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Escola Superior de Educação Departamento de Português Ciclo de Conferências 2003: Estudos de Língua e Literatura C

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Ciclo de Conferências 2003: Estudos de Língua e Literatura �

Escola Superior de EducaçãoDepartamento de Português

Ciclo deConferências 2003:Estudos de Língua e Literatura

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SÉRIE

8282Escola Superior de EducaçãoDepartamento de Português

EDIÇÃO DO INSTITUTO POLITÉCNICO DE BRAGANÇA

Ciclo deConferências 2003:Estudos de Língua e Literatura

C

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Escola Superior de Educação - Departamento de Português�

Título: Ciclo de Conferências 2003: Estudos de Língua e Literatura Autor: Escola Superior de Educação - Departamento de PortuguêsEdição: Instituto Politécnico de Bragança · 2006 Apartado �038 · 530�-85� Bragança · Portugal Tel. 273 33� 570 · 273 303 000 · Fax 273 325 �05 http://www.ipb.ptExecução: Serviços de Imagem do Instituto Politécnico de Bragança (grafismo,AtilanoSuarez;paginação,LuísRibeiro;montageme

impressão,AntónioCruz;acabamento,IsauraMagalhães)Tiragem: 200 exemplaresDepósitolegalnº241533/06ISBN 972-7�5-087-3Aceite para publicação em 2005

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Índice

Nota Introdutória ____________________________________7 Dina Rodrigues MaciasVida, Escola, Literatura: Histórias, Mudanças, Perplexidades 9 Maria Luísa Carvalho Branco Bibliografia ___________________________________23 Notas ________________________________________25Do simbolismo ao modernismo: o percurso poético de Mário de Sá Carneiro ____________________________________27 Helena Genésio Notas ________________________________________39Da loucura: como Logos em José Régio _________________41 Carlos Teixeira Bibliografia ___________________________________55 Notas ________________________________________57Reflexões pedagógicas na obra de Guerra Junqueiro ______59 Carla Espírito Santo Guerreiro Notas ________________________________________71

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A Aprendizagem Sistemática da Escrita _________________75 Dina Rodrigues Macias Referências Bibliográficas _______________________89Linguística, gramática tradicional e ensino das línguas ____91 Alexandra Soares Rodrigues Notas _______________________________________109Conectores linguísticos: aspectos sintácticos e semântico-pragmáticos ____________________________ 111 Octávio César Carvalho Tomás Bibliografia __________________________________125

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NotaIntrodutóriaDina Rodrigues Macias

Ociclodeconferências,queagorapublicamos,éconstituídopelo conjunto de comunicações proferidas pelos vários docentes do DepartamentodePortuguêsaolongodoanode2003,numaorganizaçãodo mesmo Departamento e inseridas no seu Plano de actividades.

Váriossãoosolhareseasreflexõesqueestegrupodedocentespropôsparadebateatodaacomunidadeeducativa,tendogarantidosempreumnúmerorazoáveldeparticipantes,atentoseinteressados,nas várias temáticas abordadas.

OssetetextosquecompõemestapublicaçãoCiclo de Con-ferências – Estudos de Língua e de Literatura,sãoasúmuladeumareflexãomultidisciplinaresão,afinal,omelhortestemunhodequehá um vasto campo de possibilidades a explorar na área da Língua eLiteraturaPortuguesasquetodosconsideramosapedraangulardanossa identidade.

Esta“obra”reúne,então,várioscontributosàvoltadetrêsgrandesáreascientíficas:aLiteratura,aLinguísticaeaDidáctica.

Estescontributosapontam,emprimeirainstância,paraas“Histórias,MudançasePerplexidades”doensino/aprendizagemdaLínguaedaLiteraturaportuguesas,desdeaprimeira“Gramática da linguagem portuguesa’’,deFernãodeOliveira,editadaem1536atéaos nossos dias.

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Outrosolharestrouxeram-nosreflexõessobregrandesvultosdanossaLiteraturacomoMáriodeSá-Carneiro,opoetacolaboradordarevistaOrpheu,queoscilouentreatradiçãoeamodernidade,quecontouodesejodeumavidaquenãoteve,atravésdaexuberânciadasimagensasubstituiraexpressãológica.Ouvimos,depois,falardeJoséRégio,opoetadosPoemas de Deus e do Diabo,oseupri-meiro livro de poesia publicado em �925 na Lusa Atenas. Fundador da Presença,cultivouosváriosgénerosliterários,tendosido,talvez,o teatro a sua grande paixão.

Finalmente,GuerraJunqueiroumpoetaatentoecríticoaosdesenvolvimentosliteráriosehistóricosdoseutempoedoseupaís,ondenãoesqueceuatemáticadaCriança,conscientedaimportân-cia da sua formação integral para a construção de um Portugal com futuro.

Na área da Didáctica foi abordada a problemática da apren-dizagemdaescrita,considerandoestaomeioprivilegiadodecomuni-caçãoàdistância,graçasaumcódigoespecialquepermitetransportarodiscursodeumaformaduradoira,poroposiçãoàlinguagemoralqueépassageira–“verbavolant,scriptamanent…”

AencerraresteCiclodeConferências,tivémosduasrefle-xões,nãomenossugestivas,naáreadaLinguística.AprimeiraquetevecomograndeobjectivoodaclarificaçãoedistinçãoentreLinguística,GramáticaTradicionaleEnsinodasLínguas,explicandoaautoraporquerazõesumprofessordeLínguas,quenãoéumlinguista,deveestudarLinguística.Paratal,põeemconfrontoanálisesdefenómenosLinguísticos de acordo com a gramática tradicional e de acordo com a linguística,dequesobressaiorigoratingidoporesta.Asegundaabor-douosaspectossintácticosesemântico-pragmáticosdosconectoreslinguísticos,procurandoestabelecerasdiferençasentreconjunçõescoordenadas,subordinadasedemarcadoresdiscursivos.

Temos,assim,umacompilaçãodetextossubordinadosatemáticasmuitodiferentesquemaisnãosãodoqueumapartilhadeideiasereflexõescomoagorapúblico-leitor,àsemelhançadoquejá aconteceu com o público-ouvinte.

Ofactodestaobraagruparcomunicaçõesdeáreasdiversas,comopçõesdiferentesdeexposiçãoedereferenciaçãobibliográfica,originatambémformatosdeapresentaçãodiversificados.Decidimosmanter os formatos originais, não procedendo a qualquer tipo deuniformização.

Foi um desafio, claramente ganho, doDepartamento dePortuguêsquedeuaconheceralgumadainvestigaçãoquesevemfazendonesteDepartamentoequeéumnítidoindicadordequetodosestamos fortemente empenhados na construção de um ensino cada vezmelhor.

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Vida,Escola,Literatura:Histórias,Mudanças,

PerplexidadesMaria Luísa Carvalho Branco

Seis longos anos dediquei a extenso emoroso trabalho,sofridoesolitário,mas,desdeaprimeirahora,feitoparaproveitodetodos.ApesardehaverquemdigaquearruineiestaEscolaportantoterdemorado,nãomepesatalruína!Antesvoscontarei,comtodoogosto,algumasdascertezasedasdúvidasqueomeutrabalhoprofissionalmevemcolocando,acadapasso,naperspectivageraldointeressedosEstudantes,destaEscolaedoPaís.

Dehámuitoqueconsideroumautênticoprivilégioterpodidoatravessarestetempofeitodemuitostempos,tãováriosediversosquemaisparecetermosatravessadotodaumahistóriadeséculosemapenas algumas décadas.

Nos anos cinquenta e sessenta, o tempo parecia-nos terficado suspenso, algures, esquecidode caminhar em frente, e porissoumpoetahouvequeescreveuque“NomeuPaísnãoacontecenada”.Enadaaconteciaporquedenadasepodiafalar;ecreioquefoientãoqueaprendioextraordináriovalordaspalavras–asaceiteseascensuradas;asditaseasinter-ditas;asquenãodizemnadaeasquedizemtudo!....E,talvezporisso,nuncahesiteinaescolhadomeuofício:semprequisserprofessoradePortuguês.

Dossegredosdagramática,desvendaram-mos,quasetodos,naescolaprimária;na4ªclasse,orgulhava-seanossaprofessorade

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sabermos distinguir as muitas funções do se,poisnemsempreeleécondicional....Evieramdepoisosclássicos,apresentadosnumasequênciaestranhaecujaimportânciaeramotivadanumaqualquerrazãoqueparecianuncaresolvida:paraládeduasoutrêsexcepções,todos os escritores se tinham rebelado contra um mesmo e incom-preensível“formalismoeacademicismo”quepersistiaaolongodosséculoseacabavasemprevitorioso,pormaisinovadoresquefossemalguns deles.

Sobreosquinhentistas–osqueaescolanosdeixaler–tudoiadandocerto:eraagrandezadaquelapoesiaumaespéciededuplodagrandezafantasiosadaPátriaquenosdavamacelebrar.

Masquantoaosséculosseguintes,eradifícilperceberporondesetraçaraalinhaderumodosnossosescritores;ashistóriasdaHistóriaoficialqueestudávamosnãocoincidiamcomosquadrosmaisoumenosridículosdeumFranciscoManueldeMelooucomosarrevesadossermõesdoAntónioVieira;muitomenosentendíamosoherói-cómicodoCorreiaGarçãoouFilintoElísio;parajánãofalarmosdaquelesversoscantantesdeumNicolauTolentino,numdivertidopoemeto,dedicadoaumamãedesesperadacomodesaparecimentodeumcolchãoeque,arremetendocontraosempoeiradoscabelosdafilha,“lhesaiocolchão/dedentrodoToucado”.

Ecaíamos,derepente,nosromânticos,semsabermosbemporquê,eeramjáosultra-românticoscomCastilhoàcabeçae“ONoivadodoSepulcro”,feitofado.

LíamosostextosdasAntologiasenadamaisnoserapedido,antespelocontrário,porissoeramlivrosúnicoseobrigatórios,for-matados para serem os limites dos nossos sonhos e dos nossos desejos deleituraquesecumpriam,noentanto,àreveliadaescola.

Estaéaexperiênciavividaqueguardonaminhamemóriadeestudanteeaquelaquesemprepressintonamaioriadosmuitosalunoscomquemjátrabalhei,aolongodetrintaanos.Eestefoiomistérioquesemprefuitentandodesvendar,comashabituaislimi-taçõesimpostaspeloquotidianodasescolas.

Entretanto,depoisdoinesquecível25deAbrilde74,otempoganhaumavelocidadeestonteante–sucedem-seasreformas,asmu-danças,dosistemaedosprogramas,dasterminologiasgramaticaiseanalíticas,dastemáticasemultiplicam-seasreferênciasautorais...

Ganha visibilidade a avalanche de alunos que invade aEscola;aincapacidadedaEscolaparaosrecebereeducar;asnovasgerações de professores formados na inevitável confusão dos novos currículos;anovadiferenciaçãoentreuniversidadesepolitécnicos,entrepúblicoeprivado;esucedem-seocavaquismo,opartidarismo,ooportunismo,oguterrismo,astecnologiasdainformação,acon-corrência,omercado,aEuropa,aglobalização.

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TudoistoentreaquedadomurodeBerlimedastorresdeNovaYork!........

Eavelocidadeaqueofuturoparecequererchegarapanha-nosatodosdesprevenidos.Esóháduassoluções:oujulgamosmaisurgenteagarrarofuturodequalquermaneira,convencidosdequeelenadateráavercomoquefoiatéaqui;ouestudamosopassado,maisemenosdistante,paramelhornosprepararmosparaoqueaívem.Evalesempreapenapisarterrenofirme!

Aissodedicámosessesseisanosdetrabalhoqueculminaramnanossatesededoutoramento.Eparachegarmosaqueconclusões?Nadaanimadoras,emsimesmas.Masclarificadorasdofunciona-mentodeumsubtilmecanismodereproduçãosocialecultural,quetem, exactamente, por base aquilo a que chamamos a linguagemliterárianasuadimensãolinguísticaeaqueJohnGuillorychamouo capital cultural.

Umcapitalgerido,conscienteouinconscientemente,pelasescolas,queproporcionamadistribuiçãodessecapitalpelosalunosempresença,equedepende,directamente,dasactividadespedagógicasquedesenvolvemos,dostextoseautoresqueestudamosecomamaioroumenordiferenciaçãolinguísticae/ouliteráriaqueseestabeleceentre os currículos disciplinares dos vários níveis de ensino.

Anaturezadecapitalculturaladvém,historicamente,nocontexto europeu,do factodeoLatim ter sido a língua imperial,impostaaospovosconquistados,porforçadaaplicaçãodoquadrolegislativoromano.OestudoqueCurtius1 levou a efeito sobre a cultura nabaixaidademédialatina,permitiuentenderquefoinesseprocessodecolonizaçãopolíticaeadministrativaquealíngualatinaganhouasua dimensão verdadeiramente reprodutiva de uma sociedade hierar-quizadaemdominantesedominados,emcolonizadoresebárbaros,emletradose iletrados,cujosmodosdeexpressãopróprios foramganhandovaloressimbólicosfundamentais,distinguindolinguagensqueeramsocialmentecapitalizáveisdasqueonãoeram,detodo.Edesdeesseslongínquostempos,seinstalouestemodelodedistinçãosocial,assentenosmodosdefalaredeescrever,aqueostextosdosgrandes autores gregos e latinos davam autoridade bastante.

Quando,noRenascimento,Portugalsefezaosmaresefoipor essemundodealém, conhecendoe comunicandocomoutrospovos,anaturezadebárbaros,quenosforaatribuídapeloscoloni-zadores latinos,demo-lanósaospovosdesconhecidosque fomosencontrando.Edescobrimos,então,quealínguanacionaleraomaisseguromeiodeexercer influênciasduradoiras.Eessadescoberta,quenãofoidemenorimportânciadoqueasoutras,registou-amuitoclaramenteFernãodeOliveira,naprimeiraGramática da linguagem portuguesa,editadaem1536:

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“tornemos sobre nós agora que é tempo e somos senho-res, porque melhor é que ensinemos a Guiné do que sejamos en-sinados de Roma. (...) Grécia e Roma só por isto ainda vivem: porque quando senhoreavam o mundo mandaram a todas as gentes a eles sujeitas aprender suas línguas: (...) e desta feição nos obrigam a que ainda agora trabalhemos em aprender e apurar o seu esquecendo-nos do nosso não façamos assi [sic] (...)”.

Aobraquenosdeixaramtantosportuguesesdequinhentosfoiconscientementeproduzidaparaalcançar,paraalínguaportuguesa,esteestatutodelínguacultural,aptaatratartodosostemaseaveicu-lartodootipodeconhecimentos.Masnãofoipacífica,estaposição.Comefeito,viveu-se,aolongodoséculodezasseis,umsérioconflitolinguístico e cultural entre duas tendências opostas: a dos humanistas livrescos,possuidoresdeumsaberadquiridoatravésdoslivrosdosclássicos,aqueoLatimemprestavaumaevidenteautoridade;eoshumanistaspráticos,temperadosnasaventurasdasnavegaçõesma-rítimasenaexperiênciadecomunicaçãocompovostãodiversos,equerevelaramumavivaconsciênciadopapelquealínguaportuguesadeveriater,nesseenormeempreendimentocultural.

Duastendênciaslinguísticasquerepresentavam,também,duas diferentesmaneiras de encarar oConhecimento: enquanto acultura livresca e latinista apenas reconhecia valor e autoridade ao saber depositado num conjunto acabado de obras herdadas do passa-do,osmodernos,depreferêncialinguísticavernácula,acreditavamqueoconhecimentoestavaempermanenteconstrução,nocontactocomarealidadedaNaturezaedaVida,equesóaexperiênciaabririacaminhoparaacríticaeaverificação.

A adesão da Igreja portuguesa ao movimento da Contra-Reforma, a instalação do SantoOfício e daCompanhia de Jesusacabariampordecidirafavordatendêncialatinista,conservadoraecatólica,tendocondenadoaumsilênciodeséculosmilharesdepáginasredigidas em vivo e experimentado português do tempo.

Osdoisséculosqueseseguiramhaviamdepassarnaquela“apagadaeviltristeza”emqueCamõesviracairaPátria...queacustofoisobrevivendo,tentandomantervivasalínguaeaculturanacionais.Easopçõeslatinistashão-deconservarasuasituaçãomaioritária,mantidascomomarcassociaisdeelite,numespaçohistóricoesocialrestritoaqueAuerbachdeuonomedecorte e cidade2.

Osmuitosqueficavamforadestecírculodepodercaíamnoconceito de “plebeus e idiotas” cujo “falar incorrecto” “os polidos nãodevemusar”,segundoescreveuDuarteNunesdeLeão.

Foiaindaaospolidoshomensdecortequecoubeexperi-

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mentaraslabirínticasformasdobarroco,emtodasassuaspossíveismanifestações e exageros.

EaqueleNicolauTolentino,doToucadodocolchão,há-deaparecer-nos,nosfinaisdoséculodezoito,comooacabadoartistadeumaclassemédiaemergente;quandoosgalicismosinvadiramalínguaportuguesaeasmodasfrancesassecopiavamacadaesquinadacidadedeLisboa,cidadeprovinciana,tacanhaerequentadacomoochádeumascertasdamas,cincovezesaquecidonumamesmatarde...

Epercebemosque,nestafasederesoluçãodaexcessivaagi-taçãopombalina,permanecevisívelumamesmaclivagemlinguística:umalíngualiteráriaressequidapeloíntimocontactocomoLatimede tantapurezagramatical,masquecontinuaa funcionarcomoo“selodequalidadedeumacomunidadeprivilegiada”(Bakhtin);eumalinguagemnova,aindaindiferenciada,vagamenteatribuídaaopovo,quenãomerecequalquercréditoculturalousocialeémanifestamenteimprópriaparaosletrados.

Numpoemaintitulado“CartaaoamigoBrito”,FilintoElísioredigiunotaderodapé,comoseguinteesclarecimento:“ParaopovoaéclogadeMatosouozamzamdoCaldasselheacomodamelhorcomasorelhasqueumaodedoDiniz;mastambémasgentesquenãosãopovosentemcomregaladoprazerumatransiçãobemmodeladanaária;(...)eumcertoesconderijotransparentenoconceitoenaspalavrasosarrebata.”OraesteMatoseraumpoetapobre,imitadorepigonaldeCamõesque,porissomesmo,conseguiuoapoiodealgunsmecenas,paraanimarossalõestãonamoda;eo“zamzamdoCaldas”ficamosasaberquesão“cantigasamorosasdesospiros,derequebros,dena-morosrefinados,degarridices(...)comqueembalamascrianças;(...)queensinamaosmeninosequecantamaosmoços;e(...)quetrazemnabocadonasedonzelas.”Esteesclarecimentopreciosoé-nosdadoporumsisudoAntónioRibeirodosSantos,umnotáveldeCoimbra,emmissãoacadémicanacapital,queassimcomentaoserãoaqueassistiu: “Esta praga é hoje geral, depois que o Caldas começou de pôr em uso os seus rimances, e de versejar para as mulheres; eu não conheço um poeta mais prejudicial à educação particular, e pública, do que este trovador de Vénus e de Cupido.”3

Enquantonasociedadelisboetaseiainsinuandoumalínguanova,ospoetasmaisatentosrepetiamapelosdestegénero:

“Imite-se a pureza dos antigosmas sem escravidão, com gosto livre,com polida dicção, com frase nova,que a fez, ou adoptou a nossa idade.”Correia Garção, “Sátira sobre a imitação dos antigos”

Estava em crescendo um notório processo de mudança

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discursiva,apoiadaefomentadaporpublicaçõesliteráriasdeinspi-raçãoenciclopédicaqueiamdivulgandomanifestaçõesrecentesdasensibilidadeedogosto, formasdiferentesdeestaremsociedadeque,lentamente,sevãopopularizandoemLisboa,atravésdamoda,damúsica,doteatro,daópera,dasassembleias,dosserões.

Estasnovasformasdeconvivialidadevão,naturalmente,gerandonovasnecessidadesenovosdiscursos,trocasverbaisdife-rentes,tantonavidaprivadacomonapública,cujaimportâncianãoparou de crescer. E assim se foi construindo uma linguagem nova que,acusto,vaiassimilandoalíngualiteráriadacorte e cidade e cujodomíniopermitiráumaascensãosocialinesperada,dequeReisQuita e Filinto Elísio são os exemplos mais perfeitos.

MortificadospelasinvasõesfrancesasepeloabandonodaCorteparaterrasbrasileiras,osportuguesesirão,depois,viverpe-ríodos de avanços e de recuos políticos divididos entre absolutistas eliberais,ecaberáaograndeAlmeidaGarrettreacenderalutapeladefesadalínguanacional,praticaroseuaperfeiçoamento,descobriredivulgara“almanacional”,criarrevistasdeeducaçãofemininaetrabalhar,detodasasmaneirasqueteveaoseualcance,paraade-mocratizaçãodaculturanacional.Foinestagrandetarefa,partilhadacomHerculano,quesecumpriuonossoprimeiroromantismo.Umamanifestaçãoadois,aindafortementecombatidospelopensamentoconservador,tradicionalistaeavessoàsnovasliberdadesprometidaspelo liberalismo. Inclusive na linguagem.

Oranessaimensatarefademodernizaredemocratizaropaísincluía-se,naturalmente,arenovaçãodosistemadeensinoquetenderiacadavezmaisaserpúblicoequedeveriaofereceratodososcidadãosapossibilidadedeaprenderalereaescrever,comtodasasconsequênciasquedaíseesperariam.

Desde1836,anodapublicaçãodaprimeiralegislaçãoli-beralsobreaInstruçãopública,eatéàimplantaçãodaRepública,asreformasforammuitasedevariadosentido;numprimeiroperíodo,semorganizaçãointerna,esemcritériodisciplinar,cadaqualdeixavaempiorestadooquejáestavamal;peloque,em1894-5,eemes-tadodeditadura,seimpôsumareformaqueimplantaria,nosliceus,algunsdosmecanismosorganizativosqueaindahojeperduramequejustificaramgrandepartedosapoiosqueentãomereceu,apesardemuitos serem também os seus defeitos.

Aquilo que nos interessa destacar, naquele período, é ocasodasdisciplinasqueacabariampordarorigemàsdisciplinasdeportuguêsedeliteraturaportuguesadosLiceus,entãocriados.

Nãovoumaçá-loscomoquadropormenorizadodesteper-curso,massemprevosdireioessencial:aprimeiradisciplinaquesecriou para ensinar a nossa língua chamava-se Gramática portuguesa

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e latina, Clássicos portugueses e latinos, e no último ano do curso liceal,haviaumacadeiradeOratória, Poética e Literatura Clássica, especialmente a portuguesa.

Mostra-nosestaopção,oquantopesavaaindaavelhafor-maçãolatinista,dandorelevânciaàgramáticalatinaeàleituradosclássicos.Paraalémdisso,nãohavianemgentenemmateriaisdeensinocapazesdealteraraspráticasvigentes.Detalmaneiraqueoprimeiroautordemanuaisparaestasdisciplinas,AntónioCardosoBorgesdeFigueiredo,professordo liceudeCoimbra, tratoudepublicar trêsobrasfundamentaisqueconstituíramumautênticosucessoeditorial,atéfinaisdoséculo:começouem1844,comoBosquejo Histórico da literatura clássica, Grega, latina e portuguesa, para uso das escolas;em �8�5 publica os Lugares Selectos dos clássicos portugueses nos principais géneros de discurso em prosa; em1846,ummanualde Retórica, redigidoemlatim,equenasdécadasseguintessehaviadereeditar,jáemtraduçãoportuguesa.Estatrilogiaescolarparece,aliás,tersidotípicadestafasehistóricadoensinodaslínguaseuro-peiasmodernas,comopudemosperceberdotrabalhofundamentaldeGeraldGraff,Professing Literature (1987),apropósitodoestudodalínguaeliteraturainglesas,nosprimeirostemposdosistemaeducativonorte-americano,edotrabalhosimilardeMartineJay,La littérature au lycée: invention d’une discipline (1998),paraocasofrancês.

Aselectadetextosescolhidos,aretóricaeahistórialite-ráriaconstituíram,pois,abaseantológicadaformaçãoemlínguase literaturasda segundametadedo séculoXIX,oquedeveremosentenderàluzdoconhecimentoentãodisponível,sobreaslínguasesobreasliteraturasnacionais.Nãopoderemosesquecerqueestavaaindapornasceralinguísticamoderna,eashistóriasliteráriases-tavamemconstrução,iniciadaspelavastacuriosidadehistórica,defiliaçãoromântica,aqueospositivistasdofinaldoséculoirãodarcontinuidade.

Nãoserá,pois,deadmirarqueestesmanuaissefizessemsobretudodalistagemdenomesdeautores,comassuasdataselugares,edetítulosdeobras,muitasdelaspraticamentedesconhecidasesemedições disponíveis no mercado. Se era este o manancial informativo disponível,nãonosadmiremos,também,dequeopedidoaosalunosfosse, emgrandemedida,odememorizarestas informações,queconstituíam,emsimesmas,umnotávelavançoemrelaçãoafasesanteriores.

Éem1860que,pelaprimeiravez,selegislaumadisciplinapara os liceus nacionais chamada Gramática e língua portuguesa,quecontinuaráaserensinadanosmesmosmoldes,porprofessoressemqualquertipodeformaçãoespecífica,quecontinuarãoausarosmesmosmateriaisescolaresdisponíveis.E,compequenasalteraçõesdepormenor,assimseirámanteroestudodestasdisciplinas,atéque

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areformadeJoãoFranco-JaimeMoniz,em1894-5,decidem,umavezmais,pelaversãomaistradicionalista,aoimporemumaumentosignificativodashorasdedicadasaoestudodoLatim,oquejustificamnestestermos:“NalínguadoLácio(...)expressivadarazãocomum,nosavistamosereconhecemoshumanostodososhomens.Eenfimaalmaportuguesaéumpedaçodaalmalatina!”

Adolfo Coelho foi um dos actores importantes do sistema deensinoqueentãoseorganizava,eescreveuO ensino da Língua portuguesa nos Liceus,nesteperíodoquefoideDezembrode1894aAgostode1895,enelenosdeixouumquadrodaimprecisãoemqueosestudosliteráriosseforammantendo,aolongodedécadas.Escreveuelequequandoseiniciouoensinodalínguaedaliteraturaportuguesa,nosliceus,“Faltava...omaterialparaoensino;faltavamas instruções,ospreceitosdidácticos;nãohaviaediçõesescolaresdosclássicosnacionais;apenasestavamaoalcancedeprofessoresealunosselectasmalfeitas,pesadas,eoensinodesandoulogodecomeçoemsecasanálisesgramaticaiselógicas,eclassificaçõesdetroposedefiguras. (...)peloqueascoisasficaramnaessênciaasmesmasnostrintaequatroanosquedecorreramdesdeaintroduçãodoportuguêscomodisciplinaindependentenosLiceus.(...)Amar-cha e resultadodo estudoda língua (compreendendoa literatura)portuguesasomam-senoseguinte:estudodagramática,commuitopoucoconhecimentorealdalíngua,nenhumacapacidadepráticaparaosalunosdeseexprimiremoralmenteouporescrito;conhecimentodenomesdeautoreseobras,quesebaralhamnamemória,pornãoassentaremsobreoestudodessasobras,ignorânciatotaldaliteraturanacional;(...)ideiasbaralhadassobreoratóriaepoética,cujasdefini-ções(muitasvezesfalsasoucómicas)malaprendidasseesquecemno dia seguinte ao do exame. Não exageramos.”

Enãodeviaexagerar,jáqueoutrossehaviamqueixadodomesmo,emtermosaindamaisradicais,quandosetrataradeopôroensinopúblicoaoprivado,dosmuitoscolégiosqueproliferaram,então,nacapitaldoReino,ecertamentedenorteasuldoPaís.ComoéocasodeRamalhoOrtigãoque,tendofeitopartedejúrisdeexamenoliceudeLisboa,por1875,sesentiunaobrigaçãodecomunicaraoministrodoReinoastremendasimpressõesquetalexperiêncialhehaviacausado.Entremileumacoisascuriosíssimas,diznessaCarta,tornada pública nas Farpas: “Ora a maioria dos colégios particulares sãoamaistorpeeamaisignóbilespeculaçãoaquepodedarlugarointeressedeindivíduosinaptosparaqualqueroutraprofissão,semasmaislevesnoçõesdepedagogia,semciência,semelevaçãodecarácter,semprincípiostécnicos,semdedicação,semsensomoral.”

Sobre os alunos preparados pelos colégios, “ Dir-se-iapertenceremaoutraraça,seremoprodutodeoutromeiosocial.Sãosimplesmente o fruto do colégio português”, caracterizados pela

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“inacçãomental,aapatiadacuriosidade,oentorpecimentodocritério,aatrofiadosensomoral,finalmenteamedonhapreguiçadocérebro.É desta grande massa de jovens cidadãos combalidos nos centros nervososenasfaculdadesmoraisquesaemosociososincorrigíveis,ospéssimosestudantesdoscursossuperiores,osfuturosvadios,osfuncionários relassos.”

Ora tudo isto acontecia dentro dos limites institucionais dasescolas,emparalelocomumperíododeproduçãoliteráriadeexcepcionalvalor,cujapaternidadepertenceriaàchamadageração de 70.Umageraçãomultímodaeideologicamentediferenciadaquepôdeusaraseufavora imprensaescrita,eoenormesucessoquetinha,juntodepúblicoscadavezmaisamplos,umespecíficogéneroliterárioqueaíganhouadianteira–ofolhetim,usadopormuitosdosnossos grandes escritores de oitocentos.4

Deumpontodevistamaisespeculativo,são,semdúvida,importantesosmuitostextosqueTeófiloBragadeixouescritossobretodasasgrandesquestõespolíticasdoséculoXIXeque,aomesmotempoquenospermitemestabelecerumaclaralinhadecontinuida-decomaacçãodosprimeirosromânticos,GarretteHerculano,nospermitemtambémperceberopassoemfrentedadoentretanto:équeaqueles dois românticos eram ainda personalidades perfeitamenteapropriadasàquelaformaçãosociald’acorte e cidade – íntimosdereis,tambémelesfeitosnobres,ounão,poropçãoprópria.Pelocontrário,TeófiloBragadesenha-seplebeu,usaumalinguagemmaisdirectae‘positiva’,fixaosolhosnointerlocutor,apontaodedosemcharme,enfim,calhabemmelhornumoutroespaçonoslimitesdacidade,aquenósdamosonomedea cidade e o campoequedefinimosnosseguintes termos:

“A cidade e o campo são uma unidade que assume forma visível no curso do século XIX, de carácter decididamente pú-blico e onde se constituirá a ‘opinião pública’ contemporânea. As duas partes desta unidade são, por certo, distintas, a nível formal, mas a linha divisória entre elas é repetidamente atra-vessada e, acima de tudo, cada parte vai perdendo as suas ba-ses autênticas. A cidade, ou pelo menos aquela parte da popu-lação a que podemos chamar cidade na acepção contemporâ-nea do termo, deixa de se identificar com a corte, cada vez mais tida por excedentária e anacrónica, assumindo, juntamente com as funções próprias de classe económica, valores de igualdade, de progresso e de justiça, próprios de uma sociedade moderna. À ausência parasitária de função do que restava d’ ‘ a corte e cidade’, a nova cidade opõe a função de sujeito cada vez mais consciente de um desígnio histórico assente em princípios e valores democráticos, aliada, cada vez mais, duma formação

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de origem popular, cujo ideal cultural começa a ser compar-tilhado. Ao passado de longo curso d ’a corte e cidade opõe a cidade e o campo um futuro de longo e imprevisível alcance.”5

Vivia-se,então,umnovoperíododealargamentodabasesocialcapazdeusaremseufavorumalíngualiteráriamodernizadaque,diariamente,seserviaemjornaiserevistas,emromancescujasprimeirastiragensseesgotavamemdias,empoemaslongoseinfla-madoscomoosdumGuerraJunqueiroquetodosqueriamdeclamareque,deformaabruptamas implacável,davamavera realidadecrua da vida dos mais desfavorecidos e as facetas mais obscuras dos inefáveis poderosos.

Verificamos,assim,nestafasefundadoradadisciplinaescolardeportuguêse,simultaneamente,deinstitucionalizaçãodaliteraturaenquanto criação livre eficcional, que se estabelece uma enormedistânciaentreosobjectivospedagógicosdoensinoeasmotivaçõesmaisinovadorasdaliteraturaenquantofenómenocriativo.Ouditodeoutramaneira,alinguagemdeestudodaliteratura,dentrodaescola,écompletamentediferentedalinguagemcomquesefazaliteraturadaqueletempo.

Semquererabusardavossapaciência,gostariaaindadevostraçar,emgrandeslinhas,oquadrointeressantíssimodoquefoioprimeirocursosuperiordeLetras,quefuncionouemLisboa,entre1861e1911,fundadopordoaçãoespecialdeD.PedroV(1858)eque,noscinquentaanosdasuaexistência,viveuaspioresdificuldadesqueumaescolasuperiorpodeviver:faltadeinstalações,comapenasduassalasdevãodeescada,paratodooserviçoacadémico,cedidaspelaAcademiaRealdasCiênciasdeLisboa; indisponibilidadedealgunsdosseuscincoaseteprofessores,queeramsistematicamenteconvidadospelospartidosganhadores,paraexerceremcargospolíticose/oucargosnaadministraçãopública;faltadealunos,tendohavidováriosanosemquenenhumamatrículanovaseefectuou;orçamentossemprelimitadosparaládoimpossível,umsemfimdepropostasdealteraçãodoscurrículosdoscursos,quenuncapassariamdopapel;atéque,naúltimafasedasuaexistência,acabouporsertransformadonaquiloquebempodíamos,hoje,chamar,aprimeiraescolasuperiordeeducaçãodoPaís.Comefeito,apartirde1901,sãopelaprimeiravez integradas no curso superior de letras, cadeiras de formaçãopedagógicaeumanodepráticapedagógica.Aavaliaçãofeitaporcoevosdessareformasónospodefazer,hoje,sorrir!

Ouçamoqueescreveu,em1905,ManuelBorgesGrainha,professor do liceu de Lisboa e atento seguidor do estado do nosso ensino,novirardoséculoXIXparaoXX:

“Éimpossívelqueemtrêsanoshaja tempoparaestudartodas estas disciplinas com o carácter de superior elevação que

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compete a um curso superioreaindivíduosquehão-deserprofes-soresequedevemsairdalicomhabilitação sólida e completa para poderem ensinar com séria proficiência e verdadeira autoridade.” É que“Paratermosprofessorelhosenãoprofessores,nãovaliaapenaorganizartalcurso.”

Quantoàcadeiradeliteraturaportuguesa,reduzidaa“apenasumanodeestudo”,eramanifestamenteinsuficienteparaformar“umbomprofessordeportuguêsdosliceusquedevesaberfalareescreverasualínguacompropriedadeeelegânciaparaservirdemodeloaosdiscípuloseossaberensinarnesteparticular.”Paraquasetodasascadeirasdelínguastornava-senotóriaaescassezdotempoquelhesera dedicado.

Ascadeiraspedagógicasintroduzidasnoscurrículoseram:PsicologiaeLógica;Pedagogia;HistóriadaPedagogia;LiçãoparaalunoseumaDissertaçãonaáreaespecíficade formaçãoque,noseuconjunto,formavamumcursoautónomodeformaçãopedagó-gica,quepassaria,quatroanosdepois,aserobrigatórioparatodososcandidatosaprofessoresdosliceus:querparaosalunosdeletrasquerparaosalunoscomformaçãosuperioremmatemática,ciênciasfísico-químicas,histórico-naturaisedesenho,queaquicumpriamoquartoeúltimoano.Grainhadedicaseverascríticasàsupervisãodes-taspráticas,dequehojeestamosrepetindoosmesmoserros,sempreasseguradas pelos professores do curso superior de letras e por eles avaliadas,mesmoparaosalunosdoscursoscientíficos.

Comasprimeirasmatrículasefectuadasem1902/03,há exactamente cem anos atrás,eram19osalunosmatriculadosdequesóquatrochegariamao4ºano;eem1905-06,anodapublicaçãodolivrodeGrainhaqueestamosacitar,haviaseisalunoseduasalunas,no1ºano;no2ºano,3alunos;no3ºano,trêsalunoseuma aluna eno4ºano,3alunos:1paraasecçãodefilologialatinaefilologiaportuguesa;1paraafilologiaportuguesa,línguaeliteraturafrance-sa;e1paraasecçãodegeografiaehistóriaantiga,daidademédiaemoderna.ImaginemsóoluxodeterumTeófiloBragaouumAdolfoCoelhoaensinaremmeiadúziadealunosporano.

E se o numerus claususera,então,umconceitosemapli-cação,outras situaçõeshaviadeenormesemelhançacomanossacontemporaneidade.Grainhaterminaassimesteseutrabalho:

“Porque – convém que os legisladores e os pais de família, que se queixam do nosso ensino, tenham presente esta verdade – enquanto os nossos professores de liceu virem, como actualmente vêem, que o seu trabalho é desconhecido e menosprezado, superiormente, que o seu bom serviço não tem compensação nenhuma, que tanto ganham e são estimados en-sinando bem como ensinando mal, e, o que é pior ainda, - que a

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injustiça campeia nos serviços da instrução, dando-se coloca-ções e comissões honrosas e lucrativas a quem menos trabalha e mais descuidado é, com tanto que fervilhe política e intrigan-temente – enquanto se derem todos estes factos, que são hoje correntes, impossível será ter bons professores, e, até aqueles que naturalmente o seriam, e que começam animosamente e procedem com zelo durante algum tempo, virão a desanimar, descair e tombar no mesmo descuido e caminho tortuoso dos outros, que por ele vêem subir e trepar.”6

AsduasdécadasdaRepúblicaforamdeenormecriatividade,sobretudolegislativa,associativaeinstitucional.Nasceramentão,asfaculdadesdeLetrasdeLisboa,deCoimbraedoPorto,sendoestaencerrada alguns anos mais tarde.

A de Lisboa herdou a tradição de ensino e alguns dos professoresdoCursoSuperiordeLetras,entreosquaisovelhoemalqueridoTeófiloBragaquecumpriuumacarreiraacadémicadequasecinquentaanos.Eocursodefilologiaromânicaqueentãoseinstituiu,comalgumasalteraçõescurricularesdeposterioresreformasdoEstadoNovo,foiaindaocursoqueeufrequentei,nosfinaisdosanossessenta.E,depoisdovinteecincodeAbril,todososcursosdeFilologias seriam substituídos pelos cursos de línguas e literaturas. Afinal, asorigens estavamali tãoperto, enós convencidosdumaancestralidadeindiscutível!...

Face a este rápido quadro que tentei traçar-vos, resultaclaroque,nalentasucessãodosséculos,umaideiapermanecequeosatravessa,atéhoje:osperíodosdemaiormobilidadesocialsão,quasesempre,osperíodosdemenorestabilidadelinguística,caben-doaoscriadoresliteráriosconquistarcredibilidadeculturalparaasrealizaçõeslinguísticasmenoscreditadassocialmente.Porsuavez,aEscola,nassuasdiversasmodalidadeshistóricas,serásempreolugardecontrolodadistribuiçãodalinguagemliterária,sobretudonasuaforma linguística.

Poderão ser variadíssimas as soluções e complexamente ligadas amuitasoutras circunstânciasdemaior edemenorpeso:Queremos assegurar um determinado nível de execução da lingua-gemliteráriaediferenciá-la,omaispossível,deoutros“falareseescreveres”socialmentediminuídos?Cria-se,então,umsistemadeensinorígidoecomcompartimentosrelativamenteestanques,comuma clara progressão de conteúdos a separar os diversos níveis. Foi oqueaconteceu,durantetodootempodoEstadoNovo,pordetrásdaaparenteeficáciaquealgunslhereconhecem.

Queremosdemocratizara língua,abriraescolaa todootipodediscursos,proporcionar,atodos,ocontactocomaliteratura?Háqueadmitiranecessidadedebaixaralgunsíndicesdequalidade

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edeexigência,duranteumcertotempo.Dosearerevelardiferenças,deixarexperimentaraqualidade,criarhábitosdeboaconvivênciacomosgrandesautoresetextos.Mas,esobretudo,éprecisocontarcomum corpo docente consciente destas sucessivas curvas ascendentes e descendentes,paraquepossamprevermecanismospedagógicosquetravemainevitávelconfusãoeaineficáciatemporáriadosistema.Sobretudo não adormecer sobre a aparente comodidade oferecida por alguma perda temporária de exigência.

Epassoaperplexidadesmaisrecentes,provocadaspelosdesafiosquehojesecolocam,comqueterminarei.Ostemposmuda-rammuito,nestasúltimasdécadas,emtudo,etambémnasformasdedizeredeescrever.Hão-de,forçosamente,perceber-seasmudançasenormes de linguagem que entretanto se operaram na sociedadeportuguesa:umaautênticaavalanchedenovosconceitos,traduzidosemnovos vocábulos que não paramde enriquecer a língua, e derepresentarnovasformasdeconhecimentoedeconvivência,novoscomportamentossociaisenovasexigênciascívicas,tecnológicasecomunicativas.

Parece,hoje,emmoda,adesvalorizaçãodasHumanidades,atrocodeumalinguagemtecnicista,seca,meramenteinstrumental,quetemvindoasergeneralizadacomasnovastecnologias,eque,segundomuitosobservadoresatentos,constitui,hoje,amaissériaconcorrentedaslínguasnacionais.Masperceberemostantomelhoradimensãodevastadoradasuaadopçãocegaquantomelhorsouber-mosperceberomuitoquesejoganaslínguasnacionais,amassadasdesentimentos,deafectos,desolidariedadesedecumplicidades,equesónaliteraturasepreservam.

Amissãodaescola,edaliteraturadentrodela,jánãoseráhojetantoadeproporcionarumalinguagemdeeliteaosfilhosdopovo,massimadeensinarumalínguacomhistória,comalma,commemória,ecomcultura,aosjovensestudantesquehojenascemsobreainfluênciademolidoradosformatosfabricadospelosaudio-visuais.

Emvésperasdesedecidirsobreumaguerraquenãosabe-remosondepodelevar-nos,aopinião pública mundial ganha foros de potênciaconcorrentecomospoderesdodinheiroedosnegócios.Oquesignificaqueaquelaformaçãosocialaquechamámos a cidade e o campocontinuaacrescer,aamadurecereasolicitar,decadaumdenós,umaacçãocadavezmaisviva,maiscrítica,maisexigenteemaiscorajosa,nadefesadosvaloresdecujaperdatantonosqueixamos.

EtodoselessedizemembomPortuguês...peloqueconti-nuaraensinarportuguêseliteraturaportuguesaé,maisdoqueumapaixãopessoal,-eparaestabelecermosumapontecomaprimeiraConferênciaaquiapresentada–umanovafasenabuscapermanentee cada vezmais necessária daArte de Ser português...nomundoglobalizadoqueaítemos.

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Bibliografia

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Fernandes,Rogério,Os Caminhos do ABC. Sociedade Portuguesa e o Ensino das Primeiras Letras,Porto,PortoEditora,1994.

Tolentino,Nicolau,Sátiras,selecção,prefácioenotasdeRodriguesLapa,Lisboa,LivrariaPortugália,1941.

Grainha,ManuelBorgesA Instrução secundária de ambos os sexos, no estrangeiro e em Portugal,Lisboa,TipografiaUniversal,�905.

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Rodrigues,Ernesto,Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal,Lisboa,EditorialNotícias,1998.

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Notas1ErnstRobertCurtius,(1953),trad.esp.Literatura Europea y Edad Media Latina,

México-Madrid-BuenosAires,FondodeCulturaEconómica,1976.2ErichAuerbach,(1965),Literary Language and its Public in Late Latin Antiquity and

in the Middle Ages,trad.esp.Lenguaje Literário y Publico en la Baja Latinidad y en la Edad Media,Barcelona,Seixe-Barral,1969.

3CitdeRogérioFernandes,Os Caminhos do ABC. Sociedade Portuguesa e o Ensino das Primeiras Letras,Porto,PortoEditora,1994:235.

4VerErnestoRodrigues,Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal,Lisboa,EditorialNotícias,1998.

5Estadefiniçãodoconceitodecidade e campoqueaquipropomossegueecontrastaadefiniçãopropostaporAuerbachparaoconceitodecorte e cidade,aqueatrásnos referimos.

6M.BorgesGrainha,A Instrução secundária de ambos os sexos, no estrangeiro e em Portugal,Lisboa,TipografiaUniversal,1905.

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Do simbolismo aomodernismo:

o percurso poético deMáriodeSáCarneiro

Helena Genésio

OpercursopoéticodeMáriodeSáCarneiroevoluiapartirdeumaconfluênciadeexpressões“maisdeterminadoporafinidadesqueporimitação”nodizerdeJoãoGasparSimões.

AbordarotomdasuapoesiasãoecosdeBernardimRi-beiro,ressonânciasdeCamiloPessanha,trocascomAntónioNobre,projecçõesemFlorbelaEspanca,recepçãoemJoséRégio.Seosecosdatradiçãolíricaportuguesasãoperceptíveis,tambémnasuaobrasesenteavontadedeinovar,dechegaraalgodenovo.

TraçaremossucintamenteopercursometeóricodeumEu,convictodeumagrandezasingular,quepostulouumalémdeplenitudemas,incapazdesedesdobrar,perde-sedentrodesi,oscila,hesita,atéatingirolimitemáximodeaniquilamentodosujeito.

O Eu do poeta está reconhecidamente no centro e é a partir destecentroqueseorganizamosgrandestemasdasuaobra,quemaisnãosãodoqueaexpressãosubjectivadoser.

MáriodeSáCarneiroétalvezorepresentantedaquiloaquepoderemoschamar“atitudeOrpheu”:asuaobracorporizaumatradi-ção mais ou menos aceite mas também exclui a tradição na vontade de chegar a algo completamente novo.

Háumaformadeserdevanguardaquenãoexcluiomanter,

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decertamaneira,umaescritapróximadosimbolismo.EmMáriodeSáCarneiro,aaceitaçãodatradiçãosimbolistaétambémumaformade modernismo.

Adefiniçãodasuapoéticatemosciladoentreextremos;aleituraapartirdaqualénormalmentesituadaémaisoumenoscons-tanteeorganiza-seemtornodahesitação:ÉSáCarneirosimbolistaoumodernista?É um sobrevivente do passado ou pertence a ummovimentoderuptura?

JoãoGasparSimõesdáomotenoprefáciode1946àprimeiraedição de PoesiasnaÁtica.Paraele“erasimbolistapornatureza”echegamesmo,nasua“fasederradeira”areentrar“natradição”.Istoembora o reconheça um “percursor da poesia moderna”�.

A imagem dada é a de um comparsa de Fernando Pessoa –estesimmodernista!Éocompanheiroímpar,maslimitadopeloselos com a tradição. “Os ismosnãoseduziramàprimeiravista,opoetada Dispersão,quepermaneceriamaisapegadoàescritadodecaden-tismo-simbolismo”2FernandoJ.B.Martinho,generalizaestaleitura:“Averdadeéque,opróprioSáCarneiro,pormuito inovadorquetenhasidoe,semdúvidaofoi,eemelevadograu,émaisumpoetadacontinuidadequedaruptura:sefoivanguardistacomManucure,porblagueofoicomosesabe…”3

ÓscarLopeslevá-lo-àaoextremo,aoconsiderá-loa“per-sonificaçãomáximaeatépatéticadodecadentismo-paulismo”�.

Naposiçãocontrária,aquemarcaasuaatitudevanguar-distaestáJoséRégioqueconsideraMáriodeSáCarneiroo“maiorintérpretedecertapersonalidadecontemporânea,um“génioinova-dor”,um“revolucionário’’5ÉaindaRégioquetornaaamplitudedasclassificaçõespossíveisinfinita,aoafirmarposteriormentequeMáriodeSáCarneiroera“umartistaderaizclássica”6.

Declássicoavanguardista,passandopordecadente,sim-bolista,nãosepodesermais.

MSCnascenomesmoanoemqueEugéniodeCastropu-blica“Oaristos”(1890)otempodasuavidaéoda“revolução”quese inicia com o simbolismo e culmina na vanguarda.

AartedeMSCpartedosimbolismo,comoomodernismoeavanguardapartem;nãoesqueçamosquesãorevistasmodernistasque,pelaprimeiravezpublicamumnúmeroconsideráveldepoemasde Camilo Pessanha e Ângelo de Lima7.

Qualquerleituradasuaobrarevelaráqueastensõesonto-lógicasqueaorientamcontribuemparaoretratodeumsujeitoemcrise,sempreàprocuradumasoluçãosonhadasobaformadafigurado Outro. Toda a sua obra poética pode ser lida como um longo caminharaoseupróprioencontro,numabuscadoser,baseadana

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dialécticaentreaexistênciadummundofísico,concretoeopoderimaginativodecriarouredescobrirummundoautêntico,ondeoartistase possa encontrar. Assim também a ideia simbolista de relação entre arealidadeaparenteearealidadeocultanaqualsóopoetapenetra–opoetaassume-secomovisionário,comooúnicoquepoderádecifraromistériodacriaçãopoética.Acriaçãopoéticaéconsequentementeacomunhãocomomistério,comoalém.

Retomandoaimagemdopoetacomoserquetemobrigaçãodeultrapassaroslimitesdoquotidiano,domundofísico,parapoderrecuperarosignificadoessencialdaexistência,aobradeMSCilustrabemossentimentosdecadentistasqueJacintodoPradoCoelhodes-crevecomoestandoligados“aocansaçodumageraçãoquesejulgaestarnoocaso;aotédio;àbuscadesensaçõesnovasmaisintensas,fruídasnoextravagante,nomórbido,nosrequintesdaforma”8.

OsignificadoessencialdavidaaparecenapoesiadeMSCsob a forma de um além ansiosamente sonhado, onde o poeta seencontraria com o seu Eu verdadeiro.

MSCtransforma-seassimnoparadigmadeumageraçãoquedesdeosimbolismo(emesmoantes)buscaoêxtase.Desligando-sedorealquotidianoanima-oavontadedetranscender,deencontraroabsoluto.OimpulsodesubirpareceseradirecçãodoEupoético,expressa no poema Partida:

O que devemos é saltar na brumaCorrer no azul à busca da beleza.

É subir, é subir além dos céusSombra, vertigem, ascensão – Altura.Alastro, venço, chego e ultrapasso.

Consome-o um desejo de atingir sempre mais, de tudoviver,mesmooimpossível.Opoetapostulaumalémdeplenitudeestéticadaqualasuaalmaparticipariaafirmando-secontratodasasevidênciasquotidianas.NomesmopoemaPartida:

Porque eu reajo. A vida, a natureza,Que são para o artista? Coisa alguma.

Atitudebemcaracterísticadospoetasdecadentesaquemsóabelezainteressava;assumidoscomodescendentesdeumaestirpe,quetrazconsigo“amarcacomqueDeusabençoaospredestinadoseosdivinos”;porque“ser-sedecadenteéser-sedoenteespiritualmente,

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éser-sesuperior!AArteéadoençaimortaldospálidosdeDeusedaBeleza(…)9

Há na atitude decadentista dos poetas finisseculares umcerto orgulho de pertencer a esta estirpe dos “incompreendidos neste mundomesquinho,dossonhadoresdeumpoucomaisdeazul”�0. A mesmaatitudeassumidaporMSCemPartida:

O meu destino é outro – é alto e raroAvozdopoetameditaemcoisasgeniais,traçaumprogra-

maidealdevida.Umimpulsoascensionalanimaessavoz–elaquersubir,transcender,iralémdoslimites.Opoetaestáconvencidodasuagenialidade,coloca-seacimadetudoetodos.

MSCdecideassimoseudestino,masdefine-ocomadorimensadenãoopoderconciliarcomoseudestinoterrestre–a tristeza de nunca sermos dois.Ohomemeoartistafazemum,quetemdeviveradordasuaglórianumasolidãoqueéasuaúnicaverdade.Otemadavidacomolugarcomumreaparecealgumasvezesaolongodaobra.NofundoMSCamaavidaesente-seporvezesumacertanostalgia da normalidade. Nostalgia denunciada no poema Como eu não possuo:

Olho em volta de mim. Todos possuem –Um afecto, um sorriso ou um abraço.Só para mim as ânsias se diluemE não possuo mesmo quando enlaço.

Não sou amigo de ninguém. Pra o serForçoso me era antes possuirQuem me estimasse – ou homem ou mulher,E eu não logro nunca possuir!...

Opoetaestásó.Diferentedosoutrosporquenãopossuiafectos,sorrisos,abraços…OdramadenãopossuiréaindaassumidoporMSCemcartaaFernandoPessoa��:

O que eu desejo nunca posso obter nem possuir, porque só o possuiria sendo-o. Não é a boca daquela rapariga que eu quisera beijar; o que me satisfaria era sentir-me, ser-me aquela boca, ser-me toda a gentileza do seu corpo agreste.

Umavezmaisoabsoluto,aânsiadetranscendereacons-ciência da impossibilidade de alcançar. É no fundo a identidade de simesmoqueestáemcausanonãopossuir.Asuaidentificação,o

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fixar-seatravésdacomunicaçãocomooutrofalha.Volta-seentãopara sipróprio;procura-seemsimesmo.Transforma-seentãonocentro da sua poesia.

MSCrecriaumintimismo,busca-seexaustivamente;éoEuqueopreocupa.Refugia-senoeupelaincapacidadedemantercontactocomooutro.Éapartirdoeuqueseorganizamosgrandestemasdasuaobraquemaisnãosãodoqueaexpressãosubjectivadoser–éderestoestaatitudeautocontemplativaumdostraçosquemelhordelimitamatradiçãosimbolistadopoetaeque,maistardeencontraremos na poesia de Florbela Espanca:

Porque eu sou Eu e porque Eu sou alguém

Sou eu! Sou eu! A que de mãos ansiosasPrendeu a vida, assim como ninguém.

EmMSCoEupossessivamenteegocêntrico,autocontem-plativo,encarnandoatéaolimitemáximoocultosimbolistadafiguraexcepcionalealtivadoartista,é,paralelamenteumEuincapazdesedefinir,deseconcretizar,perdidodelepróprio.Umeudisperso,vísivel em vários poemas.

De Escavação:Divago por mim mesmo a procurar,Desço-me todo, em vão, sem nada achar,E minh’alma perdida não repousa

Onde existo que não existo em mim?

De Álcool:Quero reunir-me e todo me dissipo

Corro em volta de mim sem me encontrar…

De Dispersão:Perdi-me dentro de mimPorque eu era labirinto

Dispersão do Eu, eco de uma longínqua tradição lírica

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portuguesa,queBernardimRibeirohaviajásentido,expressando-onum vilancete�2:

Antre mim mesmo e mimNão sei que s’alevantouQue tam meu imigo sou

Ou ainda:

De mim me sou feito alheio

OEurealcontempla-seaoespelhoparaneleveroideal,masaimagemqueoespelholhedevolveéadelepróprio,nãoadooutro. O Eu não se desdobra. O poeta não consegue desembaraçar-se do eu mas também não consegue conviver com ele.

Se os simbolistas e os decadentistas celebraram a desinte-graçãoespiritualdoindivíduo,omodernismolevouessadesintegra-çãoàsúltimasconsequências:oindivíduoévárioseus,édialógico.MSCficouameiodoseuprojectodealteridade,nãoconseguiuserooutro,mastambémnãoéelepróprio:aanulação,dissoluçãooudispersão do sujeito parece ser uma das características mais marcantes domodernismo;MSCsoubeassumi-laemtermosbemexplícitosnasua poesia:

Eu não sou eu nem sou o outro,Sou qualquer coisa de intermédio:Pilar da ponte de tédioQue vai de mim para o outro

Eamodernidaderetomaatradição,evematénósalongín-quavozdeSádeMirandaquandoescrevia�3:

Comigo me desavim,Sou posto em grande perigo:Não posso viver comigoNem posso fugir de mim

Eavozdopassado,eavozdopresentehão-deouvir-sedenovonofuturoquandoavozdeFlorbelaEspancadisseramesmadispersãodoEu,amesmadesarticulaçãoentre realidadeesonho,entreoqueseéeoquesedeseja:

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Ah! Quem me dera ser Essas que eu fui,As que me lembro de ter sido…dantes!...

De não ser Esta… a Outra…e mais AquelaDe ter vivido, e não ter sido Eu…

MSCnão consegue atingir oquedeseja,fica ameiodopercurso;quisserÍcaro,foiDédalo.Entreaambiçãoeanostalgia,opoetaconsciencializa-sedadicotomiadispersivadoseuser,nãoatingeoabsolutoenãoseadaptaàvidadoquotidiano.Assume-oemVontade de Dormir:

Arranquem-me esta grandeza!- pra que me sonha a beleza,Se a não posso transmigrar?...

Asduasatitudes–desejodetranscendereimpossibilidadedesse desígnio são coexistentes e originam metáforas de frustração –desajusteentreosonhoearealidade.Opoetanãoatingeoabsolutoaqueaspira,ficaameiodocaminhoentreoaquémeoalém;éadordeserquase.ÉemMSCqueoQuaseéelevadoàcategoriadesímbolopelaforçaeirremediabilidadequearrasta.Quaseéosignotextualquetraduzodramadopoeta–desejofalhadodeabsoluto,materializadoemmetáforasdefrustração,decarência,denãorealização,expressasao longo do poema Quase:

Templos onde nunca pus um altar…Rios que perdi sem os levar ao mar…Ânsias que foram mas que não fixei…Ogivas para o sol – vejo-as cerradas…E mãos de herói, sem fé, acobardadas…

Metáforasquetraduzembemaconsciênciadoabsolutoeaimpossibilidadedeoalcançar.Nadaselevaatéaofim,nadaserealiza,nadaseatinge,nadasefixa.Tudoseesvai,sedesfazemespumaeogrande sonho não o chega a ser.

Ograndesonhoqueeraafinaloafastamentodorealherdadodosimbolismo“resultamaisumavezdainaptidãoaomundoconcreto,dessainaptidãoparaavidaquejácaracterizaraageraçãodeCamiloPessanha”��.OgrandesonhoemMSCesvai-seemespumaedessesonhoficaapenasumadistantemelodiaondeopoetanostalgiaumapositividadeperdida,ondeecoamreminiscênciassimbolistasnassuasriquezassinestésicas,bempresentesemDistante Melodia:

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Num sonho de Íris morto a oiro e brasa,Vem-me saudades doutro tempo azulQue me oscilava entre véus de tuleUm tempo esguio e leve, um tempo asa.

Então os meus sentidos eram cores.Nasciam num jardim as minhas ânsias.Havia na minh’alma outras distânciasDistâncias que o segui-las eram flores…

Caía oiro se pensava em estrelas.O luar batia sobre o meu alhear-me…Noites-lagoas, como éreis belasSob terraços-lis de recordar-me!...

Tapetes de outras Pérsias mais Oriente…Cortinados de Chinas mais marfim…Áureos Templos de ritos de cetim…Fontes correndo sombra, mansamente…

Lembranças fluidas… Cinza de brocado…Irrealidade anil que em mim ondeia…- Ao meu redor eu sou Rei exilado,Vagabundo dum sonho de sereia…

Opoetanostalgiaoabsolutoquesonhouenãoteve–reideumreinoazulondetudoeraluz,cor,perfume;reifascinadoporimagensdooriente;reiquenãoconcretizouoseusonhoeporissoreiexiladoemsimesmo.Umsonhoquepareceterexistidoalgures.Porémhoje,apenasasuaindelévellembrança.Lembrançasfluidasdeumtempoazul.Ocromatismosurgecomodepositáriodeumapositividadeindefinível:Então os meus sentidos eram cores,coresquetambémsedeixamevocarcomoumbemperdido:Que nunca mais em cor hei-de habitar.

Ocromatismoremete-nosparaosonho.AcorfaznaobradeMSCconcorrênciaaoOiro.Masaocontráriodacorooirotrazemsiumacargasimbólicadestruidora.MSCrevolvendoolegadofinissecular recorre ao oiro não tanto como elemento decorativoquantocomofiguraçãosimbólica,“comoemblemadagrandezaemprojecção e do malogro em processo”�5.

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Mas o oiro não perdura(NossaSenhoradeParis)eporissoé Oiro sinistro(Taciturno)eassimSó de oiro falso os meus olhos se doiram(EstátuaFalsa)eSe acaso em minhas mãos fica um pedaço de oiro / Volve-se logo falso…(AQueda).

Cadavezmaisconscientedasuainaptidãoparaavida,opoetaanseiaoseuaniquilamentoqueofazolharamortecomoletargiaousono.MSCrecuperaatemáticadodormirexistenteemCamiloPessanha como forma de anulação do Eu. A morte é desde logo apon-tadacomorepouso,identificadacomosono;amorterepresentaumestadodesejadopoiscomelaadoracabaráeopoetapoderáenfimserfeliz-Nirvanadesono,associadoàpulsãodamorte:

Ai que saudades da morte…Quero dormir… ancorar

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,Dormir em paz num leito de hospital…Cansei-me dentro de mim, cansei a vidaDe tanto a divagar em luz irreal

É no poema Caranguejolaqueotemaélevadoaoextremoeamortesetraduzemletargiagozosa.OEusente-seirremediavel-mentedesidentificadoeporissoimpossibilitadodeserelacionarcomo mundo e com o tempo:

Ah, que me metam entre cobertores,E não me façam mais nada!...Que a porta do meu quarto fique sempre fechada,Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Noite sempre no meu quarto. As cortinas corridas,E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor!...Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolorPlo menos era o sossego completo… História! Era a melhor das vidas…

Opoetademite-sedeviver,oúnicodesejoéquesejasem-prenoiteparaquepossasossegar.Osonoéumestadodesejado,éo nirvana apetecido pois representa o adormecimento de todos os desejos e a extinção de todos os sonhos. É essa também a tradição deAntónioNobrequenosúltimosversosdeMales de Antoreflecteomesmoapeloaoesquecimentoeàmorte:

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E ouve: na horaFinal, quando a trombeta além se ouvir,Tu não me venhas acordar, emboraChamem… Ah, deixa-me dormir!

Numtomconfessional,dispostoàclarezaeàaceitaçãodobanal,doconcreto,opríncipedooníricovolve-seàsombradeAntónioNobre,seuprecursoremParisenasolidão,paraaconfidênciatristedo seu fracasso em Caranguejola:

De que me vale sair, se me constipo logo?E quem posso eu esperar com a minha delicadeza?...Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –E não penses no resto. É já bastante, com franqueza…

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.Pra que hei-de então andar aos tombos, numa correria?Tenham dó de mim. Co’a breca! Levem-me para a enfermaria!Isto é, para um quarto particular que o meu pai pagará

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;Em Paris é preferível, por causa da legenda…De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem estilo…

Quanto a ti meu amor, podes vir às quintas-feiras,Ser quiseres ser gentil, perguntar como estou.Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras…Nada a fazer minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

“A frontalidade brutal em poemas como Caranguejola,instauraocoloquialismocatalizadoporNobrequesómaistardeseria

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aceitecomopoesia.MSCfoioprimeiroacompreender,edilatar,umadasgrandesinovaçõesdeAntónioNobre,equenenhumcríticosublinhara: o discurso poético sabiamente desataviado”�6. A linguagem familiareoaparecimentodonomeprópriosãoelementosimportan-tesnotomdesinceridadeassumidonopoema;eestacaracterísticaéaindadecorrentedaestéticafinissecular:AntónioNobreeCamiloPessanha tratam respectivamente em Males de Anto e Inscrição o mesmo desejo de morrer mantendo a consciência.

Poroutrolado,asregrasetécnicasdaherançasimbolistabemcomooseuvocabuláriolíricoeidealdebeleza,sãocompletamentenegados.Estamosempresençadealgodenovoemqueopróprioalargamentoderitmosealiberdademétricaseopõemàharmoniaesimetriatradicionais.Éassumidocomopoesiatudooqueatéaquifoi recusado como não poético.

Despojado de tudo o poeta assume o seu fracasso afastan-do-sedefinitivamentedolíricoironizaasuasituação,levaocinismoaoextremo.Nãoquernada.Nãodesejanada.Estáfarto.Demite-se.Retira-sedecena.Talvezumdiaoentendam…poragoraquerapenasqueodeixemempazqueodeixemsossegar:Nada mais a fazer… O menino dorme. Tudo o mais acabou

Tomadodemal-estarperpetuamenteinsatisfeitoMSCtemconsciênciada imperfeição:“Opoetaodeia-seporquenãoébelo,porquenãoésão,porquenãoé triunfador.Masadmira-seporquenasceucomoninguémparaserbeloesão,paraatingirossupremostriunfos(…)tudoemvoltadeleflúi,rui,vertigina”�7.

RegressouaAqueloutrodeondesemprequispartir.Comcruel lucidezexprimiuemAqueloutro “irónicaedolorosamenteaconsciênciadafeiçãotragicómicadasuaexistênciaquenãochegoualémmastambémnãoficouaquém”�8:

O dúbio mascarado, o mentirosoAfinal, que passou na vida incógnito;O Rei-lua postiço, o falso atónito;Bem no fundo o covarde rigoroso…

Em vez de pajem bobo presunçoso…Sua alma de neve asco de um vómito…Seu ânimo cantado como indómitoUm lacaio invertido e pressuroso…

O sem nervos nem ânsia, o papa-açorda…(Seu coração talvez movido a corda)Apesar de seus berros ao Ideal

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O corrido, o raimoso, o desleal,O balofo arrotando império astral,O mago sem condão, o Esfinge gorda…

Aqueloutroéumtextolimiteemqueopoetaseauto-censura,condena-se,apontandoemantítesesperfeitasasalternativasquenãoassumiu.Nestacondenaçãodesiprópriousaovocabulárioexactoentreafamiliaridade,aalcunhaeasqualificaçõesdedesprezo.

Opoetaexprimeemtomirónicoecarregadodesarcasmoaconsciênciadoquefoioseupercurso:ograndesonhodesfez-se;Aqueloutroéa imageminvertidadoquesonhou,éoexcessoquenestepoemaésentido;oexcessodeumamegalomania virada do avessocomodizÓscarLopes.

DeMSCsedizquenãotevevida,teveobra.Convictodasuagrandeza,quis sentir tudo de todas a manei-

ras,quisrecuperarosignificadoessencialdaexistência,retomandooidealsimbolistadopoetaquetemobrigaçãodeultrapassaroslimitesdomundo físico. Esse ideal surge sob a forma de um além ansiosamente sonhado,ondeseencontrariacomoseuEuverdadeiro.

Percursosolitárioparaumdestinoraro,nãoconciliávelcomodestinoterrestre.Oquererviajar outros sentidos e outras vidas,implicaopçõesqueopoetanãoconsegueassumir.Percursoiniciadoenuncacumpridoequedeixapor isso amarcada frustração,dacarência,doQuase.

Asolidão fá-lovoltarpara sipróprio;voltou-seexclusi-vamenteparaoEueaolongodasuaobra,maisnãofazdoqueummonólogoquenãodeixadeserumahistóriadeamorporelemesmo.Históriadeamorquetransformaemdesamorporquesecontemplaaoespelhonaesperançadesereveroutro,masaimagemqueoespelholhedevolveéadelepróprio–bobo, papa-açorda, esfinge gorda.

Nãoseconcretizouoseusonho,nãocumpriuoseudestinoaltoeraro,porquefoiincapazdeseroutroeporissoarrastaoestigmadacarência,dafrustração,doquase,atéaoextremodesi,regressandocontinuamenteaondesemprequispartir,aAqueloutro.

A única maneira de partir foi mesmo a morte.Despojou-se do corpo e o poeta cumpriu-se.

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Notas� Cit.porFernandoCabralMartins–O Modernismo em Mário de Sá Carneiro,

ImprensaUniversitária,Lisboa,EditorialEstampa,1994,pág.124.2 Seabra, JoséAugusto –Entre dois exílios: de António Nobre a Mário de Sá

Carneiro,Porto,NovaRenascença,35-38,1990.3 Martinho,J.B.–Mário de Sá Carneiro e o(s) outro(s),Lisboa,HienaEditora,

1990,pág.27.� Lopes,Óscar–Alguns nexos diacránicos na poesia novecentista portuguesa,in:

A Phala, um século de poesia,Lisboa,AssírioeAlvim,1988.5 RégioJosé–As Correntes e Individualidades da Moderna Poesia Portuguesa,

tesedelicenciatura,1925.Citpor:FernandoJ.B.Martinho,obcit.6 Régio,José–Pequena História da Moderna poesia Portuguesa,Lisboa,Editorial

Inquérito,1941.Cit.porFernandoJ.B.Martinho,obcit.7 AngêlodeLima,Poemas Inéditos,Orpheu 2,1915;CamiloPessanha,Poemas

Inéditos, Centauro, 1916.8 Coelho,JacintodoPrado–Decadentismo;in:DicionáriodaLiteratura,vol.I,3ª

edição,Porto,Figueirinhas,1984,pág.249.9 CfLuísdeMontalvor-Tentativa de um ensaio sobre decadência,in:Centauro,

ediçãofacsimilada,Lisboa,ContextoEditora1982.�0 Cf.AntónioQuadros-O Primeiro Modernismo Português – Vanguarda e Tra-

dição;PublicaçõesEuropa-América,1989,pág.103.�� SáCarneiro,Máriode–Cartas a Fernando Pessoa,vol.I,Lisboa,Ática,1978,

pág. ��8.

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�2 Ribeiro,Bernardim–Vilancete,in:PoetasdoCancioneiroGeral,prefácio,selec-çãonotaseglossáriodeÁlvaroJúliodaCostaPimpão,Lisboa,LivrariaClássica,�9�2.

�3 SádeMiranda–Poesias,selecçãoprefácioenotasdeRodriguesLapa,LivrariaClássica,3ªedição1949.

�� Rocha,Clara–Revistas Literárias do século XX em Portugal,I.N.C.M,1985,pág. 3�6.

�5Cf.JoséCarlosSeabraPereira,Rei-Lua, destino dúbio, legados finisseculares e eversão modernista na lírica de Mário de Sá Carneiro,ColóquioLetrasnº117/118Set/Dez1990.

�6 Lacerda,Alberto–A poesia de Mário de Sá Carneiro, tragédia sem suporte,ColóquioLetras,nº117/118,Set/Dez.,1990.

�7 Régio,José–Da Geração Modernista, in:Presença,nº3,ediçãofacsimiladacompacta,Contexto,1993.

�8 Rocha,Clara-obcit,pág.302.

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Da loucura: comoLogosemJoséRégio

Carlos Teixeira

AntesdeentrarnotemaqueprocurareidesenvolveràluzdamultifacetadaobradeJoséRégio,parece-meconvenientefazerumabreve apresentação do autor. Na verdade o autor dos Poemas de Deus e do Diabo émaisumdaquelesescritoresdequem(quase)todaagentejáouviufalarepoucosleram.Nestecontexto,torna-sedesejáveldaraconhecer,emtraçoslargos–dadaabrevidadetemporaldequedispomos–,avidaeaobradestequefoiumdosmaiscompletosecomplexosescritoresportuguesesdoséculoXX,e,naexpressãodeIsabelCadeteNovais,“umadasmaislúcidasconsciênciasliteráriasdo seu tempo”�.

Falodoescritorporque,apesardeseterestreadocomosPoemas de Deus e do Diabo,em1926,Régiocultivouostrêsmodosliterários.Foi,semdúvida,umeloquentepoeta,tendodeixadodezlivrosdepoesia.Apresento-osporordemdepublicação:primeiro,osjá referidos Poemas de Deus e do Diabo,aosquaisseseguiuBiogra-fia. Depois: As encruzilhadas de Deus; Fado; Mas Deus é grande; A chaga do lado; Filho do Homem; Cântico suspensoeosdoisúltimos,que foram editados postumamente,Música ligeira e Colheita da tarde.MasJoséRégiofoiigualmenteumfecundoromancistaeumoriginal dramaturgo. Estreou-se no romance com Jogo da cabra cega –narrativaelaboradasobreaanálisedasdificuldadesderelaciona-

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mentoentrepessoascomplicadas(temainéditoentrenós).Aindanoromance,edepoisdeterdadoàestampaO príncipe com orelhas de burro,mergulhounaescritadeumlongoromanceintituladoA velha casa,doqualdeixoucincovolumescompletoseapontamentosparaum sexto.Ainda na narrativa, escreveu a novelaDavam grandes passeios aos domingos e dois livros de contos intitulados Histórias de mulheres e Há mais mundos.Oteatrofoitalvezasuamaiorpaixão.Dasoitoobrasqueproduziuparateatro,destacoJacob e o Anjo e com maior ênfase Benilde ou a Virgem-Mãe(obracujalinguagem,nodizerdeÓscarLopes,“sópodecomparar-senanossaliteratura,pelasuadignidade,aoFrei Luís de Sousa”2).Daproduçãoteatral,realçoainda El-rei Sebastião; A salvação do mundo e o volume intitulado Três peças em um acto,ondeseincluemasobras“Trêsmáscaras”,“Omeucaso”e“MárioouoEuPróprio-oOutro”.Alémdisso,foiorganizadordeantologiaspoéticas,ensaístaecríticoperspicaz,tendosido,comJoãoGasparSimões,ograndedefensoredivulgadordospoetas de Orpheu. Foi assíduo colaborador em revistas do seu tempo tendo travado nelas várias polémicas. Destacou-se pela escrita de obras de carácter intimista e memorialista (não posso deixar de referir a Confissão de um Homem Religioso,obraque,apesardeinacabada,constituiaverdadeiraabóbadadoedifícioliterárioqueJoséRégioarquitectou).Porfim,viveuapaixonadopelodesenhoeporantigui-dadesqueobstinadamentecoleccionouaolongodavida.

JoséRégioéopseudónimodeJoséMariadosReisPereira,cidadãonascidoemViladoConde,a17deSetembrode1901.Dasuavidapoucoháadizer.Abiografiadoescritorsãoasobrasquecriou.Trata-sedeumabiografiadefactosíntimos,devivênciasinteriores(circunstânciaquepartilhacomoutrosfecundoscriadoresliterários–ésuficienteevocarocasodeProust).Aesterespeito,aspalavrasdo poeta de Fado são elucidativas:

“Passaram meses, passou um novo ano lectivo, passaram novos exames, novas férias grandes..., sem que, na verdade, ti-vesse eu o impulso natural para escrever o quer que fosse neste diário. Também, nada de importante aconteceu digno de regis-to. E o que dentro de mim acontece – a obsessão do aproximar-se a velhice e a morte; o desgosto cada vez maior dos homens, de mistura com uma benevolência e uma caridade não menos reais por complexas; etc., etc. – só através da criação literária me é natural confessá-lo.”3

Aobradeartecomoformaparadigmáticadeconfissãoéumtemafundamentalnoestudodeumautorque,comoafirmouEugénioLisboa(omaispersistentebiógrafodeRégio),ficará“exemplarmentesecreto,istoé,umparadigmadepudor.Paraquempassouavidaa«confessar-se» não deixa de ser curiosamente paradoxal...”.�

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Em Páginas do Diário Íntimo,numapassagemdelúcidaauto-análise,podemosler:

“Quero (com uma vontade de fora, pois as minhas verda-deiras confissões estão nos meus livros) escrever nestas páginas alguma coisa de pessoal... isto é: de particular: do homem, não do escritor. E tão raro o consigo! A prova de que sou funda-mentalmente um artista – é que as minhas próprias confissões pessoais hão-de tomar forma artística: serem romances, poe-mas, teatro... Hão-de mascarar-se com personagens, cenas, símbolos, observações e análises de aparência geral.”5

Há,pois,queleraobradeRégioenelabuscarohomemquedisseteremsiomundo,comosepodeconstatarnosonetoquese segue:

“SONETO DE ONAN

Chegandonu,cantei.Cantei,écerto,Minhanudezansiosaelastimável.Fez-se,emredordemim,terror,deserto...Queumanudezassimépoucoamável.

«Estagenteesperava-meencoberto»,(Pensei)«masnuncaeusoubeserafável...»Eentãovagueeicantando,emmeudeserto,Minhanudezansiosaelastimável.

Só,vagabundo,assimdescimaisfundo:NaTorredeBabeldaminhaermida,Jávivomaisqueaminhaprópriavida!

Já,repelido,emvósmecontinuo...Sim!,sóamimmeentregoemepossuo,Porqueeumebastoparaacharomundo!”6

Mas,queiramosounão,todoohomemtemumtempoeumlugar.Eis,pois,algunsdadosbiográficos.

Nosiníciosdadécadadevinte(1922),depoisdeconcluídososestudosliceaisnoPorto,ojovemJoséMariadosReisPereiraentranauniversidadedeCoimbra.Aícomeçaaanimar-secomoJoséRégio.Em1927lança,juntamentecomJoãoGasparSimõeseBranquinhoda

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Fonseca,arevistaPresença,queseassumecomoórgãorepresentativodo segundo modernismo em Portugal.

Em1929parteparaPortalegre,ondeexerceaactividadede professor de Francês durante mais de três décadas. É nesta pátria àforçaescolhidaqueRégioencontraráapaznecessáriaàgestaçãoda maior parte das suas obras.

Depoisdareforma,asuavidaoscilaentrePortalegreeViladoConde,ondeprogressivamentesevaiinstalando.Énasuaterranatal,noaconchegodasparedesfamiliaresqueeleimortalizounolongo romance intitulado A velha casa,queJoséMariadosReisPereiraexalaoúltimosuspiroa22deDezembrode1969.JoséRégio,porém,permanece;asuapresençacontinuacomplexaeparadoxal.

Deixemososprolegómenos,epassemosàabordagemdotema escolhido.

Não apresentamos uma definição de loucura. (Loucos?!Sim,masnãotanto!!)Nãopodemos,contudo,calarumdesabafo:o estudo da concepção de loucura ao longo da literatura portuguesa dariauminteressantíssimoestudoquenãoestáobviamentenoâm-bitodestacomunicação.Tambémnãoestá,naturalmente,nasnossasintenções estudar este tema sob o ponto de vista da psicologia ou da psiquiatria.Navegaremosnomardaliteratura,aindaquecientesquenele desaguam águas de muitas ciências.

É, pois, nosso objectivo apresentar uma leitura global eglobalizantedaobraregianaperspectivadaatravésdotemadaloucura,concebida como logos.

Comecemos por entender “logos” na sua dupla acepção de palavraoudiscursoexterioredepensamentooudiscursointerior,quercomoconceitoouideia7.Mantemossempreassociadoalogosocarácterdeluminosidade,istoé,deelementorevelador-oqueeminglês se designa por enlightment. Poderíamos acrescentar o adjectivo epifânicocomoqual,mesmoqueumpouco tautologicamente,sereforçariaaideiadequealoucuraé,paraoautordePoemas de Deus e do Diabo,apalavraouopensamentodarevelação.

Deixemosopórticoeentremos…Onde?ProvavelmentenumloucolabirintodoqualsóoengenhosoDédalonospoderáresgatar.Mas,corajosos!,entremos…E,paranossasegurança,tomemoscomociceroneapróprialoucura.

DizaLoucura,naspalavrasdeErasmodeRoterdão:“Não preciso de vos dizer. Revelo-me, como dizem, pela

fronte e pelos olhos, e se alguém me quisesse tomar por Miner-va ou por Sofia, desenganá-lo-ia sem falar, já que o rosto não mente porque é o espelho da alma.”8

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Aproblemática do rosto é estruturante na obra regiana,conduzindo-nosaocentrodemaisumconflitoessencial–orostoversus a máscara. Nesta dualidade se evidencia a modernidade da poéticadeRégio,que,porumlado,setraduznumabuscaónticadaidentidadeedaverdadeabsolutas,e,poroutro,esbarracomaverdadeplural e com a identidade múltipla9 de um rosto onde sucessivamente se vão sobrepondo máscaras.

Numestudosobreamáscara,Lévi-Straussapontaareci-procidade como primeira e fundamental característica do mundo das máscaras.Assim,cadamáscaradefine-seemrelaçãoeemoposiçãoaoutra(s)máscara(s),umavezquenãocontémemsi todoo seusignificado.Éprecisoestaratentoàcomplexidadequeestemundoinstaura10.Esta complexidadeganhanovasproporçõesquandoasmáscaras,comodissemos,sesobrepõem.

Recordemosaesterespeito,ecomoumexemploentremuitospossíveis,osoneto“BailedeMáscaras”,incluídoemBiografia:

“Contínuatentativafracassando,Minhavidaéumasériedeatitudes.Minhasrugasmaisfundasquetaludes,Quantasmáscaras,já,vosfuicolando?

Massempre,atrásdeMim,mevoubuscandoMeusverdadeirosvíciosevirtudes.(–Eéaverseteencontras,outeiludes,Quebailasnesteentrudomiserando...)

Encontrar-me?iludir-me?aiqueonãosei!Sei mas é ter no rosto ensanguentadoOroldequantasmáscarasusei...

Maismeprocuro,pois,maisvouerrando.EaospésdeMim,umdia,eucairei,Comoumvestidoimpuroeremendado!”11

Eis um exemplo da busca obsidiante do eu pelo eu. Um actodeconstanteprocuraenuncadeencontropleno,poiscadanovorostoquesedescobreacabaporserevelarmaisumamáscara.Estecaminhar é, portanto, uma incerteza infinita, apesar da nudez tãofriamente exposta.

Háumdesejodeconfissãoplenaqueatravessaaobra(ea

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vida)doautord’A velha casa. Porém a esse desejo opõe-se o jogo irónicodamentira,nãovoluntariamenteprocurada,masdaqualosu-jeitonãologralibertar-se.Revelaçãoementiraentramnumadinâmicaassintótica.Queristodizer,fazendoaquiusodotermoimportadodageometria,queadistânciaentreosdoistermostendeparazero,masoencontrosóserápossívelnoinfinito12.

Também em teatro Régio tratou este assunto. Fê-lo emvários textos. Três Máscarasé,comootítulosugere,umdosmaissignificativosnoqueserefereàdualidademáscara/rosto.Analisandoesta“fantasiadramática”,classificaçãogenológicaqueopróprioautoradiantacomosubtítulodaobra,ManuelSimõesafirma:

“O tema de Três Máscaras é o da identidade procurada através da tentativa de dissolução da persona, isto é, do «eu» empírico e existencial reconhecível numa trama de relações sociais.”13

A acção dramática desenrola-se “durante um baile de segunda-feiradeEntrudo,numacasaelegantedacapital”,ecolocaemcenatrêspersonagens:Columbina,PierroteMefistófeles.Alutaentre o bem e o mal é desde logo sugerida pelo nome das duas per-sonagensmasculinasqueprocuramseduzirColumbina.Interessa-nosvernestemomentocomoamáscara,aomesmotempoqueescondeorosto,possibilitaaestaspersonagenscolocaranuasuaverdademaisíntima.TomemoscomoexemploaspalavrasdePierrotque,depoisdeafirmar“Sehojemesintoleve...livre...poderoso...équetragoestacara pintada”14,sedirigeaColumbinaparalhedizer:

“Porque me estou a confessar. Porque esta noite, se vim esta noite a este baile de máscaras, se te encontrei esta noite, Columbina, foi para isto: para ser nu como a verdade, assim mascarado. A minha verdade fugiu do poço esta noite de Entru-do...”15

E mais tarde acrescenta: “Foi preciso mascarar-me para dizerestascoisasumaveznavida”16.

Eisaduplafunçãodamáscara:ocultaerevela–função,aliás,partilhadacomoespelho,objectotambémrecorrentenaobraregianae,maisvastamente,nomodernismo.Ela(amáscara)éme-táfora do processo de transformação. Através dela se torna presente afiguradoDuplo.

FiguradoDuploqueospoetasmodernistas,nacontinuidadedealgunsescritoresdoséculoXIX,nomeadamenteRaúlBrandão,apresentamedesenvolvemnaspersonagensdoPierrot,doarlequim,dosaltimbanco,dopalhaço,quepovoamosseustextos.Apresençaobsessiva destas personagens revela a vontade dos artistas nos darem

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delesmesmosedacondiçãodaarteumaimagemdeformante,umauto-retratosarcástico,umacaricaturaaomesmotempoburlescaedolorosa.Estamosnodomíniodojogoirónicodeinterpretaçãodesi por si mesmo.

EmRégio, comonos seuscompanheirosdaPresença, atransfiguraçãonestaspersonagenscorroboraaconcepçãodepoetacomoserincompreendidonomeiodamultidão.Nãoéporacasoquelogononº2dareferidarevista,JoséRégiodobraojoelhodiantedeCharlot,queosoutrosvêem“comoumactorquefazrircomoqual-quer”equeeleconsidera“inimitávelesolitário”17.

Opalhaçoéentãoafiguraçãodopoeta.A imagem do louco corrobora e dá maior amplitude a este

jogoirónicodeauto-interpretação.ALoucuraé,domesmomodo,umideologemanoModer-

nismo.Asmanifestaçõesdeloucura,arquitectadasdramaticamenteno espaço literário, oumais amplamente artístico, constituemumfiávelsismógrafocapazderegistarereproduziroestatutodilemáticoda modernidade.

Aloucurasurge,emFernandoPessoaeemMáriodeSá-Carneiro,comoresposta-fugaaumtempoeaumespaçodilacerantes.JudithTeixeiraeAntónioBottocantamaloucuradosamoresrubros.Maistarde,elaressurgeemAlBerto,laceradoentre“ummedosecretodeendoidecer”eumaentregaàloucuraqueoassolalentamente,eemNunoJúdice,cujolirismooscilaentrepercepçõesalucinantesealucinadas da realidade e uma consciência hiperatenta a essa mesma realidade.

JoséRégio,nalinhadoshomensdeOrpheu,osqueelevaramaloucuraàgrandezadeprojectodevida,afirmaincessantementeasuaindividualidade–valorque,apardodaoriginalidadecomaqualestáemestreitarelação,constituiopontofulcraldapoéticaregiana.Estadefesaacérrimadaindividualidade(edaoriginalidade)apareceinequivocamenteassociadaàloucura,suaúnicaarmaparacombatereaniquilarosapelosdeservilismoque lhesãofeitos.AoposiçãoEu/Outroséclaranofamoso“CânticoNegro”(poemadetodasasjuventudes,comodiráoautor),noqualosujeitopoéticoopta,deformaincondicional,pela“Loucura”–significativamenteregistadacom inicial maiúscula.

“Ide!Tendesestradas,Tendesjardins,tendescanteiros,Tendespátrias,tendestectos,Etendesregras,etratados,efilósofos,esábios.

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EutenhoaminhaLoucura!Levanto-a,comoumfacho,aardernanoiteescura,Esintoespuma,esangue,ecânticosnoslábios…”18

Estrofedeseteversos,quatrodosquaissãodedicadosaosoutros, tendooeu-lírico,nos trêsúltimos,centradoa suaatençãosobresimesmo.Estaformafaz-nospensarnosetecomonúmerodatotalidade,noqualentramosquatropontoscardeais(aquiassocia-dosaosoutros)eostrêsdivinos(queaparecememrelaçãoaoEudopoeta).“EutenhoaminhaLoucura”–gritaosujeitodaenunciaçãolírica.Éumgritode recusa.É tambémumcaminhode fuga,umprojecto de solidão.

Não admira que ele termine o seu “Cântico” reiterandoveementementeasuaposiçãodeserúnico-daquelequenascedoamorqueháentreDeuseoDiabo-edepoder,porisso,escolherlivremente o seu caminho.

“Ah,queninguémmedêpiedosasintenções!Ninguémmepeçadefinições!Ninguémmediga«vemporaqui»!Aminhavidaéumvendavalquesesoltou.Éumaondaquesealevantou.Éumátomoamaisqueseanimou…Nãoseiporondevou,Nãoseiporondevou,-Seiquenãovouporaí!”19

Esteéumcelebérrimoexemplo!Maspoderíamosinvocaroutros(erealmentefalaremosdemaisalgunstextosquenosparecemsignificativamentereveladoresnoqueserefereaestetema).Aescolhadostextosaconvocarnãoé,contudo,fácil,umavezqueotemadaloucura assume no conjunto da obra regiana o carácter de isotopia. EntendemosestetermonalinhadeUmbertoEco,citadoporCarlosReiseAnaC.M.Lopes:

“Isotopia refere-se sempre à constância de um percurso de sentido que um texto exibe quando submetido a regras de coerência interpretativa.”20

Comofacilmenteseconstata,alargamosoconceito,aplican-do-oàobraregiananoseuconjuntoenãoapenasaumtextoparticular.Queremosafirmarqueaconcepçãodeloucuracomologoséumalinha

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temático-figurativafundamentalnaconstruçãodesentidosqueumleitoratentoéchamadoafazerdaobracriadaporJoséRégio.

Voltemosàdefiniçãode“logos”.Paratal,subamosàfonte,istoé,aHeraclito.Ointrodutordotermo“logos”novocabuláriofilo-sófico,aindaquepercorrendoumcaminhotortuoso,define-ocomoapalavra inteligente dos homens e palavra ordenadora do mundo. É a palavrauniversal,objectivaeverdadeira.Contudo,Heraclitotem,emuitoantesdePlatão–aquemvoltaremos–,plenaconsciênciaqueestelogos,quevêediztudocomorealmenteé,nãoestáacessívelàmaioriadoshomensque,nãoocompreendendo,vivemeagemcomose estivessem a dormir21.

Sabendoqueonossointuitonãoéumaabordagemfilosófica,massimliterária,voltemosaumtextodeRégioquepoderemosleràluzdestaconcepção.Trata-sedocontosignificativamenteintitulado“Os alicerces da realidade”22equeseencontrainseridonaobraHá mais mundos.

Ora,oqueéqueacontecenestasingularnarrativa?Vamosaosfactosdiegéticos:apersonagemcentral,“onossoamigoSilvestre”(comoinicialmenteéapresentadopelonarrador),éaparentementeumhomemnormal,emboratenhareveladodesdenovo“donsnãovulga-resdesensibilidade,imaginação,atéinteligência”,quenãochegouadesenvolverpornãoterprosseguidoestudos(repare-sequeoquesobressaisãoosinvulgaresdonsdesensibilidadeedeimaginação).Certo dia, numdos seus habituais passeios, “teve uma impressãoestranha”-aqueonarradorchama“asuaprimeirarevelação”. Esta estranhaimpressãoconsistiuemlheterparecidoquetudoaquiloqueoenvolviaerairreal-“comosefosseumarepresentaçãonumagravura,porexemploqueilustrasseumromance”.Aestaprimeirarevelaçãooutrasseseguem,detalmodoque“onossoamigo”intuique«A vida é um sonho.»equevivemosrepresentandoopapelquenoscabenestesonhodavida.Oconhecimentodesta“Verdadetãoevidente”queosoutrosnãoeramcapazesde“Ver”dáaSilvestreuma“firmeconsci-ênciadesuperioridadesobreocomumdosmortais”.Convictodequeomelhorseriaacoerênciaentreoseupensamento,queiachegandoasubtilezasfilosóficasinesperadas,easuaconduta,passouaagirdeformaverdadeiramentelivre,adoptandocomportamentosqueentramemchoquecomasconvençõessociais.Porexemplo,ria-sedescara-damentedosquecomeleserelacionavamoucruzavam.

Emtermossemânticos,nãoédescabidoestabelecerumarelação intertextual entre esta narrativa e a Alegoria da Caverna de Platão.Efectivamente,aSilvestreaconteceomesmoqueofilósofogregodescreveapropósitodohomemqueconseguiuquebrarasca-deiasqueoprendemaofundodacavernaeque,tendocontempladoasverdadeirascoisas,voltaaoantroeprocuraconvencerosoutroshomensqueaverdadeestáparaalémdasmíserassombrasqueeles

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vêem.Sóqueosoutros“sapientes”homensjulgam-nodoidoeaban-donam-noàsualoucura.EisoqueaconteceaSilvestre.

Destemodo,aloucuraconduzàsolidão,comoaliásjáfoisugeridoaquandodareferênciaaopoema“CânticoNegro”.Deentreinúmeraspassagensquepoderíamoscitar,vejamosapenasosdoisprimeiros versos do poema intitulado “Libertação”:

“Menino doido, olhei em roda, e vi-mefechado e só na grande sala escura.”23

Nocontoatrásreferido,aloucuraaparece-nos,claramente,comologosepifâniconamedidaemqueéporintermédiodelaqueseatingeoconhecimentodaverdade,oupelomenosesempre,doquenumdeterminadomomentosesupõeseraverdade.Éelaquelibertaohomemdomundodasaparências-aqueRégiochamafrequente-mente o palco ou a comédia da vida - e lhe permite o contacto com a verdadeiraessênciadascoisasedoprópriohomem.Trata-sedeumlogosvivoqueseopõeàspalavrasocasemortas,comoacontecenaobra dramática A salvação do mundo,tragicomédiaemtrêsactos.

Masvoltemosaomodonarrativoeaonãomenosfantásticoromance O príncipe com orelhas de burro.A“verídicahistória”desteromancelança-nosparaoepicentrodomodernismo.Naverdade,oquecaracterizatodoomodernismo,entendidonumsentidolato,éo“eu”–oumelhor,abuscadaunidadedeumeuquesesenteevivefragmentado.

Ora,oPríncipeLeonel,personagemcentralequecrescejulgando-seumhomemabsolutamenteperfeito(vistoqueusavasempreumturbantequelhetapavaasorelhasdeburro,quenemeleconhecia),descobre,nummomentodegrandeeuforia,oseuladotorpe,animalescoemonstruoso-umaboapartedaspersonagensregianasassimsão,marcadasporumadualidadeantagónicaquetraduzumadialécticaentrearquétiposeanti-arquétiposdivinos,comooBemeoMal,oBeloeoFeio,aVerdadeeaMentira.Depoisdaterríveldescobertadaverdadeacercadesi,edepoisdeterfugidodopalácio(estafugaassemelha-seaumaviageminiciáticatípicadoscontospopulares),tendoregressado,opríncipeconvocaoseupovoedeciderevelar-se,anulando assim a “extravagante comédia”24queéavida.Jánosmo-mentosfinaisdadiegese,opríncipefalaaoseupovoecomunica-lheasuaintenção.ÉimportanteverificarqueoFísico,velhosábiodacorte(quetambémignoraaverdade),intervémpedindoaopovoqueseretireporque,advogaele,aspalavrasdopríncipeprovam“quealucidíssimarazãodeSuaAltezarecebeuqualquerchoqueesofreumacrise”25.Nofundo,ovelhosábiodizqueSuaAltezaopríncipeLeonelseencontraloucoeactualizaaspalavrasqueaLoucurapronunciaranos inícios do século XVI:

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“Se um histrião que estiver em cena quiser tirar a más-cara para ostentar diante dos espectadores o verdadeiro rosto, conseguirá com isso perturbar a acção dramática; e não é justo que os espectadores exijam a expulsão deste louco?”26

QueristodizerquesóaloucurapermiteoactosupremodeserevelaraquetantoaspersonagensdassuasobrascomoopróprioRégioaspiram.Sãoinúmerasaspersonagensregianasqueprocuramrevelar-se.Porexemplo:PedroSerrad’O jogo da cabra cega; ou Lèlito,personagemcentrald’A velha casa,ealter-egodoautor);ouJaimeFranco,personagemobscuraqueaparecenosdoisromances,numa tentativa falhada de no segundo revelar a sua “verdadeira história”.

Mas émelhor não abandonar já o príncipe Leonel, quese encontra às portas dessemomento supremode tirar o turbantee mostrar as suas orelhas de burro. E a loucura do príncipe vai tão longequeeletiraoturbante.Eoqueéqueacontece?Coisasublime...omelhoréler!!!

Deentreasobrasdramáticas,ondeRégiomanifestareal-mentetodaasuagenialidadecriadora,vejamosA salvação do mundo,jáanteriormentereferida.MaspoderíamosfalarcomigualacertodeBenilde ou a Virgem-Mãe,oudeJacob e o Anjo,oud’El Rei Sebas-tião,ouaindanapequenapeçaMário ou o Eu próprio - o Outro,namedidaemque,deumoudeoutromodo,todasaspersonagenscentrais destas obras vivem sob o estigma da Loucura.

ARainhaMãeeoProfeta,d’A salvação do mundo,pro-tagonizamoidealdamorosofia.ARainhaMãeéumapersonagemloucaqueconheceintuitivamenteaverdadeequevivepeloEspírito.OProfetatrazconsigoumnovoevangelho–oQuintoEvangelho(queestáembranco)eanuncia-secomooprofetadoEspírito.

Convém,numbreveparêntesis,esclarecerqueoprocessodegnose(e,consequentemente,deautognose)é,paraoautordeA chaga do lado,essencialmenteintuitivo.Assim,Régiopostulaqueháumconhecimentoanteseforadaspalavras,istoé,nãoverbalizado.ÉoconhecimentodoEspíritopeloEspíritodequefalaHenriBergson.

Apenas ao louco é dado o privilégio desse conhecimento. Apenaseletemacessoàrealidadeíntimadoser-comoRégiogostadedizer.Outalvezsedêocontrário:todospodemteracessoaessarealidade;masaquelesqueláchegam(istoé,aquelesquesaemdacaverna)passamaserLoucos.

Régio, numa entrada diarística em que reflecte sobre amensagem da obra dramática A salvação do mundo,afirma:

“Intuições subjacentes a A salvação do mundo:

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“A palavra exprime. Porém na medida em que, exprim-indo, fixa e limita – trai o Espírito. O Poeta e ainda mais o Mís-tico bem n-o sabem. Até estes, contudo, e o vulgo ainda mais, tendem a esquecer isso que sabem (o vulgo nem n-o sabe). Uma expressão eloquente e comunicativa de tal modo se impõe, que é tendência quase geral tomá-la por expressão completa, abso-luta, cabal, daquilo que sempre a excede: o Espírito; daquilo que infinitamente a excede. Só a divina loucura do Poeta e do Louco vidente (o Profeta, a Rainha-Mãe...) lhes lembra, a eles, que a palavra é parcial... expressão sempre deficiente.”27

Eis, em suma, o papel da “divina loucura”: revelar aoshomensoquedeoutromodonuncapoderiamconhecer!

Quatroanosantesdefalecer,emplenamaturidade,portanto,o Poeta escreve no seu diário:

“Nada podemos saber absolutamente senão o que Deus (o Absoluto) nos permita que saibamos. A Revelação é a única fonte de verdadeiro conhecimento.”28

Sendo salvadora, a loucura é também libertação. Umalibertaçãoqueseconseguenamorte.Momentodesuperaçãodesselabirintodasolidãoemqueoeunãoseencontraasinemsedesco-breplenamentenooutro,amorteépassagem,éportaparaotempomítico.É-o,porque,seguindoomodelocrístico,ohomem-poetaaomorrer ressuscita para uma nova vida. Várias personagens regianas se lançam no mistério da morte na esperança da vida. Quero realçar as duas personagens da peça Mário ou o Eu próprio – o Outro. Trata-se deumaobraconstruídanabasedaparódiadetextosdeMáriodeSá-Carneiroequeprocurarecriaromomentoemqueestesesuicidou.

NodiálogoentreMárioeoOutro,amorte,sendoaponteparaotempomítico,éummovimentosimultaneamente“deregressoedefuga,mastambémdeplenoconhecimento”29.

Mário,dirigindo-seaosdeuses,afirma:“[...]Aquiestou.Poderei saberagora?Compreenderagoraosvossosenigmas?Po-dereiagora...?”30Estaéumadaspassagensemquesesugerequeamorteseráomomentodoconhecimentototal,umavezquenelasedáaanulaçãodapalavra,sempreimperfeita,paraseentrarnoseiodorepousodaluzsilenciosa.

Em Jacob e o Anjo a acção dramática gravita em torno daspersonagensdoReiedoBobo,quecenicamenteaparecesobaformadeAnjo.JánumafaseemqueseadivinhaamortedoRei,oBobodiz-lhe:

“– A marcha triunfal do Outro foi debaixo da cruz, de rastos nas pedras, sob os escárnios... falei-te de Ele quando pretendi ensinar-te a sofrer como quem triunfa.”31

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Naverdade,oReimorreparatriunfar,antesdemais,sobresipróprio,sobreaquiloqueemsitemdemorrer,paraqueelesepossaidentificarcomoAnjo,imagemdoeu-outro.OAnjoéumapersona-gemquepovoaaobraliteráriaepictóricadeJoséRégio.NafiguradoAnjo,oautordácorpoàtentaçãodobem.NaConfissão de um homem religioso,Régioafirmouqueoshomenssãopoucoaudazesporquepensamquesóomalétentador.ComoseDeusnãotentasse.

Abuscadamorteé,destemodo,arespostaaessatentação.EalutaentreoCorpoeoEspírito,entreJacobeoAnjo,fundamenta-senestadualidade:Morte/Vida.

Como o pobre e louco rei do mistério em três actos intitulado Jacob e o Anjo,digamosaonossoBobo-Anjo:

“– Ensina-me então a palavra do Silêncio...”32

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Notas

� NOVAIS,IsabelCadete, José Régio e os mundos em que viveu,[CatálogodaExposição]Lisboa,ImprensaNacional–CasadaMoeda,1999.

2 LOPES,Óscar,“JoséRégio”,in: Modo de ler, Crítica e interpretação literária / 2,Porto,EditorialInova,1969,p.405.

3 RÉGIO,José,Páginas do diário íntimo,Lisboa,ImprensaNacional–CasadaMoeda,2000, pp. 35�-352.

� LISBOA,Eugénio,José Régio, Uma literatura viva,[BibliotecaBreve,vol.22],Amadora,InstitutodeCulturaPortuguesa,1978,p.29.

5 RÉGIO,José,Páginas do diário íntimo, p. 3�9.6 RÉGIO,José,Biografia,6ªed.,Porto,BrasíliaEditora,1978,pp.75-76.7 Cf.PETERS,F.E.,Termos filosóficos gregos, um léxico histórico,2ªed.,Lisboa,

F.CalousteGulbenkian,1983.8 ERASMOdeRoterdão,Elogio da Loucura,6ªed.,[Trad.deÁlvaroRibeiro],

Lisboa,GuimarãesEditores,1982,p.16.9 Sobre a identidade, Lévi-Strauss afirma: “Nunca tive, e ainda não tenho, a

percepção do sentimento da minha identidade pessoal. Apareço perante mim mesmocomoumlugarondehácoisasqueacontecem,masnãoháo«Eu»,nãoháo«mim».Cadaumdenóséumaespéciedeencruzilhadaondeacontecemcoisas.Asencruzilhadas sãopuramentepassivas;háalgoqueacontecenesselugar. Outras coisas igualmente válidas acontecem noutros pontos. Não há opção: éumaquestãodeprobabilidades.”LÉVI-STRAUSS,Claude,Mito e significado,Edições70,1989,p.14.

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10 Cf.LÉVI-STRAUSS,Claude,La via delle maschere, Torino,Einaudi, 1979.ReferidoporSIMÕES,ManuelG.,“Oduploobscuro,ouseja,atensãoentreosereoparecernoteatrodeJoséRégio”,in: Boletim, Centro de Estudos Regianos,nº6-7,Junho–Dezembro2000,p.37.

11 RÉGIO,José,Biografia,6ªed.,Porto,BrasíliaEditora,1978,pp.61-62.12 Cf.LISBOA,Eugénio,José Régio, a obra e o homem,[estudosportugueses,nº

16],2ªed.,Lisboa,PublicaçõesDomQuixote,1986,p.35.13 SIMÕES,ManuelG.,“Oduploobscuro,ouseja,atensãoentreosereoparecer

noteatrodeJoséRégio”,in: Boletim, Centro de Estudos Regianos,nº6-7,Junho–Dezembro2000,p.37.

14 RÉGIO, José,Três peças em um acto, 3ª ed., Porto, Brasília Editora, 1980,p.2�.

15 Ibidem, p. 25.16 Ibidem, p. 33.17 RÉGIO,José,“LegendascinematográficasII–CharlieChaplin”,in: Presença,

Folha de arte e crítica,nº2,Coimbra,28deMarçode1927,p.8.18 RÉGIO,José,“CânticoNegro”,in: Poemas de Deus e do Diabo,p.58.19 Ibidem,p.59.20 REIS,Carlos; LOPES,AnaCristinaM.,Dicionário de Narratologia, 6ª ed.,

Coimbra,Almedina,1998.21 Cf.HERACLITO,Fr.1,Sexto,adv. math.,VII,132.22 Cf.RÉGIO,José,“Osalicercesdarealidade”in: Contos e novelas,[ObraCom-

pletadeJoséRégio],ImprensaNacional–CasadaMoeda,2000,pp.325-343.23 RÉGIO,José,Biografia,p.79.24 Esta expressão é de ummendigo que, tendo-se encontrado com o príncipe,

aquandodafugadeste,lhediz:“Écomosetudoistoquevemossereduzisseaumvolúvelcenário,eavidamaisnãofossequeumaextravagantecomédia…”.RÉGIO,José,O príncipe com orelhas de burro,7ªed.,Porto,BrasíliaEditora,1986,p141-142.

25 RÉGIO,José,O príncipe com orelhas de burro,p.294.26 ERASMO,Elogio da Loucura,p.47.[sublinhadonosso]27 RÉGIO,José,Páginas do diário íntimo,p.279.[sublinhadonosso]28 Ibidem, p. 365.29 MARQUES,JoãoMinhoto,“AproblemáticadoduploemMário ou Eu próprio

– o Outro”,in: Boletim, Centro de Estudos Regianos,nº1,Dezembrode1997,p.6�.

30 RÉGIO,José,“MárioouEupróprio–oOutro”,in: Três peças em um acto,3ªed.,Porto,BrasíliaEditora,1980,pp.147-148.

31 RÉGIO,José,Jacob e o Anjo,4ªed.,Porto,BrasíliaEditora,1978,p.167.32 Ibidem,p.186.

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ReflexõespedagógicasnaobradeGuerraJunqueiro

Carla Espírito Santo Guerreiro

EmmeadosdoséculoXIX,Portugalencontrava-sepolítica,socialeeconomicamentenumestadocaótico.

Para o delinear desta situação em muito contribuíram os políticosfraudulentosecorruptos,maisabsorvidospormesquinhosinteressespessoaisdoquepeloefectivodesenvolvimentodopaís.

Particularmentenoscampos,asituaçãoeradegrandepenú-ria,motivandoumenormefluxodeemigração,sobretudoparaterrasbrasileiras,embuscademelhorescondiçõesdevida.

Énestemomentohistórico,maisconcretamenteem1850,quenapequenavilatransmontanadeFreixodeEspada-à-CintanasceAbílioManuelGuerraJunqueiro,poetaquepelaforçaeengenhodasuapalavrahaviademarcarnãosóoséculoXIX,mastodaanossahistórialiterária.

EmPortugal,asArteseLetrassentiamcomonuncaafaltadeapoiogovernamental,oqueagravavaasdifíceiscondiçõesdevidados Artistas. Os escritores precisavam da protecção do Estado e este oferecia importantescargosnoGovernoemtrocado“controlodapena”,daquisurgindoachamada“literaturaoficial”.

NestaépocasurgiaemCoimbraumgrupodeintelectuais,liderado ideologicamente por Antero de Quental e José Fontana e

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doqualfizerampartealgunsdosmaioresescritoresdahistóriadaLiteraturaportuguesa,taiscomo:EçadeQueirós,RamalhoOrtigãoeTeófiloBraga,entreoutros.

EstaGeração de Setenta, como viria a ser conhecida, éconstituídaporumconjuntodejovensque,influenciadospelacul-turafrancesa,irãoopor-seaumgovernomonárquico,cadavezmaiscontestadonofinaldoséculo,insurgindo-seanívelliteráriocontraumapráticaultra-românticaligadaaAntónioFelicianodeCastilhoeseuspares.Estesjovensescritoresprotagonizaramumaautênticarevoluçãoculturalnopaís,agitandoconsciênciasepoderesinstituídos.São disso exemplo a célebre Questão Coimbrã e as Conferências do Casino.Duranteseteanos,GuerraJunqueiroacompanhafielmenteacontendaliteráriaentreosautoresromânticoseosrealistas,comosseusduelos,osreptosdedialécticaeossarcasmos,departeaparte.

Porvoltadoanode1865,Junqueirodeslumbra-secomaposiçãoideológicaeliteráriadaGeração de 70,emborasemterau-toridadeparapertencerao“Grupodosdissidentes”,comolhechamaEçadeQueirós.NamemóriadoPoetaficamprofundamentegravadasas palavras proclamadas por este grupo: “a poesia não pode ser ape-nas arte, distracção e beleza tem de ser algo mais, tem de ocupar-se da humanidade, ou seja, dos mais fracos, dos mais pobres para que o deixem de ser”.

Portemperamentoeeducação,porsolicitaçãointrínseca,reforçadapelasinfluênciasambientes,GuerraJunqueirofoiboapartedasuavidaumpoetasocialepolítico,atentoecríticorelativamenteaosdesenvolvimentoshistóricosquesedesenrolaramemPortugaleno mundo.

Junqueiroconseguiusempreexteriorizaroseusubjectivismo,daíasuapredilecçãopelomodolírico,aoinvésdonarrativooudramá-tico.Noentanto,todasassuasobraslíricastêmumacaracterísticaqueasuniversaliza:é um lirismo voltado para o mundo exterior, o que o rodeia, nomeadamente, para a situação dos mais desprotegidos e esquecidos pelo poder: os pobres e as crianças.

Opoetausouasuaobraliteráriaparareflectirnãosósobreostemaseosassuntosqueconsideravamaisimportantesemaispre-mentesdasuaépocaepaís,mastambémsobretemaseassuntos,detodasasépocas,porquesãoatemporaiseuniversais.Destemodo,otema da Criança é uma constante em toda a sua produção literária. Preocupadocomasuasituaçãodetotalabandono,aváriosníveis,econscientedaimportânciadasuaformaçãointegralparaaconstruçãodeumPortugalapardorestodaEuropa,Junqueirodedicou-lheamelhor parte da sua obra.

Atítulode ilustraçãodasituação infantil,nosécXIX,emaisconcretamentenodistritodeBragança,atentemosnaspalavras

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dohistoriadorMacedoPinto,quandoem1838,naobraTopografia de Bragança,escrevia:

“Pelo que toca a estabelecimentos públicos de ou parti-culares, científicos, de beneficiência, de espectáculos, etc, nada temos a dizer, porque o distrito está virgem a tal respeito.”

Comecemos por olhar para a educação da criança desde os primeirostempos,aidadepré-escolar.Arespeitodaeducaçãopré-escolardodistrito,afirmaomesmoautor:

“Nas aldeias e lugarejos é onde se nota a maior misé-ria, as crianças desde poucos dias de idade ficam muitas vezes sozinhas (quantas vezes fechadas em exíguos compartimentos), ou sob a guarda de irmãos mais velhos.

É assim que vão crescendo, é assim que vão aparecendo por si próprios.

Quando já começam a andar, vagueiam na rua todo o dia, procurando a casa só quando precisam de se alimentar. As crianças ainda antes da idade escolar são já solicitadas para os serviços do campo, nomeadamente a guarda do gado. Esta mesma característica irá prolongar-se durante a idade escolar.

Nas populações urbanas, o problema toma característi-cas diferentes, mas não deixa de exigir o afastamento das crian-ças, visto a maioria das mães serem empregadas e estarem fora de casa todo o dia. Aqui, se bem que não haja o abandono da criança a si própria, há no entanto o entregar do bebé à guarda de incautos e inexperientes, ou então entregar o bebé a certas casas particulares que parecem ser autênticos repositórios de crianças.”

APropósitodaformaçãoacadémicaepedagógicadocorpodocentedasescolasdeEnsinoPrimárioexistentes(em1854,segundoo Abade de Baçal existiam no distrito de Bragança 55 escolas mas-culinaseumafeminina),continua,MacedoPinto:

“Algumas das escolas não têm mestres, ou têm mestres de fraca qualidade, tendo, em muitos casos, que fechar. São puras fábricas de descontentamento.”

Este autor conclui com a seguinte constatação:“ Vemos uma multidão de analfabetos e semianalfabetos

a emigrarem para o estrangeiro, sem aquele mínimo de conhe-cimentos que os libertaria do trabalho que existe paredes-meias com o animal de carga […]

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Apardorelevoassumidopelafamília,primeiraescoladeformação da criança, Guerra Junqueiro considera a Escola comoinstituiçãoessencialdavidadequalquerpaís,devendoserorientadapara a formação de caracteres e transmissora de valores e saberes úteisàcriançanasuavidafutura.

Profundo conhecedor da Europa do seu tempo nas suas múlti-plasvertentes,social,culturalecientífica,oautorrevela-seconscientedoatrasoestruturaldasociedadeportuguesa,nomeadamentenoqueconcerneàáreadaEducação.Pedagogicamenteenferma,aescolaportuguesatinhaumcarácteratrofiante,inibindo,aoinvésdedesen-volver,ascapacidadesdacriança,comodeveriaserasuafunção.

Em«AEscolaPortuguesa»,poemadaobraA Velhice do Padre Eterno,oautorapresenta-nosaradiografianítidadaEscoladePrimeiro Ciclo existente no Portugal do século XIX.

Comotivemosoportunidadedeouvir,ascriançassãoapre-sentadascomoum“Doiradoenxamedeabelhas”,decujas“bocasderosa/ Saem murmúrios de estrelas.”1 E estas crianças estão entregues àsordensdeummestre-escola,definidocomo“zangão”2, alguémsemformaçãopedagógicaespecíficaparaconvivercomeorientarcriançasnassuasprimeirasaprendizagens,qual“JoãoFélixc’oasunhasnegras”vai“Mostrandoasvogaisaoslírios”3.

Semqualquerpreocupaçãodeactualizaçãoprofissionalanívelcientíficooupedagógico,esteprofessoréconsiderado“umana-cronismo”4quepelasuaignorânciaefaltadesensibilidadeémesmoapelidado de “professor asinino”5.

OsmétodoseconteúdospedagógicosvigentesnaEscolaportuguesadoséculoXIXtambémnãoescapamàanáliseperspicazeàcríticademolidoradoautor.Oensinoébaseadonométodoesco-lásticoeaactividadeintelectualdospequenosdiscenteslimita-seaumarepetiçãoestérildepalavrasquevisaapenasumdomínio:ame-morizaçãodeconceitos.Assim:“Soletramversoseprosashorríveis”,“Abrem a boca os ditongos/ E as cifras tristes dão ais”.6

Osmétodosnãosãomaisaliciantesqueosconteúdospeda-gógicostransmitidos.Apardasimprescindíveiscartilhaetabuada,apalmatóriaeaférulaeramelementossemprepresentesemqualquerestabelecimentoescolar,oquemuitoindignaJunqueiro,quenãoresisteacomentar:“Barbaridadeirrisória/Estúpidodespotismo/Meterumapalmatórianasmãosdeumanacronismo!”7.Poroposiçãoàbelezaefragilidadecomqueascriançassãodescritas,omestre-escolasurgecomoapersonificaçãodaseveridadeedocastigo,“Empunhandoasrijas férulas” 8.

Comefeito,aagressividadedapartedequemensinavaeomedo/terrorporpartedequemaprendiaeramossentimentospredo-minantes na escola de então e merecem ao autor a crítica mais severa:

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“Apalmatória,oaçoite,/Aestupidezdecretada!/ALeiincumbindoa noite da educação da alvorada”.9

Por tudo isto, o autor considera que “Esta Escola é umatentado,/Umroubofeitoaoprogresso”10.Emseuentender,ases-colasdoseutempo“sãoaçouguesdeinocência,/Sãotalhosdeanjo,mais nada”.11

SabemosquenoséculoXIX,aprimeiraescoladacriançaéduramentecriticada,porJunqueiro,pornãocumpriroseuverdadeiropapel.Eleacreditaqueamissãodaescolaécompletamenteoutradaquelaquenaquelaépocaeladesempenhavaeque,necessariamente,temdesofrermudançassignificativas.

Desdelogo,opoderpolíticodevealterarasuaposturaperanteoEnsino,permitindoaocorpodocenteumarenovaçãodehábitosemétodos.Sóassimascriançaspoderãodesabrocharparaavidaeparaoconhecimento,deformaacresceremlivreseconscientesdasuavalia.Afinal“Comoqueremquedespontem/Osfrutosnaescolaaldeã,/Seonomedomestreé-Ontemeododiscípulo-Amanhã!”12. Comohá-dehaverrenovaçãoeevolução“Seéopassadoquemensina/Obê-a-baaofuturo?”13

Só se de facto houver uma alteração profunda e radicaldo sistema de ensino português pode a instituição escolar cumprir a mais nobre das missões: ajudar a estimular o desenvolvimento das capacidadeseaptidõeslatentesnacriança,pois,segundoJunqueiro:“Ohomemsaidacriançacomoofrutosaidaflor”e“dapequeninasementequeaescolarégiadestrói/Podefazer-seigualmente/Ouoassassinoouoherói”.14

Comoévisível,naopiniãodopoeta,aactuaçãodaEscolaévitalemarcantenodesenvolvimentodacriança,nãosendodifícilcompreenderpelassuaspalavrasqueenquantonãosefizerumareformaestruturaldosistemaeducativo,aEscolanãocumpriráasuafunção,nãopassandode“umatentado,/Umroubofeitoaoprogresso”15. Ela nãoémaisqueum“paúl”ou“murodaignorância”16queatrofiaaspequenasmentesinfantis”17:“Vósesmagaisepartis/Ascrianças-essaspérolas/Naescola-essealmofariz”.18

AtéaodiaemqueosresponsáveispelaeducaçãoemPortugaltomemmedidassérias,nosentidodereestruturaraescola,ascrianças,“Desgraçadas toutinegras” 19 vão continuar a contemplar com inveja “Asandorinhaspassando/Doazulnolivreesplendor”.20

Alémdachamadaescolarégia,aprimeira,enamaiorpartedoscasos,únicaescoladascriançasportuguesasdoséculoXIX,haviaoutrainstituiçãoquetomavaaseucargoaeducaçãodosjovens:oseminário.Nestelocal,muitosrapazesencontravamaúnicaoportu-nidadedesingrarnavida,fugindoaocicloinfernaldavidaagrícola.

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A ida para o seminário perspectivava-se como a única saída para uma vida tão miserável como a dos pais.

Decarácterreligiosoeaustero,aeducaçãonossemináriosestavanamãodepadresque,namaiorpartedoscasos,nãotinhamformaçãoousensibilidadeparacompreendereeducarosjovensquelheseramconfiados.

Junqueiro,críticopornaturezadaortodoxiacatólica,mostra-separticularmentecáusticorelativamenteaosprincípiospedagógicosadoptadosnoseminário,considerandoqueeleseramatrofiantesparaoserhumano,sendoresponsáveispeladegeneraçãodapurezanaturaldas crianças.

VáriossãoosmomentosliteráriosemqueJunqueiroreflectesobre a forma como os jovens são educados nos seminários. O texto «ComoseFazumMonstro»21descreveopercursobiográficodeumrapazoriundodomeiorural,cujopaidecidequeofilhodeveenveredarpelavidaeclesiásticaparaterumníveldevidamelhorequebrarociclodemisériaemqueafamíliavivehágerações.

Segundoopoeta,obalançodaestadanoseminárioépro-fundamentenegativoe,apósela,acriançapassaaserum“monstro”22 deegoísmo,estupidezeluxúria.

Noiníciodestetexto,Junqueirodescrevepormenorizada-menteavidadespreocupadaealegredeumacriançaquemantémestreitaligaçãocomanatureza,asuaprimeiragrandeescola.Épreci-samenteessecontactoestreitoquelhepermitemanterasuasaudávelalegriaepurezainfantis:“Eleeranessetempoumacriançaloira/Aovento,aosol,pastoreandoosgados/[…]Dormindoaboasestaaopédasclarasfontes/Norijoenegropãocravandoosdentesbrancos,/Radiosocomoaauroraebomcomoaalegria”.23

Comoévisível,peladescriçãodestequadro,apobrezaeavidaduradocampoemnadainibemafelicidadeinfantil;pelocontrário,promovem o seu saudável e harmonioso desenvolvimento.24

Nesteprimeiromomentodopoema,queassumecontornosdetextonarrativo,25orapaz,queépersonagemprincipal,fazjusaocélebre dito latino mens sana in corpore sano,poistudoénelegran-deesemmácula,desdeosolhos(espelhodaalma),quetêm“umalimpidezvirtuosa”26e“reflectemumaaudáciaheróicaevalorosa”27 aotimbredasuavozqueé“imperiosaeclara”28,atéàsuapostura“altivamente recta”29.Comefeito,opequenoheróidesta“história”reúnetodasascondiçõesnecessáriasparaserum“soberbo[...]atletaem miniatura”.30

Porém,odestinodestejovemédrasticamentealteradopeladecisão paterna de os seus estudos se efectuarem num seminário. O pequenoJoãovaiterdepartireopai,“umbravoaldeão”31,apresen-

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ta-lhe,numexcelentediscursoargumentativo,todososmotivosquejustificamaopçãopelavidaeclesiásticaquetomoupelofilho.Osmotivos,deordemestritamentematerialistaemundana,transmitemclaramenteaideianegativaqueopovoportuguêsdoséculoXIXtinhasobreosmembrosdoclero,visívelnaspalavraspaternas:

“ Vou botar-te ao latim, quero fazer-te gente/[...] Hoje padre é melhor talvez que ser doutor/ Aquilo é grande vida; é vida regalada. / Olha, sabes que mais? Manda ao diabo a enxada. / Aquilo é que é vidinha! Aquilo é que é descanso! / Arrecada-se a côngrua, engrola-se o ripanço, / Arranja-se um sermão aí com quatro tretas, / Vai-se escorropichando o vinho das galhetas”.32

Comooexemploacabadodestavida,semprincípiosreli-giososoumorais,mascommuitosproveitosmateriais,éapresentadoopadredaterra,queéalvodeduracrítica:

“Olha, João, vê tu o nosso padre – cura:/ É, sem tirar nem pôr, uma cavalgadura. / Vi-o chegar aqui mais roto que os ciganos;/ Pois tem feito um casão em meia dúzia de anos”.33

Asexpectativasdestepaiparaofuturodofilhonãocoin-cidemcomasdopequenoJoãoquesemostratristeecontrariado34,comoévisívelpelareacçãopaterna:“Masqueéissorapaz?Nadadechoradeira/Tocap’róseminário.Euqueroirparaacova/Sódepoisde te ouvir cantar a missa nova”.35

Depois de uma elipse36,ahistóriadeJoãoprossegue,ago-ra já “coluna da igreja”. 37Depoisdasuaformaçãonoseminário,o“muitíssimoilustreedignopadreJoão”fazasuaapariçãonaaldeia.ÉsobreestenovoJoãoqueosujeitopoéticoteceassuasconside-rações, emais concretamente reflecte sobre ele comoo resultadoconcreto de um processo educativo operado pelo seminário. Desde logoseassinalauma“transfiguração”38,“umaradicalmudança”39,pois“Emvezdoalegrefilhochegaummonstrojádecrépito/Queacabava de vir das jaulas clericais”. 40

Segundooautor,aeducaçãonosemináriofuncionavaemmoldestaisqueatrofiavamentesecorpos,“Emlugardainocente,angélicacriança,/Voltavaumchimpanzé,estúpidoebisonho/[...]Seucorpojuvenil,robustoeflorescente,/Vergavaparaochão,exaustode cansaço.” 41

Junqueirocompara,atravésdametáfora,aidadeJoãoparao seminário com o aprisionamento de um passarinho, cujo cantomorredetristeza:“MetidanasprisõesescurasdeLoiola/Asuaalmainfantil,nãotendoluznemar,/Foicomoosrouxinóis,quedentrodagaiola/ Perdem toda a alegria e morrem sem cantar”.42

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Oautorreflectesobreaalmainfantilecomoaeducaçãonainfânciaéassuntodamaiorimportância,considerandooautorqueela deixa marcas indeléveis na vida futura: “As almas infantis são brandascomoaneve,/Sãopérolasdeleiteemurnasvirginais,/Tudoquantosegravaequantoaliseescreve,/Cristalizaemseguidaenãose apaga mais.”43

GuerraJunqueiro,emváriosmomentosdasuaobrapoéti-ca,fazquestãodesalientaraimportânciadaeducaçãodecriançasejovens,poisquedasuaformaçãopresentedependeráasuaactuaçãofuturacomohomensemulheresdebem,conscientesesocialmenteválidos.

Seaeducaçãoéobjectodeváriasreflexõesnaobrajun-queiriana,tambémaescritaparaosmaisnovoséalvodedetalhadaatenção.

Partilhamosaopiniãodequantosdefendemquealiteraturaportuguesaparacriançasnãoexistiu,enquantotal,antesdasegundametadedoséc.XIX,nomeadamentecomageraçãodeAnteroeEça,conhecidacomoageraçãode70ecomAbílioGuerra Junqueiro.Equandofalamosdeliteraturaparacriançasouliteraturainfantil,falamos, naturalmente, de uma intenção deliberada de escrevê-laparaumpúblico-alvo:acriança.Asobrasantesexistentes,lidasporalgunsprivilegiados,oucujasversõesmaisoumenosadulteradaseramescutadasaosserõesàlareira,ouemmercadosepraçaspúblicas,atravésdejograisouversejadoresambulantes,nãoeramliteraturainfantil.Eramliteraturadeexpressãooralepopular,literaturaparatodos. E adoptada pelas crianças. A distinção infantil ou juvenil não estavafeitanemhaviapreocupaçãoemfazê-la.

OquerealmenteaconteceufoiqueaGeraçãode70,porintermédio de alguns dos seus elementos mais destacados era detentora deumaconsciênciacríticarelativamenteànecessidadedeescreverpara a criança em moldes mais semelhantes aos actuais. A pedagogia emergente apontava alguns caminhos e mostrava a criança como umserhumanocomcaracterísticasprópriasenãosimplesmenteumindivíduo em estágio para a fase adulta.

EçadeQueirós,em1903,aoescrevernassuasCartas de Inglaterra,aquelaquepodemosconsiderarcomoaprimeiracríticaliteráriasobreliteraturainfantilportuguesa,traçaumapanorâmicadoquesepassavaatéentãononossopaís.Comoespíritocríticoehumorquelhereconhecemos,comparaaproduçãonacionalcomariquezadaliteraturaparacriançasqueencontrounoestrangeiroediz:“ABélgica,aHolanda,aAlemanha,prodigalizamesseslivrosparacrianças;naDinamarca,naSuécia,elessãoumaglóriadaliteraturaeumadasriquezasdomercado.EmPortugalnada”.44

Oescritorrefereaquiloqueoimpressionounoslivrosque

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sedestinavamàinfânciaelamentaqueosnãohajanonossopaís,ressaltandoofactodenãoserememnadainferiores“ànossaliteraturade homens sisudos”45, seremcontadosnuma linguagem“simples,pura,clara”46 e não serem “ornatos de sala”.47FalandodePortugal,Eçadizainda:“EuàsvezesperguntoamimmesmooqueéqueemPortugallêemaspobrescrianças.CreioqueselhesdáFilintoElísio,Garção, ou outro qualquer desses mazorros sensaborões, quandoosinfelizesmostraminclinaçãopelaleitura.Istoétantomaisatrozquanto a criança portuguesa é excessivamente viva, inteligente eimaginativa.”48.

Resumindo, Eça deQueirós considera a Literatura paracriançasfundamentalnaconstruçãodassuaspersonalidades,nosentidodestasviremasercidadãosequilibradoseconscientes,afirmando:“estoucertoqueseexistisseumaliteraturainfantilcomoadaSuéciaoudaHolanda,paracitarpaísestãopequenoscomoonosso,erguer-se-iaconsideravelmenteentrenósonívelintelectual.”49

Paraconcluirasuareflexãosobreliteraturainfantil,oautorcriticaasociedadeportuguesa,atravésdasuaomnipresenteironia

“Eu bem sei que esta ideia de compor livros para crian-ças faria rir Lisboa inteira. [...] Lisboa quer coisa superior; quer a bela estrofe lírica, o fadinho ao piano, o rico drama em que se morre de paixão ao luar [...] enfim, tudo o que o roman-tismo português inventou de mais nobre. Educar os seus filhos inteligentemente está decerto abaixo da sua dignidade.”50

GuerraJunqueiroconcordaemtudocomestavisãonegraapresentada porEça e porque considera que a infância é fase dodesenvolvimentohumanode importânciavital resolvededicar-lheatenção,tambémsobaformadeliteratura.Assim,em1877,aLito-grafiaUniversalpublicaasuaobraemprosaContos para a Infância,obradequesefizeramváriasediçõesapartirde1881,demonstrati-vas de boa aceitação por parte do público comprador. Os principais temaspresentes:oamordemãe,abondade,averdade,ajustiça,asolidariedade,otrabalho,aperfeiçãodanatureza,agratidão,obem,acrençaemDeusenomundometafísico,sãoaspectosqueoescritorexalta,comvistaaqueojovemleitordescubraeescolhaumaescaladevalorespositivose,consequentemente,construtivosdepersona-lidades íntegras.

Nãopretendemosfazerumaanáliseexaustiva,masapenasilustrar,comalgunsexemplosmaissignificativos,astemáticasatrásenunciadas.Destemodo,sobreoamordemãe,temososcontos:«Amãe»51,queabreacolectânea,e«Aurnadaslágrimas»·. O primeiro é umaadaptaçãodocontodeAndersen,emqueumamãedesesperadatentareaver,portodososmeios,ofilhinhoqueamortelhelevou.Nosegundocasoédenotarque,aquiloquehojeemdianospareceria

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mórbidoesusceptíveldeferirasensibilidadedascrianças,eraaceitenofimdo séculoXIXcomozona temáticaprópriapara literaturainfantil.52

Relativamente a atributos e valores como a bondade, averdade,ajustiça,asolidariedade,otrabalhoeagratidão,elesestãopresentesnamaiorpartedaobra,comooprovamosseguintestítu-los: «Doçura e Bondade»53,«PresenteporPresente»54,«OPinheiroambicioso»55,«BoaSentença»56,«ReconhecimentoeIngratidão»57,«Os animais agradecidos»58e«Inconvenientedariqueza»59,paranãodarmaisquealgunsexemplos.

Aperfeiçãodanaturezacomoreflexodamagnitudeeper-feiçãodivinaseagrandezadeummundodesuperiorespiritualidade,muitoacimadaspequenezaemisériahumanas,sãocrençasdoautor,estando presentes em textos como: «A canção da cerejeira»60, «Acriança,oanjoeaflor»61,«PerfeiçãodasobrasdeDeus»62,«OstrêsvéusdeMaria»63,«Aalma»·, «O ermitão»64 e «O linho».65

NatérciaRocha,nasuaBreve história da Literatura para Crianças em Portugal (pp.49/50)afirma:

“Embora preocupados com a adequação das leituras previstas para as crianças, autores como Junqueiro e Ante-ro não se desprendem de intenções imediatistas ligadas ao “dever” e ao “saber”. Basta compulsar a antologia Tesouro Poético da Infância, de Antero ou ler algumas páginas da obra Contos para a Infância ou do poema Tragédia Infantil, de Junqueiro, para se poder avaliar a distância entre intenções e realizações”. A autora acrescenta: “A criança é então vista com uma aura poética, desajustada e opressiva. Os autores debruçam-se sobre recordações de infância, tomando por tema a criança imaginada através de factores afectivos individuais. Daí uma certa ambiguidade entre as obras literárias ao dispor das crianças e aquelas que simplesmente a tomam por tema.”

Apesar desta posição crítica, Natércia Rocha não podedeixardeafirmar:

“Contudo, o próprio fenómeno da procura frequente da criança como tema literário encaminha para o melhor conheci-mento da realidade da criança e as transformações no âmbito da criação literária sofrem condicionamentos gerados pelas correntes pedagógicas e pelas situações político-sociais”.

Embora muitos dos textos presentes em Contos para a In-fâncianãosejamdaautoriadeJunqueiroesim,adaptaçõesdecontostradicionais66 ou de autores consagrados da literatura infantil67,comoAndersenouosirmãosGrimm,estaobranãodeixadeterumenorme

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valorintrínseconaépocaemquesurgiunopanoramaliterárioportu-guês,sendodo“maissingelo,maisgraciosoemaishumano.”68.

Ocarácterdecompilaçãoqueolivroapresentaéassumidopelopróprioautor,quandoocomparametaforicamentecom“umramodeflores,masnãodefloresextravagantes,comcoloridosinsensatosearomasvenenososediabólicos.Éumramodeflorinhascândidas,queasmães,ànoite,deixarãosemtemornacabeceiradosberços.”69

Oprefáciodaobra,daautoriadeJunqueiro,éumdocumentodeprofundovalorpedagógicoe,jápelasuaactualidade,jápeloquereveladaalmadopoeta,nãoresistimosaescutaralgumasdassuaspassagens.

“A alma de uma criança é uma gota de leite com um raio de luz.

Transformar esse lampejo numa aurora, eis o problema.A mão brutal do pedagogo áspero, tocando nessa alma, é

como se tocasse numa rosa: enodoa-ªPara educar as crianças é necessário amá-las. As esco-

las devem ser o prolongamento dos berços. Por isso, os gran-des educadores como Froebel, têm uma espécie de virilidade maternal.

O leite é o alimento do berço, o livro o alimento da esco-la. Entre ambos dever

A existir analogia: pureza, fecundidade, simplicidade.Livros simples! Nada mais complexo.Não são os eruditos gelados que os escrevem; são as

almas intuitivas que os adivinham.”70

Comoévisívelnareflexãoinicialqueabreestaobraemprosadedicadaaosmaispequenos,GuerraJunqueironãodesdenhouemescreverparaascriançase,aofalardoslivrosquesedevemes-creverparaainfância,revela-sebemconscientedeque,aocontráriodoquemuitosescritorespensavam,eaindapensam,escreverparaascriançasnãoémaisfácildoquefazê-loparaleitoresadultos.

Comefeito,pelaleituradestaobra,podemosconcluirqueoautorcumpretodasasfunções(estética,pedagógicaesocial)quesepretendequeumaobraalcancejuntoaumpúblicoinfanto-juvenil.Destemodo,Contos para a Infânciarecreiaeformaoleitor,tornando-odisponível aos valores estéticos e aos valores éticos e transforma-o e comeleasociedade,apontando-lhevaloresconcretosqueorientarãoa sua acção e actuação cívica.

Recreando, formandoe transformando,visará,pois,este

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livro,queseintegraplenamentenoconceitodeliteraturainfantilejuvenil,fazerdacriançaedojovem,noseutempopróprio,umhomemlivreeactivo,criadordeumanovacultura.

AobradeGuerraJunqueirofezparteintegrantedocânoneliterárioduranteváriasdécadas(40,50,60doséc.XX),pois,partedela,foiseleccionadapelopoderinstituído(EstadoNovo)parafi-gurarnosmanuaisescolares,eserviu,longotempo,paratransmitirdeterminados valores e ajudar a formar consciências.

Concluímos,apósestudodetalhadodosenunciadostextuaispresentesnosmanuaisescolaresdaterceiraequartaclassesdadécadade50,queapenasfoiseleccionadaaproduçãoliteráriadoautorqueevidenciavaoamoràTerra,aoruralismo,àsactividadesprimárias,bemcomoosgrandesvalorescomoaHonestidade,oTrabalho,oamoraDeuseàFamília,orespeitoeobediênciaàsinstituiçõesegovernantes.

Junqueiro foi tido e conceituado porque a sua presençaliterária nos livros escolares evidencia a sua faceta de nacionalista crente e “esconde” o seu lado contestatário e iconoclasta.

DeháanosaestaparteGuerraJunqueirotemsidoexcluídodocontextoescolar.Estefactodeve-se,emnossoentender,amu-dançasnogostoliterário,relacionadascomareavaliaçãodegénerosrepresentadospelasobrascanónicas,71bemcomoàentradanocânonedemuitasobras,graçasabemsucedidascampanhaspublicitáriasede propaganda.72

Nãopodemosconcluirsemressaltarque,emborahomemde seu tempo,Guerra Junqueiro foi um espírito de vanguarda noquerespeitaàssuasreflexõespedagógicas,umafacetasuamenosconhecidaquetentámosevidenciarnestenossotrabalho.

Portudooquefoiapresentado,nós,leitoreseeducadores,temosporobrigaçãomantervivaasuamemóriaatravésdousoedivulgação da sua obra literária.

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Notas1 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra, «A Escola Portuguesa», A Musa em Férias,

Obra Completa (Poesia),Porto,Lello&Irmão-Editores,s./d,p.686. A metáfora é o recurso mais usado neste poema a nível do plano estilístico-se-

mântico.2 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. ci, p.686.3 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.687.4 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.6875 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. Cit.,p.688.6 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. Cit., P.688.Aníveldoplanoestilístico-semântico,ousodestahipálageserveparatransmitir

otédioetristezaquenoséculoXIXoprocessodeensino-aprendizagemimpunhaàscrianças.

Ao invés de ser um local de motivação e incentivo ao conhecimento e desenvol-vimentoharmoniosodacriança,aescolaeraumespaçodeterroresofrimentoextremos.

7 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. Cit., p.688.8 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. Cit.,p.689.9 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. Cit., p.688.Atente-senaimportânciadametáforacomtodaacargaafectivaqueelatransmi-

te.Anoite,símbolododesconhecidoedoobscurantismo,éidentificadacomoprofessoreaalvorada,promessadevidaeconcretizaçõesfuturas,correspondeaopequenoaprendente.Estadefiniçãodecadaumdoselementosdoprocessodeensino/aprendizagemaprofundaaindamaisofossoexistenteentreosdois.

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10 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit. ,p.688.11 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit. ,p.689. Novamenteametáforaatransmitirocarácternegativoedestrutivoqueaescola

representava no universo infantil do século XIX.12 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.687.13 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit, p.687.14 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.688.15 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit., p.688.16 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.688.17 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit., p.688.18 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.689.Estaéumadasmetáforasmaisexpressivasdestetexto,poistransmitedeforma

crua e nua o modo como a criança era tratada na escola: completamente castrada nos seus desejos e vontades e abafada na sua criatividade. Ao escolher como se-gundotermodecomparaçãooobjecto“almofariz”,usadoparaesmagarereduzirapó,Junqueirotransmite,demodonítido,aopressãodequeeramvítimasospequenosestudantesnaescolapúblicadoséculoXIX..

19 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.687.20 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.686.21 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,«ComoseFazumMonstro»,A Velhice do

Padre, Obra Completa (Poesia),Porto,Lello&Irmão-Editores,s./d,p.474.22 “Que transfiguração!Que radicalmudança!/ Em lugar da inocente,Angélica

criança,/Voltavaumchimpanzé,estúpidoebisonho,/[...]Aignorânciaprofunda,aestupidezsuína,/Aluxúriad’Igreja,ardente,clandestina,/Oremorso,oterror,ofanatismoinquieto”,in JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,«ComosefazumMonstro», A Velhice do Padre Eterno, Obra Completa (Poesia),Porto,Lello&Irmão-Editores,s./d,p.383.

23 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit., p.383.24 Adescriçãodavidanocampoétãoidílicaqueoautorchegaacompararoca-

rácterpictóricodacenadescritaaumapinturadeautorconsagrado:“EàtardequandooSol,extraordinárioRubens,/Nafantasmagoriaesplendidadasnuvens,/Coloristafebrillança,desfaz,derrama/Otopázio,orubi,aprata,ooiro,achama”,in JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.383.Aníveldoplanoestilís-tico-semântico,atente-secomoaenumeraçãoassindéticaconfereumespecialvisualismopictóricoaoquadroapresentado.

Este é mais um exemplo de como a miscigenação modal é uma constante em toda aproduçãoliteráriadeJunqueiro.

25 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit., p.38�.26 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.384.27 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit., p.38�.28 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.384.29 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit., p.38�.30 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.384.31 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit., p.38�.Éimportanteconstataraníveldoplanotécnicocompositivo,apresençadeum

tomoralizanteeousodeumregistodelínguapopularparaconferirverosimi-lhançaàspalavrasdocamponês.

32 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit..

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33 NoséculoXIX,estaatitudepaternaemnadanossurpreende,umavezqueeramsempreosprogenitoresquetomavamtodasasdecisõesconcernentesàvidadosseusfilhos,fosseaníveldoplanopessoalouprofissional.

34 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.385.35 Estratégia literária própria domodo narrativo,mais uma vez a comprovar a

miscigenaçãomodalpresentenaobraliteráriajunqueiriana.36 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.385.37 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.385.38 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.385.39 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit, p.385.Atente-senaexpressividadedametáfora,“jaulas”,afazercorresponderosemi-

nário a um local onde estão encerrados animais.40 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.385.41 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.385.Notemos,novamenteaforçaexpressivadametáfora.Nestecaso,aaproximação

dotermosemináriodoconceitodeprisãotransmiteaideiaqueoautortemsobreaeducaçãonestainstituiçãoreligiosa,associadaaencarceramentoeaoobscu-rantismodarígidaortodoxiacatólica.

42 JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit., p.386.43 QUEIRÒS,Eçade,CartasdeInglaterra,EdiçõesLivrosdoBrasil,cap.V,«A

LiteraturadeNatal»,Lisboa,s/d.,p.53.44 QUEIRÒS,Eçade,op. cit.,51.45 QUEIRÒS,Eçade,op. cit.,52.46 QUEIRÒS,Eçade,op. cit.,53.47 QUEIRÓS,Eçade,op. cit.,53.48 QUEIRÒS,Eçade,op. cit.,53.49 QUEIRÒS,Eçade,op. cit.,54.50 ” In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,«AUrnadasLágrimas»,Contos para

a Infância, LelloeIrmãoEditores,Porto,s./d.,p.9.51 “Eraumavezumaviuvaquetinhaumafilhinhamuitolinda,aquemadorava

sobretodasascoisas.Nãoseseparavadelaumsómomento;masumdiaapobrepequerruchacomeçouasofrer,adoeceuemorreu.Adesditosamãe,quetinhapas-sadoasnoiteseosdiasasemrepousarummomento,àcabeceiradafilha,julgouendoidecerdemágoaedesaudades.Nãocomia,nãofaziamaisnadasenãochorarelamentar-se[...]viu-aapareceraela,asuaqueridafilha,trazendonasmãosumaurnaquevinhacheiaatéàsbordas[...]Sechoraresmais,transbordará,eastuaslágrimascorrerãosobremim,inquietando-menotúmuloeperturbandoaminhafelicidadenoparaíso.Apequenadesapareceueamãenãotornouachorarparanãoaafligir.” In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,«AUrnadasLágrimas»,Contos para a Infância, LelloeIrmãoEditores,Porto,s./d.,pp.89-90.

52 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit., p. 29.53 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.61.54 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra, op. cit.,p.69.55 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.77.56 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.91.57 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.131.58 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.179.

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59 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.27.60 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.51.61 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.79.62 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.115.63 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.169.64 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.,p.183.65 Casos,porexemplo,de:A serpente branca,p.231,João e os seus camaradas,

p.119,João Pateta,p.241,O Oiro,p.47,Orabequista.,p.101, in,JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,Contos para a Infância, LelloeIrmãoEditores,Porto,s./d.

66 Casos de: A mãe,p.5,O valente soldado de chumbo,p.159eArapariguinhaeosfósforosdeHansChristianHandersen,O chapelinho encarnado,p.193,eBranca de Neve,p.211,dosirmãosGrimm,in JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,op. cit.

67 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,«DuasPalavras»,Contos para a Infância, LelloeIrmãoEditores,Porto,s./d.,p.6.

68 In JUNQUEIRO,AbílioManuelGuerra,«DuasPalavras»,Contos para a Infância, LelloeIrmãoEditores,Porto,s./d.,pp.6-7.

69 In,AbílioManuelGuerra,«DuasPalavras»,Contos para a Infância, Lello e Irmão Editores,Porto,s./d.,pp.5-6.

70 NaopiniãodeHaroldBloom,cadaépocapossuiumrepertório relativamentereduzidodegénerosquelutamunscomosoutrospelasobrevivência,afirmandoqueaselecçãodeobrasliteráriasquetêmumestatutocanónicoseprendetam-bémcomaideologiadosgrupossociaisdominantes,instituiçõeseducativasetradiçõesdecrítica.Cf.BLOOM,Harold,O Cânone Ocidental, Lisboa,CírculodeLeitores,1994,p.40.

71 BLOOM,Harold,op. cit.,p.39.

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AAprendizagemSistemáticada Escrita

Dina Rodrigues Macias

Alinguagemcomocompetênciaexclusivamentehumana,istoé,alinguagemoralexistiudurantemilharesdeanosantesdeoHomemdescobriramaneiradeafixarporescrito.

Comestadescoberta,alinguagemtransformou-senumex-celenteinstrumentodecomunicaçãoquesuperaoespaçoeotempo.Lembremosaenormeherançaculturaldospovosque,sóatravésdoscódigosdeescrita,foipossíveltransmitir.

Eaindahoje,noséc.XXI,aleituraeaescritaaparecemcomocondutasnecessárias,jáqueaprenderalereaescreveréadquirirumpodersocialedestasocializaçãoresultaráumamestriaindividual.

Acivilizaçãoatribuiu,efectivamente,àescritaumaimpor-tânciaextraordinária.Masparabementendermosestaimportância,éfundamentalconhecê-laprofundamente.Assim,importará,antesdemais,considerarassuasdiferençasrelativamenteàexpressãooral.

Alinguagemoraléumconjuntodesonsproduzidosquecomunicampeloouvido,enquantoalinguagemescritasetransmitepelavisão,pormeiodesímbolosgráficos.

Há,nalinguagemoral,umaenormeriquezaderecursosquefacilitamacomunicaçãolinguística,nomeadamenteotimbredavoz,aentoação,ogestoeatéaprópriafisionomiadoemissor,emoposição

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àexpressãoescritaquenãopossuiesteconjuntodeelementos.Masoque,efectivamente,aconteceéasubstituiçãodaqueleselementospor outros com características semelhantes.

A respeito desta diferenciação entre linguagem escrita e linguagem oral, atentemos nas palavras deG.Vigner (1982) quecitandoMoscoviciePlon(1966)afirma:

La différence du langage écrit et du langage oral, comme dans d’autres canaux de communication qui s’en approchent, n’est point due aux conditions de la stimulation physique mais aux relations entre locuteurs. Ces relations désignent un camp, une structure d’ensemble qui est celle de la situation-colloque et c’est cette structure qui impose le choix de certaines alterna-tives linguistiques.

Importará,agora,definirocódigodeescritadeumalínguacomoumconjuntodesinaisgráficoseoutroconjuntodeconvençõescorrelacionando-os com os sons da linguagem. Este conjunto de si-nais,nomeadamenteoalfabeto,ossinaisdepontuação,osacentos,os sinais diacríticos e a translineação funcionam como regras para queacomunicaçãosejaeficiente.

Umoutroaspectoimportantedaexpressãoescrita,emcom-paraçãocomaexpressãooral,refere-seàs“condiçõespsicológicas”emqueessaescritaédesenvolvida.Nãoháumreceptorimediato,nãoháapresençadealguém,masantesumasituaçãodecomunicaçãoar-tificialjáquenumprimeiromomento,aquelequeescreve“falaapenascomopapel”,colocandoaítodaainformaçãonecessáriaparaqueamensagemsejacompreendidaeisentadequalquerambiguidade.

NestesentidoVigner(1982)falaemcomunicaçãodiferida,considerandoque:

«Écrire procède, entre autres raisons, de la nécessité de transmettre un message à un interlocuteur/récepteur absent. Le message sera reçu ultérieurement, en l’absence de l’émetteur » (p. 23), pelo que e ainda segundo Vigner (1982) « Le message doit être construit, une fois pour toute, de manière à prévenir tout malentendu à la reception » (p. 24).

Sophie Moirand (1979) põe igualmente em relevo estadistinção,afirmandoqueooralsecaracterizapeloimediatismodamensagem,pelapresençarealdodestinatárioepelaproximidadedeumarespostaimediata,tornando-aumalinguagemmaisespontânea,contrariamenteàescrita,tambémporsiconsideradaumamensagemdiferida,ondeapresençadoreceptorévirtualecomimpossibilidadederespostaimediata,aindaquemaiselaborada.

Alinguagemoralapelaaotreinodamemóriaauditiva,a

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únicaquefuncionanaapreensãodeumaexposiçãooral, jáqueoemissorpodeirelaborandoasuamensagem,paraatornarmaisclara,eoouvintecentra-se,forçosamente,noconteúdoenãonaformadotextoqueouve.

O leitor está numa situação totalmente diferente da do ouvinte,“neleatuaamemóriavisualcoordenadacomumaaudiçãomentalqueossímbolosgráficosevocam”(MattosoCamara,1985,p.57)e,poroutrolado,temapossibilidadederelerotextoparcialoutotalmente.Porambososmotivos,oleitorpodeanalisaresteticamenteumtexto,oqueseriaimpensávelnumasituaçãodeconversaçãofacea face: “As palavras enunciadas voam e passam no caudal dos seus sons,enquantoasescritassegravamatravésdosolhosepermanecemdiantedoleitorparaobservaçãoeexame”(MattosoCamara,1985,p.57).

Alinguagemoralémaisdependentedocontextodeprodução,aoquecorrespondemfenómenoslinguísticoscommenorprecisão,sendoóbvioopredomíniodeanáforas,dedeícticossituacionais,derepetições,depausasedebordõeslinguísticos.

Poroutroladoéàescritaqueseexigemaiorrigornasca-racterísticasformaisegramaticais,oquenãosignifica,contudo,quenalinguagemoralnãosedevadaratençãoaumaplanificaçãomentalrelativaàformadoenunciado.

Masaescritaé,semdúvida,omeioprivilegiadodecomuni-caçãoàdistância,graçasaumcódigoespecialquepermitetransportarodiscursodeumaformaduradoira,poroposiçãoàlinguagemoralqueépassageira–“verba volante, scripta manent …”.

Não pretendemos afirmar que o signo oral é totalmenteefémero,jáqueconsideramosquetodososactosdefalaserealizamcomotextos,masaintencionalidadedaconstruçãotextualéexplicitadanaproduçãoescrita,sendomaisconscienteaescolhademecanismosdeorganizaçãotextualatravésdos“meioslinguísticosedemarcosdereferênciainternosquepossamgarantiraautonomização do texto emrelaçãoaomomentoecircunstânciasconcretasdasuaprodução”.(FernandaFonseca–1992,p.235).

Ao entraremno sistema escolar, os alunos possuemumconsideráveldomíniodasualíngua.Nãopodemos,noentanto,serludibriados,jáqueeleserá,provavelmente,umconhecimentocomlacunasvárias,necessitandodaintervençãodaescola,nosentidodefazerosajustamentosnecessários.

Aescolaéumsub-sistemasocialeporisso,émaisdoqueevidentequesereflictamnelaosproblemasdanossasociedade,comosãooanalfabetismo(realefuncional),aausênciadelivrosemcasa,oreduzidonúmerodebibliotecas,obaixoníveldevidadaalgumascamadasdapopulação,asaúde,otrabalhoprecoce,etc..

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O Sistema de Educação em Portugal continua a revelar níveis preocupantesdeinsucessonodomíniodalinguagemoraleescrita,como o provam os estudos para apuramento dos níveis de Literacia encomendados pelo Conselho Nacional de Educação.

Sabemosquealeituranãofazpartedoquotidianodosado-lescentes;osmeiosdecomunicaçãoocupamparteconsideráveldostemposlivresdapopulaçãoescolar;assuasapetênciasegostosnadatêmavercomaleiturae/ouescrita.Diremosmesmoquevivemosna sociedade do audiovisual e do imediato.

Sendoincontestávelquealeituratemumpapelimportantenaformaçãodapersonalidadeenoacessoàcultura,nãopodemos,enquantoprofessores,ficarindiferentesaestarealidade.

Acreditamosqueamelhorformadequebrarestatradiçãode não-leitores é criar na Escola um verdadeiro espaço de actuação queviseaaproximaçãodolivrocomofuturoleitor,questionandoereformulandomuitasdassuaspráticaseesquemasorganizacionais,nomeadamentenoquetocaaoaproveitamentodassituaçõesdeleitura,queremauladelínguamaternaqueremoutrasáreascurriculares,narenovaçãodoespaçoedofuncionamentodabiblioteca,bemcomonacriaçãodeoutrosespaçosindutoresdeleitura:bibliotecasdeturma,hemerotecas,mediatecas,centrosderecursos,entreoutros.

Urgeumaconsciencializaçãoprofundadasconsequênciasdestaatitudeeumempenhamentodetodasaspartesenvolvidas,masé,nanossaopinião,aoprofessordelínguamaternaquecabe,priorita-riamente,interferirnessaorgânicaondeestãoinseridososseusalunos,nosentidodecriarcondiçõesquepermitamoensino/aprendizagemdaLínguaMaterna,demodoaincentivareprestigiarumfácilacessoàprodução/recepçãodetextos.Estaprogressãodeveráprocessar-sequernacompetênciaoralquernaescrita.

Aprimeiracondiçãoabsolutamentenecessáriaparaqueoêxito de uma pedagogia da leitura é a adesão sincera e entusiástica dosprofessoresàsleiturasquepropõemaosseusalunos.

A sua transformação será radical e a sua formação ajudará certamenteodesenvolvimentoculturaldopaísquecadavezmaisexigedaEscolaumafunçãosocializadora.

Aaprendizagemdaescritaedaleitura(alfabetização)en-tende-se,hoje,comoumprocessocomplexoquesedesenvolveaolongodavida,dentroeforadaEscola.

Naverdade,vivemosnummundorodeadodeescritaeascriançasestabelecempermanentementeinteracçõesapartirdoquejáconhecemcomaescritaqueosrodeia.

Tais interacções começam muito antes da entrada para a escola.

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Nestesentidoimportaqueotrabalhodeexpressãoorale,obviamente,deexpressãoescritasedesenvolvaapartirdesituaçõessignificativas, ou seja, aquelas que decorremdos interesses e dasnecessidadesdascriançasedasperguntasqueelascolocamacercado real vivido ou imaginado.

Importa,igualmente,apagaralgumasrepresentaçõesqueosalunoseprofessorestêmdaescrita,sobretudoseelassãomarcadasnegativamente,comoporexemplooentendimentodeumacapacidadeinata,“umaquestãodedom”,enãoalgosusceptíveldeseraprendidoeaperfeiçoado;aligaçãode“escreverbem”aescreverdeuma“formarebuscada”;ouaindaaaceitaçãodequeodomíniooralda línguaimplicaforçosaeespontaneamenteaaprendizagemdasregrasedosmecanismos da escrita.

A Escola assume hoje um papel preponderante na formação integraldoalunoeelanãopodeserapenasolugardainiciação,mastambémdotreinoedaconsolidaçãodeumaaprendizagemdaescrita,jáquecadavezmenosessaescritaéusadaforadaescola,nousosocialdalíngua,aindaqueelasejaumapresençaconstante.

Nestaperspectiva,osnovosprogramasdeLínguaPortu-guesaconcedemàescritaumlugarfundamentaldentrodaescola,aquemcabeoimportantíssimopapeldemotivaraaquisiçãodaquelacompetência e seu desenvolvimento.

Concordamos totalmente com a opinião de José Carvalho (1992)quandoafirma:

Ao elegerem como conteúdos fundamentais os diferentes domínios da interacção verbal (falar, ouvir, ler e escrever), os novos programas de Língua Portuguesa representam um passo importante no sentido da transformação da aula de Português numa verdadeira aula de Língua que visa, acima de tudo, dotar os alunos de uma real competência comunicativa, resultante da apropriação da língua por sujeitos capazes de a actualizarem numa diversidade de discursos. (p. 85)

Éno sentidode contribuirpara a clarificaçãodestepro-blema,quepreocupa todososprofessoresque leccionama línguamaternanasnossasescolas,quedefendemossecriemcondiçõesquepermitamoensino/aprendizagemdoPortuguês,emmoldesquecadavezmais incentivemasactividadesde leituraeescrita,emdefesadapróprialínguaedosseusutentes,jáqueaescritaé,nodizerdeRaquelDelgado-Martins(citadaporJoséCarvalho,1992),umsaberescolarizávelquedeveráserexplicitadoeensinado,demodoapoderser aprendido.

NosprimeirosanosdoEnsinoBásico,acriançapressenteesonhacomoencantoeoprazerquepodemproporcionar-lheas

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palavras e as frases. Tem vontade de escrever. Depois vai perdendo estaapetência.EaquilembramosumtextodeNunoBragança:“Odesenholivredaspalavras”,paranóscarregadodeumgrandesim-bolismo,jáquetivemosoprivilégiodeentrarnomundodaescrita,comaajudadeumavelhamáquinadeescrever.

“Quando eu tinha quatro anos e um rescaldo de doença, puseram-me diante de uma máquina de escrever. Travaram essa “Smith-Corona” na posição de escrever maiúsculas e disse-ram-me:

“Carregue com força. Aqui.”Carreguei, houve um estalido. Depois mostram-me o pa-

pel envolvendo o rolo: tinha aparecido lá um sinal idêntico ao que estava pintado na tecla em que eu tinha carregado.

Aquilo fascinou-me. Comecei a carregar nas várias te-clas e a ver aparecerem no papel os sinais pretendidos.

Quando perguntei que sinais eram aqueles, disseram-me: “São letras.” Quando eu perguntei para que serviam as “le-tras” disseram-me: “Para desenhar palavras.” Foi das coisas mais maravilhosas que ouvira até ali: era então possível fixar num papel o que as pessoas diziam, e pensavam.

Ao fim de uma semana eu já sabia “desenhar” várias palavras. E queria tanto aprender mais e mais que a minha mãe (que tivera a ideia inicial) apanhou um susto, e tentou fazer-me esquecer aquilo com medo que “fizesse mal à cabeça do peque-no”. É o esqueces. De tal maneira que aprendi a ler escreven-do. E passei da máquina ao lápis, apenas com a limitação de só saber escrever maiúsculas.

Comecei a escrever histórias. Depois cartas. Um dia descobri (ao escrever uma carta de um amigo imaginado a outro amigo imaginado) que era possível usar o desenho das palavras para desabafar.

Isto continuou até que passei a estudar segundo os méto-dos oficiais.

Pouco a pouco fui perdendo o gosto pela escrita. Sobre-tudo quando as minhas redacções começaram a ser censuradas, e asperamente: não correspondiam ao como deve ser.

O liceu foi (quase) o golpe de mestre. Obrigavam-nos a ler e a trabalhar textos antigos, que nada tinham a ver com o mundo imediato em que vivíamos. Quando tocou a esquartejar Lusíadas (ah, as orações intercalares!) cheguei à conclusão de que entre eu e o que aparentemente dava pelo nome de “lite-

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ratura” havia um abismo: o da abominação que essa palavra passara a significar para mim.

Do encanto inicial, restava-me a memória dos tempos em que escrevia as tais histórias, as primeiras cartas. Continuei a escrever cartas ao meu modo. E a meu modo fui escrevendo um Diário onde apontava com indicação da data e lugar, coisas importantes: coisas que aprendia pelos sentidos, ou sentidas no interior de mim. Um dia escrevi um desses apontamentos, e ao contrário do costume, antecedi-o de um título. Sem o saber, estava a escrever um capítulo do meu primeiro “romance”, A Noite e o Riso”.

Peranteestarealidadequetodosvamosconhecendoimportacolocaralgumasquestões:—emquemedidaosprocessosdeapren-dizagemdaleituraedaescritasãoresponsáveisporestedesprazerdeleredeescrever?e—comoultrapassarasmaioresdificuldadesdosalunosnodomíniodaexpressãoescrita,sejaaoníveldamacrooudamicroestruturadotexto?

Éprecisoqueoprofessorsaibamostrarqueescrevernopapelnospermitecriarnovosmundos,novashistórias,exprimiroamor,araivaearevolta;mastambémreivindicarosnossosdireitose explicitar as nossas ideias.

Parece-nos muito importante esta relação profunda entre escritaeliberdade,liberdadeeexpressão.

Selevarmosoalunoasentirqueaexpressãoescrita,mesmoapartirdetextosespontâneos,aindaquecomerroseincorrecções,olibertaeotornacompreendidoeelogiado,elepróprioterávontadedeajustaraqualidadedaformaàqualidadedoconteúdo,atravésdapráticadeescrita,comoumprocessoemquesesucedemváriasetapasde aperfeiçoamento.

Aprende-seaescreverescrevendofrequentemente,maséóbvioqueasoportunidadesdeescritadevemserapoiadas,porpartedoprofessor,comorientaçõescorrectas,decarácterdidáctico,quepermitam subsidiar o estudo do processo da escrita e com uma siste-máticaapreciaçãovalorativadostextosproduzidos.

Oprofessornãopretendehoje,naauladeLínguaoudeLiteratura,queosseusalunosfaçamamerareproduçãotextualdeumsaber,masqueelessejamcriativos.

Criarimplicaencontrarumautilizaçãoinéditaparaqualquercoisadeconhecido,istoé,organizarojáconhecidoprocurandonovasaplicações.Porisso,ascondutascriativastêmdeserestimuladasereforçadasdeformaaencontraremumcenáriocatalizador.

Assim na Didáctica da escrita é necessária a articulação

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deduasnecessidadesmetodológicas:porumladoéprecisoensinarumcódigoformal,independentedasintençõesedassituações;poroutroladoimportadaràspráticasdelínguaescritaasuaverdadeiradimensãoindividual,incomparáveleúnicaemcadaaprendiz.

Aproduçãoescritarepresenta,obviamente,umaformadecriatividade,maselaéforçosamentealembrançadeleiturasfeitasedereferênciasanteriores,semasquaisacriatividadeemcadaalunonão existiria. O aluno ao escrever transforma-se num autor e na sua produçãoháumapartedesipróprio.

Osnovossaberesganhamsentidoporqueradicamemco-nhecimentos anteriores.

É,efectivamente,aoprofessorquesepedeacapacidadeparaorientareajudaroalunoadesenvolver-se,criando“programasdeestimulaçãotraçadosdeacordocomasdificuldadesdosconteúdoseconceitosprogramáticos,ecomritmosefactoresdeaprendizagemprópriosdoindivíduoedascircunstânciasqueorodeiam”.(FátimaSequeira–1991,p.9).

Oprofessordeveráser,nalinhapropostaporEmíliaFerreiro(1985),“ummediador”–um“agentedacultura”talvez–doprocessonoqualoalunoseencontracomotextoescritoedosprocessosdecodificaçãoedescodificaçãodapalavraescrita”(p.262).

Esta mediação é simultaneamente um processo de socia-lização,jáquenosparecequeaescritadeveráservalorizadadentroeforadaescola.Seria,então,importantequeosprofessoressees-forçassemporutilizarocódigoescritoconhecidodosalunos,numaatitudeinteractivacomachamada“escritadanorma”,oucomolhechamaEmíliaFerreiro(1985)a“escritaoficial”.Aindanaperspectivadamesmainvestigadora,“asaladeauladeveservistacomoumaex-tensãodecontextosemqueosalunosjáseencontramcomprometidosemactividadesdelectoescrita”(p.264).

Ascriançasemidadeescolar,comojáreferimos,conhecemjá muito sobre a sua capacidade de “escritores”. As diferenças sociais e culturais deverão ser tidas em conta nas actividades de leitura e de escrita na sala de aula; negar aquelas diferenças seria ignorarum potencial individual e cortar-lhes a oportunidade de serem os “proprietários” das suas actividades de leitura e também de escrita. Elascrescememmeiosculturaisdiferentes,jáqueasociedadenãoéumaunidadehomogénea,oqueforçosamentelhesoriginagrausdedesenvolvimento cognitivo e linguístico diferentes.

Éinquestionávelquecadaalunodevesentirqueasuaculturae a sua linguagem são tratadas com respeito e simultaneamente deve serencorajadoaterconfiançaparaseexpressar.Istonãosignificaqueasdiferençassociaispodemserignoradas.Acriançaquenuncavêretratada,noslivrosescolares,asuarealidadesocial,nãosesentirá

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motivadaparafrequentarumaescola,jáqueessaescolaveiculaalgoquenãolhedizrespeito.

Masseaeducaçãoéumprocessodesocialização,éimpor-tantequecadaalunodasnossasescolasliberteapalavraquehádentrodesi,utilizando-acomlógicaecriatividade,pensandoemsipróprioesendocapazdeseposicionarfaceaqualquerassunto.

A dificuldade demonstrada pelo estudante para expressar seu pensamento, especialmente quando solicitado a redigir um texto, advém não apenas da deficiência no manejo da língua, da ausência de um vocabulário básico e de estruturas suficientes para comunicação na língua padrão, mas também da falta de ideias, de conhecimento das realidades, de interesse por escre-ver ou relatar o que pensa. O acto de escrever é considerado apenas uma tarefa aborrecida da qual ele deve desobrigar-se da maneira mais rápida e fácil possível. Não há motivação. (Nelly Carvalho, l99l, p. 74).

Comoconseguiraquelamotivação?Emgeralsomosmotivadosafazerascoisasquenosinte-

ressam.Assim,paraqueaproduçãodetextosejaalgoqueinteresseemotiveoaluno,otemaparaessaproduçãonãodeveráserimposto,masantespartirdassuasvivências,ajudandoacriança,numprocessocriador,acrescercomopessoa.

Oprofessordelínguamaternasóconseguiráatingirestegrandeobjectivodaproduçãoescritaquandoderaoalunoodireitoàpalavra,quandootemaparaessaproduçãoescritavierdaexperiênciadopróprioalunoefinalmentequandooprocessodeproduçãoescritaforprecedidodeproduçãooral:onarrar, odebater, o argumentaroralmentesobreoquesevaiescrever,recuperaforçosamenteousodalínguanasduasmodalidadeseoprocessogeralporquepassaaaquisiçãodalinguagem.Éesteumprocessointeractivodascriançasentresi,comomundoecomoprofessor.

Quando o aluno começa a elevar-se, voando com as suas asas, cabe ao professor estimulá-lo, animá-lo … e congratular--se por ser professor de um artista “e não cortar-lhe” as asas aos primeiros voos impedindo-lhe a passagem à originalidade e à criatividade (Carlos Reis e Victor Adragão, 1990, p. 41).

O Professor de Português deverá então levar os seus alu-nosaumaproduçãoescrita,quearticuleumacorrectaorganizaçãoaideiasclaras,libertando-osdeumaescritamuitoformalerígida,“propondo actividades criativas e ajudando a germinar as sementes deoriginalidadequevãoaparecendo”(CarlosReiseVictorAdragão–1990,p.41).

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Tal atitude não é fácil e ajudar as crianças a seleccionar ordenadamenteassuasideiasparaqueescrevamcomentusiasmoétarefa difícil.

Masseoprofessorfizersentiraosseusalunosqueaescritadeveserumreflexodoseuautor,dasuapersonalidade,dosseusgos-tos,dasuasensibilidade,pensamosquedepressaconseguiráqueelesescrevamsobreosassuntosapropósitodosquaiselessabemalgoediríamosmesmoquesãoosseus“proprietários”,acabandoporsentirorgulhonaquiloqueescrevem.

Éevidentequeestecaminhopassaporumareflexãosobreosdiferentesaspectosdoprocessodeescritaquedeverão,obviamente,ser interiorizadoseprogressivamenteautomatizadospelosalunos,demodoaapropriarem-sedosmecanismosbásicosquesustentamaescrita,autilizá-lademodointencionalepessoaleaauto-regularessautilização.

Aaprendizagemdaescritaeoseuconsequentedomínio,vãoevoluindoporetapas,comoqualqueroutraaprendizagem.MuitoresumidamenteeadoptandoaterminologiadeMabelCondemarín(1987),falaremosemEscrita inicialquecorrespondeà“etapapré-caligráficainfantil”naqualacriançaapresentaumasériedetraçosquerevelamaindaasuafaltadedomínioedecontrolegráfico(éafaseemqueacriançaaprendeasletrasisoladamente:m–demãe,p–paieb–debebé),aEscrita intermédia,quesurgequandoacriançatemjáestabilizadooseucomportamentografomotor,chegandoaumníveldedestrezaautomáticaqueestimularáaescritaespontânea,semprerelacionada e de alguma forma dependente de outras actividades linguísticas,emespecialaleitura.

Odesafioderealizarumprojectodeescritaconduziráoalunoaumamaiorpercepçãofaceàinformaçãocolhidanaleitura.Diríamosqueprocessosdeleituraedeescritasãoaimagemreflexaumdooutro,jáque“aprenderalerésercapazdeconstruirasregrasdeescrita”(…)e“aescritasuscitaaactividadedacriança,porqueesta possui uma estrutura cognitiva capaz de lhe dar significado”(RamiroMarques–1986,p.30).

Nesta fase os alunos terão já os instrumentos linguísticos necessários para elaborarem alguns textos. Apontamos alguns exem-plosquenosparecemdemaiorpossibilidadedeexecuçãoemaulade língua materna:

– Relato de experiências–Oalunonarraumaexperiênciaconcreta.

– Escrever sensações–Aquipede-seàscriançasque,deolhosfechados,escutemobarulhoqueasrodeia,escrevendoposteriormenteossonseosruídosqueescutaram.

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– Mímica–Oprofessorrealizaalgumaspantomimaseosalunos escrevem a sua interpretação.

– Trava-línguas–Comesteexercíciooalunoéestimuladoaproduzirfrasesnasquaistodasaspalavrascomecemcoma mesma letra.

– Escrita baseada em ilustrações –Acriançavaiescreveroconteúdodeumahistóriaquelheéapresentadaemdesenhoou ainda o diálogo de uma banda desenhada.

– Qualificar personagens–Combaseemalgoquetenhalidonabibliotecadaturmaoudaescola,oalunodescreveráuma personagem do último livro lido.

– Comunicação social –Estimularosalunosaescrevercar-tas,postaisilustrados,bilhetesetelegramas,fazendo-lhessentirautilizaçãodiferentedecadaumdaqueleselementoscomunicacionais.

– Utilização de audiovisuais –A criança tem hoje umagrande familiaridade com a rádio e a televisão. O professor deverásercapazdeaproveitarestaatitudedacriançafaceaosmedia,comofontedemotivaçãoparaescrever.

– Complemento de uma história –Conta-seumahistóriaaosalunosomitindooseufinalepede-se-lhes,posteriormente,queinventemoseudesfecho.

– Texto livre –Importaprivilegiaroqueascriançasqueremdizer,implicandoobviamente,umagrandedimensãoco-municativa.Àmedidaqueestasactividadesdeescritavãoacontecen-

do,emváriosmomentosdecadaperíodolectivo,acreditamosqueoprofessorestáafavoreceradisposição,porpartedosseusalunos,para a expressão escrita.

EstadinâmicaemauladeLínguaMaternalevaaqueosalunos experimentem a necessidade de aperfeiçoarem os seus textos de modo a corresponderem as suas intenções comunicativas em co-laboraçãoestreitacomoseuprofessor–aênfasedeverásercolocadanaquiloquesequerdizer,ajudandoassimaconstruirosignificadodo texto.

Acorrecçãodeveráserentendida,porpartedoaluno,comoumprocessoderevisãoedemelhoramentodotexto,ouseja,comoum processo integrante da composição escrita.

Maisdoquequerer corrigir toda a escrita, é importantequeoprofessortenhaumgrandeinteressepelaescritadecadaaluno,apoiando cada um deles no momento da sua produção. O professor nãodeve,quantoanós,terapreocupaçãodecorrigirtodosostextos,masantestrabalharmuitostextoscomosseusalunoseencontrar,com

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eles,circuitosdecomunicaçãoedestinatáriosquealimentemedêemsentidoàssuasproduções,sejammotivoemeioparaqueosalunosdescubramoprazerdecomunicaratravésdaescrita,seinteressempela escrita e compreendam as suas exigências (referimo-nos a leituras sistemáticasdostextosproduzidosnaturma,trocasdecorrespondênciaentreescolasouturmas,jornalescolar,jornaldeturma,livroselabora-dospelosprópriosalunos,etc.).Estesintercâmbiosconstituemfortesmotivaçõesparaqueosalunosqueiramescrever.Nãosãoapenasostextosdosgrandesautoresqueproporcionamagradáveismomentosdeleitura,osseusprópriostextospoderãoser,muitasvezes,partilhadosnasaladeaulaeaíocuparemumespaçoaquetêmdireito.

Finalmenteaterceiraetapadaescritaé,eaindasegundoCondemarín(1987),aFase avançada onde se consolidam as “des-trezasadquiridas”nafaseanterior:

O processo de escrever, nesta etapa, estimula as artes da linguagem com vários propósitos: os estudantes lêem e relêem para si mesmos e para o grupo seus ensaios de escrita, a fim de assegurar sua clareza, lêem para adquirir informação adicio-nal; descobrir ou aperfeiçoar seu estilo; captar procedimentos; organizar a informação de forma coerente … (p. 208).

Nestaperspectiva,quandooalunoescreve regularmentesobre tópicospor siescolhidos,é forçadoàconsultade fontesdeinformaçãoquerorais,querescritas.

Este modelo de escrita é já uma importante e válida alter-nativaparaoestudodequalqueraluno,nãoapenasparaestudarosconteúdos,mastambémcomomeiodeasseguraregarantirainfor-mação recolhida.

Tambémaquierelativamenteaestafasedaescritaaponta-mosalgumasestratégiasexequíveisnasaladeaula:

–A composição –Oalunoaquemépedidoquefaçaumacomposição vai certamente estruturar as palavras de acordo com um planoorganizado,pretendendoelaborarumamensagemcompreensívele gramaticalmente correcta.

Paraarealizaçãodestatarefaoalunodeveráconhecerasformasmaiscomunsdeescrita,nomeadamenteaargumentação,adescrição,adissertaçãoeanarração.

–Memórias –Aescritadememóriasdopassadoéumainteressantemodalidadedecomposição,jáqueoalunoassumenelaopapelprincipal,éoseueuquesurgeesãoassuasexperiênciasquesão validadas.

–Ficção –Quandofalamosem“escritacriativa”pensamos,obviamente, numa componente imaginativa muito poderosa nas

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crianças.Então,exercíciosdecomposiçãoescritacomumagrandepossibilidade de invenção ou criação vão certamente agradar-lhes.

Dequalquerformaparece-nosqueestaactividadedeescritadevesempreserprecedidadeumcontextoestimulante,nomeadamen-te a leitura de uma obra literária motivadora para o nível etário dos alunoscomquemtrabalhamosoumesmoumaactividadedramática.Escreverapartirdefotografiasououtrasimagens,recriaracenadeumlivrooudeumfilmedequetenhamgostado,sãotambémactividadespossíveisparalançarosalunosnomundomaravilhosodaficção.

–Relatórios –Aelaboraçãodestesrelatórios,numcampoda produção escrita é uma oportunidade excelente para os alunos situaremasuaprópriainformação,paraesquematizareparasinte-tizar.Nestaactividadesurgemnaturalmenteastécnicasderesumo,paráfraseereproduçãoquesãoigualmenteimportantesnaproduçãoescritadosnossosalunos.(Tambémaquisãoimportantesasreferên-ciasbibliográficasqueoalunodeveráaprenderacolocarnofimdoseurelatório).

ComoconclusãodiremosqueapráticadaescritanaescolaenomeadamentenaauladeLínguaMaterna,comorefereFernandaFonseca(1992)nãopodeser“assistemática,ocasionalenãoprogra-mada”,jáque“oensino-aprendizagemdeumaactividadealtamentecodificadacomoéaescritaéumpercursolongoedifícilqueexigeumplaneamentoespecíficoeumtreino intencional,progressivoefaseado”.(p.226).

Aaprendizagemdaescritanãosefazdeumdiaparaoou-troenãoéumaactividadeespontânea,masantesavalorização“dotrabalho,doesforçoedapersistência”(F.I.Fonseca–1992,p.247),porque,comojáreferimos,sóseaprendeaescrever,escrevendoeéàescolaquecabeopapelfundamentalnodesenvolvimentodestacompetência nos seus alunos.

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Linguística,gramáticatradicional e ensino

das línguasAlexandra Soares Rodrigues

A escolha do tema para esta conferência não foi fácil. Em princípio,tinha-sepensado,nodepartamento,queesteciclodecon-ferênciasdeviamostraráreasdeinvestigaçãodaquelequeaprofe-riria.Nomeucaso,logomeviaapresentaraodigníssimopúblicoocomportamentogenolexicaldosverbosnominalizadores,ahipóteseda conversão do radical verbal em radical nominal na formação dos postverbaiseo,necessariamenterelacionado,derrubedatradicionalderivaçãoregressiva,oscritériosprosódicos,morfemático-morfoló-gicosesintáctico-temáticosquepermitemdistinguirumsubstantivoderivadodeumverbosemaadjunçãodeumsufixodeumsubstantivoderivantedeumverbotambémnão-afixado.Tudoquestõesanalisa-dasnatesedemestradoe,porisso,inseridasnoâmbitodaminhainvestigação.

Depois,emergiuaindaaideiadepartilharcomopúblicoas minhas opções relativas ao theoretical framework,comosóihojepomposamentedizer-se,pondoemconfrontoquasebélicoumprogra-magenerativoortodoxodeChomskycomaarquitecturaparaleladeJackendoff,ouaindaapresentarostatus quaestionis,comotambémpomposamentesesóidizer,masdestavezcomumpiscardeolhoaopassado,doestudodosdeverbais.

Pensei ainda em temas mais genéricos: uma brevíssima his-

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tóriadosestudosacercadalinguagem,começandocomagramáticamaisantigaquechegouaténós–agramáticadesânscritodePanini,doséc.IVa.C.-atéaoséculoXIX,emqueabuscadaverdadeiralingua materfoifinalmentematizadapelorigordaanáliseedacom-paração entre línguas.

Colocou-se-meaindaahipótesede,tambémnumatentativahistoricista,mostrarahistóriadafonéticaedafonologia,distinçãosempretãomalentendida.Mostraria,nestecaso,aimportânciadeumateorizaçãosólidaparaadistinçãoentreduasunidades-ofonemaeofone–conseguidapelostrabalhosdeJakobsoneTrubetzkoy,daEscoladePraga,nadécadade20doséculoXXeexemplificandoasua mistura com excertos da Grammática da lingoagem portuguesa de Fernão de Oliveira de �536.

Podem,noentanto,ficardescansados.Todosesteshipo-téticos temas me pareceram hard core,quando,seguindoumvelhoprincípioexplicitadopelapragmática,masimplicitamentepresentenacompetênciadiscursivadosfalantes–odanecessidadedeadequaçãodiscursivaaointerlocutor–sentiumdesfasamentoentreaexcessivaespecificidadeetecnicidadedetodosestesassuntoseomeupúblico.Quero,antesdeprosseguir,fazerumparêntesisedeixarbemclaroquenãoestouasubestimaropúblico,nãováalguémpôr-seafazerexercíciosdesobreinterpretaçãoedizerqueeudisseoquenãodisse,comotambémapragmática,destavezemparceriacomasemiótica,prevêqueocorraordinariamente.

Certamentequeestãoapensarqueaintroduçãojávailonga,quenuncamaissedáodeslizeparaotemadaconferênciaequepodiaterditoemdoissegundosquenãoiafalardelinguísticapuraedura,masdeoutrotemamaismacio(comoagoramesmo).Masestaintro-duçãoafinalnãooé,ounãooéapenas.Comoamaniadaanálisequeconfessoterinvadetambémafeituradediscursos,desmontoomeuprópriotexto,paraexplicitarquetodasestasconsideraçõespream-bularesafinalservemoobjectivode,implicitamente,deixarentrever,muitomuitosorrateiramente,algunstemasdeinvestigação(algunsmeus)noâmbitodaLinguística,masqueaquinãovouapresentar.Éumpoucocomoquandosedizquesetemumsegredosobrexey,relacionadocomk,masquenãoseirárevelar.

Asquestõesqueaquitratareinumprimeiromomentonãosãoquestõesdelinguística,nosentidodenãofocaremobjectosinternosàlinguística.Sãoantesreflexõesàsuavolta.Numsegundomomento,dedicadoàanálisedealgumasestruturasdalíngua,procurareiretirartodoopesodeformalizaçãodestaciência,demodoasimplificarademonstração dessas estruturas.

Otemadequemeocuparei–linguística,gramáticatradi-cionaleensinodaslínguas-podeatéteroefeitocontrárioàquele

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contraoqualeusempreluto,muitasvezesatémezango:odenãoseconfundir a linguística com o ensino das línguas. O ensino das línguas é apenas umadas inúmeras aplicaçõesque a linguística pode ter.Ensinarlínguasnãoéfazerlinguística,assimcomoumprofessordelínguasnãoéumlinguista.Alinguísticatemoutrasaplicações,loca-lizadasemcamposque,tradicionalmente,nãoestãotãorelacionadoscomaslínguas.Algumasdessasaplicaçõeslocalizam-senoâmbitodas engenharias e da medicina. Assim como um professor de línguas nãoéumlinguista,tambémumengenheiroquetrabalheemsíntesedevozouumterapeutadafalaquelidecomdoentesafásicosnãosãolinguistas.Mas,apesardenãoseremlinguistas,assuasáreasdetrabalho obrigam-nos a ter conhecimentos acerca do funcionamento das línguas e da faculdade da linguagem.

Perante os inúmerosmal-entendidos e confusões que aspessoasdemonstramrelativamenteàLinguística,pensoqueéestaumaboaoportunidadeparateceralgunsesclarecimentosquesempredesejeifazeràcomunidadeescolar.Tentarei,pois,desfazeralgunsequívocosacercadalinguística,mostrandoqueestaciêncianãoensinaafalarlínguas,emboraosresultadosobtidosnaanálisedestaspossamseraplicadosaoensinodelínguas.Nãodevemos,noentanto,esquecerquedasinúmerasaplicaçõesquealinguísticapodeterháapossibilidadedenãohaveraplicaçãonenhuma.Refiro-meaofazer-selinguísticapeloprazerúnicodeestudar,deaprender,desatisfazercuriosidade.Essaédasmaioresaplicaçõesquequalquerciênciapodeter.

Vamosentãoaosequívocos:Évulgarpensar-seque“linguística”éumnomemodernopara

“gramáticatradicional”e,que,consequentemente,fazerlinguísticaouaté aplicar a linguística ao ensino das línguas é pôr nomenclatura nova –adalinguística–nolugardanomenclaturavelha–adagramáticatradicional. Um dos exemplos mais marcantes desta experiência es-téril,porqueocaesuperficial,éodaplantaçãoexaustivadeárvoresnolugardeanálisessintácticaslineares.Muitosterãonamemóriaaépoca,recordadaagoraquasesempredemodoanedótico,emque,nosbancosdoentãochamadociclopreparatório,ossujeitospassa-ramasersintagmasnominais,oscomplementosdirectossintagmasnominais2eemqueoscadernosdelinhasnãoeramadequadosàdelineação de ramos de árvores cujo tronco comum era a frase e de cujas extremidades não resultaram apetecíveis frutos. Espero queestejamanotarqueeunãoestoucontraalinguísticaqueusaessetipodeformalizaçõesparaexplicitarasestruturasdalíngua.Essetipodeformalizações,emlinguística,nãodecorredeumasuperficiallavagemdefachada,masdenecessidadesedeimplicaçõesprovenientesdopróprioquadroteórico.Estoucontraossenhoresquefazemosmanu-aisescolares,osdidacticistas,osprofessores,independentementedo

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níveldeensino,que,pegandoapenasnasuperficialidadedagramáticagenerativa,ouseja,naaparênciadosseusformalismos,acharamquerenovaroensinodagramáticapassavaporrefazeramaquilhagem,sementenderemqueesquemasemárvoreimplicamquestõesde,porexemplo,inserçãolexicaledeprojecçõesdenúcleos,questõesque,obviamente,nãointeressamaosmeninospequeninos.

A culpa destes equívocos não é dos linguistas,mas dosqueaplicamconhecimentosavançadospelaciênciaaoensino.Umlinguistaanalisalínguaelinguagem;nãotemdesepreocuparcomos potenciais campos de aplicação dos resultados que obtém.Deoutra forma, um linguista teria de ser especialista em engenhariainformática,engenhariaelectrónica,neurologia,psicologia,otorri-nolaringologia,antropologia,arqueologia,ensinodalínguamaterna,ensinodalínguaestrangeira,etc.,etc.Istojáparanãofalardetodasasáreasdeespecializaçãodapróprialinguísticaqueopobreescravodo conhecimento teria de dominar.

Cortadasasárvores,actualmenteassiste-seaocultivodeoutraespécienãoautóctonedoensinodaslínguas.Refiro-meàprag-máticalinguística.Talcomoaconteceuparaasintaxe,alguémdecidiuaplicarasnovascorrentesdalinguísticaaoensinodaslínguas,maisumavezpegandonasuperfíciedosdadosdapragmática,descontex-tualizando-osdetodoosuporteteóricoeadvogandoumensinodoportuguêsquedeensinodelínguanãotemnadaeque,progressiva-mente,ovaidesnudandotambémdaliteratura.Tudoisto,dizem,àluzdoquealgunspensamqueéalinguística,completamentedistorcidadosseusmétodos,dosseusobjectivos,dosseusresultados.Porissonãoestranhoquealgunscolegasdeliteratura(nãoestou,obviamenteafalardosmeuscolegasdaESEB,masaindahápoucotempoforampublicados no Público artigos redigidos por professores de Literatura nestesentido)se insurjamcontraa linguística,quandoaquiloqueconhecemda linguística é uma pseudo-linguística, de abordagempseudo-pragmática,aumpseudo-ensinodopseudo-pretensousodopseudo?(perguntoagoraeu)português.

Quandosepreconizaanecessidadedeestudarousodalín-gua,porqueparecequeéumacoisaqueestáemmodanessataláreaestranhaqueéalinguística,enãoapenasoseusistema,distorcem-seos pressupostos avançados pela pragmática e sugerem-se como textos deusotextosusadosnodia-a-dia.Éassimqueassistimosàinclusãonos manuais de português de textos de cujo paradigma o regulamen-todeumrealityshowéoexemplomáximo.ComoseOs Lusíadas nãofosseumtextocomfuncionalidadesestéticas,obviamente,masenformadas por circunscrições de produção e recepção do mesmo. Aliás,umaperspectivaçãodeordempragmaticista,aindaquenãonecessariamente linguística,de,porexemplo,O auto das Barcas,designaçãooriginaldaquiloqueficouconhecidoparaaposteriori-

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dade como Auto da Barca do Inferno,evitariaajátradicionalíssimaabordagemdacríticasocialemsimesmaeporsimesma,assimàmaneiradarevistaàportuguesa,quesefazdaobraefacilitariaacompreensãodequeasituaçãodeenunciaçãoconstrangeodiscurso.Assim,terematençãoqueO auto das Barcasfoirepresentado,pelaprimeiravez,nacâmaradarainhaDonaMaria,estandoestamori-bunda,equeseencontrainseridonaCompilaçom de todalas obras nolivrodasobrasdedevoção(enãonascomédiasnemnasfarsas)fazdeimediatocompreenderqueoquehojefazrirnaalturafaziameditar,queasformascaricaturizadasnãosãotipossociais,mastiposdepecado,àmaneiradeBosch.Pelocontrário,oaproveitamentoqueoensinodaslínguasfazdapragmáticaéumpretextopara,pordetrásdascostaslargasdalinguística,despojaradisciplinadeportuguêsquerdaliteratura,querdaculturaquermesmo,pasme-se,daprópriaarquitecturagramatical.

Porissonãoestranhoqueoscolegasdeliteraturaadvoguemoregressoàgramáticatradicional,pelomenosmaisinócua,porque,perante estas confusões criminosas, até um verdadeiro linguista,ousobretudoumverdadeirolinguista,sentenecessidadedereporadignidadedalinguística.Jánãoentendo,noentanto,asatitudesqueconsideram que nas aulas de Português servir-se deOs Lusíadas parafazeranálisesintáctica,especificamenteanalisarorações,éumverdadeiropecado.DizerquedividirasoraçõesdeOs Lusíadas é estaradissecarfriamenteumaobraliteráriae,consequentemente,éestaradestruirafruiçãoestéticadamesmaresultadeconfusõesquegostariadeaquifocar.Emprimeirolugar,nãovejoporquerazãodividiroraçõesnãopodeserumprazer.Sehámeninosquegostammuitodefazercontas,porquerazãonãohá-desernaturalquehajaoutrosmeninosquegostemdedividirorações?Dividirorações,paraalémdepossibilitaracompreensãodasestruturassintácticasdalíngua,ajudaadesenvolvercapacidadesrelacionadascomalógica,assimcomoamatemática.Paraalémdedarprazer,éclaro.

Seseensinacomoseprocessaaprecipitação,ofunciona-mentodosvulcões,ofuncionamentodoaparelhorespiratório,porquenãosehá-deensinaro funcionamentoda língua,queusamosnaturalmentecomoarespiração?Nãosepodeéconfundiroestudode Os Lusíadascomoobjectoestético,comoobraliterário-culturalcom o estudo da matéria-prima de Os Lusíadas–alíngua.Dividirorações em Os Lusíadas não é dar Os Lusíadas;édargramática.Écomo estudar física das cores pegando em O Jardim das Delícias de Bosch.Nãohádestruiçãodoquadroporisso.Temédeseternoçãodequeesseestudonãoéumestudodofamosotrípticoenquantoobjectoestético,masenquantoartefactomaterial.Équeaatitude,vinculadaàdefesadaliteratura,queprocuraexcluiroensinodagramáticadomesmoespaçoemqueseensinaliteraturaconduzàanulaçãoquerde

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umaquerdeoutra.SeestamosaestudarOs Lusíadasenquantoobraliteráriaeseénecessáriofazerumdesvioparaestudargramática,nãoéprecisoabandonaressetextoeirbuscarumdocumentodonotário,anotíciadeumjornal,asinstruçõesdamáquinafotográfica,ocódigocivilouareceitadepão-de-ló.SeOs Lusíadas tem como matéria-prima alíngua,entãotemsintaxe,ascondiçõesdasuaproduçãoedasuarecepçãotêmpragmáticaquepodemseranalisadas.Excluiraanáliselinguísticadasobrasliterárias,paranãoasdissecarcruamente,podeconduziràverdadeiraaniquilaçãodaobraliteráriadosprogramasdePortuguêsque,hoje,comaintromissãomaníacadaideiadousodalíngua,tambémexcluemoestudodaarquitecturadalíngua.

Outro equívoco relativamente à linguística tem que vercomaquestãodofalarbomportuguês.Esteequívocodesdobra-seemdois:oprimeirotemquevercomaideiadequeolinguistaéumbomfalantedasualíngua,nosentidodeusarotalbomportuguêseatédesaberdizerfrasesbonitas.Umlinguistapodeser,defacto,bomfalante,masparaseserbomfalantenãoéprecisoser-selinguista,nemé preciso ter estudado línguas. Para usar uma construção sintáctica queirriteospuristasquepossamestarnopúblico,nãoé supostoqueNewton,quandoformuloualeidagravidade,tivesseaprendidoacairmaisdepressaoumelhor.Ou,parairritaraindamaisospuristas,nãoé supostoqueumcardiologistatenhaumcoraçãosaudável.Écertoqueareflexãoacercadasestruturasdalínguapodelevaràescolhadeliberadadeusodedeterminadasformas,masestenãoéoobjectivoda linguística.

O segundo desdobramento deste equívoco relaciona-secomaideiadequeumlinguistatemumaatitudenormativaperantealíngua.Esteequívocoétalvezprodutodaideiadecontinuidadeentregramáticatradicionalelinguística.Naverdade,nãohácontinuidadeentreasduas.Paraalinguística,queumfalantedigahadem ou hão-deéperfeitamente indiferente.Agramática tradicionaldesprezaofalantequedizhademecolocanumpedestalofalantequedizhão-de.Alinguísticacolocaosdoissobamesmalentedemicroscópioeanalisaosdois,semjuízosdevalor.UmoceanógrafoanalisadamesmaformaobjectivaaáguadoMarMortoeaáguadoMarMediterrâ-neo.Asalinidadedoprimeiroéantagónicadapossibilidadedevida.Contudo,essefactornãopodelevarooceanógrafoaterumjuízodevalornegativorelativamenteaoMarMorto.Ascaracterísticasdeumedeoutromarsãodiferentese,consequentemente,asutilizaçõesdassuaságuastambémsãodiferentes.Mas,seambosexistem,nãopodemsernegados.Relativamenteahadem e hão-de,opapeldalinguísticanãoconsisteemproibirousodoprimeiro,massimemexplicarasuaocorrência,ouseja,mostrarquesetratadaincorporaçãodeumapreposiçãonoradicalverbal,semelhanteàincorporaçãoàesquerda

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depreposiçõesgramaticalizadasemprefixoscomoasqueresultamna estrutura de verbos como esfoliar ou adoçar.1

Funçãodiferentetemumprofessordeportuguêsque,comoeducador,deverámostraraoalunoqueexistemformasmaispresti-giantes do uso da língua e formas menos prestigiantes. Ao contrário do linguista,oprofessordeportuguêsdeveráterumaatitudeprescritivaemrelaçãoàlíngua.Contudo,aatitudenãodeveráserdetentativade total aniquilação das formas menos prestigiantes usadas peloaluno,masdedemonstraçãodequehásituaçõesdeenunciaçãoemquenãohámalnenhumnousodessasformaseháoutrassituaçõesemqueoindivíduo,sequiserfazerboafigura,deveráusarasformassocialmenteconsideradasmaisprestigiantes.Damesmamaneira,éobrigaçãodeumeducador,sejaprofessordeportuguêsoudefísica,oumesmonãosendoprofessor,alertaroeducandoparaousopoucoadequadode fato-de-banhona sala de aula ou de uma toilette denoitesofisticadíssimanamesmasaladeaulaounapraia.Avisãodalinguísticaestáacimadessesconsiderandosquevariamcomoscri-tériossócio-culturaisdecadaépoca.Nãoédifícilperceberqueasaiaacimadotornozelonãoé,jáháalgumasdécadas,oalvodeanátemasquehaviasidoanteriormente.Omesmoacontececomalíngua.Nasua Orthographia da lingoa portuguesade1576,DuarteNunesdeLeão inclui uma lista de palavras erradas com as formas emendadas quedesignapor“Reformaçãodealg~uaspalavrasqueagentevulgarusa&escrevemal”.Dessalista,paraalémdeinúmerosexemplosdemonstrativosdavolatilidadedanorma,constaaformaerradajo-elhosqueoautoremendaparagiolhos.Alinguística,comociência,nãopodeater-seaconstrangimentosprescritivos,masoprofessordeportuguês,quenãoéumlinguista,deveensinaraoalunoostiposdeusodalínguasocialmentetidoscomoprestigiantes,atéporque,sobopontodevistadofalante,alínguasóexistesincronicamente,tendoemconta,todavia,queessestiposestãodependentesdeconvençõesextralinguísticas.

Masopapeldoprofessordeportuguêsnãoconsisteapenasem mostrar ao aluno as formas mais prestigiantes de uso da língua. Para alémdeoutrosrelacionadoscomoensinodaliteratura,queaquinãovamosfocar,cabeaoprofessordeportuguêslevaroalunoareflectirsobreasestruturasdalíngua,ouseja,aadquirirumconhecimentoexplícitodasregrasque,implicitamente,qualquerfalanteteminterio-rizadas.Éaquiqueoprofessordeportuguêsnãopodeprescindirdalinguística.Repare-sequecabeaqualquerprofessor,sejadefísica,dematemática,debiologia,deportuguês,mostraraoalunoasvariantesprestigiantesdalíngua.Comofalantedeportuguês,qualquerindiví-duoinseridonumgruposócio-culturalmenteprestigiadopossuiumconhecimentoimplícitodessasformas.Oquedistingueoprofessordeportuguêséque,paraalémdezeladordessasformasprestigiantes,

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édetentordeumconhecimentodasestruturasdalíngua,coisaquenãoestáprevistanoprofessordefísica,porexemplo.Oprofessordeportuguês,aocontráriodoquemuitasvezessepensa,nãodeveserencaradocomooindivíduoquedizumasfrasesbonitas,quediscursacomelegância,quedizsempresubiu e nunca subiu para cima,quedizsempre esta vela é bela e nunca esta bela é bela,quepededióspiros no mercado e nunca diospiros,quereferequeviuumzângão numa rosa e não um zangão numa rosa,quecolhetúlipas e nunca tulipas,quereservaavôs e nunca avós para avô e avó. Está ao alcance de qualquerfalantedizerfrasesbonitas,discursarcomelegância,dizeresta vela é bela,comprardióspiros,verzângãos e colher túlipas e ainda distinguir os avós,ouseja,‘osantepassados’,dosavôs,ouseja,‘oavôeaavó’;estáaoalcancedoprofessordeportuguêscompreendero funcionamento da língua. E para isso há a linguística.

Nãoserásuficienteconheceragramáticatradicional?Que-rodeixarbemclaroqueadvogooensinodagramáticatradicionaldesdequesejadefactoensinodagramática,ouseja,nãoapenasdamorfologiaedasintaxe,masdetodaaarquitecturadalíngua.Nuncadissequeoquesedeveensinaraosmeninosdosensinosbásicoesecundárioélinguística,nosentidodequadrosteóricoscomplexos,com formalismos complexos. Aposto na gramática tradicional mas nãoantiquada,ouseja,muitasvezestemdesepôrdeladoalgumatradiçãogramatical.Énecessárioperceberqueamaioriadasdescriçõesdagramáticatradicionalédecaráctersuperficial,baseadaapenasnaaparênciadasformase,muitasvezes,presaaumatradiçãodeséculosadequadaàdescriçãodeestadospretéritosda línguaoudeoutraslínguas,masjánãocomrelaçãodirectacomestadosmaisrecentesdoportuguês.Exemplosdistoserãoapresentadosmaisadiante.Mas,paraqueoprofessordeportuguêspossaensinaressagramática,temdeconhecerofuncionamentodalínguaàluzdeteoriascientíficasedeanálisesatentas,temdeconhecerosdefeitosdessamesmagramática.Eissofaz-seatravésdeanáliseslinguísticas.

Oquequeromostraragorasãoalgunsexemplosdeestruturasdalínguaqueagramáticatradicionalnãodescrevecabalmente,masquealinguísticaexplica.Osexemplosmostram,nãooqueéparaensinaraosmeninos,masotipodeanálisequeoprofessordeportu-guêsdeverásaberfazerparaqueconsigasair-sebememsituaçõesqueosmeninosmaisperspicazes,curiososenãosatisfeitoscomostatus quo doquelhesdizemteimamemnãocompreender.Omodocomooprofessorfazoaproveitamentodesseconhecimentoépapeldametodologiaenãodalinguísticae,porisso,daquilavoasminhasmãos.

Depoisdevermosquelinguísticanãoégramáticatradicionalnemensinodaslínguas,algunsalunosterãojáperguntado:-entãopor

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quehavemosdetercadeirasdelinguísticanoscursosdeprofessores?A resposta vem com os exemplos.

Exemplosdeemqueéquea linguísticaépreciosíssimoauxílio do professor de português:

MorfologiaVamos imaginar que o professor pede aosmeninos que

façamumacomposiçãosobreasférias.HáumalunoquefoivisitaraSédeBragae,porcoincidência,andavaumasenhoracomumpaumuito comprido atado a outro pau com um pano na ponta a tirar as teiasdearanhadossítiosmaisaltos.Oobjectoétãoestranhoquenãoépossívelchamar-lheespanadordopóoualgoassim.Masomiúdoficacomaquilonacabeçaeresolveintroduziresseepisódionacom-posição.Comonãosabequenometemoobjecto,mascomosabeasua função escreve uma frase como Para tirar as teias de aranha da catedral, andam com um dasaranhador.

Seoprofessorfordaquelesqueacreditaquealínguaéumelencodepalavrascristalizado,dadoporumaespéciedeDeusquepôstudooquesepodedizernumdicionário(restasaberqueeditoraéqueDeusteráescolhido,vistoosdicionáriosnãoseremtodosiguais),aocorrigirotextovaiaodicionário,nãoencontraapalavradesara-nhador,fazumgranderiscovermelhonapalavraenaaulaseguinteacusaomeninodeestaramataralíngua,essetesourotãopreciosoquetemdesepreservar.Masseoprofessorsouberqueoléxicoestáemconstanteconstruçãoatravésderegrasinternasàlíngua,seconheceressasregraseasoperaçõesgenolexicaisdoportuguês,vaipediraomeninoquelheexpliquemelhorquecoisaéessadodesaranhador e felicitar o menino pela prática da criatividade lexical.

Então,oprofessordeveaceitar todasaspalavrinhasqueosmeninosinventarem?Não.Deveaceitarasqueestãoconstruídasdeacordocomasestruturasgenolexicaisdoportuguês,deverejeitarasquenãoestão.Porexemplo:desaranhadorédeaceitar,porquesejuntouosufixo-doraumtemaverbalparaformarumagentivo,como aspirador,avaliador,contador.

Já uma forma como *escureceção não é de aceitar. Não porquepareçamal,oqueestáaquiemcausanãoéaformasocial-menteprestigianteounãoprestigiante.Oqueestáemcausaéanãoconformidade de *escureceçãocomosparâmetrosdeformaçãodesubstantivos de acção do português. A partir de verbos em -ecer o substantivo é construído com -mento (escurecimento,amarelecimen-to,envelhecimento)ou -ncia (ensurdecência,entumecência).Seomenino disser algo como Ao domingo há uma marcelização do país,tambémnãohánenhumproblema,porqueverbosem-izar geram deverbais em -ção.

Reparemqueparaqueoprofessorpossafiltrarestasfor-

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masdepoucoounadalheservesaberquehápalavrasderivadasecompostasemaisnada.Issoforneceasuperfíciedaspalavras,nãofornecenenhumainformaçãoacercadasuainterioridade.Masrepa-remtambémqueeunãoestouadizerqueoprofessordeportuguêstemdesaberquealinguísticaactualmenteencaraoléxicocomoumainterface de vários componentes.

Sintaxe/semânticaTrata-sedeumadasáreasemquemaisfacilmentesevê

queatradiçãogramaticalconduzaenganoseincoerências.Umdosexemplos mais alarmantes dessas incoerências é o da noção de sujeito sintáctico.

Semprequeperguntoaosalunosqualéosujeitodeumafraserespondemsemprequeé‘oquefazaacção’.Quandoperguntoque critérios usampara encontrar o sujeito, respondemque bastaperguntaraoverbo“quem?”

Resolvoentãoconfrontá-loscomfrasesdotipo:(1) O João comeu a maçã.(2) A maçã foi comida pelo João.Relativamenteàsfrases(1)e(2),atarefadeidentificaçãodo

sujeitoresultanormalmentecorrecta.Contudo,quandolhesperguntocomoépossívelqueem(2)a maçãsejaosujeito,semetinhamditoqueosujeitoéoquepraticaaacçãoenestafraseéoJoãoquecontinuaapraticaraacção,ficambaralhadosenãorespondem.

Amesma reacção surge quando os confronto com umafrase do tipo

(3) A flor secou. emquea flor é sujeito mas não pratica acção nenhuma.

O problema está na confusão entre funções sintácticas,quesãomerasfunçõesformais,epapéistemáticos,ouseja,papéissemânticosdoselementosnafrase.Agramáticatradicionalnãopre-vêessaseparação.NãoseadmiremsedisseremaosmeninosqueosujeitoéoelementodafrasequepraticaaacçãoqueosmeninoslhesrespondamqueemA maçã foi comida pelo João o João é o sujeito. Têmrazão,porqueoJoãopraticaaacçãoquernafraseactivaquerna frase passiva.

Entãoqualéasolução?Asoluçãoestánacompreensãodequeosujeitonãoéoquepraticaaacção,masoquecontrolaaregênciaverbal,comoévisívelnosexemplos(4),(5),(6)e(7):

(4) O João comeu a maçã.(5) O João e a Maria comeram a maçã. (6) A maçã foi comida pelo João. (7) As maçãs foram comidas pelo João.

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Nãosepode,pois,confundirsujeitocomagente,queéumacategoriasemântica.

Todavia,senestasfraseséfácilverqualéosujeito,mesmoseseguirmosaaplicaçãodecritérioserrados,noutrasfrasesatarefanão é tão simples se teimarmos nos critérios tradicionais. Observemos asfrases(8)e(9):

(8) Aconteceu uma coisa maravilhosa.(9) Houve uma coisa maravilhosa.

Vamos aplicar agora os critérios propostos pelos alunos:Primeirocritério:perguntaraoverbo“quem?”:Eoqueseseguesãoimensospontosdeinterrogação,por-

quenãoseconcluinada,sobretudodevidoàagramaticalidadedasfrases(10)e(11):

(10) *Quem aconteceu?(11) *Quem houve?Da mesma forma, não funciona a aplicação do critério

de‘quemfazaacção’.Queacçãoéqueháem aconteceu e houve?Nenhuma.

Aquiháunstemposouviumapessoadizerqueuma coisa maravilhosapodiasersujeito,porquepodemosdizeruma coisa ma-ravilhosa aconteceue,emsimultâneo,complementodirecto,porquepodemosdizeraconteceu uma coisa maravilhosa.Ora,umelementona mesma frase não pode ter duas funções distintas.

Apliquemosagoraoscritériosfornecidospelalinguística:Bastaaplicaroscritériosdapronominalizaçãoedocontrolo

daconcordânciaverbalàsduasfrases.Oqueaconteceaoverbosedissermos duas coisas maravilhosas emvezdeuma coisa maravi-lhosa?

Overboapresenta-senoplural,comomostradonafrase(12).

(12) Aconteceram duas coisas maravilhosas. Afinal,comoverboacontecer o elemento uma coisa ma-

ravilhosa é sujeito.Passemosagoraàfrase(11):Aplicandoocritériodaconcordânciaverbal,observamos

queresultaagramaticalacolocaçãodoverbohavernoplural,numatentativadeconcordânciacomoelementoduas coisas maravilhosas,conformevisívelem(13).

(13) *Houveram duas coisas maravilhosas.

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Havendo pluralização desse sintagma nominal, o verbomantém-senosingular,comoseobservaem(14).

(14) Houve duas coisas maravilhosas.

Daaplicaçãodocritériodaconcordânciaverbalconclui-seque,nocasodafrase(9),uma coisa maravilhosanãoésujeito,masobjecto directo. Não sendo o único critério para a determinação do sujeito,aconcordânciaverbalmostra-se,noentanto,decisivaparaestatarefa.Nãoobservaremosaquiosrestantescritériosque,talcomoaquelequeaquievidenciámos,poderãoencontraremqualquermanualbásico de linguística.

Outroexemploqueaquiutilizaremosparademonstraraim-portânciadecritériossólidoserigorososparaaobtençãoderesultadosfiáveistemquevercomoraçõesrelativas.Observemosafrase(15):

(15) Ganha um prémio o que se portar bem.A gramática tradicional divide as orações desta frase deste

modo: Ganha um prémio o / que se portar bem. De acordo com a gramáticatradicional,asegundaoraçãoéumaoraçãorelativa,porqueque é um pronome relativo.

Ora,seédefactoumpronomerelativo, temque terumantecedente.Qualé?

Agramáticatradicionalrespondequeéo,que,comobomantecedente,temdeestarnaoraçãoanterior.Eesseoéoquê?Esseo,seéantecedentedeumarelativaquenãotemautonomiasemânticanemsintáctica,temeleprópriodeteressaautonomia.Entãotemdeser um pronome. A comprová-lo está a possibilidade de trocarmos esse o por aquilo/aquele((15)e(16)).

(15) Ganha um prémio o que se portar bem.(16) Ganha um prémio, aquele que se portar bem.

Até este ponto tínhamos em acção a gramática tradicional. Agora entra a linguística:

Ea linguísticadiz:Cuidado, porqueaquele/aquilo pode funcionarautonomamenteenessecasoépronome(17),maspodenãoterautonomiaefuncionarcomodeterminante(18).

(17) Aquele é meu amigo. (18) Aquele rapaz é meu amigo. Observe-sequenãoépossívelnocontextode(17)comutar

aquele por o,masapenasnocontextode(18),conformeseobservaem(19)e(20),respectivamente.

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(19) *O é meu amigo. (20) O rapaz é meu amigo.

Temos,pois,deobservaratentamenteemquecircunstânciasfuncionam o como determinante e o como pronome. Pode dar-se o caso de nas frases Ganha um prémio o que se portar bem. > Ganha um prémio aquele que se portar bem. tanto aquele como o funcio-naremnãocomopronomes,mascomodeterminantes.Ouseja,podedar-seofelizacasode,afinal,aquelealunoquedizqueesteo é um artigoeaquemoprofessorralhaimensamenteterrazão.Atenção:não confundir com o -opronomeequeésemprepronomeemCon-siderou-o inteligente.

Se o tiverautonomia,senãotiverqueestaradeterminarnadaépronome;senãopuderocorrerautonomamente,entãoéartigo.

Um bom critério para resolver este problema é jogar com asrelativasexplicativaserestritivas.Éexplicativaafrase(21):

(21) O senhor, que vimos ontem, é professor. Em(21),oantecedentedorelativoéO senhor. Podemos

trocá-loporumpronome,comonafrase(22):(22) Aquele, que vimos ontem, é professor.

Se ofossepronome,entãopoderiaocorrernolugardeO senhor (23):

(23) *O, que vimos ontem, é professor. Noentanto,*O é professoréagramatical,porqueo, como

determinante,nãotemautonomiaparafuncionarsozinho.Este elemento já pode ocorrer gramaticalmente numa relativa

restritiva(24),naqualo está a determinar que vimos ontem.(24) O que vimos ontem é professor.

Exemplificamosaindacomaexplicativa(25)(25) Ele, que leu o livro, adorou.Em(25)opronomeele não pode ser comutado por o,visto

queonãotemautonomiaparafuncionarcomopronome,conformevisívelem(26).

(26) * O, que viu o filme, adorou.

Contudo, se se tratar deumaoração restritiva,o resulta gramatical(27),vistonestecontextosernecessárioumdeterminantedaoraçãorestritiva,enquantoacolocaçãodopronomeele resulta agramatical(28).

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(27) O que viu o filme adorou.(28) *Ele que leu o livro adorou.

Aúnicasituaçãoemqueo pode ocorrer numa explicativa é quandoaexplicativaédeFenãodeumsintagmadeF,comoocor-rentenafrase(29).

(29) O homem não conhecia a Nau Catrineta, o que me causou espanto.

Outro factor quemostra que este o da frase (15) não é pronometemquevercomainvariânciaquemostraemtermosdeflexão.Esteo sómostraflexãoigualàdoartigo.Claroqueistopodesercoincidênciaecomotaltudotemqueseravaliado.Masospro-nomes,sobretudoosquenãotêmautonomiaprosódica,osclíticos,apresentamaindavestígiosdoschamadoscasos,ouseja,variaçãonaformadeacordocomasfunçõessintácticasquecumpremnafra-se.Nafrase(30)encontramosumsujeito,umobjectodirectoeumobjecto indirecto. Os três elementos sintácticos são preenchidos por um singular masculino.

(30) O João deu o livro ao António.Secomutarmosostrêselementos,sujeito,objectodirectoe

objectoindirectopelopronomedeterceirapessoa,singularmasculino,obtêm-setrêsformasdiferentesdomesmopronome,deacordocomafunçãosintácticadecadaelementoasubstituir(31),(32)e(33).

(31) Ele deu o livro ao António.(32) O João deu-o ao António.(33) O João deu-lhe o livro.Ele,-o e -lhesãoasformasparaosujeito,oobjectodirecto

eoobjectoindirecto,respectivamente.Regressandoàfrase(15),queaquirepetimos,vamosver

qualocomportamentodeo,fazendovariarasfunçõessintácticas:(15) Ganha um prémio o que se portar bem.

Se o apresentarafunçãodesujeito,asuaformavaiseraqueseapresentaem(34).

(34) O que se portar bem ganha um prémio.Se o apresentarafunçãodeobjectodirecto,asuaformavai

seraqueseapresentaem(35).(35) Louvarei o que se portar bem.Se o apresentarafunçãodeobjectoindirecto,asuaforma

vaiseraqueseapresentaem(36).

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(36) Darei um prémio ao que se portar bem.Pelasfrases(34),(35)e(36),o apresenta comportamento

igual ao do artigo e não igual ao do pronome.Aindaassim,podesermeracoincidênciae,porisso,con-

tinuamos a experimentar. Em(37)(37) Darei um prémio ao que se portar bem. temos um objecto indirecto em ao que se portar bem. Se o

fossepronome,sóo seriaobjectoindirecto,porqueteriaautonomiapara funcionar como tal. Se oforartigo,nãotemautonomiaeoobjectoindirecto é todo o sintagma determinado por o.Comovemosisso?Bastaaplicarocritérioparaencontraroobjectoindirecto,ouseja,acolocação do pronome lhe,comoseobservaem(38)e(39).

(38) *Dar-lhe-ei um prémio que se portar bem. (39) Dar-lhe-ei um prémio. Dasduasfrasesanterioresconclui-sequelhe substitui não

sóo,mastodaaoraçãorelativa.Se ofossepronome,seriaumclíticoverdadeiro,ouseja,

seguiriaadeslocaçãoparaaesquerdaouparaadireitadoverbocon-formeaconstruçãoemcausa(40),(41)e(42):

(40) Ele leu o livro porque estava traduzido. (41) Ele leu-o porque estava traduzido. (42) Ele só o leu porque estava traduzido.Comoé artigo, éumclítico simples, enãoobedece aos

mesmosparâmetros(43),(44)e(45):(43) Ele leu o que estava traduzido. (44) Ele só leu o que estava traduzido. (45) * Ele só o leu que estava traduzido.Comoésabido,osclíticosespeciais-ospronomes-não

têmposiçãofixaemrelaçãoaohospedeiro.Nessesentido,podemsurgir em

-próclise:Disse que os comprou.-mesóclise:Comprá-los-á. - ênclise: Compra-os.

Osclíticossimples-osartigos-têmposiçãofixaemrelaçãoaos hospedeiros:

Disse que o que comprou é segredo.O que comprar é segredo.O que compra é segredo.

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De acordo com estes critérios, conseguimos estabelecercomsegurançaqueoo da frase(15)éumartigoenãoumpronome.Para levar ainda mais longe este jogo de argumentos e contra-ar-gumentos,lançamosagoraumcontra-argumentoquederrubeestesresultados: se onafrase(15)éartigo,entãohá-desercomutávelporartigoindefinido.

Contudo,acomutaçãooperadaentre(46)e(47)apontaaagramaticalidade dessa operação.

(46) O que compra é segredo. (47) *Um que compra é segredo.Estecontra-argumento,noentanto,nãoderrubaaconstatação

dequeooquetemosvindoaanalisaréartigoenãopronome,vistoexistiremmuitasconstruçõesemqueoartigodefinidonãoécomutávelpeloindefinido,conformeobservávelem(48),(49),(50)e(51).

(48) Todos os dias recebo cartas. (49) * Todos uns dias recebo cartas.(50) Ambas as cartas são fantásticas. (51) *Ambas umas cartas são fantásticas.

Aaplicaçãodestescritériosàanálisedafrase(15) Ganha um prémio o que se portar bemmostra,paraalémdofuncionamentodepronomesedeartigos,queagramáticatradicionalestáerradaempelosmenosdoisaspectosdestafrase.Emprimeirolugar,o não é pronome,masartigoquedeterminaque se portar bem;emsegundolugar,aprópriadivisãodasoraçõesestá,consequentemente,errada.Oo,comodeterminante,fazpartedasegundaoraçãoenãodaprimeira,como estipulado pela gramática tradicional.

Concluindo,oqueestesexemplosindicaméque,seestãoao dispor do professor de português dados acerca do funcionamento dalínguaconseguidosdeformametódica,rigorosa,quedestronamosdadosprovenientesdeabordagenssuperficiaisdalíngua,háquepegarnosprimeiros.Comoseobservou,osexemplosmostradossãosimples, utilizam a nomenclatura tradicional e não necessitamdegrandesarcaboiçosteóricos,metodológicosouformais.Autilizaçãodalinguísticapeloprofessordeportuguêsnãorequer,pois,todaaarmaduracomplexadestaáreadoconhecimento.Requer,sim,umaadequadaeequilibradaaplicação,porpartedemetodólogos,didac-ticistas e professores desse conhecimento.

Tinha elencado uma lista enorme quer de exemplos deconstruçõesanalisadaserradamentepelagramáticatradicional,querdepontosdeseparaçãoentrealinguística,ogramáticotradicional

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eoprofessordelínguas.Devidoànecessidadedolimitetemporaldaconferênciaopteiporexclui-los.Espero,noentanto,queapartirdestespoucosexemplosqueaqui trouxepossamaprofundarestasquestões.

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Notas1 Poressemotivo,asgramáticasdoséc.XIXtratamaprefixaçãocomocomposi-

ção,atendendoàorigememformasnãopresasmasdependentes,comosãoaspreposições,doselementosdaesquerdaqueconstituemessesverbos.

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Conectores linguísticos:aspectos sintácticos

esemântico-pragmáticosOctávio César Carvalho Tomás

Na última conferência do Departamento de Português assis-timos a uma interessante síntese sobre a oposição entre Linguística e GramáticaNormativa.FoientãoditoqueaLinguísticanãotempreo-cupaçõesnormativas,maspodeestar,eestá,aoserviçodaGramáticanamedidaemqueestapodeincorporarosresultadosdainvestigaçãolinguísticaque julgarpertinentes.Ora, esta éumadas razõesquedeterminouaescolhadotemadestaconferência,poisoassuntodosconectores linguísticos encontra-se muito pouco desenvolvido pela referidaGramáticaNormativaepelasGramáticasEscolares.

Importarácomeçar,talvez,poraclararoconceitodotermo“conector”eexemplificarotipodeunidadesquedesigna.Basica-mente,osconectoressãoasunidadesdalínguaquetêmporfunçãoconectar proposições, isto é, representações semânticas constituí-das por uma referência e por uma predicação e passíveis de crítica segundo os valores de verdade vs.falsidade,instaurandoentretaisproposiçõesumdeterminadonexoouvalorsemântico.Destemodo,otermovemsubstituir,emtermosdeclassesintáctica,atradicionaldesignação “conjunção” e abarca unidades como e, ou, mas, porque, quando, se,etc.

Vejamos entãooquediz aGramáticaNormativa acercadosconectores.Oprimeirodadoéquetaltermoraramenteéusado

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para referir as unidades com uma função primordialmente conecti-va,surgindoapenas,etalcomojásedeixouantever,asdesignações“conjunção coordenativa”, “conjunção subordinativa” e “locuçãoconjuntiva”.

A Nova Gramática da Língua Portuguesa, de Cunha eCintra,defineasconjunçõescoordenativasdaseguinteforma:«Asconjunções que relacionam termos ou orações de idêntica funçãogramaticaltêmonomedecoordenativas.»(pg.575).Amesmagra-máticadefineasconjunçõessubordinativascomo«conjunçõesqueligamduasorações,umadasquaisdeterminaoucompletaosentidodaoutra.»(pg.575).

Na Moderna Gramática Portuguesa de E. Bechara, aconjunçãoédefinidacomo«aexpressãoqueligaoraçõesou,dentrodamesmaoração,palavrasquetenhamomesmovaloroufunção.»(pg.159).Facilmentesecompreendequesetratadeumadefiniçãolataequenãoseaplicaatodasasconjunções,poisasconjunçõessubordinativas não conectam constituintes sintagmáticos mas apenas frásicos.SurpreendeaindaqueadefiniçãodeconjunçãoenquantoclassesintácticasurjanocapítulodagramáticadedicadoàMorfologia,oquepareceapontarparaumacertaambiguidadedaanálise.Maisàfrenteoautordefineasconjunçõescoordenativascomo«conjun-çõesqueligampalavrasouoraçõesdomesmovaloroufunção»(pg.160)econjunçõessubordinativascomo«conjunçõesqueligamumaoraçãoaoutraditaprincipal,estabelecendoentreelasumarelaçãodedependência.»(pg.160).

Vejamos,porúltimo,umadasinúmerasgramáticasdonossomercado editorial escolar. Trata-se da Gramática de Português da PlátanoEditora,dirigidaaosalunosdosensinosBásicoeSecundário,daautoriadeJoséCastroPinto.TalcomoacontecenaGramáticadeBechara,tambémaquisedefineaclassesintácticadaconjunçãonocapítulodedicadoàMorfologia.Oautordefineconjunçãocomo«pa-lavrasinvariáveisqueservempararelacionaroraçõesouelementossemelhantes da mesma oração. As conjunções coordenativas ligam oraçõesdamesmanaturezaoupalavrasque,naoração,desempenhamiguais funções. As conjunções subordinativas estabelecem uma relação dedependênciaentreorações.»(pg.169).

Ora,analisandoasdefiniçõesapresentadas,verifica-sequetodaselassãorelativamenteredutoras,paraalémdeapresentaremumacertaflutuação,umtantoouquantoincompreensível,entreosníveisdeanálisesintácticoemorfológico,enãonosdevemosesquecerqueadefiniçãodeumaqualquerclassesintáctica,etalcomoonomeindica,ésobretudoumaquestãosintácticaenãomorfológica.Apresentam,todavia, um aspecto extremamente válido que constitui o pontocentral da distinção entre coordenação/conjunções coordenativas e subordinação/conjunçõessubordinativas.Refiro-meàindependência

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sintácticadosmembrosdasestruturascoordenadaseàdependênciadosmembros das estruturas subordinadas. Simplesmente, não háqualquer justificação nem demonstração, por mais reduzidas quesejam,detaldependênciaouindependência.Significaistoquenãosefazqualquerdescriçãodocomportamentosintácticodasunidadesclassificadassintacticamentecomoconjunçõescoordenativasoucomoconjunções subordinativas.

Oraesteéprecisamenteoprimeiropontoquequerofocarcom algum detalhe. Vejamos então os principais traços do com-portamento sintáctico prototípico das conjunções coordenativas e subordinativas:

Comportamento Sintáctico das Conjunções Coordenativas/Orações coordenadas

�. As conjunções coordenativas não co-ocorrem: OAntónioestudaemBragança,masviveemMirandela. *OAntónioestudaemBragançae masviveemMirande-

la. *OAntónioestudaemBragançamas ouviveemMiran-

dela.2. As conjunções coordenativas não são prosodicamente

delimitadas: OAntónioestudaemBragança,masviveemMirandela. *OAntónioestudaemBragança, mas,viveemMirande-

la.3. As conjunções coordenativas ocorrem em início absoluto

domembroqueintroduzem: OAntónioestudaemBragança,masviveemMirandela. *OAntónioestudaemBragança,vivemasemMirande-

la.�. As conjunções coordenativas dão origem a estruturas de

tipo frásico: Eledisseque[oAntónioestudaemBragança,masvive

emMirandela]5. Asconstruçõescoordenadasnãoadmitemafocalização: *ÉmasviveemMirandelaqueoAntónioestudaemBra-

gança.6. As construções coordenadas não admitem a deslocação do

segundo membro para posição inicial: * MasviveemMirandela,OAntónioestudaemBragan-

ça.7. O operador de negação nega apenas o membro coordenado

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emqueocorre OAntónionãoestudaemBragança,masviveemMiran-

dela.8. AsconstruçõescoordenadasinduzemaordemV-cl: OAntónioestudaLinguísticaeacha-a interessante.

Vejamos agora o comportamento sintáctico prototípico das conjunções subordinativas/orações subordinadas:

Comportamento Sintáctico das Conjunções Subordinati-vas/Orações Subordinadas

�. As conjunções subordinativas não são prosodicamente delimitadas:

OAntónioestudaLinguísticaporqueaachainteressante. *OAntónioestudaLinguística, porque, a acha interes-

sante.2. As conjunções subordinativas ocorrem em início absoluto

do membro subordinado: *OAntónioestudaLinguística,aachaporque interessan-

te.3. Aconjunçãosubordinativaeomembroqueintroduzpodem

serfocalizados: ÉporqueaachainteressantequeoAntónioestudaLinguís-

tica.4. Aconjunçãosubordinativaeomembroqueintroduzpodem

deslocar-se para posição inicial: Porqueaachainteressante,oAntónioestudaLinguística.5. O operador de negação proposicional afecta toda a estrutura

enãoapenasomembroemqueocorre: OAntónionãoestudaLinguísticaquandotemoutrosexa-

mes. [ (pquandoq)] OAntónionãoestudaLinguísticaporque temmaisque

fazer.[ (pporqueq)]6. Asconstruçõessubordinadasinduzemaordemcl-V: OAntónioestudaLinguísticaporquea acha interessan-

te.

A descrição feita do comportamento sintáctico das con-junções coordenativas e subordinativas levanta, desde já, algunsproblemasàtradiçãogramatical.AGramáticadivideasconjunçõescoordenativas,apartirdovalorprocessadopelasdiferentesunidades,em aditivas, disjuntivas, adversativas, conclusivas e explicativas.

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Como exemplo de conjunções adversativas são tradicionalmente apresentadas as unidades mas, porém, contudo, todavia, no entanto. Ora,secompararmosocomportamentosintácticodeunidadescomoporém ou contudo com o comportamento das conjunções coordenati-vasprototípicas,verifica-sefacilmenteumaclaradivergência.Desdelogo,estasunidades,eaocontráriodasconjunçõescoordenativas,sãoconstituintesprosódicos,oque secomprovapelo factodenoregisto escrito ocorrerem delimitadas por vírgulas ou por um ponto àesquerdaeumavírgulaàdireita.Osenunciadosqueaseguirapre-sento são disto exemplo:

OAntónioestudouafincadamenteparaadisciplinadeLin-guística.Porém/contudo,tirouumanotabaixa.

OAntónioestudouafincadamenteparaacadeiradeLin-guística,porém/contudo,tirouumanotabaixa.

Umoutro aspecto emque estas unidades se afastamdocomportamento das conjunções passa pela mobilidade sintáctica. De facto,asconjunçõesocorremobrigatoriamenteeminícioabsolutodo segundomembro, enquantoporém/contudo podem ocorrer em posiçãomedialoufinaldomembroemquesurgem.Osenunciadosseguintes são disto exemplo:

OAntónioestudouafincadamenteparaacadeiradeLin-guística.Tirou,porém/contudo,umanotabaixa.

OAntónioestudouafincadamenteparaacadeiradeLin-guística.Tirouumanotabaixa,porém/contudo.

Masvejamosaindaumoutrotraçoemqueestasunidadesapresentamumcomportamentodivergenterelativamenteàsconjunçõescoordenativas.Foianteriormenteditoqueasconjunçõescoordenati-vasnãopodemco-ocorrer.Ora,aquiloqueseverificaéqueunidadescomo porém/contudo podemco-ocorrercomascoordenativas, talcomo prova o seguinte enunciado:

OAntónioestudouafincadamenteparaacadeiradeLin-guística.Mas,porém/contudo,tirouumanotabaixa.

Estedadodemonstra,eseguindodepertoatradiçãoestru-turalista,queunidadescomomas e porém/contudo pertencem forço-samenteaclassessintácticasdiferentesou,pelomenos,adiferentessub-classes de uma mesma classe. Esta primeira conclusão poderia aindaserdemonstradaatravésdeoutrostestessintácticos,comoaanálisedotipodeprodutoresultantedaconexão,masfiquemo-nos,quantoaesteaspecto,poraqui.

Todavia,eparaalémdaclassificaçãoduvidosadealgumasunidades,háumaoutracríticaquepodefazer-seaotratamentodosconectorespelaGramáticaNormativa.Refiro-mea todoumvastoconjunto de unidades da língua com uma função primordialmente

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conectivaquesimplesmentenãosãoabordadasouclassificadaspelaGramáticaou,quandomuito,sãoapresentadascomolocuçõescon-juntivas. Trata-se de unidades ou expressões como em primeiro lugar, em segundo lugar, ..., assim, de facto, em consequência, com efeito, desde logo, na verdade, por isso, enfim, portanto, em contrapartida, ao passo que, enquanto (que), em suma, em conclusão,por um lado, ... por outro lado,etc...Onãotratamentodestasunidadestorna-seaindamaisgraveporsetratardeunidadescomelevadafrequênciadeuso,tantoemregistosescritoscomoorais.

Aquestãoquedeimediatosecolocatemaverentãocomaclassificaçãosintácticaquemelhorselhesadequa.Atradiçãogra-matical designa algumas delas como «locuções conjuntivas». Seria umadesignaçãopossível,masnãodaformacomoéapresentadaoujustificada.Emprimeirolugar,porqueotermo«locuçãoconjuntiva»designa aquelas unidades com uma função e um comportamentoidênticosaodasconjunçõesmasquesedistinguemdestasporseremconstituídaspormaisdoqueumaunidade(ie,polilexemáticas).Trata-se,portanto,deumcritériomorfológicoque,comojásedisse,nãoéválidoparaaquestãoqueaquinosocupa.Emsegundolugar,eesteéoaspectoprincipal,estasunidadesapresentamumcomportamentosintácticodiferentedodasconjunções,peloquenãodevemserequi-paradas,emtermossintácticos,aestas.Desdelogo,distinguem-seporapresentaremmobilidadesintáctica,porseremprosodicamentedelimitadas,porpoderemco-ocorrercomconjunçõesepordaremorigemaconexõesquesãoprodutos textuais (comportamentoemtudo semelhante ao das unidades porém e contudo,jáanteriormentedescritas).

Natentativaderesolverestaquestão,aúltimaediçãodaGramática da Língua Portuguesa deMateuset aliae(2003) (que,registe-se,apresentamaiscaracterísticasdeumagramáticadescri-tivadoquenormativa)optaporcontinuaradesignarastradicionaisconjunçõescomoconjunções,designandoasunidadesquefogemaocomportamentodestascomoconectores.Todavia,parece-meexistirumaevidenteredundâncianestasdesignações,poisacaracterísticaabsolutamentecomumàsconjunçõeseaosconectoreséacapacidadeconectivadeambos.Significaistoqueumaconjunçãoétãoconectorcomoqualqueroutroconector,peloqueestamos,claramente,peranteumcasoemqueamultiplicaçãodeterminologianãotrazqualquervantagem.

A par do termo «conector» a investigação linguística tem propostoumvastoconjuntodeoutrasdesignações,deentreasquaissedestacaadeMarcadorDiscursivoouMarcadordoDiscurso.Detodasasdesignaçõesqueseencontram,consideroestaamaisfelizumavezqueéaquelaquedáconta,deumaformamaisperfeita,darealidadelinguísticaobservada.Defacto,otermo«marcador»remete

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paraocarácterinstrucionaldasunidades,abarcaunidadessimplesoucompostaseépreferíveladesignaçõescomo«partícula»;otermo«discursivo»remeteparaonívelaqueestasunidadesfuncionamequeésuperioràsintaxefrásica,apresentando-seantescomounidadesquefuncionamaoníveldotexto/discurso,aoníveldouso,ecomimportantesfunçõessemântico-pragmáticas.

Em termospráticos, adistinção feitaentreconjunçõesemarcadores discursivos impõe alterações à concepção tradicionaldaconjunçãocomoclassesintáctica.Defacto,osdadoslinguísticosapontamparaaexistênciadeumaclassesintácticadeâmbitomaisalargadoquepodeserdesignadacomoaclassedosconectores;porsuavez,talclasseseráconstituídaportrêsdiferentessubclasses:asubclassedasconjunçõescoordenativas,asubclassedasconjunçõessubordinativas e a subclasse dos marcadores discursivos. Trata-se de umapropostadeclassificaçãoque,paraalémdeestardeacordocomarealidadelinguísticaobservada,temavantagemdeseguiralgunsaspectos já propostos pela tradição gramatical, sendo aquilo quesepropõesemelhanteaoquesepassacomaclassedospronomes,tambémelaconstituídapordiversassubclasses:pronomespessoais,pronomesrelativos,pronomespossessivos,etc....

Passemos agora à análise do funcionamento semântico-pragmáticodosconectores.Emtermossemânticos,agramáticatra-dicionaldistingueentreunidadescomsignificadolexicaleunidadescomsignificadogramatical,atribuindoaosconectoresumsignificadogramatical. Recentemente, a investigação linguística apresentoua distinção entre unidades com significado referencial e unidadescomsignificadodeprocessamento.Basicamente,asunidadescomsignificado referencial, comonomespróprios,pronomespessoais,demonstrativosoupossessivos,gruposnominais,etc.,têmacapacidadededesignarobjectosouqualidadesdomundo,entendendo-seentãopor referência a relação cognitiva entre determinadas expressões e aquelesobjectosousituaçõesdomundo,realoupossível,quesãodesignadas por tais expressões. Têm em comum a característica de se integrarem sempre no conteúdo proposicional dos enunciados em queocorrem,dequederivaapossibilidadedeseremanalisadascombaseemcritériosdeverdadevs.falsidade,istoé,numaperspectivavero-condicional.

Todavia, a capacidade de realizarem referência não é amesmaemtodasasunidadescomsignificadoreferencial.Umgru-ponominal,porexemplo,podesóporsi referirumadeterminadaentidade,apresentandoumacapacidade referencialautónoma.Emcontrapartida,umpronomepessoalsóreferedeformaindirecta,peloqueareferênciaénãoautónoma.Encontram-senestasituação,porexemplo,todososdeícticos.

Voltandoaosconectoreslinguísticos,verifica-sequeestes

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nãopossuemumsignificadoreferencialmasantesumsignificadodeprocessamento.Significaistoquetaisunidadesnãofazempartedoconteúdoproposicionaldosenunciadosemqueocorremumavezquenão se integram nem na referência nem na predicação. Em termos sintáctico-semânticossão,então,elementosopcionais.Quenãofa-zempartedoconteúdoproposicionalprova-sepelaimpossibilidadedesereminterrogados,pornãopoderemocorrereminterrogativasalternativas,pornãoseencontraremsoboescopodooperadordenegaçãoe,finalmente,pornãoaceitaremafocalização.

Todavia,deveregistar-sequeofactodetaisunidadesseremexterioresaoconteúdoproposicionalnãoimplica,necessariamente,quenãocontribuamparaascondiçõesdeverdadedosenunciados.Embora muitos dos conectores resistam a uma análise vero-condicio-nal,hácasosemquetalnãoacontece,aspectoqueestádirectamenterelacionadocomonexosemânticoinstaurado.

Um enunciado como Está a chover, mas vou sair,éver-dadeiroseseverificaraverdadedecadaumadasproposiçõesqueocompõem - está a chover e vou sair-,peloqueonexocontrastivoinstaurado por maséirrelevanteparaaverificabilidadedosvaloresdeverdade/falsidadedoenunciado.MasumenunciadocomoA ESE de Bragança é uma escola óptima porque tem bons alunossóéver-dadeiroseseverificaraverdadedaprimeiraproposição-A ESE de Bragança é uma escola óptima-,seseverificaraverdadedasegundaproposição - A ESE de Bragança tem bons alunos -eseseverificaraindaaverdadedonexosemânticodacausa-consequênciaprocessadoentre as duas proposições pelo conector porque.

Porsignificadodeprocessamentoentende-seacapacidadequeosconectorespossuemdeforneceraoalocutárioinstruçõespreci-sas,ourelativamenteprecisas,sobreaformacomoestedevearticularsemanticamentetantoestruturasdetipofrásico,comoestruturasdetipotextual.Destemodo,contribuemparaareduçãodoesforçodedescodificaçãoexigidoaoalocutárionamedidaemquedãoorigema implicaturasde tipoconvencional, tornandomaismanifestoumdeterminadovalorsemânticoeincrementandoacapacidadeostensi-vo-inferencial dos enunciados.

Para ilustrar estes dados considere-se um enunciado como Está a chover. Vou sair.Dependendodosfactorespragmáticosqueenvolvemaenunciação,olocutorqueenunciaEstá a chover. Vou sairpodequererestabelecerentreestasduasproposiçõesumnexodecontrasteou,porexemplo,depremissa-conclusão.Ora,afunçãodosconectoreséprecisamenteadeinformaroalocutáriosobrequaldestesnexosdeveserprocessado.Tantoassiméqueseo locutorenunciar Esté a chover, mas vou sair força o alocutário a processar umaleituracontrastiva.Emcontrapartida,seenunciarEstá a chover, logo vou sair,implicaovalordepremissa-conclusão.

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Paraalémdeumsignificadodeprocessamento,cadaconec-torlinguísticoapresentaumsignificadoindividual,umavezqueosconectoresnãopodemcomutarlivrementeentresisemquedetalnãoadvenhammaioresoumenoresalteraçõessemântico-pragmáticas.

Assim,aquestãoquedeimediatosecolocaprende-secomosvaloresquepodemserprocessadospelosconectores.Asemânticade carácter cognitivo e pragmaticista tende a considerar a existência decinconexossemânticosglobaisouprincipais:adição,disjunção,contraste/oposição,temporalidadeecausalidade,nexosestesque,porsuavez,podemapresentarumagamaalargadadevariações.

Se voltarmos à Gramática Tradicional, verificamos queasconjunçõescoordenativassãoagrupadas, tendoemcontaoseuvalorsemântico,ecomojáantessedisse,emaditivas,disjuntivas,adversativas,conclusivaseexplicativas.Relativamente,àsconjun-ções subordinativas, e considerandoapenas aquelasquemaisnosinteressam-assubordinativasqueprefaciamsubordinadasadverbiais-verificamosqueestassãoagrupadasemcausais,finais,concessivas,temporais,consecutivasecondicionais.

AslistagensdosnexossemânticosapresentadaspelasGra-máticasparecem,assim,contradizeraafirmaçãoanteriordequehácinconexosprincipais,sendoosrestantesvariaçõesdestes.Penso,porém,quetalcontradiçãoéapenasaparente,poisnormalmenteasgramáticasnão referemas relaçõesqueexistementreosdiversosnexosqueelencam,aspectofundamentalnoestudosemânticodosconectores.

Umdosexemplosdeproximidadesemânticaédadopelaschamadas construções coordenadas adversativas e subordinadas concessivas,como jáÓscarLopesnotounaGramática Simbólica do Português. Tal prova-se pela possibilidade de paráfrase de umas pelasoutras,comoseconstatanosenunciadosseguintes:Vou sair, mas está a chover vs. Vou sair, embora esteja a chover.Há,naturalmente,variaçõesoudiferençassemânticasentreestesdoisenunciados,queseprendem,sobretudo,comadistribuiçãodainformaçãotemáticaeremática.Todavia,ospercursoscognitivoseargumentativosinstau-rados por mas e emborasãosemelhantes,talcomoascondiçõesdeverdadedosdoisenunciados,oquedemonstraaproximidadesemân-ticadeambos.Assim,talvezsejamaiscorrectoconsiderarquemas e emboraprocessamomesmovalorsemântico-ovalordecontraste-,valorestequeemtermoslinguísticossepodemanifestaratravésde estruturas coordenadas - e então poderemos eventualmente falar em adversatividade - ou através de estruturas subordinadas - e então poderemos falar em concessividade.

Algo semelhante passa-se com as orações ditas causais,condicionais e conclusivas. Basicamente, as conjunções causais

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estabelecemumarelaçãodecausa-consequênciaentreduasproposi-ções,ouseja,acausalidademanifestaumacondiçãosuficienteparaaocorrênciadaconsequência,aopassoqueascondicionaisestabelecemumarelaçãodecondição-consequência,peloqueacondicionalidadeenvolveumahipótesedecujaverificaçãoderivaaconsequência.Tendoemcontaestesdados,eapartirda«modalidadequeregulaaasserção»(Mateuset aliae,1989:298),épossíveldividirascondicionaisemtrêsgrupos-factuais,hipotéticasecontrafactuais,sendoqueaquiloqueasunificaéonexosemânticodecausalidade(ouemalgunscasosdeimplicação)queemtodassemanifesta.Oumelhor:onexosemânticodecausa-consequênciamanifesta-sequernasoraçõescausais,quernascondicionais,quernasconclusivas;aconteceéqueseestenexoseverificaroutiververificadonummundoreal,estamosperanteumacondicionalfactualoureal;sepuderverificar-senumqualquermundopossível,estamosperanteumacondicionalhipotética;senãopuderverificar-senumqualquermundorealouhipotético,estamosperanteuma condicional contrafactual.

Algopróximodoquefoidescritoverifica-seaindaentreasconstruçõesditasconcessivasfactuais,causais,condicionaisconces-sivas(tambémdesignadasconcessivashipotéticas)econdicionais.Defacto,entretodasestasconstruçõesestabelece-seumaintrincadarededeinter-relaçõesqueassentamemduasvariáveis:apresençaouaausênciadeumnexodecausa-consequênciaeograudefactualidadevs. hipoteticalidade.Se considerarmosaprimeiradestasvaráveis,verifica-seumaclaraaproximaçãoentre,porumlado,construçõescausaisecondicionaise,poroutrolado,entreconcessivasfactuaise concessivas hipotéticas. Se considerarmos uma construção causal (Porque correste, apanhaste o autocarro)eumaconstruçãocondicional(Se correres, apanharás o autocarro),facilmentesenotaapresençanestas duas construções de um nexo de causa-consequência; emcontrapartida,seconsiderarmosumaconstruçãoconcessivafactual(Embora corras, não apanhas o autocarro)eumaconcessivahipo-tética ou condicional concessiva (Mesmo que corras, não apanharás o autocarro),facilmenteseverificaaausênciaouquebradonexodecausa-consequência.Assimsecompreendequeseaumaconstruçãoconcessivafactualatribuirmosonexodecausa-consequência,pas-saremos a ter uma construção causal. Se o mesmo for feito a uma condicionalconcessiva,teremosumacondicional.

Considerando agora a outra variável - grau de factualidade vs.hipoteticalidade-verifica-se,porumlado,umaclaraaproximaçãoentrecausaiseconcessivasreaise,poroutrolado,entrecondicionaiseconcessivashipotéticas.Defacto,tantonascausaiscomonasconces-sivas reais os acontecimentos denotados são tidos como verdadeiros oureais,aopassoquenascondicionaisenasconcessivashipotéticasos acontecimentos são tidos como possíveis.

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As demonstrações anteriormente feitas da existência de relações semânticasmais oumenos complexas entre construçõesadversativaseconcessivas,entrecausais,condicionaiseconclusivas,eentrecausais,condicionais,concessivasecondicionaisconcessivaspareceentãoprovarqueosnexossemânticospassíveisdeprocessa-mentoatravésdeconjunçõescoordenativasesubordinativassão,narealidade,emnúmerorelativamentereduzido.Porém,háumproble-maqueaquisecolocaequeseprendecomosvaloressemânticosprocessadospelosMarcadoresDiscursivos.Umavezquesetratadeunidadesaindapoucoestudadas,pelomenosnoquedizrespeitoaoPortuguês, aspropostasdeclassificaçãoconhecidas são reduzidasemesmoparcelares.Dequalquermodo,pareceque taisunidadespodemprocessarumlequemaisalargadodevaloressemânticosdoqueaquelesquesãoprocessadospelasconjunções.Talpoderáficaradever-se,basicamente,aduasrazões:porumlado,muitasdestasunidadesfuncionamcomoestruturascomplexas,congregandoosig-nificadodeváriasunidadesindividuais;poroutrolado,háMarcadoresDiscursivosquetêmnasuaorigemumprocessodegramaticalização.Ora,porvezestalprocessonãoseencontraconcluído,notando-senoMarcadorvestígiosdosignificadolexicaloriginal.Semquereravançarmuitonestaquestão,apresentareiapenasumapossívelpropostaparaaclassificaçãosemânticadosMarcadoresDiscursivos(propostaquenãoé,demodoalgum,definitivaconformeTabela1).

Umdadoqueimportaconsiderarnadescriçãosemânticadosconectores(equeempartedificultaaprópriadescrição)temavercomosdiferentesdomíniosdasignificaçãoemqueestespodemoperar.Paraabordarmosestaquestãopodemosconsiderardoisenunciados,como: O António fuma muito, mas não tem problemas de saúde e Vou começar por referir a importância dos conectores. Mas antes gosta-ria de chamar a atenção para os diferentes tipos de conectores. No primeiro destes enunciados a conjunção mas estabelece uma relação de oposição entre conteúdos factuais denotados pelos membros da construção,detalmodoqueocorreaquebradonexodacausa-conse-quência,poissabe-se,doconhecimentoquetemosdomundo,queaacçãodefumaracarreta,normalmente,problemasdesaúde.Ora,estetipoderelaçãodeoposiçãojánãoocorrenosegundoenunciado,poisnão há contraste entre a importância dos conectores e os diferentes tipos de conectores.Nesteenunciado,masnãoopera,então,entreosfactosdenotadospelosmembrosdaconstrução,masantesaoníveldaorganizaçãotextualoudiscursiva.Paraalémdestesdoisníveisdasignificação-níveldoconteúdoeníveltextual-osconectorespodemainda operar nos domínios interpessoal e epistémico.

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Tabela1-ClassificaçãosemânticadosMarcadoresDiscursivosValor Semântico Marcadores Discursivos

Contrasteporém, contudo, todavia, ao passo que, pelo contrário, em contrapartida, enquanto (que), no entanto, mesmo assim, ...

Estruturadores de informação/Listagemem primeiro lugar, em segundo lugar, ..., por um lado, por outro lado, ..., finalmente, por fim, em seguida, ...

Ordenação temporal antes, depois, entretanto, em seguida, ...

Explicitação/Concretizaçãoisto é, ou seja, por exemplo, de facto, com efeito, na verdade, ...

Reformulação de outro modo, por outras palavras, melhor dito, ...

Inferênciaem consequência, por conseguinte, assim, deste modo, por isso, portanto, ...

Recapitulação/Sínteseem suma, em conclusão, em resumo, em síntese, em definitivo, ...

Reforço argumentativo de facto, com efeito, desde logo, na realidade, ...

Paraterminaraconferênciafaltaaindaresponderàquestãoquesedeixouimplícitanoinícioequeconsisteemsaberemqueme-didaainvestigaçãolinguísticapodeinfluenciareseraproveitadapelasGramáticasEscolaresepelapráticapedagógica.(Poderiaresolveraquestãodizendoqueistoficariaaocritériodecadaprofessor,masnão!).Naanálisedequalquerfenómenolinguísticoéfundamentalqueoalunopercebaclaramenteadistinçãoentreosdiversosníveisdeanálisedalíngua.Relativamenteaoassuntoaquiabordadoéim-portanteadistinçãoentreMorfologia,SintaxeeSemântica,sobretudoentreSintaxeeSemântica.Aplicandoesteprincípioaosconectores,podemosconcluir,emprimeirolugar,queépossívelproblematizara distinção tradicional entre conjunções e locuções conjuntivas. Em segundo lugar, a delimitação da classe sintáctica conjunção deveenvolver a descrição das suas principais características sintácticas. Esta segunda conclusão tem duas implicações: a primeira é que,por exemplo, a conjunção coordenativa e não é uma conjunção coordenativaporprocessaronexoaditivo,massimporapresentarumdeterminadocomportamentosintáctico(esteprincípioaplica-se,naturalmente,atodososconectores);asegundaimplicaçãoéqueháum vasto conjunto de outras unidades com uma função conectiva quenãoapresentamocomportamentosintácticodasconjunçõese

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quepodemserdesignadas,entremuitasdesignaçõespossíveis,pelaexpressãoMarcadorDiscursivo.(Naturalmentenãoseesperaqueostestessintácticosaquiapresentadossejamutilizadosnassalasdeaula,pelomenosnoquedizrespeitoaosegundociclodoensinobásico.Todavia,omesmojánãomecausaqualquerestranhezasesetratardo terceirociclodoensinobásicoe,muitomenos,sese tratardoensinosecundário.).Aterceiraeúltimaconclusãoéqueosaspectossemântico-pragmáticosdosconectoresdevemserestudadosnumaperspectiva global através da exploração das diversas inter-relações semânticasqueestabelecementresienãodeumaformaabsolutamenteestanque,comoporvezesacontece.

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Bibliografia

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Títulos publicados:

SÉRIE

INSTITUTO POLITÉCNICO DE BRAGANÇA

1 · A agricultura nos distritos de Bragança e Vila Real FranciscoJoséTerrosoCepeda–1985

2 · Política económica francesa FranciscoJoséTerrosoCepeda–1985

3 · A educação e o ensino no 1º quartel do século XX José Rodrigues Monteiro e Maria Helena Lopes Fernandes

–1985

4 · Trás-os-Montes nos finais do século XVIII: alguns aspectos económico-sociais

JoséManuelAmadoMendes–1985

5 · O pensamento económico de Lord Keynes FranciscoJoséTerrosoCepeda–1986

6 · O conceito de educação na obra do Abade de Baçal JoséRodriguesMonteiro–1986

7 · Temas diversos – economia e desenvolvimento regional JoaquimLimaPereira–1987

8 · Estudo de melhoramento do prado de aveia TjardadeKoe–1988

9 · Flora e vegetação da bacia superior do rio Sabor no Parque Natural de Montesinho

TjardadeKoe–1988

10 · Estudo do apuramento e enriquecimento de um pré-concentrado de estanho tungsténio ArnaldoManueldaSilvaLopesdosSantos–1988

11 · Sondas de neutrões e de raios Gama Tomásd'AquinoFreitasRosadeFigueiredo–1988

12 · A descontinuidade entre a escrita e a oralidade na aprendizagem RaulIturra–1989

13 · Absorção química em borbulhadores gás-líquido JoãoAlbertoSobrinhoTeixeira–1990

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14 · Financiamento do ensino superior no Brasil – reflexões sobre fontes alternativas de recursos

VictorMeyerJr.–1991

15 · Liberalidade régia em Portugal nos finais da idade média VitorFernandoSilvaSimõesAlves–1991

16 · Educação e loucura JoséManuelRodriguesAlves–1991

17 · Emigrantes regressados e desenvolvimento no Nordeste Interior Português FranciscoJoséTerrosoCepeda–1991

18 · Dispersão em escoamento gás-líquido JoãoAlbertoSobrinhoTeixeira–1991

19 · O regime térmico de um luvissolo na Quinta de Santa Apolónia Tomásd'AquinoF.R.deFigueiredo-1993

20 · Conferências em nutrição animal CarlosAlbertoSequeira-1993

21 · Bref aperçu de l’histoire de France – des origines à la fin du IIe empire JoãoSérgiodePinaCarvalhoSousa–1994

22 · Preparação, realização e análise / avaliação do ensino em Educação Física no Primeiro Ciclo do Ensino Básico

JoãodoNascimentoQuina–1994

23 · A pragmática narrativa e o confronto de estéticas em Contos de Eça de Queirós HenriquetaMariadeAlmeidaGonçalves–1994

24 · “Jesus” de Miguel Torga: análise e proposta didáctica MariadaAssunçãoFernandesMoraisMonteiro–1994

25 · Caracterização e classificação etnológica dos ovinos churros portugueses

AlfredoJorgeCostaTeixeira–1994

26 · Hidrogeologia de dois importantes aquíferos (Cova de Lua, Sabariz) do maciço polimetamórfico de Bragança

LuísFilipePiresFernandes–1996

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27 · Micorrização in vitro de plantas micropropagadas de castanheiro (Castanea sativa Mill) AnabelaMartins–1997

28 · Emigração portuguesa: um fenómeno estrutural FranciscoJoséTerrosoCepeda–1995

29 · Lameiros de Trás-os-Montes: perspectivas de futuro para estas pastagens de montanha

Jaime Maldonado Pires; Pedro Aguiar Pinto; Nuno TavaresMoreira–1994

30 · A satisfação / insatisfação docente FranciscoCordeiroAlves–1994

31 · O subsistema pecuário de bovinicultura na área do Parque Natural de Montesinho

JaimeMaldonadoPires;NunoTavaresMoreira–1995

32 · A terra e a mudança – reprodução social e património fundiário na Terra Fria Transmontana OrlandoAfonsoRodrigues–1998

33 · Desenvolvimento motor: indicadores bioculturais e somáticos do rendimento motor de crianças de 5/6 anos

VítorPiresLopes–1998

34 · Estudo da influência do conhecimento prévio de alunos portugueses na compreensão de um texto em língua inglesa FranciscoMáriodaRocha–1998

35 · La crise de Mai 68 en France JoãoSérgiodePinaCarvalhoSousa–1999

36 · Linguagem, psicanálise e educação: uma perspectiva à luz da teoria lacaniana

JoséManuelRodriguesAlves

37 · Contributos para um estudo das funções da tecnologia vídeo no ensino

FranciscoCordeiroAlves–1998

38 · Sistemas agrários e melhoramento dos bovinos de raça Mirandesa FernandoJorgeRuivodeSousa–1998

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39 · Enclaves de clima Cfs no Alto Portugal – a difusa transição entre a Ibéria Húmida e a Ibéria Seca

ÁrioLoboAzevedo;DionísioAfonsoGonçalves;RuiManuelAlmeidaMachado–1995

40 · Desenvolvimento agrário na Terra Fria – condicionantes e perspectivas

DuarteRodriguesPires–1998

41 · A construção do planalto transmontano – Baçal, uma aldeia do planalto

LuísaGenésio–1999

42 · Antologia epistolográfica de autores dos sécs. XIX-XX LurdesCameirão–1999

43 · Teixeira de Pascoaes e o projecto cultural da “Renascença Portuguesa”

LurdesCameirão–2000

44 · Descargas atmosféricas – sistemas de protecção JoaquimTavaresdaSilva

45 · Redes de terra – princípios de concepção e de realização JoaquimTavaresdaSilva

46 · O sistema tradicional de exploração de ovinos em Bragança CarlosBarbosa–2000

47 · Eficiência de utilização do azoto pelas plantas ManuelÂngeloRodrigues,JoãoFilipeCoutinho–2000

48 · Elementos de física e mecânica aplicada João Alberto Sobrinho Teixeira

49 · A Escola Preparatória Portuguesa – Uma abordagem organizacional HenriquedaCostaFerreira–2002

50 · Agro-ecological characterization of N. E. Portugal with special reference to potato cropping T.C.Ferreira,M.K.V.Carr,D.A.Gonçalves–1996

51 · A participação dos professores na direcção da Escola Secundária, entre 1926 e 1986 HenriquedaCostaFerreira–2002

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52 · A evolução da Escola Preparatória – o conceito e componentes curriculares

HenriquedaCostaFerreira–2003

53 · O Homem e a biodiversidade (ontem, hoje… amanhã) AntónioRéffega–1997

54 · Conservação, uso sustentável do solo e agricultura tropical AntónioRéffega–1997

55 · A teoria piagetiana da equilibração e as suas consequências educacionais

HenriquedaCostaFerreira–2003

56 · Resíduos com interesse agrícola - Evolução de parâmetros de compostagem

LuísManueldaCunhaSantos–2001

57 · A dimensão preocupacional dos professores FranciscodosAnjosCordeiroAlves–2001

58 · Análise não-linear do comportamento termo-mecânico de componentes em aço sujeitas ao fogo

ElzaM.M.FonsecaePauloM.M.VilaReal–2001

59 · Futebol - Referências sobre a orientação do jogo JoãodoNascimentoQuina–2001

60 · Processos de cozedura em cerâmica MariaHelenaPiresCésarCanotilho–2003

61 · Labirintos da escrita, labirintos da natureza em "As Terras do Risco" de Agustina Bessa-Luís

HelenaGenésio–2002

62 · A construção da escola inclusiva - um estudo sobre a escola em Bragança

MariadaConceiçãoDuqueFernandesFerreira–2003

63 · Atlas das aves nidificantes da Serra da Nogueira Domingos Patacho

64 · Dialecto rionorês... contributo para o seu estudo DinaMacias–2003

65 · A aquisição e o desenvolvimento do vocabulário na criança de 4 anos - Estudo de um caso

DinaMacias–2002

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Escola Superior de Educação - Departamento de Português�32

66 · Barbela, um trigo escravo - a cultura tradicional de trigo na terra fria bragançana

AnaMariaCarvalho

67 · A língua inglesa, uma referência na sociedade da globalização ElianeCristineRaabPires–2002

68 · Etnobotânica das aldeias da Moimenta da Raia e Rio de Onor

AnaMariaCarvalho;AnaPaulaRodrigues

69 · Caracterização Biofísica da técnica de Mariposa TiagoBarbosa–2004

70 · As inter-relações turismo, meio-ambiente e cultura ElianeCristineRaabPires–2004

71 · Avaliação do impacte dos cursos de jovens empresários agrícolas em Trás-os-Montes MariadaGraçaFerreiraBentoMadureira–2004

72 · Do pai ao pior – 4 conferências AcíliodaSilvaEstaqueiroRocha;JoséManuelRodriguesAlves;

JoséMartinho;J.Gaglianone

73 · Alguns deícticos de lugar: Análise pragmática DinaRodriguesMacias–2004

74 · Fórum de psicanálise, sonho e criatividade – 100 anos sobre a ciência dos sonhos de Freud

VáriosautoresorganizadosporJoséManuelRodriguesAlves

75 · Perspectiva pictórica LuísManuelLeitãoCanotilho–2005

76 · Ética e psicanálise em Lacan: o desejo, o bem e a condição humana JoséManuelRodriguesAlves

77 · Oscar Wilde: a tragicidade da vida de um escritor ElianeCristineRaabPires–2005

78 · Diário MS9: Dilemas de uma professora principiante FranciscoCordeiroAlves–2005

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79 · O estudo do meio social como processo educativo de desenvolvimento local MariadoNascimentoEstevesMateus

80 · A voz dos professores na primeira pessoa FranciscoCordeiroAlves–2006

81 · Língua e Cultura ElianeCristineRaabPires

82 · Ciclo de Conferências 2003: Estudos de Língua e Literatura Escola Superior de Educação - Departamento de Português

–2006