4
ENTREVISTA RUY OHTAKE 01 e liberdade CONHECIMENTO Com cinco décadas de carreira, o arquiteto Ruy Ohtake continua em busca de ousadia e independência em seus projetos TEXTO Katia Calsavara FOTOS Toni Pires Aos 72 anos, o paulistano Ruy Ohtake, filho da célebre artista plástica Tomie Ohtake, segue como um dos mais atuantes profissionais da arquitetura contemporânea no país. Discípulo de nomes como Vilanova Artigas (1915-1985) e Oscar Niemeyer, e formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) em 1960, ele é incansável na busca pela inovação e por soluções técnicas diferencia- das em seus projetos. Costuma dizer que “o consenso é o principal adversário do artista”. Talvez por isso, não tenha receio de polêmicas e busque valorizar ao máximo o impacto de suas obras no espaço urbano. Projetos como o do Hotel Unique (1999) e o do edifício do Instituto Tomie Ohtake (1995), em São Paulo, são apenas alguns exemplos de ousadia, com suas surpreendentes formas e cores. Também são de autoria do arquiteto obras tão diversas quanto a Embaixada do Brasil no Japão (1981), o Brasília Alvorada Park Hotel (1998), em Brasília, o Aquário (2008), em Mato Grosso do Sul, o parque aquático The Waves (1988), em São Paulo, e o Parque Ecológico do Tietê (1975, reformulado em 2008), também em São Paulo, entre muitos outros. O livro Ruy Ohtake – Arquitetura e a Cidade, recém-lançado pelo Instituto Tomie Ohtake, reúne mais de 80 projetos do artista. O arquiteto recebeu a equipe de Docol Magazine em seu escritório, na capital paulista. Em um bate- papo descontraído, falou sobre sua carreira, sobre a necessidade de liberdade na arquitetura e mostrou-se encantado com projetos como o da revitalização de Heliópolis e do Hotel Unique. Nessas páginas, um apa- nhado da vitalidade de Ruy Ohtake.

Entrevista Ruy Ohtake

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Entrevista Ruy Ohtake

ENTREVISTA RUY OHTAKE01

e liberdadeCONHECIMENTO

Com cinco décadas de carreira, o arquiteto Ruy Ohtake continua

em busca de ousadia e independência em seus projetos

TEXTO Katia Calsavara FOTOS Toni Pires

Aos 72 anos, o paulistano Ruy Ohtake, filho da célebre artista plástica Tomie Ohtake, segue como um

dos mais atuantes profissionais da arquitetura contemporânea no país. Discípulo de nomes como Vilanova

Artigas (1915-1985) e Oscar Niemeyer, e formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade

de São Paulo (FAU-USP) em 1960, ele é incansável na busca pela inovação e por soluções técnicas diferencia-

das em seus projetos. Costuma dizer que “o consenso é o principal adversário do artista”. Talvez por isso, não

tenha receio de polêmicas e busque valorizar ao máximo o impacto de suas obras no espaço urbano.

Projetos como o do Hotel Unique (1999) e o do edifício do Instituto Tomie Ohtake (1995), em São Paulo,

são apenas alguns exemplos de ousadia, com suas surpreendentes formas e cores. Também são de autoria

do arquiteto obras tão diversas quanto a Embaixada do Brasil no Japão (1981), o Brasília Alvorada Park Hotel

(1998), em Brasília, o Aquário (2008), em Mato Grosso do Sul, o parque aquático The Waves (1988), em São

Paulo, e o Parque Ecológico do Tietê (1975, reformulado em 2008), também em São Paulo, entre muitos

outros. O livro Ruy Ohtake – Arquitetura e a Cidade, recém-lançado pelo Instituto Tomie Ohtake, reúne mais

de 80 projetos do artista.

O arquiteto recebeu a equipe de Docol Magazine em seu escritório, na capital paulista. Em um bate-

papo descontraído, falou sobre sua carreira, sobre a necessidade de liberdade na arquitetura e mostrou-se

encantado com projetos como o da revitalização de Heliópolis e do Hotel Unique. Nessas páginas, um apa-

nhado da vitalidade de Ruy Ohtake.

Page 2: Entrevista Ruy Ohtake

“Eu aprendi a pensarque, diferentemente do futebol, onde em time que vencenão se mexe, na arte o desafio é inovar.Se você não inova, fica no senso comum.”

ENTREVISTA RUY OHTAKE01

DOCOL MAGAZINE – Como a convivência do senhor com as

artes plásticas desde a infância o influenciou?

RUY OHTAKE – Foi muita molecagem para abrir a cabeça... Pelo

fato de a minha mãe ser pintora, desde garoto convivi com for-

mas, cores, artistas, e isso gerou liberdade para muitas coisas.

Eu aprendi a pensar que, diferentemente do futebol, onde em

time que vence não se mexe, na arte o desafio é inovar. Então,

se você não inova, fica no senso comum. O consenso é o pior

adversário da arte. Acho que ele é muito importante na políti-

ca; é diferente na criação, na arte em geral.

DM – Artigas e Niemeyer exerceram importante influência em

sua carreira...

RUY OHTAKE – Muito. O Artigas, como professor – fui aluno

dele por dois anos –, me ensinou a olhar a arquitetura sob o

aspecto estético, de técnicas de construção, da contempora-

neidade e também a usar as questões sociais. O Niemeyer

conheci depois de formado... Eu segui muito a visão modernis-

ta, mas alguma coisa me incomodava e faltava: o lado emocio-

nal da arquitetura. Quando comecei a ver as obras do Oscar,

falei, é isso! Foi aí que percebi que a arquitetura tem que estar

presente no espaço da cidade de forma que as pessoas não

passem indiferentes por ela.

DM – E como é hoje a sua relação com Niemeyer?

RUY OHTAKE – Eu o visito todos os anos e estive com ele no últi-

mo dia 15 de dezembro, aniversário dele. Há mais de 30 anos eu

vou lá na mesma data. As visitas começaram quando eu ainda

era recém-formado; eu aparecia sem marcar nada, só ligava

para saber se ele estava no Rio de Janeiro. Na primeira vez em

que estive com ele, o Oscar só conseguiu me atender tarde da

noite, eu esperei por oito horas. Mas depois, ele disse: ”Vou jan-

tar, você pode vir comigo.” Foi a glória para um recém-formado.

DM – E o que falaram nesse bate-papo?

RUY OHTAKE – Bate-papo não, eu fiquei só ouvindo. (risos)

DM – Como o senhor avalia o atual momento da arquitetura

brasileira? Ainda falta ousadia?

RUY OHTAKE – Sim. Falta uma presença mais significativa nas

nossas cidades. Isso porque a arquitetura ajuda a contar a his-

tória de uma cidade. Se eu faço uma projeto hoje, no começo

do século 21, daqui a 50, 100 anos, quero que ele conte a histo-

ria da cidade nessa virada de século. Acho que a arquitetura

tem que olhar para a frente, não para trás.

DM – O senhor se considera um herdeiro de Niemeyer?

RUY OHTAKE – O Oscar é o maior arquiteto do mundo no sécu-

lo 20. Eu vou fazendo aquilo que é possível. E no limite da liber-

dade que consegui, porque a liberdade não vem de graça, a

gen te precisa conquistar. Como? Com as ousadias.

NA PÁGINA AO LADO, NO ALTO, O EDIFÍCIO SANTA CATARINA (2008), NA AVENIDA PAULISTA, E A EMBAIXADA DO BRASIL EM TÓQUIO (1983). ABAIXO, DETALHE DA IMENSACÚPULA DO BRASÍLIA ALVORADA PARK HOTEL, PROJETO DE 2000, LOCALIZADO NA CAPITAL FEDERAL. PARA RUY OHTAKE, FAZER A DIFERENÇA É ESSENCIAL NA ARQUITETURA

Page 3: Entrevista Ruy Ohtake

“O Brasil é um país commuita cor, é só você analisar

cidades como Paraty, Ouro Preto,Salvador... Nos últimos cem anos, as

cidades brasileiras foram perdendo a cor.”

ENTREVISTA RUY OHTAKE01

DM – Como conquistar a liberdade de criação na arquitetura?

RUY OHTAKE – São alguns fatores. Um deles é a gente ter isso

como um desafio e percorrê-lo estudando ligeiramente quem

está atrás. Se estudar muito, isso começa a brecar o seu avanço.

Se puder viajar um pouco pelo país, isso ajuda a ver o que foi

importante para nós. Se a pessoa tiver condições de ir para fora,

a mesma coisa. A primeira vez que fui para a França, não fiz o

cir cuito turístico normal, fui atrás das obras do Le Corbusier em

Paris e nas cidades por perto.

DM – Em que momento o uso das cores e a ousadia formal

começaram a aparecer em seus projetos?

RUY OHTAKE – São duas coisas que se entrelaçam. O Brasil é um

país com muita cor, é só você analisar cidades como Paraty,

Ouro Preto, Salvador, Olinda e cidades pequenas, que também

são muito coloridas. Nos últimos cem anos é que as cidades

brasileiras foram perdendo a cor e se tornaram muito medro-

sas, não as cidades em si, mas os responsáveis que definem a

pintura nas edificações. Então, começou-se a usar o creme, o

azul-claro, o cinza claro. As cores brasileiras são fortes, o verme-

lho, o azul forte... Sobre a ousadia formal, comecei a ousar mais

quando vi as primeiras obras de Niemeyer fora de São Paulo.

DM – Como surgiu a ideia da revitalização, por meio de novas

fachadas e outros projetos, da favela de Heliópolis?

RUY OHTAKE – Como arquiteto, vejo que São Paulo tem quatro

áreas bem definidas. O núcleo de maior poder aquisitivo, o nú -

cleo da classe média, o do centro histórico e o da periferia, que se

cons titui de populações carentes. São Paulo é a minha cidade. Se

eu faço o Hotel Unique em uma área de maior poder aquisitivo,

por que não faço também alguma coisa nessa área da comunida-

de? Em Heliópolis, é tudo construído, não tem nada ocioso, nada

pra revitalizar, como no centro histórico. Lá está a esperança.

DM – E o que foi transformado após o seu trabalho?

RUY OHTAKE – Quando as lideranças de Heliópolis me chama-

ram, perguntando como eu poderia ajudar, cheguei lá e falei

que poderia trabalhar junto com eles, com dupla responsabili-

dade. Falei que precisariam trabalhar desde o início do projeto

até a gestão dele. Todos toparam. Então, fiz uma listinha de tu -

do: a pintura, uma biblioteca dentro da favela, um cinema, tu -

do para fortalecer a identidade cultural de Heliópolis. Co me -

çamos por pintar a casa de três vias escolhidas por eles. Foram

278 casinhas, quatro moradores não quiseram pintar. Ali, a rua

é complemento da casa, é a sala de visitas deles. Marcamos de

iniciar o projeto em um sábado, e foi uma festa... Os pintores

da comunidade fizeram um curso de capacitação em dois me -

ses, em que aprenderam a misturar tintas, separar as cores,

tomar cuidado com a umidade, fazer orçamento... Aqueles que

não queriam ter a casa pintada logo pediram para entrar por-

que não sabiam que ficaria tão bonito.

DM – E o que achou do resultado?

RUY OHTAKE – Ficou fantástico, não tem nada igual no mundo.

As fachadas ficaram como obras de arte. Muitos moradores

pas saram a cuidar da parte interna das casas, começaram a

assumir que moravam em Heliópolis; antes tinham vergonha

disso. Começaram a exercer a cidadania na prática.

NA PÁGINA AO LADO, NO ALTO, FACHADA DE UMA DAS MUITAS CASAS REVITALIZADAS EM HELIÓPOLIS (2003): PROJETO DE RUY OHTAKE EM PARCERIA COM ACOMUNIDADE, E O EDIFÍCIO DO INSTITUTO TOMIE OHTAKE (2001). ABAIXO, A RESIDÊNCIA PAULO CHEDID, DE 1976: FORMAS E CORES EM DIFERENTES CONSTRUÇÕES

Page 4: Entrevista Ruy Ohtake

ENTREVISTA RUY OHTAKE01

DM – Como nasceu a idéia do projeto do Hotel Unique?

RUY OHTAKE – Desenhando muito. O Unique tem alguns con-

ceitos realmente inovadores. Na Avenida Brigadeiro Luís

Antônio, a altura permitida é de 25 andares. É uma estatura

pequena, e eu queria fazer um projeto forte. Onde está a força

dessa forma? [E desenha o formato de meia melancia aberta

na lousa.] Nos dois vazios laterais. É um conceito ousado.

Outro é o piso de alguns quartos, que sobe até encontrar o

forro do teto. Os experts em hotelaria acharam melhor ele ter-

minar sem subir – eles preferem ser conservadores em seu

parecer. Mas quando você está convicto de alguma coisa, você

precisa insistir. Quando o hotel foi inaugurado, os apartamen-

tos de canto eram justamente os mais solicitados e se torna-

ram vips, tamanha a procura que tinham. A relação entre a

parte interna e externa é uma consequência.

DM – Quando e por que o senhor começou a desenhar móveis?

Que tipos de material mais utiliza nos mobiliários?

RUY OHTAKE – Comecei a desenhar móveis, como estantes e ban-

cos, já nos meus primeiros projetos, como um complemento da

arquitetura. Esses móveis eram fixados  na alvenaria.

Posteriormente, comecei a desenhar móveis mais independentes

de paredes, eles começaram a ter ”vida própria”. Venho dese-

nhando até hoje esse tipo de mobiliário. Nos grandes espaços de

arquitetura, faço móveis proporcionais, que às vezes atingem

dimensões inusitadas. Por exemplo, a mesa de concreto na resi-

dência Tomie Ohtake, com 7 metros; a mesa de centro na residên-

cia Zuleika Halpern, com 9 metros; e o banco de madeira no sítio

Celso Viellas, com 18 metros de extensão, entre outros. Os mate-

riais que mais tenho utilizado são madeira (de cumaru, MDF ou

carvalho), aço carbono, aço inox, vidro e concreto.

DM – Como a água está presente em seu trabalho?

RUY OHTAKE – A água tem uma relação vital com a arquitetura. Está

sempre dentro de formatos não convencionais e contemporâneos. O

espelho d’água, a piscina, o pequeno córrego – que desenhei no jar-

dim do Hotel Unique –, a água da chuva, que cai da gárgula da laje

de cobertura, a água como protetor térmico, a água como refletor...

DM – A Copa do Mundo de 2014 pode causar um boom de cons-

truções no país. De que forma o senhor acredita que o Brasil“Quando você está convicto de uma coisa, é preciso insistir”

AQUI, FACHADA DO HOTEL UNIQUE: OBRA-PRIMA DO ARQUITETO. NOALTO E NA PÁGINA AO LADO, OHTAKE EM SEU ESCRITÓRIO, EM SÃO PAULO

d

poderia aproveitar melhor esse momento?

RUY OHTAKE – A infraestrutura das cidades está um pouco

defasada. Primeiro porque houve um boom de crescimento

da população, de tal forma que é quase impossível uma pre-

feitura acompanhar essas mudanças. Então, a Copa, assim

como as Olimpíadas, ajudam a renovar essa infraestrutura. O

legado que a Copa pode deixar para a cidade são essas

melhorias que vão ficar, posteriormente, para as cidades e

para a população.