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ERNANI MÜGGE ENSINO MÉDIO E EDUCAÇÃO LITERÁRIA: PROPOSTAS DE FORMAÇÃO DO LEITOR PORTO ALEGRE 2011

ernani mügge ensino médio e educação literária: propostas de

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  • ERNANI MGGE

    ENSINO MDIO E EDUCAO LITERRIA: PROPOSTAS

    DE FORMAO DO LEITOR

    PORTO ALEGRE

    2011

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    REA: ESTUDOS DE LITERATURA

    ESPECIALIDADE: LITERATURA BRASILEIRA, PORTUGUESA E LUSO-

    AFRICANA

    LINHA DE PESQUISA: TEORIAS LITERRIAS E

    INTERDISCIPLINARIDADE

    ENSINO MDIO E EDUCAO LITERRIA: PROPOSTAS

    DE FORMAO DO LEITOR

    ERNANI MGGE

    ORIENTADORA: PROFA. DRA. REGINA ZILBERMAN

    Tese de Doutorado em Literatura Brasileira,

    Portuguesa e Luso-africana, apresentada como

    requisito parcial para a obteno do ttulo de

    Doutor pelo Programa de Ps-Graduao em

    Letras da Universidade Federal do Rio Grande

    do Sul.

    PORTO ALEGRE

    2011

  • CIP - Catalogao na Publicao

    Elaborada pelo Sistema de Gerao Automtica de Ficha Catalogrfica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

    Mgge, Ernani Ensino Mdio e Educao Literria: Propostas deFormao de Leitor / Ernani Mgge. -- 2011. 187 f.

    Orientadora: Regina Zilberman.

    Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do RioGrande do Sul, Instituto de Letras, Programa de Ps-Graduao em Letras, Porto Alegre, BR-RS, 2011.

    1. Ensino Mdio. 2. Literatura. 3. Leitor. 4.Recepo. 5. Interdisciplinaridade. I. Zilberman,Regina, orient. II. Ttulo.

  • Para minha famlia, pelo incentivo

    em todos os momentos.

  • AGRADECIMENTOS

    minha orientadora, Profa. Dra. Regina Zilberman, pela orientao segura e

    rigorosa.

    Aos arguidores Prof. Dr. Jos Lus Jobim de Salles Fonseca, Profa. Dra. Juracy

    Ignez Assmann Saraiva e Prof. Dr. Homero Jos Vizeu Arajo pelas

    contribuies na ocasio da defesa da tese.

    Profa. Dra. Jane Fraga Tutikian, Prof. Dr. Antonio Sanseverino, Prof. Dr.

    Homero Jos Vizeu Arajo e Prof. Dr. Lus Augusto Fischer pelos ensinamentos

    ao longo do curso.

    Ao Prof. Dr. Caio Ritter, pelas sugestes na defesa do projeto, e Profa. Dra.

    Tnia Maria Kuchenbecker Rsing, na qualificao da tese.

    Aos amigos Cludia Bechara Frhlich, Roberto H. A. de Medeiros, Gabriela

    Hoffmann Lopes, Adriana Jorgge, Mrcia Regina Ribeiro e Miquias Henrique

    Mgge, pela amizade e pelo apoio.

    Ao amigo Geraldo Korndrfer, pelos inmeros momentos de reflexo e pelo

    apoio incondicional sempre.

    Aos colegas da Secretaria de Educao, Cultura e Desporto de Dois Irmos, pelo

    apoio e incentivo.

    A todos os amigos e colegas que contriburam para a realizao desse sonho.

  • RESUMO

    A presente tese defende a presena da literatura no ensino mdio com a justificativa de que,

    quando possibilitado o exerccio crtico de anlise de textos, ela desempenha papel relevante

    na formao do aluno. Entende-se, assim, que, pela sua funo formadora e social, a leitura

    literria constitui-se em um direito do aluno. O trabalho proposto evidencia uma concepo

    que privilegia a obra literria em detrimento do texto literrio em seu aspecto operacional.

    Para justificar sua necessidade e mostrar a viabilidade da execuo de projetos de leitura

    dessa natureza, apresenta-se um diagnstico do ensino mdio na atualidade e um estudo sobre

    a interdisciplinaridade, cuja prtica sugerida pelas novas orientaes ministeriais. Alm

    disso, com o intuito de discutir o conceito de letramento, recupera a trajetria da leitura

    literria no ensino mdio. A base terica constituda por preceitos da Esttica da Recepo,

    com base em Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, e estudos de Antonio Candido sobre o

    direito do ser humano literatura pela sua propenso formadora. A metodologia apresentada e

    defendida coloca o professor como articulador e mediador de propostas de anlise.

    Palavras-chave: ensino mdio, literatura, leitor, recepo, interdisciplinaridade

  • ABSTRACT

    This thesis advocates that literature be taught in secondary school, because it is relevant in the

    education of students that they be able to analyze texts critically. Thus, it is believed that, for

    its educating and social function, the students have the right to read literature. The proposed

    study shows a concept that privileges works of literature to the detriment of the operational

    aspect of literary texts. In order to justify its need and show the feasibility of performing this

    kind of reading project, a diagnosis of current secondary school education is presented, and a

    study on interdisciplinarity, a practice suggested by new ministerial guidelines. In addition,

    for the purpose of discussing the concept of literacy, it recovers the trajectory of literary

    reading in secondary school. The theoretical foundation is constituted by precepts of

    Aesthetics of Reception, based on Hans Robert Jauss and Wolfgang Iser, and studies of

    Antonio Candido on human beings right to literature because of its propensity to educate.

    The methodology presented and advocated places the teacher in the position of articulating

    and mediating proposals for analysis.

    Key-words: secondary school, literature, reader, reception, interdisciplinarity.

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................... 7

    1 O ATUAL ENSINO MDIO NO BRASIL .................................................................. 10

    1.1 UM DIAGNSTICO DO ENSINO MDIO: ACESSO E DESEMPENHO................. 11

    1.2 A NOVA PROPOSTA CURRICULAR.......................................................................... 17

    1.3 A INTERDISCIPLINARIDADE .................................................................................... 18

    1.4 OS REFERENCIAIS CURRICULARES NO RIO GRANDE DO SUL........................ 25

    2 HISTRIA DO ENSINO MDIO................................................................................... 31

    2.1 AS POLTICAS DO LIVRO DIDTICO........................................................................ 39

    2.2 A LITERATURA NO ENSINO MDIO......................................................................... 45

    2.3 A REPRESENTAO DO PROFESSOR NA LITERATURA BRASILEIRA........................ 56

    2.4 LETRAMENTO OU ENSINO DE LITERATURA?....................................................... 66

    3 TEORIAS DO TEXTO...................................................................................................... 71

    3.1 PLATO E ARISTTELES: OS PRECURSORES........................................................ 71

    3.2 A ESTTICA DA RECEPO: A NFASE NO LEITOR............................................ 75

    3.2.1 A atualizao histrica da obra e a recepo coletiva.............................................. 78

    3.2.2 Efeito esttico, recepo implcita e preenchimento de vazios................................. 81

    3.3 DIREITO: LITERATURA E HUMANIZAO..................................................... 86

    3.4 LIVRO ELETRNICO: A MARCA DA CONTEMPORANEIDADE.......................... 94

    4 PROPOSTA METODOLGICA.................................................................................... 101

    4.1 A ESCOLHA DOS TEXTOS........................................................................................... 105

    4.2 A REPRESENTAO DA FAMLIA NO CORPUS..................................................... 106

    4.3 O PAPEL DO PROFESSOR............................................................................................ 118

    4.4 O CRONOGRAMA DE ATIVIDADES.......................................................................... 121

    5 PROPOSTAS DE ATIVIDADES.................................................................................... 123

    5.1 ESA E JAC.................................................................................................................. 123

    5.2 VIDAS SECAS ................................................................................................................. 141

    5.3 DOIS IRMOS................................................................................................................. 153

    5.4 ATIVIDADES COMPLEMENTARES......................................................................... 169

    CONCLUSO..................................................................................................................... 177

    REFERNCIAS ................................................................................................................. 183

  • INTRODUO

    Ler e escrever so prticas necessrias no processo de desenvolvimento do

    conhecimento humano em uma sociedade letrada. Dessa maneira, ocupam lugar central na

    escola contempornea, espao institucionalizado que visa ao pleno desenvolvimento da

    pessoa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho

    (BRASIL, 1988, Art. 205).

    A leitura literria tem uma longa histria na educao. A literatura, de uma ou de outra

    forma, com maior ou menor prestgio, sempre circulou na escola. A finalidade do seu uso, no

    entanto, por vezes se altera: ora fortalece uma forma de pensar, ora serve de modelo para a

    valorizao de uma lngua-padro, outras vezes exemplifica estilos de poca.

    A presente tese reconhece a importncia da leitura literria na escola para a formao

    do estudante e concebe, assim, o acesso literatura como um direito. No entanto, por tratar

    especificamente do ensino mdio, por razes justificadas adiante, privilegia a obra literria

    como um todo em detrimento do texto literrio no seu aspecto operacional.

    Ao apresentar um diagnstico do ensino mdio brasileiro, justifica a necessidade de

    projetos voltados leitura literria. Ao mesmo tempo, prope alternativas viveis de

    valorizao da literatura, indicando uma metodologia que considera a reflexo e a

    participao dos alunos fatores importantes na construo do conhecimento.

    O primeiro captulo destina-se a analisar e avaliar o ensino mdio na atualidade. Para

    tal, apresentam-se estatsticas de evoluo de matrculas, marcos legais e resultados de

    avaliaes dos ltimos anos, com nfase no ENEM. O objetivo investigar em que medida as

    matrculas evoluram e qual o desempenho dos alunos demonstrado em avaliaes

    realizadas para esse fim por institutos de pesquisa ou atravs das provas do referido exame.

    A pesquisa apresenta, tambm, iniciativas dos governos federal (Nova proposta

    curricular para o ensino mdio) e estadual (Referenciais curriculares no Rio Grande do Sul),

    para adequar essa etapa do ensino contemporaneidade com vistas a qualificar o processo de

    ensino e de aprendizagem. Pela importncia que recebe nas orientaes governamentais, o

    conceito de interdisciplinaridade e a possibilidade de contempl-lo no mbito da leitura

    literria tambm entra em pauta.

    O argumento de que o acesso literatura um direito do aluno, por desempenhar

    papel relevante em sua formao quando possibilitada a anlise crtica de textos, conduz a

  • 8

    pesquisa para um estudo da sua presena na histria do ensino mdio. Nesse aspecto,

    valorizam-se as polticas em prol do livro didtico, principal veculo de introduo do texto

    literrio nas escolas. Com a finalidade de recolher mais elementos que possam confirmar a

    hiptese de que o incentivo leitura literria nas escolas brasileiras falho, analisa-se o perfil

    do professor representado em obras de expresso da literatura brasileira. A avaliao dos

    resultados realizada a partir da tica do letramento.

    O terceiro captulo constitui a base terica do trabalho. Aborda estudos desenvolvidos

    por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. A escolha desses dois tericos se justifica pela

    relevncia de seus estudos no mbito da valorizao do leitor como agente de coautoria do

    texto, fator que dialoga com a formao do indivduo na medida em que esta se d,

    especialmente, quando o ser humano participa, de forma ativa, das transformaes sociais.

    Alm disso, discutem-se as funes da literatura, priorizando-se a formadora, e o

    direito de acesso do ser humano a essa arte. Os textos Literatura e a formao do homem e O

    direito literatura, de Antonio Candido, fundamentam essa etapa. Discusses atuais sobre a

    permanncia ou no do livro impresso contextualizam os estudos.

    O quarto captulo explicita uma proposta metodolgica idealizada a partir das questes

    desenvolvidas at o momento, considerando a escolha dos textos, a eleio do tema, o papel

    do professor e o cronograma de atividades. A proposta prev a elaborao de roteiros de

    atividades, sob a perspectiva da recepo e da formao. A orientao procede dos programas

    Carrossel de Letras e Entre Estrelas e Letras1, implantados em Dois Irmos e Morro Reuter,

    respectivamente. Ambos os programas articularam uma reflexo crtica sobre a leitura e o

    tratamento dispensado aos textos literrios na escola com a concepo de atividades que

    visaram interpretao de textos que levassem produo escrita, formando o circuito ler-

    entender-produzir. As atividades sugeridas dividiram-se em trs etapas: a motivao, a leitura

    compreensiva e interpretativa do texto, e a transferncia e aplicao da leitura. Alguns dos

    resultados obtidos com o Carrossel de Letras esto reunidos na obra intitulada Literatura na

    escola: propostas para o ensino fundamental (SARAIVA; MGGE, 2006).

    No entanto, considerando alguns aspectos, como a maturidade lingustica e de leitura

    do pblico do ensino mdio, bem como os objetivos desta etapa, aliado ao fato de tratar-se de

    um projeto interdisciplinar de leitura, optou-se pela nfase a questes que promovem a

    1 Carrossel de Letras foi um programa de valorizao da leitura e da escrita promovido pela Secretaria Municipal de

    Educao, Cultura e Desporto de Dois Irmos. A ideia partiu de uma necessidade expressa pelos professores de Lngua

    Portuguesa durante uma palestra sobre o tema proferida por Juracy Assmann Saraiva. O Programa foi desenvolvido no

    municpio de 2004 a 2008. Entre Estrelas e Letras um programa da mesma natureza, promovido pela Secretaria Municipal

    de Educao e Cultura de Morro Reuter. Teve incio em 2005 e ainda se desenvolve naquele municpio.

  • 9

    reflexo. Alm disso, a proposta aqui apresentada difere daquela por tratar-se de um projeto

    de leitura, elaborado com a perspectiva de estudo da representao de uma temtica a

    famlia.

    Isso, entretanto, no afeta o argumento principal da proposio: de que a leitura de

    bons textos literrios e a sua consequente interpretao so elementos indispensveis para a

    formao integral de alunos, que saibam, a partir de um domnio mais qualificado do cdigo

    da lngua escrita, ascender a uma categoria de discentes mais preparada para enfrentar a

    sociedade atual, em que um dos principais requisitos para a insero social o domnio da

    lngua e o posicionamento crtico diante das questes do mundo contemporneo. Defende-se a

    noo de que a obra literria, no mbito da escola, quando aplicada uma metodologia

    adequada para a sua interpretao, potencializa no ser humano os requisitos necessrios para o

    bom exerccio da cidadania. Ressalte-se a importncia do professor, nesse contexto, cuja

    prtica deve ser alicerada no papel de mediao, no sentido de traar caminhos para que o

    aluno possa ter uma leitura mais qualificada, absorvendo detalhes que, em uma leitura

    superficial da obra, passam, na maioria das vezes, despercebidos.

    Entende-se que a proposta, comprovadamente eficaz e vitoriosa no mbito do ensino

    fundamental, quando aplicada no ensino mdio, poder, tambm, inscrever-se como uma

    alternativa vivel para o combate, no s aos resultados desastrosos na rea da leitura e

    escrita, comprovados pelo ENEM e outros mecanismos de avaliao que verificam a

    capacidade de leitura, compreenso e escrita dos alunos, mas tambm ao perfil pouco crtico

    dos adolescentes da atualidade. Nesse sentido, considera-se a sala de aula um lugar

    privilegiado para desenvolver as capacidades de raciocnio e o consequente exerccio de

    liberdade atravs da leitura literria.

    Portanto, a proposta de investigao cientfica aqui apresentada justifica-se sob vrios

    aspectos: por enfatizar o valor literrio do texto, uma vez que o qualifica enquanto via de

    conhecimento do indivduo e do mundo, e enquanto instrumento de motivao para a

    produo de textos por parte do aluno. De uma parte, por valorizar a funo educacional, visto

    que esta pesquisa se prope a discutir uma lacuna na escola, ao ter como alvo o aluno, leitor e

    produtor de textos, e o professor, mediador do processo de criao a partir da leitura de textos

    literrios; de outra, por explorar uma etapa da formao escolar que recebe, ainda, pouca

    ateno por parte de pesquisadores de todas as reas.

    Para exemplificao da proposta, apresenta-se uma possibilidade de idealizao de um

    projeto de anlise da representao da famlia que integre as obras Esa e Jac, de Machado

    de Assis, Vidas secas, de Graciliano Ramos, e Dois irmos, de Milton Hatoum.

  • 1 O ATUAL ENSINO MDIO NO BRASIL

    Um novo caminho para o ensino mdio no Brasil comeou a ser traado com a

    promulgao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBEN), em 1996. A partir

    da promulgao da Lei, estudiosos e profissionais da educao em geral debruaram-se sobre

    ela com a finalidade de compreender e interpretar os vrios pontos referidos e,

    posteriormente, desencadear desdobramentos em forma de textos crticos. Alm disso, os

    governos e as escolas privadas adequaram suas prticas educacionais s novas orientaes. No

    entanto, esse processo ainda no est concludo. Se muitos esforos j foram realizados no

    sentido de corresponder s expectativas postas, muitos obstculos ainda precisaro ser

    vencidos para que se possa dizer que o Brasil tem um ensino mdio de qualidade.

    Citem-se, como alguns desdobramentos da LDBEM (Lei de Diretrizes e Bases do

    Ensino Mdio), o esforo do Poder Pblico no sentido de garantir condies adequadas para a

    demanda originria da poltica de acessibilidade escola, a implantao de instrumentos de

    avaliao com a inteno de, ao mensurar a qualidade, construir um diagnstico da realidade

    educacional brasileira. Esse levantamento favorece a eleio das prioridades na medida em

    que esclarece quais os pontos mais crticos e que, por essa razo, devem receber maior

    ateno. Citem-se, como exemplo, os investimentos na qualificao das bibliotecas escolares

    e a formao dos docentes, pontos que se evidenciaram como necessrios para que se

    almejassem melhores ndices nas avaliaes. No entanto, como poderemos verificar ao longo

    desse captulo, garantia de acesso escola e qualidade de ensino no se correlacionam.

    Em 1998, ciente de que, para atingir qualidade na educao, era necessrio alavancar

    uma mudana de postura pedaggica, elaborou-se uma nova proposta curricular, em

    concordncia com a LDB. A proposta sugere prticas educacionais voltadas para a formao

    geral; ao mesmo tempo, e por consequncia, se contrape ao estilo de vida contemporneo,

    voltado ao ter, em que os valores so buscados, no no interior do ser, mas nos objetos de

    consumo imediato. Em outras palavras, isso significa a retomada da lgica do ser em

    detrimento da lgica do ter. Para que se atinja esse objetivo, o documento prope a prtica da

    interdisciplinaridade, com a finalidade de motivar iniciativas que considerem uma viso de

    mundo mais integrada e, por conseguinte, menos fragmentada.

    Com o propsito de garantir com que as novas diretrizes chegassem s escolas

    pblicas do Rio Grande do Sul, a Secretaria de Educao do Estado elaborou, em 2009, os

  • 11

    referenciais curriculares, editados sob o ttulo de Lies do Rio Grande.

    Diante dessa nova configurao, oriunda de vrias medidas governamentais, possvel

    estabelecer algumas perguntas-chave: O que se entende por interdisciplinaridade? De que

    forma a leitura literria pode se inserir em uma prtica pautada pela interdisciplinaridade?

    Qual , enfim, o espao que destinado ao ensino da literatura? Que relao pode-se

    estabelecer entre leitura literria e exerccio da cidadania?

    Essas so algumas das questes a serem respondidas ao longo deste captulo.

    1.1 UM DIAGNSTICO DO ENSINO MDIO: ACESSO E DESEMPENHO

    A Constituio de 1988, que define como dever do Estado a progressiva

    universalizao do Ensino Mdio gratuito (BRASIL, 1988, Art. 208)2, e a Lei de Diretrizes e

    Bases da Educao Nacional (LDBEN), promulgada em 1996, que determina que esse nvel

    integre o ensino bsico juntamente com a educao infantil e o ensino fundamental, so

    determinantes para a realidade que se construiu a partir desse perodo nas escolas brasileiras.

    As estratgias criadas pelos governos no sentido de expandir e qualificar o ensino

    fundamental, garantir o acesso ao ensino mdio, aliado s exigncias do mercado de trabalho,

    tm feito evoluir significativamente as matrculas para este nvel. Alm disso, a mobilidade

    social igualmente deve ser considerada. Conforme dados do Ministrio da Fazenda, Economia

    Brasileira em Perspectiva, junho/julho de 2010, divulgado 10 de agosto de 20103, a

    porcentagem de pessoas da Classe D reduziu de 27% para 24% e da classe E, de 28% para

    16%.

    Conforme dados do INEP4, o nmero de alunos matriculados no ensino mdio em

    1994 era de 5.073.307; em 1997, as matrculas j somavam 6.405.057, o que representa um

    crescimento de 26,2%. Somente de 1996 a 1997, houve um crescimento de 11,6%. Em 1999,

    registram-se 7.769.199 (sete milhes, setecentos e sessenta e nove mil, cento e noventa e

    nove) de matrculas. Segundo o censo de 2009, atualizado em 23/08/2010, o nmero de

    matrculas no ensino mdio de 8.337.160 (oito milhes, trezentos e trinta e sete mil, cento e

    sessenta). Portanto, de 1994 a 2010, ou seja, nos ltimos dezesseis anos, houve um

    2 Emenda Constitucional n 14, de 1996. 3 Disponvel em: www.fazenda.gov.br/portugues/docs/perspectiva-economia-brasileira/edicoes/Economia-Brasileira-Em-

    Perspectiva-Jun-Jul10.pdf. Acessado em 23 de outubro de 2010. 4 Disponvel em: www.inep.gov.br. Acessado em 12 de outubro de 2010.

    http://www.fazenda.gov.br/portugues/docs/perspectiva-economia-brasileira/edicoes/Economia-Brasileira-Em-Perspectiva-Jun-Jul10.pdfhttp://www.fazenda.gov.br/portugues/docs/perspectiva-economia-brasileira/edicoes/Economia-Brasileira-Em-Perspectiva-Jun-Jul10.pdfhttp://www.inep.gov.br/

  • 12

    crescimento de 3.263.853 (trs milhes, duzentos e sessenta e trs mil e oitocentos e

    cinquenta e trs) alunos nas classes do ensino mdio. No entanto, esse crescimento

    vertiginoso no se repetiu nos ltimos anos: em 2009, o ensino mdio matriculou quase 30

    mil alunos a menos que em 2008, o que representa uma queda de 0,3%. Apenas 50% dos

    jovens de 15 a 17 anos idade escolar adequada esto matriculados do 1 ao 3 ano. Dos

    8.337.160 alunos matriculados em 2009, 7.364.153 (sete milhes, trezentos e sessenta e

    quatro mil, cento e cinquenta e trs) foram para a rede pblica (federal, estadual e municipal),

    o que representa um percentual de 88,33.

    Essa demanda, em especial aps a promulgao da Lei de Diretrizes e Bases em 1996,

    recaiu sobre uma realidade estrutural5 e profissional

    6 pouco preparada para atender um

    pblico to diverso em suas condies. Esses complicadores, aliados a outros de ordem

    histrica, leva a preocupantes desempenhos do alunado deste nvel, acusados por vrios

    indicadores de pesquisa. Para Clarice Nunes,

    no h como negar que a universalizao do ensino mdio o grande problema pelo

    aumento crescente da demanda, pelas carncias tradicionais e distores de todo tipo

    que esse nvel de ensino envolve. (NUNES, 2002, p. 17)

    A avaliao da educao bsica, no Brasil, realizada, desde 1989, pelo Sistema

    Nacional de Avaliao da Educao Bsica (SAEB). No entanto, apenas a partir de 1995

    passou-se a usar a Teoria de Resposta ao Item, para permitir a comparao de resultados. Os

    testes so feitos por amostragem com estudantes da 4 e da 8 sries do ensino fundamental e

    do 3 ano do ensino mdio.

    Em 2005, foi implantada, tambm, a Avaliao Nacional do Rendimento Escolar

    (Anresc), tambm denominada Prova Brasil. A Prova serve de instrumento para captar dados

    sobre o ensino oferecido, individualmente, pelos municpios e escolas. Os primeiros

    resultados desta modalidade de avaliao datam de 2006 e correspondem aos resultados

    obtidos por outros instrumentos que tambm revelaram deficincias na educao bsica,

    mormente a pblica. Alm disso, criou-se o ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica

    (IDEB), com uma metodologia diferente: ele combina dados de desempenho em exames

    padronizados, do Prova Brasil e do Saeb, com informaes sobre aprovao, reprovao e

    abandono escolar. Dessa maneira, constitui-se em um instrumento bastante complexo e

    5 A partir da promulgao da LDB, o Ministrio da Educao motivou os estados a elaborar um documento-base que

    contemplasse o planejamento de aes e metas nas reas tcnico-administrativa e pedaggica previstas no mbito da reforma

    da sua rede de ensino mdio. A iniciativa visava ao benefcio junto ao Programa de Melhoria e Expanso do Ensino Mdio,

    financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento BID. 6 Visando melhor qualificar os professores, os governos das trs esferas (nacional, estadual e municipal) tm oferecido cursos

    de capacitao continuada.

  • 13

    eficiente para retratar a realidade escolar. O objetivo traado atingir o patamar educacional

    da mdia dos pases da Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico

    (OCDE), que de 6,0, em 2022, ano do bicentenrio da Independncia.

    O nmero de avaliados ainda insignificante, conforme os dados de 2009:

    Dados Gerais 2009

    Prova Brasil/SAEB Anos Iniciais

    5.467 Municpios

    44.765 Escolas

    2.559.566 Alunos

    Anos Finais

    5.498 Municpios

    32.901 Escolas

    2.017.221 Alunos

    Ensino Mdio

    750 Municpios

    1.644 Escolas

    56.307 alunos

    Censo Escolar

    Matrculas Ensino

    Fundamental:

    31.705.528

    Matrculas Ensino

    Mdio: 8.337.160

    Conforme avaliao do MEC, no caso do ensino mdio, o Ideb do Brasil avanou de

    3,5 para 3,6, superando a meta nacional prevista para 2009. O crescimento na faixa ocorreu

    fundamentalmente em razo do desempenho dos estudantes, que contribuiu com 57,9% do

    aumento do indicador.

    IDEB Ensino Mdio

    3,4

    3,5

    3,6

    3,0

    3,1

    3,2

    3,3

    3,4

    3,5

    3,6

    3,7

    2005 2007 2009

    IDEB

    Ensino Mdio

  • 14

    Em Lngua Portuguesa, especificamente, ocorreu um pequeno avano no desempenho:

    Desempenho Prova Brasil/SAEB

    172,3 175,8

    184,3

    231,8234,6

    244,0

    257,6 261,4 268,8

    2005 2007 2009

    Lngua Portuguesa

    Anos Iniciais EF Anos Finais EF Ensino Mdio

    O Exame Nacional do Ensino Mdio (Enem) outro instrumento de avaliao de

    desempenho. Foi criado em 1998 e tem como foco o estudante em fase final da escolaridade

    bsica ou que j concluiu o ensino mdio em anos anteriores.

    O ENEM utilizado como critrio de seleo para os estudantes que pretendem

    concorrer a uma bolsa no Programa Universidade para Todos (ProUni). Alm disso, cerca de

    500 universidades j usam o resultado do exame como critrio de seleo para o ingresso no

    ensino superior, seja complementando ou substituindo o vestibular.7

    Em 1998, no primeiro ano da prova, apenas 157.221 estudantes se inscreveram; destes,

    115.575 realizaram a prova. No questionrio, os inscritos responderam sobre os hbitos de

    leitura. Os dados mostram que pouco menos de 20 % dos entrevistados leem sempre

    romances ou livros de fico, e quase 30% no leem esse gnero.

    7 Em 2009 e 2010, o ENEM passou por importantes modificaes, que colaboraram com o aumento do nmero de

    interessados em realizar a prova. Em 2009, alm de mudanas na estrutura das questes (de 63 questes interdisciplinares

    passou-se para 45 perguntas para cada uma das quatro reas de conhecimento, com redao), o Ministrio props que

    gradualmente as universidades passem a adotar o avaliador como meio de ingresso. Assim, a funo foi alterada: de

    instrumento de avaliao de desempenho passou a pr-requisito para quem quer participar de programas de acesso ao ensino

    superior. Isso fez com que crescesse sua atratividade. A partir de 2010, os alunos que no cursaram o ensino mdio tambm

    puderam realizar a prova. Para 2011, est prevista outra mudana: a participao no Enem ser obrigatria para quem quiser

    financiar seus estudos por meio do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies).

    http://enem2010.com/category/enem##

  • 15

    Hbitos de Leitura dos Participantes do ENEM

    26,0%

    66,6%

    6,0%

    26,6%

    60,8%

    10,9%

    10,3%

    48,3%

    39,5%

    11,7%

    49,8%

    36,7%

    19,8%

    49,0%

    29,6%

    Jornais: No

    s vezes

    Sempre

    Revistas Inform. Geral:

    No

    s vezes

    Sempre

    Revistas humor/quadrinhos: No

    s vezes

    Sempre

    Revistas Cientficas: No

    s vezes

    Sempre

    Romances/livros de fico: No

    s vezes

    Sempre

    A prova foi elaborada para avaliar, no aluno, as seguintes habilidades: o domnio de

    linguagens, a compreenso de fenmenos, o enfrentamento de situaes problema, a

    construo de argumentaes e a elaborao de propostas.

    Em relao ao desempenho, tem-se o seguinte quadro:

    Desempenho dos Participantes por Nveis, nas Cinco Competncias

    LEGENDA

    Insuficiente/Regular (at 40% acerto)

    Regular/Bom (41% a 70% de acerto)

    Bom/Excelente (71% a 100% de acerto)

    Competncia I Competncia II Competncia III Competncia IV Competncia V

    8,71

    44,45

    46,84

    5,11

    42,63

    52,26

    4,99

    38,00

    57,01

    5,60

    32,55

    5,29

    39,32

    55,39

  • 16

    Mdias das notas global e por competncias Parte Objetiva e Redao

    Mdia das notas

    Parte objetiva

    Redao

    Geral

    39,4

    56,0

    Competncia I

    42,4 64,3

    Competncia II

    38,4 57,4

    Competncia III

    36,8 55,0

    Competncia IV

    39,8 55,9

    Competncia V

    39,2 47,3

    Fonte: MEC/Inep/Enem.

    Os resultados no so nada satisfatrios, ainda mais os das escolas pblicas. Na prova

    de 2009, entre as 20 melhores escolas do pas, 18 so particulares e duas pertencem rede

    pblica de ensino. As duas, no entanto, so ligadas a universidades: o Coluni, colgio de

    aplicao da UFV (Universidade Federal de Viosa), em Minas Gerais, marcou 730,2 pontos

    e ocupou a stima colocao, e o Cap-Uerj (colgio ligado Universidade Estadual do Rio de

    Janeiro), na capital fluminense, alcanou o 17 lugar, com nota 697,9.

    A prova do ENEM 2010 teve um total de 4.611.441 estudantes inscritos, atrados em

    especial pela nova funo do instrumento, que se tornou pr-requisito para o ingresso na

    universidade.

    Diante dos baixos resultados no rendimento escolar dos alunos, o governo federal tem

    tomado algumas medidas para reverter o quadro. So elas:

    1) A promulgao da Lei 12.306, de 06 de agosto de 2010, que institui o Programa

    Especial de Fortalecimento do Ensino Mdio. Por esta Lei, a Unio ficou obrigada a repassar

    aos Estados e ao Distrito Federal, no ano de 2010, um valor de R$ 800.000.000,00 (oitocentos

    milhes de reais) a ttulo de apoio financeiro. Conforme a Lei, no entanto, o Programa

    atender somente aos Estados das regies Norte e Nordeste cujo valor anual por aluno do

    ensino mdio do Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de

    Valorizao dos Profissionais da Educao - FUNDEB, em 2010, seja inferior mdia dessas

    regies.

  • 17

    2) A Lei 12.244, de 24 de maio de 2010, dispe sobre a universalizao das bibliotecas

    nas instituies pblicas e privadas de ensino do Pas. Pela referida Lei, cada escola dever

    dispor de um acervo de livros na biblioteca de, no mnimo, um ttulo para cada aluno

    matriculado. Determina, ainda, que cabe ao respectivo sistema de ensino decidir sobre a

    ampliao deste acervo conforme suas possibilidades e necessidades, bem como divulgar

    orientaes de guarda, preservao, organizao e funcionamento das bibliotecas escolares.

    Essa universalizao, conforme o Art. 3, dever ocorrer em um prazo de dez anos. Dessa

    maneira, para atender ao que prev a Lei, o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola)

    2011, em seu Edital para convocao para inscrio de obras de literatura no processo de

    avaliao e seleo, prev, tanto para os anos finais do ensino fundamental como para o

    ensino mdio, trs acervos distintos, com at 50 (cinquenta) ttulos cada, num total de 150

    (cento e cinquenta) ttulos.

    Outro fator a considerar diz respeito reforma curricular. A Lei prev que 25% da

    carga horria seja definida pelas escolas e/ou Secretarias de Educao Estaduais, com o

    objetivo de possibilitar a afinidade dos contedos ofertados com os interesses e inclinaes

    dos alunos. Assim, apesar da base nacional comum, h a possibilidade de se criar em

    currculos diversificados, o que torna possvel uma srie de inovaes no sentido de adaptar a

    escola ao seu contexto.

    1.2 A NOVA PROPOSTA CURRICULAR

    A Resoluo 15/98, do Conselho Nacional de Educao, trata da concepo curricular

    para o ensino mdio. Alguns pontos assinalados justificam o termo novo atribudo ao

    currculo proposto e resumem as iniciativas a serem tomadas para a busca da qualificao do

    ensino mdio: sensibilidade, igualdade e identidade.

    a) A esttica da sensibilidade: prev a substituio da repetio e padronizao,

    prpria das revolues industriais. Tem como meta estimular a criatividade, o esprito

    inventivo, a curiosidade pelo inusitado, a afetividade com vistas a preparar o indivduo para

    que consiga suportar a inquietao e conviver com o incerto, o imprevisvel e o diferente.

    Conforme Clarice Nunes (NUNES, 2002, p. 56), a esttica da sensibilidade realiza um

    esforo permanente para devolver ao mbito do trabalho e da produo a criao e a beleza,

    da banidas pela moralidade industrial taylorista. O intento da esttica realizar um

  • 18

    contraponto s atuais tendncias do ser humano de valorizar o que prprio do mundo

    industrial, baseado no consumo e na valorizao do ter, em detrimento de uma conscincia

    de responsabilidade em prol do que contribui para a valorizao do ser.

    b) A poltica da igualdade: tem como base o reconhecimento dos direitos humanos e o

    exerccio dos direitos e deveres da cidadania. No basta que isso esteja posto como

    determinao, como regra a ser seguida; sua prtica resulta de uma mudana de postura

    oriunda de uma conscincia de respeito e de considerao ao outro e do que a ele pertence. A

    esttica da igualdade, dessa maneira, pressupe a vivncia da esttica da sensibilidade.

    c) A tica da identidade: Tem como ideal o humanismo. Busca, atravs do

    desenvolvimento da sensibilidade e do respeito mtuo, fortalecer e orientar condutas

    resultantes, no de ensinamentos moralistas, mas do processo de construo da identidade

    atravs do reconhecimento de si e do outro. A proposta percebe a autonomia, condio

    indispensvel para juzos e escolhas para projetos de vida, como o fim mais importante

    almejado no processo da construo da identidade. A autonomia, conforme Nunes, precisa

    estar ancorada em conhecimentos e competncias intelectuais que deem acesso a significados

    verdadeiros sobre o mundo fsico e social (NUNES, 2002, p. 63). So esses conhecimentos e

    competncias que permitiro com que o indivduo possa exercer sua cidadania de forma

    plena.

    Para garantir a sensibilidade, a igualdade e a identidade nas escolas brasileiras, a LDB

    prope uma prtica baseada na interdisciplinaridade, na qual atividades e projetos de estudo

    possam relacionar as diversas disciplinas. O argumento de que todo conhecimento mantm

    um dilogo permanente com outros conhecimentos, que pode ser de questionamento, de

    confirmao, de complementao, de negao, de ampliao, de iluminao de aspectos no

    distinguidos (NUNES, 2002, p. 79).

    1.3 A INTERDISCIPLINARIDADE

    Nos ltimos anos, a palavra interdisciplinaridade tem sido pronunciada e escrita com

    muita frequncia no meio educacional, mas no sem levantar dvidas e questionamentos,

    tanto em relao ao seu conceito quanto sua aplicabilidade. Ivani C. A. Fazenda

    (FAZENDA, 1993, p. 15) registra essa afirmao, ao observar que o conceito um dos mais

    pronunciados nos eventos sobre educao ocorridos no incio da dcada de 1990, mas que,

  • 19

    apesar disso, os educadores sentem-se perplexos e no sabem como coloc-lo em prtica.

    Esse sentimento de insegurana de duas dcadas atrs ainda recorrente hoje.

    A insegurana uma marca do prprio conceito de interdisciplinaridade, muito

    prximo a outros como multidisciplinaridade, transdisciplinaridade, pluridisciplinaridade,

    todos com o mesmo propsito: dar fim viso de conhecimento baseado, arbitrariamente, na

    compartimentao; na educao, esta se apresenta em forma de disciplinas muitas vezes com

    fronteiras bem definidas e de difcil dilogo.

    O termo interdisciplinaridade surgiu na Europa, principalmente na Frana e na Itlia,

    nos anos 1960. Portanto, um movimento contemporneo ao surgimento da Esttica da

    Recepo, na Alemanha, igualmente resultado de reivindicaes de mudanas, em especial no

    meio acadmico.

    A interdisciplinaridade j influenciou a Lei de Diretrizes e Bases (Lei n 5692/71). No

    entanto, nesta, no passou da superficialidade, uma vez que se resumiu, apenas, na juno de

    algumas disciplinas nas sries iniciais (1 a 4 srie): os contedos de Histria e Geografia

    deram lugar a Estudos Sociais e Cincias Fsicas e Biolgicas a Cincias. Mas o conceito

    repercutiu de forma intensa na LDB de 1996.

    Hilton Japiass, epistemlogo e professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, foi o primeiro pesquisador a escrever, no pas, a respeito do ento novo termo

    interdisciplinaridade. Discute, em sua obra, entre outros temas, a diferena entre Inter-, Multi-

    e Pluridisciplinaridade, conceitos elaborados por Eric Jantsch, e Transdisciplinaridade, j

    proposto por Jean Piaget (1896-1980):

    - Interdisciplinaridade: Axiomtica comum a um grupo de disciplinas conexas e

    definida no nvel hierrquico imediatamente superior, o que introduz a noo de finalidade.

    - Multidisciplinaridade: Gama de disciplinas que propomos simultaneamente, mas sem

    fazer aparecer as relaes que podem existir entre elas.

    - Pluridisciplinaridade: Justaposio de diversas disciplinas situadas geralmente no

    mesmo nvel hierrquico e agrupadas de modo a fazer aparecer as relaes existentes entre

    elas.

    - Transdisciplinaridade: Coordenao de todas as disciplinas e interdisciplinas do

    sistema de ensino (JAPIASSU, 1976, p. 73, 74).

    Mesmo unidos em torno de um mesmo objetivo, os conceitos se diferenciam em seu

    mtodo de abordagem do objeto.

    Jantsch e Bianchetti (1995) promovem um outro debate acerca da prtica

    interdisciplinar, com bases mais histricas, afastando-se, nesse sentido, da concepo corrente

  • 20

    at ento, que tinha, entre os principais representantes, Ivani Fazenda. Para os autores, a

    simples parceria entre as diversas disciplinas no o suficiente para abarcar, ordenar e

    totalizar a realidade supostamente confusa do mundo cientfico. (JANTSCH; BIANCHETTI,

    1995, p. 12) Argumentam que preciso que se observe a construo histrica do

    conhecimento, manifestado de diversas formas e em diferentes contextos. Nessa nova

    concepo, no se estabelece a dualidade entre a organizao das disciplinas e a

    interdisciplinaridade; pelo contrrio, percebem uma possibilidade de parceria entre as duas

    perspectivas.

    Jantsch e Bianchetti vislumbram a possibilidade de uma prtica interdisciplinar ser

    protagonizada por um s professor, dentro de sua disciplina. Nessa perspectiva, haveria um

    ponto inicial, a partir do qual se daria um impulso para outras direes, externas a ele, mas, de

    alguma forma, carregadas de significado diante de uma concepo una de conhecimento. Essa

    prtica, parece, primeira vista, a mais vivel e a de maior sucesso no mbito da escola, pela

    sua potencialidade de construir dilogos tanto entre professores de diversas disciplinas como

    com os diversos segmentos que compem a comunidade escolar.

    consensual que algumas disciplinas constantes na grade curricular possibilitam

    maior dilogo entre seus contedos do que outras, o que implica a eleio de habilidades e

    competncias diferentes. Nesse sentido, a LDB trabalha com a ideia de trs reas de

    conhecimento, que devero compor a base nacional comum dos currculos das escolas de

    ensino mdio: Linguagens, Cdigos e suas Tecnologias, Cincias da Natureza, Matemtica e

    suas Tecnologias e Cincias Humanas e suas Tecnologias. A primeira formada por

    disciplinas, atividades e contedos relacionados com as formas de expresso, nos seus mais

    diferentes aspectos, e onde a lngua portuguesa ocupa lugar de destaque. Na segunda, aparece

    o conhecimento mais diretamente relacionado s cincias e matemtica. Finalmente, na

    terceira, as cincias humanas e sociais, como a histria, a geografia, a sociologia, a

    antropologia, a psicologia, entre outras, so agrupadas.

    Clarice Nunes chama a ateno para o fato de que o esprito da LDB muito mais

    generoso com a constituio da cidadania e no a confina a nenhuma disciplina especfica

    (NUNES, 2002, p. 111). Nesse sentido, afirma que no exclusividade das disciplinas desta

    ltima rea contribuir para a constituio da identidade dos alunos e para o desenvolvimento

    de um protagonismo social solidrio, responsvel e pautado na igualdade poltica (NUNES,

    2002, p. 111). Portanto, o objetivo de formar cidados aptos a serem protagonistas na

    sociedade deve estar presente em todas as disciplinas, o que aponta para o trabalho em equipe,

    em forma de projetos e de maneira interdisciplinar.

  • 21

    A presena, nas trs reas, do termo tecnologias justifica-se pela necessidade de o

    jovem se integrar em uma sociedade altamente tecnolgica, o que requer que o discurso do

    ensino v alm daquele que simplesmente fale sobre a presena do fenmeno; necessrio

    desenvolver atividades que deem conta da aplicabilidade prtica em todos os setores da vida,

    inclusive da arte.

    Portanto, tendo por base a interdisciplinaridade, o objetivo trabalhar com o conceito

    de integrao, promovendo no aluno capacidades e competncias para que suas atitudes e

    aes se deem a partir de uma viso abrangente de mundo. No entanto, o trabalho

    interdisciplinar no pode ser mera justaposio de disciplinas, nem diluio delas em

    generalidades (NUNES, 2002, p. 78).

    A interdisciplinaridade pressupe troca, dilogo, interao entre duas ou mais

    disciplinas. Consiste, portanto, em aproximaes entre temticas comuns que visem a uma

    viso mais abrangente de um objeto, atravs de anlise. Para isso, necessrio haver

    cooperao, engajamento, contribuio mtua por parte dos agentes no sentido de construir

    uma proposta conjunta que integre os diversos ramos de conhecimento. Assim, cria-se um

    outro espao de saber, intermedirio s disciplinas envolvidas.

    Uma prtica nessa direo exige a quebra de limites muitas vezes sedimentados, com

    avanos para outras reas. Essa quebra de paradigmas pode resultar em questionamentos e

    incertezas para o professor.

    Pode-se afirmar, dessa maneira, que um trabalho interdisciplinar traz em seu bojo nus

    e bnus. Se, por um lado, a integrao de saberes presentifica prticas que objetivavam

    domnio de saber mais amplo e geral, por outro requer disposio para posicionamentos

    diferentes daqueles aos quais se possa estar habituado como professor, o que implica

    incertezas e inseguranas.

    Esse, no entanto, no o nico ponto para o qual convergem as dvidas para a efetiva

    implementao de propostas interdisciplinares. Necessitam-se, tambm, de espaos e tempos

    para debates acerca das construes, o que nem sempre vivel nas escolas brasileiras.

    As Unidades Federativas, a partir da LDB/1996, criam seus prprios documentos para

    evidenciar estratgias e iniciativas e tornar claras as perspectivas com fins melhoria da

    qualidade da educao.

    A interdisciplinaridade uma proposta integradora de disciplinas; a obra literria, um

    objeto carregado de elementos que apontam para o ser humano como um todo e, assim,

    propenso a desenvolver nele a reflexo acerca de sua prpria identidade e a de seus

    semelhantes. Essa potencialidade inata de cada uma permite a integrao entre elas.

  • 22

    Dois caminhos parecem, primeira vista, possveis no atual contexto. O segundo pode

    ser complementar ao primeiro, na medida em que suscita frentes de reflexo que abrangem

    disciplinas afins:

    1) Uma proposta que parta de um s professor/disciplina, no caso o de Literatura.

    2) Uma proposta que tenha como base a leitura de determinada(s) obra(s) e que

    contemple a concepo de um projeto de leitura literria que integre toda a comunidade

    escolar.

    A primeira proposta tem como possibilidade o desenvolvimento das atividades nas

    prprias aulas de Literatura. Para isso, pode sugerir a obra que considerar apropriada para o

    trabalho, com base em critrios que estejam de acordo com o objetivo que pretende alcanar.

    Um deles pode ter como base a classificao da obra em determinada poca literria, o que

    pode fazer com que as informaes apresentadas sobre o estilo do conjunto das obras, como,

    por exemplo, as caractersticas, sejam mais bem compreendidas e, inclusive, memorizadas.

    As possibilidades apresentadas, apesar de diferentes em sua elaborao e

    concretizao, apontam para uma mesma concepo de aquisio de conhecimento: que ela se

    materializa por conexes mentais.

    Angela B. Kleinman e Silvia E. Morais sintetizam com propriedade essa ideia ao falar

    da metfora da rede em construo:

    a cognio o resultado de um processo mental dinmico e ativo que se desenvolve

    por meio de conexes entre pessoas, objetos, conceitos, preconceitos, intuies,

    smbolos, metforas, enfim, uma intrincada rede de associaes, e que o aprendiz

    sujeito ativo engajado na construo de sua prpria rede de conhecimentos

    (KLEINMAN; MORAIS, 1999, p. 47).

    Em relao ao professor, elas comentam: A funo mais importante do professor a

    de facilitador ou mediador dessa construo. Portanto, ele pea fundamental na conduo

    desse trabalho.

    Segue-se a definio para o fenmeno da construo do conhecimento: construo

    de significado que, conforme as pesquisadoras, articula-se com seis domnios:

    - simblico: relativo linguagem;

    - emprico: relativo s cincias do mundo fsico, da natureza;

    - esttico: prprio das artes, msica, artes visuais, artes do movimento e literatura;

    - sinotico: refere-se ao conhecimento experiencial pessoal, direto e existencial;

    - tico: inclui significados morais que expressam obrigao em vez de fato, formas

    perceptuais ou compreenso de relao;

  • 23

    - sinptico: que abrange a construo de conceitos na histria, religio e filosofia que

    integram os outros em todos coerentes.

    Portanto, um currculo desse tipo englobaria linguagem, matemtica, cincia, arte,

    relaes pessoais, moral, histria, religio e filosofia (KLEINMAN; MORAIS, 1999, p. 48).

    As autoras consideram a atividade verbal uma construo de sentidos (KLEINMAN;

    MORAIS, 1999, p. 48). Ela pode dar-se a partir de um texto j escrito ou em construo.

    Portanto, constitui-se em requisito bsico para a construo inicialmente do sentido e, depois,

    do conhecimento.

    Baseado nisso, possvel chegar seguinte concluso: a sala de aula e, por extenso, o

    ambiente escolar, constitudo por sujeitos (alunos, professores, funcionrios, pais, enfim,

    todos os segmentos que compem a comunidade escolar) , por conseguinte, um espao

    social, que por sua vez pressupe interao, troca, sendo, dessa maneira, um lugar de

    construo de conhecimento social.

    A escola, ocupando esse lugar, deve privilegiar construes que possibilitem

    interaes dos diversos segmentos em torno do objeto a ser estudado, para que o

    conhecimento se torne mais significativo para todos os envolvidos, criando-se, dessa maneira,

    uma rede de novas significaes e, portanto, de transformaes.

    A obra literria pode ser considerada, por sua natureza constitutiva, um instrumento

    que permite integrar os sujeitos em torno dos mesmos objetivos, e de uma forma com que

    diversas reas do conhecimento tambm se correlacionem. A fico constri espaos que

    repercutem temticas acerca da condio humana. Assim, dialogam com diversos campos do

    conhecimento, tornando-se material adequado para a prtica interdisciplinar.

    Atraindo em torno de si pessoas em interao, a narrativa literria retorna ao seu lugar

    de origem, que era a de integrar as pessoas, em crculo, fazendo da aprendizagem um

    movimento social, rompendo com o conhecimento compartimentado e a construo do saber

    na individualidade.

    Um dos papeis do professor, portanto, est posto: o de ser mediador desse processo

    social de construo de conhecimento a partir do texto literrio. Isso se torna vivel, quando a

    escola promove espaos para planejamentos coletivos; talvez este ainda seja um grande

    entrave, visto que a organizao da estrutura escolar no permite, muitas vezes, que os

    professores possam se reunir com essa finalidade.

    So vrias as possibilidades de construir projetos dessa natureza. No entanto, sejam

    quais forem as aes e metodologias empregadas, a centralidade deve estar na obra. Colocada

    ao centro, ela se legitima como elemento irradiador, possibilitando com que sujeitos e

  • 24

    conhecimentos circulem em sua rbita de forma integrada.

    O fim ltimo da interdisciplinaridade o movimento integrador entre disciplinas e

    seus contedos e dos sujeitos envolvidos em torno das construes dos saberes.

    Para Kleiman e Moraes, um projeto em torno da leitura integra atividades cuja

    realizao envolve ler para compreender e aprender aquilo que for relevante para o

    desenvolvimento de alguma outra atividade, conceito, valor, informao (KLEINMAN;

    MORAIS, 1999, p. 55). Dessa maneira, ao promover o circuito ler, compreender, produzir,

    est-se promovendo o sujeito que, ocupando o lugar tambm de agente, muda a si mesmo e o

    espao em que est inserido, atravs de uma atitude cidad. Portanto, nessa concepo, o

    domnio da leitura e da escrita so pr-requisitos para o exerccio da cidadania.

    Promovendo o encontro entre a obra literria e os vrios sujeitos envolvidos no

    processo de ensino e de aprendizagem, tendo em vista a formao do aluno de ensino mdio a

    partir de uma perspectiva interdisciplinar, possvel vislumbrar os seguintes resultados:

    - Aprimoramento da capacidade de leitura e de escrita;

    - Refinamento da capacidade de reflexo e ao;

    - Desenvolvimento da oralidade;

    - Valorizao da obra literria;

    - Percepo do mundo como um todo;

    - Desenvolvimento da capacidade de reflexo sobre si mesmo e sobre o mundo;

    - Construo de sentidos;

    - Estmulo imaginao e ao desenvolvimento do raciocnio;

    - Concepo de construo do saber como uma atividade social.

    Dessa maneira, a escola estar cumprindo com seu papel mais nobre, apresentado com

    nfase na sua filosofia: preparar o aluno para o exerccio consciente da cidadania. literatura,

    por sua vez, concedido espao e lugar de honra, no com vistas a apenas exemplificaes da

    bela escrita e caracterizaes de pocas literrias, mas enquanto objeto com recursos para

    referendar reflexes crticas acerca da natureza humana. E esse talvez seja o papel mais

    pertinente que se possa atribuir a ele, uma vez que por sua natureza carrega em si um

    potencial que no dialoga com aplicaes prticas.

    No entanto, por uma srie de razes, essa prtica no acontece na maioria das

    instituies. A leitura literria est muito mais para a valorizao do texto em si do que para a

    promoo da literatura como um bem cultural ao qual o aluno tem direito inquestionvel. O

    motivo mais forte dessa prtica possivelmente esteja relacionado ao prprio descrdito da

    literatura entre o corpo docente brasileiro. Ezequiel Teodoro da Silva, com base em pesquisas

  • 25

    acerca da prtica de leitura de professores, conclui: o retrato do professor-leitor , sem

    dvida, de muita amargura (SANTOS, 2009, p. 34). Na medida em que a sociedade e, em

    especial, o professor no percebe a literatura como uma fonte inesgotvel de conhecimento e

    no identifica nela a sua funo formadora e social, as iniciativas para promov-la no

    ocorrem, e o texto literrio identificado como um instrumento para se atingir determinados

    objetivos da disciplina.

    1.4 OS REFERENCIAIS CURRICULARES NO RIO GRANDE DO SUL

    O Estado do Rio Grande do Sul, atravs de sua Secretaria de Educao, elaborou, em

    2009, um documento com o ttulo de Lies do Rio Grande Referencial Curricular para as

    escolas estaduais. Conforme Mariza Abreu, Secretria de Educao que assina a apresentao

    do documento, ele tem a pretenso de constituir um ponto de equilbrio entre a centralizao

    total das iniciativas na secretaria e a liberdade plena para as escolas construrem seus

    currculos. Dessa maneira, apresenta as habilidades e competncias cognitivas e o conjunto

    mnimo de contedos que devem ser desenvolvidos nos quatro anos finais do ensino

    fundamental e no ensino mdio, sob a responsabilidade do estado. A ideia que, com base

    nesse Referencial, cada escola organize seu prprio currculo. Relativiza-se, portanto, a

    liberdade da escola, na medida em que seu papel reside

    na liberdade de escolher o mtodo de ensino, em sua livre opo didtico-

    metodolgica, mas no no direito de no ensinar, de no levar os alunos ao

    desenvolvimento daquelas habilidades e competncias cognitivas ou de no abordar

    aqueles contedos curriculares (RS, 2009, p. 10).

    Neste documento, a interdisciplinaridade quase uma palavra de ordem. J na

    abertura, citada uma definio de currculo de Nilson Jos Machado, o que reflete a

    tendncia para o rompimento com a ideia de fronteiras rgidas entre as disciplinas:

    O objetivo principal de um currculo mapear o vasto territrio do conhecimento,

    recobrindo-o por meio de disciplinas, e articular as mesmas de tal modo que o mapa

    assim constitudo constitua um permanente convite a viagens, no representando

    apenas uma delimitao rgida de fronteiras entre os diversos territrios disciplinares

    (RS, 2009, p. 11).

    O currculo considerado, por Guiomar Namo de Mello, como o ncleo da proposta

  • 26

    pedaggica (RS, 2009, p. 11). A nova proposta rompe com a noo de que, na escola, deva

    existir, alm do currculo, um currculo extra, com a finalidade de fazer um contraponto entre

    as aulas que primavam pela memorizao e que, por essa razo, no eram atraentes ao aluno.

    O desafio contemporneo construir um currculo atraente na medida em que os contedos

    so trabalhados em contextos que faam sentido para os alunos (RS, 2009, p. 12). Assim, o

    currculo apresenta um equilbrio entre a prescrio estrita e aberta, sendo esta a que permite

    que a escola crie e inove, sugerindo material complementar, exemplos de atividades,

    pesquisas, projetos interdisciplinares, sequncias didticas (RS, 2009, p. 13). Portanto, se por

    um lado est delineado o que comum a todas as escolas, por outro h autonomia para que

    cada uma opte por iniciativas que estejam de acordo com as expectativas da comunidade

    escolar.

    Em meio a uma breve anlise da sociedade contempornea, so transcritos os

    objetivos que se querem alcanar:

    urgente garantir que a permanncia na escola resulte em aprendizagens de

    conhecimentos pertinentes. Conhecimentos que os cidados e cidads sejam capazes

    de aplicar no entendimento de seu mundo, na construo de um projeto de vida

    pessoal e profissional, na convivncia respeitosa e solidria com seus iguais e com

    seus diferentes, no exerccio de sua cidadania poltica e civil para escolher seus

    governantes e participar da soluo dos problemas do pas (RS, 2009, p. 17).

    O documento concebe a aprendizagem como um processo coletivo. Coloca-a em

    contexto e aposta na interdisciplinaridade na medida em que ela resulta de estratgias

    facilitadoras para que o processo se consolide (RS, 2009, p. 22). As DCNs (Diretrizes

    curriculares nacionais) definem a aprendizagem em contexto como um recurso de que a

    escola dispe para tornar o aluno um sujeito de transformao, na medida em que se

    estabelece um vnculo entre ele e o objeto do conhecimento (apud RS, 2009, p. 23). Dessa

    maneira, a contextualizao evoca reas, mbitos ou dimenses presentes na vida pessoal,

    social e cultural, e mobiliza competncias cognitivas j adquiridas (apud Parecer 15/98 da

    Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao).

    A interdisciplinaridade, por sua vez, compreendida como um caso particular de

    contextualizao. Como os contextos so normalmente multidisciplinares, um contedo em

    contexto presentifica outras reas de conhecimento (RS, 2009, p. 23). Assim, a

    interdisciplinaridade acontece naturalmente desde que haja sensibilidade para o contexto.

    Como a interdisciplinaridade se d de diversas formas, possvel ao professor disciplinarista,

    individualmente, realizar a interdisciplinaridade de um professor s, observa o documento,

  • 27

    desde que identifique e faa relaes entre o contedo de sua disciplina e o de outras,

    existentes no currculo ou no (RS, 2009, p. 24).

    Assim, ela

    no precisa, necessariamente, de um projeto especfico. Pode ser incorporada no

    plano de trabalho do professor de modo contnuo; pode ser realizada por um

    professor que atua em uma s disciplina ou por aquele que d mais de uma, dentro

    da mesma rea ou no; e pode, finalmente, ser objeto de um projeto, com um

    planejamento especfico, envolvendo dois ou mais professores, com tempos e

    espaos prprios (RS, 2009, p. 24).

    Evidencia-se, nessa afirmao, que o objetivo principal do governo do estado fazer

    com que o professor repense sua prtica e considere a possibilidade de relacionar os

    contedos de sua disciplina com outras afins.

    Conforme a Legislao, a Literatura insere-se, ao lado da Lngua Portuguesa, da

    Lngua Estrangeira Moderna, da Arte (Artes Visuais, Dana, Msica e Teatro) e da Educao

    Fsica, na rea Linguagens e Cdigos. As disciplinas compem o conjunto por terem como

    linha em comum a capacidade de articular significados coletivos em cdigos. Elas

    compartilham princpios, competncias, conceitos e prticas que possibilitam uma

    articulao didtico-pedaggica interna (p. 38).

    So dois os princpios que orientam essa rea: o direito fruio e o exerccio da

    cidadania. Ambos trazem a ideia de que educar , acima de tudo, construir subjetividades.

    Para tal, nessa rea, a autoria constitui-se ponto estratgico e fundamental: princpio

    fundamental que, na vida cotidiana, privada e pblica a um s tempo, professores e alunos

    sejam sujeitos autores, agentes e responsveis (p. 39). O documento vai alm, afirmando que

    ser autor implica abertura para que a singularidade de cada um possa ser construda; no

    entanto, tambm esclarece que essa singularidade envolve responsabilidade. Ser autor

    significa assumir-se diante do outro, mas no neg-lo.

    Os Referenciais Curriculares da educao bsica do Rio Grande do Sul apresentam

    trs competncias transversais que devem ser objetivadas por todas as reas: ler, escrever e

    resolver problemas. No que tange leitura, cabe ao aluno atribuir sentidos ao texto. Para isso,

    necessrio que ele o decodifique, participe dele, use e analise-o. escrita esto ligadas

    aes como codificar sinais (letras, sons, imagens, gestos) com o propsito de expressar

    significados possveis, participar da construo de sentidos do texto, selecionar e usar esses

    recursos, analisar criticamente o texto construdo (p. 39).

    Ana Mariza Ribeiro Filipouski, Diana Maria Marchi e Luciene Juliano Simes

  • 28

    assinam o Referencial Curricular de Lngua Portuguesa e Literatura. Inicialmente, as autoras

    justificam o fato de os dois componentes curriculares constiturem uma s disciplina (p. 53):

    - Tanto na Lngua quanto na Literatura a centralidade est no texto, e as duas so fen-

    menos eminentemente dialgicos, frutos do trabalho de linguagem de sujeitos histricos, da

    ao interacional de sujeitos situados;

    - estabelece-se uma intensa relao entre os fenmenos da lngua e da literatura na

    constituio histrica do portugus como lngua representativa de uma cultura;

    - no apenas a linguagem a matria-prima a partir da qual a literatura constituda,

    mas a literatura , entre os diferentes usos da lngua portuguesa, aquele mais vinculado

    produo de um conhecimento de si e do mundo especificamente fundado no fenmeno da

    lngua, limitado ao mesmo tempo por seus constrangimentos e viabilizado pelos seus

    potenciais expressivos. Aprender e ensinar lngua portuguesa significa tambm aprender e

    ensinar literatura, e vice-versa.

    Compreenso oral, leitura, escrita e fala so diretrizes fundamentais para o ensino da

    disciplina; o trabalho deve partir do texto e a ele chegar. Nessa perspectiva, o texto

    compreendido como um desencadeador de ideias que, entre sujeitos em interao, provocam

    debates acerca de temticas. A finalidade da leitura e o gnero lido vo desencadear aes-

    respostas diferentes, ampliando, dessa maneira, o nvel de letramento do aluno. Isso justifica o

    esforo em prol de converter a leitura em produo de sentidos, garantido pela adequada

    anlise e interpretao do texto.

    Portanto, h que se considerar dois envolvimentos para que o ato de leitura se realize a

    contento: o acesso do aluno a diferentes gneros e a interao entre o pblico leitor.

    Em relao s prticas pedaggicas, as autoras apresentam alguns procedimentos:

    - preparao, que se resume em tarefas com vistas a criar um suporte de

    conhecimentos necessrios para a leitura, como conhecimento da temtica, do gnero ou

    recursos lingusticos utilizados;

    - leitura e compreenso global do texto: na leitura literria, so finalidades acordadas

    entre professor e alunos;

    - contrato de leitura: baseia-se nas tarefas que devem ser realizadas fora da escola,

    tanto de leitura quanto de atividades sobre ela, considerando sempre que as leituras devem ser

    socializadas. Aconselha-se que o professor, em conjunto com a pessoa responsvel pela

    biblioteca, deixe um nmero considervel de obras ao alcance dos alunos, garantindo, entre

    elas, uma parte considervel de textos cannicos. Com a finalidade de visualizar a histria de

    leitura de cada aluno, cabe ao professor anotar os ttulos lidos por cada aluno.

  • 29

    - Estudo do texto: o momento em que se propem tarefas das mais variadas, seja

    sobre passagens do texto, vocabulrio, implcitos, etc. A finalidade qualificar os atos de

    leitura. Essa etapa no precisa, necessariamente, ser realizada com todos os textos, como

    ocorre nos procedimentos leitura e compreenso global.

    - Resposta ao texto: consiste na atividade final sobre o texto, que fecha o ciclo de

    leitura. Pode ser a produo de um outro texto a partir das informaes obtidas durante a

    leitura.

    Segue-se uma explanao a respeito de como fazer, ou seja, apresenta-se um guia

    para que o professor da rede estadual possa organizar seu trabalho com o texto literrio. No

    quadro, as autoras apresentam diferentes etapas de organizao de atividades a serem seguidas

    para que a escola possa obter sucesso na formao do leitor literrio. A cada atitude sntese

    corresponde uma breve descrio.

    As etapas constantes (p. 92) so as seguintes:

    - Abordar diferentes habilidades de leitura literria;

    - Propor leitura de gneros variados;

    - Planejar leituras progressivamente mais complexas;

    - Apresentar bons exemplos de leitura em colaborao;

    - Realizar releituras em dupla ou individualmente;

    - Demandar leitura extensiva e espao para discuti-la;

    - Oportunizar leitura individual supervisionada;

    - Estimular a leitura recreativa por meio de contratos de leitura;

    - Promover momentos de sntese das aprendizagens.

    Portanto, a proposta coerente com o que as autoras explicitaram anteriormente,

    privilegiando alguns aspectos importantes como: o cuidado com a complexidade da obra

    quando de sua proposio, a promoo dos diversos gneros, a realizao de atividades de

    leitura dentro e fora da escola, a socializao dos resultados da leitura.

    Para a organizao do trabalho, o documento sugere e apresenta quadros para cada

    etapa escolar, considerando, para sua elaborao, a articulao entre temas e gneros de

    discurso, considerados os eixos estruturantes. Para o 1 ano do ensino mdio, por exemplo,

    sugere-se como tema da unidade Zoom: olhe de perto e invente seu cotidiano e como

    gnero estruturante a crnica; para o 2 ano, o tema Leitura e leitores, e o gnero o ensaio;

    no 3 ano, o tema O lugar social da arte, e os dois gneros, o texto de opinio e o poema.

    Mesmo que tenha transcorrido mais de uma dcada desde a promulgao da Lei de

    Diretrizes e Bases da Educao, os resultados esperados com a iniciativa ainda so incertos e

  • 30

    duvidosos. Se, por um lado, se garantiu a democratizao da educao, a sua qualidade, uma

    das metas previstas, ainda no se instalou na maioria das escolas brasileiras. Esse fator leva a

    concluir que resultados no mensurveis, como as condies para o exerccio da cidadania,

    outro objetivo a ser alcanado, tambm esto aqum do esperado. Essa concluso possvel

    quando se entende o domnio das habilidades e competncias cognitivas bsicas, que tem

    como fundamento a leitura, a escrita e a matemtica, enquanto pr-requisitos para a

    capacidade de compreenso do mundo que qualifica a pessoa para a prtica cidad.

    Conforme se pode verificar, vrias aes foram realizadas no sentido de buscar a

    qualidade. Suficientes ou no, carregam a marca da mudana, na qual a aposta nas estratgias

    pedaggicas tem seu lugar de honra. A aposta est, pois, na forma de ensinar. Os contedos

    apresentados devem se tornar significativos para os alunos na medida em que estabelecem

    conexes entre si, nas diversas disciplinas, e dialoguem com a realidade do aluno. O

    professor, nesse contexto, no exerce mais o papel de detentor do conhecimento e responsvel

    nico pela transmisso desse manancial de informaes, muitas vezes fragmentado e

    desconectado do mundo do aluno, para assumir uma postura de mediador. O aluno, por sua

    vez, abandona o lugar de quem no sabe e, por essa razo, precisa aprender, para protagonizar

    as aes com fins garantia de aprendizagem a partir de interaes.

    Em relao ao trabalho com o texto literrio, possvel constatar que a atual legislao

    no s garante o seu espao na escola, como tambm lhe atribui, entre outros papeis, o de

    humanizar o homem coisificado (BRASIL, 2006, p. 53). Para isso, esclarece o prprio

    documento, preciso ir alm da prtica comum, que sobrecarrega o aluno com informaes

    sobre pocas, estilos, caractersticas de escolas literrias, etc. (BRASIL, 2006, p. 54).

    Prope-se o letramento literrio, que consiste na formao do leitor atravs da apropriao

    daquilo a que tem direito (p. 54). Isso possvel, conforme o prprio texto, atravs do

    contato efetivo com o texto, da possibilidade de sentir o estranhamento do texto, de

    vivenciar o prazer esttico.

    No entanto, da teoria para a prtica h um longo caminho. Legislaes e aes no

    sentido de permitir o acesso ao livro so apenas os primeiros passos para tornar a leitura

    literria uma prtica escolar.

    So necessrios esforos no sentido de refletir sobre aes e estratgias que possam

    resultar em instrumentos metodolgicos para que o aluno possa analisar criticamente a

    literatura e, assim, apropriar-se de seu contedo.

  • 2 HISTRIA DO ENSINO MDIO

    No Brasil, a etapa que hoje denominada de ensino mdio teve incio na poca

    colonial, por meio de um modelo educacional implantado por religiosos da Igreja Catlica,

    mais precisamente pela ordem dos jesutas. denominado Curso de Letras e Filosofia.

    Ele atende a uma demanda de alunos (somente do sexo masculino), filhos da elite

    brasileira que, tendo concludo o perodo de alfabetizao, buscam aperfeioamento para

    ingressar em universidades europeias. Lana-se uma ideia de etapa intermediria entre a base,

    o fundamento, e os estudos superiores, visando a uma preparao para o ingresso na

    universidade. O curso de Letras abrange as disciplinas de Gramtica Latina, Humanidades e

    Retrica. Conforme Tobias, um ensino mdio raqutico e despersonalizado, cada vez mais

    fora da realidade brasileira (1986, p. 42).

    Os jesutas permanecem como mentores da educao brasileira at 1759, portanto,

    durante 210 anos, quando so expulsos de todas as colnias portuguesas por deciso do

    primeiro-ministro de Portugal (1750-1777), o Marqus de Pombal (Sebastio Jos de

    Carvalho e Melo). Atravs do Alvar Rgio de 28 de junho de 1759, Pombal extingue as

    escolas jesuticas de Portugal e de todas as colnias, criando, ao mesmo tempo, as aulas rgias

    ou avulsas de Latim, Grego, Filosofia e Retrica, que devem suprir as disciplinas antes

    oferecidas.

    A ideologia da reforma pombalina, no campo da educao, tem os seguintes

    princpios:

    a) valorizar a lngua portuguesa;

    b) dificultar o acesso dos alunos ao nvel secundrio, quer seja pela dificuldade nos

    exames, ou pela limitao dos professores rgios, os quais eram, eles mesmos, a prpria

    escola;

    c) instruo baseada na educao nobre, tendo como caracterstica a valorizao dos

    escritores clssicos portugueses e a cultura clssica antiga. (CASTRO, 1986, p. 324)

    Com a vinda da Famlia Real (1808) e a posterior independncia do Brasil (1822), o

    objetivo passa a ser a formao das elites dirigentes do pas, portanto, a educao aponta

    apenas para um segmento da sociedade, a mais privilegiada em termos econmicos. Ento, se,

    por um lado, no h estrutura tcnica para dar conta de uma educao abrangente e eficaz para

    toda a populao jovem brasileira, por outro, vigora a ideologia segmentria e excludente do

    Poder. A prioridade passa a ser a criao de universidades e o fortalecimento das escolas

  • 32

    secundrias para preparar o ingresso dos alunos desse segmento aos cursos superiores. A

    montagem de um sistema de ensino integrado em todos os seus graus e modalidades

    (PILETTI, 2008, p. 145) no efetivada.

    A partir de 1822, ano da independncia, o ensino se torna assunto importante nos

    meios polticos, porm sem que se chegue a um consenso, em especial no que concerne ao

    ensino secundrio. Um fato representativo ocorre em 1834, com o Ato Adicional, que delega

    s provncias a responsabilidade de regulamentar e promover a educao primria e

    secundria, o que suscita uma dualidade de sistemas, com superposio de poderes

    (provincial e central). (ROMANELLI, 2007, p. 39) Como os candidatos ao ensino superior

    so examinados nos cursos superiores, o ensino secundrio estrutura seu ensino de acordo

    com as exigncias deles.

    Outro fator resultante do Ato Adicional foi a entrada gradativa da iniciativa privada na

    gesto do ensino secundrio, uma vez que as provncias no possuem recursos para promov-

    lo a contento. O resultado repercute na acessibilidade: apenas os alunos advindos de famlias

    com melhores condies financeiras podem frequentar esse grau de ensino.

    Em 1837, com a fundao do Imperial Colgio de Pedro II, no Rio de Janeiro, o

    governo pretende dar um salto de qualidade na educao brasileira, visto o caos em que se

    encontrava. O Imperial Colgio concebido para ser referncia na rea educacional, o que de

    fato acontece. Ao servir de parmetro para as outras instituies, organiza, uniformiza e

    qualifica o ensino secundrio pblico em todo o Brasil, apresentando um plano de estudos

    moderno, concebido a partir de experincias que se desenvolvem, em especial, na Europa. As

    disciplinas so as seguintes: Gramtica, Retrica, Potica, Filosofia, Latim e Grego (estudos

    clssicos), Gramtica Nacional, duas lnguas vivas: francs e ingls, Histria e Geografia,

    Filosofia, Matemticas, as Cincias Naturais, alm de Msica e Desenho.

    At a Proclamao da Repblica (1889), ocorrem vrias alteraes e adaptaes no

    modelo oferecido no princpio. Na dcada de 1850, por exemplo, estrutura-se o plano de

    estudos, na medida em que necessrio compatibilizar o ensino secundrio ao tcnico, o que

    resulta em uma maior nfase aos estudos cientficos. No incio dos anos sessenta, no entanto,

    retorna-se ao modelo anterior reforma. Seguem-se reformas nos anos de 1870, 1876, 1878 e

    1881.

    O ensino secundrio recebe regulamentao no ano de 1855, quando dividido em

    dois ciclos (quatro e trs anos). O primeiro ciclo chamado de Estudos de Primeira Classe e

    deve ser frequentado por todos os alunos do colgio. Ao final deste perodo, os alunos podem

    prosseguir os estudos no prprio colgio ou requerer um certificado de concluso de curso

  • 33

    que lhes d o direito de ingressar em um dos cursos de formao tcnica, sem prestar novos

    exames. O segundo ciclo, ou Estudos de Segunda Classe, d ao aluno, ao final, o ttulo de

    Bacharel em Letras, que lhe garante o direito de matrcula em qualquer instituio de ensino

    superior (VECHIA; LORENZ, 2002).

    Em 1857, apenas dois anos depois, esse modelo de ensino secundrio novamente

    alterado, criando-se duas possibilidades de curso: um geral, de sete anos de durao, que

    prepara os alunos para o ingresso nos cursos superiores, e um curso especial de cinco anos de

    durao, destinado aos alunos que pretendem ingressar em um dos cursos tcnicos

    (DECRETO n 2.006, arts. 4, 6 e 10).

    Em 1862, no entanto, volta-se ao antigo modelo, com curso de sete anos que confere

    ao aluno o ttulo de Bacharel e o capacita para o ingresso em uma universidade. Dois anos

    depois, institui-se o currculo clssico no Liceu (VECHIA; LORENZ, 2002), com nfase nas

    Humanidades.

    Ao longo da dcada de 1920, poca em que a sociedade brasileira j sofrera profundas

    modificaes, outras reformas educacionais so realizadas. Surge o iderio da Escola Nova no

    Brasil. A Escola Nova um movimento de renovao do ensino especialmente forte na

    Europa, na Amrica e no Brasil, na primeira metade do sculo XX. Consiste, principalmente,

    no reconhecimento da liberdade individual e na responsabilidade do cidado diante do

    coletivo. O movimento no obtm o xito que seus idealizadores pretendem, mas deixa

    marcas no ensino que podem ser vistas at hoje.

    Assim, conforme Mortatti (2004, p. 65), a leitura passa a ser entendida no mais como

    um processo ou habilidade de interpretar o pensamento de outro, mas como meio de ampliar

    experincias e estimular poderes mentais.

    A partir de 1931, a concluso do curso secundrio passa a ser obrigatria para entrar

    nos cursos superiores; at a, a seleo feita pelos Exames Preparatrios.

    O ministro Francisco Campos (Decreto n 19.890 de 18 de abril de 1931 e Decreto n

    21.241 de 4 de abril de 1932) separa o curso em dois ciclos de estudos, um Fundamental, de

    cinco anos, obrigatrio para o ingresso em qualquer escola superior, e outro Complementar,

    de dois anos, subdividido em trs sees: para os candidatos ao curso Jurdico; para os

    candidatos aos cursos de Medicina, Farmcia e Odontologia; e para os candidatos aos cursos

    de Engenharia, Arquitetura e Qumica Industrial (ZOTTI, 2004, p. 101).

    A Reforma de Campos organiza melhor o Ensino Secundrio, estabelecendo,

    definitivamente, o currculo seriado, a frequncia obrigatria, dois ciclos, um Fundamental e

    outro Complementar, e a exigncia de habilitao neles para o ingresso no curso superior

  • 34

    (ROMANELLI, 2007, p. 135). Alm disso, equipara todos os colgios secundrios oficiais ao

    Colgio Pedro II, mediante a inspeo federal, e d a mesma oportunidade s escolas

    particulares para que se organizem, segundo o decreto, e se submetam mesma inspeo.

    Em 1942, no governo de Getlio Vargas, so promulgadas vrias Leis Orgnicas, com

    a finalidade de adaptar o ensino s exigncias da sociedade, que carece de mo de obra

    qualificada para atender as demandas das indstrias, em especial. Implanta-se, dessa maneira,

    o tcnico-profissional: industrial, comercial, normal e agrcola. Esse novo modelo de

    formao escolar destinada s classes populares.

    Se, por um lado os filhos das classes menos abastadas frequentam os cursos tcnicos,

    que no habilitam para o ingresso nos cursos superiores, os da elite brasileira tm sua

    disposio os cursos colegiais, que os preparam para a faculdade. Por essa razo, a alterao

    considerada, por muitos, de cunho elitista e conservador.

    O ento ministro Capanema alega, como justificativa para a promulgao da Lei

    Orgnica do ensino secundrio, que este nvel tem como funo primordial proporcionar uma

    slida cultura geral e desenvolver uma conscincia patritica e humanstica nos alunos (apud

    ROMANELLI, 2007, p. 156). Portanto, a preocupao do governo desenvolver no aluno do

    curso secundrio o esprito patritico com todos os seus desdobramentos.

    A reforma, ao realizar essa diviso, tambm distingue os saberes. Para Kuenzer

    (1997), ao no permitir a entrada de alunos dos cursos profissionalizantes na formao

    superior, os contedos gerais (cincias, letras e humanidades) se constituem nos nicos

    saberes socialmente vlidos para as funes dos dirigentes.

    Conforme Romanelli (2007, p. 157), em resumo, cabe ao novo ensino secundrio:

    a) proporcionar cultura geral e humanstica;

    b) alimentar uma ideologia poltica definida em termos de patriotismo e

    nacionalismo de carter fascista;

    c) proporcionar condies para ingresso no ensino superior;

    d) possibilitar a formao de lideranas.

    Portanto, quase na sua integralidade, os objetivos continuam os mesmos, com exceo

    da questo b, que um acrscimo. Os currculos reafirmam essa concluso, visto que, pelas

    matrias que os compem, pode-se perceber uma preocupao excessiva com a cultura geral e

    humanstica.

    O ensino secundrio passa a ser ministrado em dois ciclos. O primeiro, ginasial8, com

    durao de 4 anos, tem como objetivo dar aos adolescentes elementos fundamentais do

    8 Como o Ensino Primrio tinha durao de cinco anos, este ciclo inicia no sexto ano escolar do aluno.

  • 35

    ensino secundrio (art. 3). O currculo rene disciplinas, distribudas em trs grandes reas:

    Lnguas (portugus, latim, francs e ingls); Cincias (matemtica, cincias naturais, histria

    geral, histria do Brasil, geografia geral e geografia do Brasil); Artes (trabalhos manuais,

    desenho e canto orfenico) (Ttulo II, Captulo I).

    O segundo ciclo corresponde ao curso clssico e ao curso cientfico, ambos com

    durao de 3 anos. Estes tm o objetivo de consolidar a educao ministrada no ciclo anterior.

    Enquanto o Clssico proporciona uma slida formao intelectual atravs de um maior

    conhecimento de filosofia e do estudo das letras, o Cientfico d conta de um estudo maior

    das cincias. As disciplinas so as seguintes: Lnguas (portugus, latim, grego, francs, ingls

    e espanhol); Cincias e Filosofia (matemtica, fsica, qumica, biologia, histria geral, histria

    do Brasil, geografia geral, geografia do Brasil e filosofia); Artes (desenho) (Captulo II,

    Artigo 12).

    Com a Lei 5.692/71, o curso primrio, com durao de cinco anos, e o ensino mdio,

    subdividido em curso ginasial de quatro anos e curso colegial de trs anos, so substitudos

    pelo ensino de primeiro grau, com durao de oito anos, e pelo ensino de segundo grau, com

    trs anos.

    A Lei tem uma preocupao evidente com a formao tcnica no ensino de 1 e 2

    graus. J no primeiro pargrafo percebe-se essa viso:

    O ensino de 1 e 2 graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a

    formao necessria ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de

    auto-realizao, qualificao para o trabalho e preparo para o exerccio consciente

    da cidadania. (http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L5692.htm)

    Pela reforma, o segundo grau torna-se profissionalizante na sua totalidade: o aluno o

    conclui, recebendo o diploma de auxiliartcnico (trs anos) ou de tcnico (quatro anos).

    (PILETTI; PILETTI, 2008, p. 207)

    O Parecer 853/71 e a Resoluo 8/71, ao fixar o ncleo comum para os currculos do

    ensino de primeiro e segundo graus, complementam a Lei. A Resoluo, em seu artigo 1,

    determina que o ncleo comum a ser includo obrigatoriamente nos currculos plenos do

    ensino de 1 e 2 graus abrange as seguintes matrias: Comunicao e Expresso, Estudos

    Sociais e Cincias. Aliadas a esses ncleos, devem constar quatro Prticas Educativas. As

    disciplinas de Filosofia, Sociologia e Psicologia so banidas da grade curricular. Com a

    expanso da economia, e dada a situao do Brasil como pas subdesenvolvido, o que se

    deseja um indivduo com alguma base educacional e um treinamento suficiente para

    permitir sua entrada no mercado de trabalho. Em outras palavras, um trabalhador que, devido

    http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L5692.htm

  • 36

    sua precria formao, no esteja em condies de reclamar de seu salrio (ROMANELLI,

    1987, p. 234).

    A Resoluo, no seu artigo 5, determina que, no ensino de segundo grau, a

    Comunicao e Expresso seja desdobrada em Lngua Portuguesa e Literatura, com nfase na

    Brasileira. O ensino dessa rea visa preocupao com as linguagens que possam permitir um

    contato coerente do aluno na sociedade, alm de permitir-lhe as condies para que possa se

    manifestar harmonicamente nos aspectos fsico, psquico e espiritual. Nesse sentido, a

    Lngua Portuguesa colocada como expresso da cultura do pas. (ROMANELLI, 1987, p.

    244)

    Em 1996, promulga-se uma nova Lei de Diretrizes e Bases (Lei n 9.394),

    estabelecendo, no Art. 21, que o ensino mdio, aliado educao infantil e ao ensino

    fundamental, constitui a educao bsica. Em seguida, no Artigo 22, explicitam-se as

    finalidades: proporcionar ao educando a formao necessria para o exerccio da cidadania,

    alm de fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.

    No que concerne especificamente ao ensino mdio, explicita quatro finalidades:

    I - a consolidao e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino

    fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;

    II - a preparao bsica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar

    aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condies

    de ocupao ou aperfeioamento posteriores;

    III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica

    e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico;

    IV - a compreenso dos fundamentos cientfico-tecnolgicos dos processos

    produtivos, relacionando a teoria com a prtica, no ensino de cada disciplina.

    Em relao ao currculo, assinala, entre outros aspectos, que:

    destacar a educao tecnolgica bsica, a compreenso do significado da cincia,

    das letras e das artes; o processo histrico de transformao da sociedade e da

    cultura; a lngua portuguesa como instrumento de comunicao, acesso ao

    conhecimento e exerccio da cidadania.

    No h mais a obrigatoriedade deste nvel de ensino preparar para o trabalho,

    conforme rezam os pargrafos 2 (atendida a formao geral do educando, poder prepar-lo

    para o exerccio de profisses tcnicas) e 3 (Os cursos do ensino mdio tero equivalncia

    legal e habilitaro ao prosseguimento de estudos). Cabe ao Ensino Mdio oferecer formao

    geral, ficando a profissionalizao para cursos concomitantes ou posteriores9.

    A Resoluo CEB N 3, de 26 de junho de 1998, institui as Diretrizes Curriculares

    9 O Decreto 2208/97 determina que a educao profissional ter organizao curricular prpria.

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    Nacionais para o Ensino Mdio. So orientaes para a organizao pedaggica de cada

    instituio escolar, atentas ao que determina a lei no que diz respeito vinculao do estudo

    ao trabalho, prtica social e ao exerccio da cidadania.

    O seu artigo 8 trata da interdisciplinaridade, que dever estar presente, nas suas mais

    variadas formas no trabalho das escolas. Esclarece-se, no mesmo item, que o conhecimento

    mantm um dilogo permanente com outros conhecimentos sob os aspectos mais variados,

    seja questionando, negando, complementando, ampliando, iluminando.

    Sob essa perspectiva, dita que o ensino deve ir alm d