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1 SENZALAS NA FLORESTA? NOTAS SOBRE A ESTRUTURA DA POSSE DE ESCRAVOS NO GRÃO-PARÁ OITOCENTISTA Daniel Souza Barroso Este artigo tem como objetivo analisar a estrutura da posse de escravos no Baixo Tocantins e na Zona Guajarina duas das mais importantes regiões escravistas do Grão-Pará sete-oitocentista , entre 1851 e 1888, através de uma série documental constituída por 86 inventários post-mortem. 1 As considerações aqui apresentadas, de caráter ainda inicial, são parte integrante de um projeto de dou- toramento que vimos desenvolvendo na Universidade de São Paulo, e vêm a complementar, em cer- ta medida, reflexões anteriormente apresentadas, também em caráter inicial, sobre a posse de escra- vos no Baixo Tocantins na primeira metade do Oitocentos. 2 Para tal, o texto encontra-se estruturado em três seções. Na primeira, traçamos um breve panorama do Baixo Tocantins e da Zona Guajarina. Na segunda delas, examinamos a estrutura da posse em si. Na terceira e última seção, analisamos as características dos escravos. Uma contextualização: o Baixo Tocantins e a Zona Guajarina na segunda metade do Oitocentos O Baixo Tocantins e a Zona Guajarina eram, em termos demográficos e econômicos, o prin- cipal reduto escravista do Grão-Pará oitocentista, compondo algo como um “cinturão agroextrativis- Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional , Curitiba (UFPR), de 13 a 16 de maio de 2015. Anais completos do 7º E&L disponíveis em: http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. O autor agradece a He- len Osório, José Flávio Motta e Luiz Carlos Laurindo pelos comentários feitos na ocasião, assim como a Maísa Cunha e Antônia Mota pelos comentários feitos a uma versão preliminar do texto. Doutorando em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesqui- sa do Estado de São Paulo (FAPESP, Processo nº. 2012/21188-5). Integra o Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil-África e o HERMES & CLIO Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica, ambos da USP, e o Grupo de Pesquisa Popu- lação, Família e Migração na Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 1 Foram computados todos os inventários post-mortem disponíveis no acervo do Centro de Memória da Amazônia ins- tituição responsável pela guarda da documentação cartorial proveniente do Tribunal de Justiça do Estado do Pará , que arrolavam a posse de terras e de escravos no Baixo Tocantins e na Zona Guajarina, entre 1810 e 1888. 2 BARROSO, Daniel Souza. Coletando o cacau “bravo”, plantando o cacau “manso” e outros gêneros: um estudo sobre a estrutura da posse de cativos no Baixo Tocantins (Grão-Pará, 1810-1850). Encontro Nacional de Estudos Populacio- nais, XIX, 2014. São Pedro. Anais... Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2014, 20 p.

ENZALAS NA FLORESTA OTAS SOBRE A ESTRUTURA ......Escravidão Negra no Grão-Pará (Séculos XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2001, pp. 55-56. 6 Sobre a família Corrêa de Miranda e as

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    SENZALAS NA FLORESTA? NOTAS SOBRE A ESTRUTURA DA POSSE DE ESCRAVOS NO

    GRÃO-PARÁ OITOCENTISTA

    Daniel Souza Barroso

    Este artigo tem como objetivo analisar a estrutura da posse de escravos no Baixo Tocantins e

    na Zona Guajarina – duas das mais importantes regiões escravistas do Grão-Pará sete-oitocentista –,

    entre 1851 e 1888, através de uma série documental constituída por 86 inventários post-mortem.1 As

    considerações aqui apresentadas, de caráter ainda inicial, são parte integrante de um projeto de dou-

    toramento que vimos desenvolvendo na Universidade de São Paulo, e vêm a complementar, em cer-

    ta medida, reflexões anteriormente apresentadas, também em caráter inicial, sobre a posse de escra-

    vos no Baixo Tocantins na primeira metade do Oitocentos.2 Para tal, o texto encontra-se estruturado

    em três seções. Na primeira, traçamos um breve panorama do Baixo Tocantins e da Zona Guajarina.

    Na segunda delas, examinamos a estrutura da posse em si. Na terceira e última seção, analisamos as

    características dos escravos.

    Uma contextualização: o Baixo Tocantins e a Zona Guajarina na segunda metade do Oitocentos

    O Baixo Tocantins e a Zona Guajarina eram, em termos demográficos e econômicos, o prin-

    cipal reduto escravista do Grão-Pará oitocentista, compondo algo como um “cinturão agroextrativis-

    Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), de 13 a 16 de maio

    de 2015. Anais completos do 7º E&L disponíveis em: http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. O autor agradece a He-

    len Osório, José Flávio Motta e Luiz Carlos Laurindo pelos comentários feitos na ocasião, assim como a Maísa Cunha e

    Antônia Mota pelos comentários feitos a uma versão preliminar do texto.

    Doutorando em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesqui-

    sa do Estado de São Paulo (FAPESP, Processo nº. 2012/21188-5). Integra o Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil-África e

    o HERMES & CLIO – Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica, ambos da USP, e o Grupo de Pesquisa Popu-

    lação, Família e Migração na Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 1 Foram computados todos os inventários post-mortem disponíveis no acervo do Centro de Memória da Amazônia – ins-

    tituição responsável pela guarda da documentação cartorial proveniente do Tribunal de Justiça do Estado do Pará –, que

    arrolavam a posse de terras e de escravos no Baixo Tocantins e na Zona Guajarina, entre 1810 e 1888. 2 BARROSO, Daniel Souza. Coletando o cacau “bravo”, plantando o cacau “manso” e outros gêneros: um estudo sobre

    a estrutura da posse de cativos no Baixo Tocantins (Grão-Pará, 1810-1850). Encontro Nacional de Estudos Populacio-

    nais, XIX, 2014. São Pedro. Anais... Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2014, 20 p.

    http://www.escravidaoeliberdade.com.br/mailto:[email protected]

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    ta” no entorno de Belém (ver: FIGURA 01). Não obstante as heterogeneidades internas do Baixo To-

    cantins e da Zona Guajarina, a economia desse cinturão voltava-se, de um lado e em menor medida,

    a uma produção do cacau e das drogas do sertão destinada, sobretudo, ao mercado externo; e, do ou-

    tro lado e em maior medida, a uma produção de açúcar (e de derivados da cana) e gêneros diversifi-

    cados de subsistência (mandioca, arroz, milho etc.) que visava a atender, respectiva e principalmen-

    te, as demandas de um mercado inter-regional na Amazônia e o abastecimento, ainda que parcial, de

    Belém.3 Paralelamente às regiões produtoras de borracha,

    4 esse cinturão constituiu um dos mais im-

    portantes núcleos produtivos da economia agroextrativista do Pará na segunda metade do século 19.

    FIGURA 01

    REGIÕES POVOADAS DA PROVÍNCIA DO GRÃO-PARÁ NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO 19

    FONTE: ANDERSON, Robin L. Colonization as Exploitation in the Amazon Rain Forest, 1758-1911. Gainesville: Florida

    University Press, 1999, p. 147. Com alterações do autor.

    3 Sobre o abastecimento de Belém, cf. especialmente: MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Daquilo que se co-

    me: uma história do abastecimento e da alimentação em Belém (1850-1900). 2009. Dissertação (Mestrado em História

    Social da Amazônia) - Universidade Federal do Pará, Belém. Sobre o comércio interno no Grão-Pará, cf. dentre outros:

    LOPES, Siméia de Nazaré. O comércio no Pará oitocentista: atos,sujeitos sociais e controle entre 1840-1855. 2002. Dis-

    sertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento) - Universidade Federal do Pará, Belém. 4 A principal área produtora de borracha no Pará era a chamada “Região das Ilhas”, localizada entre o Marajó e a foz do

    rio Xingu. Também se produzia borracha, contudo em menor quantidade, nas regiões próximas aos rios Amazonas, To-

    cantins e Guamá. A partir da década de 1870, novas áreas de extração se estabeleceram na província do Amazonas. Ver:

    WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: HUCITEC, 1993 [1983],

    pp. 53-88.

    BAIXO

    TOCANTINS

    ZONA

    GUAJARINA

  • 3

    O Baixo Tocantins e a Zona Guajarina eram, também, regiões bastante importantes do ponto

    de vista demográfico. Como podemos observar a partir dos dados do Recenseamento de 1872, com-

    pilados na TABELA 01, essas regiões concentravam, juntas, 26,6% da população livre, 43,2% da po-

    pulação escrava e 28,3% de toda a população do Grão-Pará, no limiar da década de 1870. A popula-

    ção do Baixo Tocantins e da Zona Guajarina era constituída, na altura, por 77.916 habitantes, sendo

    66.043 (84,8%) livres e 11.873 (15,2%) escravos. O peso relativo dos escravos na população variou

    de localidade para localidade. Igarapé-Miri e Abaeté apresentaram os maiores pesos relativos de ca-

    tivos na população (24,7% e 23,5%, respectivamente). Já Bujaru, que em maior medida se dedicava

    à produção de gêneros de subsistência e abastecimento, apresentou o menor peso relativo de cativos

    em sua população (8,6%).

    TABELA 01

    POPULAÇÃO LIVRE E ESCRAVA DO BAIXO TOCANTINS E DA ZONA GUAJARINA EM 1872

    LOCALIDADE(S) LIVRES ESCRAVOS

    TOTAL N % N %

    Abaeté 6.080 76,5 1.865 23,5 7.945 (100,0%)

    Acará 5.125 86,6 792 13,4 5.917 (100,0%)

    Barcarena 3.754 85,3 645 14,7 4.399 (100,0%)

    Bujaru 3.890 91,4 364 8,6 4.254 (100,0%)

    Cametá 18.413 88,3 2.436 11,7 20.849 (100,0%)

    Igarapé-Miri 6.383 75,3 2.099 24,7 8.482 (100,0%)

    Inhangapi 1.515 83,2 307 16,8 1.822 (100,0%)

    Mocajuba 2.847 88,0 387 12,0 3.234 (100,0%)

    Moju 5.062 89,6 589 10,4 5.651 (100,0%)

    Ourém 4.407 86,8 670 13,2 5.077 (100,0%)

    São Domingos do Capim 6.463 82,9 1.333 17,1 4.938 (100,0%)

    São Miguel do Guamá 2.104 84,5 386 15,5 2.490 (100,0%)

    TOTAL DO BAIXO TOCANTINS E DA ZONA GUAJARINA 66.043 84,8 11.873 15,2 77.916 (100,0%)

    TOTAL DA PROVÍNCIA DO GRÃO-PARÁ 247.770 90,0 27.458 10,0 275.228 (100,0%)

    OBS: Em relação a todas as localidades elencadas, foram utilizados somente os dados referentes às freguesias homôni-

    mas, salvo no caso das localidades de Cametá, onde também foram considerados os dados da paróquia de Nossa Senho-

    ra do Carmo do Tocantins; de Moju, onde também foram considerados os dados da paróquia de Nossa Senhora da Sole-

    dade do Cairari; de Ourém, onde também foram considerados os dados da paróquia de Nossa Senhora da Piedade de Iri-

    tuia; e, por último, de São Domingos do Capim, onde também foram considerados os dados da paróquia de São Domin-

    gos da Boa Vista.

    FONTE: BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento Geral do Império de 1872. Rio de Janeiro: Typ. Leuzin-

    ger/Tip. Commercial, 1876, v. 01, pp. 211-212.

    Mais da metade (53,9%) da população cativa dessas regiões encontrava-se reunida três loca-

    lidades: Cametá e as outrora referidas Abaeté e Igarapé-Miri. Tratava-se de três das localidades com

  • 4

    maior dinamismo econômico do Baixo Tocantins e da Zona Guajarina. Cametá, além de constituir o

    principal núcleo urbano dessas regiões, destacava-se por sua proeminente produção de cacau. Abae-

    té e Igarapé-Miri, por suas vezes, eram dois dos principais núcleos da tradicional lavoura canavieira

    do Baixo Tocantins e na Zona Guajarina,5 e onde estavam estabelecidas algumas das principais fa-

    mílias produtoras de derivados da cana-de-açúcar do Grão-Pará, a exemplo dos Corrêa de Miranda.6

    As demais localidades, embora não deixassem de se dedicar, em alguma medida, à produção açuca-

    reira, do cacau e das drogas do sertão, em geral se voltavam à produção de gêneros de subsistência e

    abastecimento. Tanto a produção em larga escala de um ou mais gêneros realizada nas maiores pro-

    priedades, quanto essas pequenas e médias produções de subsistência e abastecimento, empregavam

    mão de obra escrava. Mas, afinal, em que termos se estruturava a posse de cativos naquelas regiões?

    A estrutura da posse de cativos

    Nesta seção, nossa atenção repousa na análise da estrutura da posse de cativos no Baixo To-

    cantins e na Zona Guajarina, entre 1851 e 1888. Interessa-nos, acima de tudo, analisar a distribuição

    dos cativos computados em relação às diferentes faixas de tamanho de plantel e às distintas ativida-

    des econômicas levadas a cabo nessas regiões, assim como verificar o grau de concentração da pos-

    se de escravos entre os proprietários examinados, atentando para possíveis variações sucedidas nes-

    ses aspectos, no decurso de todo o período em tela. A nossa amostra é constituída por 86 escravistas

    e 1.408 cativos, distribuídos da seguinte forma: 50 escravistas e 735 cativos para o primeiro período

    de observação (1851-1871), e mais 36 escravistas e 673 cativos para o segundo período de observa-

    ção (1872 a 1888). Cumpre-nos advertir, de antemão, que no segundo período não foram considera-

    dos os “ingênuos” – filhos livres nascidos do ventre de mulheres cativas após a Lei do Ventre Livre.

    Para a melhor caracterização das propriedades analisadas, classificamo-las de início em cin-

    co faixas de tamanho: pequenos (de um a nove escravos); médios (de 10 a 19); grandes (de 20 a 49),

    muito grandes (de 50 a 99) e megaplantéis (com 100 ou mais escravos). Essa classificação levou em

    5 BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão Negra no Grão-Pará (Séculos XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2001, pp. 55-56.

    6 Sobre a família Corrêa de Miranda e as suas atividades econômicas no Baixo Tocantins oitocentista, ver: ÂNGELO,

    Helder Bruno Palheta. O longo caminho dos Corrêa de Miranda no século XIX: um estudo sobre família, poder e eco-

    nomia. 2012. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia) - Universidade Federal do Pará, Belém.

  • 5

    consideração não apenas alguns dos parâmetros existentes na historiografia,7 de estudos que exami-

    naram a estrutura da posse de cativos a partir de inventários post-mortem, mas também e principal-

    mente, as especificidades da realidade analisada, demarcada por uma elevada média de escravos por

    proprietário (16,4), e as características da documentação compulsada. Seguindo tal critério, apresen-

    tamos, na TABELA 02, a distribuição dos escravistas e dos escravos, conforme as diferentes faixas de

    tamanho de plantel, e considerando duas coortes, que respeitam às rearticulações levadas a efeito no

    escravismo brasileiro como implicação da legislação emancipacionista baixada no período em tela.8

    TABELA 02

    ESTRUTURA DA POSSE DE CATIVOS (BAIXO TOCANTINS E NA ZONA GUAJARINA, 1851-1888)

    FTP PROPRIETÁRIOS ESCRAVOS

    N % % Ac. N % % Ac.

    18

    51-1

    87

    1

    01-09 30 60,0 60,0 154 21,0 21,0

    10-19 11 22,0 82,0 159 21,6 42,6

    20-49 07 14,0 96,0 222 30,2 72,8

    50-99 01 2,0 98,0 58 7,9 80,7

    100/+ 01 2,0 100,0 142 19,3 100,0

    TOTAL 50 100,0 100,0 735 100,0 100,0

    18

    72-1

    88

    8

    01-09 21 58,3 58,3 105 15,6 15,6

    10-19 09 25,0 83,3 124 18,4 34,0

    20-49 04 11,1 94,4 163 24,2 58,2

    50-99 01 2,8 97,2 96 14,3 72,5

    100/+ 01 2,8 100,0 185 27,5 100,0

    TOTAL 36 100,0 100,0 673 100,0 100,0

    FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia

    Os informes apresentados na TABELA 02 evidenciam que, enquanto a grande maioria dos es-

    cravistas era detentora de pequenas ou médias propriedades, a maior parte dos escravos integrava os

    plantéis grandes, muito grandes ou os megaplantéis, em ambos os períodos examinados. Muito em-

    bora essa distribuição destoasse, parcialmente, do padrão geral da estrutura da posse de escravos em

    7 Ver dentre muitos outros: SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, Século XIX. Senhores e escravos no

    Coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 8 Referimo-nos, especificamente, à Lei Eusébio de Queirós, de 04 de setembro de 1850, que proibiu em caráter definiti-

    vo o tráfico atlântico de cativos, e à Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, que tornou “ingênuos” – e, portan-

    to, livres – os filhos das mulheres escravas nascidos a partir de então. Sobre a legislação emancipacionista no Brasil, ver

    dentre alguns outros: MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a Lei de 1885 e os caminhos da abolição

    no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008 [1999].

  • 6

    outras regiões brasileiras – marcado pela concentração dos cativos nos pequenos e médios plantéis,9

    aparentemente se tratava de uma característica particular do escravismo paraense, pelo menos desde

    o fim do século 18.10

    No primeiro período, 82% dos escravistas figuravam entre os pequenos e mé-

    dios proprietários, já os escravos das maiores propriedades perfaziam 57,4% dos cativos. No segun-

    do período examinado, os percentuais correlatos para escravistas e cativos foram de, respectivamen-

    te, 83,3% e 66% – assinalando um ligeiro crescimento do peso relativo dos pequenos e médios pro-

    prietários de escravos, acompanhado de um crescimento, agora, um pouco mais expressivo, do peso

    relativo dos cativos pertencentes aos maiores plantéis. Esse duplo movimento levou a um incremen-

    to na concentração da posse do primeiro para o segundo período em tela. O índice de Gini calculado

    para o primeiro período foi de 0,55, evidenciando uma concentração mediana, e, para o segundo pe-

    ríodo observado, foi de 0,63, evidenciando, dessa vez, uma forte concentração da posse de cativos.11

    9 cf.: MOTTA, José Flávio; NOZOE, Nelson Hideiki & COSTA, Iraci del Nero da. Às vésperas da Abolição: um estudo so-

    bre a estrutura da posse de escravos em São Cristóvão (RJ), 1870. Estudos Econômicos, São Paulo, vol. 34, n. 01, jan.-

    mar./2004, pp. 157-213. 10

    cf.: KELLY-NORMAND, Arlene. Africanos na Amazônia: cem anos antes da Abolição. Cadernos do Centro de Filoso-

    fia e Ciências Humanas, Belém, n. 18, out.-dez./1988, pp. 01-21. 11

    Para a classificação dos coeficientes de Gini encontrados, adotamos os critérios disponíveis em: LUNA, Francisco Vi-

    dal e COSTA,Iraci del Nero da. Sobre a estrutura da posse de escravos em São Paulo e Minas Gerais nos albores do sé-

    culo XIX. Estudios Históricos, Montevideo, Noviembre/2010, n. 05, s/n.

  • 7

    TABELA 03

    ÍNDICES DE GINI RELACIONADOS À POSSE DE ESCRAVOS EM DIFERENTES LOCALIDADES E REGIÕES

    BRASILEIRAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO 19

    LOCALIDADE(S) ANOS(S) PRINCIPAL ATIVIDADE ECONÔMICA ÍNDICE DE GINI

    Baixo Tocantins e Zona Guajarina

    (Grão-Pará) (a) 1851-1871 Agroextrativismo (Açúcar, cacau e outros) 0,55

    Baixo Tocantins e Zona Guajarina

    (Grão-Pará) (a) 1872-1888 Agroextrativismo (Açúcar, cacau e outros) 0,63

    Mariana (Minas Gerais) (b) 1860-1869 Agricultura (Subsistência e abastecimento) 0,61

    Mariana (Minas Gerais) (b) 1870-1879 Agricultura (Subsistência e abastecimento) 0,56

    Batatais (São Paulo) (c) 1851-1887 Agricultura (Subsistência e abastecimento)

    e Pecuária 0,587

    Lorena (São Paulo) (d) 1851-1879 Agricultura (Café) 0,60

    Ribeirão Preto (São Paulo) (e) 1870-1879 Agricultura (Café) 0,61

    Oeiras (Piauí) (f) 1875 Pecuária 0,53

    São Cristóvão (Rio de Janeiro) (g) 1870 Escravidão urbana 0,46

    FONTE: (a) Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia; (b) TEIXEIRA, Heloísa Maria. Reprodução e

    famílias escravas em Mariana, 1850-1888. 2002. Dissertação (Mestrado em História Econômica) - Universidade de São

    Paulo, São Paulo; (c) GARAVAZO, Juliana. Riqueza e escravidão no nordeste paulista: Batatais, 1851-1887. 2006. Dis-

    sertação (Mestrado em História Econômica) - Universidade de São Paulo, São Paulo; (d) MARCONDES, Renato Leite. A

    Arte de Acumular Na Economia Cafeeira: Vale do Paraíba (Século XIX). Lorena: Stiliano, 1998; (e) LOPES, Luciana

    Suarez. Sob os olhos de São Sebastião. A cafeicultura e as mutações da riqueza em Ribeirão Preto, 1849-1900. 2005.

    Tese (Doutorado em História Econômica) -Universidade de São Paulo, São Paulo; (f) MARCONDES, Renato Leite; FAL-

    CI, Miridan Britto Knox. Escravidão e reprodução no Piauí: Oeiras e Teresina (1875). Texto para Discussão. Série

    Economia (TD-E/26). São Paulo: FEA/USP-Ribeirão Preto, 2001 (Mimeografado); (g) MOTTA, José Flávio; NOZOE,

    Nelson Hideiki & COSTA, Iraci del Nero da. Às vésperas da Abolição, op. cit.

    O índice de Gini calculado sobre a nossa amostra para o primeiro período analisado, se mos-

    trou superior ao encontrado para a paróquia urbana de São Cristóvão, em 1870; bastante próximo ao

    encontrado para a antiga capital do Piauí, Oeiras, que em 1875 se dedicava à pecuária; e inferior aos

    indicadores encontrados para a localidade mineira de Mariana nos anos de 1860, então dedicada pa-

    ra a subsistência e o abastecimento de Minas Gerais, e, para as localidades paulistas de Batatais, en-

    tre 1851 e 1887, e Lorena, entre 1851 e 1879 – que se votavam, respectivamente, à produção de gê-

    neros de subsistência e à pecuária, e à lavoura cafeeira. O índice de Gini calculado em torno do nos-

    so segundo período observado se mostrou superior ao encontrando para o Baixo Tocantins e a Zona

    Guajarina no período anterior e também superior aos encontrados para Mariana, na década de 1870,

    e para a localidade paulista de Ribeirão Preto, igualmente nos anos de 1870, que, assim como Lore-

    na, se dedicava ao cultivo do café. No caso da realidade analisada, em que não havia um gênero es-

    pecífico, cuja produção sobrepujasse às demais, qual(is) atividade(s) concentrava(m) o maior núme-

    ro de cativos?

  • 8

    TABELA 04

    DISTRIBUIÇÃO DOS PLANTÉIS SEGUNDO FAIXAS DE TAMANHO E AS ATIVIDADES CARACTERÍSTICAS

    DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM (BAIXO TOCANTINS E ZONA GUAJARINA, 1851-1871)

    ATIVIDADE(S) FTP ESCRAVOS

    01-09 10-19 20-49 50-99 100/+ TOTAL N MÉDIA %

    Derivados da cana-de-açúcar 04 - 01 01 - 06 132 22,0 18,0

    Derivados da cana-de-açúcar e Arroz - - - - 01 01 142 142,0 19,3

    Derivados da cana-de-açúcar e Cacau 01 - 01 - - 02 36 18,0 4,9

    Cacau 02 02 - - - 04 42 10,5 5,7

    Cacau e Café - - 01 - - 01 24 24,0 3,3

    Cacau e Algodão 01 - - - - 01 04 4,0 0,5

    Algodão - - 02 - - 02 59 29,5 8,0

    Subsistência ou Abastecimento 20 08 02 - - 30 282 9,4 38,4

    Agricultura e/ou Extrativismo 02 01 - - - 03 14 4,7 1,9

    TOTAL 30 11 07 01 01 50 735 14,7 100,0

    FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia

    No primeiro período examinado, as propriedades votadas à produção dos derivados da cana-

    de-açúcar – que em alguns casos, conjugavam esta atividade com a produção do cacau ou do arroz –

    eram as que mais concentravam escravos entre 1851 e 1871, acumulando 42,2% de todos os cativos

    computados no período. A segunda atividade que mais concentrava escravos era a produção de sub-

    sistência e abastecimento, que englobava 38,4% dos cativos coligidos. A terceira atividade que mais

    aglutinava cativos era a produção do cacau – que quando realizada exclusivamente ou em combina-

    ção com a produção do café ou do algodão – era responsável por 9,5% dos escravos de nossa amos-

    tra, para os anos de 1851 a 1871. No primeiro período de observação, sobressaíram-se, também, du-

    as propriedades produtoras de algodão, uma pertencente a Antônio Luís Pires Borralho, que empre-

    gava 21 escravos,12

    e a outra pertencente a d. Mariana de Andrade Muniz, que empregava 38 escra-

    vos;13

    juntas, estas propriedades reuniram cerca de 8% de todos os cativos analisados naqueles anos.

    12

    Centro de Memória da Amazônia (UFPA). Cartório Odon Rhossard (2ª Vara Cível). Inventários post-mortem, Cx. 15

    (1851). Inventário de Antônio Luís Pires Borralho, 1851. 13

    Centro de Memória da Amazônia (UFPA). Cartório Fabiliano Lobato (11ª Vara Cível). Inventários post-mortem, Cx.

    08 (1863-1869). Inventário de Mariana da Soledade de Andrade Muniz, 1869.

  • 9

    TABELA 05

    DISTRIBUIÇÃO DOS PLANTÉIS SEGUNDO FAIXAS DE TAMANHO E AS ATIVIDADES CARACTERÍSTICAS

    DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM (BAIXO TOCANTINS E ZONA GUAJARINA, 1872-1888)

    ATIVIDADE(S) FTP ESCRAVOS

    01-09 10-19 20-49 50-99 100/+ TOTAL N MÉDIA %

    Derivados da cana-de-açúcar - 01 02 01 - 04 188 47,0 27,9

    Derivados da cana-de-açúcar e Madeira - - - - 01 01 185 185,0 27,5

    Derivados da cana-de-açúcar e Cacau - - 01 - - 01 47 47,0 7,0

    Cacau 03 01 - - - 04 25 6,3 3,7

    Café 01 - - - - 01 08 8,0 1,2

    Borracha - 01 - - - 01 12 12,0 1,8

    Subsistência ou Abastecimento 14 06 01 - - 21 204 9,7 30,3

    Agricultura e/ou Extrativismo 02 - - - - 02 02 1,0 0,3

    Serviços domésticos 01 - - - - 01 02 2,0 0,3

    TOTAL 21 09 04 01 01 36 673 18,7 100,0

    FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia

    No segundo período analisado, cujos informes podem ser visualizados na TABELA 05, verifi-

    camos a continuidade da produção de derivados da cana-de-açúcar (com um elevado número médio

    de cativos por unidade produtora) e da produção de subsistência e abastecimento como as atividades

    que mais concentravam cativos e uma diminuição do peso relativo da produção do cacau como uma

    atividade que concentrava importante um número de escravos. Por outro lado, constatamos uma tí-

    mida diversificação nas atividades econômicas dos escravos. Essa diversificação concerne à propri-

    edade de Antônio José Henriques de Lima, no Acará, dedicada à produção da goma elástica,14

    e aos

    escravos responsáveis pelos afazeres domésticos, na residência de d. Elíbia Eufrosina Corrêa de Mi-

    randa, localizada na vila de Abaeté – um traço relevador de certos níveis de urbanização que germi-

    navam no Baixo Tocantins e na Zona Guajarina, regiões que, até então, eram emoldadas sob o signo

    de uma paisagem marcadamente rural, como podemos perceber, a propósito, pelo conjunto de ativi-

    dades descritas nas TABELAS 04 e 05.15

    A variedade de atividades desenvolvidas pelos escravistas que compõem nossa amostra evi-

    dencia uma economia que não contava com um produto específico que lhe adjudicasse maior dina-

    mismo, como a borracha chegou a representar para outras regiões do Grão-Pará. Posto que não pos-

    14

    Centro de Memória da Amazônia (UFPA). Cartório Odon Rhossard (2ª Vara Cível). Inventários post-mortem, Cx. 30

    (1874). Inventário de Antônio José Henriques de Lima, 1874. 15

    Centro de Memória da Amazônia (UFPA). Cartório Odon Rhossard (2ª Vara Cível). Inventários post-mortem, Cx. 28

    (1872). Inventário de Elíbia Eufrosina Corrêa de Miranda, 1872.

  • 10

    samos desconsiderar a importância relativa dos derivados da cana e do cacau enquanto produtos que

    conferiam algum dinamismo econômico ao Baixo Tocantins e à Zona Guajarina, a maioria dos pro-

    prietários em tela, como já destacamos, voltava-se à produção de gêneros de subsistência ou abaste-

    cimento, atividade que, mesmo mantendo vínculos regulares com o mercado era incapaz de conferir

    grande dinamismo ao Baixo Tocantins e à Zona Guajarina. Porém, cabe-nos ainda questionar: quais

    eram as características dos escravos dessas regiões? A legislação emancipacionista implicou varia-

    ções nessas características?

    As características dos escravos

    Nesta seção, analisamos as características demográficas dos cativos do Baixo Tocantins e da

    Zona Guajarina, entre 1851 e 1888. O nosso interesse recai em examinar a distribuição dos escravos

    no que concerne ao sexo e à idade,16

    em relação às diferentes faixas de tamanho de plantel e às dife-

    rentes atividades econômicas nas quais os cativos estavam empregados, observando possíveis varia-

    ções nessas distribuições ao longo do período em tela. Ao todo, é considerado um universo amostral

    constituído por 1.408 escravos, assim distribuídos: 735 cativos para o primeiro período (1851-1871)

    e 673 cativos para o segundo período de observação (1872 a 1888). Cumpre-nos reiterar, no diz que

    respeito ao segundo período de observação, que não são considerados para fins de análise, os “ingê-

    nuos” – os filhos das mulheres escravas nascidos após a Lei do Ventre Livre –, nem mesmo os cati-

    vos libertados pela Lei dos Sexagenários.

    Os informes da TABELA 06 apontam para um relativo equilíbrio na distribuição dos escravos

    do Baixo Tocantins e da Zona Guajarina entre os sexos, com pequenas variações entre os dois perí-

    odos observados: no primeiro período, a razão de masculinidade geral foi de 86,6, e, no segundo pe-

    ríodo, de 105,8. Não obstante as variações na razão de masculinidade consoante as diferentes faixas

    de tamanho de plantel – aleatórias, no caso do primeiro período,17

    e interdependentes no caso do se-

    gundo período analisado18

    –, o incremento na razão de sexo do primeiro para o segundo período em

    tela se mostrou estatisticamente significativo nos termos de nossa amostra.19

    Sem desconsiderarmos

    16

    Não nos debruçamos sobre a origem crioula ou africana dos cativos, já que os africanos perfizeram somente 1,6% dos

    escravos computados tanto no primeiro, quanto no segundo período de observação. 17

    Resultados do teste chi-quadrado: X²(8, N = 735) = 5,44, p = 0,71. 18

    Resultados do teste chi-quadrado: X²(8, N = 673) = 20,68, p = 0,01. 19

    Resultados do teste t-student: t(1405) = 1,86, p = 0,15.

  • 11

    os limites impostos pela documentação compulsada, somos levados a crer que com o avançar da se-

    gunda metade do século 19, o peso relativo dos cativos apresentou tendência ao crescimento em de-

    trimento ao peso relativo das cativas na população escrava do Baixo Tocantins e da Zona Guajarina.

    TABELA 06

    DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVOS EM FUNÇÃO DO SEXO

    (BAIXO TOCANTINS E ZONA GUAJARINA, 1851-1888)

    FTP

    SEXO

    RAZÃO DE SEXO TOTAL HOMENS MULHERES

    N % N %

    18

    51-1

    87

    1

    01-09 70 45,5 84 54,5 83,3 154 (100,0%)

    10-19 80 50,6 78 49,4 102,6 158 (100,0%)

    20-49 102 45,9 120 54,1 85,0 222 (100,0%)

    50-99 24 41,4 34 58,6 70,6 58 (100,0%)

    100/+ 65 45,8 77 54,2 84,4 142 (100,0%)

    TOTAL 341 46,5 393 53,5 86,8 734 (100,0%)

    18

    72-1

    88

    8

    01-09 58 55,2 47 44,8 123,4 105 (100,0%)

    10-19 57 46,0 67 54,0 85,1 124 (100,0%)

    20-49 101 62,0 62 38,0 162,9 163 (100,0%)

    50-99 51 53,1 45 46,9 113,3 96 (100,0%)

    100/+ 79 42,7 106 57,3 74,5 185 (100,0%)

    TOTAL 346 51,4 327 48,6 105,8 673 (100,0%)

    FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia

    Caso aferíssemos a razão de masculinidade dos cativos de nossa amostra para a segunda me-

    tade do século 19 como um todo, agrupando os dados do primeiro aos dados do segundo período de

    observação, encontraríamos a razão de sexo de 95,4. Trata-se, com efeito, de um valor praticamente

    idêntico à taxa de 95,7 – calculada a partir dos dados do Recenseamento de 1872, referentes às loca-

    lidades examinadas no Baixo Tocantins e na Zona Guajarina.20

    A comparação feita com o Recense-

    amento, para além de patentear a qualidade do nosso universo amostral no que concerne à distribui-

    ção dos escravos dessas regiões conforme o sexo, coloca-nos diante de duas questões: se por um la-

    20

    Consideramos os dados condizentes às seguintes paróquias: São Vicente de Inhangapi, Santana do Bujaru, São Do-

    mingos da Boa Vista, Santana do Capim e São Francisco Xavier de Barcarena, no município de Belém; Divino Espírito

    Santo, São José do Acará e Nossa Senhora da Soledade do Cairari no município de Moju; Santana de Igarapé-Miri e

    Nossa Senhora da Conceição de Abaeté, em Igarapé Miri; Divino Espírito Santo de Ourém e São Miguel de Guamá, no

    município de Ourém; São João Batista de Cametá, Nossa Senhora do Carmo de Tocantins e Nossa Senhora da Concei-

    ção de Mocajuba, em Cametá. A população cativa dessas freguesias era composta por 6.030 homens e 6.303 mulheres,

    perfazendo a razão de sexo de 95,7. Ver: BRASIL. Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento Geral do Império de

    1872. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger/Tip. Commercial, 1876, v. 01, p. 212.

  • 12

    do, a variação nessa distribuição entre os períodos analisados pode ter sido aleatória, por outro lado,

    é possível que os inventários post-mortem arrolados tenham sido mais “sensíveis” às eventuais vari-

    ações ocorridas naquela distribuição, entre o primeiro e o segundo período examinado.

    Interessa-nos agora, analisar a distribuição dos cativos que compõem nossa amostra segundo

    a idade. Para fins de análise, consideramos como cativos jovens, os menores de 15 anos; como adul-

    tos, aqueles entre 15 e 49 anos e como velhos, aqueles com 50 ou mais anos de idade.21

    A partir dos

    dados da TABELA 07, podemos observar que o grupo etário dos adultos, foi o que concentrou o mai-

    or número relativo de escravos nos dois períodos examinados, tendo, inclusive, concentrado a maio-

    ria absoluta dos cativos no segundo período. No primeiro período em tela, os jovens, os adultos e os

    velhos representaram, respectivamente, 40,6%, 44,8% e 14,6%. Os percentuais correlatos para o se-

    gundo período de observação foram de, respectivamente, 19,7%, 63,9% e 16,4%. Entre o primeiro e

    o segundo período observado, verificamos uma diminuição expressiva do peso relativo dos jovens –

    em grande medida, decorrente da Lei do Ventre Livre –, a manutenção do peso relativo dos velhos e

    um consequente aumento expressivo do peso relativo dos adultos – observado, igualmente, em ter-

    mos absolutos.

    As idades médias dos cativos foram, no primeiro período em tela, de 24,3 anos (DP=19,7), e

    no segundo período em tela, de 30,5 anos (DP=17,2). Ao passo que no segundo período examinado,

    as idades médias dos escravos não oscilaram significativamente segundo as diferentes faixas de ta-

    manho dos plantéis,22

    no primeiro período examinado, o mesmo não ocorreu;23

    muito provavelmen-

    te, em decorrência das características particulares do único megaplantel analisado para este período,

    cujos cativos apresentaram uma idade média de 32,1 anos – superior, portanto, às idades médias en-

    contradas para os escravos das demais faixas de tamanho de plantel, no primeiro período observado.

    Caso incluamos, na análise, a variável sexo, observaremos que no primeiro período de observação a

    idade média dos escravos (25,6 anos, DP=20,9) se mostrou superior à idade média das cativas (23,0

    21

    A classificação dos cativos acima dos 50 anos como velhos foi proposta por José Flávio Motta para o caso da Provín-

    cia de São Paulo. ver: MOTTA, José Flávio. O tráfico de escravos velhos (Província de São Paulo, 1861-1887). História:

    Questões & Debates, Curitiba, n. 52, jan.-jun./2010, pp. 41-73. 22

    Resultados do teste One-Way Anova: F(4, 659) = 2,11, p. = 0,78. 23

    Resultados do teste One-Way Anova: F(4, 722) = 7,81, p. < 0,001.

  • 13

    anos, DP=18,6).24

    No segundo período observado, a idade média dos escravos (30,4 anos, DP=17,6)

    não apresentou diferença significativa em relação à idade média das cativas (30,7 anos, DP=17,3).25

    TABELA 07

    DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVOS EM FUNÇÃO DOS GRUPOS ETÁRIOS

    (BAIXO TOCANTINS E ZONA GUAJARINA, 1851-1888)

    FTP

    GRUPOS ETÁRIOS (EM ANOS)

    IDADE MÉDIA E

    DESVIO PADRÃO

    (EM ANOS) TOTAL 0-14 15-49 50/+

    IMÉD. DP N % N % N %

    18

    51-1

    87

    1

    01-09 65 42,8 68 44,7 19 12,5 23,0 18,3 152 (100,0%)

    10-19 62 39,5 77 49,0 18 11,5 23,5 17,9 157 (100,0%)

    20-49 101 46,1 99 45,2 19 8,7 20,7 16,9 219 (100,0%)

    50-99 19 32,8 34 58,6 05 8,6 24,6 17,8 58 (100,0%)

    100/+ 48 34,0 48 34,0 45 32,0 32,1 25,5 141 (100,0%)

    TOTAL 295 40,6 326 44,8 106 14,6 24,3 19,7 727 (100,0%)

    18

    72-1

    88

    8

    01-09 22 21,4 71 68,9 10 9,7 27,4 15,6 103 (100,0%)

    10-19 22 17,7 76 61,3 26 21,0 32,0 19,1 124 (100,0%)

    20-49 32 20,1 106 66,7 21 13,2 30,4 16,5 159 (100,0%)

    50-99 26 27,4 54 56,8 15 15,8 28,2 18,0 95 (100,0%)

    100/+ 29 15,8 117 63,9 37 20,3 32,5 16,7 183 (100,0%)

    TOTAL 131 19,7 424 63,9 109 16,4 30,5 17,2 664 (100,0%)

    FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia

    Como podemos notar, o aumento nas idades médias dos cativos, do primeiro para o segundo

    período examinado,26

    foi um movimento geral, que abarcou tanto os homens cativos, quanto as mu-

    lheres cativas. No entanto, não fosse a promulgação da Lei do Ventre Livre, não teríamos encontra-

    do a expressiva diminuição do peso relativo dos jovens e, por conseguinte, o expressivo aumento do

    peso relativo dos adultos entre o primeiro e o segundo período analisado. Se agregássemos ao grupo

    etário dos jovens, os 126 ingênuos, nascidos entre 1872 e 1888, que compõem nossa amostra, a po-

    pulação escrava do Baixo Tocantins e na Zona Guajarina no segundo período em tela, seria formada

    por 32,5% de jovens, 53,7% de adultos e 13,8% de velhos. Sem perdermos de vista, aqui, o impacto

    das manumissões e da Lei dos Sexagenários e, também, o fato de os cativos viverem sob um regime

    24

    Resultados do teste t-student: t(725) = 1,66, p = 0,01. 25

    Resultados do teste t-student: t(673) = 0,37, p = 0,99. 26

    Resultados do teste t-student: t(1400) = 5,85, p = 0,003.

  • 14

    demográfico restrito,27

    somos levados a crer que, com a interrupção do fornecimento de novos cati-

    vos pelo tráfico externo e a incapacidade das elites paraenses em promover a uma renovação efetiva

    da escravaria regional a partir do tráfico interno, a população escrava do Baixo Tocantins e da Zona

    Guajarina começou a se enformar como uma clássica população pré-Industrial, que dependia de sua

    reprodução endógena e não era afetada pela emigração ou por crises de mortalidade, sendo constitu-

    ída, assim, pelo elevado número de jovens, uma maioria de adultos e o pequeno número de velhos.28

    Considerações finais

    À guisa de concluirmos, gostaríamos de destacar que, não obstante a todas as variações exis-

    tentes na estrutura da posse de escravos do Baixo Tocantins e da Zona Guajarina ao longo do século

    19, um aspecto se manteve constante: a importância da mão de obra cativa no complexo econômico

    agroextrativista estabelecido naquelas regiões. Posto que o mundo do trabalho no Baixo Tocantins e

    na Zona Guajarina não fosse circunscrito, somente, à mão de obra escrava, resta patenteada a manu-

    tenção dessa importância, ao longo de todo o Oitocentos, inclusive, no segundo período de observa-

    ção, quando o caráter de transitoriedade do escravismo brasileiro já era mais do que evidente. Entre-

    tanto, para que tal manutenção se efetuasse um fator, ao que tudo indica, foi determinante: a capaci-

    dade da escravaria do Baixo Tocantins e da Zona Guajarina em reproduzir-se endogenamente, tendo

    vista a pouca interação dessas regiões com os tráficos externo e interno. É justamente sobre essa ca-

    pacidade de reprodução endógena, que nos debruçaremos em nossos próximos trabalhos, a partir da

    análise da família escrava.

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    do sobre família, poder e economia. 2012. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia)

    - Universidade Federal do Pará, Belém.

    27

    A respeito do conceito de regime demográfico restrito da população cativa, ver: CUNHA, Maísa Faleiros da. Demogra-

    fia e Família Escrava: Franca, século XIX. 2009. Tese (Doutorado em Demografia) - Universidade Estadual de Campi-

    nas, Campinas. 28

    As Sociedades Pré-Industriais eram, em geral, caracterizadas por elevadas taxas de natalidade e de mortalidade, o que

    as levava a apresentar um grande número de “jovens” (sobreviventes, a uma também elevada mortalidade infantil) e um

    pequeno número de “velhos”. cf. dentre outros: WOOD, James W. A Theory of Preindustrial Population Dynamics. De-

    mography, Economy, and Well-Being in Malthusian Systems. Current Anthropology, Chicago, vol. 39, n. 01, Feb./1998,

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  • 15

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