discute o desemprego e a questão de gênero no mundo do trabalho

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    to é um dos paradoxos da globalização.

    Por quê?

    Helena Hirata: Uma das conseqüênciaspositivas da globalização foi a criação deempregos femininos em países do Hemis-fério Sul para mulheres que antes nun-ca tinham tido trabalho remunerado,como aconteceu no caso da transferên-cia dos centros de telemarketing. Estescentros são filiais ou prestam serviçospara grandes empresas da Inglaterra,França e Estados Unidos, por exemplo.Elas puderam então, pela primeira vez,sair de casa, ter uma renda, ter relaçõescom outras trabalhadoras e formar redesde solidariedade. A conseqüência nega-tiva, entretanto, é que esses empregosnovos são vulneráveis e precários. Daí oparadoxo: a globalização cria empregosnovos, o que é bom, mas, ao mesmo tem-po, esses empregos novos são, em geral,precários. Nos países do Hemisfério Norteisso se traduz nos empregos em tempoparcial e nos países do Sul no aumentodo emprego informal. Outra contradiçãoque fica clara hoje é que, com a expan-são das NTIC aumenta o número de tra-balhadores isolados, por exemplo, peloteletrabalho. São atividades feitas longeda empresa e que podem consumir entre6 e 10% da mão-de-obra de certos paíseseuropeus. Por outro lado, paralelamentea esse processo que chamamos de ato-mização dos trabalhadores, a partir doano 2000 é possível ver uma série demovimentos coletivos antiglobalizaçãoou alterglobalização (outra globalização),como o Fórum Social Mundial e a MarchaMundial de Mulheres.

    O que é considerado trabalho precário?

    Helena Hirata:É o trabalho que não temproteção social, não tem garantias comoaposentadoria, seguro-desemprego, segu-ro-saúde. Outro indicador é que ele tem

    apoiar a conciliação entre trabalho pro-fissional e trabalho familiar das mulhe-res. A crítica que nós podemos fazer éque as mulheres são diferentes de paíspara país e que a União Européia acabaigualizando o conjunto das mulheres daEuropa quando há diferenças que nãosão levadas em consideração. Por exem-plo, há países com maior número de mãessolteiras que outros, alguns têm políticasfamiliares mais abrangentes etc. Um pro-

    grama para toda a União Européia des-considera as diferenças específicas nacultura de cada país.

    Os efeitos da globalização são desiguais

    para o emprego masculino e o feminino.

    Houve retração no trabalho masculino,

    mas houve aumento da participação das

    mulheres no mercado de trabalho. No

    entanto, a senhora diz que esse aumen-

    FFeerrnnaannddoo PPeetteerrmmaannnn

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  • poucas horas de trabalho o que signifi-ca uma renda menor. Um trabalho compouca renda não pode ser um trabalhoseguro. Um terceiro indicador do traba-lho precário é a falta de qualificação quetambém gera baixa remuneração.

    O trabalho em tempo parcial em países

    como França e Japão também se enqua-

    dra nessa classificação? Por quê? Isso

    vale também para o Brasil?

    Helena Hirata: Trabalho de tempo par-cial significa salário parcial. Na Françaas pessoas querem trabalhar em tempointegral, mas os empregadores ofere-cem, cada vez mais, apenas trabalhosem tempo parcial, o que torna este tipode emprego compulsório para o traba-lhador. As empresas, principalmente dossetores de distribuição e comércio, sóoferecem trabalhos parciais, não porestarem em crise, mas por uma estraté-gia deliberada de aumentar a oferta devagas. Essa política é corroborada peloEstado francês que dá subsídios para asempresas que criam mais empregos emtempo parcial, isto é, trabalhos mais pre-cários para diminuir a taxa de desem-prego. No Japão existe o trabalho par-cial, mas é um nome indevido porqueesses empregos são, como no Brasil,empregos sem proteção social, em fun-ções pouco qualificadas e ainda com umacarga horária de apenas uma hora amenos do que os empregos formais.

    As mulheres aumentaram sua parti-

    cipação no mercado de trabalho, mas

    em que setores elas estão atuando?

    Houve diversificação ou ainda predo-

    minam os chamados guetos de traba-

    lho feminino?

    Helena Hirata: Os guetos femininos pre-valecem, apesar de ter havido relativoaumento da diversidade de setores compresença feminina. No caso da França, porexemplo, permanecem os mesmos gue-tos que no Brasil, com maioria de mulhe-res trabalhando na educação como asprofessoras primárias e secundárias; nasaúde, como atendentes de enfermageme enfermeiras, no setor público de manei-ra geral nos trabalhos de escritório.Fundamentalmente os guetos femininosestão nas atividades que envolvem o care,isto é, cuidar das crianças, de pessoasdoentes, de idosos. No caso do cuidadocom a casa é o trabalho das empregadasdomésticas que, no Brasil, representam20% das mulheres que trabalham. NaFrança elas são 10% do conjunto dasmulheres ocupadas. Nos trabalhos decare as mulheres reproduzem na esferapública, de forma (mal) remunerada, oque aprenderam em casa por meio deuma formação profissional não reconhe-cida. Ao mesmo tempo há um processode diversificação, que pode ser percebi-do no que algumas pesquisadoras cha-mam de polarização do trabalho femini-no onde temos pelo menos dois pólos.

    Um deles minoritário que congrega pelomenos 10% das mulheres. São as que tra-balham em profissões de nível superior:advogadas, médicas, jornalistas, execu-tivas, professoras universitárias etc. Emoutro pólo temos a maioria das mulheresocupadas, mas, neste lado, com saláriosbaixos, pouca valorização, trabalho portempo determinado, informal ou em tem-po parcial. Essa situação permanece por-que a referência dessas atividades ain-da é o trabalho doméstico gratuito. Umamudança que promova a valorização dostrabalhos de care, só poderá acontecerquando homens trabalharem no cuida-do das crianças, idosos, doentes etc, comoas mulheres fazem. Só quando essas ati-vidades forem mistas chegaremos a umnovo paradigma de relações de trabalho.Eu acho que a divisão sexual do trabalhodoméstico está na raiz das diferençasque existem hoje no mercado de trabalho,na esfera de poder das empresas, nosEstados e no plano do saber.

    E sobre a diferença de salários? Isso

    acontece também nos outros países

    que a senhora estudou?

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    Helena Hirata: Eu não conheço nenhumpaís do mundo onde as mulheresganhem mais ou igual aos homens. NaFrança elas ganham 25% a menos nasmesmas posições. No Brasil a diferen-ça é um pouco maior, em torno de 35%,no Japão é maior ainda, chegando a50%. O percentual de diferença varia,mas a diferença existe em todos. Asmaiores disparidades ocorrem entre osexecutivos. Mulheres e homens execu-tivos apresentam diferenças bem maio-res de salário do que os empregadosque trabalham em níveis hierárquicosmais baixos.

    Que transformações foram impulsio-

    nadas pelas mudanças tecnológicas e

    organizacionais para os trabalhadores

    empregados?

    Helena Hirata: No modelo fordista-tay-lorista o trabalhador era um mero exe-cutor de tarefas. Hoje a divisão socialdo trabalho é menor e, com isso, cadafunção concentra grande responsabi-lidade. Nos novos modelos de organi-zação o trabalhador cuida não só daprodução em si, mas também é respon-sável pela manutenção, pela qualida-de e pelo controle do processo, enfimpela gestão da produção. Temos umprocesso de intensificação do traba-lho, que é, no fundo, a conseqüênciadas empresas terem enxugado seusquadros, para aumentar a rentabilida-de. Para os empregados a conseqüên-cia disso é a doença, mental (estresse)e física .

    As condições de trabalho das mulheres

    hoje podem ser um sintoma de como

    serão as relações de trabalho de todos no

    futuro, homens e mulheres?

    Helena Hirata: Sim, podemos dizer quea mulher é uma espécie de cobaia nes-ses novos modelos de produção. A vulne-rabilidade e precariedade que a maioriadelas experimenta hoje em seus empre-gos pode ser um modelo de como serãoas relações de trabalho de todos no futu-ro. Mas, por outro lado, temos que consi-derar os movimentos sociais contra o tra-balho precário, as políticas públicas con-tra a precarização e contra a flexibidadee também a política das empresas, istoé, com que grau de estabilidade elas vãocontratar sua mão-de-obra no futuro.

    No caso dos movimentos sociais pode-mos citar o recente movimento que ocor-reu na França contra a Lei do contratodo primeiro emprego. Mais de um milhãode pessoas foram às ruas, num movi-mento pluriclassista cuja mensagem eraclara: "não queremos trabalho precáriopara os nossos filhos". Se houver mui-tos movimentos desse tipo não será fácilque o modelo de trabalho precário sejaum modelo para todos na sociedade, nomundo desenvolvido ou não. Em relaçãoàs alternativas institucionais, juristasdo trabalho e economistas propõem oque eles chamam de flexi-segurança.Países como a Dinamarca já testam estemodelo no qual um conjunto de empre-gadores emprega um trabalhador,dáuma parte do salário como subsídio parao Estado que, então, redistribui esses

    recursos. Com isso a pessoa tem umarenda garantida durante todo o seu per-curso profissional, independentemen-te da sua situação: empregado, desem-pregado, em reciclagem profissional,cuidando dos filhos etc. O problema daproposta é que ela só é possível em paí-ses onde há um sistema de previdênciasólido para repassar tais recursos. Outraconseqüência é que se antes os estatu-tos que garantiriam segurança e esta-bilidade para os trabalhadores eram cole-tivos, as novas propostas caminham paraindividualização, característica que jáé clara hoje na definição de salários ebenefícios. É evidente que esse cenárioenfraquece os sindicatos.

    De que forma países como França,

    Japão e Brasil lidam com a crise de

    desemprego?

    Helena Hirata:Fazendo uma síntese dosresultados da pesquisa entendemos quena França já há políticas públicas bastan-te estruturadas por meio da AgênciaNacional para o Emprego (Anpe), paraajudar categorias mais vulneráveis, comoé o caso das mulheres, dos jovens e dos imi-grantes. No Japão, as políticas ainda sãomuito incipientes, até porque lá o desem-prego em massa é um fenômeno maisrecente. As empresas japonesas tiverame têm um papel mais forte dentro da polí-tica de criar empregos e garantir proteçãosocial: lá ainda é comum a grande empre-sa oferecer moradia para o empregado,portanto, quando ele é dispensado, aumen-ta, também, o número dos sem-teto. NoBrasil a peculiaridade é que família, igre-jas e vizinhos formam as redes de solida-riedade, muito importantes para enfren-tar o problema do desemprego.

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    HÁ UMA INTENSIFICAÇÃO DO TRABALHO POR CONTA

    DO ENXUGAMENTO DOS QUADROS NAS EMPRESAS

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