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UNIrevista - Vol. 1, n° 1: 23-31 (janeiro 2006) ISSN 1809-4651
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Experiências etnográficas no campo da
Comunicação1
Fabrício Silveira
Doutor em Ciências da Comunicação
Unisinos, RS
Resumo Abstract Nas últimas décadas, principalmente a partir de
meados dos anos 1980, as áreas de Antropologia e
Comunicação vêm consolidando e afirmando vínculos, vem
tecendo e ampliando um diálogo que se dá em função dos
métodos, do interesse e do objeto de estudo que
passam a vislumbrar. Impulsionados tanto pelos
trabalhos de Jesús Martín-Barbero e dos demais
teóricos latino-americanos da recepção (que procuram
salientar a natureza comunicacional da cultura e a
natureza cultural da comunicação), quanto pelos
Estudos Culturais Ingleses, antropólogos e
especialistas no campo da comunicação têm se
aproximado cada vez mais, têm conversado de modo
progressivamente mais íntimo. Um destes traços que
passam a ser compartilhados é justamente o método
clássico da disciplina antropológica: a etnografia. A análise da
recepção e dos usos das mensagens da mídia, no sentido
dos métodos que passam a ser utilizados (histórias de
vida, entrevista em profundidade, observação
participante, etc), também na medida em que
principia a colocar ênfase na descrição detalhada de
como os grupos sociais se apropriam dos textos e das
tecnologias informacionais, tem se tornado, em
alguns casos, uma espécie de “etnografia da mídia”. O
artigo aqui apresentado discute então alguns dos
modos de apropriação do método etnográfico pelos
estudos de Comunicação. Fazendo um balanço crítico
desses trabalhos, remete também à delicada questão
que diz respeito às autonomias, às identidades e às
interfaces disciplinares.
In the last decades, mainly from middle of 80’s, the areas
of Anthropology and Communications come consolidating
and affirming bonds, come extending a dialogue that if
gives in function of the methods, of the interest and of the
study object that starts to glimpse. Stimulated in such a
way for the works of Jesús Martín-Barbero and the Latin
American theoreticians of the reception (that they look for
to point out the communicative nature of the culture and
the cultural nature of the communications), how much for
the English Cultural Studies, anthropologists and
specialists in the field of the communications have
approached each time more, have talked in way gradually
closer. One of these traces that pass to be shared is
exactly the classic method of anthropologic disciplines: the
ethnography. The analysis of the reception and the uses of
the messages of the media, in the direction of the
methods that pass to be used (histories of life, interviews,
participant observation, etc), also in the measure where it
begins to place emphasis in the description detailed of as
the social groups if appropriates of the texts and of the
informacional technologies, if it has become, in some
cases, a species of “ethnography of the media”. The article
presented here argues then some in the ways of
appropriation of the ethnographic method for the studies
of Communications. Making a critical mapping of these
works, it also sends to the delicate question that says
respect to the autonomies, the identities and the
interfaces of our disciplines.
1 O texto aqui apresentado reproduz a exposição oral feita no I Pesquisando a Pesquisa: reflexões sobre metodologias, realizado entre 11 e 14 de julho de 2005, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS).
Experiências etnográficas no campo da Comunicação Fabrício Silveira
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Palavras-chave: etnografia, mídia, comunicação,
cultura.
Key words: ethnography; media, communication, culture.
Considerações gerais
Quando recebi essa encomenda, minha primeira reação foi a de especular sobre o modo como deveria
organizar esta intervenção. Pareceu-me então que não se trataria de oferecer aqui um histórico do método
etnográfico ou mesmo um histórico de sua aparição gradual no campo da Comunicação; não se trataria
também de conceitualizá-lo ou caracterizá-lo em pormenores, afinal, para tanto, certamente me faltariam as
prerrogativas de formação disciplinar; além do mais, pelo tom ‘escolar’, essa abordagem fugiria ao espírito
desse encontro. Assim sendo, e para que essa fala também não resultasse numa mera informação ou numa
mera listagem dos trabalhos que têm se dedicado, nos últimos anos, a utilizar essa técnica de pesquisa nos
estudos de e sobre meios de comunicação de massa, procurei fazer um levantamento de questões e
tendências percebidas hoje em torno dessa prática de investigação.
Essa problematização irá, eventualmente, citar quatro ou cinco trabalhos – talvez mais – que tenham
relevância na nossa área (e em algumas subáreas no interior do campo da Comunicação) e que
emblematizam ou que tenham colocado alguns interessantes pontos de debate. Procurarei referir,
prioritariamente, a trabalhos de parceiros próximos, retirados todos do âmbito da COMPÓS2. Assim, espero
poder evidenciar concretamente – com alguma proximidade – o modo como estamos empregando tal
método. Vale a pena considerar também, nesse balanço, certas questões metodológicas ainda abertas ou
ainda carentes de melhores elaborações e respostas, em virtude, fundamentalmente, do atual estado de
maturação de nossa disciplina.
Certamente, ficaremos com a impressão de que o campo da Comunicação se permite certas ‘liberalidades
metodológicas’ e que, nessa margem de flexibilidade, nesse movimento (que é também o movimento de
construção e amadurecimento epistêmico de nossa prática científica), faz certas coisas com o método
etnográfico, submetendo-o a determinados usos talvez muito típicos (talvez até muito criticáveis dentro de
parâmetros mais ortodoxos de trabalho). Sendo assim, procurarei destacar aquelas abordagens etnográficas
mais tipicamente comunicacionais, mais enfaticamente direcionadas ao estudo das mídias. Procurarei
destacar então o que se perde e o que surge, como potencialidade e como ganho, como experimento ou
mesmo como reordenação/reorientação dos procedimentos etnográficos quando implementados pela
Comunicação.
Antes de avançarmos, vale considerar também que, no momento, emprego aqui os termos “campo”, “área”
e “disciplina” como sinônimos. É importante destacar isso, ainda que essa discussão conceitual-
terminológica, de ordem epistêmica – e de fundamental importância, diga-se –, possa ser reservada para
outro momento, quando então teríamos o aprofundamento adequado.
Cabe salientar também o quanto é difícil tematizar essas apropriações metodológicas sem mencionar o
debate eminentemente epistêmico sobre fronteiras disciplinares ou, mais especificamente, sobre as
2 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. A COMPÓS é um dos principais fóruns brasileiros de pesquisa na área da Comunicação. Os trabalhos aqui citados, bem como seus autores, circulam com muita desenvoltura nesse espaço de discussões.
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fronteiras entre a Antropologia, a disciplina-mãe do método etnográfico, e a Comunicação. A intersecção de
ambas parece estar se dando, hoje, em duas direções: na captura/incorporação, pela primeira, do ‘objeto’
constituído (ou em vias de constituição) pela segunda, e na captura, pela segunda, do método constituído
pela primeira.
A emergência de uma etnografia da mídia. Estudos Culturais e estudos
de recepção
A formulação de uma “etnografia da mídia” e o emprego mais vigoroso do método etnográfico no campo da
Comunicação ocorrem no momento em que passa a haver um interesse generalizado pelos estudos
qualitativos dos meios, no momento em que se dá um interesse específico por aquilo que Stuart Hall
chamou de “parte decodificadora” do processo de comunicação de massa. É difícil precisar datas, mas já vão
aí uns bons 30 anos. Ainda que estes interesses estejam enraizados em tradições divergentes de pesquisa
(ou, ao menos, em perspectivas nem tão homogêneas e pacíficas), todos salientam a idéia de que ver, ouvir
e ler são processos ativos na e da produção de significados. É importante notar também que o
ressurgimento do interesse pelos receptores está longe de limitar-se apenas à pesquisa em Comunicação de
Massa. No campo literário (com Jauss e a “estética da recepção”) e no campo cinematográfico (com o
próprio Christian Metz) já se insinuaram interesses pela recepção de bens e produtos culturais (cf. Drotner,
1997).
Grosso modo, pode-se dizer que os estudos etnográficos ingleses inserem-se na tradição dos Estudos
Culturais, desenvolvidos ao longo dos anos 1970, numa perspectiva interdisciplinar muito orientada pelo
marxismo, pelo estruturalismo e pelo feminismo. Interessavam as culturas operárias, as classes populares e
as sub-culturas juvenis. Nos EUA, as abordagens etnográficas surgem por oposição ao paradigma
positivista-funcionalista e à metodologia quantitativa. No Brasil, surgem marcados por uma preocupação
política com a cultura popular.
Entre nós, esta discussão, que é também uma discussão de cunho epistêmico, afinal de contas transcende
uma mera discussão sobre métodos, encontra latência e premência justamente no espaço teórico-acadêmico
ocupado ou compartilhado pelos Estudos Culturais Ingleses e pelas Teorias Latino-Americanas da Recepção
(que ganham protagonismo a partir da década de 1980 e onde se destaca então o nome de Jesús Martín-
Barbero).
Embora distintas3, embora caracterizadas por elaborações e angulações teóricas diversas, estas grandes
perspectivas teóricas tomam o conceito de “cultura” sempre em seu sentido sócio-antropológico. Nelas
parece reincidir também uma espécie de pensamento antropológico (maior e talvez até anterior à
formalização disciplinar da Antropologia) e um certo pensamento comunicacional. O primeiro referente à
representação do “eu” e do “outro”; o segundo, referente às práticas, aos espaços e aos modos de interação
e dialogia mediados por aparatos/suportes tecno-comunicacionais. Supõe-se, em ambas, que as
3 Vale assumir que corremos aqui o risco de generalizações e simplificações excessivas, que desconsiderariam as diferentes matrizes teóricas das quais partem, os lugares teóricos aos quais chegam e, nesse percurso, o variado leque de estudos, conceitos e arranjos metodológicos particulares em função dos quais tais escolas teóricas se afirmam. Comparações mais detidas e detalhamentos maiores fogem aos propósitos imediatos de nossa abordagem; entretanto, podem ser encontrados, por exemplo, no estudo de Ana Carolina Escosteguy (2001).
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representações interculturais, as representações da diferença são atravessadas pelos meios de comunicação;
e/ou, ao contrário, que os meios são atravessados e afetados contínua e drasticamente pelas
representações construídas social e extra-midiaticamente.
Nessa linha, Roger Silverstone (in Tufte, 1997), por exemplo, define a etnografia como a “análise de
contextos de ação multiplamente estruturados, objetivando produzir um rico relato descritivo e
interpretativo das vidas e dos valores daqueles que são submetidos à pesquisa”. Para ele, a etnografia das
mídias estudaria as estruturas e os processos através dos quais os meios de comunicação de massa se
inserem, se acomodam, sustentam ou reproduzem a vida social e cultural. Ou seja: interessa estudar os
modos, as negociações e as interações conforme as quais os meios vão, mais ou menos, se adaptando
continuamente às pressões e às contradições que emergem da sociedade, englobando-as e integrando-as no
próprio sistema sócio-cultural representado.
Nesse sentido, assume-se que a opção pela etnografia não é meramente uma questão de método; do
mesmo modo, a opção pela recepção é a opção pelo “mundo vivido” do receptor como objeto de estudo e
como lugar privilegiado para o entendimento global do processo/fluxo comunicacional.
...
Embora tenham obtido certo destaque em meio às nossas práticas acadêmicas, sobretudo nas duas últimas
décadas, tais abordagens etnográficas – aqui, genericamente apresentadas, devemos reconhecer – têm
recebido críticas muito pertinentes. Refinar e legitimar progressivamente a etnografia na Comunicação é,
necessariamente, ter de lidar com tais objeções, aceitando-as e tentando, a partir delas, superá-las.
Uma dessas críticas aponta 1) o risco de um certo culturalismo/contextualismo nessas perpectivas
metodológicas. Ou seja: são apontados os riscos da etnografia como método contextualista, que levaria,
portanto, à diluição do objeto comunicacional na cultura. Nessas avaliações, o elemento midiático-
comunicacional seria apenas mais um elemento percebido numa diversidade de outros elementos e outras
variáveis que compõem a cultura. Na procura das articulações entre meios e mediações, os meios midiáticos
se encontrariam enfraquecidos como eixo/foco principal de investigação.
Critica-se ainda 2) o descritivismo/empiricismo dessas abordagens etnográficas. Apesar do acúmulo de
dados, descrições, entrevistas, etc, tais estudos não atingiriam um bom nível de generalização/abstração
teórica ou de formulação de grades analítico-conceituais sólidas.
Outro ponto de fragilidade diz respeito a um certo 3) populismo que parece residir na base dessas
investigações. Apaixonado pelo público receptor que investiga, o pesquisador esquece-se de que o fato de
que aconteça trabalho e atuação interpretativa não significa dizer que exista boa atividade interpretativa (ou
que todo e qualquer gesto interpretativo tenha a mesma validade, a mesma importância e a mesma
repercussão).
Muito próxima a essa crítica encontra-se aquela outra que aponta 4) uma certa despolitização e a perda
da dimensão macro-social desses estudos. A ansiedade para aferir a riqueza dos usos singulares, na cultura
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e no cotidiano do receptor, faz esquecer que, de fato, existem fortes coerções/constrangimentos macro-
sociais de ordem econômica e política.
Considera-se ainda que esses estudos etnográficos encerram-se numa 5) casuística excessiva, num
excesso micro-analítico. O conjunto desses trabalhos, ao fim e ao cabo, não seria mais do que um conjunto
de cacos, de experiências muito pontuais que não estabeleceriam vínculos/articulações mais orgânicas,
capazes de revelar, de fato, um sistema interpretativo, um hábito leitor da mídia desentranhando-se da
cultura.
Outras etnografias
Além da vertente examinada acima, que pode ser apontada como o mais vistosa, talvez uma das maiores
responsáveis pela incorporação da pesquisa etnográfica na Comunicação (em virtude disso, lhe demos aqui
maior destaque, examinando-a criticamente, inclusive), podemos elencar outras cinco vertentes.
Certamente, elas não se referem a formalizações ‘de escola’, ou a movimentos
organizados/concentrados/unitários de trabalho. Antes, são tendências pulverizadas, ainda que aferíveis e
localizáveis, são modos um tanto difusos de aparição desse método na Comunicação. Certamente, um
exame mais exaustivo encontraria outras tendências e poderia sistematizar/problematizar melhor cada uma
delas. Digamos que o que se apresenta aqui é um esboço preliminar desse tema, sujeito, certamente, a
ajustes, continuações, complementos, outros balanços críticos, etc. Teríamos então:
1. A etnografia nos estudos de produção e de rotinas produtivas
Basicamente, trata-se de descrever etnograficamente as lógicas produtivas e as culturas profissionais que
impactam sobre (e moldam) as ofertas midiáticas, sobretudo a produção jornalística. Aqui, serve-nos, no
momento, como boa ilustração o estudo desenvolvido por Juana Gallego (2002). Nele, Gallego procurara
atentar para: 1) o contexto produtivo do veículo escolhido como objeto de estudo – antecedentes históricos
do veículo, marco geográfico (localização e localização simbólica no campo jornalístico), conjunto
demográfico (número de funcionários, funções, cargos, hierarquias organizacionais) e ambiente social
(descrição do cenário, disposição de setores, editorias, etc); 2) a produção informativa – descrição geral do
processo de produção da notícia, descrição das reuniões de pauta, descrição das ‘trajetórias’ das notícias.
Em outro texto, também dando subsídios à essa modalidade de trabalho metodológico, a socióloga norte-
americana Gaye Tuchman (1993) aponta a relação entre notícia e práticas narrativas, salientando o aspecto
ideológico implícito na prática de elaboração dos materiais jornalísticos e compondo eventuais ‘observações
de campo’ (em salas de redação) na dependência estrita de entrevistas mais focais, numa elaboração
teórica fundada (construída na captura direta da prática investigada) e no acompanhamento do jornalista
para além do espaço de trabalho ou de suas atividades no espaço restrito da redação. Tuchman fala em
“observação extensiva dos participantes”. Salienta ainda a relação com as fontes (oficiosas, não-oficiosas,
excessivamente oficiosas, etc) como tópico digno de ser também considerado.
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De resto, supõe-se que tal abordagem indique as forças sociais (ou de campo) que influenciam na
progressão da notícia – de mero acontecimento, de mera factualidade à notícia efetivamente publicada, à
notícia como ‘valor jornalístico’.
2. Etnografia do consumo e da comunicação
Tal modalidade de apropriação etnográfica é desenvolvida, por exemplo, pelo professor carioca Everardo
Rocha, que fala sobre uma etnografia da indústria cultural, onde o universo descrito é o universo ficcional
vivido/performatizado no interior do filme (ou da tevê).
Diz ele (1995: 46-47):
Nesse sentido, um bom ponto de partida é a hipótese geral de que esta sociedade se define por uma
inversão de aspectos essenciais que caracterizam a Sociedade Industrial que a inventa. Assim, a
Sociedade Industrial tece a sua continuidade pela concepção de um tempo histórico. A sociedade
dentro da Indústria Cultural concebe a sua complementaridade, assegurando o sentido da vida e a
continuidade das coisas através da lógica das classificações totêmicas. Entre nós, o tempo é histórico
e linear; no mundo dentro da Indústria Cultural, é recorrente e cíclico. Em segundo lugar, o
indivíduo e a individualidade são valores cruciais entre nós. Para a sociedade projetada para a
Comunicação de Massa, o eixo do sistema inverte-se, a pessoa desempenha o papel preponderante
e a relação é o valor central. Lá dentro a regra do jogo é o holismo. Em terceiro lugar, nossa
concepção capitalista da existência pressupõe o primado absoluto da produtividade. A sociedade
dentro da Indústria Cultural afirma a ociosidade natural dos homens e das coisas. Ela nega o
produtivismo inexorável, aposta na lógica do consumo como organizadora da experiência econômica
e deseja realizar a sociedade da abundância. Finalmente, nossas sociedades de Estado separaram o
domínio político do tecido social, vivendo a divisão crucial entre dominantes e dominados. No mundo
dentro da Indústria Cultural, de maneira inversa, o poder não se exerce na violência do Estado. Lá, o
poder tem o nome de persuasão; ninguém é obrigado pela força, e sim convencido pelo valor do
prestígio ou pelas práticas da sedução.
Evidencia-se aqui a incorporação de um outro tipo de experiência subjetiva do etnógrafo no campo – o
campo passa a ser o próprio material midiático (ou o conjunto de uma série de materiais midiáticos) –, o
que dá a essa perspectiva também o caráter de uma hermenêutica, ou um sabor hermenêutico, fazendo
com que tenha preocupações com conteúdos midiáticos e que formalize, de certa forma, o ficcional, a
produção ficcional da comunicação de massa (da publicidade, por exemplo), entendendo-o literalmente
como expressão cultural, quase como uma mitologia moderna. Trata-se, portanto, de ler e descrever essa
instância especular e mágica que seriam os meios de comunicação de massa. Tal perspectiva parece-nos
muito mais um parti pris etnográfico ou uma atitude orientada por uma concepção teórica advinda da
etnografia, do que uma etnografia propriamente dita.
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3. Netnografias
Recentemente, a pesquisadora carioca Simone Sá (2002) formulou a proposta metodológica de uma
netnografia. Para ela, netnografias seriam abordagens dedicadas ao exame de chats, listas de discussão e
do espaço interacional da web. Assim, poderíamos discutir os temas e as noções teóricas de hipertexto,
interatividade, comunidades virtuais e cibercultura. Privilegiaríamos aqui justamente as experiências de
sociabilidade/socialidade dadas na (ou em função da) rede mundial de computadores. Na mesma linha,
André Lemos (2000) também já falara, juntamente com a própria Simone Sá, na possibilidade de uma
ciberflanérie. De qualquer modo, tais experimentos metodológicos nos permitem examinar ainda certas
‘passagens’, ‘complementaridades’ entre os ambientes virtuais e in real life. Problematizariam-se assim os
papéis assumidos, a auto-imagem, os mecanismos/estratégias de apresentação da identidade na rede, etc.
4. Multimeios e documentações etnográficas
Entre nós, há ainda um grupo de trabalhos de boa orientação antropológica que, ao tematizar com destaque
os mecanismos de registro fotográfico e videográfico, e ao se interessar também por arte e multimídia, por
fenômenos de representação e narrativa do real, por estratégias de documentação, enfim, acabam
colocando-se como trabalhos de Comunicação. Cabe reconhecer a importância de tal perspectiva, ainda que
tais estudos não ocupem o centro (ou o núcleo duro) da área, mas justamente o espaço fronteiriço ou de
trânsito entre Antropologia, Comunicação e Arte. Destacam-se aqui as contribuições de Március Freire e
Etienne Samain, ambos vinculados a UNICAMP/SP.
5. Etnografia da comunicação urbana
É emblemático aqui o trabalho da pesquisadora carioca Janice Caiafa (2002), por exemplo. Ou seja:
teríamos ainda um conjunto de estudos etnográficos (ou de cunho etnográfico) dedicados à sociabilidade
urbana, à comunicação urbana ou à comunicação visual urbana. Nessa perspectiva, Benjamin, Simmel e
Robert Park são os autores paradigmáticos. Conceitos como interação e conversação são os mais
trabalhados. Não há um foco midiático mais estrito, mas a comunicação passa a ser tomada então, nessa
linha, como dialogias públicas, dadas no espaço vivido da cidade.
Considerações finais
Por fim, faz-se necessário salientar que, de fato, no interior destes enquadramentos metodológicos, no
interior dessas tentativas de operacionalização do método etnográfico no sentido de dar conta de fenômenos
e processos midiáticos, “comunicação” e “cultura”, por exemplo, colocam-se quase como conceitos análogos,
extremamente aproximados, equivalentes e justapostos. Os meios (um programa, um veículo, um formato
ou um gênero midiático), majoritária e tendencialmente, não são tomados como objetos específicos e
circunscritos de estudo; antes, são tidos como objetos “compostos”, a serem contextualizados, colocados
sempre no interior das dinâmicas, das circunstâncias e das situações vivenciais (ou “mediações”) da
audiência. Sendo assim, um dos riscos assumidos é o de que o objeto de estudo, pontualmente, possa
perder-se, desfocar-se no resgate de processos e contextos sócio-culturais mais amplos. Entretanto, esta
“desfocalização” ou este “foco ampliado” aparecem justamente como um posicionamento não só voluntário,
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mas estratégico dentro do espaço teórico-epistemológico (e metodológico) criado. É sintomática a frase de
Jesús Martín-Barbero sobre “perder o objeto para ganhar o processo”.
Portanto, o que podemos colocar em causa, como desdobramento inevitável das articulações entre
“comunicação” e “cultura” no quadro dos estudos etnográficos de mídia, é justamente a questão, entre nós
largamente discutida, sobre a especificidade do(s) objeto(s) comunicacional(is). Discutindo a polissemia do
termo, a questão da interdisciplinaridade, a Comunicação frente a outras disciplinas, Luís Martino, por
exemplo, um dos nomes de frente nesse debate ‘interno’ ao campo, faz um esforço vigoroso para
sedimentar um objeto de estudo próprio da área da Comunicação, apresentando-a, ou procurando
apresentá-la, como disciplina autônoma. O autor percorre três instâncias em que poderíamos construir
definições de Comunicação: 1. uma definição empírica – fundada sobre as instituições e as formalizações da
área acadêmica; 2. uma definição formal ou ideal – calcada numa “inteligibilidade arbitrária”, num ‘gesto
epistêmico fundador’, numa definição lógico-formal ou abstrata do campo, seus objetos, seus problemas e
procedimentos específicos; 3. uma definição referente à gênese do campo – que procura definir um
fenômeno social através da delimitação de sua singularidade histórica. É nesta terceira possibilidade que
Martino cerra (e encerra) sua argumentação. Segundo ele (sd.), “são exatamente estes processos
comunicacionais bem datados, contextualizados em um certo tipo de organização social e com
especificidades próprias, que têm no emprego dos meios de comunicação sua expressão mais constante e
evidente, que passam a ser o objeto de estudo de uma ciência particular: a Comunicação”. Martino afirma
os meios, especificamente, como o objeto apropriado e próprio da área. Se aceitarmos a noção de
Comunicação proposta por Luís Martino, somos forçados também a reconhecer que a perspectiva dos
Estudos de Recepção, dos Estudos Culturais, e, especialmente, dos Estudos Etnográficos, seriam pertinentes
também (ou talvez apenas) no interior da disciplina antropológica (com a racionalidade, os espaços
institucionais e os métodos que lhe cabem); e não no espaço disciplinar da Comunicação, rigidamente
definida.
Entretanto, mesmo nesse quadro, vale sempre reivindicar os espaços de passagem, as possibilidades
combinatórias e o tensionamento constante de objetos e disciplinas próximas como condição fundamental
para irrigar e não asfixiar criativamente a área (e, portanto, para não estancar prematuramente o processo
natural e necessariamente longo de sedimentação e maturação de um campo de conhecimentos). Sendo
assim, é desejável que possamos sempre esboçar testagens teórico-metodológicas, reconhecendo lógicas
disciplinares, bem como suas limitações, seus pontos de atração, convergência ou mesmo distanciamento.
Esse é o solo em que hoje uma etnografia da mídia germina. Para finalizar, espero que tenha ficado aqui um
panorama, por certo parcial e limitado, quiçá útil, das formas, dos riscos e das experiências de apropriação
do método etnográfico no campo da Comunicação.
Referências
CAIAFA, J. 2002. Jornadas urbanas. Exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ed. FGV.
Experiências etnográficas no campo da Comunicação Fabrício Silveira
UNIrevista - Vol. 1, n° 1: 23-31 (janeiro 2006)
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