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REVISTA DE MANGUINHOS | JUNHO DE 2009 24 Centenário de conquistas e desafios ESPECIAL

ESPECIAL Centenário de conquistas e desafios · geográfica, os meios de transmissão e de diagnóstico, o comportamento do protozoário no organismo humano, o tratamento e a prevenção

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Centenáriode conquistase desafios

ESPECIAL

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Fotos: Virgínia Damas/Ensp/Fiocruz

oi em 14 de abril de 1909 que o cientista Carlos

Chagas encontrou o protozoário Trypanosoma cruzi

no sangue de uma menina febril de 2 anos de idade,

chamada Berenice, moradora da cidade de Lassance

(MG). O brasileiro entrou para a história por uma descoberta

tripla: uma nova doença humana (a tripanossomíase

americana, hoje conhecida como doença de Chagas), o

parasito que a causa (T. cruzi) e o inseto que a transmite

(barbeiro). Este feito o deixou muito perto de ganhar um

prêmio Nobel, mas nem só de glórias viveu o cientista,

envolvido também em disputas e controvérsias.

No centenário da descoberta, há várias razões para

celebrar: o Brasil controlou a transmissão pelo barbeiro

Triatoma infestans, o tratamento experimental com células-

tronco tem apresentado resultados animadores, um novo

medicamento baseado nas propriedades antioxidantes do

selênio entra em fase de ensaios clínicos, um trabalho

sobre a doença ganhou destaque nos Arquivos Brasileiros

de Cardiologia. Contudo, ainda restam desafios a serem

vencidos: no país, estima-se em 2 milhões o número de

pacientes crônicos – 600 mil com complicações cardíacas

ou digestivas que levam a óbito 5 mil pessoas por ano.

Somam-se aos desafios a transmissão da doença por

meios alternativos, tais como a via oral.

Nas próximas páginas, a história da doença de Chagas se

mistura às atualidades sobre o tema, oferecendo um rico

panorama sobre o assunto, que segue entre as prioridades da

Fiocruz. Nas palavras de um grande especialista da Fundação,

o médico João Carlos Pinto Dias, “Carlos Chagas, que iniciou

tudo isso e que punha prioridade no enfrentamento da

doença, certamente se orgulharia de seus seguidores”.

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Fábio Iglesias

emonstrar ao mundo queo Brasil poderia ser umagrande civilização nos tró-picos implicou, entre outrasaventuras políticas do sé-

culo 20, combater as doenças do país.Com o propósito de eliminar a malária,epidêmico vilão que dificultava o pro-gresso nacional, Carlos Chagas parte doRio de Janeiro para Minas Gerais, em1907. Mas outro evento desperta aatenção do cientista. Guiado pela curi-osidade de “caçador de micróbios”,Chagas dirige sua mente cientificamentetreinada a investigar a fauna local. As-sim, protagoniza a descoberta de umanova doença, a tripanossomíase ame-

ricana, mais tarde batizada de do-ença de Chagas. A proeza, consi-derada única na ciência médicanacional, marca apenas o início deum acidentado percurso que en-volveu não só muitas investiga-ções ao microscópio, mas tam-bém disputas e controvérsias queatravessaram o tempo de vidado cientista.

Em 14 de abril de 1909, amineira Berenice, de 2 anos eem estado febril, promove o

primeiro encontro en-tre Carlos Chagas

e o Trypanoso-ma cruzi colhi-do em um serhumano. O pro-tozoário presen-te no sangue damenina já era co-nhecido por Cha-gas, que o perse-

guia desde que encontrado num mis-terioso inseto que atormentava mora-dores de Lassance (MG). O fato é ime-diatamente divulgado na prestigiosarevista Brasil Médico e em publicaçõescientíficas da Alemanha e França. Nasemana seguinte, Oswaldo Cruz anun-cia formalmente na Academia Nacio-nal de Medicina a façanha de seu dis-cípulo. Apenas quatro meses depois,em agosto de 1909, Chagas publicaextenso trabalho sobre o novo parasi-to e seu ciclo evolutivo, no primeiro vo-lume das Memórias do Instituto Oswal-do Cruz. Estava registrada na históriada ciência médica a tripla descoberta:uma nova doença humana (tripanos-somíase americana), o protozoário quea causa (Trypanosoma cruzi) e o insetoque a transmite (barbeiro).

Para o entusiasmo daqueles que lu-tavam pela legitimidade política e pelaexcelência acadêmica do InstitutoOswaldo Cruz, a descoberta de Chagasse desenvolveu numa sequência inco-mum: o cientista partiu da identificaçãodo transmissor e do agente causadorpara, daí, determinar a doença; quan-do o normal seria o caminho contrário.O poder de observação e o raciocínioindutivo de um cientista atualizadocom os referenciais teóricos de suaépoca são os fatores apontados paraesse sucesso, como resumido na con-ferência que Oswaldo Cruz realizouna Biblioteca Nacional, em 1915:“Nunca, até agora, nos domínios daspesquisas etiológicas, se tinha feitodescoberta tão completa e tão brilhan-te em tão curto prazo, e, o que é mais,por um só experimentador. A descober-ta da moléstia de Chagas, tal como foifeita, é a demonstração prática e bri-

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Arenas de umadescobertaCarlos Chagas enfrenta oponentes na ciência ena política e protagoniza o episódio maisextraordinário da biomedicina nacional

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lhante do axioma do imortal Franciscode Castro, que pontificava: só é ciênciapor fora o que é lógica por dentro”.

Nos trilhos do progresso

Em 1907, Chagas foi designadopara combater a epidemia de maláriaque debilitava trabalhadores da Estra-da de Ferro Central do Brasil – estaestava sendo estendida do Rio até onorte do país, para a integração doterritório e o escoamento da produ-ção agrícola. Para cumprir sua missão,em Lassance, Chagas improvisou umpequeno laboratório num vagão detrem, que também funcionava comodormitório. De lá coordenava o com-bate à malária, desenvolvia estudossobre os insetos vetores de doenças,reforçava a expertise dos cientistas deManguinhos na entomologia (estudodos insetos, disciplina emergente nopaís) e alimentava sua curiosidade pelaprotozoologia (estudo de protozoári-os), examinando espécies da faunabrasileira. No ano seguinte, Chagasencontrou no sangue de um sagui (es-pécie de macaco) um protozoário dogênero Trypanosoma e o batizou deTrypanosoma minasense.

Ao final de 1908, o chefe da co-missão de engenheiros da ferrovia,Cornélio Cantarino Mota, apresentoua Chagas um inseto comum na região,que se alimentava de sangue e era vul-garmente conhecido como barbeiro,devido ao hábito de picar o rosto desuas vítimas enquanto dormiam. Cha-gas, que havia estudado a malária esabia que insetos sugadores de sanguetransmitem parasitos a homens e ani-

mais, decidiu, então, examinar o talbarbeiro. Encontrou no inseto um pro-tozoário com características de tripa-nossoma. Seria o T. minasense ou umoutro parasito? Como não dispunha decondições experimentais suficientes nacidade, o cientista enviou diversos bar-beiros para Manguinhos, onde Oswal-do Cruz os fez picarem saguis livres dequalquer infecção, criados em labora-tórios. Um mês depois, Cruz encontrouformas de tripanossoma em um dosanimais, já adoecido. De volta a Man-guinhos, Chagas constatou que o pro-tozoário era de uma nova espécie e achamou de Trypanosoma cruzi, em ho-menagem ao mestre.

O evento impulsionou Chagas abuscar outros hospedeiros. Partiu nova-mente para Lassance e iniciou examessistemáticos de sangue nos moradoresda cidade. Quando essa ‘caçada’ já co-meçava a parecer infrutífera, no dia 14de abril de 1909, finalmente, ele encon-trou o parasito no sangue da meninaBerenice. O reconhecimento científicofoi imediato. Em 1910, a Academia Bra-sileira de Medicina rompeu com suasnormas e aceitou Chagas como mem-bro titular, mesmo sem haver vaga dis-ponível. O cientista recebeu convitespara discursar em várias instituiçõesmédicas e de pesquisa. Conquistou, em1912, o prêmio Schaudinn, conferido acada quatro anos pelo Instituto de Do-enças Tropicais de Hamburgo, vanguar-da dos estudos de protozoologia naépoca. E foi indicado pela primeira vezao Nobel de Medicina, em 1913.

Chagas examina a menina Rita, portadorada tripanossomíase americana (Fotos:Acervo COC)

O prêmio Schaudinn, oferecido a Chagas peloInstituto de Doenças Tropicais de Hamburgo

Estação ferroviáriada cidade mineirade Lassance, cenárioda descoberta

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Mas também não demoraram ascontestações. No campo científico,Chagas enfrentava o desafio de des-crever e comprovar os sintomas fun-damentais da doença, sua distribuiçãogeográfica, os meios de transmissão ede diagnóstico, o comportamento doprotozoário no organismo humano, otratamento e a prevenção. Seus primei-ros trabalhos, embora aceitos por mui-tos, foram criticados a ponto de o fa-zerem rever algumas de suas hipóteses.

Na arena política, supostas inve-jas do sucesso conquistado por Cha-gas, aliadas ao receio da imagem de‘Brasil doente’ minar a reputação dopaís, reforçaram a fase de dúvidas. Nabiografia Meu pai, Carlos Chagas Fi-lho defende que a onda de suspeiçãoe descrédito teve graves conseqüên-cias: “gerações de médicos brasileirosse formaram sem que se lhes tivessesido focalizada devidamente a impor-tância da doença”.

Controvérsias platinas

Em 1915, pesquisadores argentinosliderados pelo microbiologista austríacoRudolph Kraus refutaram a relação queChagas promovera entre a doença e obócio endêmico. O cientista de Man-guinhos, debruçado sobre a necessáriadefinição clínica, defendia que a tripa-nossomíase tinha três conjuntos de sin-tomas: distúrbios endócrinos (sobretu-do na tireóide), cardíacos e neurológicos.O nó da polêmica era a ênfase dadaaos aspectos endócrinos: Chagas atri-buía o inchaço no pescoço (bócio), ob-servado em muitos sertanejos, à açãodo Trypanosoma cruzi na tireoide. Paraele, esse era o “selo” da doença.

Nesse contexto, Kraus publicou umtrabalho defendendo que o bócioendêmico no Brasil era o mesmo verifi-cado na Europa e nada tinha a ver como T. cruzi. Com isso, colocou-se em dú-vida a ideia de que a tripanossomíaseamericana fosse uma doença de gran-de extensão. Outra complicação enfren-tada por Chagas foi o fato de que, naépoca, o diagnóstico das doenças infec-ciosas era fundamentado, principalmen-te, na observação direta do germe. “Ocausador da doença de Chagas só eraidentificado no sangue na fase aguda.

Mas essa é uma fase que dura apenasalguns dias. Rapidamente evolui para afase crônica, quando os parasitos se abri-gam nos tecidos, tornando-se muitodifícil observá-los diretamente”, explicaa historiadora Simone Kropf, da Casade Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). A ques-tão então era: como comprovar o diag-nóstico dos casos crônicos?

A resposta às críticas argentinas veiosob novas bases de argumentação. Emsetembro de 1916, Chagas participoude uma conferência no Primeiro Con-gresso Nacional, em Buenos Aires, onderessaltou os sintomas cardíacos, especi-almente crônicos, e deixou de darcentralidade aos aspectos endócrinos.Esse novo enquadramento da doença,definitivamente reconhecido apenas nadécada de 1940, gerou o consenso so-bre as características clínicas e a impor-tância epidemiológica da nova doença,tripanossomíase americana.

De volta ao Brasil após a contenda,Chagas foi recebido com grandes ho-menagens. Afinal, além de reconhecerseu papel de representante da ciêncianacional no exterior, a classe médica doRio de Janeiro entendia que a doençaprecisava adquirir visibilidade políticapara um combate efetivo. “O Brasil éum imenso hospital”, denunciou, emoutubro de 1916, o renomado médicoMiguel Pereira, defendendo a interven-ção do Estado para melhorar a saúdeno interior do país. “A fala de MiguelPereira é considerada pelos historiado-res como marco de origem do chama-do movimento pelo saneamento do Bra-sil, entre 1916 e 1920, campanha quereuniu médicos, cientistas, intelectuaise políticos em torno da ideia de que oatraso do Brasil se devia às endemiasrurais”, afirma Simone.

A contenda doméstica

Dez anos depois de Berenice, em1919, Carlos Chagas enfrentou as maisduras provocações em sua terra natal.As acusações questionavam seu patrio-tismo, por evidenciar ao mundo um‘Brasil doente’, e até mesmo colocavamsob suspeita a autoria da descoberta datripanossomíase americana: afinal,Oswaldo Cruz tinha sido o responsávelpela infecção experimental dos saguis,

A nova doença e as polêmicas emtorno de sua descoberta ocuparamlugar privilegiado na imprensa

Em primeiro plano, o brasileiroChagas e o austríaco Kraus noIntituto de Manguinhos

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evento que revelara o novo parasito.Figueiredo de Vasconcelos e AfrânioPeixoto, proeminentes nos campos ci-entífico e político, iniciaram o ‘fogo ami-go’ contra Chagas na Academia Nacio-nal de Medicina, em 1922.

A imprensa registrava todos osepisódios da polêmica, que durou maisde um ano. Até a controvérsia na Ar-gentina voltou à tona. Vasconcellos ePeixoto, apesar de questionarem aspec-tos científicos do trabalho de Chagas,deixavam transparecer a dimensãopolítica do embate, devido à rivalidadecom aquele de quem haviam sido com-petidores para importantes cargos navida pública (Chagas era diretor do Ins-tituto Oswaldo Cruz e do Departamen-to Nacional de Saúde Pública).

Os aliados, por sua vez, saíram emdefesa de Chagas. Em 23 de novem-bro de 1923, Clementino Fraga, pro-fessor da Faculdade de Medicina daBahia e amigo pessoal de Chagas, leuna Academia uma carta do filho deOswaldo Cruz, Bento, atestando queseu pai sempre atribuíra a descobertaintegralmente a Chagas. Neste ponto,a Academia, em seu parecer oficial, foifavorável a Chagas: “No correr dessasérie coordenada de fatos, o descobri-dor do parasito, que não foi achadopor acaso, mas procurado numa ilaçãológica, não seria, portanto, quem porventura primeiro o visse, mas forçosa-mente quem nessa concatenação tudodispusera para que fosse encontrado”.

Entretanto, os outros pontos ficari-am em aberto: a definição clínica (aquestão do bócio) e a importância epi-demiológica da doença. “A hipótese deque Chagas foi difamado por rancorespessoais continua presente. Muitos de-fendem que esta poderia ter sido a causade lhe negarem o prêmio Nobel, para oqual fora indicado, pela segunda vez,em fins de 1920, e que não foi,estranhamente, concedido a ninguémno ano seguinte”, avalia Simone.

Uma virada na direção do reconhe-cimento da doença aconteceu em 1935,um ano após a morte de Chagas. Tam-bém na Argentina, o médico CecílioRomaña apontou o olho inchado comoum sinal clínico da fase aguda. De fácilreconhecimento por qualquer clínico, a

contaminação da conjuntiva com as fe-zes infectadas do barbeiro não era re-conhecida por Chagas, que acreditavaque o parasito entrava pela picada. Apartir da divulgação do sinal de Romaña,começaram a ser descritos centenas decasos da doença. Evandro Chagas, fi-lho de Carlos, e Emmanuel Dias, am-bos cientistas de Manguinhos, lideraramum grupo de pesquisadores que se lan-çaram em uma campanha de consci-entização sobre a doença no interior. A

iniciativa deu novo impulso a um cami-nho de pesquisa já aberto por Chagas:a doença passaria a ser reconhecidacomo um mal crônico essencialmentecardíaco.

A primeira sondagem nacional dadoença foi realizada em 1975. Com ocombate ao barbeiro nas décadas se-guintes, o Brasil obteve da Organiza-ção Pan-Americana da Saúde (Opas),em 2006, o certificado de interrupçãoda transmissão pela principal espécievetora, o Triatoma infestans (barbei-ro). Mas a doença continua mobilizan-do cientistas de excelência, no Brasile no exterior.

Carlos Chagas, pouco antes de mor-rer, em 1934, desabafou junto a um deseus principais assistentes, EmmanuelDias: era preciso acabar com essa do-ença. Chagas acreditava servir à naçãocom novos conhecimentos científicos eações para melhorar a saúde de suapopulação. Envolvido em conflitos dediversas naturezas, realizou uma dasmaiores façanhas da ciência médicanacional - e foi o brasileiro que deixou opaís mais perto de ganhar um Nobel.

EvandroChagas, umdos herdeirosde Carlos

Carlos Chagasprofere conferência naAcademia Nacional deMedicina, em 1923; nodetalhe, Miguel Couto,que presidia a sessão

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OMemóriade Chagas épatrimônio dahumanidadeArquivo do cientista éum dos acervosbrasileiros registradosem programa da Unesco

Edna Padrão

Arquivo Carlos Chagas,patrimônio documentalque ilustra a trajetória pú-blica e profissional do ci-entista, foi um dos dez

acervos brasileiros registrados em 2008no Programa Memória do Mundo daOrganização das Nações Unidas paraa educação, a ciência e a cultura(Unesco), que promove globalmente apreservação e o acesso a documentosde interesse da humanidade. Três co-mitês formados pela Unesco avaliamos arquivos concorrentes em três níveisde projeção: nacional, regional (ou con-tinental) e mundial. O Arquivo CarlosChagas – composto por cerca de 200fotografias e centenas de documentosdo período de 1897 a 1934 – foi consi-derado de projeção regional, respon-dendo por uma das mais importantescoleções documentais da América La-tina e do Caribe.

O trabalho de organização dessearquivo é uma das metas da Casa de

Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) como par-te dos projetos para o Centenário daDescoberta da Doença de Chagas, co-memorado neste ano de 2009. Alémdas fotografias, o conjunto documen-tal é constituído por artigos, notas, re-vistas científicas, recortes de jornal, con-ferências, textos, fotografias, ilustrações,palestras, teses, resumos, instruçõesnormativas, registros de observaçõesclínicas e de exames de doentes, lau-dos, correspondência, relatórios, manu-ais, listas, gráficos, discursos, ofícios,diplomas, nomeações, recibos, noticiá-rios, certificados, receituários e atas.

Estão presentes na documentaçãofotográfica aspectos de sua vida fami-liar, sua atuação profissional à frentedo Instituto Oswaldo Cruz e do Depar-tamento Nacional de Saúde Pública,seu envolvimento com as pesquisas emtorno da descoberta da doença deChagas e com o ensino médico emManguinhos, e sua vinculação à Fa-culdade de Medicina do Rio de Janei-ro, bem como registros que retratamCarlos Chagas em solenidades e even-

Chagas, Belisário Penna e membros dogrupo de estudos do prolongamentoda linha férrea de Pirapora, em frenteà Estrada de Ferro Central do Brasil(Minas Gerais, 1907)

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tos. Também fazem parte do ArquivoCarlos Chagas o microscópio portátildo cientista, a medalha de professorda Universidade de Bruxelas (1934), amedalha de Comendador da Ordemda Coroa da Bélgica (1923) e aComenda da Cruz Vermelha Alemã.

Fundo InstitutoOswaldo Cruz

Além da documentação fotográfi-ca que compõe o Arquivo Carlos Cha-gas, imagens do cientista também po-dem ser encontradas no Fundo InstitutoOswaldo Cruz. A Série Carlos Chagasque integra o acervo é composta por149 fotografias relacionadas, principal-mente, à atuação do cientista no cargode diretor de Manguinhos, embora exis-tam também registros de sua atuaçãoprofissional anterior e outros materiais,como cópias fotográficas de documen-tos pessoais de natureza textual.

“Para cada grupo funcional sãoconstituídos dossiês organizados portipologia documental”, diz a coordena-dora do trabalho de organização do ar-quivo Carlos Chagas, Renata Borges. Se-gundo ela, a utilização de uma novametodologia de organização dos arqui-

gas e Evandro Chagas. Já como frutodessa organização, o Arquivo CarlosChagas foi consultado para outros pro-jetos que integram essas comemora-ções, como a concepção e montagemda exposição da Sala Carlos Chagas,inaugurada em 2009 no CasteloMourisco, na sede da Fiocruz, no Riode Janeiro, e a atualização da Biblio-teca Virtual Carlos Chagas (http://carloschagas.ibict.br). E isso sem con-tar os muitos trabalhos acadêmicosque utilizam o Arquivo Carlos Chagascomo fonte de pesquisa.

vos pessoais, além de significar uma mu-dança de arranjo dos documentos, per-mite uma maior visibilidade do acervo.

Trajetória deconstituição do acervo

Em meados da década de 1990,Carlos Chagas Filho doou à Fiocruzuma parte da documentação de seupai, Carlos Chagas, e de seu irmão,Evandro Chagas. O material foi orga-nizado pela COC como uma coleçãoparticular. Após o falecimento de Cha-gas Filho e com a iniciativa de seus fa-miliares de doar seu arquivo pessoal àFiocruz, verificou-se uma grande quan-tidade de documentos provenientesdos arquivos de seu pai e seu irmão,misturados aos seus papéis pessoais.Após a identificação desses documen-tos, ficou constatada a existência detrês arquivos pessoais distintos, comtrajetórias pessoais e profissionais bemdelimitadas, justificando, assim, umanova organização.

Em 2007, com o planejamento dasatividades para a comemoração doCentenário da Descoberta da Doençade Chagas, priorizou-se a organizaçãodos arquivos pessoais de Carlos Cha-

Carlos Chagas e odeputado mineiroJoão Penido duranteuma caçada (MinasGerais, 1913)

Chagas, o então diretor do Instituto OswaldoCruz (IOC), recebe visitantes norte americanosna varanda do Castelo de Manguinhos

A rainha Elizabethda Bélgica, acompa-nhada por Chagas,passeia pelo Castelo

Ao centro,Chagas e o

Nobel de FísicaAlbert Einstein

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Renata Fontoura

m 2006, o Brasil foi certifi-cado pela OrganizaçãoMundial da Saúde (OMS)por ter controlado a trans-missão da doença de Cha-

gas pelo barbeiro Triatoma infestans,espécie de vetor que havia se adaptadoao ambiente domiciliar de numerososestados do país. Porém, a adaptação aodomicílio e a transmissão por outras es-pécies de barbeiros, assim como meca-nismos alternativos, o que inclui atransmissão congênita e a transmissãovia oral pela ingestão de alimentos con-taminados - que ocorre principalmen-te na Amazônia -, ainda colocamdesafios para o combate à doença. Em2008, cerca de cem casos foram noti-ficados pelo Ministério da Saúde. A

O desafio datransmissãopor meiosalternativosProposta visa auxiliara identificação da origemde surtos em regiões comoa amazônica, onde háemergência de casosda doença de Chagas

Edoença já registra ocorrências em paí-ses como Portugal e Espanha, onde nãohá presença do vetor e a transmissãoocorreu por via transfusional, a partirde doadores originários de países ondea doença é endêmica.

O tema foi alvo de um estudo de-senvolvido pelo Instituto Oswaldo Cruz(IOC/Fiocruz) a partir da investigaçãode surtos causados por ingestão de ali-mento contaminado ocorridos no Pará,Ceará e Santa Catarina. Um dos pon-tos de partida para a atual linha de pes-quisa foi a emergência da doença naAmazônia, onde não há domiciliação

de triatomíneos e ainda existe a neces-sidade de aperfeiçoar as ferramentaspara vigilância epidemiológica.

Segundo a chefe do Laboratóriode Biologia de Tripanossomatídeos doIOC, Ana Maria Jansen, que coordenao estudo, a detecção da origem datransmissão da doença de Chagas naAmazônia é um grande desafio. “AAmazônia é um mosaico. Fatorescomo a existência de variados reser-vatórios silvestres, a composição dafauna e a perda da biodiversidade sãodecisivos para tornarem os ciclos detransmissão da doença complexos e

O pesquisador André Roque durante visita de campo no Pará(Foto: Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos/IOC)

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transmissão ocorreu unicamente pelaforma clássica”, sugere a pesquisado-ra, reforçando a importância dainvestigação dos meios alternativosde transmissão da doença.

Ingestão de alimentoscontaminados provocasurtos em diferentes

regiões do país

A transmissão por via oral, medi-ante a ingestão de alimentos conta-minados, não é fato recente naepidemiologia da doença de Chagas.Segundo o pesquisador André Roque,que faz parte da equipe liderada porAna Jansen, a primeira descrição des-te tipo de transmissão no Brasil ocor-reu há mais de três décadas, quandocasos em humanos foram atribuídos,

entre outras fontes, à contaminaçãode alimentos por fezes de insetos in-fectados e/ou por material de glându-la de cheiro de gambá. “Quase trêsdécadas se passaram até que novoscasos de infecção contraídas desta for-ma fossem relatados. Nos últimosanos, esses focos se tornaram mais fre-quentes em diferentes localidades dopaís”, ressalta o pesquisador.

Segundo dados da Secretaria deVigilância em Saúde do Ministério daSaúde, foram notificados, entre janeirode 2005 e agosto de 2007, 22 surtos

de doença aguda em vários estados.Na maioria deles, ficou comprovada aassociação da ocorrência de casos como consumo de alimentos in natura,como o caldo de cana, em SantaCatarina, no ano de 2005, e na Bahia,em 2006; a bacaba (palmeira nativada Amazônia), no Maranhão e noPará, também em 2006; e especial-mente o açaí, no Pará, em 2006 e2007, e no Amazonas, em 2007. Nototal, somam-se 170 casos registradose dez óbitos identificados.

A pesquisadora Ana Jansen des-taca que a via oral representa, entreanimais silvestres, uma das mais im-portantes formas de transmissão doT. cruzi. “Na literatura científica, en-contramos trabalhos que comprovama eficácia da transmissão pela ingestão

de alimentos contaminados por, pelomenos, algumas subpopulações doparasito. Esta forma de transmissão,aparentemente, facilita a entrada doT. cruzi no organismo de mamíferos”,diz Ana Jansen. “A presença de veto-res ou reservatórios infectados nasimediações das áreas de produção,manuseio ou utilização de alimentoscontaminados e a desinformação decomo evitar a contaminação são fa-tores de risco importantes para queocorra a transmissão aos humanos”,finaliza a pesquisadora.

temporais”, pontua. De acordo coma pesquisadora, em condições natu-rais, o Trypanosoma cruzi, parasitocausador da doença, infecta mais decem espécies de mamíferos de dife-rentes ordens. O parasito na naturezaexiste em diferentes populações dehospedeiros mamíferos, incluindo se-res humanos, animais silvestres, ani-mais domésticos e dezenas de espéciesde triatomíneos vetores.

“Desenvolvemos uma propostapara a utilização de animais peri-domicialiares como sentinelas no dire-cionamento de ações de vigilâncianessas localidades. A presença do T. cruziem porcos e cães pode funcionar comoum alerta para a intensificação de açõesde vigilância em locais onde há maiorrisco de transmissão ao homem”, ex-plica Ana Jansen. O trabalho, que con-tou com a participação de todos osintegrantes do laboratório, foi premia-do em 2008 na Reunião de PesquisaAplicada em Doença de Chagas e Reu-nião de Pesquisa Aplicada em Leishma-niose, realizada em Minas Gerais.“Além da vigilância, ações de educa-ção e a exploração sustentável do meioambiente são fundamentais para o con-trole da doença na região amazônica”,alerta a especialista.

Há um século, Carlos Chagas al-cançou um marco na história damedicina com a descoberta da doençaque leva seu nome. Com o avanço dastécnicas de investigação científica, noentanto, foi comprovada a existênciada infecção muito antes da identifica-ção da forma clássica de transmissãoda doença (essa forma clássica depen-de de que o T. cruzi seja eliminado sobreo indivíduo, o que acontece após adefecação do barbeiro – consequênciado repasto sanguíneo do inseto). “Oprimeiro registro de infecção humanapelo T. cruzi foi encontrado em tecidosde múmias andinas com aproximada-mente 9 mil anos. No Brasil, por meiode testes moleculares, o DNA do T. cruzifoi detectado em tecidos mumificadosde humanos com aproximadamente7 mil anos. Isso prova que o homem éinfectado pelo parasito desde sua che-gada às Américas. E não podemosafirmar que, naquele período, a

Ana Maria Jansene André Roque, que

investigam a ecologiado ciclo de transmis-

são da doença deChagas na regiãoamazônica (Foto:Gutemberg Brito)

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Pâmela Pinto

uando Carlos Chagas des-cobriu a doença que leva-ria seu nome, em 1909,deu início aos estudos sobretaxonomia de triatomíneos,

vetores da infecção. O trabalho foi con-tinuado pelo pesquisador Herman Lenta partir da década de 30 e por outrasgerações de cientistas. O resultado des-tes cem anos de pesquisa é evidencia-do pela atuação do Laboratório Nacio-nal e Internacional de Referência emTaxonomia de Triatomíneos do InstitutoOswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que guar-da um acervo inestimável, reunindo 24mil espécimes de barbeiros, do Brasil edo mundo. O centro se consolida comouma importante fonte de informaçõestaxonômicas e também atua na criaçãode barbeiros vivos, que são fornecidospara o desenvolvimento de pesquisasem diversas instituições.

Ao longo de 35 anos, Herman Lent(1911-2004), reconhecido como umdos maiores especialistas no tema, reu-niu 9 mil exemplares na coleção doIOC. Em 1998, a compra da coleçãodo pesquisador argentino Rodolfo Car-cavallo, incorporada ao patrimônio daFiocruz pelo preço simbólico de US$ 5mil, somou mais 15 mil exemplares debarbeiros ao acervo. Neste mesmo pe-ríodo, Carcavallo se mudou para o Bra-sil, onde colaborou por seis anos comas pesquisas do laboratório. O centro,

triatomíneos criados em laboratório.As colônias são mantidas em recipientede vidro revestido com cartolina escu-ra, que proporciona pouca luminosi-dade, simulando o habitat do inseto,e com fundo de papel filtro, para ab-sorver a umidade e dejetos. De acordocom a técnica de laboratório VandaCunha, um suporte de madeira, paraque o inseto possa se esconder, e umacobertura de náilon, para possibilitar aventilação, completam a estratégiapara a criação dos barbeiros.

Todos os barbeiros estão livresde contaminação pelo parasitoTrypanosoma cruzi, o que exige cui-dados que começam na coleta, reali-zada em campo, quando os insetos sãolevados para o laboratório e têm seusovos retirados para dar início a uma novacriação. “Hoje são conhecidas 141 es-pécies de barbeiros e a maioria está re-presentada aqui. Por isso, fornecemosinsetos vivos para pesquisas realizadasem toda a América. Para abastecer es-tas demandas, desenvolvemos contí-nuas pesquisas de campo para coletade exemplares de diversas espécies emtodo o país”, pontua Jurberg.

Brasil tem a maiscompleta coleçãode vetores dadoença deChagas do mundo

Q

Acervo com 24 milexemplares, iniciado porCarlos Chagas em 1909,é a principal referência paracientistas que investigam adoença no país e no exterior

em atividade ininterrupta, abriga hojea terceira e a quarta gerações de espe-cialistas, conservando a coleção inter-nacional de barbeiros.

O banco de dados de triatomíneosfoi consolidado com depósitos perma-nentes de barbeiros, criando-se novospadrões de espécies para demais estu-diosos. Os vetores são classificados,catalogados e numerados para seremdisponibilizados, em seguida, aos pes-quisadores brasileiros e estrangeiros.“Quando somos solicitados por algu-ma instituição ou pesquisador, envia-mos imagens, além de recebermos avisita de pesquisadores de todo o país”,informa o entomólogo José Jurberg,atual coordenador do Laboratório Na-cional e Internacional de Referência emTaxonomia de Triatomíneos. Ele inves-tiga os triatomíneos há 50 anos e, comoaluno de Lent, teve a oportunidade deassinar com ele e Carcavallo a autoriado Atlas dos vetores da doença deChagas nas Américas, publicado emtrês volumes, em 1998.

Além da coleção internacionalcom exemplares de barbeiros, o IOCconta com a maior coleção viva de

O pesquisador José Jurberg examina exemplares da coleção de barbeiros

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Marcelo Garcia

cardiopatia é a causa demortalidade mais impor-tante relacionada à doen-ça de Chagas e leva àmorte mais de 4 mil brasi-

leiros por ano, segundo dados do Mi-nistério da Saúde. Um candidato amedicamento pode impedir a de-generação cardíaca ligada à infec-ção pelo Trypanosoma cruzi.Após o sucesso dos testes invitro e com animais, o can-didato a medicamento ini-cia a fase de ensaios clí-nicos com os primeirospacientes voluntários. Anova estratégia terapêu-tica foi desenvolvida noInstituto Oswaldo Cruz(IOC/Fiocruz), mesmainstituição onde CarlosChagas atuou, há exatoum século, quando desco-briu a doença que hoje levaseu nome.

Atualmente, há somentedois medicamentos disponíveispara o tratamento da doença deChagas e nenhum deles atua sobrea cardiopatia. Baseado nas proprie-dades antioxidantes do selênio, omedicamento desenvolvido pelo IOC,em parceria com o Instituto de Pes-quisa Clínica Evandro Chagas (Ipec/Fiocruz) e com outras unidades daFundação, pode aumentar a expec-tativa e a qualidade de vida dos paci-entes. Se tiver seus efeitos compro-vados, o medicamento poderá serproduzido em escala pela própria Fio-

as taxas de evolução da cardiopatianos pacientes”. Para a especialista,trata-se de um passo importante nocombate à doença de Chagas. “Se ostestes forem bem sucedidos, podere-mos diminuir muito a mortalidade eas limitações associadas à cardiopatiachagásica”, destaca.

Tratamentoserá combinado comoutras medicações

O tratamento, no entanto, aindanão representa a cura, pois não elimi-na o parasito do organismo do hos-pedeiro. “Nossos estudos anterioresmostraram que o selênio não reduz ataxa de reprodução do T. cruzi no or-ganismo”, esclarece Tania. “O idealseria combinar esta estratégia comoutro medicamento, capaz de elimi-nar o parasito, criando um coquetelpara o tratamento da doença de Cha-gas. No entanto, esses produtos ain-

da estão em fase de desenvolvi-mento, em diversas partes do

mundo”.A expectativa para a

possível aplicação do novomedicamento no SUS égrande, mas Tania expli-ca que a pesquisa aindaprecisa cumprir etapasfundamentais. “Os testesclínicos serão realizadosnos próximos cinco anos,quando poderemos ana-lisar a eficácia do trata-mento e seus possíveis

efeitos colaterais”, ponde-ra. “Somente se apresentar

bons resultados nesse período,poderemos disponibilizar o selênio

para os pacientes crônicos atendi-dos pelo SUS”.

Os voluntários que participarãodo estudo são pacientes com Chagasatendidos no Ipec e que já estão nafase crônica da doença, com altera-ções leves e moderadas da atividadecardíaca. Eles tomarão uma dose pordia do medicamento. Além do IOC edo Ipec, outras três unidades da Fio-cruz estão envolvidas na pesquisa: aEscola Nacional de Saúde Pública(Ensp), o Instituto de Tecnologia em

A

cruz, para atender a todo o SistemaÚnico de Saúde (SUS).

O novo medicamento foi desen-volvido a partir de estudos in vitro e invivo realizados no Laboratório de Ino-vações em Terapias, Ensino e Biopro-dutos do IOC. A pesquisadora TaniaAraújo-Jorge, chefe do laboratório eatual diretora do IOC, explica que essaestratégia de tratamento tem comoobjetivo repor no organismo de paci-entes chagásicos os níveis de selênio,elemento com importante papelantioxidante. “Testes anteriores emlaboratório e com modelos animaismostraram uma clara relação entre odesenvolvimento da cardiopatia cha-gásica e a detecção de baixos níveisde selênio em pacientes infectadospelo T. cruzi”, explica.

Faltando apenas algumas licençasdo Ministério da Saúde para o iníciodos testes clínicos, os pesquisadoresestão otimistas. “Em laboratório, a re-posição dos níveis de selênio obteveótimos resultados na interrupção doprocesso de deterioração do coração”,afirma Tania. “Nossa previsão para oestudo clínico é reduzir em até 50%

Apostano selênioNovo medicamentoque poderá impedir danosao coração de portadoresda doença de Chagascomeçará a ser testadonos primeiros pacientes

T. cruzi

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Imunobiológicos (Biomanguinhos) e oInstituto Nacional de Controle deQualidade em Saúde (INCQS).

Selênio, fundamentalpara a vida

A doença de Chagas está associ-ada, em geral, à pobreza, o que tor-na o desenvolvimento do novo trata-mento ainda mais importante. “Oselênio é reposto no organismo pormeio da alimentação, mas a maioriados pacientes chagásicos vive em con-dições de pobreza e não se alimentabem, o que tende a agravar o desen-volvimento da cardiopatia, que impe-de essas pessoas de trabalhar”, afir-ma Tania. “O medicamento atuarácorrigindo esse déficit, permitindo aação plena dos mecanismos antioxi-dantes do organismo, o que espera-mos que impeça a degeneração docoração associada à doença”.

O selênio é um elemento funda-mental para a vida, por estar envol-vido com diversos processos antioxi-dantes no organismo. Em dosesmaiores do que a do novo medica-mento, ele já é utilizado para trataroutras doenças, como o câncer. Apesquisadora explica que a dosagemmais baixa se deve à duração do tra-tamento. “O selênio pode se tornartóxico, mas somente em quantidadespelo menos quatro vezes maiores doque a do novo medicamento”, argu-menta Tania. “Optamos por uma dosemais baixa porque o tratamento é lon-go: o paciente chagásico deverá con-tinuar tomando o medicamento paraimpedir a possível evolução da doen-ça”, completa.

Marco para a saúdepública brasileira

Além de um significativo avançono combate à doença de Chagas, oestudo é um marco importante parao desenvolvimento de pesquisastranslacionais, que buscam gerar apli-cações para a saúde pública a partirde resultados observados na pesquisabásica. “Em geral, os ensaios clínicosrealizados no Brasil utilizam produtosde fabricação estrangeira”, afirmaTania. “Realizar um ensaio clínico com

um produto produzido pela Fiocruz apartir de estudos básicos realizados naprópria Fundação é mais um passopara o desenvolvimento da pesquisatranslacional no Brasil”, ressalta.

O primeiro lote do medicamentoque será utilizado nos testes clínicosjá foi produzido por Biomanguinhos eaguarda apenas a liberação da Agên-cia Nacional de Vigilância Sanitária(Anvisa) para o início do tratamento.Para a pesquisadora, produzir o fár-maco na própria Fiocruz permitirá quetoda a fabricação seja controlada.“Não havia no mercado brasileiro ne-nhum produto disponível na dosagemque queríamos utilizar e com registrona Anvisa”, comenta a pesquisadora.“Ao fabricarmos o produto, podemosgarantir a qualidade e a continuidadeda produção, ficamos livres da depen-dência externa e poderemos produzi-lo em escala rápida e suficiente paraabastecer o SUS, caso seja aprovadonos testes clínicos”.

Um ciclovicioso perverso

O mal de Chagas é consideradapela Organização Mundial da Saúde(OMS) como uma doença negligencia-da e está muito presente nos paísesmais pobres. A entidade internacionalestima que só na América Latina exis-tam entre 12 e 14 milhões de pessoasinfectadas pelo T. cruzi. No Brasil, esti-ma-se em 2 milhões o número de pa-cientes crônicos – 600 mil com com-plicações cardíacas ou digestivas quelevam a óbito 5 mil pessoas por ano.Em valores absolutos, o número de bra-sileiros que morrem por doença deChagas é similar ao dos que morrempor tuberculose e dez vezes superioràs mortes causadas por esquistossomo-se, malária, hanseníase ou leishmanio-se. A doença afeta indivíduos em suafaixa etária mais produtiva – dos 30 aos60 anos – e tem forte impacto na ca-pacidade de trabalho e geração de ren-da. Um ciclo vicioso perverso em que apobreza é determinante social da do-ença e a doença gera mais pobreza.Apenas as diarreias infecciosas e a epi-demia de Aids são mais impactantesque a doença de Chagas.

Foto Hematofagia em perspectiva,segunda colocada no concursoCentenário da descoberta dadoença de Chagas: um toque dearte (Autoria: Gutemberg Brito)

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Renata Moehlecke

rinta pacientes terminaiscom doença de Chagasque estavam à espera deum transplante cardíacoforam submetidos, no

Brasil, a um outro e novo tipo de trans-plante: o de células-tronco. O proce-dimento experimental – que visavaauxiliar o combate a essa doença ain-da sem cura e cujos medicamentoshoje disponíveis têm alta toxicidade –chamou a atenção por seu índice desucesso. Mesmo não sendo 100% efi-caz, o tratamento, realizado de 2003a 2006, fez com que a doença nosníveis 3 ou 4 (mais avançados)regredisse para os níveis 1 ou 2 namaioria dos pacientes, que voltarama ter uma vida ativa e normal, semprecisar de um transplante de cora-ção imediato, procedimento ao qualmuitos não têm acesso. Com basenesses resultados, sobretudo quandose leva em consideração que, casonada tivesse sido feito, não haveria es-perança de sobrevida para nenhumpaciente, mais 200 pacientes já foramsubmetidos a esse tipo de transplan-te. É o que conta o médico imunolo-gista Ricardo Ribeiro dos Santos, daFiocruz Bahia, que está à frente deuma rede de 16 instituições nacionaisque estudam o uso de células-troncono tratamento da doença de Chagas.

“Fizemos todo um trabalho expe-rimental e constatamos que as célu-las-tronco reduzem a inflamação queexiste no coração dos chagásicos, di-minuem a fibrose (aquela cicatriz queenvolve o músculo cardíaco dos paci-entes), melhoram a função do cora-ção enquanto bomba e melhoram

também as alterações do eletrocardi-ograma”, explica Santos. Em 30% doscasos crônicos de doença de Chagas,o aumento das complicações cardía-cas levam os indivíduos à morte emdez anos, sendo a média de sobrevi-da de apenas um ano para quem játem a doença nos níveis 3 ou 4. “Ain-da não sabemos quais serão os resul-tados dos testes com esse novo gru-po de 200 pacientes: metade deles foisubmetida à terapia com as células ea outra metade recebeu placebo”,conta o pesquisador. “Até o final des-te ano apresentaremos todos os da-dos obtidos, que esperamos serembastante positivos”.

Em julho de 2009, a pesquisa comcélulas-tronco no Brasil ganhará maisum auxílio de grande porte: será inau-gurado no Hospital São Rafael, emSalvador, em parceria com a FiocruzBahia, o maior e mais completo labo-ratório de terapia celular e biotecno-logia do país. O espaço terá uma áreaespecial para preparação de células-tronco e, com essa infraestrutura, serápossível avançar nos estudos experi-mentais e também na aplicação decélulas-tronco em pacientes não sóchagásicos, mas também nos que so-frem de doença crônica do fígado,esclerose múltipla e epilepsia, entreoutras. Ainda em 2009 devem come-çar, no novo laboratório, os ensaiosde uso de células-tronco em pacien-tes vítimas de trauma raquimedularem decorrência de acidente de trânsi-to ou bala perdida, por exemplo. Nomomento, os pesquisadores aguar-dam a inauguração do local, pois jáobtiveram a autorização do ConselhoNacional de Ética em Pesquisa (Conep)para realizar esse estudo clínico.

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Célulasda esperançaApós bons resultados nos primeiros testes, mais 200 pacientessão submetidos ao tratamento experimental com células-tronco

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Em relação à terapia celular contraa doença de Chagas, o procedimentose inicia com os médicos espetandouma seringa na bacia do paciente easpirando material da medula óssea,região esponjosa que existe dentro doosso e que é rica em células-tronco. Olíquido coletado é, então, separado porcentrifugação, de modo a se obter umafração concentrada de células-tronco.Com o auxílio de um cateter (pequenocano de plástico) inserido pela artériafemoral (na virilha) e conduzido até ocoração, os médicos injetam células-tronco em cada uma das três coronáriasdo paciente. Todo o procedimento de-

mora cerca de quatro horas. Como sãoas próprias células do indivíduo que,retiradas de um lado, são depositadasem outro, anula-se o risco de rejeiçãoe de efeito colateral. Um mês após otransplante, os pacientes tomam, du-rante cinco dias seguidos, injeções deGCSF, um hormônio que mobiliza ascélulas-tronco da medula óssea e as es-timula a circular no sangue. No entan-to, a terapia celular não dispensa osremédios para o controle da doença.

“Os pacientes têm consciênciade que esse tipo de transplante nãocura a doença, mas proporcionamelhora da função cardíaca e do

estado clínico, aumentando o perío-do de sobrevida e a qualidade devida”, afirma Santos. “O novo labo-ratório será o primeiro no país a darcondições de se produzir células-tronco em quantidade experimentale assegurará a caracterização des-sas células. Caso os resultados doexperimento sejam bastante positi-vos, esse tipo de terapia de trans-plante poderá ser incorporado aoSistema Único de Saúde (SUS) e es-tendido, assim, aos cerca de 6 mi-lhões de brasileiros que sofrem coma doença de Chagas e que necessi-tarem desse tipo de intervenção”.

Brasil testa células-tronco (em verde)no combate à doença de Chagas

(Foto: Arquivo CPqGM/Fiocruz)

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Aquipulsa umnovocoração

Isis Breves

primeiro transplante de co-ração para paciente comChagas no Estado do Riode Janeiro foi realizado noinício deste ano por meio

de uma parceria entre o Instituto dePesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec/Fiocruz) e o Instituto Nacional deCardiologia (INC), conhecido comoHospital de Laranjeiras. Uma pacientecom Chagas, em tratamento Ipec des-de 2003, recebeu um coração novo, oque significa uma média de dez anosde sobrevida com qualidade. Ela foisubmetida ao transplante cardíaco noINC e a operação foi considerada umsucesso pela equipe médica.

Apesar do pleno tratamento commedicamentos e do uso de aparelhocardiodesfibrilador (marcapasso), adoença evoluiu e a única opção dapaciente era o transplante. Ainda noIpec, ela teve toda a assistência clíni-ca, sendo internada nesta unidade edepois transferida para o INC, ondeficou cerca de 40 dias na fila de es-pera para receber o coração de umdoador. Como o caso era de urgên-cia, ela foi inscrita com prioridadezero para o transplante.

Segundo a diretora do Ipec, ValdiléaVeloso, esse transplante foi resultado detodo um trabalho de pesquisa clínicaaplicada à assistência e ao ensino. “Aatuação do Ipec se pauta pela busca de

alternativas para aumentar a sobrevidacom qualidade de pacientes com doen-ças infecciosas, por meio da pesquisaclínica”, afirma a diretora. No Ipec, ospacientes com Chagas são acompanha-dos no ambulatório e, se for constata-da a necessidade de um transplante decoração, eles são preparados e encami-nhados para o INC.

“A resposta de pacientes chagá-sicos ao transplante vem sendo igualou até melhor ao de um transplanta-do cardiopata comum, sem a infec-ção pelo parasito Trypanosoma cruzi.A única diferença é manter a vigilân-cia com exames de diagnóstico paraidentificar o parasito circulante no san-gue e tomar as medidas necessárias”,explica a cardiologista Andréa Silves-tre de Sousa, especialista do Ipec quetambém faz parte da equipe de trans-plantes do INC. A mortalidade dospacientes com Chagas seria elevadasem a alternativa do transplante, pro-O

Célula muscular cardíacainfectada pelo T. cruzi(Foto: Arquivo IOC/Fiocruz)

cedimento que pode levar a um au-mento de 80% na sobrevida com qua-lidade desses pacientes. De acordocom Andréa, mesmo com o coraçãonovo, existe o risco da evolução clíni-ca da doença de Chagas. Entretanto,há tratamentos para diminuir esse ris-co. “No Ipec, oferecemos assistênciaaos pacientes antes, durante e após otransplante”, destaca a cardiologista.

Após o êxito do primeiro trans-plante, um segundo paciente já foisubmetido com sucesso ao mesmoprocedimento no Rio, graças à par-ceria entre Ipec e INC, que já foi es-tendida para a área de ensino, alémda pesquisa clínica. E um terceiro pa-ciente do Ipec aguarda a sua vez derealizar a operação. “O transplantede coração para um portador da do-ença de Chagas é uma perspectivade qualidade de vida, hoje possívelde se oferecer no Estado do Rio”,concluiu Andréa.

Paciente com Chagas faztransplante inédito no Rio deJaneiro e abre caminho para queoutros portadores se beneficiemdo tratamento no estado

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Isis Breves

nquanto estudavam asleishmanioses em cães nomunicípio do Rio de Janei-ro, pesquisadores do Ins-tituto de Pesquisa Clínica

Evandro Chagas (Ipec/Fiocruz) encon-traram, em fragmentos de pele ínte-gra dos animais, um parasito do gê-nero Trypanosoma. Na tentativa deidentificar este protozoário, foram re-alizadas análises morfobiológicas, bi-oquímicas e moleculares, mas, comcaracterísticas únicas, o parasito nãose encaixou em nenhuma espécie dogênero Trypanosoma previamente co-nhecida e descrita na literatura. As-sim, os pesquisadores concluíram quese tratava de uma nova espécie, à qualsugeriram o nome de Trypanosomacaninum. “Esta espécie está deposi-tada na coleção do Ipec e está sendoestudada por outras técnicas”, expli-ca a coordenadora do estudo, FátimaMadeira, do Laboratório de Vigilânciaem Leishmanioses.

O trabalho foi reconhecido pelacomunidade científica internacional erendeu um artigo, publicado em fe-vereiro deste ano, no periódico Para-sitology, de alto impacto na área. “Aimportância da identificação dessenovo parasita é enorme no âmbito dasaúde pública”, destaca Fátima. “Nomunicípio do Rio de Janeiro, não seconhece a presença de outros tripa-nossomatídeos, além dos parasitos dogênero Leishmania em cães. A circu-lação do novo agente poderá trazerimpactos para o diagnóstico da leish-maniose visceral canina nessa região”,explica a pesquisadora. Fátima lembratambém que a leishmaniose visceral éuma zoonose grave, de alta mortali-dade, e os cães, na cadeia de trans-missão, atuam como importantes re-servatórios do parasito causador dadoença. Por recomendação do Minis-tério da Saúde, os animais com diag-nóstico sorológico positivo devem sersacrificados.

Segundo a pesquisadora, a novaespécie T. caninum foi isolada de um

E

cão saudável, em 2003. Inicialmen-te, acreditou-se que tal isolamentofosse um fato ocasional. Entretan-to, outros isolados foram sendo ob-tidos nessa região, o que levou ospesquisadores a pensarem em umpossível ciclo entre os cães no muni-cípio do Rio de Janeiro. “Um fato in-teressante observado foi o isolamen-to desse parasito exclusivamente emfragmentos de pele, o que não é co-mum entre os parasitos desse gêne-ro. O novo protozoário, aparente-mente, não causa doença nosanimais, mas a sua circulação, emsobreposição às áreas de ocorrênciade leishmanioses, poderá confundiro diagnóstico dos cães”.

Agora, amostras de outros esta-dos estão sendo analisadas, com oobjetivo de avaliar a presença do pro-tozoário T. caninum em diferentes re-giões do Brasil. O trabalho vem sen-do realizado no Laboratório deVigilância em Leishmanioses, em par-ceria com o Laboratório de PesquisaClínica em Dermatozoonomes emAnimais Domésticos, ambos do Ipec/Fiocruz. “Mais estudos são necessá-rios para se conhecer os elementosque possam contribuir para a propa-gação e a disseminação desse para-sito”, recomenda Fátima.

Um novo TrypanosomaPesquisadores identificam em cães uma espéciedo protozoário até então desconhecida

A pesquisadora Fátima Madeiraestá à frente dos estudos

sobre o novo parasito

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Isis Breves

eterminar a incidência deacidente vascular encefá-lico isquêmico (AVEi) car-dioembólico (um tipo dederrame cerebral) em pa-

cientes com problemas cardíacos de-correntes da doença de Chagas e defi-nir estratégias de prevenção: estesforam os objetivos de um estudo iné-dito desenvolvido pelo Instituto de Pes-quisa Clínica Evandro Chagas (Ipec/Fi-ocruz) e ganhador do 4º Prêmio ABCde Publicação Científica. A pesquisa, re-alizada pela cardiologista Andréa Silves-tre de Sousa, ficou em primeiro lugarna categoria Cardiologia Geral do con-curso, que premiou os melhores traba-lhos publicados em 2008 no periódicoArquivos Brasileiros de Cardiologia.

“O AVEi cardioembólico é umacomplicação frequente e, muitas vezes,incapacitante da doença de Chagas. Atéentão não havia nenhum estudo quedefinisse sua incidência e os fatores derisco em pacientes com doença de Cha-gas”, explica Andréa. Foram incluídosno estudo cerca de mil pacientes comdoença de Chagas admitidos no Ipecentre 1990 e 2002. Todos os participan-tes foram acompanhados por, pelomenos, um ano, sendo o tempo médiode seguimento de 5,5 anos. Durante oestudo, 31 pacientes apresentaram AVEicardioembólico, o que significa uma in-cidência de 3% (ou 0,56% ao ano).

Todos foram submetidos ao mes-mo protocolo de avaliação clínica eepidemiológica, além de realização deeletrocardiograma, radiografia de tó-rax e ecocardiograma. Eles forammantidos em acompanhamento am-bulatorial utilizando medicações espe-cíficas direcionadas a sintomas ou àpresença de cardiopatia.

A partir de um método chamadoregressão de Cox, Andréa identificouquatro variáveis independentes asso-ciadas ao AVEi cardioembólico. Essasvariáveis foram idade maior que 48anos e outras três relacionadas a com-plicações do sistema cardiovascular(cujos nomes técnicos são disfunçãosistólica, aneurisma apical e alteraçãoprimária da repolarização ventricular).

A pesquisadora, então, desenvol-veu um escore de risco de AVEi aplica-do a cada paciente do estudo: o indiví-duo recebia dois pontos se apresentassedisfunção sistólica e um ponto paracada uma das outras variáveis, poden-do obter um escore de risco de atécinco pontos.

Combinando os dados, Andréaobservou que, quanto maior o esco-re de risco, maior a incidência de AVEicardioembólico. Assim, pacientescom quatro ou cinco pontos apresen-tavam incidência de AVEi cardioem-bólico superior a 4%, enquanto aque-les com zero ou um ponto tinhamincidência inferior a 1%.

A cardiologista estudou, ainda, asrespostas dos pacientes a dois tipos detratamento profilático contra AVEi car-

dioembólico: um com o medicamentovarfarina e outro com o medicamentoácido acetilsalicílico (AAS). De acordocom os resultados, a varfarina estariaindicada aos pacientes com quatro oucinco pontos no escore de risco paraAVEi cardioembólico, enquanto os pa-cientes com três pontos poderiam re-ceber varfarina ou AAS. Aos pacientescom dois pontos, por sua vez, seria re-comendado o AAS ou nenhuma profi-laxia. Já os pacientes com zero ou pon-to não necessitariam de profilaxia.

“Os resultados da pesquisa indicamque novas estratégias de prevenção doAVEi cardioembólico sejam direciona-das às particularidades dos chagásicos,caracterizados por elevado potencial decomplicações embólicas”, destacaAndréa. “A profilaxia seria com as mes-mas drogas utilizadas nos pacientes semChagas; a seleção dos candidatos à pre-venção é que se diferencia”, completaa pesquisadora. Intitulado Estratégias deprevenção do acidente vascular ence-fálico cardioembólico na doença deChagas, o artigo premiado de Andréaé parte de sua tese de doutorado, de-fendida na Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ).

Em busca daprevençãoPesquisa premiada buscanovas estratégias para evitarcomplicações cardíacas empacientes com Chagas

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A cardiologista Andréa Silvestre conversa com um paciente no ambulatório do Ipec

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“CarlosChagas seorgulhariade seusseguidores”O especialista João Carlos PintoDias destaca os avanços noenfrentamento da doença, maslembra que é preciso sustentara vigilância e dar coberturaadequada aos pacientes

utor de centenas de trabalhos científicos e condecorado comdezenas de prêmios e títulos, entre os quais a Medalha daOrdem do Mérito Médico e Científico Carlos Chagas, conce-dida pelo Ministério da Saúde, e a Ordem Nacional do Méri-to Científico, concedida pela Presidência da República, o pes-

quisador João Carlos Pinto Dias é um dos maiores especialistas em doençade Chagas hoje em atividade. Médico especializado em doenças infeccio-sas e parasitárias, com mestrado e doutorado em medicina tropical, está àfrente do Posto Avançado de Estudos Emmanuel Dias, ligado ao Laborató-rio de Biologia de Triatomíneos e Epidemiologia da Doença de Chagas doCentro de Pesquisa René Rachou, unidade da Fiocruz em Minas Gerais.

Herdeiro de Emmanuel Dias (1908-1962) – protagonista das primeirascampanhas para erradicar a doença de Chagas do país, destacando-se naspesquisas sobre a epidemia na cidade de Bambuí (MG), na década de 1940–, João Carlos levou adiante o legado do pai: deu continuidade aos estudosem Bambuí, onde, atualmente, a infestação pelo barbeiro é zero, e seguecom um trabalho rigoroso de vigilância epidemiológica. Em entrevista à Re-vista de Manguinhos, ele fala sobre as conquistas e os desafios após cemanos de conhecimento sobre a doença de Chagas.

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Quando, como e por que o se-nhor se interessou e ingressou naspesquisas sobre doença de Chagas?

João Carlos Pinto Dias (JCPD):Meu interesse vem desde acadêmico demedicina, nos anos 1960. Meu pai erauma grande referência e eu desejavasegui-lo. Minha faculdade, a Universi-dade de São Paulo (USP) de RibeirãoPreto, era altamente voltada para o tema,com importantes professores e muita pes-quisa sobre a doença de Chagas.

Embora descoberta há cemanos, a doença de Chagas perma-nece um desafio à saúde pública.Na sua opinião, o que é precisopara enfrentar este problema?

JCPD: Basicamente, no Brasil, te-mos dois desafios atuais: manter con-tínua e eficiente vigilância sobre osinsetos vetores (tarefa dos municípios)e sobre os bancos de sangue (sistemaexemplar no país); e cuidar dos cercade 2 milhões de já infectados que con-traíram a doença há anos. Uma tercei-ra perspectiva será a de diagnosticar etratar precocemente os casos que têmaparecido de transmissão oral. É ne-cessário pesquisar novas drogas paratratamento específico, bem como mar-cadores de cura e de evolução.

O que há para se comemorarno centenário da descoberta da do-ença de Chagas? Nos últimos anos,quais foram os principais avançosno controle desta doença?

JCPD: Temos uma linda história acelebrar, com a descoberta genial; oequacionamento do controle, iniciadonos anos 1950; o principal transmissoreliminado do país (recebemos acertificação em 2006); e mais de 99%do sangue transfundido sob controle.Nestas celebrações, entretanto, temosque moderar o ufanismo e encarar osdesafios de sustentar a vigilância e darcobertura adequada aos pacientes.

Como o senhor avalia a intro-dução de novas tecnologias, comoa genômica, a proteômica e até ascélulas-tronco, nas pesquisas so-bre doença de Chagas?

JCPD: Acho pertinentes todas es-sas iniciativas, na perspectiva de me-lhor conhecimento do parasito, de suas

“espertezas” e suas vulnerabilidades.Células-tronco são bem-vindas, princi-palmente, para com pacientes de car-diopatia avançada, com grande destrui-ção do miocárdio. Vamos esperar pelosresultados de médio prazo, torcendopor boa recuperação desses pacientes.

E quanto à formação médica?Os novos médicos estão prepara-dos para prevenir, diagnosticar etratar a doença de Chagas?

JCPD: De modo geral, a opiniãode especialistas reunidos na Argentinae no Brasil é que tem havido menorinteresse por doença de Chagas noscurrículos universitários, o que precisaser revertido. Há esforços nesse senti-do, estimulados pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). A doen-ça tem perdido sua visibilidade em facedo desaparecimento de casos agudos,embora restem os por via oral, e temperdido também prioridade frente aoutros agravos mais agudos e urbanos,como a dengue, por exemplo.

Qual sua avaliação sobre o tra-balho desenvolvido pela Iniciati-va de Medicamentos para Doen-ças Negligenciadas (DNDi, na siglaem inglês), entre as quais se en-contra a doença de Chagas?

JCPD: Acho muito importante. Sãoparceiros novos e muito atuantes paraos governos e instituições de apoio,como Organização Mundial da Saúde(OMS) e Opas. Destacam-se, particu-larmente, os esforços por liberação denovas drogas, como o posaconazol, eas combinações de fármacos para o tra-tamento específico, assim como o tra-tamento experimental em maior esca-la para pacientes jovens e com formaindeterminada da doença.

Em 2006, o Brasil recebeu certi-ficado internacional da interrupçãoda transmissão vetorial da doençade Chagas pelo Triatoma infestans,principal vetor da doença. Contu-do, a transmissão ainda acontece,por meio de outras espécies vetorase de vias alternativas, tais como aingestão de alimentos contamina-dos pelo parasito. O senhor acredi-ta que é possível o país eliminartodas as formas de transmissão eerradicar a doença de Chagas?

JCPD: Erradicar, naturalmente quenão, pois a circulação do parasito emâmbito silvestre é muito grande e disper-sa. Eliminar a transmissão por transfu-são de sangue, evidente que sim, combelo exemplo de nosso país. Mantervetores secundários sob vigilância conti-nuada é absolutamente viável, na depen-dência de ações nos municípios e esta-dos. Esse trabalho é, por natureza,permanente. A transmissão por via oralé, por natureza, imprevisível, merecen-do atenção constante, diagnóstico emanejo a partir de casos índices e de sis-temas de vigilância sobre doenças febris.

A expertise que o Brasil já acu-mulou em relação à doença de Cha-gas tem sido exportada para outrospaíses que sofrem com esta doença?

JCPD: De modo geral, o Brasil temsido referência em pesquisas e serviços(controle, manejo de pacientes, diagnós-tico, tratamento e investigações básicas).Há uma comunidade científica muitoatuante e colaborativa nesse sentido.Boas pesquisas têm também ocorridoem outros países, como Argentina,Venezuela, Estados Unidos e França. Naschamadas iniciativas intergovernamen-tais de controle, pesquisadores brasilei-ros sempre são convocados para super-visão e referência. E também temos asnossas revistas científicas, com excelen-te produção em doença de Chagas, aolado de reuniões científicas de grandeporte e impacto, como a Reunião Anu-al de Pesquisa Aplicada em Doença deChagas, realizada ininterruptamente emUberaba, há 25 anos, com grande aflu-ência de colegas estrangeiros. CarlosChagas, que iniciou tudo isso e quepunha prioridade no enfrentamento dadoença, certamente se orgulharia deseus seguidores.

“ “Temos que encararos desafios de

sustentar avigilância e dar

cobertura adequadaaos pacientes

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Pamela Lang

ara celebrar o centenárioda descoberta da doençade Chagas, a Fiocruz ela-borou um calendário es-pecial de eventos para

2009. As comemorações incluem ainauguração de uma exposição, quepretende recuperar a história do estu-do da doença, e até uma expediçãopara revisitar os locais que marcarama descoberta, em Minas Gerais. Ou-tro evento de peso será o SimpósioInternacional do Centenário da Des-coberta da Doença de Chagas, queserá realizado de 8 a 10 de julho, noRio de Janeiro.

Reunindo os maiores especialis-tas em doença de Chagas do Brasil edo mundo – serão 27 convidados in-ternacionais provenientes de novepaíses e 48 convidados nacionais re-presentando oito estados brasileiros–, o simpósio se destina a estudan-tes, professores, pesquisadores e pro-fissionais de saúde de modo geral. Oevento tem como objetivo contribuirpara o conhecimento da doença esuas formas de prevenção. A progra-mação inclui palestras e mesas-redon-das sobre temas que vão contemplardesde a dimensão histórica até o co-nhecimento científico atual e os de-safios da doença de Chagas.

“Convidados de renome nas dife-rentes áreas de conhecimento da do-ença de Chagas nos permitirão fazerdeste evento um marco internacionalna identificação e delineamento depropostas que possam contribuir para

Calendário especialpara as comemoraçõesdo CentenárioSimpósio, exposição, lançamento de livros e ópera celebramos cem anos da descoberta da doença de Chagas

Po preenchimento das atuais lacunasrelacionadas ao conhecimento da en-fermidade”, comenta a coordenado-ra do Programa Integrado de Doençade Chagas e membro da ComissãoOrganizadora do Simpósio Internaci-onal, Maria de Nazaré Soeiro. “Osimpósio também será produtivo naproposição de medidas efetivas paraa terapia e manutenção de políticasde controle da doença”, acrescenta.

Como parte da programação dosimpósio, será lançado o livro Clássi-cos em doença de Chagas - históriase perspectivas no centenário da des-coberta, que reúne 15 artigos científi-cos consagrados sobre o assunto, co-mentados por especialistas da área. Aedição, em três idiomas (português,inglês e espanhol), representará umvalioso acervo documental sobre adoença de Chagas para a comunida-de científica, podendo ser utilizado emescolas e universidades.

O simpósio terá, ainda, o lança-mento da cartilha Carlos Chagas: aciência para combater doenças tro-picais, sobre as características da do-ença, seu impacto social, o processocientífico que levou à sua descrição eperspectivas futuras de combate,além do trabalho e da vida de CarlosChagas. Disponível em português eespanhol, a cartilha é direcionada aogrande público.

Também está previsto para esteano o lançamento do álbum fotográ-fico Carlos Chagas, sobre a trajetóriado cientista. Com edições em portu-guês e inglês, a obra será compostapor um conjunto de imagens – mui-

tas delas inéditas – pertencentes aoacervo da Casa de Oswaldo Cruz(COC/Fiocruz). “O objetivo do álbumé aliar informação de qualidade comrefinamento gráfico e editorial, paraatrair um público amplo, diversificadoe interessado na história do Brasil”,explica a coordenadora de Eventos daFiocruz, Lisabel Klein, uma dasorganizadoras do centenário. “Pormeio de imagens da vida e da obra deCarlos Chagas, o público poderá co-nhecer aspectos de uma época emque a ciência e a medicina foram ele-mentos decisivos para o desenvolvi-mento do país e da cultura brasilei-ra”, completa.

Já entre os eventos que encerra-rão as comemorações, destaca-se aópera Carlos Chagas, com apresenta-ções previstas em outubro, no Paláciodas Artes de Belo Horizonte. O espe-táculo será ambientado em locais quemarcaram a trajetória do cientista bra-sileiro, como o sertão mineiro e aAmazônia. A coordenação é de Hele-na Severo, com direção cênica deMoacyr Góes e música do maestro Sil-vio Barbato, desaparecido em junhodeste ano, quando viajava no voo 447da Air France, do Rio para Paris.

Informaçõessobre o simpósio

www.fiocruz.br/chagas100/simposio.php.

Programação completado Centenário:

www.fiocruz.br/chagas100

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