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7/25/2019 Etnografia Constitucional Quando o Direi
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ISBN: 978-85-61990-13-8
7/25/2019 Etnografia Constitucional Quando o Direi
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LUIZ EDUARDO ABREUorganizao
Braslia - 2013
OS BASTIDORES DO SUPREMOE OUTRAS HISTRIAS CURIOSAS
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REITORIA
Reitor
Getlio Amrico Moreira Lopes
Vice-Reitor
Edevaldo Alves da SilvaPr-Reitora Acadmica
Presidente do Conselho Editorial
Elizabeth Lopes Manzur
Pr-Reitor Administrativo-Financeiro
Edson Elias Alves da Silva
Secretrio-Geral
Maurcio de Sousa Neves Filho
DIRETORIA
Diretor Acadmico
Carlos Alberto da Cruz
Diretor Administrativo-Financeiro
Geraldo Rabelo
Organizao
Biblioteca Reitor Joo Herculino
Centro Universitrio de Braslia UniCEUBSEPN 707/709 Campus do CEUBTel. 3966-1335 / 3966-1336
CapaAndr Ramos
Projeto Grfico
Renovacio Criao
Diagramao
Roosevelt S. de Castro
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
Abreu, Luiz Eduardo (Org.).Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas:
5 estudos de etnografia constitucional / Organizaode LuizEduardo Abreu. Braslia:UniCEUB, 2013.
351 p. ISBN: 978-85-61990-13-8
1. Etnografia Constitucional. 2. Supremo Tribunal Federal.
CDU 342.4
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Reitor Joo Herculino
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AUTORES
Luiz Eduardo Abreu
Possui graduao em Cincias Sociais pela Universidade de Braslia
(1989), mestrado em Cincia Social (Antropologia Social) pela Universidade
de So Paulo (1993) e doutorado em Antropologia pela Universidade de
Braslia (1999). Atualmente coordena o Ncleo de Pesquisa e Monografia
da Faculdade de Direito do UniCEUB e professor do Programa de Ps-Gra-duao em Direito (mestrado e doutorado) da mesma instituio. Publicou,
entre outrosA troca das palavras e a troca das coisas. Poltica e linguagem
no Congresso Nacional. Mana Estudos de Antropologia Social 11, no. 2
(2005): 329-56. Qual o sentido de Rawls para ns? Revista de Informao
Legislativa 172, (2006): 149-68. Tradio, direito e poltica. Dados Revista
de Cincias Sociais no prelo, (2013). LEtatcontrelasocit. La normejuridi-
que et ledonauBrsil Droit et Socit83, (2013): 137-54.
Larissa Melo
Possui graduao em Direito pelo Centro Universitrio de Braslia
(2009) e mestrado em Direitos das Relaes Internacionais pelo Centro
Universitrio de Braslia (2012). Atualmente doutoranda em Direito pela
Universidade de Braslia, professora assistente do Ncleo de Pesquisa e
Monografia da Faculdade de Direito do UniCEUB, bem como professora do
curso de Direito da mesma instituio.
Bruno Furtado Vieira
Bruno Furtado Vieira mestrando em Direito e Polticas Pblicas
pelo UniCEUB/ICPD. Bruno Furtado Vieira mestrando em Direito e Pol-
ticas Pblicas pelo UniCEUB/ICPD. Ganhador do prmio FUNADESP (2005)por um artigo sobre a Cmara Legislativa do Distrito Federal. analista po-
ltico do Brazil Intel e editor de traduo de publicaes jurdicas nacionais
e internacionais.
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Nathalia Gomes Pedrosa
Possui graduao em Direito no Centro Universitrio de Braslia - Uni-
CEUB(2009) e cursa a ps-graduao em Gesto Pblica no Instituto de
Gesto, Economia e Polticas Pblicas - IGEPP/Braslia em convnio com a
Universidade Cndido Mendes - UCAM. Trabalhou no setor pblico, na as-
sessoria da Procuradoria-Geral do IBAMA, e como Secretria Parlamentar
na Cmara Federal, onde acompanhava sesses e atividades da Comisso
Mista de Oramento. No setor privado, foi estagiria de Direito na Advoca-
cia Dias de Souza, onde atuou na Justia Federal, no TRF 1 Regio, STJ e STF.
Atualmente prepara-se para ingressar na carreira de Gestor Especialista em
Polticas Pblicas do Ministrio do Planejamento.
Paula Azevedo
Possui graduao em Direito pela Faculdade de Direito do UniCEUB
(2006) e LL.M. em Direito Internacional (Comrcio Exterior), Certificado em
Estudos de OMC e Membro do InstituteofInternationalEconomic Law (IIEL)
pela Universidade de Georgetown, EUA (2007). Acumulou experincia naSecretaria de Direito Econmico do Ministrio da Justia como a negocia-
dora para assuntos de concorrncia (2007 e 2008). Atualmente advogada
do Grupo de Comrcio Exterior do Veirano Advogados. Publicou a mono-
grafia Uma Etnografia do Algodo: Estudo Etnogrfico sobre o Caso do
Algodo na OMC. que recebeu o 2o lugar no Concurso Victor Nunes Leal
de Monografias (Universitas Jus, 2007) e o artigo AntitrustAspectsof Joint
Ventures - The Brazilian Approach no livro Joint Ventures in theInternatio-nal Arena (2010).
Wellington Holanda Morais Jnior
Graduado em Direito pelo Centro Universitrio de Braslia, ps gradu-
ado (ou Especialista) em Portugus Jurdico pela Faculdade Processus em
Braslia, Diretor de Secretaria da 2 Vara do Trabalho de Araguana (TRT da
10 Regio), e professor da Faculdade Catlica Dom Orione em Araguana.
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SUMRIO
Etnografia constitucional: Quando direito encontra a antropologia .................9Luiz Eduardo Abreu
Uma anlise etnogrfica do processo de tomada de deciso na ADIde n 3.510 pelo Supremo Tribunal Federal ............................................................. 35Larissa Melo
Os Limites do Dilogo. Direito, Poltica e Linguagem no Mandado deSegurana 25.647/STF ....................................................................................................107Bruno Furtado Vieira
O cotidiano de uma grande tese. Os bastidores da advocacia e suasestratgias ...........................................................................................................................153Nathalia Gomes Pedrosa
Uma Etnografia do Algodo. O caso da OMC ........................................................203Paula Azevedo
Se o meu fato falasse. Um olhar etnogrfico sobre a construo dos fatosna audincia trabalhista.................................................................................................259Wellington Holanda Morais Jnior
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ETNOGRAFIACONSTITUCIONAL:
QUANDODIREITOENCONTRA
AANTROPOLOGIA
Luiz Eduardo Abreu
Introduo
Neste livro, o leitor vai encontrar 5 histrias curiosas sobre o direito. Elas
abarcam temas variados que vo desde julgamentos no Supremo ribunal Fede-
ral ao funcionamento da advocacia em primeira instncia, passando por um jul-
gamento que o Brasil ganhou contra o Estados Unidos na Organizao Mundial
do Comrcio. O mais interessante de tudo isso que estes trabalhos no foram
escritos por antroplogos que olhariam o direito a uma certa distncia; mas, por
estudantes de direito que participaram do projeto de pesquisa do Grupo de Pes-quisa Lei e Sociedade, vinculado ao programa de Mestrado e Doutorado em Di-
reito do UniCEUB. Os autores das etnografias seguem todos em carreiras jurdicas
e, portanto, pertencem categoria de operadores do direito. poca que as es-
creveram, eles acreditavam no direito e na sua importncia. E isso no mudou. O
que mudou foi a maneira como eles percebem a relao entre a prtica e a teoria
do direito, os limites do conhecimento jurdico e, mesmo, como eles elaboravam
qual era, afinal, a importncia do direito. A etnografia representou para eles umencontro deles com o prprio direito de uma maneira diferente daquela que ofere-
ce o ensino jurdico mais tradicional. Mas seus trabalhos tambm representaram
para mim uma mudana. Graas a eles eu tambm me encontrei com o direito de
novas e inusitadas maneiras. E algumas das reflexes que desenvolvi nos ltimos
anos partem dos trabalhos compilados neste volume (vide, por exemplo, ABREU,
2013c; a; b). Estas experincias me levam a acreditar que o dilogo entre direito
e antropologia no apenas possvel como, por vrias razes, desejvel. Por essemotivo, etnografia constitucional para mim e acredito para os demais par-
ticipantes do projeto o lugar do encontro entre dois saberes que, deixados sua
prpria sorte, provavelmente nem se cumprimentariam. O que quero dizer com
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Etnografia constitucional:
Quando direito encontra a antropologia10
isso que esse um encontro difcil de acontecer; mas que, se bem sucedido, pode
trazer contribuies relevantes para o debate.
As histrias que os autores contam adiante aproximam a reflexo sobre o
direito da sua prtica mais quotidiana e, por conta disso, trazem para o primeiroplano aspectos do direito enquanto uma forma de vida que, usualmente, no en-
contram muito espao na discusso doutrinria. H uma grande sensibilidade por
parte dos operadores do direito em geral com afirmaes que parecem, de alguma
maneira, ir contra aquilo que a doutrina jurdica defende. Essa sensibilidade se
expressa em frases como ele no do direito ou ele no conhece o direito. E,
dentro do campo jurdico, h aqueles para os quais o direito no deveria dialogar
com outras disciplinas. Elas no lhes fariam falta, argumentam. Para estes, as his-
trias deste livro provavelmente no faro muito sentido. A posio pode at ser
dominante, mas no consensual. Outros vo defender a importncia do dilo-
go mais intenso com outras disciplinas e advogar por uma crtica ao direito mais
influenciada por argumentos sociolgicos. O debate polmico e vai longe. Ele
nos interessa no apenas por sua relao com nosso trabalho; mas, sobretudo, por
aquilo que ele desvela sobre a organizao simblica do prprio campo jurdico
brasileiro (admitindo, provisoriamente pelo menos, que o direito em outras terras
possa se organizar sua maneira).
A minha hiptese de pesquisa que a oposio o resultado de um estru-
tura, quer dizer, de uma relao entre ideias que se configura plenamente apenas
no plano do inconsciente. De um lado, o direito s se realizaria enquanto direito
como uma esfera integralmente autnoma da realidade social que o cerca; de ou-
tro, ele s tem sentido em dilogo com a realidade social que ele pretende queno exista para ele. Assim, o conflito entre os que defendem um direito mais puro
e os que defendem o dilogo com as cincias sociais seria o reflexo, no plano da
estrutura social, de algo que estaria para alm desta. E o que as caracterizaria no
seria uma ruptura radical, mas a nfase em um ou outro lado da oposio acima.
Isso significa dizer que a oposio entre a ignorncia intencional e a necessidade
do dilogo est presente nas duas posies. Mesmo os defensores mais acirrados
da autonomia (no sentido acima) no tem grandes problemas em atuar com muitapropriedade no mundo do direito, quer dizer, em um conjunto de instituies que
apenas se realiza integralmente enquanto realidade social. Alis, o fazem muits-
simo bem. Da mesma forma, os que defendem o dilogo entre o direito e outras
disciplinas lhe impem limites. preciso sempre considerar a autonomia da tc-
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nica jurdica dizem , e h um momento onde o direito tem de ser ele mesmo.
Os trabalhos reunidos neste livro apresentam uma prova adicional da importncia
e generalidade da oposio. Os seus autores sentiram-se incomodados com o fato
que de que a prtica do direito no cumpria a promessa de autonomia que a dou-trina jurdica lhes havia ensinado. A eles tambm incomodou a narrativa.
Nas prximas partes deste texto, vou discutir o projeto de etnografia cons-
titucional dentro de uma perspectiva interdisciplinar. Uma maneira de explicar o
que quer dizer interdisciplinaridade compar-la com a ideia de multidisciplina-
ridade.1Por multidisciplinaridade vou entender a coexistncia e sobreposio de
diversas disciplinas num mesmo projeto de pesquisa; neste sentido, elas podem
conviver sem que precisem mudar suas perspectivas disciplinares. Em contrapo-
sio, a interdisciplinaridade o resultado do dilogo entre disciplinas diferentes.
Nem uma nem outra. O que a interdisciplinaridade prope construir o objeto
de pesquisa a partir de um olhar que no se enquadra muito bem em nenhuma
delas. Um projeto desta natureza exige muitos cuidados na sua implementao,
mas tambm trabalhoso na sua explicao. Dificilmente, o mesmo texto agrada
a todos. No apenas uma questo de estilo. principalmente um problema de
sentido. Cada uma das disciplinas envolvidas tem seus prprios cnones, autores
consagrados, maneiras de ver o mundo. Assim, um problema interessantssimo
do ponto de vista das cincias sociais recebe olhares meio estupefatos do direito.
Inversamente, uma questo que para o direito central, essencial, importantssima
recebe olhares de soslaio dos cientistas sociais. O ponto que os julgamentos sobre
a importncia relativa das coisas de cada uma no so apenas diferentes: muitos
so incomensurveis; alguns, incompatveis; e outros, contraditrios entre si. Uma
justificao que se enquadre dentro das fronteiras de um nico saber pode contar
com alguns consensos tcitos e, at mesmo, inconscientes que facilitam a
tarefa. H aqui algo semelhante quilo que Kuhn (1996) chamou de paradigma
(apesar de no ser possvel dizer que, nos termos daquele autor, a antropologia
tenha um paradigma, j que nela no h um sistema terico dominante; talvez seja
possvel afirm-lo em relao ao direito). Seja como for, a obrigao e a trajetria
me impem a exigncia de pelo menos tentar explicar o projeto levando em consi-derao que ele poder ser lido tanto por cientistas sociais quanto por operadores
do direito.
1 Essa maneira de distinguir as duas de Roberto Cardoso de Oliveira.
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Etnografia constitucional:
Quando direito encontra a antropologia12
Daqui para frente, o texto se divide em trs partes. A primeira delas discu-
te exatamente o que quer dizer etnografia e etnografia constitucional, por bvias
razes. A segunda examina o estranhamento entre a cincias sociais e o direito.
A terceira analisa o encontro ou desencontro entre elas.
Etnografia constitucional
Como este texto se destina a um pblico formado por juristas que nenhuma
obrigao tm de saber das coisas esotricas dos antroplogos, preciso dizer algu-
mas breves palavras sobre o assunto. A etnografia o mtodo que os antroplogos
usam desde, pelo menos, Malinowski (1978 cuja edio original de 1922) paracoletar informaes de sociedades radicalmente diferentes da sociedade ocidental
de colonialismo tardio no comeo do sculo XX. Este enorme esforo intelectual
no foi o resultado de preocupaes humanitrias com as sociedades que, ento,
chamvamos de primitivas. Era preciso conhec-las para melhor domin-las. Uma
sensibilidade que, hoje, acreditaramos um tanto cnica. O problema metodolgico
que se configura neste tipo de empreendimento poderia ser enunciado, mais ou
menos, nestes termos: essas outras sociedades, na sua maioria sem Estado ou es-crita, pensavam o mundo de uma maneira to radicalmente diferente da sociedade
ocidental, europeia, individualista que as categorias com quais os vamos imagi-
nar ingleses de Cambridge organizavam a sua boa sociedade simplesmente no
se aplicavam queles outros tipos de gente (vide a crtica que WIGENSEIN,
1998 faz Rama dourada de Frazer). Era preciso, portanto, fazer algo diferente. E
a resposta foi, justamente, a etnografia. verdade que muito mudou desde 1922 e
hoje j no possvel falar ou fazer etnografia da mesma forma. Para o argumento
deste texto, no interessa a histria do mtodo, o seu sentido, tampouco o seu des-
tino. Interessa-nos uma questo mais modesta. Como possvel apropriar-se dele?
Como possvel utiliz-lo para encontrar o direito?
preciso comear pelo princpio. O objeto da antropologia , de um modo
geral e de maneira simples, a alteridade. Ou melhor, uma forma particular de alte-
ridade. Digo uma forma particular porque a psicologia tambm lida com ela. Daperspectiva da psicologia, a alteridade que lhe interessa est ligada capacidade de
o indivduo lidar com os outros indivduos, reconhecendo-os como diferentes de
si mesmo. A psicologia supe (e h boas razes para tanto) que os indivduos con-
vivem, compartilham um espao de sociabilidade comum, mas possuem maneiras
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Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 13
diferentes de lidar os assuntos que os afetam. A questo, para ela, a capacidade de
o indivduo conseguir transitar na pluralidade dos papis, nos diversos espaos e
conflitos que da resultam da maneira que lhe seja, pessoalmente, a mais satisfatria
possvel. E o mais satisfatrio possvel pode significar muitas coisas diferentes. narelao do indivduo consigo mesmo que se realiza no sofrimento da sua relao
com o outro que intervm a psicologia. antropologia, ao contrrio, no interessa
o que A ou B possam sentir enquanto indivduos, no decurso acidental de suas pr-
prias experincias pessoais; apenas nos interessa o que sentem e pensam enquanto
membros de uma determinada comunidade, j dizia Malinowski (1978, p. 35). A
frase enquanto membro de uma determinada comunidade no se refere aos sen-
timentos que os indivduos nutrem em relao comunidade qual pertencem (oque eles sentem pela famlia, igreja, ptria, clube de futebol etc.); mas, ao fato de que
at mesmo as emoes so fenmenos sociais, quer dizer, coletivos e, em muitos
sentidos, obrigatrios (MAUSS, 2003), por exemplo: o amor pelo filho, a raiva dos
inimigos, a angstia pelas tarefas a realizar, a solido da grande cidade, a culpa pelo
mal gratuito feito aos outros, a cobia pelo que no temos. E mesmo quando um in-
divduo em particular deles se afasta (uma me que odeia o seu filho, por exemplo),
isso s nos faz sentido como o desvio de uma regra que reconhecemos normal, boa
ou necessria. Portanto, a alteridade pela qual se interessa a antropologia aquela
que incorpora diferentes maneiras de ver o mundo que so compartilhadas por um
grupo social, uma sociedade, um campo profissional ou uma torcida organizada.
Para o empreendimento funcionar, preciso que o pesquisador reconhea
que ele no um indivduo solto no mundo (para usar uma expresso um tanto
literria). Ele tambm faz parte de um grupo social e compartilha com esse grupouma certa viso de mundo. E isso pe o encontro em uma outra perspectiva. So
formas de vida e maneiras de ver o mundo que se encontram. E por isso que
posso dizer que esse um encontro radical: o que est em jogo o reconhecimento
da alteridade que e este o ponto principal pe em questo as convices do
prprio pesquisador. Essa uma experincia pela qual todo aquele que fez uma et-
nografia bem sucedida j passou: somente quando ele capaz de por em perspecti-
va a sua prpria maneira de ver o mundo (LVI-SRAUSS, 1976), que ele conse-gue se encontrar com o outro. De uma maneira muitas vezes sofrida e angustiada,
ele levado a reconhecer que aquilo que at ento ele tomava como certo, seguro,
bvio, natural , na realidade, uma entre muitas possibilidades de ver, constituir e
se relacionar com o mundo.
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Etnografia constitucional:
Quando direito encontra a antropologia14
Como mtodo de pesquisa, a etnografia , ao mesmo tempo, um conjunto
de regras que no tem uma formulao prescritiva, embora tenha casos exempla-
res (como Malinowski que citamos acima) e, uma forma de sensibilidade para com
o dado emprico. As regras so as mais simples de apontarmos: elas incluem con-viver com a sociedade ou grupo estudado, comunicar-se com eles na sua prpria
lngua, transformar a experincia em texto, geralmente utilizando alguma forma
de dirio de campo (h livros que do dicas em escrever notas etnogrficas em
sociedades complexas, como EMERSON, FREZet al., 1995), colocar suas teorias
em teste a partir do material recolhido, prestar ateno naquilo que mais dizem os
membros do grupo que voc estuda, entre outras. A sensibilidade, por sua vez, o
resultado daquilo que centro do empreendimento.
O princpio bsico do mtodo etnogrfico a transformao daquilo que,
na nossa experincia comum, seria considerada uma experincia subjetiva em um
dado objetivo. A afirmao est ligada a dois supostos. (a) A ideia de que o dado
relevante para as cincias sociais envolve um mnimo de compreenso da realidade
social na qual as pessoas estudadas vivem, mesmo quando este dado aparece sob a
forma de um nmero. Assim, a estatstica sobre o nmero de divrcios s inteli-
gvel graas ao conhecimento que o pesquisador tem dos contedos simblicos que
definem as expectativas de uma vida familiar naquela sociedade, tais como: o fato
de a mulher precisar ou no trabalhar porque a renda do marido j no suficiente
para o sustento da famlia em um determinado padro de vida; se ela ganha mais
que o marido numa sociedade machista onde isso motivo de vergonha para o
homem; a diviso tradicional do papel social entre maridos e esposas; a oposio
entre vida familiar e trabalho e entre a casa e a rua; etc. O domnio destes contedos
simblicos supem, por sua vez, (b) a capacidade de o pesquisador se relacionar o
seu objeto. preciso dispor-se a ouvir o que o outro tem a dizer ou, em outras pala-
vras, deixar-se dizer algo pelo outro, permitir-se influenciar-se por ele (GADAMER,
1993). E isso somente possvel numa relao dialgica. Dizendo da maneira a mais
simples possvel, o pesquisador tem de estar disposto a conversar, e ele s consegue
isso relacionando-se de alguma forma com o outro. Desta perspectiva, a etnogra-
fia leva s ultimas consequncias o fato de o observador e o grupo que ele estudapertencerem a mesma ordem de fenmenos. Em ambos os lados da relao en-
contramos sistemas diferentes formados por elementos semelhantes: valores, ideias,
prticas, vises de mundo, modelos etc. Por esse motivo, a antropologia argumenta
que a relao entre o pesquisador e o objeto pesquisado tambm parte dos dados.
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Um exemplo de pesquisa pode esclarecer o que exatamente isso quer dizer.
Ao entrevistar um parlamentar ou um poltico ou um funcionrio do Congresso,
o primeiro impulso do pesquisador ligar seu gravador e comear suas questes.
As respostas, neste caso, so decepcionantes. Um exemplo foi o pesquisador que,durante a entrevista com o chefe de gabinete de um deputado, ouviu vrias vezes a
afirmao de que o deputado tinha por tal ou qual proposio um apreo especial
e que ele a apoiava porque acreditava na sua importncia para o pas. No meio da
entrevista, o chefe de gabinete pediu ao pesquisador que desligasse o gravador e,
ento, contou uma histria completamente diferente: que o deputado tinha tais
ou quais interesses naquela proposio.2O ponto aqui no o fato, banal diga-se,
que os parlamentares defendem e tm interesses, mas justamente a diferena entreo domnio de um discurso que pode ser reproduzido porque gravado e um outro
onde a palavra dita em confiana, quando o entrevistado, aparentemente, abre
o jogo. Essa experincia nos diz muito pouco a respeito dos interesses reais do de-
putado, da sinceridade do chefe de gabinete ou, mesmo, do destino da proposio.
Mas ela revela aspectos valiosos das regras no escritas da atividade do Congresso,
dos mecanismos de circulao de palavras e verses, de como a palavra pode ser
utilizada para construir uma relao de confiana, da dificuldade da nossa ideo-logia poltica de lidar explicitamente com a afirmao do interesse. O pesquisador
no poderia saber de nada disso se no tivesse entrevistado o chefe de gabinete
usando um gravador. bvio. Mas a obviedade esconde aspectos importantssi-
mos da experincia social que s conseguem ser elaborados e tematizados a partir
do momento em que somos capazes de pensar nossas experincias como parte dos
dados da prpria pesquisa.
Do que nos interessa mais de perto, aproximadamente desde a dcada de 70,
a etnografia passou a ser utilizada para examinar as prprias sociedades ocidentais.
No Brasil, particularmente, o direito um objeto precoce da antropologia. O tra-
balho de Da Matta, por exemplo, vai caracterizar o que ele chamou de dilema bra-
sileiro como a oposio entre uma tica pessoal, baseada no modelo das relaes
familiares e hierrquicas, e uma tica individualista, consubstanciada na norma ju-
rdica onde todos seriam pensados como iguais (DA MAA, 1979). Mais recen-temente encontramos alguns trabalhos etnogrficos de autores do prprio direito
(como, por exemplo, BAPISA, 2008). H, de todo jeito, ainda muito a ser feito.
2 Art. 100. Proposio toda matria sujeita deliberao da Cmara. BRASIL. RegimentoInterno da Cmara dos Deputados. Braslia: Cmara dos Deputados. 2005 1989.
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Etnografia constitucional:
Quando direito encontra a antropologia16
A ideia de trabalhar as instituies utilizando a etnografia tambm no
nova. Vrios autores, de uma maneira ou de outra, j se debruaram sobre o assun-
to (para no encompridar a lista de textos citados, mencionamos apenas o cls-
sico, Como pensam as instituies, DOUGLAS, 1998). Mas, tendo em vista aspreocupaes mais imediatas deste texto, quem coloca a questo da maneira, para
ns, a mais interessante Scheppele. dela que retiramos a expresso etnografia
constitucional que, se no traz grandes novidades tericas, tem, pelo menos, a
vantagem de ser, talvez, a mais apropriada para o nosso assunto. Segundo a autora,
Quanto maior o interesse por alguns dilemas constitucio-
nais e pelo seu estudo, mais atraente se torna a etnografia
constitucional. A etnografia constitucional no se perguntapelas grandes correlaes entre as especificidades do de-
sign constitucional; tampouco, pela efetividade de institui-
es especficas. Ao invs disso, a etnografia constitucional
olha para a lgica de contextos particulares como meio de
iluminar as inter-relaes entre os elementos polticos, le-
gais, histricos, sociais, econmicos e culturais. O seu ob-
jetivo entender melhor como sistemas constitucionais
operam, identificando os mecanismos da governabilidadee, as estratgias pelas quais se a tenta, experimenta, re-
siste e revisa. Para tanto, a etnografia constitucional leva
em considerao a profundidade do contexto histrico e
cultural. Enquanto uma configurao constitucional tem
traos distintos e no generalizveis, cada contexto consti-
tucional possui igualmente uma lgica que liga vrias das
suas caractersticas em padres cujos traos podem ser vi-
sveis alhures, em manifestaes diferentes e especficas.(SCHEPPELE, 2004, p. 390)3
3 No original: Te more one is interested in particular constitutional dilemmas and the knowledgethat can be brought to bear on understanding them, the more one may be drawn to constitutionalethnography. Constitutional ethnography does not ask about the big correlations between thespecifics of constitutional design and the effectiveness of specific institutions but instead looks tothe logics of particular contexts as a way of illuminating complex interrelationships among political,legal, historical, social, economic, and cultural elements. Te goal of constitutional ethnography isto better understand how constitutional systems operate by identifying the mechanisms throughwhich governance is accomplished and the strategies through which governance is attempted,experienced, resisted and revised, taken in historical depth and cultural context. While any onespecific constitutional setting has distinctive and ungeneralizable features, each constitutionalcontext also has logics that link various specific features found in the particular case into patternswhose traces may also be visible elsewhere with different specific manifestations.
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Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 17
E, mais adiante no mesmo texto,
Etnografia constitucional o estudo dos elementos legais
centrais da poltica, usando mtodos que so capazes de
reconstituir os detalhes vivos do cenrio poltico-legal.(SCHEPPELE, 2004, p. 395)4
A ideia , portanto, levar em considerao no apenas a sistematizao
dogmtica das normas jurdicas, mas principalmente o detalhe, a maneira como,
de fato, as regras os princpios jurdicos se reproduzem no cotidiano, onde as
grandes questes (como a legitimidade, a justia e os valores) talvez deem lugar
a questes de ordem mais pragmtica, como a ocupao de posies nos res-
pectivos campos sociais (BOURDIEU, 1989) ou o uso das palavras e dos instru-mentos jurdicos para propsitos contextuais, como, p. ex., tentar ganhar tempo
no processo de cassao de um mandato parlamentar, enquanto se tenta criar
as condies polticas necessrias para ganhar o voto da maioria em plenrio.
O que est em jogo aqui uma mudana de perspectiva: sair da elaborao um
tanto abstrata de frmulas universais e entrar no universo no to assptico,
mas, para mim pelo menos, muito mais interessante do uso real dos argumentos
e da sua construo social.
De fato, h a uma crtica ao direito, mas preciso elaborar o que isso
quer dizer. A crtica semelhante quela que, parafraseando Bernstein (1983, p.
72), os ps empiristas fizeram epistemologia da cincia (creio que poderamos
colocar aqui FEYERABEND, 1977; LAKAOS e MUSGRAVE, 1979; LAOUR e
WOOLGAR, 1986; KUHN, 1996). Sem um exame detalhado de como opera, no
cotidiano da prtica judiciria, o uso de razes e contra razes, as teorias sobre ofuncionamento do direito e da sua relao com os outros campos da experincia
social no passariam de generalidades baseadas na f. odavia, para dizer que
o que direito afirma de si mesmo no corresponde ao que ele faz, no precisa-
ramos de um livro. H de haver algo mais num projeto etnogrfico do que o
reconhecimento da diferena entre teoria e prtica. E esse algo mais justamente
levar s ltimas consequncias os sentidos que podemos retirar desta diferena,
para, dessa forma, reintegr-las num sistema onde tcnica, instituio, atores,ideias, lutas, angstias e valores esto todos em movimento juntos, numa mesma
realidade social.
4 No original: Constitutional ethnography is the study of the central legal elements of politiesusing methods that are capable of recovering the lived detail of the politico-legal landscape.
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Etnografia constitucional:
Quando direito encontra a antropologia18
A crtica que a etnografia dos textos deste volume podem fazer ao direi-
to est em apontar os limites deste ltimo; mas, com isso, ela encontra os seus
prprios limites. Uma maneira de esclarecer o que exatamente isso quer dizer
utilizar uma histria, um tanto torta. Ela est em A estrutura das revoluescientficas (KUHN, 1996) e comea assim: alguns fsicos vo argumentar que a
teoria de Newton seria um caso especial da teoria de Einstein. A prova seria o
fato de que possvel derivar as equaes do primeiro das equaes do segundo,
se se tomarem alguns cuidados especiais. Kuhn, no entanto, vai argumentar que
isso um engano. As equaes derivadas de Einstein no poderiam ser iguais s
de Newton, mesmo se os smbolos em uma e noutra fossem os mesmos. A razo
disso que os seus elementos tm sentidos diferentes. Assim, por exemplo, amassa em Newton no conversvel em energia e o tempo uma unidade cons-
tante; para Einstein, ao contrrio, a massa pode se transformar em energia e o
tempo pode se expandir ou contrair conforme a velocidade. O que nos interessa
o seguinte argumento que Kuhn deriva deste exemplo: a fsica de Einstein no
pode mostrar que a fsica de Newton est errada. Elas so simplesmente dife-
rentes e se aplicam quelas circunstncias em que os seus respectivos mtodos
cientficos j as comprovaram. O que Einstein poderia mostrar, completa Kuhn, que as equaes de Newton no so aplicveis em velocidades prximas da
luz. Mas essa afirmao nunca foi comprovada pelo mtodo cientfico de New-
ton e, portanto, no pertence sua cincia.
A histria parece apropriada para o nosso assunto porque algo similar
ocorre aqui. O que est em jogo com a crtica etnogrfica no o direito na-
quilo que ele tem de saber autnomo, o campo prprio de sua aplicao, onde
ele decorre da elaborao histrica de uma forma de vida apropriada s nossas
circunstncias sociais. E nisso entra muita coisa: a discusso de qual seria a
melhor deciso, a necessidade do direito numa sociedade de massas como a
nossa, a longa e penosa histria da construo de uma tecnologia normativa,
os sentidos da norma, as relaes entre os diversos instrumentos legais, a sua
aplicao em contextos diversos, as suas justificativas etc. O que os trabalhos
aqui reunidos podem criticar so as afirmaes que o direito faz para almdestas, quando ele pretende, por exemplo, legislar sobre coisas para as quais os
seus instrumentos no lhe bastam ou ignorar as consequncias institucionais
de algumas das decises que ele mesmo toma. Mas, por outro lado, uma cr-
tica que deixa tudo como est. Ela no sugere alternativas. Este o seu limite:
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Os bastidores do Supremo e outras histrias curiosas 19
etnografia cabe apenas, com sorte, fazer avanar o debate isto , se algum
estiver disposto a ouvir.
O estranhamento
O encontro entre o direito e a sensibilidade etnogrfica um encontro
entre dois saberes muito afastados um do outro. Parte disso o resultado das
condies objetivas de cada um. Assim, enquanto a antropologia e as cincias
sociais de um modo geral tm seu espao predominante na academia e, eventu-
almente, em consultorias ou discusses nos jornais, o direito acontece e se de-
senrola em um ambiente institucional completamente diferente. No mundo do
direito, as decises de um juiz, por exemplo, podem afetar a vida das pessoas ou
das instituies de uma maneira muito imediata. No difcil de ver que relao
com o contexto tem de ser diferente e, que as cincias sociais5e o direito esto
associados a formas de vida que so, em grande medida, estrangeiras entre si.
Mas para desenvolver o que exatamente isso quer dizer vou comear por aquilo
que, da perspectiva de uma observao mais apressada, seria o centro do proble-
ma: a maneira pela qual um saber percebe o outro. Vamos examinar, primeiro, o
que isso quer dizer da perspectiva das cincias sociais para, depois, examinar a
mesma questo da perspectiva do direito.
1. De sua parte, os cientistas sociais pouco entendem da dogmtica e da
tcnica jurdica e so levados, pelos caminhos j usuais do seu saber, a ignorar as
especificidades e a autonomia do direito, como, alis, j dizia Bourdieu (1986). O
impulso dos cientistas sociais reduzir o direito aos seus componentes sociolgi-
cos ou histricos. uma maneira de ver que reflete os instrumentos tericos doscientistas sociais e pouco espao encontra para ouvir o que o direito tem a dizer.
Assim, um cientista poltico pode ter muita dificuldade para entender a fora
5 Para o argumento no faz sentido fazer maiores distines entre as cincias sociais. O queest em jogo a ruptura entre elas e o direito. E elas se opem ao direito de maneira muitosemelhante.
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Quando direito encontra a antropologia20
ilocucionria6 que a expresso inconstitucional tem para o direito quando
uma causa julgada digamos no Supremo ribunal Federal; ele talvez v
tentar reduzir o sentido desta expresso ao poder, aos interesses (econmicos,
corporativos, de classe), disputa pelo capital simblico ou a outros elementosquaisquer. E, ao fazer isso, ele retira a fora da expresso e a transforma no efeito
de alguma outra coisa (relao de fora, interesse, preconceito, exerccio da do-
minao, aliana poltica etc.). Em outras palavras, ele submete a expresso a um
contexto sociolgico que, se no determina o seu sentido, explica o seu aconteci-
mento. Claro, com isso no quero dizer que no haja, s vezes, bons motivos para
dizer que uma deciso foi motivada por foras exteriores ao direito. Os prprios
juristas o reconhecem, quando se debruam sobre a influncia da mdia; ou,afirmam que o Supremo ribunal Federal uma corte poltica. Este ltimo ve-
redicto tem, para eles, o sentido um tanto negativo de que o tribunal sacrificaria
a, por assim dizer, pureza do argumento jurdico em favor da convenincia pol-
tica. E repare que esta convenincia no se refere, necessariamente, ao interesse
pessoal do julgador ou suspeita de alguma violao tica ou a um crime contra
a administrao pblica. A convenincia pode implicar na convico da parte
dos atores envolvidos de que, se a deciso fosse tomada em conformidade letrada lei, o resultado geraria constrangimentos institucionais cujas repercusses se-
riam muito extensas para contemplar. Mas, mesmo reconhecendo que o mundo
exterior, por vezes, encontra o seu caminho at a deciso judicial, isso no coloca
em questo, para os seus operadores, a crena fundamental na pureza do direito.
O direito, dizem eles, no deveria levar em considerao outra coisa que no a
si mesmo. Dizer que decises polticas acontecem s vezes no quer dizer que
elas vo acontecer sempre, nem que bom que assim tenha sido. E, justamente
porque desvios so possveis, mais importante ainda defender a fora do pr-
prio direito contra o abuso dos mal intencionados e a pressa dos incompetentes.
6 O ato ilocucionrio dependente do contexto especfico e concomitante ao ato locucionrio.Aquele que diz algo (ato locucionrio) tambm realiza um ato como: responder ou formularuma pergunta; dar alguma informao, aviso, alerta; fazer um pedido; descrever uma situao;anunciar uma inteno ou um veredicto; prometer algo; dar uma ordem; &c. Este um atoque se realiza dizendo alguma coisa, distinto, portanto, do ato de dizer alguma coisa. O atolocucionrio possui ento uma certa fora convencional (fora ilocucionria), i. e., uma foraque se baseia em regras, categorias ou convenes compartilhadas AUSIN, J. L. How to dothings with words. Te William James Lectures delivered at Harvard University in 1955 . 2nd.Oxford: Oxford University Press, 1975..
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A necessidade de defender o direito que sente o seu militante no um
problema para o cientista social. Este poderia compreend-la como a defesa po-
ltica de uma instituio que est em conflito com outras. Poltica no sentido
forte da palavra: a competio pelo domnio dos bens simblicos e materiaisque circulam dentro do Estado. Mas, ao compreend-la dessa forma, o cientista
social est, mais uma vez, reduzindo a importncia da expresso a algo que est
para alm ou aqum dela (depende do ponto de vista): defesa da autonomia do
campo, vontade de poder ( la Nietzsche), ideologia poltica ou a outra razo
qualquer. O problema que o cientista social no consegue dar o passo seguinte.
Ele no compreende a fora que expresses como a declarao de inconstitucio-
nalidade tm para o direito. A fora delas no , da perspectiva do operador dodireito, passvel de ser reduzida a outra expresso ou componente sociolgico ou
trajetria histrica.
Alis, arrisco a hiptese que, da perspectiva do jurista, constitucional
e o seu oposto inconstitucional so conceitos simples no sentido de Moore.
Moore utiliza a ideia para definir o bom e, com isso, caracterizar o domnio da
tica. H diferenas importantes entre moral, tica e direito (vide, entre outros,
HABERMAS, 1998). A discusso vai longe, e no faz sentido para ns, neste
momento, retom-la. Utilizar Moore no significa, de minha parte, a tentativa de
reduzir o direito tica. Limito-me a sugerir que a descrio que Moore faz do
bom serve para caracterizar a maneira como o direito lida com o conceito de
constitucional (entre outros). Quando Moore afirma que o bom um conceito
simples, ele quer dizer que o bom no redutvel ou explicvel com o uso de
outros conceitos. Dito de outro jeito, o [bom] um destes inumerveis objetos
do pensamento que so, em si mesmos, incapazes de serem definidos, porque
eles so os termos ltimos em referncia aos quais o que quer que seja passvel
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de definio deve ser definido (MOORE, 1993, p. 61).7Quero defender que o
mesmo acontece com os conceitos de constitucional e inconstitucional.
possvel gastar muito tempo e esforo discutindo se uma lei, ato do exe-
cutivo ou legislativo ou deciso de uma instncia inferior seria constitucional ouinconstitucional. Provavelmente, os argumentos de parte a parte sero no ape-
nas diferentes e divergentes, mas, talvez, incompatveis e incomensurveis entre
si. E a experincia mostra que dificilmente um dos lados consegue convencer o
outro. E isso faz parte desta forma de vida. O advogado que se deixa formalmen-
te convencer pelo argumento da outra parte e diz desistimos da causa porque
vocs tm razo, exceo de situaes muito particulares, no est sendo um
bom advogado. Ao contrrio, para melhor defender os interesses do seu cliente,
ele no pode se deixar convencer pelo argumento da outra parte, por melhor que
ele seja. muito perigoso ouvir, diria Oscar Wilde. Quem ouve pode ser con-
vencido. E um homem que se permite ser convencido por um argumento uma
pessoa completamente irrazovel.8Mas nenhum dos argumentos dos nossos hi-
potticos juristas tem relao com a definio do conceito de constitucional. Este
dado como evidente. A pergunta qual a definio de constitucional? simples-
mente no faz sentido neste contexto. Se ela fosse feita, a resposta seria aquilo
que est em consonncia com o texto constitucional o que, convenhamos,
uma tautologia. O que frequentemente acontece a discusso de quais os crit-
rios deve-se utilizar para afirmar que algo ou no constitucional. Mas no s
isso. Os usos de bom e constitucional se assemelham de outro modo. Eles,
7 No original: It is one of those innumerable objects of thought which are themselves incapable
of definition, because they are the ultimate terms by reference .to which whatever is capableof definition must be defined. Mas isso s se aplica ao conceito de bom quando utilizadono sentido tico, como mostrou Wittgenstein WIGENSEIN, L. I. A lecture on ethics. TePhilosophical Review, v. 74, n. 1, p. 3-12, 1965. . O bom que se refere ao domnio da tica seria,para Wittgenstein, o bom utilizado no sentido absoluto. A maneira de explicar o que exatamenteisso quer dizer comparando-o com o uso de bom no sentido relativo. O bom no sentidorelativo equivale a expresses como: ele um bom pianista. O ponto que possvel substituiresta afirmao por outras, tais como: ele toca peas difceis com facilidade, dos pianistas quej ouvi tocar, ele o mais vigoroso, a sua interpretao , alm de muito competente, original,ele domina muito bem a tcnica etc. Neste caso, o bom pode ser substitudo por afirmaesfatuais, quer dizer, que descrevem estados de coisas. O mesmo no pode acontece quando eudigo, por exemplo, ser honesto bom. Este ltimo no pode ser substitudo por enunciadosfatuais. verdade que h situaes em que ser honesto traz benefcios, mas h ocasies em queacontece o contrrio, como mostra a experincia de todos. Isso no afeta a afirmao de que serhonesto bom.
8 Minha verso livre do seguinte trecho: You see, it is a very dangerous thing to listen. If onelistens one may be convinced; and a man who allows himself to be convinced by an argument isa thoroughly unreasonable person. A frase est em An ideal husband.
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ao mesmo tempo, ofendem e impem a necessidade da ao. Da mesma forma
que um indivduo se sente violado quando a ao do outro transgride aquilo que
ele acredita ser bom (no sentido tico, bem entendido), tambm o jurista sente
violado o direito quando h algo inconstitucional. O importante na comparao evocar uma dimenso do direito que o cientista social pode at mesmo organi-
zar intelectualmente, mas cujo sentido mais profundo lhe escapa, justamente por
no ser capaz de experiment-la.
2. A maneira como o direito se relaciona com as cincia sociais no deixa
de ser curiosa. Ele, a todo momento, est fazendo juzos sociolgicas sobre o
seu lugar no mundo, a sociedade que o cerca e as repercusses das normas e das
decises judiciais. Ao mesmo tempo, recusa-se sistematicamente a dialogar com
as cincias sociais. Isso configura uma mentalidade muito prpria, que preciso
examinar mais de perto. A bem do argumento, seria importante comear por um
exemplo. Veja o leitor o seguinte trecho:
O objetivo precpuo do direito deve ser, ento, a garantia
da paz e do equilbrio das relaes sociais, evitando confli-
tos com fins de promover o desenvolvimento do grupo so-cial (sociedade) com reduo das desigualdades existentes.
O perodo acima est publicado em uma das revistas jurdicas disponveis
na internet. Mas deixo-o propositadamente annimo. E h bons motivos para
tanto. A frase me interessa porque representa o senso comum que permeia a
doutrina jurdica (para utilizar, com alguma liberalidade, a expresso de WA-
RA, 1988). No difcil encontrar outras semelhantes. Ela , neste sentido,
exemplar. Somente nesta condio que a examinarei.
Apesar de pequeno, o trecho riqussimo. Rescrevendo-o, ter-se-ia o se-
guinte: se bem utilizado, o direito garante a paz e o equilbrio das relaes so-
ciais, evita conflitos, promove o desenvolvimento, reduz desigualdade. poss-
vel, claro, dar outras interpretaes, como: o direito garante a paz; a paz garante
o equilbrio das relaes sociais; o equilbrio evita conflitos; evitar conflitos pro-
move o desenvolvimento; promover o desenvolvimento reduz a desigualdade.Mas no importa exatamente como o interpretemos, o ponto que as relaes
que o trecho prope no esto contidas pelos instrumentos prprios do direito.
Ao contrrio elas configuram juzos sociolgicos. ecnicamente, o direito seria
condio suficiente dos outros, vez que seu bom uso os traria ao mundo. Mas ele
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Quando direito encontra a antropologia24
tambm condio necessria, pelo menos, para a pacificao. Isso no deriva
diretamente do trecho, mas compe a mentalidade que ele representa. Assim,
as proposies acima se fazem acompanhar de outros juzos. Entre eles, est o
de que o direito que torna possvel a sociedade sem ele no h paz social,repetem os mais empolgados.
possvel argumentar que no se trata de juzos sociolgicos, mas dos de-
veres do direito, quer dizer, das obrigaes que o direito deveria cumprir. Seriam,
portanto, juzos normativos. A objeo parece ser mais resistente para a primeira
relao. Poder-se-ia modific-la para o seguinte: o direito deve almejar a paz
social. No entanto, mesmo admitindo que a proposio assim reformulada no
apresenta mais a carter de um juzo sociolgico, ainda assim no possvel esca-
par dele. As razes no so difceis de apontar. Compare-a com a seguinte frase:
o indivduo deve ser honesto. A honestidade algo que no depende dos des-
dobramentos que os atos locucionrios (o que se diz) possam causar no mundo,
quer dizer, suas consequncias, seus efeitos perlocucionrios, diria Austin (1975).
Eles podem ser bons ou ruins; podem ser bons para uns e ruins para outros. No
importa. quase como que a honestidade se realizasse em si mesma, no sentidode que ela independe do que causa. Ela se completa quando o sujeito diz ou age
honestamente. No se pode dizer que foi desonesto o sujeito que, mesmo contra
toda a experincia e o bom senso das gentes, foi honesto quando a prudncia
recomendava outro rumo. Podemos achar que ele foi ingnuo, bravo ou simples-
mente tolo. Mas no possvel negar que ele tenha sido honesto. Ora, o mesmo
no acontece com a ideia de pacificao. A paz social no se realiza simplesmente
com a ao do direito independentemente das suas consequncias. Para cumprirou no o seu dever, o direito depende dos resultados alcanados pelo uso das nor-
mas jurdicas. Claro que a as coisas ficam bem mais complicadas. No est claro
o que significa pacificao. oda a vez que eu pergunto a um operador do direito
um que comungue com o esprito do trecho acima o que exatamente ela
quer dizer, invariavelmente o meu interlocutor se enrola, percebe a dificuldade e,
na maioria dos casos, muda de assunto. Mas vamos supor, a bem do argumento,
que o problema esteja resolvido e que tenhamos um critrio do que seria paci-ficao que, embora no seja consensual, razovel o suficiente para os nossos
propsitos. Nada mudou. O juzo de saber se o direito alcanou-a ou no conti-
nua a depender de um juzo sociolgico: preciso examinar as repercusses na
sociedade das decises e normas jurdicas luz do referido critrio.
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Juzos sociolgicos que estabelecem relaes de causa e efeito no perten-
cem ao mundo da dogmtica jurdica9 que, alis, pelos seus instrumentos in-
competente para tratar delas. E digo incompetente, da mesma forma que afirmei
que a antropologia incompetente para resolver aquilo que o domnio prpriodo saber jurdico. Vou mais adiante e afirmo que proposies sobre o papel do
direito na realidade social no poderiam estar contidas ou ser derivadas logica-
mente de nenhum instrumento jurdico ou norma constitucional. Qualquer ten-
tativa neste sentido invariavelmente ir fracassar. Alis, para cumprir o seu papel
o direito necessariamente tem de ter um carter contrafactual. Parte disso, tem
relao com a prpria tcnica jurdica, na medida em que o direito para operar
precisa criar um outro mundo (na expresso de HERMIE, 1998), a partir doqual ele consegue regular o mundo social que habitamos.
O princpio geral que preside o empreendimento de encontrar um papel
para o direito profundamente perturbador. O cientista social no teria nenhum
problema com ele, mas o juristas sim, apesar de eles no se aperceberem disso.
Se a legitimidade depende de ele ser capaz de realizar os seus objetivos precpu-
os como o trecho acima prope, o no cumprimento destes implica em colocar
quela a prova. A legitimidade do direito dependeria, portanto, de um estado de
coisas. Em outras palavras, o trecho faz exatamente o mesmo que o cientista so-
cial: ele reduz o direito a algo que est para alm dele. O cientistas sociais, contu-
do, no reduziriam a legitimidade do direito desta forma. Alis, desde a sociolo-
gia weberiana, entende-se que a legitimidade do Estado burocrtico baseada em
regras e regulamentos que definem os procedimentos necessrios para que um
indivduo ou grupo assuma o poder (WEBER, 1991). portanto o inverso: no
o cumprimento de certos objetivos que garante legitimidade ao direito, mas
o direito que garante legitimidade dos ocupantes do poder. O socilogo vai fazer
outras redues. Ele pode afirmar que o direito um instrumento de dominao
de uma classe sobre as demais, um processo de resoluo de conflitos ou serve
para estabilizar expectativas, entre outros. Este ltimo , da perspectiva da so-
ciedade contempornea, importantssimo, porque est vinculado coordenao
entre diversas partes de uma sociedade que se torna cada vez mais especializada.
9 Com bem j dizia Kelsen, o direito, enquanto cincia, se baseia em relaes de imputao e node causa e efeito KELSEN, H. eoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 2003.. Estasltimas so prprias das cincias da natureza. Nas cincias sociais, as relaes causais so maisdifceis e exigem supostos metodolgicos muito fortes.
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Se as afirmaes so complicadas, muito mais difceis so os seus pres-
supostos. O trecho carrega uma certa ideia de sociedade. Enquanto a represen-
tao de uma sociedade de fato, ela dialoga diretamente com o corpo de teoria
prprio das cincias sociais. E no resiste a um exame mais atento. Assim, otrecho relaciona, por exemplo, a boa sociedade com uma sociedade harmoniosa
e pacfica. No entanto, como j mostrou Simmel (1904a; c; b), o conflito no s
uma parte absolutamente central de qualquer grupo, como uma forma de rela-
o social como outras. Uma sociedade sem conflito no uma utopia irrealiz-
vel, um sem sentido emprico. A realizao acompanha boa parte da produo
sociolgica, incluindo a a sociologia marxiana. Alis, para Marx, o conflito o
prprio motor da histria (vide, por exemplo, MARX, 1973; 1993; 2000). Rela-cionar desenvolvimento com reduo de desigualdade , por outro lado, uma
pretenso importantssima de boa parte da cincia econmica (SEN, 2000). E
isso no se consegue por meio de leis, embora, claro, elas possam ajudar. Mas,
a relao entre desenvolvimento e diminuio da desigualdade no inevitvel.
Alis, boa parte do desenvolvimento (no caso brasileiro, por exemplo) implicou
em uma brutal concentrao de renda, sob cujos efeitos penam milhes compa-
triotas nossos at hoje. E isso foi o resultado de um poltica econmica segundo qual, nas palavras de um antigo prcere destas terras, era preciso fazer o bolo
crescer para depois dividir.
De nada adiantam todos os argumentos acima, todavia. A doutrina jurdi-
ca no est disposta a dialogar com o conhecimento das cincias sociais, mesmo
se ela estiver se aventurando nos assuntos sobre os quais as cincias sociais te-
nham muito a dizer, e a doutrina jurdica faria melhor que se no dissesse nada.
Desentender o contexto e a teoria social equivale a negar os saberes se constroem
levando-os srio. Poderamos, portanto, sintetizar o desentendimento entre as
cincias sociais e o direito assim: os cientistas sociais no conseguem entender
(embora eles digam que entendam) a importncia que tem para os juristas as
razes de decidir e a prpria deciso, e os juristas, por sua vez e de uma maneira
geral, no veem (embora digam e pelo menos alguns deles em alto em bom
som que percebem claramente) o contexto social ao qual pertence o seu saber.Cada um dos saberes nega ao outro aquilo que o outro considera mais caro e
mais fundamental.
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O (des)encontro
Vamos olhar tudo isso por um outro ngulo. O impasse no encontra so-
luo se no percebermos todos os fenmenos acima como parte de um mesmo
sistema. O ponto que os juzos que o direito faz sobre o seu papel no so afir-
maes sobre o mundo, no pertencem ao reino da sociologia. A mais correta
transcrio do trecho que reproduzimos atrs seria a seguinte: a paz, o equi-
lbrio das relaes sociais, a evitao do conflito, o desenvolvimento do grupo
social, a reduo das desigualdades so bons e bons no sentido da tica. Em
outras palavras, ele conforma o que seria a boa vida ou, no caso, a boa sociedade.
Cada um dos elementos do trecho representa um valor que nos caro enquan-
to coletividade, e, juntos, eles expressam uma identidade social. Claro, numa
sociedade plural e desigual como a nossa, h, por certo, perspectivas diferentes
sobre quais seriam seus valores mais centrais. Mas possvel afirmar, pelo menos
provisoriamente, que os valores representados no trecho tem certa generalidade
e talvez sejam, at mesmo, hegemnicos dentro do campo jurdico. E o campo
jurdico, por sua vez, representa uma viso de mundo muito mais prxima do
Brasil dos bacharis, urbano, de classe mdia, prximo costa que a viso de
mundo prevalente no serto da Bahia, por exemplo. O interessante para o nos-
so assunto no sua origem social, contudo. O que nos interessa o fato de a
doutrina jurdica passar juzos sobre a boa sociedade como se fossem argumen-
tos sociolgicos. Isso significa, num outro plano, uma dupla negao: negar que
eles sejam valores e, que a doutrina esteja discutindo a identidade social que a
nossa. qual necessidade sociolgica corresponde a alienao proposital que o
direito brasileiro constri para si mesmo?No fundo, o paradoxo da situao est no seguinte: o direito nega o seu
pertencimento a uma sociedade e a uma tradio propriamente brasileiras, mas
constri a recusa a partir de juzos sociolgicos que, por sua vez, reintroduzem
os valores que fazem parte da tradio cujo pertencimento ele precisa negar.
Veja o leitor que a frmula acima repete, num outro contexto, a estrutura que
mencionamos no comeo deste texto, quer dizer, a oposio entre a ignorncia
intencional e a necessidade do dilogo. O paradoxo ganha uma outra dimensose colocarmos nesta relao a tcnica jurdica. Dito de outro jeito, a alienao
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proposital salva, aparentemente pelo menos, a pureza desta ltima, quer dizer,
a sua distncia da sociedade sobre a qual ela se aplica. Isso porque a discusso
dos valores e da identidade estaria restrita aos objetivos e funo do direito.
Claro, isso no acontece desta forma na prtica cotidiana da justia, como oscaptulos deste livro abundantemente o comprovam. Com isso quero dizer que
a todo momento a sociedade encontra seu caminho de volta at o direito. Mas
isso no significa que a alienao no seja bem sucedida. A sua perpetuao ao
longo dos ltimos anos afirma justamente o contrrio. O que o direito consegue
no eliminar a sociedade de si mesmo, mas construir-se como alteridade a ela.
E, para haver alteridade, preciso, neste caso, haver desencontro. Nestes ter-
mos, a ignorncia faz parte de uma delicado mecanismo que o direito brasileiroconstri para, simultaneamente, relacionar, intervir e, num outro plano, dialogar
com a sociedade que o cerca. Mas, mais do que isso, para o bom funcionamento
da equao acima, necessrio um segundo passo: o direito brasileiro recusa
reconhecer a ruptura que ele mesmo cria (ABREU, 2013c).
Parte da minha pesquisa nos ltimos anos tem lidado justamente com
essa questo. A minha hiptese (parte da qual foi desenvolvida a partir dos tra-
balhos apresentados neste volume) que o direito brasileiro se constri contra
a sociedade. Isso quer dizer que as suas categorias propositadamente se
opem s formas espontneas de relao social, particularmente a questo da
troca, centrais no apenas para a nossa sociabilidade de uma maneira geral,
como tambm para a poltica (isso j est presente em vrios momentos do pen-
samento social brasileiro de vis jurdico, entre outros, LEAL, 1948; VIANNA,
1999; SOARES DE SOUZA, 2002). A hiptese no uma verso mais recente da
crtica de carter sociolgico segundo a qual o direito, enquanto um fenmeno
derivado de necessidades sociais mais profundas, tem como um de seus objeti-
vos tomar partido na dominao de uma classe sobre as demais (ALHUSSER,
1987; GRAMSCI, 2002; MARX, 2005). preciso admitir que a manuteno de
um certo arranjo institucional um dos papis que o direito cumpre o que,
numa sociedade desigual como a nossa, tem claros beneficirios. Mas a ideia de
que o direito brasileiro se constri contra a sociedade quer dizer algo um poucodiferente. Como vimos, o direito propositadamente ignora o contexto social no
qual est inserido em alguns contextos; noutros, simplesmente o nega. O ponto
que ele leva essa ruptura ao extremo e inverte a relao de correspondncia
que outros sistemas jurdicos estabelecem entre sociedade e direito. Nestes, ima-
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gina-se que o direito a representao, sob o manto da tcnica jurdica, de uma
maneira de ser que a da prpria sociedade que ele pretende regular. Haveria a
uma coerncia entre eles. No nosso caso acontece justamente o contrrio. Fugi-
ria muito dos propsitos desta introduo reproduzir a demonstrao da hipte-se. O que no tem muita importncia para o presente argumento. Mesmo desco-
nhecendo ou discordando de que possa haver boas razes para tanto, a oposio
que descrevemos um fenmeno social e, portanto, observvel: a ignorncia e a
negao propositais do contexto social, por um lado, e a recusa em reconhecer
que elas existam, por outro.
Quando o cientista social ouve o que o direito diz ao invs de perceber o
que isso significa, ele est aceitando uma palavra que no a dele. Faria melhor
em ouvir no o que dizem os juristas, mas em entender o que isso quer dizer.
Mas no possvel deixar de colocar aqui a seguinte questo: o que o (des)en-
contro com o direito pode nos dizer sobre as cincias sociais? Aparentemente,
pelo menos, elas tambm recusam-se a ver no direito a representao de valores
que nos caracterizariam enquanto coletividade. Afinal, tanto o direito quanto as
cincias sociais vm de substrato social, ideolgico em algo semelhante: forma-
do por bacharis (embora os cientistas sociais no se percebam assim), urbano,
classe mdia, que representa uma viso de mundo que est mais perto do litoral
do que do serto. Num certo sentido, o desentendimento que o direito constri
com as cincias sociais a afirmao da sua identidade enquanto direito. Ele
diz simplesmente ns somos diferentes, no somos sociologia, histria, cincia
poltica, economia ou antropologia, ns no nos submetemos a nenhum destes
saberes. No aconteceria o mesmo com as cincias sociais? Contra o que as ci-
ncias sociais precisam se construir como alteridade? Infelizmente, fugiria mui-
to aos propsitos deste texto desenvolver os caminhos que a pergunta prope.
No possvel, neste momento, fazer mais do que evocar a possibilidade de que,
talvez, haja aqui uma similitude mais profunda entre direito e cincias sociais.
Assim enquanto o direito no pode admitir a sociedade para se relacionar com
ela, as cincias sociais brasileiras talvez no possam igualmente reconhecer a im-
portncia dos valores que o direito aponta quando emite juzos aparentementesociolgicos. As cincias sociais talvez tambm precisem se construir enquanto
alteridade da sociedade que elas, ao mesmo tempo, pertencem, pretendem des-
velar e em relao qual se colocam criticamente.
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O livro formado por 5 captulos. O primeiro, Uma anlise etnogrfica
do processo de tomada de deciso na ADI de n 3.510 pelo Supremo ribunal
Federal de Larissa Melo, o resultado de um trabalho de campo de 1 ano juntoao Supremo ribunal Federal onde a autora trabalhou, primeiro, com estagiria
e, depois, como terceirizada. Ele aborda o funcionamento da instituio naquilo
que mais diretamente tem relao com a produo de decises e mostra o carter
coletivo desta produo. O trabalho termina com a votao da ADI que con-
testava a constitucionalidade o lei sobre o uso de clulas tronco para pesquisa.
O segundo captulo, Os Limites do Dilogo. Direito, Poltica e Linguagem no
Mandado de Segurana 25.647/SF de Bruno Furtado Vieira, examina o julga-mento de Jos Dirceu que, poca, causou grande confuso nos meios polticos.
O mandado de segurana foi impetrado pelos advogados de Dirceu contra a
ordem pela qual foram ouvidas as testemunhas na Comisso de tica e Decoro
Parlamentar. De todos os trabalhos, este o que faz menos uso de dados de cam-
po. No entanto, ele o resultado de uma sensibilidade propriamente etnogrfica.
E, justamente por isso, nele est mais visvel a ambiguidade entre pesquisador /
operador do direito que acompanha a todos os outros. O terceiro, O cotidianode uma grande tese. Os bastidores da advocacia e suas estratgias de Nathalia
Gomes Pedrosa, o resultado da experincia da autora com estagiria de um
escritrio de advocacia especializado nos tribunais superiores. O quarto, Uma
Etnografia do Algodo. O caso da OMC de Paula Azevedo, tambm resulta da
experincia da autora em um escritrio em Genebra. Ele relata o caso no qual
o Brasil ganhou o processo contra os subsdios dados pelo governo dos Estados
Unidos aos plantadores de algodo daquele pas. Por fim, o ltimo captulo, Se
o meu fato falasse. Um olhar etnogrfico sobre a construo dos fatos na au-
dincia trabalhista de Wellington Holanda Morais Jnior, examina como que
os fatos de um processo so construdos por uma srie de circunstncias e
micro-negociaes que tm um carter fortemente marcado pelo inesperado,
pelas estratgias dos advogados e pelos interesses institucionais do juiz. Embora
muito diferentes em seus objetos, coletivamente os trabalhos trazem a mesma
preocupao em examinar o direito como um conjunto de prticas quotidianas
e, por isso mesmo, fragmentadas, eventuais e, por vezes, contraditrias com as
pretenses de consistncia e coerncia que o senso comum jurdico usa para
descrever o direito.
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