48
Ética e Solidariedade na Mística de São Leonardo Murialdo Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo - ANALAM Brasil, 2006 Subsídio de Formação nº 9

Ética e Solidariedade · A primeira é uma ciência sobre o comportamento moral dos homens em sociedade e está relacionada à Filosofia, isto é, pergunta-se sobre a fundamentação

Embed Size (px)

Citation preview

Ética e Solidariedadena Mística de São Leonardo Murialdo

Associação Nacional dos Leigos Amigosde Murialdo - ANALAM

Brasil, 2006

Subsídio de Formação nº 9

Apresentação .......................................................................................... 109

Introdução ............................................................................................... 111

1. DEFININDO OS TERMOS ............................................................ 112

História - O BISCOITO ................................................................... 112

1.1 O que é ética? ........................................................................ 1131.2 O que é solidariedade? ........................................................... 1151.3 O que é mística? .................................................................... 1161.4 Ética e solidariedade .............................................................. 1171.5 Uma sociedade ética e solidária ................................................ 118

2. MÍSTICA DA ÉTICA E DA SOLIDARIEDADE .............................. 122

História - UMA PESCARIA INESQUECÍVEL ........................................ 122

2.1 A crise da ética solidária ...................................................... 1232.2 Em busca da mística da ética e da solidariedade ..................... 1252.3 Fundamentos bíblicos da ética e da solidariedade ..................... 1272.4 Ética e solidariedade em São Leonardo Murialdo “Para que nenhum se perca” ................................................. 130

3. ÉTICA E SOLIDARIEDADE: URGENTE ...................................... 133

História - O VALOR DO ENCORAJAMENTO .................................... 133

3.1 A importância e a necessidade da ética ................................... 1343.2 Criatividade e ousadia ............................................................. 1363.3 Cuidadores e cuidado ............................................................. 1383.4 Na construção da justiça ........................................................ 1403.5 Por uma cultura da paz .......................................................... 1413.6 Instituições éticas e solidárias ................................................ 145

Conclusão ............................................................................................... 147

Bibliografia ............................................................................................ 151

SUMÁRIO

Ética e Solidariedade

Fazemos parte de uma sociedade onde o ser

humano, em função do avanço da tecnologia e da

competitividade, perdeu o verdadeiro valor das

virtudes, aquelas supostamente aprendidas e

experienciadas desde a mais tenra idade.

O homem conquistou espaços e quase tudo o

que ansiava. Porém, ainda busca um sentido maior para sua realização na

vida pessoal, profissional, familiar e social. Logo, perguntamos: o que falta

então...? Pensamos e acreditamos que por meio do resgate e da

reconstrução das virtudes é que se poderá desfrutar do maior sentido da

vida: a felicidade. E é na relação com o outro que nascemos para ser feliz,

esse é o grande projeto que Deus tem para nós. Todavia, nos resta

encontrarmos o caminho que nos levará à aquisição destes valores.

A ANALAM, nesta estimada obra, vem provocar a reflexão e a

elucidação sobre a aplicabilidade das virtudes da ética e da solidariedade,

para que nós, filhos, pais, companheiros e educadores cristãos, em nossa

missão, possamos de fato encontrar e trilhar esse caminho (inspirado em

São Leonardo Murialdo), movidos pelo desejo, pela disponibilidade, pela

determinação e encanto pela vida.

Estamos apresentando o novo subsídio ̈ ÉTICA E SOLIDARIEDADE,na Mística de São Leonardo Murialdo¨ que vem integrar o Kit de

Formação, preparado com muito carinho pelo Conselho Formativo. O

objetivo deste novo subsídio é auxiliar na formação e na espiritualidade

dos núcleos e dos seus membros. Acreditamos que só seremos verdadeiros

cristãos quando praticarmos as virtudes aqui expostas.

Moacir VerasPresidente

APRESENTAÇÃO

109

Ética e Solidariedade

I N T R O D U Ç Ã O

O tema da ética é um dos assuntos mais debatidos pela sociedade atual.Ele está presente em muitas rodas de conversa, conferências, seminários, livrose revistas. Ele ganhou espaço, especialmente, depois de casos de denúnciasde corrupção na política. Mas não é um tema tão novo. A humanidade semprese preocupou com a ética em suas relações.

Por sua vez, a solidariedade faz parte de um princípio cristão justaposto ànecessidade de exercitar a caridade.

Ética e solidariedade passam a ser preocupações da Associação Nacionaldos Leigos Amigos de Murialdo. Porque os leigos, na condição de cristãosbatizados, são chamados ao protagonismo social e nessa profecia apontar paramudanças substanciais nas relações interpessoais.

A pessoa humana já não pode mais disputar espaços, mercadorias esucessos com seus semelhantes. É preciso somar forças para que todoscheguem ao sucesso de suas plenitudes de vida, para que todos tenham onecessário para viver com dignidade numa terra onde há lugar para todos.

São Leonardo Murialdo, em sua mística do amor de Deus e da compaixãopelos pequenos, pode também ser uma fonte inspiradora dessa mística do ir aoencontro do outro. Mesmo sem ter tratado explicitamente deste tema em seusescritos, sua obra deixa transparecer um cuidado especial com o respeito aooutro, com a honestidade, com a verdade e a felicidade dos outros. Quando otítulo do presente subsídio dá esse destaque para “Na mística de São LeonardoMurialdo” podemos entender que a “Ética e a Solidariedade” encontram sólidosfundamentos na fé cristã, bem como, que São Leonardo Murialdo, através desua espiritualidade e sua prática apostólica, tem algo a contribuir para a nossareflexão.

Assim, é por esses caminhos que vamos iniciar a nossa viagem de reflexãoe internalização do compromisso de vivermos com ética e solidariedade.

111

Subsídio 09

Certo dia uma moça estava à espera de seu vôo na sala de embarquede um aeroporto.

Como ela devia esperar por muitas horas, resolveu comprar um livropara matar o tempo. Também comprou um pacote de biscoitos.

Então ela encontrou uma poltrona numa parte reservada do aeroportopara que pudesse descansar e ler em paz, e ao lado dela sentou-se umhomem.

Quando ela pegou o primeiro biscoito, o homem também pegou um.Ela se sentiu indignada, mas não disse nada.

Ela pensou consigo mesma: “Mas que cara-de-pau! Se eu estivesseem outro local, juro que lhe daria um tapa na cara para que ele nunca maisesquecesse”.

Para cada biscoito que ela pegava, o homem também pegava um.Aquilo a deixava tão furiosa que ela não conseguia reagir. Restava apenasum biscoito e ela pensou: “O que será que o abusado vai fazer agora?”.

Então, o homem dividiu o biscoito ao meio, deixando a outra parte paraela.

Aquilo a deixou ainda mais irada e bufando de raiva. Ela pegou seu livroe suas coisas e dirigiu-se ao embarque.

Quando sentou confortavelmente em seu assento, para sua surpresa,seu pacote de biscoitos estava intacto dentro de sua bolsa.

Ela sentiu vergonha, pois quem estava errada era ela e já não haviamais tempo para pedir desculpas.

(Autor Desconhecido)

DEFININDO OS TERMOS

Capítulo I

O BISCOITO

112

Ética e Solidariedade

É importante, antes de tudo, buscar a compreensão da terminologia aoredor da qual desenvolvemos este estudo. Isso parece ser condição primeirapara facilitar a apropriação do conteúdo a ser apresentado.

Ética é um termo cuja origem vai definir seu próprio significado. O mesmose pode dizer da moral. Mas, enquanto estivermos pensando sobre a ética nãopodemos passar em frente da residência da moral. Vamos entrar nesta casatambém, nem que seja pela porta da cozinha, para compreendermos seusignificado e sua relação com a ética.

Também vamos nos debruçar sobre a janela da solidariedade para olhar anossa sociedade. Queremos ver se existem pontes que unem a ética, asolidariedade e os comportamentos da sociedade. Enfim, essa viagem vai nosajudar a entender que a vida humananão sobreviverá sem a ética, muitomenos, sem os gestos dasolidariedade. Bem como, que viverem sociedade exige atitudes cristãscapazes de compaixão ecomprometimento.

A “Mística de São LeonardoMurialdo” estará presente em todasas entrelinhas desse estudo, porqueo amor e o cuidado, comoexpressões de solidariedade, foram fundamentos de sua “Pedagogia do Amor”.

1.1 O QUE É ÉTICA?

Ética tem origem no grego “ethos”, que significa modo de ser. Algunsautores identificam ética com moral. A palavra moral vem do latim “mos” ou“mores”, ou seja, costume ou costumes. A primeira é uma ciência sobre ocomportamento moral dos homens em sociedade e está relacionada à Filosofia,isto é, pergunta-se sobre a fundamentação última das questões. Sua função é amesma de qualquer teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinadarealidade, elaborando os conceitos correspondentes. A segunda, como define ofilósofo Vázquez, expressa “um conjunto de normas, aceitas livre e conscien-temente, que regulam o comportamento individual dos homens”.

A moral não é natural. Pelo contrário, resulta da ação do homem enquantoser social, histórico e prático. Como fato histórico, a moral corresponde aosdiversos estágios da evolução da humanidade. A ética acompanha estedesenvolvimento sem se reduzir à moral. No entanto, ambas se confundem

113

Subsídio 09

porque a ética parte de situações concretas, isto é, dos fatos e conseqüentementeda existência da moral.

O que significa dizer: “Ele não tem ética”? Significa afirmar que essa pessoanão possui princípios, busca obter vantagens em suas ações, é um oportunista,dela não se pode esperar atitudes coerentes, pois é alguém sem um significadoprofundo de existência. Por exemplo, não tem ética o jornalista que trai a verdadepor dinheiro, ou o político que se deixa corromper por grupos de interesse.

Ou o que significa dizer: “Ele não tem moral”? Isso afirma que essa pessoanão possui virtudes, ela engana os outros, rouba dinheiro público, exploratrabalhadores, faz violência em casa. E costuma fazer isso sem escrúpulos ouproblema de consciência. Essa pessoa até pode ter ética (consciência sobreprincípios) mas age contra os mesmos.

Concluindo, podemos dizer: a moral representa um conjunto de atos,repetidos, tradicionais, consagrados. A ética corporifica um conjunto de atitudesque vão além desses atos. O ato é sempre concreto e fechado em si mesmo. Aatitude é sempre aberta à vida com suas incontáveis possibilidades. A ética nospossibilita a coragem de abandonar elementos obsoletos das várias morais.

Confere-nos a ousadia de assumir, com responsabilidade, novas posturas,de projetar novos valores, não por modismo, mas como serviço à moradiahumana.

Não basta sermos apenas morais, apegados a valores da tradição. Issonos faria moralistas e tradicionalistas, fechados sobre o nosso sistema de valores.Cumpre também sermos éticos, quer dizer, abertos a valores que ultrapassamaqueles do sistema tradicional ou de alguma cultura determinada. Abertos avalores que concernem a todos os humanos, como a preservação da casa comum,o nosso esplendoroso planeta azul-branco. Valores do respeito à dignidade docorpo, da defesa da vida sob todas as suas formas, do amor à verdade, dacompaixão para com os sofredores e os indefesos. Valores do combate àcorrupção, à violência e à guerra. Valores que nos tornam sensíveis ao novo queemerge, com responsabilidade, seriedade e sentido de contemporaneidade.

Fundamentos da ética cristã:a) Na Lei natural. Verdade profunda que está em cada ser humanob) Na Revelação - A bíblia em sua narração da história da humanidadec) Na tradição: o magistério da Igreja ou pessoas insignes que apontaramcaminhos de vidad) Nas ciências humanase) No bem comumf) No diálogo desarmado e transparente.

114

Ética e Solidariedade

1.2 O QUE É SOLIDARIEDADE?

A questão da solida-riedade é extremamente atual.As sociedades contem-porâneas, assentadas sobreos valores do capitalismo,estão em alta medida fundadasem sistemas de competiçãoorientada a interesses. Essaexperiência coletiva, queinvade tanto as instituiçõessociais quanto os espaçosprivados do mundo da vida,constrói-se dentro de uma moral egoísta, na qual a presença dos outros só éreconhecida a partir dos benefícios concretos que possa gerar, o que implica,em contrapartida, uma forte indiferença em relação aos não produtivos e umaenorme e constante violência de uns contra os outros, especialmente os quenão se adaptem às regras desse egoísmo social. Tal sentimento, contudo, nãopode se generalizar sem criar um mal-estar social de largas proporções, vinculadonão somente à falta do outro como igual, mas também ao stress da guerrapermanente e, sobretudo, ao rastro de miséria e sofrimento que os egoístas emcompetição vão deixando atrás de si, na medida em que constroem suas riquezasmateriais e suas situações de poder. O mundo atual é, pois, um mundo carentede solidariedade.

Hoje a solidariedade é muito mais um compromisso de viver relações sociaisfraternas do que, propriamente, a prática da caridade traduzida em gestospontuais. No cristianismo, a vida solidária recebe o nome de fraternidade, idéiavivenciada pelos primeiros cristãos, sob a perspectiva de uma sociedade deirmãos, filhos do mesmo Pai. A sociedade de irmãos funda a igualdade na relaçãoentre os seres desiguais, na medida em que os vincula a um propósito comum,assegurado pela crença no Deus único.

Condições de Validade do Gesto Solidário

Solidariedade de fato é mais do que prestar serviços ao outro: é um tipoespecial de relacionamento social. Relacionamento que depende, para se efetivar,de algumas condições muito específicas cujo desempenho deve ser mútuo,caso contrário significará somente uma ação altruísta individual. Ressaltamos

115

Subsídio 09

abaixo o que podem ser as quatro condições essenciais para a ação solidária:

1. Não indiferença. O outro jamais é anulado ou cai no vazio da indiferençasocial. Ao contrário, sua presença constitui acontecimento relevante, diante doqual o eu se coloca de pé, pronto para a relação solidária.

2. Aceitação da diferença. O outro é reconhecido enquanto tal, e nãosubmetido aos pré-conceitos construídos pelo eu. O elemento definidor daalteridade é, justamente, a estranheza, o desconhecimento e a infinitude dooutro. Tal estranheza, em um contexto de solidariedade, poderá sempre sermanifesta, sem implicar em guerra entre os sujeitos em interação.

3. Doação - concessão - espera. O eu se faz sempre disponível a entregar-se, ao outro a tal ponto de exercer forte simpatia pelo mesmo que é totalmenteoutro, isto é, diferente. Mas que, no entanto, não o torna escravo do outro nemelimina a identidade que lhe assegura essa autonomia. A empatia significa umdeixar-se levar por exercício da própria vontade, em relação ao outro e às suasnecessidades e carências.

4. Aprendizado - mudança. Ciente de que ninguém sai ileso de umainteração solidária, o eu se distingue pela disponibilidade para o aprendizadocom o outro, na medida em que identifica no reconhecimento da diferença,enquanto lugar do desconhecido, o espaço do aprendizado possível e, portanto,da mudança.

Observa-se que a solidariedade, enquanto comunicação plena, se inicianão no eu, mas no outro. Isso não implica, entretanto, perda da identidade doeu, diante do império avassalador da diferença alheia. De forma alguma. O gestosolidário é, sobretudo um ato de autonomia, mas trata-se de uma autonomiatípica, que se faz responsável pelo outro, que escolhe o respeito infinito peladiferença que o torna outro e se interessa, sobretudo, pela interação que lheproporcione felicidade e paz. O gesto solidário é o ato de amor, cuja capacidadealtruísta modifica as relações sociais de forma a fundar a convivência não violentae pacífica.

1.3 O QUE É MÍSTICA?

A Mística é experiência do mistério de Deus em nós e nos outros. Érelacional: conjuga dimensões importantes da vida como a indignação, acontemplação e a comunicação inerente à pessoa e que permite uma integraçãocom outras vidas que conosco formam a totalidade; nos lançam para uma posturade respeito e cuidado com os iguais e com os diferentes, com um universoplural ao qual todos(as) pertencemos e pelo qual somos responsáveis. A mística

116

Ética e Solidariedade

compromete o cristão com a ética solidária. Porque aí a solidariedade não étrampolim para a ascensão social ou uso do pobre como crédito para a entradano céu. Mas a mística passa a ser uma atitude de vida que faz do exercício dasolidariedade oportunidades de cidadania para o outro. Então, é o outro e acomunidade que se elevam.

A mística, aquilo que equilibra as tensões do dia a dia, de modo que nãonos empolgamos demais com os avanços e conquistas, a ponto de ver o mundo“cor de rosa” e nem nos desanimamos diante das frustrações, achando quedevemos nos resignar diante dos atropelos da vida e que nada tem jeito.

1.4 ÉTICA E SOLIDARIEDADE

É bem verdade que nos dias atuais o pensamento ético moderno estásendo abordado com muita freqüência, e para que um ser humano se socializemelhor ele precisa ter uma conduta baseada no respeito com a sociedade.Como também é verdade que a Associação Nacional dos Leigos Amigos deMurialdo, em Congresso Nacional de 2005, achou oportuno a Ética para a pautade suas discussões. A exigência Ética fundamental hoje consiste em recuperara possibilidade de reconstruir relacionamentos de comunhão de pessoas ecomunidades. Ética hoje significa bem-estar social. Com o desenvolvimento degeração após geração, os hábitos, os costumes, enfim o modo de viver daspessoas muda, e mudam também os conceitos e o novo paradigma que se fazda história humana.

Por sua vez, a solidariedade assume novas definições, especialmentequando seu conceito está relacionado com a interdependência das pessoas.Descobre-se, cada vez mais, que os seres têm entre si uma origem e um destinocomuns, que possuem dores e carregam sonhos comuns. Daí que nasce essanova percepção de que somos solidários em tudo, na vida, na sobrevivência e namorte. (Cf. Boff, L. “Ethos Mundial. Um Consenso Mínimo entre os Humanos.”Ed. Letraviva, Brasília, 2000, p. 109ss)

A solidariedade parte deste princípio de que todos nós somos seres derelações, e nesta rede que nos interconecta, chamados à reciprocidade solidária.Decorre como uma conseqüência natural esse desejo de cuidar e de ser cuidadopara que todos possam continuar a existir. Nesta forma de pensar não abrimosespaço para a exclusão ou marginalização de seres humanos. Luta-se contraum tipo de cultura que coloca a ambição acima da dignidade.

Decorre, pois, que a ética e a solidariedade estão intimamente ligadas.Se a Ética moderna hoje é, também, uma civilização cada vez mais desenvolvida

117

Subsídio 09

intelectualmente, desenvolve-se também o seu poder culto e a exigência torna-se cada vez mais constantes em qualquer área que possa afetar o bem-estarsocial. Trata-se de garantir a vida com qualidade para todos. Nisso o indivíduo eprincipalmente os líderes têm que assumir um compromisso para a melhoria davida social para todos. E assim será com o passar dos tempos, cada vez maisa sociedade irá se impor para que o indivíduo reveja seus conceitos egoístas.

A Ética encara a virtude como prática do bem e esta como a promotora dafelicidade dos seres, quer individualmente ou coletivamente, onde são avaliadosos desempenhos humanos em relação às normas comportamentais pertinentes.E a solidariedade, por sua vez, passa a ser a condição de felicidade das pessoas.Ela transforma em atos o pressuposto ético de que ninguém consegue ser felizsem fazer o outro feliz.

O caminho da virtude é sempre possível. Enquanto o homem existir, temele a possibilidade de modificar sua conduta e imprimir direção diferente àssuas ações. E todos os homens orientam-se na vida por um critério valorativo,conferindo assim um sentido pessoal em suas vidas. Esse critério precisa, cadavez mais, passar pelo grau de importância que o outro tem para minha vida.

1.5 UMA SOCIEDADE ÉTICA E SOLIDÁRIA

Neste início de século, as sociedades contemporâneas vivem um quadrode perplexidade, provocado pelas profundas transformações sociais, políticas,econômicas, culturais, científicas e tecnológicas. A perplexidade é ainda maiorquando se considera osgraves problemas soci-ais que o atual proces-so da chamada “glo-balização” vem provo-cando. A lógica econô-mica neoliberal, quenorteia a “globalização”,tem conduzido à morteda solidariedade.

Nesse contexto,o problema da exclusãoaparece como um temachave para a compreen-são da sociedade con-

118

Ética e Solidariedade

temporânea. A exclusão é apresentada como categoria mais ampla para acompreensão do processo social, para a redefinição dos modelos teóricos epara a reconstrução dos mecanismos de gestão do social. Em face de umasociedade que impõe a lógica da exclusão, cresce a importância da análise dosmecanismos de integração social.

Entretanto, esses mecanismos só podem ser pensados se houver umareflexão sobre a sociedade como um todo, exigindo-se o exame da própria idéiade reconstrução da solidariedade para podermos imaginar novas formas desolidariedade.

Na medida em que a construção do espaço público, isto é, do governo emsuas várias instâncias, implica a existência de uma referência de solidariedadeentre os atores sociais, podemos considerar o espaço público, essencialmente,como um espaço de solidariedade. Por outro lado, devemos também procurarpensar o espaço da solidariedade como um espaço de diversidade. O espaçoda solidariedade deve garantir a unidade incorporando a diversidade. Unidade ediversidade devem coexistir na lógica da solidariedade.

Neste sentido, fazendo uma relação da vida em sociedade com a ética ea solidariedade podemos distinguir vários rostos presentes na prática solidária(vamos nos basear no estudo de José Fernando de Castro Farias – Prof. deDireito da UFRJ)

- A solidariedade: um paradigma perdido

A expressão solidariedade aparece no debate político cotidiano com muitaambigüidade, mas em torno dessa palavra podemos encontrar alguns elementosimportantes para a compreensão dos impasses da sociedade contemporânea,e um fio condutor na reflexão sobre o espaço público.

É apenas no fim do século XIX, na Europa, que encontramos a descobertada solidariedade. Então a palavra solidariedade designava uma nova maneira depensar a relação indivíduo-sociedade, indivíduo-Estado, enfim, a sociedade comoum todo. A lógica da solidariedade aparece, então, como um discurso coerenteque não se confunde com “caridade” ou “filantropia”, traduzindo uma nova maneirade pensar a sociedade e uma política concreta, não somente de um sistema deproteção social, mas também como “um fio condutor indispensável à construçãoe à conceitualização das políticas sociais”.

A solidariedade era compreendida, ainda, como uma nova política socialonde havia o esforço do Estado que também facilitava a emancipação dasociedade civil. Basta lembrar que é aqui que começam a aparecer os segurossociais.

119

Subsídio 09

Essa idéia de solidariedade vinha carregada de uma marca ética. Algunsprincípios eram fundamentais e a essência da atividade de lidar com a coisapública. Na gestão daquilo que é público está sempre a dimensão dos laçossociais e comprometimento com o bem e a felicidade de todos.

Porém, hoje, a sociedade comprometida com a solidariedade através deprincípios éticos parece passar por um desencanto. Foram sufocadas ou sebusca sufocar as grandes tentativas de construção de uma democracia social epluralista. O Brasil é um exemplo disso. A liberdade, a solidariedade, e as políticasde inclusão e o pluralismo da vida social são forças motoras desta nova sociedade.Elas não podem morrer.

A palavra solidariedade tornou-se uma espécie de fantasma na memóriado homem contemporâneo, servindo para dar boa consciência a uns e amenizara má consciência de outros. Após todas as aventuras e desventuras do séculoXX, constatam-se os problemas da fome, saúde, educação, desemprego, etc.Problemas estes postos pelas profundas desigualdades sociais. Assiste-se àescalada da falta de ética, da intolerância, do egoísmo e da exclusão social; asideologias e as doutrinas políticas estão em crise; as revoluções se perderamna burocracia ou no terror.

- A reconstrução da solidariedade

Precisamos compreender,antes de tudo, que a crise atualpressupõe a reconstrução dasolidariedade.

Essa reconstrução passapor uma concepção de sociedadeque seja capaz de vislumbrar umaunidade, levando em conta apluralidade da solidariedade vividae permitindo o encontro de umaauto-ética com uma ética comu-nitária. Isto nos remete a uma dasquestões fundamentais dereflexão sobre a sociedade con-temporânea: como articular oparticular e o universal? Ou ainda,como fazer com que a minha e a sua felicidade sejam também a felicidade detodos.

120

Ética e Solidariedade

Para Refletir

1. O que é ética?

2. Quais as condições para que aconteçam gestos solidários?

3. Porque é importante, no mundo de hoje, reconstruir a ética e a solidariedade?

4. Cite exemplos de ações éticas e solidárias que acontecem em sua família e na

sua comunidade.

Mais do que nunca é preciso encontrar uma saída para o falso dilemaentre o isolamento e a massificação. Os impasses colocados pela sociedadecontemporânea obrigam-nos a rejeitar, por um lado, o individualismo, e, por outrolado, a tendência que sufoca o indivíduo.

Nesse sentido, a reconstrução da solidariedade deve tentar forjar umaunidade levando em conta a complexidade da vida social. A solidariedade nãopode deixar de partir das próprias práticas existentes na teia da solidariedadesocial, e de abrir caminho para a criação de um espaço social intermediárioentre a autonomia pública e autonomia privada, o Estado e a sociedade civil, oEstado e o empresariado, o político e o econômico, o universal e o particular,concebendo-se uma nova forma de solidariedade que estabelece relações decomplementaridade.

Precisamos compreender que o Estado já não é mais a única possibilidadede reconstrução da solidariedade. Neste sentido ele já se decretou como falido.Então, ao lado do Estado que confisca demais o cidadão através de tantosimpostos, a sociedade civil deve participar. Isso já passou a ser uma exigênciaética do princípio da participação inclusiva dos cidadãos.

A solidariedade, portanto, é vista como uma prática alimentada pela própriacomplexidade social, que exige uma concepção aberta, flexível e pluralista,baseada cada vez mais na autonomização da sociedade civil, dos grupos sociaise também dos indivíduos, pois estes não são jamais vistos de maneira isolada,mas no quadro da trama de solidariedade existente na sociedade.

121

Subsídio 09

Ele tinha onze anos e a cada oportunidade que surgia ia pescar no caispróximo ao chalé da família, numa ilha que ficava em meio a um lago. A temporadade pesca só começaria no dia seguinte, mas pai e filho saíram no fim da tarde parapegar alguns peixes cuja captura estava liberada. O menino amarrou uma isca ecomeçou a praticar arremessos provocando ondulações coloridas na água. Logo,elas se tornaram prateadas pelo efeito da lua nascendo sobre o lago.

Quando o caniço vergou, ele soube que havia algo enorme do outro lado dalinha. O pai olhava com admiração, enquanto o garoto, habilmente e com muitocuidado, erguia o peixe exausto da água. Era o maior que já tinha visto, porém suapesca só era permitida na temporada. O garoto e o pai olharam para o peixe, tãobonito, suas guelras movendo para frente e para trás.

O pai acendeu um fósforo e olhou para o relógio. Pouco mais de 10 da noite.Ainda faltavam quase duas horas para a abertura da temporada.

Em seguida, olhou para o peixe, e depois para o menino, dizendo:- Você tem que devolvê-lo à água, filho.- Mas, papai! Reclamou o menino.- Vai aparecer outro, insistiu o pai.- Mas, jamais tão grande quanto este, choramingou a criança.O garoto olhou à volta do lago, não havia outros pescadores ou embarcações

à vista. Voltou a olhar para seu pai. Mesmo sem ninguém por perto, sabia pelafirmeza de seu olhar, que a decisão era inegociável. Devagar, tirou o anzol daboca do enorme peixe e o devolveu à água. O peixe movimentou rapidamente ocorpo e desapareceu.

Naquele momento o menino teve certeza de que jamais pegaria um peixetão grande quanto aquele. Sua intuição estava certa. Ele continua a pescar, masnunca mais pescou um peixe tão maravilhoso como aquele. Hoje, 34 anos após,leva ainda seus filhos a pescar. E sempre vê o mesmo peixe quando se deparacom uma questão ética.

Porque a ética, conforme seu pai lhe ensinou, é simplesmente uma questãode certo e errado.

James Lenfestey

MÍSTICA DA ÉTICA E DA SOLIDARIEDADE

Capítulo II

UMA PESCARIA INESQUECÍVEL

122

Ética e Solidariedade

A Ética e a Solidariedade são doisconceitos que, por mais que apareçamem evidência, deixam sempre dúvidasquanto à forma de explicá-los. A segundaparte deste estudo vai em busca dafundamentação bíblica e cristã para estestermos.

Nos interessa, neste momento,buscar compreender por que a sociedadevive hoje e viveu em outros tempos suacrise na ética e nos princípios huma-nitários que fundamentam a solidarie-dade.

A mística da solidariedade parece nos empurrar à frente, às utopias deque uma outra sociedade e um outro mundo são possíveis.

Com certeza, uma força social importante para a criação da consciênciaética e solidária pode ser a Igreja. Mas o que ela tem feito? Também em SãoLeonardo Murialdo podemos encontrar subsídios que nos ajudem a compreendera importância da ética e da solidariedade. Afinal, também ele é um dosinspiradores de nossas ações e um convite ao engajamento sociotransformador.

2.1 A CRISE DA ÉTICA SOLIDÁRIA

Vivemos um momento histórico em que o tempo é um fugitivo. Tudo épassageiro. Nada tem muita duração. E o que mais conta é aquilo que dá umresultado imediato. Perdeu-se a paciência da espera. Nesse sentido o horizontedo futuro se apaga. Assim, aos poucos, o horizonte histórico se apaga, assimcomo fazem as luzes de um palco após o espetáculo. E, como conseqüência,a utopia sai de cena, o que permite Fukuyama afirmar: “A história acabou”. Aocontrário do que adverte Coélet, no Eclesiastes, não há mais tempo para construire tempo para destruir; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para fazer aguerra e tempo para estabelecer a paz. O tempo é agora. E nele se sobrepõemconstrução e destruição, amor e ódio, guerra e paz.

Para Frei Beto a felicidade, que em si resulta de um projeto temporal,reduz-se então ao mero prazer instantâneo derivado, de preferência, da dilataçãodo ego (poder, riqueza, projeção pessoal etc.) e dos “toques” sensitivos (ótico,epidérmico, gustativo, etc). A utopia é privatizada. Resume-se ao êxito pessoal.A vida já não se move por ideais nem se justifica pela nobreza das causas

123

Subsídio 09

abraçadas. Entra-se na era da dessolidariedade. Basta ter acesso ao consumoque propicia excelente conforto: o apartamento de luxo, a casa na praia ou namontanha, o carro novo, o kit eletrônico de comunicações (telefone celular,computador etc), as viagens de lazer. Uma ilha de prosperidade e paz imune àstribulações circundantes de um mundo movido à violência. O Céu na Terra -prometem a publicidade, o turismo, o novo equipamento eletrônico, o banco, ocartão de crédito, etc.

O conceito de solidariedade passa por um grau de comprometimentocom a vida do outro. Envolve a pessoa com a história do outro, se estende aoutros, à comunidade, ao mundo. Deixa de ser gesto isolado para envolver apessoa toda em todo o seu ser e seu tempo. É por isso que hoje voltamos a falartanto dela. Porque essa atitude é mais rara. O individualismo e o endeusamentodo eu estão matando qualquer gesto de altruísmo, de saída do “eu” em direçãodo “tu”, dos “outros”, ou mesmo do “nós”.

Nem a fé escapa à subtração da temporalidade. O Reino de Deus deixade situar-se “lá na frente” para ser esperado “lá em cima”. Mero consolo subjetivo,a fé reduz-se à esperança de salvação individual. É o passaporte que credenciao fiel a ingressar no céu, livre das agruras desse tempo de vida. Ou seja, passa-se a idéia de que o céu é uma situação longínqua e impossível de acontecer no“aqui e agora”. Também que ele não é um projeto de comunidade, mas que seliga ao antigo lema do “salva tua alma”.

Multiplicam-se ações, respingam-se uma infinidade de gestos de “caridade”mas todos muito isolados de qualquer compromisso com propostas quecomprometam tempo, que acalentem sonhos ou utopias. Tudo é para agora esomente essa vez. Outrora, havia namoro, noivado e casamento. Agora, fica-se.Após anos de casado, pode-se voltar ao tempo de namoro e, de novo, ao decasado. Não existe compromisso com projeto, existe ligação forte com as açõesisoladas de processo e de compromissos maiores. São as “descargas deconsciência” para ir ajeitando a própria vaga no céu que ainda está muito distante.Mas que se conquista com “abençoados depósitos bancários”, onde os santossão seus gerentes.

A destemporalização da existência alia-se à desculpabilização daconsciência. Uma mesma pessoa vive diferentes experiências sem se perguntarpor princípios éticos ou religiosos, políticos ou ideológicos. Não há pastores ebispos corruptos e utopias que resultaram em opressão? A TV não mostra ohonesto ontem, vigarista hoje e o bandido fazendo gestos humanitários? Ondereside a fronteira entre o bem e o mal, o certo e o errado, o passado e o futuro?

Porém, nisto tudo, precisamos lembrar sempre que o eterno irrompeu nahistória. O fruto do amor é a vida. Eis a mística emergindo e encobrindo a árdua

124

Ética e Solidariedade

e trivial seqüência do cotidiano. Porque vivemos num capitalismo globalizado,que nega a vida de milhões de pessoas para assegurar o requinte de uns poucos,é que somos convocados a fazer de nossas vidas alimentos para que outrostenham vida. A solidariedade nasce da gratuidade e, portanto, da espiritualidade.Alguns se movem em direção aos outros movidos por ambições de poder, buscavaidosa de reconhecimento e outros impulsos egocêntricos. Mas o desafio écomo criar uma cultura da solidariedade capaz de nos impelir misticamente nadireção dos outros, sobretudo dos excluídos, privados involuntária e injustamentedos bens essenciais à sobrevivência biológica e à dignidade humana.

As sementes dessa cultura da solidariedade já se encontram nas grandestradições religiosas, nos valores comunitários dos nossos povos indígenas, naexperiência dos místicos e no testemunho de revolucionários que, como Jesus,Murialdo e tantos deram suas vidas para que outros tivessem vida. E o caminhojá existe, aberto pelos movimentos sociais, pelas ONGs, pelas cooperativas,por todo tipo de organização que congrega pessoas centradas em objetivosaltruístas.

O desafio, agora, é como quebrar a distância que existe entre projetossociais e dimensão subjetiva, causas coletivas e amorosidade pessoal,transformação social e valores éticos. Esta é uma urgente tarefa que temos pelafrente: saber combater os vícios egocêntricos que moldam em nós os “velhoshomem e mulher” e, esvaziados de nós mesmos, plenos de amor, criar relaçõessociais e estruturas sociais solidárias e cuja fonte em nosso próprio interior, láonde habita Aquele que é mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos, umoutro que não apreendemos e, no entanto, funda a nossa verdade identidade, ade seres vocacionados ao amor: Deus.

2.2 EM BUSCA DA MÍSTICA DA ÉTICA E DA SOLIDARIEDADE

a) Existe uma caridade ética noCristianismo?

A caridade cristã vem daquele preceito de JesusCristo: Eu vos dou um novo mandamento: que vosameis uns aos outros como eu vos tenho amado. Ouainda: “Ninguém tem maior amor do que aquele quedá a vida por seus amigos”. Essas coisas sãorevolucionárias, elas mudam tudo. Se, de fato, a gentefaz disso um programa de vida, tudo muda. Sobretudohoje, numa sociedade muito excludente, que

125

Subsídio 09

aprofunda as desigualdades, que acaba excluindo no sentido de que muitos nãosão mais importantes, os que não estão incluídos. Por exemplo uma África:metade da África pode afundar e ninguém está interessado. E isso não podeacontecer! Para os cristãos, isso é inaceitável. Se a tecnologia avançou tanto edesempregou a muitos, os homens têm que encontrar formas que incluam atodos e façam que os benefícios disso sejam distribuídos a todos. Porque oshomens são bem mais que suas máquinas, assim como o Criador é maior quesuas criaturas. Aí é que está a caridade no seu sentido maior, de que realmentetodos – todos, sem exceção – devem ser incluídos. Trata-se de fazer tudo paraque todos tenham igualmente seus direitos reconhecidos e as suas oportunidadesde vida. Todos, sem distinção, todos os seres humanos. A caridade vai nessadireção. E isso é ética. Ética é reconhecer a dignidade do ser humano e agirsegundo a dignidade inviolável de cada ser humano. Esse respeito, essapromoção... Reconhecer os direitos e promover os direitos. Essa caridade écristã porque inclui a justiça social. É ética porque está empenhada em promovertodas as pessoas, a libertar as pessoas de todas as suas opressões.

Tudo isso está incluído na caridade. Só que a caridade tem alguns elementosnovos. A justiça, que deve sempre ser promovida, pela qual devemos semprelutar, é um dos ingredientes da caridade. O direito à justiça é um dos ingredientesda caridade. No entanto, a justiça sozinha não consegue cuidar das pessoas.Porque a justiça cobra, mas, por essência, não perdoa. A caridade perdoa, porisso está imbuída de uma ética cristã. Pensemos, por exemplo, no conflitoentre Israel e o povo palestino. É verdade que cada um desses dois povos têmdireito a um território contínuo, que seja seu. O direito é ser um país autônomo,com soberania, autodeterminação, como qualquer outro neste planeta, comsegurança e com o devido respeito pelo vizinho. Porém, se eles não conseguiremtambém perdoar, o futuro será muito difícil. Porque quando perdoamosreconstruímos as coisas que ficaram feridas. Se não houver perdão, haverá sempreaquele impulso interior de vingar o que ficou para trás. A caridade ética docristianismo diz: “não, você deve conseguir perdoar”. Senão, não se constrói umfuturo depois de um conflito.

b) Mística, Ética e SolidariedadeParece existir um tripé a ser perseguido dentro dos ideais cristãos: mística,

solidariedade e ética. Esse tripé propõe uma total adesão da pessoa, via esforçosde todas as ordens: seja empenhando a capacidade intelectual ou as utopiasque alimentam o compromisso permanente, bem como os recursos financeirosatravés de investimentos em projetos que emancipam o sujeito e democratizamrelações, inaugurando uma sociedade diferente. Onde depositamos nossosrecursos aí está nossa opção.

126

Ética e Solidariedade

D. Pedro Casaldáliga jáafirmava: “No ventre de Maria, Jesusse fez carne, e na oficina de José Elese fez classe”. O fascínio por estaidéia é que possibilita umreconhecimento de Deus em mim eeu em Deus, como integrante de umaclasse social desprovida de status. Olugar social de Jesus é certamente olugar dos empobrecidos, o que o tornaparceiro permanente entre os pobres.No que se refere à pobreza, existeuma tendência natural de focarmos asações na pobreza absoluta, isso decerta forma pode levar ao imediatismo, porque quase sempre a carência é decomida, vestuários, medicamentos, contas atrasadas, entre outras. Estasemergências podem gerar ações imediatas desvinculadas de qualquercomprometimento ético que exige o nascimento da cidadania. Quem organizaserviços nesta perspectiva acaba por dedicar-se a cestas básicas, campanhasde roupas usadas, “vaquinha” para comprar algum produto. A preocupação écom os eternos agradecimentos e tutela gerando um círculo vicioso. Realizareste tipo de ação é fazer movimento contrário à ética cidadã.

2.3 FUNDAMENTOS BÍBLICOS DA ÉTICA E DASOLIDARIEDADE

Os fundamentos da missão cristã, como amor que transborda, seencontram na teologia da Santíssima Trindade. Na missão de Jesus de Nazaréque foi enviado para anunciar o ano de graça do Senhor (cf. Lc 4,18s) para todaa humanidade, esse amor está configurado como solidariedade, na perspectivada gratuidade. A comunidade cristã, a Igreja, foi convocada de todos os povos eenviada para continuar essa missão até os confins do mundo e do tempo. Omagistério eclesial, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), fez aleitura do mistério da encarnação do Verbo como caminho histórico eescatológico de solidariedade. Assim “missão e solidariedade” são inseridas navida cotidiana, mas não se esgotam nela. Ambas são salvíficas ao remeter àsraízes mais profundas da miséria humana, à escravidão dos demônios queatravessa pessoas, comunidades e estruturas. Missão e solidariedade se realizamnum canteiro de obras onde procuram, geralmente apenas através de pobres

127

Subsídio 09

sinais, contribuir para a reconstruçãodas pessoas e do mundo.

A solidariedade, como compro-metimento com a justiça social, aponta,ao mesmo tempo, para um “dever”,para uma “colaboração voluntária” epara um “sacrifício” em benefício deoutrem. Ela é um dever porquerepresenta uma “restituição”. Então, éum dever ético. Nem sempre asexigências da solidariedade sãoamparadas pelo imperativo da lei.Muitas vezes, a solidariedade éinvocada, lá onde os imperativos da leiestão ausentes ou se mostraraminsuficientes, e onde é necessário quea mera legalidade seja complementadapelo amor e pela justiça. É novamentequando aparecem os imperativos éticos.

A reflexão teológica procurou articular a solidariedade humana com a“missão de Deus trino” que é amor (cf. 1Jo 4,8.16). Dizer “Deus é amor” significadizer “Deus é relação”. “Transbordar”, “comunicar” e “relacionar” são característicasdo amor. Sob a premissa de que Deus é amor e de que o ser humano é criaturadivina, a revelação de Deus é uma consequência da estrutura comunicativa doamor. Esta revelação estrutural, presente, desde os primórdios da humanidade,na história de salvação, condensou-se no Verbo enviado por Deus que se fezcarne entre nós.

O Enviado do Pai é caminho da humanidade para reverter a suadesintegração, causada pelo pecado. Jesus de Nazaré assumiu toda a naturezahumana” (Ad gentes, 3) para redimi-la. Deixou-se tocar pelo outro, o leproso, opecador e por aqueles que sofrem. Jesus, o Deus que salva, não se torna impuropelo contato com as pessoas consideradas impuras, mas as purifica, por seugesto, por sua presença e proximidade. A solidariedade da encarnação é diaconia.“O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida emredenção por muitos” (Mc 10,45). Para reestabelecer a igualdade, ele assumeas condições assimétricas “por nós” e “por todos”. A prática da solidariedade emJesus ultrapassa as fronteiras étnico-culturais, sociais e político-religiosos, noreconhecimento dos samaritanos, no olhar sobre os cegos, no contato com oleproso e na admiração da fé do centurião romano. Ele ultrapassa as convençõesda reciprocidade convencional. “Ao dares uma ceia, (...) convida os pobres, os

128

Ética e Solidariedade

aleijados, os coxos e os cegos. Serás feliz porque eles não têm como que teretribuir. Serás, porém, recompensado na ressurreição dos justos” (Lc 14,12s).A solidariedade aposta nas promessas da fé, não nos cálculos de custo-benefíciodeste mundo. A solidariedade de Jesus de Nazaré é a antecipação e a explicaçãodo significado da dimensão salvífica de sua morte na cruz.

Ao apresentar-se a si mesmo como pão da vida (Jo. 6,35), luz do mundo(Jo 8,12) e ressurreição (Jo 11,25), como bom pastor (Jo 10,11), porta (Jo 10,7),videira (Jo 15,1) e caminho (Jo 14,6), no Evangelho de S. João, Jesus nos dá osignificado de sua vida. As primeiras três autodenominações são sublinhadaspor sinais: a multiplicação dos pães, a cura do cego e a ressurreição de Lázaro.Ao identificar-se com “pão”, “visão” e “ressurreição, Jesus caracteriza a suamissão de solidariedade e, por conseguinte, a missão dos cristãos.

As intervenções de Jesus têm uma dimensão que se refere a pessoasconcretas: a um faminto, um cego e um morto. Mas, por serem sinais, apontamtambém para as enfermidades estruturais da sociedade: para a apropriação dopão por poucos, para o preconceito e a intolerância frente ao outro e o olharideológico das elites, e para a vida mutilada e tirada antes do tempo por causada idolatria do poder. “O último inimigo a ser destruído será a morte” (1Cor15,28).

A solidariedade atua como um instrumento da esperança sem limites, elatem um parentesco profundo com a utopia. A solidariedade rompe com a lógicada acumulação e com os cálculos de custo-benefício; rompe com o “eficientismo”da cultura moderna; rompe com a “cultura dos resultados e do sucesso” embenefício do testemunho e da silenciosa proclamação do Reino de Deus. Asolidariedade rompe com a racionalidade de troca e instaura a inteligência doamor; recusa-se a parcerias rentáveis e articula alianças com pobres e excluídos;rompe com a lógica da convenção do “culturalmente correto”; opta contra aconcorrência, em favor da gratuidade; não apóia medidas que reforçam adependência e busca saída para iniciativas próprias. A solidariedade denuncia asituação de acumulação. Ela aponta para a partilha. Na lógica da partilha, o pãoé para todos. O pão partilhado não acaba. O encontro no caminho se dá napartilha da palavra e do pão, do espaço e do tempo, dos dons que se têm e dosbens que a vida proporcionou. A missão da solidariedade rompe com a reclusãopré-pentecostal que pode ser geográfica e psicológica. Ela rompe com a regressãoinfantil, muitas vezes enfeitada como fidelidade à tradição ou obediência, rompecom o medo da liberdade e da alteridade, rompe com o desejo mimético quecorre atrás de modas e mercados.

Para Refletir: Textos bíblicos do Bom Samaritano - Tobias - Ester -Judite...

129

Subsídio 09

2.4 ÉTICA E SOLIDARIEDADE EM SÃO LEONARDO MURIALDO

“PARA QUE NENHUM SE PERCA”

O presente subsídio, ao tratar da Ética e da Solidariedade, põe comonorteador da reflexão o viés da “Mística de São Leonardo Murialdo”. Uma vezque o mesmo subsídio se destinaa um público bem específico, ouseja, os Leigos Amigos deMurialdo, nada mais justo quetomasse essa preocupação.Porém, vale lembrar, a ética e asolidariedade são, é claro, muitomais abrangentes do que foi a açãode Murialdo. Afinal, a ação deMurialdo foi marcada por umperíodo histórico, dentro de umcontexto histórico. Mas, o maisfascinante nisto é que ele soubeencontrar repostas aos desafiosespecíficos do seu tempo. E quesuas ações encontraramresultados tão positivos que issomereceu a fundação de umacongregação, bem como, acontinuidade desse apostolado junto às crianças, adolescentes e jovens queviviam em situação de vulnerabilidade social. Desta forma, nos compete agoraencontrar algumas tintas no seu grande mosaico pastoral.

São Leonardo Murialdo costumava definir a espiritualidade como um estilode vida, um modo de viver a experiência de Jesus de Nazaré no próprio tempo,todos os dias, no encontro com Deus e os irmãos. O amor de Deus é o fundamentoe o centro de toda a sua vida. Torna-se um homem de intensa e constanteoração, apesar de todos os seus compromissos: diretor do “Artigianelli”, Superiorde uma Congregação Religiosa, apóstolo nas várias atividades sociais.

Murialdo dizia que a humildade é uma virtude indispensável norelacionamento com Deus e com os outros. Trata-se de uma aceitação serenada própria realidade: criatura em frente ao Criador. E dessa postura nasce umavida modesta, respeitosa e compreensiva nas relações com os outros. Dessaforma, porque sentindo-se amada por Deus a pessoa é convidada a sair de si

130

Ética e Solidariedade

para encontrar o outro. É na fé que a solidariedade encontra sua razão maisprofunda. E isso Murialdo quer deixar como empenho para seus confrades deCongregação: “Portanto, onde existem pessoas em perigo, irmãos, jovens quesofrem, para lá deve correr, pronto a tudo dar, a tudo sacrificar.” Ou ainda: “Seexiste uma coisa que desejaria é aquela de vos ver e saber que vocês estãotodos felizes e contentes; e que a vossa alegria dure não apenas um dia, mastodos os 365 dias do ano.”

Nesse caminho de abraçar a espiritualidade para dar uma dimensão novapara a solidariedade, São Leonardo Murialdo sabia da importância de fazer comque os gestos de aproximação do outro precisavam tocar-lhe o coração. “Euconsidero aquele que conhece a arte de modelar a alma dos jovens, acima dequalquer pintor, escultor ou outros mestres do gênero. Educar é entre todas aobra mais divina. A criança é o que existe de mais precioso na sociedade. Ocoração é o que de mais precioso existe na criança. É a educação do coraçãoque nós visamos.”

A solidariedade assumia uma dimensão de relação muito pessoal. A açãoeducativa com as crianças, os adolescentes e os jovens, tornava-se uma açãosolidária que se comprometia com a vida e não com um momento da vida.“Nosso programa, nosso sistema de educação não é apenas para formar jovensinteligentes e laboriosos operários, muito menos sabichões orgulhosos, exibidos,mas queremos, acima de tudo, formar honestos e virtuosos cidadãos, sincerose corajosos cristãos que unam as qualidades de bom cidadão com aquelas deinstruídos e capazes artesãos.” Ele sabia da importância do trabalho, do emprego,da honestidade de vida: “Quem tem um bom trabalho, tem a grande possibilidadede viver honestamente, aliás, cristãmente. Os delinqüentes são pessoas que,não tendo ocupação ou não gostando de trabalhar, se entregam a ganhosdesonestos e, muitas vezes, acabam mal neste mundo e pessimamente nooutro.” Pode-se afirmar, através deste texto, que era sua preocupação a formaçãode pessoas que fossem viver eticamente na sociedade.

Para que uma ação educativa encontre ressonância no coração doseducandos são necessárias relações muito pessoais. A ação educativa nãopode ser massificada, especialmente por que cada menino ou menina é um serúnico, com uma vida única. Murialdo insistia na idéia de que o educador precisaconhecer o caráter, a moralidade de cada um. Dava importância para o fato danecessidade de conhecer o nome de cada um. Bem como, que esta tarefa difícile que, por isso, exigia empenho, ou postura ética no projeto da instituição: “Nãodevemos esquecer que ao acolher meninos abandonados, encontraremos jovensignorantes, mal educados, cheios de vícios que se originam de uma situação deabandono.”

São Leonardo Murialdo tornou-se uma referência para a Igreja e para a

131

Subsídio 09

ação social de seu tempo. Possuidor de uma grande abertura de mente e umaaguçada atenção aos sinais dos tempos, fez de seu apostolado um estilo devida voltada para a solidariedade e a ética no trato com a promoção das pessoas.Sente que é preciso coesão e cooperação de todas as forças e movimentoscatólicos. Ou seja, defendia firmemente a idéia que a ação da solidariedadepode encontrar maiores resultados quando ela se faz em rede de sustentação,em parcerias. Acaba escolhendo para si e para a Congregação que fundava umestilo próprio de vida:

a) de modéstia, na consciência dos próprios limites;

b) de gratuidade, sem pretensões de protagonismos;

c) de presença serena, construtiva e pacificadora.

Vejamos uma postura de sua ética, na busca de formar rede de parceiros,num dos seus escritos: “Nosso lema é que sejamos uma só coisa. Unidos nafé, no afeto, nas obras. Unidos de coração, unidos nas obras. Para ter unidadedevemos ter, antes, benevolência: suportemos os erros com bons olhos, doçura,firmeza, mas não com amargura.” Talvez seja por isso mesmo que convocavaos leigos e as mulheres para o apostolado social: “Um leigo, de qualquer classesocial, pode ser hoje um apóstolo não menos que o padre, e, em algunsambientes, mais que o padre.” “A mulher pode sair das cercas das própriasparedes, também o devem, pois lhe espera uma missão na Igreja e na sociedade.”

Podemos concluir afirmando que a solidariedade de Murialdo passa poressa perspectiva: através da educação junto aos pequenos empobrecidos eabandonados é preciso incidir no tecido social. Este é que está apodrecido parao amor, a justiça, a verdade, o bem. E nele a ética se define como esse empenhoincansável de salvar a sociedade através do investimento educacional na criança,no adolescente e no jovem, especialmente aqueles mais vítimas das mazelasdesta mesma sociedade.

Para Refletir

1. O que mais chamou atenção da história “Pescaria Inesquecível”? Por quê?

2. Comente sobre a crise da ética solidária.

3. Em que está baseada a ética cristã? Cite exemplos a partir de textos bíblicos.

4. Como Murialdo costumava definir a espiritualidade e o que ele quis dizer

quando falou “Para que nenhum se perca”?

5. Como foi a solidariedade e a ética de Murialdo?

132

Ética e Solidariedade

Certa vez, uma matilha de lobos estava viajando pela floresta, quandodois deles caíram num buraco.

Assustado, o grupo rodeou o buraco e, quando percebeu quão profundoele era, todos gritaram que os dois podiam considerar-se mortos.

Os dois ignoravam o aviso e tentaram, com toda força e vontade, pularpara cima e sair daquilo que mais parecia um precipício.

A matilha continuou gritando que não adiantava tentar sair.

Depois de algumas tentativas, um dos lobos prestou ouvidos ao avisode que não adiantava e desistiu. Morreu.

O outro lobo continuou tentando sair, colocando em cada pulo toda asua força. E o grupo lhe gritava paradesistir.

Enquanto a matilha gritava, olobo no fundo do buraco pulava cadavez com mais força e vontade, atéque conseguiu sair.

Então todos os rodearamassustados, perguntando: “Você nãonos ouviu?”.

O lobo explicou que era surdoe que durante todo o tempo acreditaraque iria sair porque o grupo o estavaencorajando.

ÉTICA E SOLIDARIEDADE: URGENTE

Capítulo III

O VALOR DO ENCORAJAMENTO

133

Subsídio 09

Pode uma sociedade ou um mundo viver sem ética? Como seria umasociedade sem a ética? E se todas as pessoas buscassem formar uma correntede solidariedade? Ainda existiriam excluídos no mundo? São todas perguntasque, no mínimo, nos deixam intrigados.

A ética e a solidariedade são, necessariamente, duas palavras que sãoboa parte da chave para as soluções dos nossos problemas de humanidade.De uma ética social depende o bom exercício da política, a prática da justiça.Sem ela as nossas instituições correm o risco de atenderem os pobres ou osnecessitados de ajuda sem dar a alma a esse serviço. Correm o risco de setornarem cheias de gente pobre e pobres de humanidade.

A cultura da paz não se espalha sem adultos que testemunhem ematitudes transparentes o compromisso com a verdade, com o bem de todossem se importar com diferenças. A paz nasce com a justiça e trilha os caminhosda ética e da solidariedade.

3.1 A IMPORTÂNCIA E A NECESSIDADE DA ÉTICA

a) Por que a ética é necessária e importante?

A ética tem sido o principal regulador do desenvolvimento histórico-culturalda humanidade. Sem ética, ou seja, sem a referência a princípios humanitáriosfundamentais comuns a todos os povos, nações, religiões etc, a humanidade játeria se despedaçado até à autodestruição. Também é verdade que a ética nãogarante o progresso moral da humanidade. O fato de que os seres humanos

são capazes de concordarminimamente entre si sobreprincípios como justiça,igualdade de direitos,dignidade da pessoa humana,(cidadania plena,solidariedade, etc) criachances para que essesprincípios possam vir a serpostos em prática, mas nãogarante o seu cumprimento.As nações do mundo jáentraram em acordo em tornode muitos desses princípios.

134

Ética e Solidariedade

b) Por que se fala tanto em ética hoje no Brasil?O mundo todo fala em ética. Temos motivos de sobra para nos

preocuparmos com a ética no Brasil. Estamos assistindo a uma degradaçãomoral acelerada, principalmente na política. Ou será que isso sempre existiu?Será que hoje ela está apenas vindo a público? Uma ou outra razão, ou ambascombinadas, são motivos suficientes para uma reação ética dos cidadãosconscientes de sua cidadania. O tipo de desenvolvimento econômico vigente noBrasil tem gerado estruturalmente e sistematicamente situações práticascontrárias aos princípios éticos: gera desigualdades crescentes, gera injustiças,rompe laços de solidariedade, reduz ou extingue direitos, lança populaçõesinteiras a condições de vida cada vez mais indignas. E tudo isso convive comsituações escandalosas, como o enriquecimento ilícito de alguns, a impunidadede outros, a prosperidade da hipocrisia política de muitos, etc. Afinal, a hipocrisiaserá de todos se todos não reagirem eticamente para fazer valer plenamente osdireitos civis, políticos e sociais proclamados por nossa Constituição.

Somos éticos quando fazemos, pelos outros, tudo o que podemos fazer,tudo o que está ao nosso alcance fazer. Ética é isso, é a prática do bem até olimite de nossas forças. Quando atingimos esse limite, temos a satisfação dodever cumprido. Que é a primeira condição para chegarmos à felicidade.

c) Por que e a quem a falta de ética prejudica?A falta de ética prejudica mais a quem tem menos poder (menos poder

econômico, cultural e político). A transgressão aos princípios éticos acontecesempre que há desigualdade e injustiças na forma de exercer o poder. Issoacentua ainda mais a desigualdade e a injustiça. A falta ou a quebra da éticasignifica a vitória da injustiça, da desigualdade, da indignidade, da discriminação.Os mais prejudicados são os mais pobres, os excluídos.

A falta de ética prejudica o doente que compra remédios caros e falsos;prejudica a mulher, o idoso, o negro, o índio, recusados no mercado de trabalhoou nas oportunidades culturais; prejudica os analfabetos no acesso aos benseconômicos e culturais; prejudica as pessoas com necessidades especiais(físicas ou mentais) a usufruir da vida social, ...

d. Em que e onde a ética está fazendo mais falta no Brasil?A falta e a quebra da ética ameaça todos os setores e aspectos da vida e

da cultura de um país. Mas não há como negar que, na vida política, a falta ouquebra da ética tem o efeito mais destruidor. Isto se dá porque o político deve

135

Subsídio 09

ser um exemplo para a sociedade.

A política é o ponto de equilíbrio de uma nação. Quando a política nãorealiza sua função, de ser a instância que faz valer a vontade e o interessecoletivo, rompe-se a confiabilidade e o tecido político e social do país. O mesmoacontece quando a classe política apóia-se no poder público para fazer valerseus interesses privados.

A multiplicação de escândalos políticos no Brasil só não é mais grave queuma de suas próprias conseqüências: a de converter-se em coisa banal, coisanatural e corriqueira, diante da qual os cidadãos sejam levados a concluir: “semprefoi assim, nada pode fazer isso mudar”, ou coisa ainda pior: “ele rouba, masfaz”. Do outro lado, uma vida política saudável, transparente, representativa,responsável, verdadeiramente democrática, ou seja, ética, tem o poder dealavancar a autoconfiança de um povo e reerguer um país alquebrado e ameaçadopela desagregação.

A ética é um comportamento social, ninguém é ético num vácuo, outeoricamente ético. Quem vive numa economia a-ética, sob um governo anti-ético e numa sociedade imoral acaba só podendo exercer a sua ética em casa,onde ela fica parecendo uma espécie de esquisitice. A grande questão destestempos degradados é em que medida uma ética pessoal onde não existe éticasocial é um refúgio, uma resistência ou uma hipocrisia. A ética deve fundar-seno bem comum, no respeito aos direitos do cidadão e na busca de uma vidadigna para todos.

3.2 CRIATIVIDADE EOUSADIA

A ideologia é um sistema deidéias, de símbolos, de critérios, deatitudes que têm uma coerência entresi, de tal modo que se distingue emesmo se opõe a outro sistema deidéias, etc. A ideologia serve paraacolher, selecionar e controlar ainformação.

A cultura, por sua vez, é maisampla que a ideologia, porque incluiidéias, símbolos, atitudes nãocoerentes, não lógicas entre si (como

136

Ética e Solidariedade

os sonhos, a poesia, os gestos espontâneos), além de objetos, de costumes emesmo de crítica à ideologia, de atitudes éticas. Cultura é cuidado ou cultivo davida em todas as suas formas, sejam humanas, espirituais ou naturais.

Geralmente, as ideologias articulam idéias de grupos e mesmo de classessociais. Nestes casos, o controle das informações é mais evidente do que oacolhimento e a seleção. O controle expressa o poder de dividir, de separar oque está dentro e o que está fora da ideologia e portanto do grupo que a defende.As ideologias grupais estabelecem e mantêm alguma forma de dominação entredirigentes e dirigidos, funcionando como cimento social dos grupos.

Para o professor universitário Sérgio Luis Boeira (Univali e Udesc - SC) aética é a noção de limite do poder (controle da informação) existente nasideologias. A atitude ética se distancia do poder sobre os outros (e sobre anatureza) e evita ser objeto de qualquer ideologia. A ética pressupõe liberdadepsicológica e desenvolvimento do potencial humano, ou seja, do potencial intuitivo,perceptivo, intelectual e emocional do indivíduo. Ao justificar sua atitude ética,no entanto, o indivíduo compõe necessariamente uma ideologia sobre a ética. Enovamente corre o risco de ficar prisioneiro das limitações ideológicas e de usarseu discurso como poder sobre outrem. Bem como, quando alguém não aceitaa ideologia do grupo, por considerá-la injusta, excludente ou imprópria, começaa acontecer uma libertação social. Aí entram a criatividade e a ousadia paradizer não às maiorias. Deixa de ter sentido aquela velha afirmação: “Todo mundofaz assim”.

Podemos afirmar que as atitudes éticas dependem também de umaconstante crítica das ideologias. A crítica das ideologias, que possibilita a ética,depende de uma compreensão do funcionamento e do sentido das ideologias. Épreciso saber a quem elas beneficiam e a quem elas bloqueiam, em cadacircunstância. É preciso desvendar a lógica do poder, a forma pela qual ospoderosos utilizam as informações para manter-se como dirigentes de grupos.

Assim concluímos que a ética é uma atitude sempre transitória, que requerdo indivíduo uma liberdade e um desenvolvimento de seu potencial humanomaiores, mais profundos do que as atitudes não-éticas ou contrárias à ética.Agir eticamente é ousar ser humano em um grau mais elevado, a partir do qualé possível perceber as limitações ideológicas e comportamentais dos grupos. Epor isso que se fala na ética enquanto relação com a criatividade e a ousadia.Para viver com dignidade ética num mundo marcadamente corrupto é necessárioser criativo no uso de atitudes e posturas que acabem somando mais parceirosna luta pela transparência das relações. Também a ousadia é necessária porqueé preciso mostrar que a vida pode ser diferente e que não se perde nada ao sercorreto e justo. Essa é a ousadia que denuncia através das atitudes e atravésdas ferramentas criadas pela justiça.

137

Subsídio 09

3.3 CUIDADORES E CUIDADO

Cuidadores e Cuidado: eis aí duas características que formam o perfil daspessoas que se envolvem com crianças e adolescentes. São cuidadores depessoas e devem ser pessoas cheias de cuidados. Cuidado tem tudo a ver com

o humano, com o ser que se humanizana razão e na arte de viver e a éticacomo dimensão e prática humana seconstitui em dever, com a função deexplicar e influir na moral afetiva, definira essência do comportamento moral,ou dos atos humanos.

O Cuidado se insere comoresposta ao bom convívio entre os seresque fazem o pacto social de bem viver,pacto de relações que tecem a cadadia, no sentido de dar conta da vida, dafelicidade e prazer de viver emcomunhão com outros homens.

A Ética é um dever que respondea valores intrínsecos, como porexemplo, quando devo respeitar odireito do outro. Direito a quê? Àfelicidade, ao prazer, ao gozo da vida.Quando, no primeiro capítulo deste

subsídio, descrevemos a ética, vimos que ela orienta para essa postura: setenho direito à felicidade, tenho o dever de respeitar a felicidade do outro.Eticamente, tenho não só o dever de respeitar, mas de promover a felicidade dooutro, porque “eu” e o “outro” estamos aqui para sermos felizes e vivermos a vidaem comunhão com outros seres. Assim, tenho direito à felicidade e o dever derespeitar a felicidade do outro e, porém, juntos, temos o dever de zelar por estafelicidade.

Pode parecer estranho para nós Leigos Amigos de Murialdo falarmos emética como prática simples do cotidiano, porque conceitos éticos normalmentefazem parte de grandes compêndios de filosofia. Mas ética é, em sua essência,uma prática cotidiana reflexiva, envolve homens e mulheres e suas relações dodia a dia.

De certa forma, estamos carentes de práticas éticas de cuidado nocotidiano de um mundo que se globaliza, que busca trabalhar todos os seres

138

Ética e Solidariedade

humanos como iguais e aniquila as diferenças.

Estamos carentes de uma ética pelo viés do cuidado. Cuidado quetranscende à esfera individual, que elege valores universais e exige queextrapolemos o eu e o nós em busca do juízo universalizável, juízo no qual osmeus interesses valem tanto quanto os seus e os nossos tanto quanto os vossos.Uma ética que zela pela felicidade, que compreende o próprio direito e gozo àvida. A ética do cuidado é aquela parte da ética que está interessada nos outros.Ela faz com que a pessoa humana saia de si mesma e se interesse com o outroque está fragilizado ou carente de ajuda. Então, o cuidador é uma pessoa muitoespecial, porque carregado do sentimento de compaixão e comprometida coma solidariedade.

O cuidado é um princípio básico, oriundo da biologia, que também nosindica um caminho ético. Sem cuidado, a vida não sobrevive. Tudo o que fazemosvem acompanhado de cuidado, pois sem ele erramos, ofendemos e destruímos.A maior força que se opõe à entropia é o cuidado, pois ele permite que as coisase as vidas durem mais tempo. Para Leonardo Boff, o cuidado é uma relaçãoamorosa para com a realidade; anula as desconfianças e confere sossego e paza quem o recebe. Onde há cuidado, não há violência. E tudo o que amamos,também cuidamos. Trata-se da importância do cuidado. Sem cuidado, a vidanão sobrevive. Tudo o que fazemos vem acompanhado de cuidado, pois sem eleerramos, ofendemos e destruímos. A maior força que se opõe à entropia é ocuidado, pois ele permite que as coisas e as vidas durem mais tempo.

Cuidadores são pessoas que cuidam. Os cuidadores têm facilidade devoltarem o olhar para o outro. Eles sentem-se bem enquanto fazem o bem. Eesse é um jeito de cuidar de si mesmo. Porque querer bem para si é mais doque paralizar-se na frente do espelho das vaidades e individualismos.

Então, para que alguém possa ser feliz, o que nos é necessário? Umprojeto ético que se baseie em valores que, em primeiro lugar, promova a vida, aliberdade, a justiça, a confiança, o respeito e o cuidado. Ser feliz significa viver avida na sua plenitude. Alimentar-se de pão e palavras, ser criativo, poder darvazão a nossos medos, brincar no ócio e realizar-se no trabalho e ser muitosensível e comprometido com o outro que vive com a gente, ao nosso redor, emnossa cidade, neste mundão que é nosso planeta. É ter direito à felicidade eprazer na família, no trabalho, na comunidade, na convivência, no voluntariado,na participação solidária. É direito de todos os sujeitos que participam destaconstrução, deste desfrute prazeroso da vida.

Pautar nossa vida em princípios éticos de cuidado é colocar-se no lugardo outro, o outro que será o eu amanhã e vice-versa.

Neste sentido, a ética constitui-se, não em uma nova visão, mas

139

Subsídio 09

conseqüência de um olhar holístico - olhar que considera o homem integralmente,constituído de razão e sensibilidade. Derivando daí, o cuidado como conceitointegrante de uma prática ética, dimensão do ser humano.

3.4 NA CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA

Eric Hobsbawn, talvez o historiador vivo mais importante da atualidade,sinaliza o desafio para esse século 21: romper com o pensamento que aceita alógica do mercado como o único caminho para o desenvolvimento e ousarexperimentar novos caminhos, perseguir as utopias da igualdade, da solidariedade,da justiça social. O desafio para o século 21 é experimentar novos caminhos,perseguir utopias de igualdade, solidariedade e justiça social.

O conceito de justiça, na cultura ocidental, é um dos núcleos maisimportantes em que se fundamenta a consciência ética. A justiça se colocacomo algo que orienta a formulação da ética. Portanto, a justiça não pode desviar-se de três orientações que lhe parecem básicas:

a) A justiça como ideal utópico de igualdadeA dignidade das pessoas está diretamente relacionada com seus desejos

de igualdade. E a ética social tem sentido quando voltada para a realizaçãodeste desejo das pessoas: a igualdade. Para Marciano Vidal, o Reino da justiçaé o lugar da igualdade. E a igualdade é o valor sempre presente em toda a éticasocial. Essa dinâmica própria da igualdade é o critério básico do discernimentomoral nos problemas sociais.

b) A justiça como questionamento radicalCostuma dizer que a justiça é uma atitude ética a serviço da ordem

estabelecida. A justiça corre e correu na história o risco de ser transformada emjustificativa e apoio para as injustiças estruturais.

É preciso que se recupere essa idéia de “questionamento” ético queantecede às obrigações jurídicas. A justiça social é a que corrige ou retifica asituação social que envolve uma injustiça prévia e que, caso se mantivesse,invalidaria as condutas justas, os atos individuais de justiça. Implantar a justiçasignifica implantar a retidão que nem sempre coincide com o estabelecido. Porexemplo, se a justiça é “dar a cada um o que é seu”, o seu é mais do que aquiloque está acontecendo aí na sociedade; a justiça deverá dar a cada um aquilo deque ele foi “privado” ou “despojado”.

140

Ética e Solidariedade

c) A justiça como dinamismo de mudanças profundasPara entender a concepção de justiça é necessário também perceber sua

dinamicidade e seu caráter profético. A justiça possui um caráter ético-proféticocapaz de orientar as mudanças e os conflitos sociais. Com sua capacidade demobilização e sua dimensão utópica ela é capaz de dinamizar a sociedade econvocá-la para a mudança.

Todo o mundo olha para o Brasil como o país que, pela história de lutasde seus movimentos sociais, pela construção de novas formas de participaçãocidadã na política, pela eleição de um metalúrgico para presidente, reúnecondições para fazer a transição de um modelo econômico neoliberal para umoutro tipo de desenvolvimento, para uma nova era da civilização que supere abarbárie, a violência e a exclusão impostas pela lógica do mercado.

Mas existe uma condição fundamental para operar esta transição queprecisa ser resgatada tanto no imaginário do governo quanto no imaginário dapopulação: a de que um outro mundo é possível, a de que necessitamos enfrentaros mecanismos de regulação internacional e criar políticas públicas contrárias àmaré dominante, capazes de distribuir a riqueza e a renda, ou seja, fazer acontecera justiça. Isso é uma postura ética de respeito e comprometimento com os queficam “na praça, vendo a banda do desenvolvimento e da riqueza passar”.

Solidariedade e justiça são atributos fundamentais da cidadania. Se obom samaritano não tivesse interrompido sua viagem para socorrer o homemcaído na estrada que unia Jerusalém a Jericó, teríamos sido privados de um dosmais significativos textos do Evangelho. E do exemplo cabal de que seguir Jesusé servir ao próximo, ainda que seja ele um desconhecido.

3.5 POR UMA CULTURA DA PAZ

“As guerras nascem no espírito dos homens e é nele primeiramente quedevem ser erguidas as defesas da Paz.” (Frederico Mayor)

A ética e a paz andam de braços dados...

Uma das melhores definições sobre ato ético foi dada por Dalai Lama, quediz que “é aquele que não prejudica a experiência ou a expectativa de felicidadede outras pessoas”.

O que é paz ? Não é ausência de guerra! Existe um princípio de JesusCristo que parece definir o caminho para se chegar até ela: “Façam aos outroso que quiserem que os outros façam a vocês”!

141

Subsídio 09

Sabemos que a paz do mundo começa dentro do coração das pessoas.Quem obtém a paz interior se torna mais feliz, mais amoroso, mais concentrado,

com pensamentos mais saudáveis,e age com maior parcimônia como seu próximo.

O mundo paga, assim, umpreço muito alto pela ausência dapaz e ética no seio de seu povo.Os exemplos estão a demonstrartal assertiva. Segundo dados daUNESCO, existem 68 focos deguerras ativos sobre o planeta.

Os gastos efetuados para amanutenção desses conflitos

seriam suficientes para erradicar a fome e a miséria de nosso planeta em pelomenos dez vezes. Ao explicar o império da violência no mundo, o estudiosos dapaz asseveram que esse império se organizou nos seus diversos segmentos:drogas, terrorismo, prostituição infantil, crime organizado, guerras, abortoscriminosos, destruição do meio ambiente, etc. Colocam ainda que, apesar deos homens de bem, incluindo os pacifistas, terem empreendido intrépidosesforços na construção da paz, e do inestimável legado de contribuições a favorda pacificação, ainda não se tornou possível a implantação da organização dapaz no planeta.

Para Leonardo Boff, a base de toda construção ética, cujo campo é aprática, se baseia nesta pressuposição: a ética surge quando o outro emergediante de nós.

Poderíamos lembrar da pergunta evangélica: “Mas quem é o meu próximo?”E fazermos uma outra pergunta: “Quem é o outro?” O outro pode ser a própriapessoa que se volta sobre si mesma, analisa a consciência, capta os apelosque nela se manifestam (ódio, compaixão, solidariedade, vontade de dominaçãoou de cooperação, sentido de responsabilidade) e se dá conta de seus atos edas conseqüências que deles derivam. O outro pode ser aquele que está à suafrente, homem ou mulher, criança, trabalhador, empresário, portador de HIV,negro etc. O outro pode ser plural, como uma comunidade, uma classe social,a sociedade como um todo, ou, numa perspectiva mais global, a natureza, oplaneta Terra como Gaia e, em último termo, Deus.

Diante do outro, ninguém pode ficar indiferente. Tem que tomar posição.Mesmo não tomando posição, silenciando e mostrando-se indiferente, isto já éuma posição.

142

Ética e Solidariedade

A ética surge a partir do modo como se estabelece a relação com estesdiferentes tipos de outro. Pode fechar-se ou abrir-se ao outro, pode querer dominaro outro, pode entrar numa aliança com ele, pode negar o outro como alteridade,não o respeitando, mas incorporando-o, submetendo-o ou, simplesmente,destruindo-o. O outro é determinante. Sem passar pelo outro (que pode ser eumesmo), toda ética é anti-ética.

De todas as formas, o outro representa uma proposta que reclama umaresposta. Deste confronto entre proposta e resposta surge a responsabilidade.Ao assumir minha responsabilidade ou demitir-me dela, faço de mim um serético. Dou-me conta da conseqüência de meus atos. Eles podem ser bons ouruins para o outro e para mim. Se forem bons somente para mim e prejudicam ooutro não estou sendo ético. Quando isso acontece também não estamospromovendo a paz. Porque a cultura da paz caminha de mãos dadas com aética. Não se promove a paz com o egoísmo ou o individualismo.

Existe uma máxima nas religiões e tradições éticas do Ocidente e doOriente que fundam o discurso ético: “Não faz ao outro o que não queres quefaçam a ti.” Ou positivamente: “Faz ao outro o que gostarias que fizessem a ti.”Ou ainda: “Cuidem-se uns aos outros para terem vida e garantirem o amor.” É aregra áurea. E se falarmos do pobre e do excluído ela repercute ainda mais forteporque pede que se liberte o pobre e se inclua o excluído.

A base de toda construção ética, cujo campo é a prática, se baseia nestapressuposição: a ética surge quando o outro emerge diante de nós.

A ética do cuidado se orienta na defesa da vida e das relações solidáriase pacíficas entre os seres humanos e com os demais seres da natureza. Comodiz o poeta-cantador Milton Nascimento: “Há que se cuidar do broto para que avida nos dê flor e fruto.”

Leonardo Boff afirma que a sociedade neoliberal levou até as últimasconseqüências a visão da vantagem de uma classe social sobre a outra. Porisso, os governos administram desigualmente os bens públicos, privatizam,planejam políticas públicas e sociais pobres para os pobres e ricas para osricos e poderosos, sejam indivíduos, empresas ou classes; atendemprimeiramente a seus interesses, garantem seu tipo de consumo e são atentosàs suas expectativas. Não os incentivam a olhar para os lados onde estão osoutros e, assim, fazer e refazer continuamente a solidariedade social.

Tais governos não realizam a definição mínima de política, que é a buscacomum do bem comum e o cuidado das coisas do povo. Por isso, são anti-éticos e fautores de atitudes coletivas em contradição com os apelos éticos.Não se orientam pelo outro, que é o princípio fundador da ética básica. Nãocuidam da vida, da vida das pessoas. E não cuidando da vida das pessoas não

143

Subsídio 09

podem ser chamados de promotores da paz. É neste sentido que se fala naconstrução de uma nova cultura da paz. Ela passa e tem sua origem naadministração pública. O poder público precisa dar provas de ética e decomprometimento com a justiça social. Não se pode falar em paz quando sepratica a injustiça e se está envolvido em corrupção.

A construção da paz passa, hoje mais do que nunca, pela necessidade derespeito e cuidado com a natureza. Porque cuidar da natureza também é cuidardas pessoas. O preceito ético-ecológico urgente, hoje, é este: “Age de tal maneiraque tuas ações não sejam destrutivas da Casa Comum, a Terra, e de tudo o quenela vive e coexiste conosco.” Ou: “Age de tal maneira que tua ação sejabenfazeja a todos os seres, especialmente aos vivos.” Ou: “Age de tal maneiraque permita que todas as coisas possam continuar a ser, a se reproduzir e acontinuar a evoluir conosco.”

Ou então: “Usa e consome o que precisas com responsabilidade para queas coisas possam continuar a existir, atender às nossas necessidades e as dasgerações futuras, de todos os demais seres vivos, que também, junto conosco,têm o direito de consumir e de viver.” Ou ainda: “Cuida de tudo, porque o cuidadofaz tudo durar muito mais tempo, protege e dá segurança.” Precisamos consumirpara viver. Mas devemos consumir com responsabilidade e com solidariedadepara com os outros, respeitando as coisas em sua alteridade e entrando emcomunhão com elas, pois são nossos companheiros e companheiras na imensaaventura terrenal e cósmica.

Mas a ética vigente é predatória, irresponsável, individualista, perversapara com os outros, tratados com dissimetria e injustiça nos processos deprodução, de distribuição e de compensação. Ela é cruel e sem piedade paracom a grande maioria dos seres vivos, humanos e não humanos. Por fim, elaameaça o futuro da biosfera e do projeto humano.

Para superarmos esta éticaaltamente destrutiva do futuro dahumanidade e do planeta Terra,devemos partir de outra ótica. Sóuma nova ótica pode gerar umanova ética. A nova ótica que estáse difundindo um pouco por todaparte arranca de outracompreensão da realidade,fundada no conjunto de saberesque perfazem as ciências daTerra.

Para superar essa prática

144

Ética e Solidariedade

precisamos inverter nosso olhar. Assumir essa ótica que afirma que a lei supremado universo é a da interdependência de todos com todos. Tudo está relacionadocom tudo em todos os pontos e em todos os momentos. Ninguém vive fora darelação. Esta cooperação de todos com todos funda uma nova ótica e originauma nova ética de convivência, cooperação, sinergia, solidariedade, de cuidadode uns com os outros e de comunhão de todos com todos e com a Terra, coma natureza e com seus ecossistemas. A partir desta ética nós nos contemos,submetemo-nos a restrições e valorizamos as renúncias em função dos outrose do todo.

Uma nova história então começará, com certeza, mais cooperativa,humanitária, cuidadosa, ética e espiritual.

3.6 INSTITUIÇÕES ÉTICAS E SOLIDÁRIAS

A cada dia aumentam as instituições que têm como preocupação o cuidadodos outros. Muitas dessas instituições se inserem nos movimentos que visam asustentabilidade do planeta, fundamentalmente através do equilíbrio das forçasprodutivas, de modo que sejam resguardados os bens naturais e protegidos osinteresses sociais, principalmente dos menos favorecidos.

Essas organizações são chamadas a interagirem com o mundo atravésde um conjunto de posturas que possa, de fato, fazer a diferença na reflexãosobre a exclusão social.

A esse conjunto de princípios que contemplam os compromissos éticosde grupos e corporações chamamos “código de ética”. No entanto, temosobservado que os códigos de ética não têm sido elaborados de forma a conduziros envolvidos a uma situação de comprometimento; estão, em sua grande maioria,servindo como ferramenta para guiar o comportamento individual nas organizaçõese delinear a cultura e as políticas organizacionais.

Infelizmente, a maioria das organizações trata o código de ética como umnormativo. Nesse modelo, sequer os funcionários fazem parte da organização,já que estão submetidos a ela, pois normativos são exatamente isto: instruçõesda empresa sobre o que ela entende como certo/errado nas suas relaçõesempresariais.

E, justamente por apresentarem esse caráter normativo, os códigos deética nessas organizações instruem, na maior parte do seu conteúdo, sobre oque não se deve fazer e quais serão as punições para as infringências. A idéiaaqui defendida é de que um código de ética deva ser inteiramente positivado, ouseja, não estará ali consignado o que não se deve fazer, mas, antes, o que o

145

Subsídio 09

grupo se comprometeu a fazer, tendo como norte orientador, sim, a missão, osvalores e os propósitos da organização.

Não é possível tratar a ética de forma instrumental. As questões éticassão muito complexas; cada conflito ético é um novo problema sobre o qual sedeve refletir.

Enfim, comportamentos éticos não são impostos através de códigos. Poroutro lado, propiciar situações de diálogo e reflexão nas organizações favorecea vivência ética e o estabelecimento de relações de confiança e ajuda mútua. Ohábito de refletir sobre princípios e valores, pessoais e organizacionais, emconfronto com o que se pratica efetivamente, aumenta o poder das pessoascom relação ao domínio do seu ofício, melhora sua auto-estima e seu senso depertença à organização – que, em última instância, é fator preponderante para ocomprometimento.

Para Refletir

1. Por que é urgente construir a ética e a solidariedade?

2. Qual deve ser o perfil das pessoas que se envolvem com crianças eadolescentes?

3. Qual é o papel do Leigo Amigo de Murialdo na construção da Justiça e daSolidariedade?

4. Comente sobre “o mundo paga um preço muito alto pela ausência da éticae da paz no seio de seu povo”.

5. A partir da sua realidade, cite exemplos de instituições éticas e solidárias.

Ética e

Solidariedade

146

Ética e Solidariedade

A Ética, como conjunto de normas e valores que regem uma sociedade,deve necessariamente refletir a consciência e as ações desse povo, assimcomo trazer consigo o tipo de organização que alimenta essa sociedade. Hoje,já em pleno século XXI, ainda nos deparamos com situações que fogem aosanseios de uma Ética universal, onde pessoas injustiçadas perdem a vida,morrem de fome, passam as piores necessidades e situações deconstrangimento por serem negras ou pobres. Vemos homens encarregados dobem comum, de gerenciar os recursos públicos em benefício da população,especialmente a mais empobrecida, envolvidos com escândalos de desvio dedinheiro, corrupções...

Instituições como a família, Igreja e organizações culturais, porém, cultivamno seio de suas atividades valores representativos de uma Ética padrão e devalores condizentes com a noção humanitária de vida, porém por outro lado,sentimos na pele ações de uma minoria que infringe as normas legais eultrapassam as barreiras do Ético na ânsia de adquirir ou conservar seu poder.Em apoio e como cúmplice deste processo de decadência moral, encontramosos meios de comunicação de massa. Com enorme força de poder deconscientização, eles funcionam de maneira a levar aos lares da sociedade, assituações mais ilusórias e pervertida do social, fazendo com que seu públicocaia no abismo do amoral. Lamentavelmente, a televisão como meio decomunicação que atinge em maior proporção a população em todas as camadas,desponta na frente como meio que mais distorce a realidade e infiltra na populaçãoa ideologia dominante, quando ao invés disso, poderia utilizar tal poder no sentidode esclarecer, educar e conscientizar a população, almejando uma sociedadeigualitária onde o branco, o negro, o rico e o pobre tenham direitos iguais.

Particularmente, o Brasil dos últimos 50 anos enfrentou algumas altas ebaixas no que tange a liberdade de vida de maneira digna. A que mais repercutiufoi o golpe de 64 que originou o despertar da comunidade estudantil e dasociedade em geral para questões primárias como liberdade e democracia. Arepressão originada pelo golpe sacrificou toda uma geração com todos os meios

CONCLUSÃO

147

Subsídio 09

possíveis de tortura e constrangimento. Uns mortos, outros torturados e outros,para não serem mortos ou presos, passaram a viver no exílio, mesmo assim nãoescapavam das perseguições. Os quase 10 mil brasileiros que viviam no exterior,principalmente na América latina, não se intimidaram com essas repressões,mesmo exilados em países diferentes, formaram uma corrente contra-ditaduranão deixando o espírito do patriotismo morrer. Pessoas como Paulo Freire, GilbertoGil, Herbert de Souza e outros, trouxeram do exílio verdadeiras lições de vida econhecimentos, contribuindo com a educação, cultura e dando sua participaçãode solidariedade humana. Está expresso nas ações dessa gente o verdadeirosignificado de comprometimento moral com a sociedade.

Hoje, sentimos que alcançamos algumas melhorias na sociedade,principalmente no que tange a conscientização de uns poucos para as questõesmorais que norteiam a sensibilidade do homem às situações críticas e polêmicasda sociedade. Mas existe um longo caminho por percorrer. Existem ações quesão tentativas de dar um basta na corrupção política do país e resgatar a confiançado povo para um Brasil melhor onde habite a solidariedade e se exerçam posturassocialmente éticas.

A Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo, através de seusmembros, sente-se comprometida com a construção desse novo tempo. Seus

leigos são chamados a viver nessaconstante busca do novo, do diferente,da esperança que um outro mundo épossível. Trata-se de redimensionaralgumas coisas que estão presentesno quotidiano das relações sociais.Isso significa clareza de que asmudanças do mundo começam aacontecer com as mudanças decomportamento na família, desde ogesto de arrumar a própria cama ouajudar a mãe a lavar a louça ou a mantera casa em ordem... Que passam pelocomprometimento com a promoção dacidadania de crianças e adolescentese se estendem a uma nova ordemsocial; aquela da ética e dasolidariedade entre as pessoas e ospovos.

148

Ética e Solidariedade

ASSMAN, H. Idolatria do mercado. Petrópoles, Vozes, 1995.

BOFF, Leonardo. Do Iceberg à Arca de Noé – O nascimento de uma Ética Planetária. Ed.Garamond, Brasil, 2002.

_____________. Princípios de Compaixão e Cuidado. Ed. Vozes, Petrópolis, 2000.

_____________. Ethos Mundial – Um Consenso Mínimo entre os Humanos. Ed. Letraviva,Brasília, 2000.

_____________. Ética da Vida. Ed. Sextante. Rio de Janeiro, 2005.

BOSCO, João. Ética e Disciplina no Serviço Público. Mimeo. 2005.

CHALITA, Gabriel. Os Dez Mandamentos da Ética. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro.

COMBLIN, Cristãos rumo ao século XXI. São Paulo, Paulus, 1998.

CNBB. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Paulinas, São Paulo, 2005.

_____. Ética: pessoa e sociedade. Ed. Paulinas, São Paulo, 1993.

MESQUITA, José Carlos S. de. Ética e Sociedade: Em busca de uma Ética universal. Mimeo

JOÃO PAULO II, Papa. O Esplendor da verdade. Ed. Vozes, 1993.

___________________. Catecismo da Igreja Católica. Ed. Paulus. São Paulo, 2005.

RIOS, Terezinha Azevedo. Ética e Competência. Coleção Questões da Nossa Época, v.16,E. Cortez, São Paulo, 2ª edição, 1994.

SOUZA, Herbert de & RODRIGUES, Carla. Ética e Cidadania. Coleção Polêmica, Ed.Moderna, 4ª edição, São Paulo, 1994.

SOUZA NEVES, Rose Irene. Código de Ética: Mais um Normativo Institucional?Mimeo. 2005.

SUNG, Jung Mc, Desejo, mercado e religião. Petrópolis, Vozes, 1997._____________. A idolatria do capital e a morte dos pobres. São Paulo, Paulinas, 1998.

_____________. Deus numa economia sem coração. Ed. Paulus, São Paulo, 1997.

VALLS, Álvaro L. M. O que é Ética? Coleção primeiros passos. Ed. Brasiliense, SãoPaulo, 3 ª edição, 1989.

VIDAL, Marciano. Para Conhecer a Ética Cristã. Ed. Paulus. São Paulo, 1993.

_____________. Moral de opção fundamental e atitudes. Ed. Paulus, São Paulo,

1999.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

151