1
» Ontem, o EM publicou a reação da Comissão da Verdade ao depoimento da presidente Dilma. Um grupo de historiadores de Minas foi mobilizado para analisar o testemunho. Além disso, mostrou as variadas formas de castigos sofridos por Dilma nos porões da ditadura e depoimentos de ex-companheiros de militância, como o ex- ministro Nilmário Miranda e Emely Salaza, que, mais tarde, seria presidente da Comissão Especial das Vítimas de Minas Gerais (Ceivt-MG). Intensificam-se as repercussões na imprensa nacional e internacional. ESTADO DE MINAS Q U A R T A - F E I R A , 2 0 D E J U N H O D E 2 0 1 2 POL ÍTICA EDITOR: Baptista Chagas de Almeida EDITOR-ASSISTENTE: Renato Scapolatempore E-MAIL: [email protected] TELEFONE: (31) 3263-5293 3 » O Estado de Minas iniciou domingo uma série de reportagens em que revela com exclusividade documentos, até então inéditos, que comprovam que a presidente Dilma Rousseff foi torturada nos porões da ditadura em Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, e não apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se pensava. Os documentos reproduzem o depoimento pessoal de Dilma dado em outubro de 2001, no qual ela relata com detalhes todo o sofrimento vivido em Minas como militante política de codinome Estela. O QUE JÁ FOI MOSTRADO FOTOS: REPRODUÇÃO/EM » Na edição de segunda-feira, o EM mostrou que bilhetes endereçados a Dilma e interceptados por agentes militares foram os responsáveis por novas sessões de tortura em Minas. Os militares acreditavam que ela teria organizado, no fim de 1969, um plano para dar fuga ao militante Ângelo Pezzuti, que usava o codinome Gabriel. Por causa de 22 bilhetes encaminhados para a militante Estela, um dos codinomes usados por Dilma, ela teria voltado a ser torturada. A série de reportagens teve repercussão na imprensa internacional. A presidente leu seu conteúdo antes de embarcar para o México, mas preferiu ficar em silêncio. SANDRA KIEFER E DANIEL CAMARGOS Se é certo que a ex-militante política conhecida como Estela, codinome de Dil- ma Rousseff, foi torturada em Juiz de Fora, sofrendo sessões de choque elétrico, pau de arara e até um soco nos dentes em 1970 – conforme mostrou o Estado de Minas em série de reportagens iniciada no do- mingo – pairam dúvidas sobre a real iden- tidade do torturador. Em trecho do depoi- mento pessoal concedido ao Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), em 2001, Dilma re- vela três possíveis nomes de torturadores, atribuídos a dois homens presentes nas cenas de horror vividas nos cárceres mi- neiros. Por duas vezes durante o depoi- mento, Dilma cita dr. Medeiros, que ela acredita, porém, se tratar de um nome fal- so. Esse mesmo torturador usaria tam- bém o falso nome de Lara. “Esse dr. Medei- ros aparecia de novo e ocupava um lugar central”, afirma. O terceiro nome é Joa- quim, identificado por ela como sendo um agente de segundo nível, que poderia ser um inspetor ou algo assim. Segundo a presidente, os torturadores eram possivelmente agentes do Departa- mento de Ordem Política e Social (DOPS) de Minas Gerais. “Acho que em Minas Ge- rais fui interrogada por civis, sobretudo os dois principais identificaram-se como policiais do Dops de Minas, dr. Medeiros, que era um nome falso”, informou Dil- ma, em depoimento à jovem equipe da Conedh-MG, que viajou até Porto Alegre para ouvir seis depoimentos, inclusive o da então secretária das Minas e Energia do Rio Grande do Sul. Durante os últimos 10 dias, desde que teve acesso exclusivo ao processo de Dil- ma, a reportagem do Estado de Minas conversou com pelo menos 23 pessoas de diferentes organizações políticas da época pós-64, de diversas ideologias, incluindo fontes da alta cúpula do Exército. Até ago- ra, porém, não houve como cravar a identi- dade do torturador mineiro. Coincidência é que quem assina o Inquérito Policial Mi- litar (IPM) de Dilma em Juiz de Fora, conce- dido sob tortura, é Octávio Aguiar de Me- deiros, um dos nomes mais proeminentes entre os militares da época. No início da dé- cada de 1970 ele foi comandante do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), em Belo Horizonte, e teria sido res- ponsável por acabar com o Comando de Libertação Nacional (Colina) na capital mi- neira, organização a que Dilma pertencia. Segundo os entrevistados, porém, não era de praxe que um oficial da patente desse Medeiros comandasse pessoalmen- te uma sessão de tortura. Ainda que o co- mandante do CPOR tivesse participado da tortura de Dilma, é pouco provável que a presidente não soubesse da identidade completa de Octávio Aguiar de Medeiros, dizendo em outro trecho do depoimento que dr. Medeiros se tratava de um “nome falso”. “Dilma tem memória de elefante e não iria confundir o nome de seu tortura- dor, ainda que tenham se passado 30 anos do fato”, afirma uma fonte, que conhece bem a presidente, desde a época de sua militância política em Belo Horizonte. “Embora ainda fosse um ‘zé ninguém’ em BH, perto do que se tornaria mais tarde, todo mundo sabia quem era o Medeiros naquela época do movimento estudantil”, garante outra, que prefere manter o ano- nimato. Segundo outra pessoa, “é co- mum a vítima de tortura referir-se aos participantes do cenário da tortura como sendo torturadores, ainda que não te- nham torturado com a própria mão. Ele não deixa de ser um torturador”, acredita. Octávio Medeiros morreu em 2005, aos 82 anos. Ele galgou importantes patentes na carreira militar. Em 1978, chegou a as- sumir a chefia do Serviço Nacional de Inte- ligência (SNI), em substituição a João Bap- tista Figueiredo, que assumiu o posto de último presidente da ditadura militar no país. Foi durante o período que comandou o SNI, que ocorreu o atentado fracassado no RioCentro, quando duas bombas ex- plodiram em poder dos militares no cen- tro de convenções do Rio, em abril de 1981. Outra possibilidade para encontrar o torturador da Dilma em Minas Gerais é buscar com lupa na Carta de Linhares, co- mo foi chamado o documento de 28 pá- ginas que detalha a tortura sofrida por presos em quatro locais: a Delegacia de Vigilância Social, onde funcionava o Dops; a Delegacia de Furtos e Roubos; o 12º Regimento de Infantaria, todos em Belo Horizonte, e a Polícia do Exército do Estado da Guanabara, hoje Rio de Janeiro. A principal hipótese é de que a carta foi redigida por Ângelo Pezzuti (principal dirigente do Colina e que levou Dilma a ser torturada em Juiz de Fora ao endere- çar a ela bilhetinhos com um plano de fu- ga da prisão sob o codinome Gabriel). O documento teria sido entregue aos fami- liares dele, no início de 1970. Na carta, constam os nomes de cinco torturadores: Luis Soares da Rocha, Mário Cândido da Rocha, José Pereira e José Reis. O quinto nome revela mais uma coincidência, pois é Lara Rezende, o mesmo nome do codi- nome adotado pelo torturador de Dilma. O ENDEREÇO DO HORROR Durante a ditadura militar, o Brasil teve pelo menos 234 centros de detenção e tortura em unidades do Exército, especialmente a partir da criação em todos os estados, do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), além de delegacias da Polícia Civil. Os métodos de tortura poderiam variar de centro para centro, mas, de forma geral, os castigos físicos e psicológicos aconteciam em celas especiais, equipadas com mesas, uma barra de ferro para as sessões de pau de arara, uma pequena engenhoca para choque elétricos, além da cadeira dragão, que tinha a mesma finalidade, e palmatórias. Algumas mais sofisticadas tinham proteção acústica. Outras podiam simular situações extremas como intensa escuridão, calor ou frio excessivos. As sessões eram comandadas sempre por mais de um agente, que se revezavam numa encenação macabra do bem e do mal. Para confundir as vítimas, um torturador se apresentava excessivamente agressivo, para em seguida, entrar um outro que se apresentava contrário às agressões e solicitava a colaboração espontânea. Eles se tratavam por codinomes, mas não se preocupavam em cobrir seus rostos. Alguns dos homens que ganharam fama de violentos durante o período de exceção demonstravam até certa satisfação em serem reconhecidos, como o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que tinha prazer em informar aos presos políticos ter sido autor da morte de militantes como Carlos Marighella. (Maria Clara Prates) Trecho do depoimento em que Dilma cita dr. Medeiros e outros dois nomes como seus torturadores LEIA MAIS SOBRE A TORTURA NOS PORÕES DE MINAS PÁGINA 4 Identidade do torturador mineiro que levou a ex- militante Dilma a vivenciar cenas de verdadeiro terror nos porões do estado ainda é mistério Um rosto sem nome

Ept2006p0003

Embed Size (px)

Citation preview

» Ontem, o EM publicou areação da Comissão daVerdade ao depoimento dapresidente Dilma. Um grupode historiadores de Minas foimobilizado para analisar otestemunho. Além disso,mostrou as variadas formasde castigos sofridos porDilma nos porões daditadura e depoimentos deex-companheiros demilitância, como o ex-ministro Nilmário Miranda eEmely Salaza, que, maistarde, seria presidente daComissão Especial dasVítimas de Minas Gerais(Ceivt-MG). Intensificam-seas repercussões na imprensanacional e internacional.

E S T A D O D E M I N A S ● Q U A R T A - F E I R A , 2 0 D E J U N H O D E 2 0 1 2

POLÍTICA E D I T O R : B a p t i s t a C h a g a s d e A l m e i d a

E D I T O R - A S S I S T E N T E : R e n a t o S c a p o l a t e m p o r e

E - M A I L : p o l i t i c a . e m @ u a i . c o m . b r

T E L E F O N E : ( 3 1 ) 3 2 6 3 - 5 2 9 3

3

» O Estado de Minas inicioudomingo uma série dereportagens em que revelacom exclusividadedocumentos, até entãoinéditos, que comprovamque a presidente DilmaRousseff foi torturada nosporões da ditadura em Juizde Fora, Zona da Matamineira, e não apenas emSão Paulo e no Rio deJaneiro, como se pensava.Os documentos reproduzemo depoimento pessoal deDilma dado em outubro de2001, no qual ela relatacom detalhes todo osofrimento vivido em Minascomo militante política decodinome Estela.

O QUE JÁ FOI MOSTRADO

FOTO

S:R

EPRO

DU

ÇÃO

/EM

» Na edição de segunda-feira, o EMmostrou que bilhetesendereçados a Dilma einterceptados por agentesmilitares foram os responsáveispor novas sessões de tortura emMinas. Os militares acreditavamque ela teria organizado, no fimde 1969, um plano para dar fugaao militante Ângelo Pezzuti, queusava o codinome Gabriel. Porcausa de 22 bilhetesencaminhados para a militanteEstela, um dos codinomes usadospor Dilma, ela teria voltado a sertorturada. A série de reportagensteve repercussão na imprensainternacional. A presidente leuseu conteúdo antes de embarcarpara o México, mas preferiu ficarem silêncio.

SANDRA KIEFER E DANIEL CAMARGOS

Se é certo que a ex-militante políticaconhecida como Estela, codinome de Dil-maRousseff, foitorturadaemJuizdeFora,sofrendo sessões de choque elétrico, paudeararaeatéumsoconosdentesem1970– conforme mostrou o Estado de Minasem série de reportagens iniciada no do-mingo–pairamdúvidassobreareal iden-tidadedotorturador.Emtrechododepoi-mento pessoal concedido ao Conselho deDefesa dos Direitos Humanos de MinasGerais (Conedh-MG), em 2001, Dilma re-velatrêspossíveisnomesdetorturadores,atribuídos a dois homens presentes nascenas de horror vividas nos cárceres mi-neiros. Por duas vezes durante o depoi-mento, Dilma cita dr. Medeiros, que elaacredita,porém,setratardeumnomefal-so. Esse mesmo torturador usaria tam-bémofalsonomedeLara.“Essedr.Medei-ros aparecia de novo e ocupava um lugarcentral”, afirma. O terceiro nome é Joa-quim, identificado por ela como sendoum agente de segundo nível, que poderiaser um inspetor ou algo assim.

Segundo a presidente, os torturadoreseram possivelmente agentes do Departa-mento de Ordem Política e Social (DOPS)de Minas Gerais. “Acho que em Minas Ge-rais fui interrogada por civis, sobretudoos dois principais identificaram-se comopoliciais do Dops de Minas, dr. Medeiros,que era um nome falso”, informou Dil-ma, em depoimento à jovem equipe daConedh-MG, que viajou até Porto Alegrepara ouvir seis depoimentos, inclusive oda então secretária das Minas e Energiado Rio Grande do Sul.

Durante os últimos 10 dias, desde queteve acesso exclusivo ao processo de Dil-ma, a reportagem do Estado de Minasconversou com pelo menos 23 pessoas dediferentesorganizaçõespolíticasdaépocapós-64, de diversas ideologias, incluindofontes da alta cúpula do Exército. Até ago-ra,porém,nãohouvecomocravaraidenti-dade do torturador mineiro. Coincidênciaé que quem assina o Inquérito Policial Mi-litar(IPM)deDilmaemJuizdeFora,conce-dido sob tortura, é Octávio Aguiar de Me-deiros,umdosnomesmaisproeminentesentreosmilitaresdaépoca.Noiníciodadé-cadade1970elefoicomandantedoCentrode Preparação de Oficiais da Reserva(CPOR),emBeloHorizonte,eteriasidores-ponsável por acabar com o Comando deLibertaçãoNacional(Colina)nacapitalmi-neira, organização a que Dilma pertencia.

Segundo os entrevistados, porém, nãoera de praxe que um oficial da patentedesseMedeiroscomandassepessoalmen-

te uma sessão de tortura. Ainda que o co-mandantedoCPORtivesseparticipadodatortura de Dilma, é pouco provável que apresidente não soubesse da identidadecompleta de Octávio Aguiar de Medeiros,dizendo em outro trecho do depoimentoque dr. Medeiros se tratava de um “nomefalso”. “Dilma tem memória de elefante enão iria confundir o nome de seu tortura-dor,aindaquetenhamsepassado30anosdo fato”, afirma uma fonte, que conhecebem a presidente, desde a época de suamilitância política em Belo Horizonte.“Emboraaindafosseum‘zéninguém’emBH, perto do que se tornaria mais tarde,todo mundo sabia quem era o Medeirosnaquelaépocadomovimentoestudantil”,garante outra, que prefere manter o ano-nimato. Segundo outra pessoa, “é co-mum a vítima de tortura referir-se aosparticipantes do cenário da tortura comosendo torturadores, ainda que não te-nham torturado com a própria mão. Ele

não deixa de ser um torturador”, acredita.OctávioMedeirosmorreuem2005,aos

82 anos. Ele galgou importantes patentesna carreira militar. Em 1978, chegou a as-sumirachefiadoServiçoNacionaldeInte-ligência (SNI), em substituição a João Bap-tista Figueiredo, que assumiu o posto deúltimo presidente da ditadura militar nopaís.Foiduranteoperíodoquecomandouo SNI, que ocorreu o atentado fracassadono RioCentro, quando duas bombas ex-plodiram em poder dos militares no cen-trodeconvençõesdoRio,emabrilde1981.

Outra possibilidade para encontrar otorturador da Dilma em Minas Gerais ébuscar com lupa na Carta de Linhares, co-mo foi chamado o documento de 28 pá-ginas que detalha a tortura sofrida porpresos em quatro locais: a Delegacia de

Vigilância Social, onde funcionava oDops; a Delegacia de Furtos e Roubos; o12º Regimento de Infantaria, todos emBelo Horizonte, e a Polícia do Exército doEstado da Guanabara, hoje Rio de Janeiro.

A principal hipótese é de que a cartafoi redigida por Ângelo Pezzuti (principaldirigente do Colina e que levou Dilma aser torturada em Juiz de Fora ao endere-çar a ela bilhetinhos com um plano de fu-ga da prisão sob o codinome Gabriel). Odocumento teria sido entregue aos fami-liares dele, no início de 1970. Na carta,constam os nomes de cinco torturadores:Luis Soares da Rocha, Mário Cândido daRocha, José Pereira e José Reis. O quintonome revela mais uma coincidência, poisé Lara Rezende, o mesmo nome do codi-nome adotado pelo torturador de Dilma.

O ENDEREÇODO HORROR

Durante a ditadura militar, oBrasil teve pelo menos 234centros de detenção e torturaem unidades do Exército,especialmente a partir dacriação em todos os estados, doDestacamento de Operações deInformações – Centro deOperações de Defesa Interna(DOI-CODI), além de delegaciasda Polícia Civil. Os métodos detortura poderiam variar decentro para centro, mas, deforma geral, os castigos físicos epsicológicos aconteciam emcelas especiais, equipadas commesas, uma barra de ferro paraas sessões de pau de arara, umapequena engenhoca parachoque elétricos, além dacadeira dragão, que tinha amesma finalidade, epalmatórias. Algumas maissofisticadas tinham proteçãoacústica. Outras podiam simularsituações extremas comointensa escuridão, calor ou frioexcessivos. As sessões eramcomandadas sempre por maisde um agente, que serevezavam numa encenaçãomacabra do bem e do mal. Paraconfundir as vítimas, umtorturador se apresentavaexcessivamente agressivo, paraem seguida, entrar um outroque se apresentava contrário àsagressões e solicitava acolaboração espontânea. Eles setratavam por codinomes, masnão se preocupavam em cobrirseus rostos. Alguns dos homensque ganharam fama deviolentos durante o período deexceção demonstravam atécerta satisfação em seremreconhecidos, como o delegadoSérgio Paranhos Fleury, quetinha prazer em informar aospresos políticos ter sido autor damorte de militantes como CarlosMarighella. (Maria Clara Prates)

Trecho do depoimento em que Dilma cita dr. Medeiros e outros dois nomes como seus torturadores

❚ ❚LEIA MAIS SOBRE A TORTURA NOS PORÕES DE MINASPÁGINA 4

Identidade dotorturador mineiroque levou a ex-militante Dilma avivenciar cenas deverdadeiro terror nosporões do estadoainda é mistério

Um rosto sem nome