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A ÉTICA DO SUJEITO RESPONSÁVEL: NOVA EDUCAÇÃO PARA NOVA HUMANIDADE Breno Martins Campos 1 RESUMO Ética: palavra gasta, confundida com moral, moralidade ou moralismo. Conceito, cujo sentido primeiro, o de morada para todos, foi esquecido, pervertido até. A ética da responsabilidade é a de quem assume sua tríplice condição humana: a de indivíduo-sujeito, a de sociedade e a de espécie. É a ética da fraternidade, que parece ter perdido o sentido dentro da Modernidade. Vive-se hoje o convite ou impulso à exclusão. Ciência, tecnologia, indústria e lucro – excesso de informação, opinião, trabalho e falta de tempo –, diante ou dentro de tudo isso, qual é o tempo-espaço que se pode dedicar ao outro? Faz-se urgente uma nova educação, que ensine o amor, a compreensão e a tolerância, da educação infantil ao ensino superior. Nova educação que deve ser antecedida por uma reforma dos educadores, que só se reformarão se e quando houver uma reforma do ensino e dos saberes. PALAVRAS-CHAVE Ética; subjetividade; responsabilidade; educação; Edgar Morin. O texto que segue não é resultado de pesquisa científica particular. Ele nasceu de algumas de minhas recentes leituras, conversas e reflexões acerca dos temas: ética, cidadania, 1 Professor da UPM nas áreas de Ciências Sociais e Ética e Cidadania, doutorando em Sociologia pela PUC-SP, onde é membro do Núcleo de Estudos da Complexidade (Complexus), mestre em Ciências Sociais e Religião pela UMESP, licenciado em Ciências Sociais pela UNICAMP, bacharel em Sociologia e Política pela UNICAMP e bacharel em Teologia pelo SPS

ÉTICA - A ETICA DO SUJEIRO RESPONSÁVEL- NOVA EDUCAÇÃO PARA HUMANIDADE

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Page 1: ÉTICA - A ETICA DO SUJEIRO RESPONSÁVEL- NOVA EDUCAÇÃO PARA HUMANIDADE

A ÉTICA DO SUJEITO RESPONSÁVEL:

NOVA EDUCAÇÃO PARA NOVA HUMANIDADE Breno Martins Campos1

RESUMO

Ética: palavra gasta, confundida com moral, moralidade ou moralismo. Conceito, cujo

sentido primeiro, o de morada para todos, foi esquecido, pervertido até. A ética da

responsabilidade é a de quem assume sua tríplice condição humana: a de indivíduo-sujeito, a

de sociedade e a de espécie. É a ética da fraternidade, que parece ter perdido o sentido dentro

da Modernidade. Vive-se hoje o convite ou impulso à exclusão. Ciência, tecnologia, indústria

e lucro – excesso de informação, opinião, trabalho e falta de tempo –, diante ou dentro de

tudo isso, qual é o tempo-espaço que se pode dedicar ao outro? Faz-se urgente uma nova

educação, que ensine o amor, a compreensão e a tolerância, da educação infantil ao ensino

superior. Nova educação que deve ser antecedida por uma reforma dos educadores, que só se

reformarão se e quando houver uma reforma do ensino e dos saberes.

PALAVRAS-CHAVE

Ética; subjetividade; responsabilidade; educação; Edgar Morin.

O texto que segue não é resultado de pesquisa científica particular. Ele nasceu de

algumas de minhas recentes leituras, conversas e reflexões acerca dos temas: ética, cidadania,

1 Professor da UPM nas áreas de Ciências Sociais e Ética e Cidadania, doutorando em Sociologia pela PUC-SP, onde é membro do Núcleo de Estudos da Complexidade (Complexus), mestre em Ciências Sociais e Religião pela UMESP, licenciado em Ciências Sociais pela UNICAMP, bacharel em Sociologia e Política pela UNICAMP e bacharel em Teologia pelo SPS

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subjetividade, educação, escola. Foi escrito para ser comunicado em cerca de 15 minutos e

não para ser defendido em banca ou publicado em periódico científico. Guarda, portanto, a

força viva e criativa da palavra falada dentro dos limites do texto escrito. Agora publicadas –

doravante sei que cada pessoa faz delas o que quer –, as idéias oferecidas ao diálogo foram

construídas sob quádrupla inspiração:

1. o desafio de lidar com o ensino da disciplina "Ética e Cidadania" na Universidade

Presbiteriana Mackenzie, especialmente quanto à demonstração da importância dos temas e

debates que deve se impor e extrapolar os limites ínfimos da sala de aula. Utilizado como

base da reflexão por muitos docentes da disciplina, o texto "Ética e cidadania: a busca

humana por valores solidários" de Ricardo Quadros Gouvêa revela dentro da história a

dificuldade sentida em sala de aula: que os alunos e alunas, mesmo os recém-saídos da

adolescência, entendam que "viver não é fácil [e que] viver inteligentemente é ainda mais

difícil" (2002, p. 11). Eis o desafio de explicar que a vida é decisão, autônoma ou não, e que

todas as decisões referem-se ao mesmo tempo ao sujeito, sociedade e espécie;

2. o filme "Irmãos" (Son frère, França, 2003) a que assisti no semestre passado,

dirigido por Patrice Chéreau e baseado em romance de mesmo título do autor Philippe

Besson. Drama familiar no qual dois irmãos que estavam afastados um do outro havia muito

tempo reencontram-se após um deles receber a notícia de portar uma doença sangüínea

potencialmente fatal. Ambos voltam para a casa e memórias da infância. Ambos voltam a

uma condição de fraternidade perdida no passado;

3. a imersão que fiz na obra de Edgar Morin nos últimos 18 meses. Se não para outra

coisa, este texto pode servir como um convite à leitura do pensador francês;

4. a história de Caim e Abel (Gênesis 4.1-16), com a qual eu começo a minha reflexão.

Distante no tempo, espaço, idioma, cultura, o que um texto sagrado dos judeus e

cristãos tem a comunicar a homens e mulheres do século XXI, sejam judeus, cristãos ou de

outras etnias e religiões? Nenhuma energia deve ser gasta aqui na tentativa de dar explicações

racionais ou razoáveis ao debate entre religião e ciência. Tomo o texto religioso como uma

produção que fala a respeito do que é humano, do que fomos e seremos. Do que somos.

A história judaico-cristã do primeiro assassinato é fundante. Ela fala do indivíduo-

sujeito, da sociedade, da espécie. Ela fala do eu, do outro, da humanidade. Ela fala a mim, a ti,

a todos. A aventura humana começa já em contato: "Não é bom que o homem esteja só"

(Gênesis 2.18, A BÍBLIA de Jerusalém, BJ). O indivíduo é coletivizado é a coletividade é

individualizada. Caim e Abel são arquétipos do sujeito, da sociedade e da humanidade.

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A certa altura da experiência daqueles irmãos, Abel já está morto, assassinado pelo

irmão irritado e abatido que teve sua oferta de produtos da terra recusada por Deus, e Caim dá

uma resposta cínica talvez: "Não sei. Acaso sou guarda de meu irmão?" (Gênesis 4.9, BJ) ao

questionamento de Deus – "Onde está teu irmão Abel?" (Gênesis 4.9, BJ). O eco da resposta-

pergunta de Caim faz-se ouvir ainda hoje. Ainda mais hoje.

À resposta de Caim comentários judaicos acrescentam uma historieta: "Querer

esconder o assassinato do irmão, como fez Caim, é semelhante ao comportamento daquele

que, tendo entrado numa pastagem, rouba um cordeiro e o coloca às costas. O pastor corre

atrás e pede: 'Que tens nas mãos'. 'Nada!', responde aquele. E o pastor: 'O que significa então

a voz, balindo atrás de ti?'" (LIFSCHITZ, 1998, p. 47).

O princípio egocêntrico que inclui a concorrência e o antagonismo em relação ao

semelhante pode levar ao assassinato, até de irmãos, como no caso de Caim e Abel (MORIN,

2003b). Egoísmo ampliado, mais espaço para a morte. O outro é transformado em estranho,

concorrente, adversário. Nem o cinismo é capaz de esconder a existência do outro.

A releitura contextualizada do texto fundante não pode fugir da pergunta: acaso sou

guarda de meu irmão? Porque a vida não pode fugir dela. Que se inclua, então, mais uma

pergunta às essenciais. Quem sou? de onde vim? para onde vou? o que é a vida? qual o seu

sentido? o que é a morte? há sentido na morte? mais: acaso sou guarda de meu irmão? Que a

educação inclua em seus currículos e projetos a questão: acaso sou guarda de meu irmão?

Mesmo morto, Abel continua a ser irmão. O outro é sempre irmão. E o seu sangue, a

seiva da vida, clama: "Que fizeste! Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim!"

(Gênesis 4.10, BJ), disse Deus a Caim, que desde então se tornou errante sobre a terra. Sem

nenhuma zona de conforto, nenhum paraíso, nenhuma proteção paterna e materna. Ele e

diante dele o mundo, apenas com a consciência de que viver é decidir. A dialógica do espírito

humano aberto ao mundo traz, de um lado, o sentimento de pertencimento ao cosmos e, de

outro, o de ser estrangeiro no cosmo (MORIN, 2003b).

Mesmo o outro eliminado continua a ser outro: transforma-se em testemunho de

fraternidade, em ícone da condição humana que liga cada um dos seres humanos a todos os

outros.

É ético o desafio à humanidade, à sociedade, a cada sujeito. Trata-se da ética da

sobrevivência e felicidade da espécie, das sociedades e das pessoas. Como será possível

superar o programa egocêntrico que inclui em cada um e em todos a morte do outro? Será

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possível ao indivíduo portar-se hoje na sociedade de forma não individualista e não

excludente?

O quadrimotor ciência-técnica-economia-indústria, presente em boa parte da obra de

Edgar Morin, a caracterizar a modernidade globalizada, é ao mesmo tempo fruto e sustento do

desejo que está à porta do indivíduo, da sociedade e da humanidade, como animal à espreita

pronto a devorar. Para efeito didático, pode ser desmembrado aqui em lucro, produção,

conhecimento, técnica, consumo, sucesso, riqueza, ostentação, fama, prestígio, propriedade

etc.

A pergunta feita a Caim diante de seu desejo de eliminação do outro, seu irmão, seu

concorrente, seu adversário, aquele que havia conquistado o sucesso, é a mesma de hoje.

Deus disse a Caim: "'Por que estás irritado e por que teu rosto está abatido? Se estivesses bem

disposto, não levantarias a cabeça? Mas se não estás bem disposto não jaz o pecado à porta,

como animal acuado que te espreita; podes acaso dominá-lo?'" (Gênesis 4.6,7, BJ). Podemos

dominar o nosso desejo?

O tempo todo sentimo-nos acuados por uma fera pronta a nos devorar. Ela pode estar

dentro de nós. Difícil é conhecer o desejo, mais ainda saber se o desejado é também querido

(FORBES, 2004). O desejo é um, mas muitas vezes o imprinting e o habitus, que nascem já

dentro da família e são confirmados por outras instâncias, especialmente a educação, falam

por nós e deixamos de lado o desejo para abraçar o auto-engodo.

Inegável é que a fera também esteja fora. "A experiência é o que nos passa, o que nos

acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se

passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o

que se passa está organizado para que nada nos aconteça. (...) Nunca se passaram tantas

coisas, mas a experiência é cada vez mais rara" (LARROSA, 2004, p. 116). O outro está cada

vez mais distante. Larrosa explica por quê.

A ideologia oferecida pela propaganda é a de que todos são concorrentes num mundo

que não oferece espaço a todos. O outro deve ser superado, derrotado e, no limite, eliminado.

O que importa é ter, produzir, acumular, possuir, comprar: uma espécie de fanatismo moderno

e secular. Fanáticos não são somente os outros. Afinal, "todos moramos em casas em que os

vizinhos de cima fazem um barulho dos diabos e os de baixo não param de se queixar..."

(MILLER; MILLER, 1992, p. 33).

O início de tudo isso é visível na escola. As estruturas educacionais valorizam o aluno

que tira notas altas, premiando-o, o que é tranqüilamente aceito e reforçado pela família.

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Poucos percebem que notas altas representam habilidades específicas para dar respostas a

perguntas específicas. Aos 16, 17, 18 anos, quando muito, os jovens são expostos à loucura

do vestibular. Poucos terão suas fotos estampadas nos jornais em propagandas das grandes

empresas de educação, os "cursinhos". Poucos vencerão.

É fácil constatar que nas camadas médias e altas no Brasil as vocações dos jovens para

determinadas profissões são infinitamente menores do que as múltiplas, quase infinitas,

possibilidades de formação e atuação profissionais.

Será que os jovens realmente escolhem o que gostam de fazer, o que pode lhes dar

felicidade, ou são forçados a escolher o que a competição exige deles? Quem pode querer o

que deseja? Sem medo de errar: nos próximos anos, os jovens das camadas econômicas

médias e altas no Brasil serão os primeiranistas das faculdades de medicina, direito,

engenharia, administração, odontologia – o leque das opções fica quase fechado. Profissões

de menor prestígio, com ou sem necessidade de formação superior, ficam para os que não têm

oportunidade de escolha, mesmo aquelas indispensáveis para vida de qualquer país.

Depois vem o mercado de trabalho no qual só há espaço para quem fala inglês e

espanhol (agora, chinês também), tem curso no exterior, conhece bem os programas de

computador, navega na Internet, tem MBA, outras especializações etc. Há quem viva hoje em

função do currículo. No campo universitário, o currículo logo vai passar a ser avaliado por

metragem. Situação que perverte ou corrompe o sentido da pesquisa, do conhecimento, da

ciência, da própria universidade, pois não mais se põe no currículo o que foi produzido,

depois de tempo de dedicação, labuta e prazer; produz-se para colocar no currículo, quanto

mais rápido, melhor. Produção em série. Todos somos vítimas do processo.

São muitos os leões que nos espreitam. Diante deles, cada pessoa se pergunta: acaso

sou eu guarda de meu irmão?. Não podemos mais ter o mesmo cinismo que caracterizou a

pergunta de Caim a Deus. É tempo de deixar de lado o auto-engano para assumir a

responsabilidade ética. "O processo mental tão freqüente da self-deception, ou mentira para si

mesmo, pode levar à cegueira em relação ao mal que se comete e à autojustificação ao se

considerar como represália justa o assassinato de um outro" (MORIN, 2005, p. 119).

Há saídas. O sujeito é capaz de associar egoísmo e altruísmo. O fechamento

egocêntrico em vigência permite evidenciar que todo ser humano, as sociedades e a

humanidade incluem também em sua natureza ou essência o princípio do altruísmo. Como

assim? O mesmo ser que carrega em si a morte do outro é o que se consagra a um tu amado,

enxerga o outro com respeito e tolerância, relaciona-se com ele, compreende o próximo. É

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aquele que se sente incluído na diversidade do que é a unidade humana. O amor é o princípio

humano de abertura ao outro que pode fazer superar o egoísmo gerador de morte.

O egoísmo é fundamental para o sujeito religar-se consigo mesmo para depois ampliar

a religação ao outro, à humanidade, à natureza, ao cosmos. Felizmente as pulsões agressivas

vêm acompanhadas pelas eróticas – e a humanidade salta do excludente e literal "comer ou

ser comido", a própria luta pela sobrevivência, para o metafórico e inclusivo "comer e ser

comido", o processo da convivência.

Assim como Caim teve liberdade para escolher matar seu irmão, dando ouvido a seu

desejo, fazendo dele um ato, nós também temos liberdade para cuidar ou não da terra e das

pessoas que vivem nela.

Não é preciso matar fisicamente para uma pessoa transformar-se em herdeira de Caim.

O ódio a um outro ser (irmão humano) é expressão de assassinato. Quantas vezes nós

chegamos a pensar a respeito de alguém: "por que ele não morre?". Ou ainda, diante de

barbaridades que são cometidas em nossa sociedade, pensamos: "Essa gente toda tem de

morrer". "Que venha a pena de morte". Os preconceitos são também expressões de

assassinatos. Colocar-se no centro do mundo é o princípio do auto-engano que gera

incompreensão, que pode levar à morte.

Acaso somos guardas de nossos irmãos? Esta pergunta fundamenta a história humana

desde os seus primórdios. Sim, somos guardas de nossos irmãos. E quem são eles? Todas as

pessoas. Todas elas são nossas irmãs, ainda que tenham cor de pele diferente da nossa,

vistam-se de maneira diferente, sejam menos abastadas, representem perigo aos nossos bens e

até a nossas vidas. Todos somos filhos e filhas da terra, pois não há irmãos sem mãe

(MORIN; KERN, 2003).

"Deveria ser possível ensinar a compreensão na escola primária e continuar na

secundária e na universidade" (MORIN, 2005, p. 124). Ensinamento que deve ser antecedido

por uma reforma do pensamento, reforma da educação (MORIN, 2002a). Reforma que deve

alcançar os educadores: são eles os que educam.

Terceira tese sobre Feuerbach: "A doutrina materialista segundo a qual os homens são

produtos das circunstâncias e da educação e, portanto, segundo a qual os homens

transformados são produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece

que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador

deve ser educado" (MARX, 1979, p. 126). Quem educa os educadores?

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Como é difícil ou impossível a reforma de cada uma das mentalidades, educar cada

um dos educadores, reforma-se primeiramente o ensino (MORIN, 2001a) e os educadores têm

de reformar-se. Claro, não é tão simples. As resistências e oposições são fortes, violentas até.

O que não deve calar a boca de quem pensa e quer uma nova educação para a humanidade.

Sete saberes necessários à educação do futuro: (1) o conhecimento, (2) o

conhecimento pertinente, (3) a condição humana, (4) a compreensão humana, (5) a incerteza,

(6) a era planetária e (7) a antropoética (MORIN, 2001b; 2002b). Não são sete disciplinas ou

matérias – o que seria a própria negação da transdisciplinaridade. São matrizes, idéias a

coordenar a elaboração de currículos, disciplinas, projetos, pesquisas, aulas, conferências,

palestras etc.

Para finalizar e em diálogo com as preocupações referentes a ética e cidadania, um

destaque devido ao quarto saber: ensinar a compreensão humana. A escolha de um saber para

comentários, e não de outros, funciona aqui como exemplo e foi presidida pela reação do

público que primeiro ouviu minha comunicação e reagiu a ela. Por que ensinar a

compreensão?

Porque até agora a incompreensão e a intolerância foram ensinadas com certa dose de

sucesso. Não que façam parte dos currículos formais. Estão presentes naquilo que os

educadores costumam chamar de currículos informais ou ocultos.

Ensinar a compreensão é fugir da indiferença. É superar o auto-engano que exclui e

mata: não é o outro sempre o culpado. O que cometeu um crime não pode ser resumido a seu

ato: ele não é um criminoso, o restante de sua personalidade não se resume a isso.

Ensinar a tolerância é trilhar um caminho de três passos: (1) respeitar o direito que o

outro tem de se exprimir, mesmo que nos pareça ignóbil, como apregoava Voltaire; (2) optar

pela democracia, que se alimenta de opiniões diversas e antagônicas, ao mesmo tempo em que

convida ao respeito da opinião divergente no debate; e (3) segundo Niels Bohr, acatar o

conceito de que o contrário de uma idéia profunda é outra idéia profunda (MORIN, 2005).

Complicado é perceber, e mais ainda admitir, que uma verdade verdadeira não anula uma

outra ou várias delas: e que escolher entre caminhos diferentes pode ser uma escolha entre o

certo e o certo (OZ, 2004).

Ou de quatro passos: (1) não impedir a existência do outro; (2) compreender o outro e

sua existência; (3) aceitar o direito que o outro tem de viver segundo suas convicções; e (4)

aceitar que há verdade também lá fora, no outro (RICŒUR, 2000).

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Por que ensinar a compreensão? Nas intervenções, a mesa e o público consideraram

mais importante do que tudo o ensino e a prática do amor – porque tolerar seria somente

aceitar o outro, suportar ou agüentar o outro, mesmo quando sabemos que ele está errado,

impreciso, incerto etc., uma espécie de condescendência. Concordei e concordo com os

comentários, desde que não sejam reproduções do auto-engano egocêntrico que exclui e mata,

como se nós fôssemos sempre os corretos. Ensinar o amor: eis o desafio. "(...) as palavras

sobre o amor são exatamente o inverso das palavras do amor. Elas se constituem num

discurso frio, técnico, objetivo, que, em si mesmo, degrada e dissolve seu objeto" (MORIN,

2003a, p. 15).

Agora, portanto, devem ser ensinados a compreensão, a tolerância e o amor – os três.

Porém, o maior deles é o amor. Se for muito grande para as escolas de educação infantil e de

ensinos fundamental, médio e superior, que se ensinem, então, a compreensão e a tolerância.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985. FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? 4 ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2004. GOUVÊA, Ricardo Quadros. Ética e cidadania: a busca humana por valores solidários. In: LIBERAL, Márcia Mello Costa De (org.). Um olhar sobre ética e cidadania, v. 1. São Paulo: Ed. Mackenzie, 2002. p. 9-29. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Trad. João Wanderley Geraldi. In: GERALDI, Corinta Maria Grisolia; RIOLFI, Claudia Rosa; GARCIA, Maria de Fátima (orgs.). Escola viva: elementos para a construção de uma educação de qualidade social. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 113-132. LIFSCHITZ, Daniel. Caim e Abel: a Hagadá sobre Gênesis 4 e 5. Trad. Bertilo Brod. São Paulo: Paulinas, 1998. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). Trad. José Carlos Bruni; Marco Aurélio Nogueira. 2 ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. MILLER, Dominique; MILLER, Gérard. Psicanálise às 18:15: um testemunho clínico a quatro mãos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001a. ____. Amor, poesia, sabedoria. Trad. Edgard Assis Carvalho. 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003a. ____. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Trad. Flávia Nascimento. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002a. ____. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. Trad. Edgard Assis Carvalho. São Paulo: Cortez, 2002b. ____. O método 5: a humanidade da humanidade. Trad. Juremir Machado da Silva. 2 ed. Porto Alegre: Sulina, 2003b. ____. O método 6: ética. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005. ____. Os sete saberes necessário à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva; Jeanne Sawaya. 3 ed. São Paulo; Brasília: Cortez; UNESCO, 2001b. MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. Trad. Paulo Neves. 4 ed. Porto Alegre: Sulina, 2003. OZ, Amós. Contra o fanatismo. Trad. Denise Cabral de Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. RICŒUR, Paul. Etapa atual do pensamento sobre a intolerância. BARRET-DUCROCQ, Françoise (dir.). A intolerância. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000. p. 20-23.