Etnografia Constitucional Quando o Direi

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  • 7/25/2019 Etnografia Constitucional Quando o Direi

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    ISBN: 978-85-61990-13-8

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    LUIZ EDUARDO ABREUorganizao

    Braslia - 2013

    OS BASTIDORES DO SUPREMOE OUTRAS HISTRIAS CURIOSAS

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    REITORIA

    Reitor

    Getlio Amrico Moreira Lopes

    Vice-Reitor

    Edevaldo Alves da SilvaPr-Reitora Acadmica

    Presidente do Conselho Editorial

    Elizabeth Lopes Manzur

    Pr-Reitor Administrativo-Financeiro

    Edson Elias Alves da Silva

    Secretrio-Geral

    Maurcio de Sousa Neves Filho

    DIRETORIA

    Diretor Acadmico

    Carlos Alberto da Cruz

    Diretor Administrativo-Financeiro

    Geraldo Rabelo

    Organizao

    Biblioteca Reitor Joo Herculino

    Centro Universitrio de Braslia UniCEUBSEPN 707/709 Campus do CEUBTel. 3966-1335 / 3966-1336

    CapaAndr Ramos

    Projeto Grfico

    Renovacio Criao

    Diagramao

    Roosevelt S. de Castro

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Abreu, Luiz Eduardo (Org.).Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas:

    5 estudos de etnografia constitucional / Organizaode LuizEduardo Abreu. Braslia:UniCEUB, 2013.

    351 p. ISBN: 978-85-61990-13-8

    1. Etnografia Constitucional. 2. Supremo Tribunal Federal.

    CDU 342.4

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Reitor Joo Herculino

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    AUTORES

    Luiz Eduardo Abreu

    Possui graduao em Cincias Sociais pela Universidade de Braslia

    (1989), mestrado em Cincia Social (Antropologia Social) pela Universidade

    de So Paulo (1993) e doutorado em Antropologia pela Universidade de

    Braslia (1999). Atualmente coordena o Ncleo de Pesquisa e Monografia

    da Faculdade de Direito do UniCEUB e professor do Programa de Ps-Gra-duao em Direito (mestrado e doutorado) da mesma instituio. Publicou,

    entre outrosA troca das palavras e a troca das coisas. Poltica e linguagem

    no Congresso Nacional. Mana Estudos de Antropologia Social 11, no. 2

    (2005): 329-56. Qual o sentido de Rawls para ns? Revista de Informao

    Legislativa 172, (2006): 149-68. Tradio, direito e poltica. Dados Revista

    de Cincias Sociais no prelo, (2013). LEtatcontrelasocit. La normejuridi-

    que et ledonauBrsil Droit et Socit83, (2013): 137-54.

    Larissa Melo

    Possui graduao em Direito pelo Centro Universitrio de Braslia

    (2009) e mestrado em Direitos das Relaes Internacionais pelo Centro

    Universitrio de Braslia (2012). Atualmente doutoranda em Direito pela

    Universidade de Braslia, professora assistente do Ncleo de Pesquisa e

    Monografia da Faculdade de Direito do UniCEUB, bem como professora do

    curso de Direito da mesma instituio.

    Bruno Furtado Vieira

    Bruno Furtado Vieira mestrando em Direito e Polticas Pblicas

    pelo UniCEUB/ICPD. Bruno Furtado Vieira mestrando em Direito e Pol-

    ticas Pblicas pelo UniCEUB/ICPD. Ganhador do prmio FUNADESP (2005)por um artigo sobre a Cmara Legislativa do Distrito Federal. analista po-

    ltico do Brazil Intel e editor de traduo de publicaes jurdicas nacionais

    e internacionais.

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    Nathalia Gomes Pedrosa

    Possui graduao em Direito no Centro Universitrio de Braslia - Uni-

    CEUB(2009) e cursa a ps-graduao em Gesto Pblica no Instituto de

    Gesto, Economia e Polticas Pblicas - IGEPP/Braslia em convnio com a

    Universidade Cndido Mendes - UCAM. Trabalhou no setor pblico, na as-

    sessoria da Procuradoria-Geral do IBAMA, e como Secretria Parlamentar

    na Cmara Federal, onde acompanhava sesses e atividades da Comisso

    Mista de Oramento. No setor privado, foi estagiria de Direito na Advoca-

    cia Dias de Souza, onde atuou na Justia Federal, no TRF 1 Regio, STJ e STF.

    Atualmente prepara-se para ingressar na carreira de Gestor Especialista em

    Polticas Pblicas do Ministrio do Planejamento.

    Paula Azevedo

    Possui graduao em Direito pela Faculdade de Direito do UniCEUB

    (2006) e LL.M. em Direito Internacional (Comrcio Exterior), Certificado em

    Estudos de OMC e Membro do InstituteofInternationalEconomic Law (IIEL)

    pela Universidade de Georgetown, EUA (2007). Acumulou experincia naSecretaria de Direito Econmico do Ministrio da Justia como a negocia-

    dora para assuntos de concorrncia (2007 e 2008). Atualmente advogada

    do Grupo de Comrcio Exterior do Veirano Advogados. Publicou a mono-

    grafia Uma Etnografia do Algodo: Estudo Etnogrfico sobre o Caso do

    Algodo na OMC. que recebeu o 2o lugar no Concurso Victor Nunes Leal

    de Monografias (Universitas Jus, 2007) e o artigo AntitrustAspectsof Joint

    Ventures - The Brazilian Approach no livro Joint Ventures in theInternatio-nal Arena (2010).

    Wellington Holanda Morais Jnior

    Graduado em Direito pelo Centro Universitrio de Braslia, ps gradu-

    ado (ou Especialista) em Portugus Jurdico pela Faculdade Processus em

    Braslia, Diretor de Secretaria da 2 Vara do Trabalho de Araguana (TRT da

    10 Regio), e professor da Faculdade Catlica Dom Orione em Araguana.

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    SUMRIO

    Etnografia constitucional: Quando direito encontra a antropologia .................9Luiz Eduardo Abreu

    Uma anlise etnogrfica do processo de tomada de deciso na ADIde n 3.510 pelo Supremo Tribunal Federal ............................................................. 35Larissa Melo

    Os Limites do Dilogo. Direito, Poltica e Linguagem no Mandado deSegurana 25.647/STF ....................................................................................................107Bruno Furtado Vieira

    O cotidiano de uma grande tese. Os bastidores da advocacia e suasestratgias ...........................................................................................................................153Nathalia Gomes Pedrosa

    Uma Etnografia do Algodo. O caso da OMC ........................................................203Paula Azevedo

    Se o meu fato falasse. Um olhar etnogrfico sobre a construo dos fatosna audincia trabalhista.................................................................................................259Wellington Holanda Morais Jnior

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    ETNOGRAFIACONSTITUCIONAL:

    QUANDODIREITOENCONTRA

    AANTROPOLOGIA

    Luiz Eduardo Abreu

    Introduo

    Neste livro, o leitor vai encontrar 5 histrias curiosas sobre o direito. Elas

    abarcam temas variados que vo desde julgamentos no Supremo ribunal Fede-

    ral ao funcionamento da advocacia em primeira instncia, passando por um jul-

    gamento que o Brasil ganhou contra o Estados Unidos na Organizao Mundial

    do Comrcio. O mais interessante de tudo isso que estes trabalhos no foram

    escritos por antroplogos que olhariam o direito a uma certa distncia; mas, por

    estudantes de direito que participaram do projeto de pesquisa do Grupo de Pes-quisa Lei e Sociedade, vinculado ao programa de Mestrado e Doutorado em Di-

    reito do UniCEUB. Os autores das etnografias seguem todos em carreiras jurdicas

    e, portanto, pertencem categoria de operadores do direito. poca que as es-

    creveram, eles acreditavam no direito e na sua importncia. E isso no mudou. O

    que mudou foi a maneira como eles percebem a relao entre a prtica e a teoria

    do direito, os limites do conhecimento jurdico e, mesmo, como eles elaboravam

    qual era, afinal, a importncia do direito. A etnografia representou para eles umencontro deles com o prprio direito de uma maneira diferente daquela que ofere-

    ce o ensino jurdico mais tradicional. Mas seus trabalhos tambm representaram

    para mim uma mudana. Graas a eles eu tambm me encontrei com o direito de

    novas e inusitadas maneiras. E algumas das reflexes que desenvolvi nos ltimos

    anos partem dos trabalhos compilados neste volume (vide, por exemplo, ABREU,

    2013c; a; b). Estas experincias me levam a acreditar que o dilogo entre direito

    e antropologia no apenas possvel como, por vrias razes, desejvel. Por essemotivo, etnografia constitucional para mim e acredito para os demais par-

    ticipantes do projeto o lugar do encontro entre dois saberes que, deixados sua

    prpria sorte, provavelmente nem se cumprimentariam. O que quero dizer com

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia10

    isso que esse um encontro difcil de acontecer; mas que, se bem sucedido, pode

    trazer contribuies relevantes para o debate.

    As histrias que os autores contam adiante aproximam a reflexo sobre o

    direito da sua prtica mais quotidiana e, por conta disso, trazem para o primeiroplano aspectos do direito enquanto uma forma de vida que, usualmente, no en-

    contram muito espao na discusso doutrinria. H uma grande sensibilidade por

    parte dos operadores do direito em geral com afirmaes que parecem, de alguma

    maneira, ir contra aquilo que a doutrina jurdica defende. Essa sensibilidade se

    expressa em frases como ele no do direito ou ele no conhece o direito. E,

    dentro do campo jurdico, h aqueles para os quais o direito no deveria dialogar

    com outras disciplinas. Elas no lhes fariam falta, argumentam. Para estes, as his-

    trias deste livro provavelmente no faro muito sentido. A posio pode at ser

    dominante, mas no consensual. Outros vo defender a importncia do dilo-

    go mais intenso com outras disciplinas e advogar por uma crtica ao direito mais

    influenciada por argumentos sociolgicos. O debate polmico e vai longe. Ele

    nos interessa no apenas por sua relao com nosso trabalho; mas, sobretudo, por

    aquilo que ele desvela sobre a organizao simblica do prprio campo jurdico

    brasileiro (admitindo, provisoriamente pelo menos, que o direito em outras terras

    possa se organizar sua maneira).

    A minha hiptese de pesquisa que a oposio o resultado de um estru-

    tura, quer dizer, de uma relao entre ideias que se configura plenamente apenas

    no plano do inconsciente. De um lado, o direito s se realizaria enquanto direito

    como uma esfera integralmente autnoma da realidade social que o cerca; de ou-

    tro, ele s tem sentido em dilogo com a realidade social que ele pretende queno exista para ele. Assim, o conflito entre os que defendem um direito mais puro

    e os que defendem o dilogo com as cincias sociais seria o reflexo, no plano da

    estrutura social, de algo que estaria para alm desta. E o que as caracterizaria no

    seria uma ruptura radical, mas a nfase em um ou outro lado da oposio acima.

    Isso significa dizer que a oposio entre a ignorncia intencional e a necessidade

    do dilogo est presente nas duas posies. Mesmo os defensores mais acirrados

    da autonomia (no sentido acima) no tem grandes problemas em atuar com muitapropriedade no mundo do direito, quer dizer, em um conjunto de instituies que

    apenas se realiza integralmente enquanto realidade social. Alis, o fazem muits-

    simo bem. Da mesma forma, os que defendem o dilogo entre o direito e outras

    disciplinas lhe impem limites. preciso sempre considerar a autonomia da tc-

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    nica jurdica dizem , e h um momento onde o direito tem de ser ele mesmo.

    Os trabalhos reunidos neste livro apresentam uma prova adicional da importncia

    e generalidade da oposio. Os seus autores sentiram-se incomodados com o fato

    que de que a prtica do direito no cumpria a promessa de autonomia que a dou-trina jurdica lhes havia ensinado. A eles tambm incomodou a narrativa.

    Nas prximas partes deste texto, vou discutir o projeto de etnografia cons-

    titucional dentro de uma perspectiva interdisciplinar. Uma maneira de explicar o

    que quer dizer interdisciplinaridade compar-la com a ideia de multidisciplina-

    ridade.1Por multidisciplinaridade vou entender a coexistncia e sobreposio de

    diversas disciplinas num mesmo projeto de pesquisa; neste sentido, elas podem

    conviver sem que precisem mudar suas perspectivas disciplinares. Em contrapo-

    sio, a interdisciplinaridade o resultado do dilogo entre disciplinas diferentes.

    Nem uma nem outra. O que a interdisciplinaridade prope construir o objeto

    de pesquisa a partir de um olhar que no se enquadra muito bem em nenhuma

    delas. Um projeto desta natureza exige muitos cuidados na sua implementao,

    mas tambm trabalhoso na sua explicao. Dificilmente, o mesmo texto agrada

    a todos. No apenas uma questo de estilo. principalmente um problema de

    sentido. Cada uma das disciplinas envolvidas tem seus prprios cnones, autores

    consagrados, maneiras de ver o mundo. Assim, um problema interessantssimo

    do ponto de vista das cincias sociais recebe olhares meio estupefatos do direito.

    Inversamente, uma questo que para o direito central, essencial, importantssima

    recebe olhares de soslaio dos cientistas sociais. O ponto que os julgamentos sobre

    a importncia relativa das coisas de cada uma no so apenas diferentes: muitos

    so incomensurveis; alguns, incompatveis; e outros, contraditrios entre si. Uma

    justificao que se enquadre dentro das fronteiras de um nico saber pode contar

    com alguns consensos tcitos e, at mesmo, inconscientes que facilitam a

    tarefa. H aqui algo semelhante quilo que Kuhn (1996) chamou de paradigma

    (apesar de no ser possvel dizer que, nos termos daquele autor, a antropologia

    tenha um paradigma, j que nela no h um sistema terico dominante; talvez seja

    possvel afirm-lo em relao ao direito). Seja como for, a obrigao e a trajetria

    me impem a exigncia de pelo menos tentar explicar o projeto levando em consi-derao que ele poder ser lido tanto por cientistas sociais quanto por operadores

    do direito.

    1 Essa maneira de distinguir as duas de Roberto Cardoso de Oliveira.

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia12

    Daqui para frente, o texto se divide em trs partes. A primeira delas discu-

    te exatamente o que quer dizer etnografia e etnografia constitucional, por bvias

    razes. A segunda examina o estranhamento entre a cincias sociais e o direito.

    A terceira analisa o encontro ou desencontro entre elas.

    Etnografia constitucional

    Como este texto se destina a um pblico formado por juristas que nenhuma

    obrigao tm de saber das coisas esotricas dos antroplogos, preciso dizer algu-

    mas breves palavras sobre o assunto. A etnografia o mtodo que os antroplogos

    usam desde, pelo menos, Malinowski (1978 cuja edio original de 1922) paracoletar informaes de sociedades radicalmente diferentes da sociedade ocidental

    de colonialismo tardio no comeo do sculo XX. Este enorme esforo intelectual

    no foi o resultado de preocupaes humanitrias com as sociedades que, ento,

    chamvamos de primitivas. Era preciso conhec-las para melhor domin-las. Uma

    sensibilidade que, hoje, acreditaramos um tanto cnica. O problema metodolgico

    que se configura neste tipo de empreendimento poderia ser enunciado, mais ou

    menos, nestes termos: essas outras sociedades, na sua maioria sem Estado ou es-crita, pensavam o mundo de uma maneira to radicalmente diferente da sociedade

    ocidental, europeia, individualista que as categorias com quais os vamos imagi-

    nar ingleses de Cambridge organizavam a sua boa sociedade simplesmente no

    se aplicavam queles outros tipos de gente (vide a crtica que WIGENSEIN,

    1998 faz Rama dourada de Frazer). Era preciso, portanto, fazer algo diferente. E

    a resposta foi, justamente, a etnografia. verdade que muito mudou desde 1922 e

    hoje j no possvel falar ou fazer etnografia da mesma forma. Para o argumento

    deste texto, no interessa a histria do mtodo, o seu sentido, tampouco o seu des-

    tino. Interessa-nos uma questo mais modesta. Como possvel apropriar-se dele?

    Como possvel utiliz-lo para encontrar o direito?

    preciso comear pelo princpio. O objeto da antropologia , de um modo

    geral e de maneira simples, a alteridade. Ou melhor, uma forma particular de alte-

    ridade. Digo uma forma particular porque a psicologia tambm lida com ela. Daperspectiva da psicologia, a alteridade que lhe interessa est ligada capacidade de

    o indivduo lidar com os outros indivduos, reconhecendo-os como diferentes de

    si mesmo. A psicologia supe (e h boas razes para tanto) que os indivduos con-

    vivem, compartilham um espao de sociabilidade comum, mas possuem maneiras

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    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 13

    diferentes de lidar os assuntos que os afetam. A questo, para ela, a capacidade de

    o indivduo conseguir transitar na pluralidade dos papis, nos diversos espaos e

    conflitos que da resultam da maneira que lhe seja, pessoalmente, a mais satisfatria

    possvel. E o mais satisfatrio possvel pode significar muitas coisas diferentes. narelao do indivduo consigo mesmo que se realiza no sofrimento da sua relao

    com o outro que intervm a psicologia. antropologia, ao contrrio, no interessa

    o que A ou B possam sentir enquanto indivduos, no decurso acidental de suas pr-

    prias experincias pessoais; apenas nos interessa o que sentem e pensam enquanto

    membros de uma determinada comunidade, j dizia Malinowski (1978, p. 35). A

    frase enquanto membro de uma determinada comunidade no se refere aos sen-

    timentos que os indivduos nutrem em relao comunidade qual pertencem (oque eles sentem pela famlia, igreja, ptria, clube de futebol etc.); mas, ao fato de que

    at mesmo as emoes so fenmenos sociais, quer dizer, coletivos e, em muitos

    sentidos, obrigatrios (MAUSS, 2003), por exemplo: o amor pelo filho, a raiva dos

    inimigos, a angstia pelas tarefas a realizar, a solido da grande cidade, a culpa pelo

    mal gratuito feito aos outros, a cobia pelo que no temos. E mesmo quando um in-

    divduo em particular deles se afasta (uma me que odeia o seu filho, por exemplo),

    isso s nos faz sentido como o desvio de uma regra que reconhecemos normal, boa

    ou necessria. Portanto, a alteridade pela qual se interessa a antropologia aquela

    que incorpora diferentes maneiras de ver o mundo que so compartilhadas por um

    grupo social, uma sociedade, um campo profissional ou uma torcida organizada.

    Para o empreendimento funcionar, preciso que o pesquisador reconhea

    que ele no um indivduo solto no mundo (para usar uma expresso um tanto

    literria). Ele tambm faz parte de um grupo social e compartilha com esse grupouma certa viso de mundo. E isso pe o encontro em uma outra perspectiva. So

    formas de vida e maneiras de ver o mundo que se encontram. E por isso que

    posso dizer que esse um encontro radical: o que est em jogo o reconhecimento

    da alteridade que e este o ponto principal pe em questo as convices do

    prprio pesquisador. Essa uma experincia pela qual todo aquele que fez uma et-

    nografia bem sucedida j passou: somente quando ele capaz de por em perspecti-

    va a sua prpria maneira de ver o mundo (LVI-SRAUSS, 1976), que ele conse-gue se encontrar com o outro. De uma maneira muitas vezes sofrida e angustiada,

    ele levado a reconhecer que aquilo que at ento ele tomava como certo, seguro,

    bvio, natural , na realidade, uma entre muitas possibilidades de ver, constituir e

    se relacionar com o mundo.

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia14

    Como mtodo de pesquisa, a etnografia , ao mesmo tempo, um conjunto

    de regras que no tem uma formulao prescritiva, embora tenha casos exempla-

    res (como Malinowski que citamos acima) e, uma forma de sensibilidade para com

    o dado emprico. As regras so as mais simples de apontarmos: elas incluem con-viver com a sociedade ou grupo estudado, comunicar-se com eles na sua prpria

    lngua, transformar a experincia em texto, geralmente utilizando alguma forma

    de dirio de campo (h livros que do dicas em escrever notas etnogrficas em

    sociedades complexas, como EMERSON, FREZet al., 1995), colocar suas teorias

    em teste a partir do material recolhido, prestar ateno naquilo que mais dizem os

    membros do grupo que voc estuda, entre outras. A sensibilidade, por sua vez, o

    resultado daquilo que centro do empreendimento.

    O princpio bsico do mtodo etnogrfico a transformao daquilo que,

    na nossa experincia comum, seria considerada uma experincia subjetiva em um

    dado objetivo. A afirmao est ligada a dois supostos. (a) A ideia de que o dado

    relevante para as cincias sociais envolve um mnimo de compreenso da realidade

    social na qual as pessoas estudadas vivem, mesmo quando este dado aparece sob a

    forma de um nmero. Assim, a estatstica sobre o nmero de divrcios s inteli-

    gvel graas ao conhecimento que o pesquisador tem dos contedos simblicos que

    definem as expectativas de uma vida familiar naquela sociedade, tais como: o fato

    de a mulher precisar ou no trabalhar porque a renda do marido j no suficiente

    para o sustento da famlia em um determinado padro de vida; se ela ganha mais

    que o marido numa sociedade machista onde isso motivo de vergonha para o

    homem; a diviso tradicional do papel social entre maridos e esposas; a oposio

    entre vida familiar e trabalho e entre a casa e a rua; etc. O domnio destes contedos

    simblicos supem, por sua vez, (b) a capacidade de o pesquisador se relacionar o

    seu objeto. preciso dispor-se a ouvir o que o outro tem a dizer ou, em outras pala-

    vras, deixar-se dizer algo pelo outro, permitir-se influenciar-se por ele (GADAMER,

    1993). E isso somente possvel numa relao dialgica. Dizendo da maneira a mais

    simples possvel, o pesquisador tem de estar disposto a conversar, e ele s consegue

    isso relacionando-se de alguma forma com o outro. Desta perspectiva, a etnogra-

    fia leva s ultimas consequncias o fato de o observador e o grupo que ele estudapertencerem a mesma ordem de fenmenos. Em ambos os lados da relao en-

    contramos sistemas diferentes formados por elementos semelhantes: valores, ideias,

    prticas, vises de mundo, modelos etc. Por esse motivo, a antropologia argumenta

    que a relao entre o pesquisador e o objeto pesquisado tambm parte dos dados.

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    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 15

    Um exemplo de pesquisa pode esclarecer o que exatamente isso quer dizer.

    Ao entrevistar um parlamentar ou um poltico ou um funcionrio do Congresso,

    o primeiro impulso do pesquisador ligar seu gravador e comear suas questes.

    As respostas, neste caso, so decepcionantes. Um exemplo foi o pesquisador que,durante a entrevista com o chefe de gabinete de um deputado, ouviu vrias vezes a

    afirmao de que o deputado tinha por tal ou qual proposio um apreo especial

    e que ele a apoiava porque acreditava na sua importncia para o pas. No meio da

    entrevista, o chefe de gabinete pediu ao pesquisador que desligasse o gravador e,

    ento, contou uma histria completamente diferente: que o deputado tinha tais

    ou quais interesses naquela proposio.2O ponto aqui no o fato, banal diga-se,

    que os parlamentares defendem e tm interesses, mas justamente a diferena entreo domnio de um discurso que pode ser reproduzido porque gravado e um outro

    onde a palavra dita em confiana, quando o entrevistado, aparentemente, abre

    o jogo. Essa experincia nos diz muito pouco a respeito dos interesses reais do de-

    putado, da sinceridade do chefe de gabinete ou, mesmo, do destino da proposio.

    Mas ela revela aspectos valiosos das regras no escritas da atividade do Congresso,

    dos mecanismos de circulao de palavras e verses, de como a palavra pode ser

    utilizada para construir uma relao de confiana, da dificuldade da nossa ideo-logia poltica de lidar explicitamente com a afirmao do interesse. O pesquisador

    no poderia saber de nada disso se no tivesse entrevistado o chefe de gabinete

    usando um gravador. bvio. Mas a obviedade esconde aspectos importantssi-

    mos da experincia social que s conseguem ser elaborados e tematizados a partir

    do momento em que somos capazes de pensar nossas experincias como parte dos

    dados da prpria pesquisa.

    Do que nos interessa mais de perto, aproximadamente desde a dcada de 70,

    a etnografia passou a ser utilizada para examinar as prprias sociedades ocidentais.

    No Brasil, particularmente, o direito um objeto precoce da antropologia. O tra-

    balho de Da Matta, por exemplo, vai caracterizar o que ele chamou de dilema bra-

    sileiro como a oposio entre uma tica pessoal, baseada no modelo das relaes

    familiares e hierrquicas, e uma tica individualista, consubstanciada na norma ju-

    rdica onde todos seriam pensados como iguais (DA MAA, 1979). Mais recen-temente encontramos alguns trabalhos etnogrficos de autores do prprio direito

    (como, por exemplo, BAPISA, 2008). H, de todo jeito, ainda muito a ser feito.

    2 Art. 100. Proposio toda matria sujeita deliberao da Cmara. BRASIL. RegimentoInterno da Cmara dos Deputados. Braslia: Cmara dos Deputados. 2005 1989.

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia16

    A ideia de trabalhar as instituies utilizando a etnografia tambm no

    nova. Vrios autores, de uma maneira ou de outra, j se debruaram sobre o assun-

    to (para no encompridar a lista de textos citados, mencionamos apenas o cls-

    sico, Como pensam as instituies, DOUGLAS, 1998). Mas, tendo em vista aspreocupaes mais imediatas deste texto, quem coloca a questo da maneira, para

    ns, a mais interessante Scheppele. dela que retiramos a expresso etnografia

    constitucional que, se no traz grandes novidades tericas, tem, pelo menos, a

    vantagem de ser, talvez, a mais apropriada para o nosso assunto. Segundo a autora,

    Quanto maior o interesse por alguns dilemas constitucio-

    nais e pelo seu estudo, mais atraente se torna a etnografia

    constitucional. A etnografia constitucional no se perguntapelas grandes correlaes entre as especificidades do de-

    sign constitucional; tampouco, pela efetividade de institui-

    es especficas. Ao invs disso, a etnografia constitucional

    olha para a lgica de contextos particulares como meio de

    iluminar as inter-relaes entre os elementos polticos, le-

    gais, histricos, sociais, econmicos e culturais. O seu ob-

    jetivo entender melhor como sistemas constitucionais

    operam, identificando os mecanismos da governabilidadee, as estratgias pelas quais se a tenta, experimenta, re-

    siste e revisa. Para tanto, a etnografia constitucional leva

    em considerao a profundidade do contexto histrico e

    cultural. Enquanto uma configurao constitucional tem

    traos distintos e no generalizveis, cada contexto consti-

    tucional possui igualmente uma lgica que liga vrias das

    suas caractersticas em padres cujos traos podem ser vi-

    sveis alhures, em manifestaes diferentes e especficas.(SCHEPPELE, 2004, p. 390)3

    3 No original: Te more one is interested in particular constitutional dilemmas and the knowledgethat can be brought to bear on understanding them, the more one may be drawn to constitutionalethnography. Constitutional ethnography does not ask about the big correlations between thespecifics of constitutional design and the effectiveness of specific institutions but instead looks tothe logics of particular contexts as a way of illuminating complex interrelationships among political,legal, historical, social, economic, and cultural elements. Te goal of constitutional ethnography isto better understand how constitutional systems operate by identifying the mechanisms throughwhich governance is accomplished and the strategies through which governance is attempted,experienced, resisted and revised, taken in historical depth and cultural context. While any onespecific constitutional setting has distinctive and ungeneralizable features, each constitutionalcontext also has logics that link various specific features found in the particular case into patternswhose traces may also be visible elsewhere with different specific manifestations.

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    16/32

    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 17

    E, mais adiante no mesmo texto,

    Etnografia constitucional o estudo dos elementos legais

    centrais da poltica, usando mtodos que so capazes de

    reconstituir os detalhes vivos do cenrio poltico-legal.(SCHEPPELE, 2004, p. 395)4

    A ideia , portanto, levar em considerao no apenas a sistematizao

    dogmtica das normas jurdicas, mas principalmente o detalhe, a maneira como,

    de fato, as regras os princpios jurdicos se reproduzem no cotidiano, onde as

    grandes questes (como a legitimidade, a justia e os valores) talvez deem lugar

    a questes de ordem mais pragmtica, como a ocupao de posies nos res-

    pectivos campos sociais (BOURDIEU, 1989) ou o uso das palavras e dos instru-mentos jurdicos para propsitos contextuais, como, p. ex., tentar ganhar tempo

    no processo de cassao de um mandato parlamentar, enquanto se tenta criar

    as condies polticas necessrias para ganhar o voto da maioria em plenrio.

    O que est em jogo aqui uma mudana de perspectiva: sair da elaborao um

    tanto abstrata de frmulas universais e entrar no universo no to assptico,

    mas, para mim pelo menos, muito mais interessante do uso real dos argumentos

    e da sua construo social.

    De fato, h a uma crtica ao direito, mas preciso elaborar o que isso

    quer dizer. A crtica semelhante quela que, parafraseando Bernstein (1983, p.

    72), os ps empiristas fizeram epistemologia da cincia (creio que poderamos

    colocar aqui FEYERABEND, 1977; LAKAOS e MUSGRAVE, 1979; LAOUR e

    WOOLGAR, 1986; KUHN, 1996). Sem um exame detalhado de como opera, no

    cotidiano da prtica judiciria, o uso de razes e contra razes, as teorias sobre ofuncionamento do direito e da sua relao com os outros campos da experincia

    social no passariam de generalidades baseadas na f. odavia, para dizer que

    o que direito afirma de si mesmo no corresponde ao que ele faz, no precisa-

    ramos de um livro. H de haver algo mais num projeto etnogrfico do que o

    reconhecimento da diferena entre teoria e prtica. E esse algo mais justamente

    levar s ltimas consequncias os sentidos que podemos retirar desta diferena,

    para, dessa forma, reintegr-las num sistema onde tcnica, instituio, atores,ideias, lutas, angstias e valores esto todos em movimento juntos, numa mesma

    realidade social.

    4 No original: Constitutional ethnography is the study of the central legal elements of politiesusing methods that are capable of recovering the lived detail of the politico-legal landscape.

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia18

    A crtica que a etnografia dos textos deste volume podem fazer ao direi-

    to est em apontar os limites deste ltimo; mas, com isso, ela encontra os seus

    prprios limites. Uma maneira de esclarecer o que exatamente isso quer dizer

    utilizar uma histria, um tanto torta. Ela est em A estrutura das revoluescientficas (KUHN, 1996) e comea assim: alguns fsicos vo argumentar que a

    teoria de Newton seria um caso especial da teoria de Einstein. A prova seria o

    fato de que possvel derivar as equaes do primeiro das equaes do segundo,

    se se tomarem alguns cuidados especiais. Kuhn, no entanto, vai argumentar que

    isso um engano. As equaes derivadas de Einstein no poderiam ser iguais s

    de Newton, mesmo se os smbolos em uma e noutra fossem os mesmos. A razo

    disso que os seus elementos tm sentidos diferentes. Assim, por exemplo, amassa em Newton no conversvel em energia e o tempo uma unidade cons-

    tante; para Einstein, ao contrrio, a massa pode se transformar em energia e o

    tempo pode se expandir ou contrair conforme a velocidade. O que nos interessa

    o seguinte argumento que Kuhn deriva deste exemplo: a fsica de Einstein no

    pode mostrar que a fsica de Newton est errada. Elas so simplesmente dife-

    rentes e se aplicam quelas circunstncias em que os seus respectivos mtodos

    cientficos j as comprovaram. O que Einstein poderia mostrar, completa Kuhn, que as equaes de Newton no so aplicveis em velocidades prximas da

    luz. Mas essa afirmao nunca foi comprovada pelo mtodo cientfico de New-

    ton e, portanto, no pertence sua cincia.

    A histria parece apropriada para o nosso assunto porque algo similar

    ocorre aqui. O que est em jogo com a crtica etnogrfica no o direito na-

    quilo que ele tem de saber autnomo, o campo prprio de sua aplicao, onde

    ele decorre da elaborao histrica de uma forma de vida apropriada s nossas

    circunstncias sociais. E nisso entra muita coisa: a discusso de qual seria a

    melhor deciso, a necessidade do direito numa sociedade de massas como a

    nossa, a longa e penosa histria da construo de uma tecnologia normativa,

    os sentidos da norma, as relaes entre os diversos instrumentos legais, a sua

    aplicao em contextos diversos, as suas justificativas etc. O que os trabalhos

    aqui reunidos podem criticar so as afirmaes que o direito faz para almdestas, quando ele pretende, por exemplo, legislar sobre coisas para as quais os

    seus instrumentos no lhe bastam ou ignorar as consequncias institucionais

    de algumas das decises que ele mesmo toma. Mas, por outro lado, uma cr-

    tica que deixa tudo como est. Ela no sugere alternativas. Este o seu limite:

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    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 19

    etnografia cabe apenas, com sorte, fazer avanar o debate isto , se algum

    estiver disposto a ouvir.

    O estranhamento

    O encontro entre o direito e a sensibilidade etnogrfica um encontro

    entre dois saberes muito afastados um do outro. Parte disso o resultado das

    condies objetivas de cada um. Assim, enquanto a antropologia e as cincias

    sociais de um modo geral tm seu espao predominante na academia e, eventu-

    almente, em consultorias ou discusses nos jornais, o direito acontece e se de-

    senrola em um ambiente institucional completamente diferente. No mundo do

    direito, as decises de um juiz, por exemplo, podem afetar a vida das pessoas ou

    das instituies de uma maneira muito imediata. No difcil de ver que relao

    com o contexto tem de ser diferente e, que as cincias sociais5e o direito esto

    associados a formas de vida que so, em grande medida, estrangeiras entre si.

    Mas para desenvolver o que exatamente isso quer dizer vou comear por aquilo

    que, da perspectiva de uma observao mais apressada, seria o centro do proble-

    ma: a maneira pela qual um saber percebe o outro. Vamos examinar, primeiro, o

    que isso quer dizer da perspectiva das cincias sociais para, depois, examinar a

    mesma questo da perspectiva do direito.

    1. De sua parte, os cientistas sociais pouco entendem da dogmtica e da

    tcnica jurdica e so levados, pelos caminhos j usuais do seu saber, a ignorar as

    especificidades e a autonomia do direito, como, alis, j dizia Bourdieu (1986). O

    impulso dos cientistas sociais reduzir o direito aos seus componentes sociolgi-

    cos ou histricos. uma maneira de ver que reflete os instrumentos tericos doscientistas sociais e pouco espao encontra para ouvir o que o direito tem a dizer.

    Assim, um cientista poltico pode ter muita dificuldade para entender a fora

    5 Para o argumento no faz sentido fazer maiores distines entre as cincias sociais. O queest em jogo a ruptura entre elas e o direito. E elas se opem ao direito de maneira muitosemelhante.

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia20

    ilocucionria6 que a expresso inconstitucional tem para o direito quando

    uma causa julgada digamos no Supremo ribunal Federal; ele talvez v

    tentar reduzir o sentido desta expresso ao poder, aos interesses (econmicos,

    corporativos, de classe), disputa pelo capital simblico ou a outros elementosquaisquer. E, ao fazer isso, ele retira a fora da expresso e a transforma no efeito

    de alguma outra coisa (relao de fora, interesse, preconceito, exerccio da do-

    minao, aliana poltica etc.). Em outras palavras, ele submete a expresso a um

    contexto sociolgico que, se no determina o seu sentido, explica o seu aconteci-

    mento. Claro, com isso no quero dizer que no haja, s vezes, bons motivos para

    dizer que uma deciso foi motivada por foras exteriores ao direito. Os prprios

    juristas o reconhecem, quando se debruam sobre a influncia da mdia; ou,afirmam que o Supremo ribunal Federal uma corte poltica. Este ltimo ve-

    redicto tem, para eles, o sentido um tanto negativo de que o tribunal sacrificaria

    a, por assim dizer, pureza do argumento jurdico em favor da convenincia pol-

    tica. E repare que esta convenincia no se refere, necessariamente, ao interesse

    pessoal do julgador ou suspeita de alguma violao tica ou a um crime contra

    a administrao pblica. A convenincia pode implicar na convico da parte

    dos atores envolvidos de que, se a deciso fosse tomada em conformidade letrada lei, o resultado geraria constrangimentos institucionais cujas repercusses se-

    riam muito extensas para contemplar. Mas, mesmo reconhecendo que o mundo

    exterior, por vezes, encontra o seu caminho at a deciso judicial, isso no coloca

    em questo, para os seus operadores, a crena fundamental na pureza do direito.

    O direito, dizem eles, no deveria levar em considerao outra coisa que no a

    si mesmo. Dizer que decises polticas acontecem s vezes no quer dizer que

    elas vo acontecer sempre, nem que bom que assim tenha sido. E, justamente

    porque desvios so possveis, mais importante ainda defender a fora do pr-

    prio direito contra o abuso dos mal intencionados e a pressa dos incompetentes.

    6 O ato ilocucionrio dependente do contexto especfico e concomitante ao ato locucionrio.Aquele que diz algo (ato locucionrio) tambm realiza um ato como: responder ou formularuma pergunta; dar alguma informao, aviso, alerta; fazer um pedido; descrever uma situao;anunciar uma inteno ou um veredicto; prometer algo; dar uma ordem; &c. Este um atoque se realiza dizendo alguma coisa, distinto, portanto, do ato de dizer alguma coisa. O atolocucionrio possui ento uma certa fora convencional (fora ilocucionria), i. e., uma foraque se baseia em regras, categorias ou convenes compartilhadas AUSIN, J. L. How to dothings with words. Te William James Lectures delivered at Harvard University in 1955 . 2nd.Oxford: Oxford University Press, 1975..

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    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 21

    A necessidade de defender o direito que sente o seu militante no um

    problema para o cientista social. Este poderia compreend-la como a defesa po-

    ltica de uma instituio que est em conflito com outras. Poltica no sentido

    forte da palavra: a competio pelo domnio dos bens simblicos e materiaisque circulam dentro do Estado. Mas, ao compreend-la dessa forma, o cientista

    social est, mais uma vez, reduzindo a importncia da expresso a algo que est

    para alm ou aqum dela (depende do ponto de vista): defesa da autonomia do

    campo, vontade de poder ( la Nietzsche), ideologia poltica ou a outra razo

    qualquer. O problema que o cientista social no consegue dar o passo seguinte.

    Ele no compreende a fora que expresses como a declarao de inconstitucio-

    nalidade tm para o direito. A fora delas no , da perspectiva do operador dodireito, passvel de ser reduzida a outra expresso ou componente sociolgico ou

    trajetria histrica.

    Alis, arrisco a hiptese que, da perspectiva do jurista, constitucional

    e o seu oposto inconstitucional so conceitos simples no sentido de Moore.

    Moore utiliza a ideia para definir o bom e, com isso, caracterizar o domnio da

    tica. H diferenas importantes entre moral, tica e direito (vide, entre outros,

    HABERMAS, 1998). A discusso vai longe, e no faz sentido para ns, neste

    momento, retom-la. Utilizar Moore no significa, de minha parte, a tentativa de

    reduzir o direito tica. Limito-me a sugerir que a descrio que Moore faz do

    bom serve para caracterizar a maneira como o direito lida com o conceito de

    constitucional (entre outros). Quando Moore afirma que o bom um conceito

    simples, ele quer dizer que o bom no redutvel ou explicvel com o uso de

    outros conceitos. Dito de outro jeito, o [bom] um destes inumerveis objetos

    do pensamento que so, em si mesmos, incapazes de serem definidos, porque

    eles so os termos ltimos em referncia aos quais o que quer que seja passvel

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia22

    de definio deve ser definido (MOORE, 1993, p. 61).7Quero defender que o

    mesmo acontece com os conceitos de constitucional e inconstitucional.

    possvel gastar muito tempo e esforo discutindo se uma lei, ato do exe-

    cutivo ou legislativo ou deciso de uma instncia inferior seria constitucional ouinconstitucional. Provavelmente, os argumentos de parte a parte sero no ape-

    nas diferentes e divergentes, mas, talvez, incompatveis e incomensurveis entre

    si. E a experincia mostra que dificilmente um dos lados consegue convencer o

    outro. E isso faz parte desta forma de vida. O advogado que se deixa formalmen-

    te convencer pelo argumento da outra parte e diz desistimos da causa porque

    vocs tm razo, exceo de situaes muito particulares, no est sendo um

    bom advogado. Ao contrrio, para melhor defender os interesses do seu cliente,

    ele no pode se deixar convencer pelo argumento da outra parte, por melhor que

    ele seja. muito perigoso ouvir, diria Oscar Wilde. Quem ouve pode ser con-

    vencido. E um homem que se permite ser convencido por um argumento uma

    pessoa completamente irrazovel.8Mas nenhum dos argumentos dos nossos hi-

    potticos juristas tem relao com a definio do conceito de constitucional. Este

    dado como evidente. A pergunta qual a definio de constitucional? simples-

    mente no faz sentido neste contexto. Se ela fosse feita, a resposta seria aquilo

    que est em consonncia com o texto constitucional o que, convenhamos,

    uma tautologia. O que frequentemente acontece a discusso de quais os crit-

    rios deve-se utilizar para afirmar que algo ou no constitucional. Mas no s

    isso. Os usos de bom e constitucional se assemelham de outro modo. Eles,

    7 No original: It is one of those innumerable objects of thought which are themselves incapable

    of definition, because they are the ultimate terms by reference .to which whatever is capableof definition must be defined. Mas isso s se aplica ao conceito de bom quando utilizadono sentido tico, como mostrou Wittgenstein WIGENSEIN, L. I. A lecture on ethics. TePhilosophical Review, v. 74, n. 1, p. 3-12, 1965. . O bom que se refere ao domnio da tica seria,para Wittgenstein, o bom utilizado no sentido absoluto. A maneira de explicar o que exatamenteisso quer dizer comparando-o com o uso de bom no sentido relativo. O bom no sentidorelativo equivale a expresses como: ele um bom pianista. O ponto que possvel substituiresta afirmao por outras, tais como: ele toca peas difceis com facilidade, dos pianistas quej ouvi tocar, ele o mais vigoroso, a sua interpretao , alm de muito competente, original,ele domina muito bem a tcnica etc. Neste caso, o bom pode ser substitudo por afirmaesfatuais, quer dizer, que descrevem estados de coisas. O mesmo no pode acontece quando eudigo, por exemplo, ser honesto bom. Este ltimo no pode ser substitudo por enunciadosfatuais. verdade que h situaes em que ser honesto traz benefcios, mas h ocasies em queacontece o contrrio, como mostra a experincia de todos. Isso no afeta a afirmao de que serhonesto bom.

    8 Minha verso livre do seguinte trecho: You see, it is a very dangerous thing to listen. If onelistens one may be convinced; and a man who allows himself to be convinced by an argument isa thoroughly unreasonable person. A frase est em An ideal husband.

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    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 23

    ao mesmo tempo, ofendem e impem a necessidade da ao. Da mesma forma

    que um indivduo se sente violado quando a ao do outro transgride aquilo que

    ele acredita ser bom (no sentido tico, bem entendido), tambm o jurista sente

    violado o direito quando h algo inconstitucional. O importante na comparao evocar uma dimenso do direito que o cientista social pode at mesmo organi-

    zar intelectualmente, mas cujo sentido mais profundo lhe escapa, justamente por

    no ser capaz de experiment-la.

    2. A maneira como o direito se relaciona com as cincia sociais no deixa

    de ser curiosa. Ele, a todo momento, est fazendo juzos sociolgicas sobre o

    seu lugar no mundo, a sociedade que o cerca e as repercusses das normas e das

    decises judiciais. Ao mesmo tempo, recusa-se sistematicamente a dialogar com

    as cincias sociais. Isso configura uma mentalidade muito prpria, que preciso

    examinar mais de perto. A bem do argumento, seria importante comear por um

    exemplo. Veja o leitor o seguinte trecho:

    O objetivo precpuo do direito deve ser, ento, a garantia

    da paz e do equilbrio das relaes sociais, evitando confli-

    tos com fins de promover o desenvolvimento do grupo so-cial (sociedade) com reduo das desigualdades existentes.

    O perodo acima est publicado em uma das revistas jurdicas disponveis

    na internet. Mas deixo-o propositadamente annimo. E h bons motivos para

    tanto. A frase me interessa porque representa o senso comum que permeia a

    doutrina jurdica (para utilizar, com alguma liberalidade, a expresso de WA-

    RA, 1988). No difcil encontrar outras semelhantes. Ela , neste sentido,

    exemplar. Somente nesta condio que a examinarei.

    Apesar de pequeno, o trecho riqussimo. Rescrevendo-o, ter-se-ia o se-

    guinte: se bem utilizado, o direito garante a paz e o equilbrio das relaes so-

    ciais, evita conflitos, promove o desenvolvimento, reduz desigualdade. poss-

    vel, claro, dar outras interpretaes, como: o direito garante a paz; a paz garante

    o equilbrio das relaes sociais; o equilbrio evita conflitos; evitar conflitos pro-

    move o desenvolvimento; promover o desenvolvimento reduz a desigualdade.Mas no importa exatamente como o interpretemos, o ponto que as relaes

    que o trecho prope no esto contidas pelos instrumentos prprios do direito.

    Ao contrrio elas configuram juzos sociolgicos. ecnicamente, o direito seria

    condio suficiente dos outros, vez que seu bom uso os traria ao mundo. Mas ele

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia24

    tambm condio necessria, pelo menos, para a pacificao. Isso no deriva

    diretamente do trecho, mas compe a mentalidade que ele representa. Assim,

    as proposies acima se fazem acompanhar de outros juzos. Entre eles, est o

    de que o direito que torna possvel a sociedade sem ele no h paz social,repetem os mais empolgados.

    possvel argumentar que no se trata de juzos sociolgicos, mas dos de-

    veres do direito, quer dizer, das obrigaes que o direito deveria cumprir. Seriam,

    portanto, juzos normativos. A objeo parece ser mais resistente para a primeira

    relao. Poder-se-ia modific-la para o seguinte: o direito deve almejar a paz

    social. No entanto, mesmo admitindo que a proposio assim reformulada no

    apresenta mais a carter de um juzo sociolgico, ainda assim no possvel esca-

    par dele. As razes no so difceis de apontar. Compare-a com a seguinte frase:

    o indivduo deve ser honesto. A honestidade algo que no depende dos des-

    dobramentos que os atos locucionrios (o que se diz) possam causar no mundo,

    quer dizer, suas consequncias, seus efeitos perlocucionrios, diria Austin (1975).

    Eles podem ser bons ou ruins; podem ser bons para uns e ruins para outros. No

    importa. quase como que a honestidade se realizasse em si mesma, no sentidode que ela independe do que causa. Ela se completa quando o sujeito diz ou age

    honestamente. No se pode dizer que foi desonesto o sujeito que, mesmo contra

    toda a experincia e o bom senso das gentes, foi honesto quando a prudncia

    recomendava outro rumo. Podemos achar que ele foi ingnuo, bravo ou simples-

    mente tolo. Mas no possvel negar que ele tenha sido honesto. Ora, o mesmo

    no acontece com a ideia de pacificao. A paz social no se realiza simplesmente

    com a ao do direito independentemente das suas consequncias. Para cumprirou no o seu dever, o direito depende dos resultados alcanados pelo uso das nor-

    mas jurdicas. Claro que a as coisas ficam bem mais complicadas. No est claro

    o que significa pacificao. oda a vez que eu pergunto a um operador do direito

    um que comungue com o esprito do trecho acima o que exatamente ela

    quer dizer, invariavelmente o meu interlocutor se enrola, percebe a dificuldade e,

    na maioria dos casos, muda de assunto. Mas vamos supor, a bem do argumento,

    que o problema esteja resolvido e que tenhamos um critrio do que seria paci-ficao que, embora no seja consensual, razovel o suficiente para os nossos

    propsitos. Nada mudou. O juzo de saber se o direito alcanou-a ou no conti-

    nua a depender de um juzo sociolgico: preciso examinar as repercusses na

    sociedade das decises e normas jurdicas luz do referido critrio.

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    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 25

    Juzos sociolgicos que estabelecem relaes de causa e efeito no perten-

    cem ao mundo da dogmtica jurdica9 que, alis, pelos seus instrumentos in-

    competente para tratar delas. E digo incompetente, da mesma forma que afirmei

    que a antropologia incompetente para resolver aquilo que o domnio prpriodo saber jurdico. Vou mais adiante e afirmo que proposies sobre o papel do

    direito na realidade social no poderiam estar contidas ou ser derivadas logica-

    mente de nenhum instrumento jurdico ou norma constitucional. Qualquer ten-

    tativa neste sentido invariavelmente ir fracassar. Alis, para cumprir o seu papel

    o direito necessariamente tem de ter um carter contrafactual. Parte disso, tem

    relao com a prpria tcnica jurdica, na medida em que o direito para operar

    precisa criar um outro mundo (na expresso de HERMIE, 1998), a partir doqual ele consegue regular o mundo social que habitamos.

    O princpio geral que preside o empreendimento de encontrar um papel

    para o direito profundamente perturbador. O cientista social no teria nenhum

    problema com ele, mas o juristas sim, apesar de eles no se aperceberem disso.

    Se a legitimidade depende de ele ser capaz de realizar os seus objetivos precpu-

    os como o trecho acima prope, o no cumprimento destes implica em colocar

    quela a prova. A legitimidade do direito dependeria, portanto, de um estado de

    coisas. Em outras palavras, o trecho faz exatamente o mesmo que o cientista so-

    cial: ele reduz o direito a algo que est para alm dele. O cientistas sociais, contu-

    do, no reduziriam a legitimidade do direito desta forma. Alis, desde a sociolo-

    gia weberiana, entende-se que a legitimidade do Estado burocrtico baseada em

    regras e regulamentos que definem os procedimentos necessrios para que um

    indivduo ou grupo assuma o poder (WEBER, 1991). portanto o inverso: no

    o cumprimento de certos objetivos que garante legitimidade ao direito, mas

    o direito que garante legitimidade dos ocupantes do poder. O socilogo vai fazer

    outras redues. Ele pode afirmar que o direito um instrumento de dominao

    de uma classe sobre as demais, um processo de resoluo de conflitos ou serve

    para estabilizar expectativas, entre outros. Este ltimo , da perspectiva da so-

    ciedade contempornea, importantssimo, porque est vinculado coordenao

    entre diversas partes de uma sociedade que se torna cada vez mais especializada.

    9 Com bem j dizia Kelsen, o direito, enquanto cincia, se baseia em relaes de imputao e node causa e efeito KELSEN, H. eoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 2003.. Estasltimas so prprias das cincias da natureza. Nas cincias sociais, as relaes causais so maisdifceis e exigem supostos metodolgicos muito fortes.

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia26

    Se as afirmaes so complicadas, muito mais difceis so os seus pres-

    supostos. O trecho carrega uma certa ideia de sociedade. Enquanto a represen-

    tao de uma sociedade de fato, ela dialoga diretamente com o corpo de teoria

    prprio das cincias sociais. E no resiste a um exame mais atento. Assim, otrecho relaciona, por exemplo, a boa sociedade com uma sociedade harmoniosa

    e pacfica. No entanto, como j mostrou Simmel (1904a; c; b), o conflito no s

    uma parte absolutamente central de qualquer grupo, como uma forma de rela-

    o social como outras. Uma sociedade sem conflito no uma utopia irrealiz-

    vel, um sem sentido emprico. A realizao acompanha boa parte da produo

    sociolgica, incluindo a a sociologia marxiana. Alis, para Marx, o conflito o

    prprio motor da histria (vide, por exemplo, MARX, 1973; 1993; 2000). Rela-cionar desenvolvimento com reduo de desigualdade , por outro lado, uma

    pretenso importantssima de boa parte da cincia econmica (SEN, 2000). E

    isso no se consegue por meio de leis, embora, claro, elas possam ajudar. Mas,

    a relao entre desenvolvimento e diminuio da desigualdade no inevitvel.

    Alis, boa parte do desenvolvimento (no caso brasileiro, por exemplo) implicou

    em uma brutal concentrao de renda, sob cujos efeitos penam milhes compa-

    triotas nossos at hoje. E isso foi o resultado de um poltica econmica segundo qual, nas palavras de um antigo prcere destas terras, era preciso fazer o bolo

    crescer para depois dividir.

    De nada adiantam todos os argumentos acima, todavia. A doutrina jurdi-

    ca no est disposta a dialogar com o conhecimento das cincias sociais, mesmo

    se ela estiver se aventurando nos assuntos sobre os quais as cincias sociais te-

    nham muito a dizer, e a doutrina jurdica faria melhor que se no dissesse nada.

    Desentender o contexto e a teoria social equivale a negar os saberes se constroem

    levando-os srio. Poderamos, portanto, sintetizar o desentendimento entre as

    cincias sociais e o direito assim: os cientistas sociais no conseguem entender

    (embora eles digam que entendam) a importncia que tem para os juristas as

    razes de decidir e a prpria deciso, e os juristas, por sua vez e de uma maneira

    geral, no veem (embora digam e pelo menos alguns deles em alto em bom

    som que percebem claramente) o contexto social ao qual pertence o seu saber.Cada um dos saberes nega ao outro aquilo que o outro considera mais caro e

    mais fundamental.

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    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 27

    O (des)encontro

    Vamos olhar tudo isso por um outro ngulo. O impasse no encontra so-

    luo se no percebermos todos os fenmenos acima como parte de um mesmo

    sistema. O ponto que os juzos que o direito faz sobre o seu papel no so afir-

    maes sobre o mundo, no pertencem ao reino da sociologia. A mais correta

    transcrio do trecho que reproduzimos atrs seria a seguinte: a paz, o equi-

    lbrio das relaes sociais, a evitao do conflito, o desenvolvimento do grupo

    social, a reduo das desigualdades so bons e bons no sentido da tica. Em

    outras palavras, ele conforma o que seria a boa vida ou, no caso, a boa sociedade.

    Cada um dos elementos do trecho representa um valor que nos caro enquan-

    to coletividade, e, juntos, eles expressam uma identidade social. Claro, numa

    sociedade plural e desigual como a nossa, h, por certo, perspectivas diferentes

    sobre quais seriam seus valores mais centrais. Mas possvel afirmar, pelo menos

    provisoriamente, que os valores representados no trecho tem certa generalidade

    e talvez sejam, at mesmo, hegemnicos dentro do campo jurdico. E o campo

    jurdico, por sua vez, representa uma viso de mundo muito mais prxima do

    Brasil dos bacharis, urbano, de classe mdia, prximo costa que a viso de

    mundo prevalente no serto da Bahia, por exemplo. O interessante para o nos-

    so assunto no sua origem social, contudo. O que nos interessa o fato de a

    doutrina jurdica passar juzos sobre a boa sociedade como se fossem argumen-

    tos sociolgicos. Isso significa, num outro plano, uma dupla negao: negar que

    eles sejam valores e, que a doutrina esteja discutindo a identidade social que a

    nossa. qual necessidade sociolgica corresponde a alienao proposital que o

    direito brasileiro constri para si mesmo?No fundo, o paradoxo da situao est no seguinte: o direito nega o seu

    pertencimento a uma sociedade e a uma tradio propriamente brasileiras, mas

    constri a recusa a partir de juzos sociolgicos que, por sua vez, reintroduzem

    os valores que fazem parte da tradio cujo pertencimento ele precisa negar.

    Veja o leitor que a frmula acima repete, num outro contexto, a estrutura que

    mencionamos no comeo deste texto, quer dizer, a oposio entre a ignorncia

    intencional e a necessidade do dilogo. O paradoxo ganha uma outra dimensose colocarmos nesta relao a tcnica jurdica. Dito de outro jeito, a alienao

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia28

    proposital salva, aparentemente pelo menos, a pureza desta ltima, quer dizer,

    a sua distncia da sociedade sobre a qual ela se aplica. Isso porque a discusso

    dos valores e da identidade estaria restrita aos objetivos e funo do direito.

    Claro, isso no acontece desta forma na prtica cotidiana da justia, como oscaptulos deste livro abundantemente o comprovam. Com isso quero dizer que

    a todo momento a sociedade encontra seu caminho de volta at o direito. Mas

    isso no significa que a alienao no seja bem sucedida. A sua perpetuao ao

    longo dos ltimos anos afirma justamente o contrrio. O que o direito consegue

    no eliminar a sociedade de si mesmo, mas construir-se como alteridade a ela.

    E, para haver alteridade, preciso, neste caso, haver desencontro. Nestes ter-

    mos, a ignorncia faz parte de uma delicado mecanismo que o direito brasileiroconstri para, simultaneamente, relacionar, intervir e, num outro plano, dialogar

    com a sociedade que o cerca. Mas, mais do que isso, para o bom funcionamento

    da equao acima, necessrio um segundo passo: o direito brasileiro recusa

    reconhecer a ruptura que ele mesmo cria (ABREU, 2013c).

    Parte da minha pesquisa nos ltimos anos tem lidado justamente com

    essa questo. A minha hiptese (parte da qual foi desenvolvida a partir dos tra-

    balhos apresentados neste volume) que o direito brasileiro se constri contra

    a sociedade. Isso quer dizer que as suas categorias propositadamente se

    opem s formas espontneas de relao social, particularmente a questo da

    troca, centrais no apenas para a nossa sociabilidade de uma maneira geral,

    como tambm para a poltica (isso j est presente em vrios momentos do pen-

    samento social brasileiro de vis jurdico, entre outros, LEAL, 1948; VIANNA,

    1999; SOARES DE SOUZA, 2002). A hiptese no uma verso mais recente da

    crtica de carter sociolgico segundo a qual o direito, enquanto um fenmeno

    derivado de necessidades sociais mais profundas, tem como um de seus objeti-

    vos tomar partido na dominao de uma classe sobre as demais (ALHUSSER,

    1987; GRAMSCI, 2002; MARX, 2005). preciso admitir que a manuteno de

    um certo arranjo institucional um dos papis que o direito cumpre o que,

    numa sociedade desigual como a nossa, tem claros beneficirios. Mas a ideia de

    que o direito brasileiro se constri contra a sociedade quer dizer algo um poucodiferente. Como vimos, o direito propositadamente ignora o contexto social no

    qual est inserido em alguns contextos; noutros, simplesmente o nega. O ponto

    que ele leva essa ruptura ao extremo e inverte a relao de correspondncia

    que outros sistemas jurdicos estabelecem entre sociedade e direito. Nestes, ima-

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    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 29

    gina-se que o direito a representao, sob o manto da tcnica jurdica, de uma

    maneira de ser que a da prpria sociedade que ele pretende regular. Haveria a

    uma coerncia entre eles. No nosso caso acontece justamente o contrrio. Fugi-

    ria muito dos propsitos desta introduo reproduzir a demonstrao da hipte-se. O que no tem muita importncia para o presente argumento. Mesmo desco-

    nhecendo ou discordando de que possa haver boas razes para tanto, a oposio

    que descrevemos um fenmeno social e, portanto, observvel: a ignorncia e a

    negao propositais do contexto social, por um lado, e a recusa em reconhecer

    que elas existam, por outro.

    Quando o cientista social ouve o que o direito diz ao invs de perceber o

    que isso significa, ele est aceitando uma palavra que no a dele. Faria melhor

    em ouvir no o que dizem os juristas, mas em entender o que isso quer dizer.

    Mas no possvel deixar de colocar aqui a seguinte questo: o que o (des)en-

    contro com o direito pode nos dizer sobre as cincias sociais? Aparentemente,

    pelo menos, elas tambm recusam-se a ver no direito a representao de valores

    que nos caracterizariam enquanto coletividade. Afinal, tanto o direito quanto as

    cincias sociais vm de substrato social, ideolgico em algo semelhante: forma-

    do por bacharis (embora os cientistas sociais no se percebam assim), urbano,

    classe mdia, que representa uma viso de mundo que est mais perto do litoral

    do que do serto. Num certo sentido, o desentendimento que o direito constri

    com as cincias sociais a afirmao da sua identidade enquanto direito. Ele

    diz simplesmente ns somos diferentes, no somos sociologia, histria, cincia

    poltica, economia ou antropologia, ns no nos submetemos a nenhum destes

    saberes. No aconteceria o mesmo com as cincias sociais? Contra o que as ci-

    ncias sociais precisam se construir como alteridade? Infelizmente, fugiria mui-

    to aos propsitos deste texto desenvolver os caminhos que a pergunta prope.

    No possvel, neste momento, fazer mais do que evocar a possibilidade de que,

    talvez, haja aqui uma similitude mais profunda entre direito e cincias sociais.

    Assim enquanto o direito no pode admitir a sociedade para se relacionar com

    ela, as cincias sociais brasileiras talvez no possam igualmente reconhecer a im-

    portncia dos valores que o direito aponta quando emite juzos aparentementesociolgicos. As cincias sociais talvez tambm precisem se construir enquanto

    alteridade da sociedade que elas, ao mesmo tempo, pertencem, pretendem des-

    velar e em relao qual se colocam criticamente.

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    Etnografia constitucional:

    Quando direito encontra a antropologia30

    ###

    O livro formado por 5 captulos. O primeiro, Uma anlise etnogrfica

    do processo de tomada de deciso na ADI de n 3.510 pelo Supremo ribunal

    Federal de Larissa Melo, o resultado de um trabalho de campo de 1 ano juntoao Supremo ribunal Federal onde a autora trabalhou, primeiro, com estagiria

    e, depois, como terceirizada. Ele aborda o funcionamento da instituio naquilo

    que mais diretamente tem relao com a produo de decises e mostra o carter

    coletivo desta produo. O trabalho termina com a votao da ADI que con-

    testava a constitucionalidade o lei sobre o uso de clulas tronco para pesquisa.

    O segundo captulo, Os Limites do Dilogo. Direito, Poltica e Linguagem no

    Mandado de Segurana 25.647/SF de Bruno Furtado Vieira, examina o julga-mento de Jos Dirceu que, poca, causou grande confuso nos meios polticos.

    O mandado de segurana foi impetrado pelos advogados de Dirceu contra a

    ordem pela qual foram ouvidas as testemunhas na Comisso de tica e Decoro

    Parlamentar. De todos os trabalhos, este o que faz menos uso de dados de cam-

    po. No entanto, ele o resultado de uma sensibilidade propriamente etnogrfica.

    E, justamente por isso, nele est mais visvel a ambiguidade entre pesquisador /

    operador do direito que acompanha a todos os outros. O terceiro, O cotidianode uma grande tese. Os bastidores da advocacia e suas estratgias de Nathalia

    Gomes Pedrosa, o resultado da experincia da autora com estagiria de um

    escritrio de advocacia especializado nos tribunais superiores. O quarto, Uma

    Etnografia do Algodo. O caso da OMC de Paula Azevedo, tambm resulta da

    experincia da autora em um escritrio em Genebra. Ele relata o caso no qual

    o Brasil ganhou o processo contra os subsdios dados pelo governo dos Estados

    Unidos aos plantadores de algodo daquele pas. Por fim, o ltimo captulo, Se

    o meu fato falasse. Um olhar etnogrfico sobre a construo dos fatos na au-

    dincia trabalhista de Wellington Holanda Morais Jnior, examina como que

    os fatos de um processo so construdos por uma srie de circunstncias e

    micro-negociaes que tm um carter fortemente marcado pelo inesperado,

    pelas estratgias dos advogados e pelos interesses institucionais do juiz. Embora

    muito diferentes em seus objetos, coletivamente os trabalhos trazem a mesma

    preocupao em examinar o direito como um conjunto de prticas quotidianas

    e, por isso mesmo, fragmentadas, eventuais e, por vezes, contraditrias com as

    pretenses de consistncia e coerncia que o senso comum jurdico usa para

    descrever o direito.

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    Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 31

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