8
211 RPCV (2005) 100 (555-556) 211-217 Resumo: O entrópion, ou a inversão da margem palpebral, é uma patologia relativamente frequente em oftalmologia veteri- nária. Os autores abordam o tratamento cirúrgico do entrópion reportando-se a 71 casos clínicos, 66 canídeos e 5 felídeos. A raça mais frequentemente afectada foi a Shar Pei com 27% dos casos. A idade dos canídeos na altura em que foi diagnosticado o problema era inferior ou igual a 1 ano em 76% dos casos, sendo que, destes animais, 66% tinham idade inferior a 6 meses. As técnicas cirúrgicas utilizadas foram a Hotz-Celsus, Hotz-Celsus modificada para o entrópion lateral superior e inferior, a Hotz- Celsus modificada para o entrópion medial inferior, a cantoplas- tia lateral de Wyman, a técnica de Stades e a colocação de pontos de suporte temporários. Em 83% dos animais os resultados fo- ram considerados bons, tendo o entrópion e os seus inconvenien- tes sido ultrapassados. Summary: Entropion, or inward rolling of eyelid margin, is a relatively common condition in the dog, and surgical treatment is necessary. The authors present the surgical treatment of 71 clini- cal cases, 66 dogs and 5 cats. The Chinese Shar Pei was the more frequent breed affected with 27% of the cases. The animals were less than 1 year old in 76% of the cases, and of these 66% were less than 6 months old. The surgical methods used to treat entro- pion were the Hotz-Celsus Procedure, modification of the Hotz- Celsus method for the lateral canthal entropion, the modification of the Hotz-Celsus method for the medial entropion, the lateral cantoplasty by Wyman, the Stades combined entropion-trichiasis procedure and the tacking procedure. In 83% of the cases the results were considered good, with the resolution of entropion and its clinical signs was achived. Introdução O entrópion, ou a inversão da margem palpebral, é uma patologia relativamente frequente em oftalmolo- gia veterinária. Geralmente afecta a porção lateral da pálpebra inferior, mas pode afectar qualquer segmento palpebral. Os pêlos faciais e as pestanas, ao entrarem em contacto com a córnea e conjuntiva, podem ocasio- nar irritação severa e conduzir ao autotraumatismo. Os sinais clínicos variam, incluindo epífora, blefarospas- mo, fotofobia, conjuntivite e queratite acompanhada por vezes de ulceração corneana. Quando ocorre con- taminação bacteriana secundária observa-se a presen- ça de corrimento ocular purulento. Os animais podem apresentar diminuição da capacidade visual em conse- quência do encerramento da fenda palpebral por dor e blefarospasmo devido a estimulação do nervo trigémio ou devido a opacidades ou úlceras corneanas secundá- rias (Nasisse, 1997). O entrópion pode ser classificado como primário, es- pástico ou cicatricial. O entrópion primário (Ramsey, 2001) também pode ser designado por congénito ou de desenvolvimento (Gelatt e Gelatt, 2001) ou confor- macional (Nasisse, 1997), e resulta de uma anomalia estrutural da pálpebra ao nível do tarso. É o tipo de entrópion mais frequente nos animais de companhia. Existe predisposição genética nas seguintes raças: Chow-Chow, Shar Pei, S. Bernardo, Springer Spaniel Inglês, Cocker Spaniel Inglês e Americano, Bulldog In- glês, Caniche Anão e Miniatura, Grande Dinamarquês, Rottweiler e Bullmastiff (Gelatt e Gelatt, 2001). Slatter (1992) refere também o Setter Irlandês e o Retriever do Labrador como raças predispostas. Na maioria das vezes cada raça tem segmentos específicos das pálpe- bras que são afectados. O Caniche Anão e o Miniatura podem apresentar entrópion medial inferior, o que é um factor predisponente para a característica epífora (Bedford, 1999). Áreas adjacentes de pele da face da região frontal e nasal podem complicar o entrópion em certas raças, como no Shar Pei e no Chow-Chow (Ge- latt e Gelatt, 2001) (Figura 1). O entrópion espástico é causado por uma resposta de espasmo do músculo orbicular das pálpebras à dor ou irritação ocular crónica, que estimulam o blefarospas- mo (Slatter, 1992). Ocorre triquíasis secundária, e os pêlos em contacto com a córnea causam ainda maior irritação. O entrópion espástico por vezes corrige-se quando se elimina a etiologia, outras vezes, quando persiste por um longo período de tempo, pode tornar- -se cicatricial devido à existência de fibrose do tarso. A componente espástica consegue-se abolir com a insti- lação de uma gota de anestésico local, e a quantidade de entrópion que permanece é primário e terá de ser resolvido cirurgicamente. O entrópion cicatricial pode resultar de um trauma- tismo e consequente cicatrização, de um entrópion es- pástico crónico ou de uma blefaroplastia anterior. É a Entrópion em canídeos e felídeos – 71 casos clínicos Entropion in dogs and cats – 71 clinical cases E. Delgado, S. Borrego e J. Sales Luís Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade Técnica e Lisboa, CIISA, Av da Universidade Técnica, 1300-477 Lisboa, Portugal

Entrópion em canídeos e felídeos – 71 casos clínicos Entropion in

Embed Size (px)

Citation preview

211

RPCV (2005) 100 (555-556) 211-217

Resumo: O entrópion, ou a inversão da margem palpebral, é uma patologia relativamente frequente em oftalmologia veteri-nária. Os autores abordam o tratamento cirúrgico do entrópion reportando-se a 71 casos clínicos, 66 canídeos e 5 felídeos. A raça mais frequentemente afectada foi a Shar Pei com 27% dos casos. A idade dos canídeos na altura em que foi diagnosticado o problema era inferior ou igual a 1 ano em 76% dos casos, sendo que, destes animais, 66% tinham idade inferior a 6 meses. As técnicas cirúrgicas utilizadas foram a Hotz-Celsus, Hotz-Celsus modificada para o entrópion lateral superior e inferior, a Hotz-Celsus modificada para o entrópion medial inferior, a cantoplas-tia lateral de Wyman, a técnica de Stades e a colocação de pontos de suporte temporários. Em 83% dos animais os resultados fo-ram considerados bons, tendo o entrópion e os seus inconvenien-tes sido ultrapassados.

Summary: Entropion, or inward rolling of eyelid margin, is a relatively common condition in the dog, and surgical treatment is necessary. The authors present the surgical treatment of 71 clini-cal cases, 66 dogs and 5 cats. The Chinese Shar Pei was the more frequent breed affected with 27% of the cases. The animals were less than 1 year old in 76% of the cases, and of these 66% were less than 6 months old. The surgical methods used to treat entro-pion were the Hotz-Celsus Procedure, modification of the Hotz-Celsus method for the lateral canthal entropion, the modification of the Hotz-Celsus method for the medial entropion, the lateral cantoplasty by Wyman, the Stades combined entropion-trichiasis procedure and the tacking procedure. In 83% of the cases the results were considered good, with the resolution of entropion and its clinical signs was achived.

Introdução

O entrópion, ou a inversão da margem palpebral, é uma patologia relativamente frequente em oftalmolo-gia veterinária. Geralmente afecta a porção lateral da pálpebra inferior, mas pode afectar qualquer segmento palpebral. Os pêlos faciais e as pestanas, ao entrarem em contacto com a córnea e conjuntiva, podem ocasio-nar irritação severa e conduzir ao autotraumatismo. Os sinais clínicos variam, incluindo epífora, blefarospas-mo, fotofobia, conjuntivite e queratite acompanhada por vezes de ulceração corneana. Quando ocorre con-taminação bacteriana secundária observa-se a presen-ça de corrimento ocular purulento. Os animais podem

apresentar diminuição da capacidade visual em conse-quência do encerramento da fenda palpebral por dor e blefarospasmo devido a estimulação do nervo trigémio ou devido a opacidades ou úlceras corneanas secundá-rias (Nasisse, 1997).

O entrópion pode ser classificado como primário, es-pástico ou cicatricial. O entrópion primário (Ramsey, 2001) também pode ser designado por congénito ou de desenvolvimento (Gelatt e Gelatt, 2001) ou confor-macional (Nasisse, 1997), e resulta de uma anomalia estrutural da pálpebra ao nível do tarso. É o tipo de entrópion mais frequente nos animais de companhia. Existe predisposição genética nas seguintes raças: Chow-Chow, Shar Pei, S. Bernardo, Springer Spaniel Inglês, Cocker Spaniel Inglês e Americano, Bulldog In-glês, Caniche Anão e Miniatura, Grande Dinamarquês, Rottweiler e Bullmastiff (Gelatt e Gelatt, 2001). Slatter (1992) refere também o Setter Irlandês e o Retriever do Labrador como raças predispostas. Na maioria das vezes cada raça tem segmentos específicos das pálpe-bras que são afectados. O Caniche Anão e o Miniatura podem apresentar entrópion medial inferior, o que é um factor predisponente para a característica epífora (Bedford, 1999). Áreas adjacentes de pele da face da região frontal e nasal podem complicar o entrópion em certas raças, como no Shar Pei e no Chow-Chow (Ge-latt e Gelatt, 2001) (Figura 1).

O entrópion espástico é causado por uma resposta de espasmo do músculo orbicular das pálpebras à dor ou irritação ocular crónica, que estimulam o blefarospas-mo (Slatter, 1992). Ocorre triquíasis secundária, e os pêlos em contacto com a córnea causam ainda maior irritação. O entrópion espástico por vezes corrige-se quando se elimina a etiologia, outras vezes, quando persiste por um longo período de tempo, pode tornar--se cicatricial devido à existência de fibrose do tarso. A componente espástica consegue-se abolir com a insti-lação de uma gota de anestésico local, e a quantidade de entrópion que permanece é primário e terá de ser resolvido cirurgicamente.

O entrópion cicatricial pode resultar de um trauma-tismo e consequente cicatrização, de um entrópion es-pástico crónico ou de uma blefaroplastia anterior. É a

Entrópion em canídeos e felídeos – 71 casos clínicos

Entropion in dogs and cats – 71 clinical cases

E. Delgado, S. Borrego e J. Sales Luís

Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade Técnica e Lisboa, CIISA, Av da Universidade Técnica, 1300-477 Lisboa, Portugal

RPCV (2005) 100 (555-556) 211-217Delgado, E. et al.

212

variedade menos frequente e a mais difícil de corrigir (Ramsey, 2001). Existe ainda um entrópion senil, que se deve à atrofia do músculo frontal decorrente da ida-de e que ocorre nos cães das raças Cocker Spaniel In-glês, Cocker Americano e nas raças gigantes como por exemplo o Montanha dos Pirinéus. Este tipo de entró-pion corrige-se recorrendo a um «face-lift» (Bedford, 1999).

Alguns métodos não cirúrgicos foram anteriormente utilizados para tratar esta patologia. Um deles consistia em administrar injecções de parafinina, antibióticos ou óleo mineral ao nível das pálpebras para proporcionar eversão da margem palpebral e alívio da triquíasis e do blefarospasmo. Outro método consistia na electrocau-terização da pele e do músculo orbicular das pálpebras mas conduzia a cicatrizes inestéticas e a uma fibrose imprevisível (Gelatt e Gelatt, 2001).

Actualmente estes métodos estão completamente contra-indicados, recorrendo-se sempre a técnicas ci-rúrgicas. Existem muitos procedimentos descritos para a correcção desta patologia, embora alguns sejam ape-nas variantes de técnicas.

É importante não esquecer que qualquer cirurgia de pálpebras deve ter em atenção que é necessário preser-var o encerramento da fenda palpebral, não deixar su-turas ou pêlos em contacto com o globo ocular, preser-var a secreção das glândulas de Meibomian e respeitar as vias de drenagem lacrimal (Gelatt e Gelatt, 2001).

Materiais e métodos

Os autores abordam o tratamento cirúrgico do en-trópion reportando-se a 71 casos clínicos. Destes, 34 canídeos apresentaram-se à consulta no Instituto Vete-rinário do Parque entre 1993 e 2003, enquanto que 37 animais, 32 canídeos e 5 felídeos, se apresentaram à consulta externa na Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa em 2002 e 2003.

Do total dos animais 41% (29/71) eram fêmeas e 59% eram machos (42/71). Em 70% (50/71) dos ca-sos o entrópion era bilateral e em 30% (21/71) dos

casos era unilateral. No que diz respeito às pálpebras envolvidas, de um total de 121 olhos afectados, 69% (84/121) apresentavam ambas as pálpebras afectadas, 31% (37/121) só apresentavam entrópion ao nível da pálpebra inferior, e nenhum dos olhos apresentava entrópion exclusivamente ao nível da pálpebra supe-rior. A idade dos canídeos na altura em que foi diag-nosticado o problema era inferior ou igual a 1 ano em 76% (50/66) dos casos, sendo que destes animais 66% (33/50) tinha idade inferior a 6 meses. Dos restantes animais, 13% (9/66) tinham idade compreendida entre 1 e 2 anos, 4% (3/66) entre 2 e 3 anos e os restantes 6% (4/66) entre 3 e 6 anos.

Ainda no que se refere à idade, os cachorros da raça Shar Pei geralmente manifestam entrópion antes dos 6 meses de idade, embora em alguns casos mais graves o manifestem assim que abrem as pálpebras. Por oposi-ção a esta raça, os cães da raça Rottweiler geralmente só o manifestam na idade adulta, entre 1 e 2 anos de idade (Figura 1). No caso dos cães das raças Grande Dinamarquês, Braco Alemão e S. Bernardo (Figura 2), o entrópion manifestou-se entre os 4 e os 14 meses de idade.

No caso dos felídeos, 60% (3/5) tinham idade infe-rior ou igual a 1 ano, e 40% (2/5) tinham idade compre-endida entre 1 e 2 anos (Figura 11).

Em relação às raças de canídeos afectadas, o Shar Pei lidera a tabela com 27% dos casos (19/71), em se-gundo lugar surge o Rottweiler com 11% (8/71) dos casos e em terceiro o Chow-Chow (Figura 3) com 10% (7/71) dos casos. Seguem-se o S. Bernardo com 8% (5/66) dos casos, o Cocker Spaniel, Golden Retriever e Bulldog Inglês com 6% (4/66) dos casos cada raça, o Grande Dinamarquês com 4% (3/66) dos casos, o Do-gue de Bordéus e Cão de Água do Algarve com 3% (2/66) cada e, finalmente, o Braco Alemão, Retriever do Labrador, Husky Siberiano, Perdigueiro Português, Montanha dos Pirinéus, Bull Terrier e raça indetermi-nada com 2% (1/66) dos casos cada raça.

No caso dos felídeos, 3 pertenciam à raça Europeu comum e 2 à raça Persa.

Em 41% (29/71) dos casos o entrópion foi conside-

Figura 1 – Entrópion na pálpebra inferior esquerda acompanhado de ble-farofimose em rottweiler, fêmea, 2 anos (original).

Figura 2 - «Diamond-eye» com edema e tecido de granulação na córnea num S. Bernardo, macho, 8 m (original).

Figura 1 – Entrópion na pálpebra inferior esquerda acompanhado de blefarofimose em

rottweiler, fêmea, 2 anos (original).

12

Figura 2 - «Diamond-eye» com edema e tecido de granulação na córnea num S.

Bernardo, macho, 8 m (original).

13

RPCV (2005) 100 (555-556) 211-217

213

Delgado, E. et al.

um cabo de bisturi nº 4 para estabilizar a pele durante a incisão e um cabo de bisturi nº 3 para lâmina nº 15 para a realização da incisão. Além disso é útil possuir uma tesoura de tenotomia de Stevens para efectuar uma dis-secção precisa, bem como um porta-agulhas de micro-cirurgia para permitir a manipulação delicada da agu-lha do fio 6-0 (Figura 4). Recomenda-se o uso de colar isabelino. A pele palpebral cicatriza muito rapidamente devido à sua abundante vascularização, e os pontos são retirados entre os 8 e os 10 dias. A medicação pós-ope-ratória consiste em antibiótico tópico sob a forma de colírio colocado 3 a 4 x por dia sobre os pontos, e no dia da cirurgia administra-se carprofen 4 mg/kg SC. No período pós-operatório imediato é normal parecer que se realizou uma correcção excessiva, devido ao grande edema que caracteriza todas as intervenções cirúrgicas palpebrais. No entanto, à medida que o edema vai de-saparecendo, é possível avaliar o resultado estético da intervenção realizada, e aos 8 dias após a cirurgia já se pode concluir se foi bem sucedida.

No que diz respeito às técnicas utilizadas, serão fei-tas breves considerações de ordem prática. A técnica de Hotz-Celsus consiste na exérese de uma fatia de pele com o formato de meia-lua, e para tal usa-se um cabo de bisturi nº 4 colocado por debaixo da pálpebra para a estabilizar. Pode-se delinear a quantidade de pele a excisar esmagando-a com uma pinça hemostática, mas esse procedimento traumatiza os tecido e aumenta o edema. É preferível usar uma pinça de Allis para esse efeito, embora os autores prefiram não usar nenhum dos tipos. A hemorragia que se segue a seguir ao corte é controlada por pressão digital ou com pinças hemos-táticas. Não se pode utilizar electrocautério nem bisturi eléctrico devido ao risco de fibroses ou cicatrizes se-cundárias. A primeira incisão é paralela à margem pal-pebral a 2 mm de distância, o que ajuda a everte-la. A segunda incisão é em forma de crescente, devendo nas extremidades reunir-se com a primeira. A meia-lua de tecido retira-se com disseção cuidadosa, não atingindo a conjuntiva. Geralmente utiliza-se seda como fio de sutura por ser maleável e atraumático para a córnea.

rado muito pronunciado (blefarospasmo severo, níti-da inversão de 5 mm ou mais de margem palpebral e lesões corneanas extensas), em 49% (35/71) pronun-ciado (blefarospasmo evidente, inversão de 2 a 5 mm de margem palpebral e lesões corneanas moderadas) e em 10% (7/71) dos animais discreto (blefarospasmo menos marcado, inversão inferior ou igual a 2 mm de margem palpebral e ausência de lesões corneanas).

Todos os animais foram submetidos a blefaroplas-tia correctiva sob anestesia geral. A indução anestésica foi realizada com pentobarbital de sódio a 2,5% (8-10 mg/Kg) ou com propofol (4-7 mg/Kg) e a anestesia foi mantida com isoflurano.

A técnica cirúrgica mais utilizada foi a técnica mo-dificada de Hotz-Celsus para o entrópion lateral supe-rior e inferior em 64% dos casos (71 olhos operados de um total de 121) Em segundo lugar surge a técnica de Hotz-Celsus aplicada em 26% dos casos (31 olhos operados de um total de 121) e em terceiro as técnicas de Stades e a Cantoplastia lateral de Wyman usadas em 3% (4/121) dos olhos. Em quarto lugar surge a Coloca-ção de pontos de suporte temporários aplicada em 2% (3/121) dos casos e em quinto a técnica de Hotz-Celsus modificada para o entrópion medial inferior utilizada em 2% dos olhos (2/121).

Em relação à prática cirúrgica, a tricotomia deve ser cuidadosa para evitar lesões cutâneas que potenciem o autotraumatismo. Utiliza-se uma solução de lavagem de povidona iodada diluída a 1-50, evitando que ela entre em contacto com o globo ocular. Não se deve es-fregar a pele exageradamente. Irriga-se o saco conjun-tival com soro fisiológico estéril. De preferência deve ter-se acesso a um meio de aumento, lupa ou micros-cópio cirúrgico. O cirurgião está sentado, com os ante-braços apoiados para permitir uma maior precisão de movimentos. O animal está em decúbito lateral, com a cabeça apoiada sobre um saco de areia para um melhor posicionamento. Os instrumentos cirúrgicos devem ser delicados, podendo utilizar-se os instrumentos de ma-crocirurgia de menores dimensões ou instrumentos de microcirurgia. É importante a trouxa cirúrgica conter uma pinça de Bishop-Harmon para a pele e conjuntiva,

Figura 3 – Entrópion pronunciado sendo visível o blefarospasmo e a epífora em Chow-

Chow, macho, 1 ano (original).

14

Figura 4 – Material microcirúrgico. Da direita para a esquerda: cabo de bisturi nº 3,

tesoura de córnea de Castroviejo, pinça de Utrata, tesoura de tenotomia de Stevens,

pinça Collibri, pinça de Bishop-Harmon e porta-agulhas de Castroviejo (original).

15

Figura 3 – Entrópion pronunciado sendo visível o blefarospasmo e a epífora em Chow-Chow, macho, 1 ano (original).

Figura 4 – Material microcirúrgico. Da direita para a esquerda: cabo de bisturi nº 3, tesoura de córnea de Castroviejo, pinça de Utrata, tesoura de tenotomia de Stevens, pinça Collibri, pinça de Bishop-Harmon e porta-agulhas de Castroviejo (original).

RPCV (2005) 100 (555-556) 211-217Delgado, E. et al.

214

Usa-se um fio 4-0 a 6-0, consoante o tamanho do ani-mal, e do tipo “atraloc”, para obter uma cicatriz o mais imperceptível possível. O primeiro ponto é colocado no meio da incisão para distribuir a pele de modo igualitá-rio. Os pontos realizados são do tipo «split-thickness», ou seja, a agulha entra na pele a 1-2 mm do bordo da ferida, sai ao nível da junção derme-epiderme, entra ao nível da junção derme-epiderme e sai a 1-2 mm do bor-do da ferida. Os pontos ficam afastados 2 a 3 mm entre si, de forma a possibilitar uma cicatrização perfeita e evitar cicatrizes inestéticas.

Na técnica de Hotz-Celsus modificada para o entró-pion lateral superior e inferior a incisão prolonga-se para além do canto lateral, ficando com o formato duma seta, o que lhe confere a designação de «arrowhead» pelos anglosaxónicos (Figura 5). O encerramento da incisão vai corrigir a blefarofimose, devendo o primei-ro ponto ser colocado no extremo lateral da incisão em forma de seta, e seguem-se os mesmos procedimentos que para a técnica de Hotz-Celsus simples.

Na blefaroplastia de Stades para o Shar Pei realiza-se a exérese de uma fatia de pele de 10 a 15 mm de lar-gura com origem ao nível do tarso, fazendo mesmo a ablação das pestanas. A incisão começa a 2 a 4 mm do canto medial, prolonga-se ao longo de toda a pálpebra superior e termina a 5 a 10 mm do canto lateral (Figura 6). A fatia de pele resultante é retirada com a ajuda de tesoura de tenotomia de Stevens. Sutura-se com um fio reabsorvível a cerca de 2-3 mm da margem palpebral, utilizando um fio de ácido poliglicólico 3-0 com agulha atraumática. O restante tecido cicatriza por segunda in-tenção, o que ajuda a everter a margem palpebral. Esta técnica também pode ser utilizada para a resolução de distiquíases exuberantes.

No caso de cães de raças gigantes, a presença duma fenda palpebral em forma de losango confere-lhes a designação de «diamond eye». Nestes olhos a um en-trópion superior e inferior lateral associa-se uma insta-bilidade do ligamento cantal e a presença de um ectró-pion inferior. Daí que se recorra a várias técnicas que possibilitam a suspensão do ligamento cantal lateral, nomeadamente a cantoplastia de Wyman, na qual se

efectua a dissecção de dois pedículos de músculo orbi-cular das pálpebras, um superior e outro inferior, que se suturam ao periósteo do arco zigomático. Aprovei-tam-se as incisões cutâneas para a correcção do entró-pion pela técnica de Hotz-Celsus. Devido à dissecção adicional, os animais apresentam maior edema no pós-operatório. Utiliza-se um fio de nylon 2-0 para suturar os pedículos de músculo orbicular das pálpebras, para que não seja reabsorvido e para que a consequente re-acção de fibrose ajude a criar mais tensão ao nível do ligamento cantal. Utiliza-se seda 4-0 a 6-0 como fio de sutura para encerrar a pele (Figuras 2,7,8 e 9).

A colocação de pontos de suporte temporários é designada por “tacking” pelos anglosaxónicos. Esta técnica é utilizada nos cachorros Shar Pei, nos quais por vezes o entrópion se manifesta assim que os ca-chorros abrem as pálpebras (Figura 10 e 11), efectu-ando-se pontos de Lembert interrompidos na pele das pálpebras, para evitar lesões corneanas e dar tempo ao animal para que a cabeça atinja a conformação defi-nitiva, adiando a cirurgia correctiva para os 6 meses de idade ou mais próximo da idade adulta, se possível. Esta técnica também pode ser aplicada aos casos de entrópion espástico para aliviar a dor ocular, quebran-do o ciclo blefarospástico. Realizam-se estes pontos de sutura com seda 2-0, em número de 3 ou 4 em cada

Figura 5 - Blefaroplastia de Hotz-Celsus «arrowhead» para correcção de entrópion

superior e inferior lateral e blefarofimose em Shar Pei, fêmea, 8 m (original).

16

Figura 6 – Técnica de Stades para correcção de entrópion pronunciado em Shar Pei,

fêmea, 9 m (original).

17

Figura 7 – Mesmo animal da figura 2. Notar a grave lesão corneana com edema e

tecido de granulação exuberante (original).

18

Figura 5 - Blefaroplastia de Hotz-Celsus «arrowhead» para correcção de entrópion superior e inferior lateral e blefarofimose em Shar Pei, fêmea, 8 m (original).

Figura 6 – Técnica de Stades para correcção de entrópion pronunciado em Shar Pei, fêmea, 9 m (original).

Figura 7 – Mesmo animal da figura 2. Notar a grave lesão corneana com edema e tecido de granulação exuberante (original).

RPCV (2005) 100 (555-556) 211-217

215

Delgado, E. et al.

pálpebra (Figura 10), tentando proporcionar uma cor-recção excessiva uma vez que eles têm tendência para ir saindo, deixando-os permanecer o máximo tempo possível. Geralmente não é necessário colar isabelino. Se for possível, o animal deve ser afastado da mãe e dos outros membros da ninhada, porque eles vão ten-tar arrancar-lhe os pontos. Por vezes estes animais não precisam de blefaroplastia correctiva quando atingem o tamanho adulto.

Resultados

Em 83% (59/71) dos animais os resultados foram bons, tendo o entrópion e os seus inconvenientes sido ultrapassados, em 11 % (8/71) dos casos observaram-se recidivas ou a permanência de um grau menor de entrópion, e em 6% (4/71) detectou-se um grau mode-rado de ectrópion cicatricial no canto lateral da pálpe-bra inferior (“follow-up” compreendido entre 1 mês e 7 anos, média de três anos e meio).

Discussão

A incidência foi maior em canídeos jovens com ida-de inferior a 1 ano, 50/66 (76%) casos e destes 66%

tinham idade inferior a 6 meses, o que está de acor-do com o que aparece descrito na literatura (Gellat e Gellat, 2001).

Deve-se aguardar pelo menos até aos 6 meses para corrigir o entrópion congénito, aplicando medidas de controlo temporárias, tais como pontos de suporte ou lubrificantes tópicos, uma vez que com o crescimen-to alguns animais deixam de precisar de blefaroplastia definitiva (Bedford, 1999).

A área mais frequentemente afectada é a porção la-teral da pálpebra inferior, e este tipo de entrópion deve ser diferenciado do entrópion lateral que se deve ao deficiente desenvolvimento do músculo retractor do ângulo do olho (Slatter, 1992). No nosso estudo apa-recem ambas as pálpebras afectadas na maioria dos casos, e cremos que seja por a maior parte dos animais serem casos referenciados e mais pronunciados.

O Shar Pei foi a raça mais frequentemente afectada (27%), seguida da Rottweiler (11%) e da Chow-Chow (10%). Estes dados estão de acordo com o que vem referido na literatura (Gelatt e Gelatt, 2001), no entanto as percentagens podem estar afectadas pelo facto de muitos do animais serem referidos por outros médicos veterinários que eventualmente podem resolver os ca-sos menos graves, mas referem os animais das raças Shar Pei e Chow-Chow.

Figura 8 – Mesmo animal da figura 2 e 4. Cantoplastia de Wyman com a criação de

dois flaps de músculo orbicular das pálpebras (original).

19

Figura 9 – Mesmo animal da figura 2, 6 e 7. Aspecto final com leucoma da córnea

(original).

20

Figura 10 – Pregas de pele faciais excessivas em Shar Pei, macho, 2 meses (original).

21

Figura 11 – Mesmo animal da figura 9. Colocação de pontos de suporte temporários em

Shar Pei (original).

22

Figura 8 – Mesmo animal da figura 2 e 4. Cantoplastia de Wyman com a criação de dois flaps de músculo orbicular das pálpebras (original).

Figura 9 – Mesmo animal da figura 2, 6 e 7. Aspecto final com leucoma da córnea (original).

Figura 10 – Pregas de pele faciais excessivas em Shar Pei, macho, 2 meses (original).

Figura 11 – Mesmo animal da figura 9. Colocação de pontos de suporte temporários em Shar Pei (original).

RPCV (2005) 100 (555-556) 211-217Delgado, E. et al.

216

Nos felídeos pensa-se que seja hereditário nos per-sas e secundário a queratites herpéticas nas outras raças, tendo uma componente de entrópion espástico (Figura 12).

O facto de existirem raças predispostas confirma a hereditariedade, logo não se devem reproduzir estes animais e não são aceites em exposições (Ramsey, 2001).

O modo de hereditariedade é desconhecido, mas pensa-se que seja poligénico, estando os genes impli-cados relacionados com a conformação da cabeça e da face (Rose, 2002). Os factores predisponentes sob con-trole genético incluem a presença de uma órbita muito dimensionada e de um globo ocular pequeno que não suporta as pálpebras, defeitos no desenvolvimento ou nas inserções do músculo orbicular das pálpebras com a presença de um canto lateral arredondado, abertu-ras palpebrais muito grandes ou muito pequenas e/ou a presença de pregas faciais em quantidade excessiva (Miller, 1997).

Segundo Bedford (1999), pensa-se que o entrópion seja hereditário segundo um gene autossómico recessi-vo com penetração completa nalgumas raças, enquanto

que noutras a ocorrência é esporádica e com um modo de hereditariedade difícil de perceber. Nalgumas raças de cães de caça o segmento lateral da pálpebra inferior é o mais frequentemente afectado, enquanto que nas raças grandes ou gigantes todo o canto lateral aparece afectado (Bedford, 1999). Nalguns casos toda a fenda palpebral está afectada, como no caso do Shar Pei que pode apresentar um entrópion de 360º aos 15-20 dias de idade (Bedford, 1999).

De acordo com o presente estudo, as cinco técnicas referenciadas permitiram resolver os vários casos clíni-cos apresentados, embora existam outras técnicas que podem ser utilizadas separadamente ou associadas. A eleição da técnica depende da localização e da severi-dade do entrópion e da raça do animal afectado.

A técnica de Hotz Celsus modificada “arrowhead” foi a usada na maioria dos casos (64%). Segundo al-guns autores, a técnica mais frequentemente utilizada é a de Hotz-Celsus (Slatter, 1992; Nasisse, 1997), e no nosso estudo esta poderá não ocupar o primeiro lugar porque a maioria dos casos são referenciados, sendo ge-ralmente casos de entrópion pronunciado. Existe con-trovérsia acerca da necessidade de retirar ou não mús-

Figura 12 – Entrópion inferior unilateral em gato Europeu comum, macho, 2 anos

(original).

23

Figura 13 – Entrópion inferior bilateral com componente espástico em gato Europeu

comum, macho, 1 ano (original).

24

Figura 12 – Entrópion inferior unilateral em gato Europeu comum, ma-cho, 2 anos (original).

Figura 13 – Entrópion inferior bilateral com componente espástico em gato Europeu comum, macho, 1 ano (original).

Figura 14 – Mesmo animal da figura 12. Após correcção do entrópion pela técnica de

Hotz-Celsus modificada para o entrópion lateral (original).

25

Figura 14 – Mesmo animal da figura 12. Após correcção do entrópion pela técnica de Hotz-Celsus modificada para o entrópion lateral (origi-nal).

Figura 15 – Mesmo animal das figuras 12 e 13. Notar a permanência de um grau menor

de entrópion inferior unilateral direito (original).

26

Figura 15 – Mesmo animal das figuras 12 e 13. Notar a permanência de um grau menor de entrópion inferior unilateral direito (original). (original).

RPCV (2005) 100 (555-556) 211-217

217

Delgado, E. et al.

culo orbicular das pálpebras. Segundo Nasisse (1997) e Slatter (1992) não é necessário retirar, e segundo Gelatt e Gelatt (2001) e Peterson-Jones (1993) é necessário retirar fibras do músculo orbicular das pálpebras. Neste trabalho, os 34 canídeos que se apresentaram à consul-ta no Instituto Veterinário do Parque foram operados realizando a exérese parcial de músculo orbicular das pálpebras, enquanto que os 37 animais que se apresen-taram à consulta externa na Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa, 32 canídeos e 5 felídeos, foram operados sem realizar a exérese de músculo orbicular das pálpebras. Na convicção dos autores, com ambas as variantes da técnica se podem obter bons resulta-dos desde que se respeitem regras básicas de cirurgia oftálmica para evitar cicatrizes inestéticas, e se avalie preoperatoriamente a quantidade de pele a excisar para evitar correcções excessivas ou insuficientes.

Todas as blefaroplastias de correcção de entrópion têm de respeitar princípios básicos de cirurgia das pálpebras, que são semelhantes aos princípios bási-cos da cirurgia plástica (Hamilton, 1999). Deve ter-se um cuidado especial na tricotomia uma vez que a pele palpebral é muito fina, móvel e altamente vasculari-zada e pode ocorrer um grande edema se for lesiona-da (Hamilton, 1999). O fio de sutura da pele deve ser não reabsorvível seda ou nylon 4 a 6/0. A seda é mais maleável, os nós são mais seguros, no caso de tocar na córnea não é tão irritante e é menos provável estar contaminada com Staphylococcus epidermis do que o nylon (Hamilton, 1999). O nylon é preferido por al-guns cirurgiões por causar menor reacção tissular (Ha-milton, 1999).

Do cálculo da quantidade de pele a retirar depende muito do sucesso da cirurgia. Esta previsão deve ter em consideração que existe 0.5 a 1 mm de retracção cicatricial que ajuda a everter a margem palpebral (Ge-latt e Gelatt, 2001). Se for necessário uma segunda intervenção cirúrgica, deve esperar-se 4 a 6 semanas para que ocorra toda a retração cicatricial. Aquando do

planeamento de uma cirurgia de correcção de entró-pion, devemos certificar-nos de que corrigiremos ape-nas a componente anatómica ou conformacional, uma vez que é mais simples efectuar uma segunda cirurgia de correcção de entrópion (Figura 13,14 e 15) do que corrigir um ectrópion iatrogénico. O animal não deve estar sedado, e pode colocar-se uma gota de anestési-do tópico para abolir em parte a componente espástica e quebrar o ciclo vicioso do blefarospasmo, tornando mais fácil quantificar a componente anatómica.

Bibliografia

Bedford, P. (1999). Diseases and surgery of the canine eyelid. In Veterinary Opthalmology, 3rd edition, editor K. N. Gel-latt, Lippincott Williams & Wilkins, Baltimore, U.S.A., pp. 542-548.

Gellat, K e Gellat, J. (2001). Surgical procedures for entropion. In: Small Animal Ophthalmic Surgery : Practical Tech-niques for the Veterinarian, Elsevier Science, Edinburgh, pp 90-100.

Hamilton, H., Whithey, R., McLaughlin, S. e Swaim, S. (1999). Basic blepharoplasty techniques. Compendium on Con-tinuing Education for the Practicing Veterinarian, 21 (10), pp. 946-953.

Miller, P. (2001) Eyelids. Proceedings of the Waltham/OSO Symposium, Small Animal Opthalmology.

Nasisse, M. (1997). The Veterinary Clinics of North America – Small Animal Practice. Surgical Management of Ocular Disease. 27(5):1018-1032.

Peterson-Jones, S. (1993). Conditions of the eyelid and nictitat-ing membrane. In Manual of Small Animal Ophthalmol-ogy, Ed. Peterson-Jones, S. e Crispin, S., British Small Animal Veterinary Association, KCO, West Sussex.

Ramsey, D. (2001). Conditions of eyelids and ocular adnexa in dogs and cats. Proceedings of the Waltham/OSO Sympo-sium, Small Animal Opthalmology.

Rose, M.. (2002). Chirurgie des paupi�res et membrane nictitan-(2002). Chirurgie des paupi�res et membrane nictitan-te. 8º Encontro da Secção Regional do Sul Oftalmologia, 19 e 20 de Outubro, Albufeira.

Slatter, D. (1992). Párpados. In Fundamentals of Veterinary Ophthalmology – Second Edition, W. B. Saunders Co., Philadelphia, pp. 193-197.