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UNIrevista - Vol. 1, n° 1: 23-31 (janeiro 2006) ISSN 1809-4651 23 Experiências etnográficas no campo da Comunicação 1 Fabrício Silveira Doutor em Ciências da Comunicação Unisinos, RS Resumo Abstract Nas últimas décadas, principalmente a partir de meados dos anos 1980, as áreas de Antropologia e Comunicação vêm consoli dando e afirmando vínculos, vem tecendo e ampliando um diálogo que se dá em função dos métodos, do interesse e do objeto de estudo que passam a vislumbrar. Impulsionados tanto pelos trabalhos de Jesús Martín-Barbero e dos demais teóricos latino-americanos da recepção (que procuram salientar a natureza comunicacional da cultura e a natureza cultural da comunicação), quanto pelos Estudos Culturais Ingleses, antropólogos e especialistas no campo da comunicação têm se aproximado cada vez mais, têm conversado de modo progressivamente mais íntimo. Um destes traços que passam a ser compartilhados é justamente o método clássico da disciplina antropológica: a etnografia. A análise da recepção e dos usos das mensagens da mídia, no sentido dos métodos que passam a ser utilizados (histórias de vida, entrevista em profundidade, observação participante, etc), também na medida em que principia a colocar ênfase na descrição detalhada de como os grupos sociais se apropriam dos textos e das tecnologias informacionais, tem se tornado, em alguns casos, uma espécie de “etnografia da mídia”. O artigo aqui apresentado discute então alguns dos modos de apropriação do método etnográfico pelos estudos de Comunicação. Fazendo um balanço crítico desses trabalhos, remete também à delicada questão que diz respeito às autonomias, às identidades e às interfaces disciplinares. In the last decades, mainly from middle of 80’s, the areas of Anthropology and Communications come consolidating and affirming bonds, come extending a dialogue that if gives in function of the methods, of the interest and of the study object that starts to glimpse. Stimulated in such a way for the works of Jesús Martín-Barbero and the Latin American theoreticians of the reception (that they look for to point out the communicative nature of the culture and the cultural nature of the communications), how much for the English Cultural Studies, anthropologists and specialists in the field of the communications have approached each time more, have talked in way gradually closer. One of these traces that pass to be shared is exactly the classic method of anthropologic disciplines: the ethnography. The analysis of the reception and the uses of the messages of the media, in the direction of the methods that pass to be used (histories of life, interviews, participant observation, etc), also in the measure where it begins to place emphasis in the description detailed of as the social groups if appropriates of the texts and of the informacional technologies, if it has become, in some cases, a species of “ethnography of the media”. The article presented here argues then some in the ways of appropriation of the ethnographic method for the studies of Communications. Making a critical mapping of these works, it also sends to the delicate question that says respect to the autonomies, the identities and the interfaces of our disciplines. 1 O texto aqui apresentado reproduz a exposição oral feita no I Pesquisando a Pesquisa: reflexões sobre metodologias, realizado entre 11 e 14 de julho de 2005, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS).

etnografia

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Experiências etnográficas no campo da

Comunicação1

Fabrício Silveira

Doutor em Ciências da Comunicação

Unisinos, RS

Resumo Abstract Nas últimas décadas, principalmente a partir de

meados dos anos 1980, as áreas de Antropologia e

Comunicação vêm consolidando e afirmando vínculos, vem

tecendo e ampliando um diálogo que se dá em função dos

métodos, do interesse e do objeto de estudo que

passam a vislumbrar. Impulsionados tanto pelos

trabalhos de Jesús Martín-Barbero e dos demais

teóricos latino-americanos da recepção (que procuram

salientar a natureza comunicacional da cultura e a

natureza cultural da comunicação), quanto pelos

Estudos Culturais Ingleses, antropólogos e

especialistas no campo da comunicação têm se

aproximado cada vez mais, têm conversado de modo

progressivamente mais íntimo. Um destes traços que

passam a ser compartilhados é justamente o método

clássico da disciplina antropológica: a etnografia. A análise da

recepção e dos usos das mensagens da mídia, no sentido

dos métodos que passam a ser utilizados (histórias de

vida, entrevista em profundidade, observação

participante, etc), também na medida em que

principia a colocar ênfase na descrição detalhada de

como os grupos sociais se apropriam dos textos e das

tecnologias informacionais, tem se tornado, em

alguns casos, uma espécie de “etnografia da mídia”. O

artigo aqui apresentado discute então alguns dos

modos de apropriação do método etnográfico pelos

estudos de Comunicação. Fazendo um balanço crítico

desses trabalhos, remete também à delicada questão

que diz respeito às autonomias, às identidades e às

interfaces disciplinares.

In the last decades, mainly from middle of 80’s, the areas

of Anthropology and Communications come consolidating

and affirming bonds, come extending a dialogue that if

gives in function of the methods, of the interest and of the

study object that starts to glimpse. Stimulated in such a

way for the works of Jesús Martín-Barbero and the Latin

American theoreticians of the reception (that they look for

to point out the communicative nature of the culture and

the cultural nature of the communications), how much for

the English Cultural Studies, anthropologists and

specialists in the field of the communications have

approached each time more, have talked in way gradually

closer. One of these traces that pass to be shared is

exactly the classic method of anthropologic disciplines: the

ethnography. The analysis of the reception and the uses of

the messages of the media, in the direction of the

methods that pass to be used (histories of life, interviews,

participant observation, etc), also in the measure where it

begins to place emphasis in the description detailed of as

the social groups if appropriates of the texts and of the

informacional technologies, if it has become, in some

cases, a species of “ethnography of the media”. The article

presented here argues then some in the ways of

appropriation of the ethnographic method for the studies

of Communications. Making a critical mapping of these

works, it also sends to the delicate question that says

respect to the autonomies, the identities and the

interfaces of our disciplines.

1 O texto aqui apresentado reproduz a exposição oral feita no I Pesquisando a Pesquisa: reflexões sobre metodologias, realizado entre 11 e 14 de julho de 2005, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS).

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Palavras-chave: etnografia, mídia, comunicação,

cultura.

Key words: ethnography; media, communication, culture.

Considerações gerais

Quando recebi essa encomenda, minha primeira reação foi a de especular sobre o modo como deveria

organizar esta intervenção. Pareceu-me então que não se trataria de oferecer aqui um histórico do método

etnográfico ou mesmo um histórico de sua aparição gradual no campo da Comunicação; não se trataria

também de conceitualizá-lo ou caracterizá-lo em pormenores, afinal, para tanto, certamente me faltariam as

prerrogativas de formação disciplinar; além do mais, pelo tom ‘escolar’, essa abordagem fugiria ao espírito

desse encontro. Assim sendo, e para que essa fala também não resultasse numa mera informação ou numa

mera listagem dos trabalhos que têm se dedicado, nos últimos anos, a utilizar essa técnica de pesquisa nos

estudos de e sobre meios de comunicação de massa, procurei fazer um levantamento de questões e

tendências percebidas hoje em torno dessa prática de investigação.

Essa problematização irá, eventualmente, citar quatro ou cinco trabalhos – talvez mais – que tenham

relevância na nossa área (e em algumas subáreas no interior do campo da Comunicação) e que

emblematizam ou que tenham colocado alguns interessantes pontos de debate. Procurarei referir,

prioritariamente, a trabalhos de parceiros próximos, retirados todos do âmbito da COMPÓS2. Assim, espero

poder evidenciar concretamente – com alguma proximidade – o modo como estamos empregando tal

método. Vale a pena considerar também, nesse balanço, certas questões metodológicas ainda abertas ou

ainda carentes de melhores elaborações e respostas, em virtude, fundamentalmente, do atual estado de

maturação de nossa disciplina.

Certamente, ficaremos com a impressão de que o campo da Comunicação se permite certas ‘liberalidades

metodológicas’ e que, nessa margem de flexibilidade, nesse movimento (que é também o movimento de

construção e amadurecimento epistêmico de nossa prática científica), faz certas coisas com o método

etnográfico, submetendo-o a determinados usos talvez muito típicos (talvez até muito criticáveis dentro de

parâmetros mais ortodoxos de trabalho). Sendo assim, procurarei destacar aquelas abordagens etnográficas

mais tipicamente comunicacionais, mais enfaticamente direcionadas ao estudo das mídias. Procurarei

destacar então o que se perde e o que surge, como potencialidade e como ganho, como experimento ou

mesmo como reordenação/reorientação dos procedimentos etnográficos quando implementados pela

Comunicação.

Antes de avançarmos, vale considerar também que, no momento, emprego aqui os termos “campo”, “área”

e “disciplina” como sinônimos. É importante destacar isso, ainda que essa discussão conceitual-

terminológica, de ordem epistêmica – e de fundamental importância, diga-se –, possa ser reservada para

outro momento, quando então teríamos o aprofundamento adequado.

Cabe salientar também o quanto é difícil tematizar essas apropriações metodológicas sem mencionar o

debate eminentemente epistêmico sobre fronteiras disciplinares ou, mais especificamente, sobre as

2 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. A COMPÓS é um dos principais fóruns brasileiros de pesquisa na área da Comunicação. Os trabalhos aqui citados, bem como seus autores, circulam com muita desenvoltura nesse espaço de discussões.

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fronteiras entre a Antropologia, a disciplina-mãe do método etnográfico, e a Comunicação. A intersecção de

ambas parece estar se dando, hoje, em duas direções: na captura/incorporação, pela primeira, do ‘objeto’

constituído (ou em vias de constituição) pela segunda, e na captura, pela segunda, do método constituído

pela primeira.

A emergência de uma etnografia da mídia. Estudos Culturais e estudos

de recepção

A formulação de uma “etnografia da mídia” e o emprego mais vigoroso do método etnográfico no campo da

Comunicação ocorrem no momento em que passa a haver um interesse generalizado pelos estudos

qualitativos dos meios, no momento em que se dá um interesse específico por aquilo que Stuart Hall

chamou de “parte decodificadora” do processo de comunicação de massa. É difícil precisar datas, mas já vão

aí uns bons 30 anos. Ainda que estes interesses estejam enraizados em tradições divergentes de pesquisa

(ou, ao menos, em perspectivas nem tão homogêneas e pacíficas), todos salientam a idéia de que ver, ouvir

e ler são processos ativos na e da produção de significados. É importante notar também que o

ressurgimento do interesse pelos receptores está longe de limitar-se apenas à pesquisa em Comunicação de

Massa. No campo literário (com Jauss e a “estética da recepção”) e no campo cinematográfico (com o

próprio Christian Metz) já se insinuaram interesses pela recepção de bens e produtos culturais (cf. Drotner,

1997).

Grosso modo, pode-se dizer que os estudos etnográficos ingleses inserem-se na tradição dos Estudos

Culturais, desenvolvidos ao longo dos anos 1970, numa perspectiva interdisciplinar muito orientada pelo

marxismo, pelo estruturalismo e pelo feminismo. Interessavam as culturas operárias, as classes populares e

as sub-culturas juvenis. Nos EUA, as abordagens etnográficas surgem por oposição ao paradigma

positivista-funcionalista e à metodologia quantitativa. No Brasil, surgem marcados por uma preocupação

política com a cultura popular.

Entre nós, esta discussão, que é também uma discussão de cunho epistêmico, afinal de contas transcende

uma mera discussão sobre métodos, encontra latência e premência justamente no espaço teórico-acadêmico

ocupado ou compartilhado pelos Estudos Culturais Ingleses e pelas Teorias Latino-Americanas da Recepção

(que ganham protagonismo a partir da década de 1980 e onde se destaca então o nome de Jesús Martín-

Barbero).

Embora distintas3, embora caracterizadas por elaborações e angulações teóricas diversas, estas grandes

perspectivas teóricas tomam o conceito de “cultura” sempre em seu sentido sócio-antropológico. Nelas

parece reincidir também uma espécie de pensamento antropológico (maior e talvez até anterior à

formalização disciplinar da Antropologia) e um certo pensamento comunicacional. O primeiro referente à

representação do “eu” e do “outro”; o segundo, referente às práticas, aos espaços e aos modos de interação

e dialogia mediados por aparatos/suportes tecno-comunicacionais. Supõe-se, em ambas, que as

3 Vale assumir que corremos aqui o risco de generalizações e simplificações excessivas, que desconsiderariam as diferentes matrizes teóricas das quais partem, os lugares teóricos aos quais chegam e, nesse percurso, o variado leque de estudos, conceitos e arranjos metodológicos particulares em função dos quais tais escolas teóricas se afirmam. Comparações mais detidas e detalhamentos maiores fogem aos propósitos imediatos de nossa abordagem; entretanto, podem ser encontrados, por exemplo, no estudo de Ana Carolina Escosteguy (2001).

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representações interculturais, as representações da diferença são atravessadas pelos meios de comunicação;

e/ou, ao contrário, que os meios são atravessados e afetados contínua e drasticamente pelas

representações construídas social e extra-midiaticamente.

Nessa linha, Roger Silverstone (in Tufte, 1997), por exemplo, define a etnografia como a “análise de

contextos de ação multiplamente estruturados, objetivando produzir um rico relato descritivo e

interpretativo das vidas e dos valores daqueles que são submetidos à pesquisa”. Para ele, a etnografia das

mídias estudaria as estruturas e os processos através dos quais os meios de comunicação de massa se

inserem, se acomodam, sustentam ou reproduzem a vida social e cultural. Ou seja: interessa estudar os

modos, as negociações e as interações conforme as quais os meios vão, mais ou menos, se adaptando

continuamente às pressões e às contradições que emergem da sociedade, englobando-as e integrando-as no

próprio sistema sócio-cultural representado.

Nesse sentido, assume-se que a opção pela etnografia não é meramente uma questão de método; do

mesmo modo, a opção pela recepção é a opção pelo “mundo vivido” do receptor como objeto de estudo e

como lugar privilegiado para o entendimento global do processo/fluxo comunicacional.

...

Embora tenham obtido certo destaque em meio às nossas práticas acadêmicas, sobretudo nas duas últimas

décadas, tais abordagens etnográficas – aqui, genericamente apresentadas, devemos reconhecer – têm

recebido críticas muito pertinentes. Refinar e legitimar progressivamente a etnografia na Comunicação é,

necessariamente, ter de lidar com tais objeções, aceitando-as e tentando, a partir delas, superá-las.

Uma dessas críticas aponta 1) o risco de um certo culturalismo/contextualismo nessas perpectivas

metodológicas. Ou seja: são apontados os riscos da etnografia como método contextualista, que levaria,

portanto, à diluição do objeto comunicacional na cultura. Nessas avaliações, o elemento midiático-

comunicacional seria apenas mais um elemento percebido numa diversidade de outros elementos e outras

variáveis que compõem a cultura. Na procura das articulações entre meios e mediações, os meios midiáticos

se encontrariam enfraquecidos como eixo/foco principal de investigação.

Critica-se ainda 2) o descritivismo/empiricismo dessas abordagens etnográficas. Apesar do acúmulo de

dados, descrições, entrevistas, etc, tais estudos não atingiriam um bom nível de generalização/abstração

teórica ou de formulação de grades analítico-conceituais sólidas.

Outro ponto de fragilidade diz respeito a um certo 3) populismo que parece residir na base dessas

investigações. Apaixonado pelo público receptor que investiga, o pesquisador esquece-se de que o fato de

que aconteça trabalho e atuação interpretativa não significa dizer que exista boa atividade interpretativa (ou

que todo e qualquer gesto interpretativo tenha a mesma validade, a mesma importância e a mesma

repercussão).

Muito próxima a essa crítica encontra-se aquela outra que aponta 4) uma certa despolitização e a perda

da dimensão macro-social desses estudos. A ansiedade para aferir a riqueza dos usos singulares, na cultura

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e no cotidiano do receptor, faz esquecer que, de fato, existem fortes coerções/constrangimentos macro-

sociais de ordem econômica e política.

Considera-se ainda que esses estudos etnográficos encerram-se numa 5) casuística excessiva, num

excesso micro-analítico. O conjunto desses trabalhos, ao fim e ao cabo, não seria mais do que um conjunto

de cacos, de experiências muito pontuais que não estabeleceriam vínculos/articulações mais orgânicas,

capazes de revelar, de fato, um sistema interpretativo, um hábito leitor da mídia desentranhando-se da

cultura.

Outras etnografias

Além da vertente examinada acima, que pode ser apontada como o mais vistosa, talvez uma das maiores

responsáveis pela incorporação da pesquisa etnográfica na Comunicação (em virtude disso, lhe demos aqui

maior destaque, examinando-a criticamente, inclusive), podemos elencar outras cinco vertentes.

Certamente, elas não se referem a formalizações ‘de escola’, ou a movimentos

organizados/concentrados/unitários de trabalho. Antes, são tendências pulverizadas, ainda que aferíveis e

localizáveis, são modos um tanto difusos de aparição desse método na Comunicação. Certamente, um

exame mais exaustivo encontraria outras tendências e poderia sistematizar/problematizar melhor cada uma

delas. Digamos que o que se apresenta aqui é um esboço preliminar desse tema, sujeito, certamente, a

ajustes, continuações, complementos, outros balanços críticos, etc. Teríamos então:

1. A etnografia nos estudos de produção e de rotinas produtivas

Basicamente, trata-se de descrever etnograficamente as lógicas produtivas e as culturas profissionais que

impactam sobre (e moldam) as ofertas midiáticas, sobretudo a produção jornalística. Aqui, serve-nos, no

momento, como boa ilustração o estudo desenvolvido por Juana Gallego (2002). Nele, Gallego procurara

atentar para: 1) o contexto produtivo do veículo escolhido como objeto de estudo – antecedentes históricos

do veículo, marco geográfico (localização e localização simbólica no campo jornalístico), conjunto

demográfico (número de funcionários, funções, cargos, hierarquias organizacionais) e ambiente social

(descrição do cenário, disposição de setores, editorias, etc); 2) a produção informativa – descrição geral do

processo de produção da notícia, descrição das reuniões de pauta, descrição das ‘trajetórias’ das notícias.

Em outro texto, também dando subsídios à essa modalidade de trabalho metodológico, a socióloga norte-

americana Gaye Tuchman (1993) aponta a relação entre notícia e práticas narrativas, salientando o aspecto

ideológico implícito na prática de elaboração dos materiais jornalísticos e compondo eventuais ‘observações

de campo’ (em salas de redação) na dependência estrita de entrevistas mais focais, numa elaboração

teórica fundada (construída na captura direta da prática investigada) e no acompanhamento do jornalista

para além do espaço de trabalho ou de suas atividades no espaço restrito da redação. Tuchman fala em

“observação extensiva dos participantes”. Salienta ainda a relação com as fontes (oficiosas, não-oficiosas,

excessivamente oficiosas, etc) como tópico digno de ser também considerado.

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De resto, supõe-se que tal abordagem indique as forças sociais (ou de campo) que influenciam na

progressão da notícia – de mero acontecimento, de mera factualidade à notícia efetivamente publicada, à

notícia como ‘valor jornalístico’.

2. Etnografia do consumo e da comunicação

Tal modalidade de apropriação etnográfica é desenvolvida, por exemplo, pelo professor carioca Everardo

Rocha, que fala sobre uma etnografia da indústria cultural, onde o universo descrito é o universo ficcional

vivido/performatizado no interior do filme (ou da tevê).

Diz ele (1995: 46-47):

Nesse sentido, um bom ponto de partida é a hipótese geral de que esta sociedade se define por uma

inversão de aspectos essenciais que caracterizam a Sociedade Industrial que a inventa. Assim, a

Sociedade Industrial tece a sua continuidade pela concepção de um tempo histórico. A sociedade

dentro da Indústria Cultural concebe a sua complementaridade, assegurando o sentido da vida e a

continuidade das coisas através da lógica das classificações totêmicas. Entre nós, o tempo é histórico

e linear; no mundo dentro da Indústria Cultural, é recorrente e cíclico. Em segundo lugar, o

indivíduo e a individualidade são valores cruciais entre nós. Para a sociedade projetada para a

Comunicação de Massa, o eixo do sistema inverte-se, a pessoa desempenha o papel preponderante

e a relação é o valor central. Lá dentro a regra do jogo é o holismo. Em terceiro lugar, nossa

concepção capitalista da existência pressupõe o primado absoluto da produtividade. A sociedade

dentro da Indústria Cultural afirma a ociosidade natural dos homens e das coisas. Ela nega o

produtivismo inexorável, aposta na lógica do consumo como organizadora da experiência econômica

e deseja realizar a sociedade da abundância. Finalmente, nossas sociedades de Estado separaram o

domínio político do tecido social, vivendo a divisão crucial entre dominantes e dominados. No mundo

dentro da Indústria Cultural, de maneira inversa, o poder não se exerce na violência do Estado. Lá, o

poder tem o nome de persuasão; ninguém é obrigado pela força, e sim convencido pelo valor do

prestígio ou pelas práticas da sedução.

Evidencia-se aqui a incorporação de um outro tipo de experiência subjetiva do etnógrafo no campo – o

campo passa a ser o próprio material midiático (ou o conjunto de uma série de materiais midiáticos) –, o

que dá a essa perspectiva também o caráter de uma hermenêutica, ou um sabor hermenêutico, fazendo

com que tenha preocupações com conteúdos midiáticos e que formalize, de certa forma, o ficcional, a

produção ficcional da comunicação de massa (da publicidade, por exemplo), entendendo-o literalmente

como expressão cultural, quase como uma mitologia moderna. Trata-se, portanto, de ler e descrever essa

instância especular e mágica que seriam os meios de comunicação de massa. Tal perspectiva parece-nos

muito mais um parti pris etnográfico ou uma atitude orientada por uma concepção teórica advinda da

etnografia, do que uma etnografia propriamente dita.

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3. Netnografias

Recentemente, a pesquisadora carioca Simone Sá (2002) formulou a proposta metodológica de uma

netnografia. Para ela, netnografias seriam abordagens dedicadas ao exame de chats, listas de discussão e

do espaço interacional da web. Assim, poderíamos discutir os temas e as noções teóricas de hipertexto,

interatividade, comunidades virtuais e cibercultura. Privilegiaríamos aqui justamente as experiências de

sociabilidade/socialidade dadas na (ou em função da) rede mundial de computadores. Na mesma linha,

André Lemos (2000) também já falara, juntamente com a própria Simone Sá, na possibilidade de uma

ciberflanérie. De qualquer modo, tais experimentos metodológicos nos permitem examinar ainda certas

‘passagens’, ‘complementaridades’ entre os ambientes virtuais e in real life. Problematizariam-se assim os

papéis assumidos, a auto-imagem, os mecanismos/estratégias de apresentação da identidade na rede, etc.

4. Multimeios e documentações etnográficas

Entre nós, há ainda um grupo de trabalhos de boa orientação antropológica que, ao tematizar com destaque

os mecanismos de registro fotográfico e videográfico, e ao se interessar também por arte e multimídia, por

fenômenos de representação e narrativa do real, por estratégias de documentação, enfim, acabam

colocando-se como trabalhos de Comunicação. Cabe reconhecer a importância de tal perspectiva, ainda que

tais estudos não ocupem o centro (ou o núcleo duro) da área, mas justamente o espaço fronteiriço ou de

trânsito entre Antropologia, Comunicação e Arte. Destacam-se aqui as contribuições de Március Freire e

Etienne Samain, ambos vinculados a UNICAMP/SP.

5. Etnografia da comunicação urbana

É emblemático aqui o trabalho da pesquisadora carioca Janice Caiafa (2002), por exemplo. Ou seja:

teríamos ainda um conjunto de estudos etnográficos (ou de cunho etnográfico) dedicados à sociabilidade

urbana, à comunicação urbana ou à comunicação visual urbana. Nessa perspectiva, Benjamin, Simmel e

Robert Park são os autores paradigmáticos. Conceitos como interação e conversação são os mais

trabalhados. Não há um foco midiático mais estrito, mas a comunicação passa a ser tomada então, nessa

linha, como dialogias públicas, dadas no espaço vivido da cidade.

Considerações finais

Por fim, faz-se necessário salientar que, de fato, no interior destes enquadramentos metodológicos, no

interior dessas tentativas de operacionalização do método etnográfico no sentido de dar conta de fenômenos

e processos midiáticos, “comunicação” e “cultura”, por exemplo, colocam-se quase como conceitos análogos,

extremamente aproximados, equivalentes e justapostos. Os meios (um programa, um veículo, um formato

ou um gênero midiático), majoritária e tendencialmente, não são tomados como objetos específicos e

circunscritos de estudo; antes, são tidos como objetos “compostos”, a serem contextualizados, colocados

sempre no interior das dinâmicas, das circunstâncias e das situações vivenciais (ou “mediações”) da

audiência. Sendo assim, um dos riscos assumidos é o de que o objeto de estudo, pontualmente, possa

perder-se, desfocar-se no resgate de processos e contextos sócio-culturais mais amplos. Entretanto, esta

“desfocalização” ou este “foco ampliado” aparecem justamente como um posicionamento não só voluntário,

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mas estratégico dentro do espaço teórico-epistemológico (e metodológico) criado. É sintomática a frase de

Jesús Martín-Barbero sobre “perder o objeto para ganhar o processo”.

Portanto, o que podemos colocar em causa, como desdobramento inevitável das articulações entre

“comunicação” e “cultura” no quadro dos estudos etnográficos de mídia, é justamente a questão, entre nós

largamente discutida, sobre a especificidade do(s) objeto(s) comunicacional(is). Discutindo a polissemia do

termo, a questão da interdisciplinaridade, a Comunicação frente a outras disciplinas, Luís Martino, por

exemplo, um dos nomes de frente nesse debate ‘interno’ ao campo, faz um esforço vigoroso para

sedimentar um objeto de estudo próprio da área da Comunicação, apresentando-a, ou procurando

apresentá-la, como disciplina autônoma. O autor percorre três instâncias em que poderíamos construir

definições de Comunicação: 1. uma definição empírica – fundada sobre as instituições e as formalizações da

área acadêmica; 2. uma definição formal ou ideal – calcada numa “inteligibilidade arbitrária”, num ‘gesto

epistêmico fundador’, numa definição lógico-formal ou abstrata do campo, seus objetos, seus problemas e

procedimentos específicos; 3. uma definição referente à gênese do campo – que procura definir um

fenômeno social através da delimitação de sua singularidade histórica. É nesta terceira possibilidade que

Martino cerra (e encerra) sua argumentação. Segundo ele (sd.), “são exatamente estes processos

comunicacionais bem datados, contextualizados em um certo tipo de organização social e com

especificidades próprias, que têm no emprego dos meios de comunicação sua expressão mais constante e

evidente, que passam a ser o objeto de estudo de uma ciência particular: a Comunicação”. Martino afirma

os meios, especificamente, como o objeto apropriado e próprio da área. Se aceitarmos a noção de

Comunicação proposta por Luís Martino, somos forçados também a reconhecer que a perspectiva dos

Estudos de Recepção, dos Estudos Culturais, e, especialmente, dos Estudos Etnográficos, seriam pertinentes

também (ou talvez apenas) no interior da disciplina antropológica (com a racionalidade, os espaços

institucionais e os métodos que lhe cabem); e não no espaço disciplinar da Comunicação, rigidamente

definida.

Entretanto, mesmo nesse quadro, vale sempre reivindicar os espaços de passagem, as possibilidades

combinatórias e o tensionamento constante de objetos e disciplinas próximas como condição fundamental

para irrigar e não asfixiar criativamente a área (e, portanto, para não estancar prematuramente o processo

natural e necessariamente longo de sedimentação e maturação de um campo de conhecimentos). Sendo

assim, é desejável que possamos sempre esboçar testagens teórico-metodológicas, reconhecendo lógicas

disciplinares, bem como suas limitações, seus pontos de atração, convergência ou mesmo distanciamento.

Esse é o solo em que hoje uma etnografia da mídia germina. Para finalizar, espero que tenha ficado aqui um

panorama, por certo parcial e limitado, quiçá útil, das formas, dos riscos e das experiências de apropriação

do método etnográfico no campo da Comunicação.

Referências

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Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ed. FGV.

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