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o que pensa 0 especialista ... Erros inatos do metabolismo Uma subespecialidade? Os avanyos cientfficos e tecnol6gicos tem contri- bufdo de forma progressiva para uma melhor compreensao da fisiologia e fisiopatologia do corpo humano e da celula em particular. Simultaneamente, 0 crescimento exponencial dos conhecimentos, daf resultante, e a limitayao na capacidade de aquisiyao dos conhecimentos de cada medico tem levado, ao longo dos anos, a exigencia na criayao de novas especialidades e subespecialidades. A sua formayao resulta, nao de uma organizayao estruturada e programada por uma entidade ges- tora (poder-se-a ler Ordem dos Medicos ou Minis- terio da Saude), mas sim porque a necessidade de sistematizar conhecimentos, oferecer cuidados de qualidade aos utentes e, tambem, a atracyao individual tem levado alguns medicos a dedica- rem-se a esta ou aquela area de acordo com a patologia que surge no seu quotidiano de clfnicos ou aquela para a qual se sentem natural mente vocacionados.O reconhecimento natural da espe- cialidade resulta da verificayao da capacidade tec- nica ou de conhecimentos do medico pelos seus pares; a sua oficializayao como especialidade ou subespecialidade, por sua vez, depende da vonta- de polftica ou das influencias polfticas que 0 me- dico em questao tem a habilidade de mover. As doenyas hereditarias do metabolismo eram consideradas doenyas raras, intrataveis e de prog- n6stico muito reservado e, como tal, sem direito ao estatuto de especialidade ou subespecialidade. Contudo, os conhecimentos nesta area tem sofri- do um acrescimo progressivo a medida que a bioqufmica, a biologia molecular e a genetica tem evolufdo e tem permitido um reconhecimento mais profundo da fisiologia celular e uma explo- rayao crescente do genoma humano. Se actual- mente a genetica clfnica e ja reconhecida como uma especialidade clfnica e laboratorial, os erros inatos do metabolismo merecem a mesma acei- tayao. Esse reconhecimento imp6e-se, nao s6 pelo gran- de numero de patologias abrangidas, como tam- bem pela complexidade das doenyas tratadas e os meios de diagn6stico exigidos. Recordamos que, ao contrario da maioria das especialidades universalmente reconhecidas, as doenyas meta- b61icas afectam qualquer 6rgao e sistema, apre- sentando-se, portanto, com toda uma pan6plia de sintomas e sinais (do sistema nervoso central, Silvia Sequeira Consultora em Doenyas Metab61icas do Hospital de Dona Estefania digestivo, nefrourol6gico, cardiovascular, muscu- lar, oculares, 6sseas, etc.); a sua terapeutica quan- do existente e complexa, quer seja enzimMica, dietetica (variando, p. ex. para as diferentes ami- noacidopatias - fenilcetonuria, leucinose, doenyas do cicio da ureia, homocistinuria, etc.), de trans- plantayao ou simplesmente de suporte; os exa- mes complementares saG de diffcil acesso e re- querem, por vezes, tecnologia sofisticada com recurso a laborat6rios no estrangeiro, sendo im- perioso usar de ponderayao e bom senso nos pedidos. o doente nao chega ao medico com um diagn6s- tico, mas antes, com sintomas ou sinais a partir dos quais e necessario proceder com uma 16gica orientada pela urgencia ou pela frequencia da sin- tomatologia e com 0 conhecimento adquirido com a experiencia. Muitas doenyas metab61icas tem, actualmente, um tratamento eficaz e podem originar uma situayao aguda, com necessidades terapeuticas de emergencia. A experiencia resulta num reconhecimento mais precoce da doenya e numa terapeutica atempada e adequada, permitindo igualmente uma reduyao dos recursos econ6micos para que se fayam es- colhas acertadas, nao s6 no pedido dos exames complementares, como tambem no referente a terapeutica. E necessario, igualmente, reconhecer que 0 doen- te depende por toda a vida de um tratamento continuado, no qual os cuidados de que os doen- tes carecem crescem em complexidade; esta com- plexidade e 0 numero crescente de doentes diag- nosticados e tratados ao longo dos anos tem motivado, nos grandes centros, alguns medicos a dedicarem-se exclusivamente a determinadas pa- tologias ou a grupos de patologias deste ambito: fenilcetonuria, doenyas lisossomiais, glicogeno- ses, acidemias organicas, etc. No final do seculo vinte, com a identificayao de varias centenas de doenyas metab61icas genetica- mente determinadas, conduzindo a uma grande diversidade na expressao clfnica, a realidade de uma subespecialidade imp6e-se, com a necessi- dade de uma diferenciayao na area dos erros ina- tos do metabolismo. A complexidade decorrente do diagn6stico e terapeutica das doenyas heredi- tarias do metabolismo torna imperativo, pelo me- nos nos hospitais de terceira linha, a dedicayao

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o que pensa 0 especialista ...

Erros inatosdo metabolismoUma subespecialidade?

Os avanyos cientfficos e tecnol6gicos tem contri-bufdo de forma progressiva para uma melhorcompreensao da fisiologia e fisiopatologia docorpo humano e da celula em particular.Simultaneamente, 0 crescimento exponencialdos conhecimentos, daf resultante, e a limitayaona capacidade de aquisiyao dos conhecimentosde cada medico tem levado, ao longo dos anos,a exigencia na criayao de novas especialidadese subespecialidades.

A sua formayao resulta, nao de uma organizayaoestruturada e programada por uma entidade ges-tora (poder-se-a ler Ordem dos Medicos ou Minis-terio da Saude), mas sim porque a necessidadede sistematizar conhecimentos, oferecer cuidadosde qualidade aos utentes e, tambem, a atracyaoindividual tem levado alguns medicos a dedica-rem-se a esta ou aquela area de acordo com apatologia que surge no seu quotidiano de clfnicosou aquela para a qual se sentem natural mentevocacionados.O reconhecimento natural da espe-cialidade resulta da verificayao da capacidade tec-nica ou de conhecimentos do medico pelos seuspares; a sua oficializayao como especialidade ousubespecialidade, por sua vez, depende da vonta-de polftica ou das influencias polfticas que 0 me-dico em questao tem a habilidade de mover.

As doenyas hereditarias do metabolismo eramconsideradas doenyas raras, intrataveis e de prog-n6stico muito reservado e, como tal, sem direitoao estatuto de especialidade ou subespecialidade.Contudo, os conhecimentos nesta area tem sofri-do um acrescimo progressivo a medida que abioqufmica, a biologia molecular e a genetica temevolufdo e tem permitido um reconhecimentomais profundo da fisiologia celular e uma explo-rayao crescente do genoma humano. Se actual-mente a genetica clfnica e ja reconhecida comouma especialidade clfnica e laboratorial, os errosinatos do metabolismo merecem a mesma acei-tayao.

Esse reconhecimento imp6e-se, nao s6 pelo gran-de numero de patologias abrangidas, como tam-bem pela complexidade das doenyas tratadas eos meios de diagn6stico exigidos. Recordamosque, ao contrario da maioria das especialidadesuniversalmente reconhecidas, as doenyas meta-b61icas afectam qualquer 6rgao e sistema, apre-sentando-se, portanto, com toda uma pan6plia desintomas e sinais (do sistema nervoso central,

Silvia SequeiraConsultora em Doenyas Metab61icasdo Hospital de Dona Estefania

digestivo, nefrourol6gico, cardiovascular, muscu-lar, oculares, 6sseas, etc.); a sua terapeutica quan-do existente e complexa, quer seja enzimMica,dietetica (variando, p. ex. para as diferentes ami-noacidopatias - fenilcetonuria, leucinose, doenyasdo cicio da ureia, homocistinuria, etc.), de trans-plantayao ou simplesmente de suporte; os exa-mes complementares saG de diffcil acesso e re-querem, por vezes, tecnologia sofisticada comrecurso a laborat6rios no estrangeiro, sendo im-perioso usar de ponderayao e bom senso nospedidos.

o doente nao chega ao medico com um diagn6s-tico, mas antes, com sintomas ou sinais a partirdos quais e necessario proceder com uma 16gicaorientada pela urgencia ou pela frequencia da sin-tomatologia e com 0 conhecimento adquiridocom a experiencia. Muitas doenyas metab61icastem, actualmente, um tratamento eficaz e podemoriginar uma situayao aguda, com necessidadesterapeuticas de emergencia.

A experiencia resulta num reconhecimento maisprecoce da doenya e numa terapeutica atempadae adequada, permitindo igualmente uma reduyaodos recursos econ6micos para que se fayam es-colhas acertadas, nao s6 no pedido dos examescomplementares, como tambem no referente aterapeutica.

E necessario, igualmente, reconhecer que 0 doen-te depende por toda a vida de um tratamentocontinuado, no qual os cuidados de que os doen-tes carecem crescem em complexidade; esta com-plexidade e 0 numero crescente de doentes diag-nosticados e tratados ao longo dos anos temmotivado, nos grandes centros, alguns medicos adedicarem-se exclusivamente a determinadas pa-tologias ou a grupos de patologias deste ambito:fenilcetonuria, doenyas lisossomiais, glicogeno-ses, acidemias organicas, etc.

No final do seculo vinte, com a identificayao devarias centenas de doenyas metab61icas genetica-mente determinadas, conduzindo a uma grandediversidade na expressao clfnica, a realidade deuma subespecialidade imp6e-se, com a necessi-dade de uma diferenciayao na area dos erros ina-tos do metabolismo. A complexidade decorrentedo diagn6stico e terapeutica das doenyas heredi-tarias do metabolismo torna imperativo, pelo me-nos nos hospitais de terceira linha, a dedicayao

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em tempo completo de alguns profissionais, istoe, a sua diferencia<;ao como especialidade.

A complexidade das situa<;oes, ja referida, a ne-cessidade de uma complementaridade de variasdisciplinas no tratamento de muitas patologias ea sua cronicidade implicam uma equipa de traba-Iho propria.

A especializa<;ao impoe-se porque a multiplicida-de de conhecimentos exigidos e sua rapida evo-lu<;ao tornam impraticavel de outro modo of ere-cer cuidados de qualidade aos doentes de formadigna.

Nesta area em franca evolu<;ao torna-se necessariorepensar prioridades lembrando que, se todos tra-tam tudo de forma indiscriminada, poder-se-ao co-locar problemas de etica em cuidados de saude.

Mas, se por um lado e imprescindivel garantir aodoente um tratamento em tempo util por aquelesque tem maior competencia cientffica e tecnicapara 0 fazer, e necessario, igualmente, melhorara qualidade e os conhecimentos de todos os pro-fissionais de saude nesta area. Ressaltamos, con-tudo, a quase inexistencia de forma<;ao quer pre-graduada, quer pos-graduada nesta area, apesarda sua rapida expansao. E necessario motivar ospediatras ou futuros pediatras (e tambem outrosmedicos) para a importancia de se estar alertapara a eventualidade de uma doen<;a metabolica

e incentiva-Ios para dar 0 apoio medico necessa-rio a este grupo de doentes.

Numa sociedade em que os utentes saD cada vezmais exigentes, em que se reivindicam e se co-bram responsabilidades pelo actos medicos oupela sua ausencia, sera Ifcito um pediatra alegardesconhecer a forma de abordagem de uma hipe-ramoniemia ou de uma hipoglicemia, sobretudose nos lembrarmos que constituem emergenciasmedicas com risco de sequelas graves se naotratadas atempadamente de forma correcta?

Infelizmente, 0 envolvimento das institui<;oes e ma-nifestamente pouco ambicioso e insuficiente, querno que se refere a forma<;ao nesta area, quer noque se relaciona com 0 seu reconhecimento comosubespecialidade, com necessidade de cria<;ao deunidades vocacionadas para 0 seguimento de do-entes com estas patologias. Recordamos que elasabrangem nao so a idade pediMrica, mas tambemos adultos, a medida que as crian<;as vaG crescen-do e se vaG identificando progressivamente situa-<;oes com apresenta<;ao apenas na idade adulta.

Estamos certos que 0 futuro conduzira a necessi-dade de reconsiderar prioridades e demonstraraque muitas das nossas crian<;as, e tambem algunsadultos validos na sociedade, beneficiarao deuma melhor presta<;ao de cuidados, com 0 reco-nhecimento de uma diferencia<;ao na area doserros inatos do metabolismo.