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EXERCÍCIO 2 Aristóteles e os ladrões de bicicleta (A questão do verossímil)

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EXERCÍCIO2Aristóteleseosladrõesdebicicleta

(Aquestãodoverossímil)

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I-Introdução

Todas as atividades humanas têm, segundo Aristóteles, uma natureza eestãosubmetidasadeterminadostiposderealizaçãoouconsumação,tantoa lógicaeaciênciacomoaretóricaeapoéticae,nestaúltima,osgênerosda tragédia e da comédia. A lógica é guiada pelas regras do silogismodedutivo que permitem obterformalmente uma conclusão a partir dosdados proporcionados pelas premissas, sem levar em consideração oconteúdo.Aretórica,porsuavez,segueasregrasdoentimema,ouseja,deraciocínios com premissas não explicitadas, e não é inteiramente formal,apesarde ser aplicada a todo tipode assunto, comoa lógica.O raciocínioprático–porexemplo,ético–respondeaoutrasregrasdiferentesdasdoraciocíniodedutivo,porqueamatériadequetrataédenaturezadiferentee os ins almejados em cada caso são distintos. Em um caso, procura-sedemonstrar;emoutro,convenceroupersuadir.Nocasodapoética,nãose tratadeconhecernemdeentender,masde

produziralgo,umaobra.Estaproduçãoé,segundoAristóteles,“mimética”,no sentido de uma cópia da realidade. Mas esta “mímese” deve serentendida adequadamente já que Aristóteles distingue o poeta dohistoriador, dizendo, precisamente, que, enquanto este descrevesimplesmente os fatos efetivamente ocorridos, o poeta os descreve comopoderiam ocorrer, o que proporciona à mímese a mediação do possível,impedindo que a poesia seja vista como um mero registro histórico defatos.Aristóteles impõeàpoesiaumaexigênciadeverossimilhançadentrodestamediação; não a verossimilhança do factual, mas a verossimilhançado possível. Desta forma, a obra poética pode admitir inverossimilhançasfactuais e respeitar, não obstante, a verossimilhança do possível. Nestesentido, a poesia tem uma relação com o universal através do possível,enquantoahistóriaéirremediavelmenteparticular.Estaconcepçãodapoéticaconstitui indiretamenteumacríticaà iloso ia

dePlatãoeespecialmenteasua teoriadas IdeiasPuras.PoisPlatãohaviaexpulsado os poetas daRepública alegandoque eles só representavamosensível,apresentandocópiasdeumarealidadeontologicamenteinferioredescuidando, portanto, do essencial, que eramas Ideias. A célebre críticadeAristótelesaPlatão(noLivro IdaMetafísica)sugerequeas Ideiasnãoestão tão distantes das práticas humanas – tanto lógicas como poéticas –quandoestassãorealizadasseguindosuasregrasespecí icaseassinala,aomesmotempo,ainutilidadedepostularaexistênciadeIdeias:“PoisoqueéquesepõeematividadedirigindooolharparaasIdeias?Épossívelque

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uma coisa seja ou venha a ser semelhante a algo sem que seja formadacomo cópia, demodo que, quer exista ou não Sócrates, seria possível sersemelhanteaSócrates, inclusiveseexistisseumSócrateseterno.Ademais,haverá muitos paradigmas, portanto Ideias, de uma mesma coisa; porexemplo, com relação ao homem, Animal e Bípede; e, além disso,certamente, a Ideia de homem” (Aristóteles,Metafísica, Livro I, 991a). Acrítica tem duas direções, por im coincidentes: na atividade lógica ecognitiva, não são necessárias Ideias eternas e únicas para conhecer ascoisas,jáquepodemos,porexemplo,identi icarduascoisasoudiferenciá-las de uma forma universal sem precisar de ummodelo eterno (de umaIdentidade em si e deumaDiferença em si). Por outro lado, na atividadepoética, tampouco são necessárias Ideias eternas (nem, por conseguinte,poderíamoscondenarospoetaspornãoas representar), jáquepodemosapresentaraçõescomovedorasdeumaformauniversal,namedidaemquea obra poética se mantém no nível do possível e não dos meros fatossensíveis. Em nenhum dos dois casos a busca pela universalidade – queinteressa tanto à ciência como à poética – supõe a existência de IdeiasPurasnosentidoplatônico.

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II

Ladrõesdebicicleta(Itália,1949),deVittorioDeSica.Épossívelretratararealidade“comoelaé”?

Este ilmedeVittorioDeSicaéumaespéciede iloso iavisualarespeitodanoçãode“realidade”edarelaçãodaartecomela.Podeaartereproduzirarealidadedomundotalcomoelaé?Ladrõesdebicicleta tentaser,segundoospressupostosdoneorrealismo

italiano das décadas de 1940 e 1950, uma aproximação imediata darealidade, sem os arti ícios habituais da iloso ia, da literatura ou doprópriocinema.Tentaremosver,nesteExercício,atéquepontoapretensaaproximaçãoneorrealistadarealidadeesuaexigênciadeverossimilhançasãodecunhoaristotélico.Comoveremos, contraas intençõesexplícitasde seu realizador,o ilme

Ladrõesdebicicleta podeserinterpretadocomoumconjuntodeconceitos-imagemqueproblematizamapróprianoçãode“realidade”,que tentasercaptada “de forma imediata” e idelíssima. Os conceitos-imagem desteilme, pretensamente “realista”, acabam problematizando fortemente ahipótese“realista”queéopontodepartida.O ideário “neorrealista” é formulado em conceitos-ideia, na forma

escrita, em vários manifestos e declarações públicas da época. Mas namedida emqueestes conceitos-ideia se transformamdepois em imagens,os conceitos gerados na linguagem no cinema (os conceitos-imagem)começam a problematizar esse ideário que pretendia ser aplicado aosilmes de maneira externa e impositiva. Lemos, por exemplo: “Porneorrealismoitalianoseentendeummovimentoque lorescenaItáliaporvolta da época da Segunda Guerra Mundial e que, baseando-se narealidadeevendo-acomsimplicidade,críticaecoletivamente, interpretaavida como é e os homens como são” (Verdone, citado em Maria-rosariaFabris,O neorrealismo cinematográ ico italiano , Fapusp. Edusp, 1996, p.117, grifo meu). Essa é a caracterização de Verdone, reproduzida porFabris,nolivrocitado.Omovimentoneorrealistasecaracterizaria,segundoele, pelos seguintes elementos: “1. o elemento histórico e temporal, dadoqueoneorrealismonasceuesedesenvolveunaItáliaporvoltadaSegundaGuerra Mundial; 2. o elemento real e documental, pois os ilmesneorrealistas se basearam na realidade, sem ser documentários (...); 3. oelementotécnico,ouseja,asimplicidadequecaracterizousuasproduções(...);4.oelementocoletivo,vistoqueoneorrealismonãoseinteressoupela

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história individual, mas pela história coletiva: os guerrilheiros, os ex-combatentes,agentehumildequeaspiravaa‘viverempaz’;5.oelementocrítico (...)” (Idem, 117/18). Guy Hennebelle, em sua caracterização doneorrealismo italiano, apontaparaousoda câmeraque “não sugere,nãodisseca, somente registra ”, a recusa à utilização de efeitos visuais, aimagemcinzadotipodocumentário,a ilmagememcenáriosreais,ousodeatoresnãopro issionais, a simplicidadedosdiálogos,ousodosdialetos, afilmagemdecenassemsomeosorçamentosbaixos.Como vemos, todas estas formulações são totalmente empíricas, em

nenhummomentoseprocuraumacaracterizaçãoconceitualdomovimentoe uma melhor de inição da di ícil noção de “realidade” que os ideólogosneorrealistas utilizam como se fosse completamente clara para qualquerpessoa.(Teriasidobomse,comoquaseocorreu,omovimentotivessesidochamadode “neopopulismo” oude outro nomequenão izesse nenhumaalusãoaodifícilconceitode“realidade”.)Nautilizaçãodeatoresnãoprofissionais,típicadoneorrealismo,também

se deixa ver esta atitude de “imediatismo” presumivelmente mimético:“Rossellini também muitas vezes preferiu trabalhar com atores nãopro issionais porque, na opinião dele, não tinham ideias preconcebidas e,umavezdesinibidosdomeioqueosparalisavadiantedacâmeraelevadosa representar, conseguiamserelesmesmos” (Idem, 82, grifomeu). Pareceque o ator não pro issional conseguiria uma espécie de “imediatidadeconsigomesmo”, “espontaneidade completa”, vedada ao ator pro issional,carregadodetecnicismosearti íciosdeformadoresda“realidadecomoelaé”.O ilósofo deverá estremecer diante destas formulações apressadas e

sumárias, nas quais aparecem termos supercomplicados sendo usadoscomo se fossem simples e óbvios. Algo que a iloso ia nunca soube comcertezaéentenderoquesigni ica“avidacomoelaé”e“oshomenscomorealmente são”. Como são os homens? E comoé a vida? E o que signi ica“ser si mesmo”? Estas são questões muito complicadas! As a irmaçõestaxativas transmitidas pelos teóricos neorrealistas parecem, no nível dosconceitos-ideia, extremamentevagase insu icientes,pelomenosà luzdosconceitos-ideiados ilósofospro issionais.Seráqueacoisaseesclarecenoâmbito dos conceitos-imagem do cinema, ou seja,quando vemos ilmesneorrealistas? Será que só vendo-os podemos entender os manifestosteóricos?De qualquer forma, e para arriscar uma hipótese que facilite nosso

trabalho, entendo que a noção de “realidade” presente nos ilmes

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neorrealistas parece ser formulável, de forma conceitual e aproximada,como:conjuntodefatoscotidianosecoletivos,deconteúdosocial,quepodemser vistos e vividos empiricamentepor qualquer pessoa . Não se aceita, pois,nestanoção,nenhumtipode“realidade”ocultaoutranscendenteaosfatosque são mostrados de maneira imediata ou de realidade individual,excepcionaloufantástica.Mais grave ainda parece o fato de que muitos desses teóricos do

neorrealismo, e inclusive um ilósofo (um dos primeiros a se interessarpelofenômenodocinema),pensaramquealinguagemdocinemafavoreciaespecialmenteesta“captaçãoimediatadarealidadecomoelaé”.Em1949,Cesare Zavattini declarou, em um Congresso Internacional, em Perugia,que “o cinema fracassou completamente em sua missão ao escolher ocaminhodeMélièsenãoodeLumière”,aoqueo ilósofo italianoGalvanoDellaVolperespondeudaseguinteforma:“OconvitequenosfazZavattiniparaterpresenteoexemplodeLumière(exemplodo‘carátercientífico’oude ‘objetividade documental’ do ilme) em lugar daquele sustentado porMéliès (ou exemplo do ‘caráter fabuloso’ da representaçãocinematográ ica)me parece sugestivo se acolhido com a devida cautela.”Emseguida,referindo-seà“técnicaartísticapeculiardocinema”,disse:“atécnicarealista,nosentidodoregistro imediatodoreal,própriodacâmera ,é um instrumento de captação analítica das coisas, um instrumento cujaforça de análise é constituída exatamente por suas formas precisas einsuperáveis de ilmagem espaçotemporal, e por isso mesmo objetiva, domundoreal(...)nemmetafórico,nemmeta ísico”,aludindomaisà frenteà“impossibilidade constitutiva de traduzir em valores cinematográ icosespecí icostudooqueforconcepçãofantástico-literária,ouseja,concepçãoverbal-conceitual,abstrata,idealelivre,sobreo(...)mundoreal(...)” (Idem,27/28,grifomeu).Ocinemaévisto,assim,comoopróprioinstrumentodorealismo, por sua presumível capacidade de “captar o mundo de formaimediata”, ao contrário da captação literária, constituindo-se em “umregistro puro” do que ocorre no mundo. O mito da imediaticidade, jádiscutidonoséculoXIXporHegelnoplanodaescrita,antesdonascimentodo cinema, parece renascer das cinzas através da questão da linguagemdasimagens.A história do neorrealismo poderia ser vista como a história de um

fracasso, altamente reveladora das verdadeiras potencialidadesexpressivasdocinema,quevãoalémdoqueosrealizadoresneorrealistaspretenderamfazercomelas.Nestaperspectiva,ofracassodoneorrealismonão se explicaria somente por motivos sociológicos ou políticos (por

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exemplo, pela frustração dos projetos políticos italianos do pós-guerra,umavezdiluídaa fortemotivaçãodeuminimigocomum,o fascismo),mastambém por motivos inerentes à linguagem do cinema, pelo fato de oneorrealismoterseapoiadoemumafalsavisãodessalinguagemcomouminstrumento visceralmente “realista”. (A este respeito, não deixa de serreveladorquetrêsdiretoresinicialmenteligadosaoneorrealismo–Fellini,Visconti e Antonioni – tenham se transformado, com o passar do tempo,nos antípodas do neorrealismo, retirando do cinema, respectivamente,tudooquesualinguagempodiaofereceremtermosdecaptaçãofantásticada realidade, de ambiguidade da imagem [contra sua presumível“imediaticidade” reveladora]oudeumrealismosuntuosoe trans iguradopelamemória,aantecipaçãoeadecadência.Antonioni,particularmente,sereferiuasuaobraposteriorcomoum“neorrealismosembicicleta”.)Os neorrealistas italianos tinham demasiadas ideias e motivações

políticas externas ao cinema e pensaramque este seria ummeiomaisoumenos inerte e dócil para veicular suas ideologias críticas, libertárias epopulistas. Mas os realizadores neorrealistas acabaram criando imagens,em movimento e em sequência, imagens essas que pediam umaorganização e que sugeriam mais possibilidades expressivas do que asprevistasporquemas faz.Os ilmesneorrealistas jáeram,apesardesuavocação para “registro imediato” da realidade, sucessões de conceitos-imagem,comtodososseuselementosintrínsecoscomooperspectivismo,ainde inição, a abertura, a hiperaproximação, a icção, a superação dodualismosujeito/objeto,aalternânciadepessoas,atemporalização,ocorte,aredistribuição de espaços e tempos etc . (A tese de Antonioni emBlow Up,especi icamente,eradequeacâmeravêalémecaptamaiscoisasdoqueofotógrafo que a opera. Pode-se verBlow Up como um manifesto“pararrealista”queexplicitaclaramenteo“neorrealismosembicicleta”deAntonioni.)No caso deste ilme em particular, um jovem operário desempregado,

Ricci (Lamberto Maggiorani), consegue um trabalho de colocador decartazes, mas o requisito para que possa trabalhar é que tenha umabicicleta.O jovemesuamulherconseguemretomarabicicletaqueestavaempenhada, mas para isso devem fazer grandes sacri ícios (devemempenharoslençóisdacama).Noprimeirodiadetrabalho,enquantoestácolocandoumcartaz,umjovemladrãoroubaabicicletadeRicciefogecomela para os subúrbios da cidade. Em companhia de seu pequeno ilhoBruno(EnzoStaiola),Ricciiniciaumadescidaliteralaosinfernosembuscadabicicletaperdida,passandoprimeiroporumazonadecomércioativode

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compra e venda de bicicletas de origem duvidosa, não muito bemiscalizada, e acabandoemumbairro–odo ladrão–ondeosmoradoresmostramumaforteuniãocontraestranhos.RiccieBrunopassamportodotipo de angústias, dissabores, falta de solidariedade e humilhações:primeiro, alguns colegas de trabalho os ajudam a procurar a bicicletaperdida, mas em seguida desistem e abandonam o amigo desesperado,voltandoaseusprópriostrabalhosepreocupações(ocaminhoneiroqueosleva até o lugar da busca se queixa constantemente da chuva e diz queteria sido melhor não sair de casa, fazendo com que Ricci e Bruno sesintam um fardo). A polícia presta uma ajuda puramente burocrática,registrandoaqueixa,ajudandopro issionalmentequandoéchamada,massemmostrardisposiçãoouinteressepeloassunto.Aspessoasdosubúrbiomostram aberta agressividade diante do invasor de seu feudo einalmente, para piorar ainda mais as coisas, Ricci é publicamentehumilhadocomumaameaçadeprisão, jáque,mergulhadonodesespero,tentaroubar,elemesmo,umabicicleta,parapodercontinuartrabalhando.Por imnadaseconsegue,abicicletanãoéencontradaeosprotagonistassãoabandonadospelacâmeraenquantoafundamemummundocinzento,frioesemsolidariedade.A pretensão de “registro imediato do real” por parte de De Sica é

evidente. Ele não tenta, por exemplo, melhorar as pessoas, mostrando(comoFrankCapra,oescandalosootimistadocinema)umasolidariedadesobre-humana.Aocontrário,mostraaspessoasocupadasconsigomesmas,vivendoumasituaçãoglobaldealienação,desempregoedesesperançaquenão permite o luxo da ajuda mútua. A polícia não é apresentada comoparticularmente cruel, mas sim como atirada numa situação cujadi iculdade parece insuperável: uma bicicleta roubada em uma cidadeimensa e quase impossível de encontrar, e não parece muito racionalmobilizarumaenormeforçapolicialparaencontrarumabicicleta,pormaisimportantequeestasejaparaavidadeRicci.Novamente, De Sica mostra uma estrutura social que não permite

dualismos fáceis, na qual não é possível apontar culpados e inocentes,vilões e perseguidos. A mesma força avassaladora domina Ricci, seusamigos, a polícia e outros subprodutos sociais, comoa videnteque ganhaseudinheiroà custadodesesperodaspessoas,quepagampor consultasvaziaseinúteis.(AquedáaRicciéexemplarmenteobscura:“Ouencontraabicicletaemseguidaounãoaencontraránuncamais.”)Ainjustiçaexiste:um homem honesto é levado aos extremos de indignidade e inalmentetransformadoemumdelinquente.Fazissoporseu ilho,masédiantedele

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que se consuma sua indignidade, quando alguém comenta: “Veja oexemploquedáao ilho.”Estainjustiça,entretanto,nãotemdonovisíveleconcreto. Não são seus amigos, nem o ladrão de bicicletas, nem asautoridades, nem a vidente, nem, certamente, Ricci ou Bruno, nemninguém.IstopodeserapontadoporDeSicacomoargumentoemfavordo“realismo”deseufilme:ofatodenãocontervalorações.Semdúvidao ilmedeDeSicapodeservistocomoumgrandeconceito-

imagemdanoçãode “imitaçãodo real”, ou seja, um ilmeque tentadizeralgo, em sua própria estrutura, semdistanciamento ideológico, a respeitodestaquestão.Istoo ilmeconsegueindomuitoalémdotemaespecí icodesua trama,ouseja,o roubodabicicletadooperárioRicci. O ilmepode serlido sintaticamente, antes de sociopoliticamente . É preciso vê-lo como umfilmequepretenderefletir“arealidadecomoé”epercebercomoopróprioilmepodemostrara frustraçãode tal tentativa.Mas,poroutro lado,seráque a possível problematizaçãodas ideias neorrealistas, que a linguagemdocinemaécapazdeintroduzir,afetariatambémapoéticadeAristóteles?Seriaaristotélicooideárioneorrealista?Quatro ideias aristotélicas fundamentais sobre poética parecem ser as

seguintes:(a)Apoesia imitaa realidadeecom issoproduzuma formadeprazer,

mesmo quando o que imita é, na realidade, desagradável. Imitar geraprazer. As obras poéticas devem tentar ser verossímeis sem introduzirelementosad hoc. Mas esta verossimilhança deve ser entendida comoverossimilhança do possível, não do factual. Portanto, ligada ao universal,nãoaoparticular.(b)Háumaclaradistinçãoentre tragédia e comédia,dopontodevista

damímese.Atragédiaimitaaçõesdehomensnobresesuperioresou,pelomenos,atosdehomensconcebidoscomomelhoresdoquesão,enquantoacomédia imita atosdehomenspequenos, insigni icantes e ridículos oudehomensconcebidoscomopioresdoquesão.(c) No caso da tragédia, trata-se de uma imitação enaltecedora e

puri icadoradaspaixões, a “catarse”, conseguidapormeiodo terroredapiedade.(d)Asobraspoéticas,emparticularatragédia,devemterumaestrutura

Princípio/Meio/Fim, isto é, responder a certas “unidades”. (Ver TextosAristotélicosaofinaldesteExercício.)Ladrõesdebicicleta egrandepartedos ilmesneorrealistasquestionam

frontalmente o item (b) de Aristóteles. Com efeito, um dos propósitosexplícitos do neorrealismo italiano consiste precisamente em enfocar a

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tragédiacotidiana,ouseja,atragédiadoshomenspequenoseinsigni icantes .Parece queAristóteles não conseguia ver nenhuma tragédia no cotidiano(semdúvida, o dia a dia grego eraprofundamentediferentedo cotidianoitaliano do pós-guerra), que via a tragédia ligada ao elevadíssimo, e nohomem comum e simples via somente o ridículo e insigni icante. Comopoderia o escravo transmitir algo de trágico para o cidadão grego? Cadailme neorrealista, por sua vez, é um experimento de ligação da tragédiacom o cotidiano, mostrando que o trágico não está exclusivamenteconcentrado no sublime, no nobre e no elevado. A noção neorrealista detragédia cotidianadesestabilizaumdos critérios aristotélicosdedistinçãoentretragédiaecomédia.É importante observar, entretanto, que esta problematização é

apresentada em conceitos-imagem: o ilmemostra, emuma vida possível,que os conceitos de Tragédia e de Cotidiano não são incompatíveis emostra essa compatibilidade de maneira encenada, por meio de umaexperiência de forte dramaticidade que leva o espectador a sentir apossibilidade e a realidade dessa ligação entre o trágico e o cotidiano.Nestesentido,o ilmepropõeumarevisãodaideiaaristotélicaesetratadeuma tese conceitual (ou seja, universal), no sentido de a irmarimageticamente que “em geral, é falaz a ligação pseudonecessária entretrágico e caráter elevado ou nobre”. Isto não é meramente dito, masapresentado em imagens com um certo impacto, característica que fazparte da natureza da asserção cinematográ ica. O cinema neorrealista,nesteponto,éantiaristotélico.Epoderíamosdizer,emgeral,queocinemadesconstróicadavezmaisexpressivamenteestadistinçãotradicional.Poroutro lado, a poética aristotélica e oneorrealismo italianoparecem

se encontrar semmaiores con litos na questão (d), isto é, a exigência delinearidade e unidade da obra poética deve ter Princípio/Meio/Fim,sobretudodevidoaofatodeoneorrealismoserecusarsistematicamenteautilizarefeitosouarti ícios(porexemplo, inversões temporais,misturaderealidade e icção etc.) que possam distrair o espectador, afastando-o doconteúdo crítico do que é apresentado. É interessante observar, contudo,que enquanto a intenção de Aristóteles ao formular esta estrutura erasobretudoestética,umaexigênciadeconstrução,nocasodoneorrealismotrata-se de uma exigênciacrítica. Esta noção moderna de “crítica” dasestruturas sociais e políticas é absolutamente estranha a Aristóteles e aomundo grego em geral, de forma que a coincidência no item (d) pareceacentuadamenteexterior.De qualquer forma, neste ponto o conceito-imagem cinematográ ico

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parece problematizar tanto a poética aristotélica quanto o ideárioneorrealista. Na verdade, a linearidade é impossível no cinema.Não épossível realizar um ilme linear, a não ser em um sentido extremamentesuperficial. Portanto, o próprio conceito de “inversão de tempos”, comoaparece em Resnais e Tarantino, por exemplo, parece mal formuladodesde o começo. “Inversão” supõe um ponto de referência absoluto,precisamente uma “realidade” externa que proporcionaria coordenadasimóveis,ignorandoaenormecapacidadedocinemadecriarseusprópriospontos de referência. Entre Ladrões de bicicleta eAno passado emMarienbad ouPulpFiction,nãohádiferençaconsistenteparadizerqueosdois últimos “invertem”o temponormal expostonoprimeiro e nas obrasdo neorrealismo em geral. Na verdade, estas obras criam diferentestemporalidades, maneiras distintas de apresentar seus quadros esequências,enenhumadelasproporcionaumareferênciaestávelparaasoutras.As imagens (mesmo dentro da mais “realista” das obras) aludemsempre a algo que não está nelas , que não consegue ser captado pornenhuma linearidade exaustiva e que não poderia caber nas duas horasdeduraçãodeum ilme.Aimagemcinematográ icaexpulsaseusprópriosobjetosparaforadesimesma,deformainevitável.Oquenãosemostraétãosigni icativoeindispensávelquantooqueconseguesemostrar.Omaisrealistadosfilmesfundeseusextremosnoquesópodeserconjeturado.Porexemplo,quandoo ilmecomeça, abicicletaestáempenhadae seu

resgate é dramaticamente importante para o que De Sica se propõe amostrar. O ilme se vê obrigado a aludir a algo anterior, que não foimostrado, a algo ocorrido no passado e que é inserido no presente. Damesma forma, no momento do resgate da bicicleta, Ricci e sua mulherparecemsolidárioseunidos.Masquando lheroubamabicicletaRiccinãovolta para casa, e depois, ao se encontrar com a mulher, comenta entredentes: “Não voltei para evitar um sermão”, frase que alude a algo queocorreuemtempospassados,outrasvezes,equeopersonageminserenasituaçãoatual.ArelaçãodeRiccicomopequenoBrunocontinuamentelevao espectador para o passado, pressupõe algo que foi de umamaneira eque o contratempo da bicicleta está alterando. A relação de Ricci comBruno deve ser reconstruída pelo espectador a partir das pistas de quedispõe;estarelaçãoéinteligívelapartirsimplesmentedoquesemostra.OqueocorreéqueDeSicanãoreatualizaestasquestões,nãoasfilma,limita-se a aludir a elas a partir do presente, mas em todo caso seu ilme, equalquer ilme, nunca cabe no temponemno espaço normais da obra. Aimagem possui uma impossibilidade intrínseca de permanecer

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tranquilamenteemsimesma.No que se refere ao item (c), tanto Aristóteles quanto os neorrealistas

aludemaumatentativadeprovocarumaespéciedeimpactoemocionalnoespectador, no primeiro caso com propósitos “puri icadores” ousublimadores;nosegundo,compropósitos“críticos”(mesmoquando,comose sabe, não existe nenhum lugar em que Aristóteles expliquedetalhadamente a noção de “catarse”, de puri icação ou purgação daspaixões). No caso de Aristóteles, o teatro era o únicomeio dramático dequesedispunhanaépocaeneleo impactoemocionalera,pelomenos emprincípio, mais baixo, comparado com o poderoso “efeito de realidade”conseguido hoje em dia pelo cinema (mesmo levando em consideração ocomponenteimagináriodoimpactoemocional,relativamenteindependentede condições externas). O cinema potencializou o nível de imposição darealidadedeformaesmagadora,colocandoemperigooprocessocatárticodeumaformaquetalvezosóbrioeelevadoteatrogregonãoconseguia.Acapacidadedocinemadefazerviveroqueéexibidonatelaconseguehoje,maisdoquenaépocadoneorrealismo,superarasbarreirasdosuportável,os limitesdo catartizável. Istopoderia ser interpretado comoum sinal deque o neorrealismo, não aristotelicamente, conseguiu captar a realidadecomoelaéaotorná-la insuportávelenãocatártica.(PensemnascenasdeinterrogatórioetorturaemRoma,cidadeaberta,deRossellini,queescapammaisevidentementeaospropósitoscatárticosdapoéticaaristotélicadoqueLadrõesdebicicleta .)Ador e o sofrimento intoleráveis parecemmelhoresíndicesdecaptação“darealidade”doquea“purificação”aristotélica.De certa forma, o sucesso da teoria aristotélica seria o fracasso da

intenção crítica neorrealista na medida em que pareceria haver umaespécie de tensão entre a exigência de realidade do neorrealismo e aexigênciadecatarsedapoéticaaristotélica. Isto introduziriaprecisamenteuma problematização da noção de “real”, na medida em que é possívelmostrar que aquela coisa terrível e impactante não nos afeta – nem nos“purifica”–porque,apesardeseu“realismo”,nãocoincidecomo“real”.Se, ao contrário, o cinema neorrealista aceita incluir um elemento

catárticonos efeitospor eleprocurados, terá aceitadoumdistanciamentocom relação àquela realidade que, segundo seus próprios manifestos,pretendia “registrarde formadireta”.Mas talvezumregistro imediatodoreal, por meio dos poderosos recursos do cinema, produza um efeitodemolidor que impeça qualquer tentativa de catarse puri icadora. Se,apesardoforteimpactodascenasdeLadrõesdebicicleta ,nossentimosnoinalpuri icadoseenaltecidos,Aristóteles terámostradoaosneorrealistas

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que um “registro puro do real” não foi consumado, que mesmo a mais“realista” das obras vive de uma mediação enaltecedora, daquela“verossimilhançapossível”quedistingueapoesiadahistória.Aquipodemos iniciaruma segunda linhade re lexão aristotélica ligada

com o último item que falta discutir, o (a), talvez o ponto fundamental.Todos os recursos antesmencionados pelos teóricos neorrealistas são defato utilizados por Vittorio De Sica para conseguir a tão ansiada“aproximação da realidade”: utilização de atores não pro issionais(Maggiorani era, na verdade, um operário italiano; seu papel seriadesempenhado originalmente por Cary Grant, Henry Fonda ou MarcelloMastroianni, todos atores pro issionais), tomadas completamentedocumentais sem nenhum tipo de efeito visual, linearidade nodesenvolvimentoda ação etc.Mas a linguagem cinematográ ica é feita decorteseseleçõesestratégicas,deapresentaçõeselaboradasdaquiloquesemostra. Todo o ilme poderia ter sido feito de outra forma; o diretorescolheuospontosdevista,osdiálogos,aordememquesãoapresentadososacontecimentose,comisso,determinouaemocionalidadeparticulardofilme.Amontagemdeumfilmetornairrealizável,perse,qualquertentativade linearidade, inclusive quando o resultado inal é linear, porque essalinearidade terá sido construída de uma certamaneira. Amontagem é ainstância sintética do ilme, sua temporalidade, seu caráter expansivo ehistórico. Mesmo um ilme neorrealista é submetido a um arti ícioinstaurador que determina o modo particular de apresentação dasimagenseamaneiraparticulardeseu impactosobrenós.Todaaemoçãodo ilme, apesar de seu imenso grau de convencimento, jamais é“imediata”. O espectador neorrealista simplesmente tenta se deixarenganardeumadeterminadaforma.DeSica e osneorrealistas estavamcertamente interessados emcausar

impacto, em comover, para criticar. Mas quem disse que fariam issomelhor tentando se aproximar ao máximo da realidade, através de umamontagem sóbria e sequencial? Seria possível, por exemplo, fazer umaalteraçãoarti icial de sequência (e, com isto, “distanciar-seda realidade”)para conseguir um efeito dramático que aumentasse o efeito crítico doilme (por exemplo, que o ilme começassemostrandoRicci preso emaistardecheiodeesperanças,semsaberoqueoespectadorjásabe,queserápreso e que suas esperanças se frustrarão). Em geral, o truque de fazercomqueoespectadortenhamaisinformaçãodoqueopersonagem(típicode Hitchcock, por exemplo) também distancia da realidade (leva a umponto de vista onisciente, antinatural), mas pode aumentar a

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dramaticidadedo ilme,oimpactoemocionale,portanto,opodercríticodoilme,queéoqueinteressavaaosneorrealistas.SeRiccitivesseuma ilha,emvezdeum ilho,o ilmeseriadiferente.Seprimeironãofosseajudadoeem seguida fosse, o ilme seria outro. Se a cena da briga na ruatranscorresseemespaçoabertoenãonomeiodevielasestreitas,oefeitoseria outro. Ao contrário do que diziaDella Volpe, a câmera não registraobjetivamente, criaumaperspectivacomosimplesestarali, elanãopodeapontar para o real sem alterar, subverter, mudar, indicar. Isto pareceóbvio e banal – tanto quanto recordar o ilósofo de que, quando ilosofa,está sempre utilizando uma linguagem –, mas apontar isso pode serprofundo quando a “realidade” é concebida acriticamente em termos deumimediatismootimista.(Fazeralguémnotarquetemóculossobreonarizpodeparecerbanal,masnãooéseodonopretendequeomundoquevêsejatotalmenteindependentedoaumentodeseusóculos.)Alinguagemdocinemaéonisciente,oniabrangente,multiperspectivista.

Inevitavelmente,De Sica sabemais do queRicci eBruno, e sabemais doque o ladrão de bicicletas. O diretor, mesmo quando não o quer nem opretende,éDeuseoéenquantopegaumacâmera,independentementedeseu próprio ideal estético ou de sua postura política. Isto émais forte doqueasintençõesrealistas.Assim,otítulodo ilmejádizaoespectadorquevaiassistiraoroubodeumabicicleta.Nocomeçodofilme,Ricciacompanhasuamulher à casa da vidente, poucosminutos depois de ter resgatado abicicleta do penhor. Ricci ica esperando na porta da casa, que tem nafrenteuma longaescadaascendente.Comoamulherdemora,pedeaunsmeninosque cuidemdabicicleta enquanto sobeparabuscar amulher.OespectadornãosabeoquevaiaconteceretampoucoRicci.Riccisabeaindamenos do que o espectador, já que ele não sabe que uma bicicleta serároubada (Maggiorani sabe, mas não Ricci). O espectador, que sabe queumabicicletaserároubada,pensaqueestaéacenadoroubo.Mas,apesarde Ricci demorar bastante para descer e apesar de a bicicleta ter icadovisivelmentedesprotegidanarua,estáali,esperandoporseudonoenadaacontece. Este é um elemento dramático, altamente arti icial, que supõeuma visão onisciente do que vai acontecer e que permite a brincadeiraprovidencial de ameaçar e não fazer, de postergar omomento do roubo,centrodramáticodofilme.OdramanãoévistosomentedaperspectivadeRicci,mastambémdade

Brunoedadosoutrospersonagenssecundários:opróprioladrãotemsuaversão, e tambéma vidente e os amigos queno começo ajudamRicci emsua busca e depois o abandonam. Mas a câmera de De Sica acrescenta

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novasperspectivas à dospersonagens: sua visãodo subúrbionão é a deseushabitantes,suavisãodorouboéseletivaealtamenteparticular.A cenada tentativa fracassadade roubodeumabicicletaporpartede

Ricci,no inaldo ilme,éfortementedramática.Maséumasequênciabemdiferentedasanteriores.Pelotipodeterminadodetomada,peladisposiçãodos personagens, pela explosão de seu famoso tema musical etc., acabasendoumacenafortemente“fabricada”(emuitobemfabricada).Algomaispróximo do mero registro, sem coincidir certamente com ele, seria, porexemplo, o que veem nossos olhos quando caminhamos pela rua em umdiaqualquer, sempreverdemodoalgumoquevaiacontecer. SeDeSicapretendemostrarainjustiça,terádefabricá-la(porexemplo,oroubo inalédescobertoeRicci,humilhado,maspoderianão ter sidodescoberto, elepoderiaterroubadoabicicletaecontinuadoseutrabalhocomela).TalvezDe Sica tenha se proposto, isto sim, a fabricar a injustiça, mas imitandoaquelas que realmente são cometidas. Aquilo não é verdadeiro, maspoderiaser.Dequalquerforma,overossímiljánãotemamesmaliberdadequeoverdadeiro;overossímilsupõeumaconstruçãofortementearti icial,umaescolhadoque“pareceverdadeiro”,umamediaçãoparaqueoqueéexibido“separeçacomoqueaconteceoupoderiaacontecer”. Narealidade,o carátermediado e arti icial está na questão da possibilidade . Registra-senão algo que acontece, mas algo que poderia acontecer, e nestapossibilidade está a paradoxal “mediação do imediato” que o cinemaneorrealistaitalianoacabamostrandotãobem.Quando vemosLadrões de bicicleta , percebemos que a emoção que

sentimosnãoprovémdofatodequeo ilmeretrataarealidade“comoelaé”, mas do fato de que a mediação estética é e iciente, a dramatização ébenfeita, talvez porque uma pitada sutil de inverossimilhança estejareforçando o sentimento de realidade na recepção do ilme e em seuimpacto visual em nossos sentidos. A “realidade” no ilme tem de serinstaurada juntocomtodoo resto,nãoéumpontode referênciaexterna.Nadapodeserdito,nemtratado iloso icamente,dentrodo ilme,semqueantes as coisas e os fatos brutos se desrealizem, percam sua aparenteimpositividadeeadquiramaimpositividadedaimagem.AquiloquecomoveemLadrõesdebicicleta (eemtodo ilmeneorrealistaetalvezemqualquerilme em geral) é algo quepoderia ser e não nenhum “registro direto doreal”,umaestruturaaltamentemediadapelapossibilidade.Do ponto de vista aristotélico, poderíamos dizer que o neorrealismo

tinhapor objetivo fazer história, e não arte, na estritamedida emque sepropunha a registrar a realidade efetiva. Mas os neorrealistas estavam

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profundamente interessados na universalidade de sua tese. Auniversalidade, segundo Aristóteles, é da ordem do possível, eo possívelnunca pode ser diretamente registrado , este é oimpasse aristotélicofundamental do neorrealismo italiano. Neste sentido, a imagemcinematográ icaproblematizaria,emgeral,todatentativadeformularumaverossimilhança realista no registro dos fatos efetivos. Ela nãoproblematizaria a tese aristotélica de uma verossimilhança do possível e,portanto, universal. Ao contrário, o cinema se enquadra perfeitamentenesteaspectodapoéticaaristotélica.Certamente, o cinema “imita”no sentido aristotélico: apresenta, comoo

teatro, personagens vivendo ali, diante de nossos olhos. A imagemcinematográ ica repete, dramatiza, repõe, volta a apresentar, representa.Mas o faz no plano da possibilidade, da universalidade e do impactoemocionalesclarecedor. “Purgar”asemoçõesnãoé–nemno teatro,nemno cinema – um mero escapismo, ou um puro entretenimento, e essapurgação sequer precisa ser interpretada em termos educativos, moraisouterapêuticos.Ocinemapodeservistocomoumtipoparticulardesaberatravésdopadecimento.Aristótelesexplicaocuriosofatodequeoshomenssentem prazer em ver a imitação de coisas desagradáveis (comocadáveres), precisamente baseando-se no anseio natural pelo saber, queos homens, segundo Aristóteles, possuem. Aristóteles certamente teriagostado muito do cinema, tanto quanto se interessou pelo teatro de suaépoca. Ir ao cinema teria, além disso, uma grande vantagem para ele:jamaisseencontrariacomPlatãolá.

Quando surgiu o interesse em ilmar alguns textosde Sartre, este, quetinha uma forte simpatia pelo neorrealismo italiano, só concedeu osdireitos em duas ocasiões: numa delas, para ilmar alguns contos de seulivroOmuro(o ilmeteveomesmotítulo).Diretoreatoreseramamadoreseoprimeirotentouretratararealidade“comoelaé”.Emummomentodoilme, três prisioneiros esperam pelo amanhecer, quando serãoexecutados.Trata-se,assim,daúltimanoitedetrêscondenadosàmorte.Odiretor tenta captar todos os traços e matizes da “realidade” desteshomens,osruídosdanoiteetc.,massemnenhumadramatização,tentandofazer comquea “realidademesma” entrassenahistória.O resultadonãofoi bom, no sentido da comoção ou da sensibilização, típicas do conceito-imagem.Arealidade,graçasatanta“realidade”,nãofoicaptada.Jáo ilmedeJosephLosey,Kingandcountry,1964,quetambémmostra

osúltimosminutosdevidadeumsoldadoqueserámortoaoamanhecer,é

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degrandeimpactoemocionaleobrigaoespectadorapensarseriamente–atravésdeseusconceitos-imagem–emquestõescomoajustiça,acondiçãohumana, a lei civil emilitar e o patriotismo. Só que Losey utiliza todos osrecursos espetaculares disponíveis no cinema e dois grandes atorespro issionais, altamente arti iciais e e icazes, da escola inglesa (DirkBogardeeTomCourtenay).Paraquearealidadeentreemum ilme,devehaver,paradoxalmente,umaespéciede“des-realização”anteriordoqueémostrado e do que não é. O ilme deve adquirir um tom de imaginaçãoconceitualqueconsigaalcançararealidadesemprecisar“copiá-la”.A segunda experiência sartreana com o cinema não foi muito melhor.

Quando tentava fazer uma versão cinematográ ica de sua peça teatralOcondenadodeAltona, Sartre teveodireitode escolherodiretor. EscolheuVittorioDeSica.Pareceatéquedeclarouquenãopermitiriaquenenhumoutro diretor izesse o ilme. Possivelmente Sartre estava pensando emLadrõesdebicicleta .DeSicadirigiuo ilme,mascomumestilomuitopouconeorrealista e com atores hiperpro issionais e teatrais (sobretudoFrederichMarch eMaximilian Schell). O que impressiona no ilme não é,certamente,“realista”,eoqueérealistanãoimpressiona.É interessante recordar o que o próprio mestre Alfred Hitchcock

declarou a respeito de uma de suasmais inverossímeis obras-primas desuspense,Os 39 degraus, 1935: “O melhor do ilme é a rapidez dastransições.Tivemosdetrabalharmuitoparaconsegui-la,masvaleuapena.Tratava-se de utilizar uma ideia depois de outra, privilegiando a rapidezem detrimento da verossimilhança. Enquanto escrevia o roteiro de Os 39degraus, perdi o interesse pela plausibilidade da trama. Descobri quenenhuma icção pode ser analisada desta forma. Pedir a um escritor queleveemcontaaverossimilhançapareceriatãoabsurdoquantopediraumpintorquerepresenteascoisascomexatidão.Paraistoexisteafotogra ia.Ou,nocasodocinema,osdocumentários.”Maséinteressantelembrarque,dentrodopróprio ilme,encontramosumaproblematizaçãohumorísticadaverossimilhança. Quando o protagonista, RichardHannay (Robert Donat),pretende fugir de seu apartamento pela porta principal disfarçado deleiteiroparaimpedirqueosbandidosopeguem,tentaconvenceroleiteiroverdadeirousandoumahistória verdadeira, ou seja, através danarraçãoexata do que realmente está acontecendo com ele. Diz então que umamulher foi assassinada em seu apartamento e que essamulher era umaespiãperseguidaporbandidosinternacionaisequeporissoprecisafugir.Esta é, efetivamente, a pura verdade. Mas por issomesmo o leiteiro nãoacredita e resiste a ajudá-lo. Diante desta situação, Hannay muda de

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estratégia: diz, então, quementiu e que na realidade teve uma aventuraamorosa com uma mulher na noite anterior e que agora está tentandofugir domaridodela, que o está esperandodo ladode fora.O leiteiro dáuma gargalhada e exclama: “Cara, por que não disse antes? Agora estouentendendotudo!”eimediatamentetiraaroupadetrabalhoeaentregaaHannay.Oleiteiroéoespectadordo ilme,quenãoqueraverdade,masopossível, o verossímil, aquilo em que pode acreditar. Como Hannay,Hitchcock prefere dar ao espectador não a verdade, mas umaverossimilhançapossível.A verdade édemasiadamente inverossímil paraser apresentada num ilme. Queremos ser enganados,mas com algo quepareçaaverdade.E,muitasvezes,averdadenãocumpreesterequisito.

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III-QuemfoiAristóteles?

Filósofo grego, nascido emEstagira, perto daMacedônia, em 384 ou 383a.C. Seupai –médico – chamava-seNicômaco, e a eleAristóteles dedicouum de seus livros de Ética,Ética a Nicômaco. Estudou na Academia dePlatão,naqualingressouem366ou365a.C.eondepermaneceucercadevinte anos. (Como podemos ver, os estudos ilosó icos nessa época erammais demorados e cuidadosos do que nossas carreiras atuais, cada vezmaiscurtase“dinâmicas”.)OjovemAristótelesaparececomopersonagemdodiálogoplatônicochamadoParmênides.A princípio Aristóteles adotou a teoria platônica das Ideias,mas logo a

criticou duramente, mostrando suas insu iciências e limitações. Essascríticas estão contidas no livro conhecido comoMetafísica. Quando Platãomorreu e Espeusipo assumiu a direção da Academia, Aristóteles aabandonouparasempreepartiuparaaÁsiaMenor.Junto com Xenócrates e Teofrasto – que depois seria o sucessor de

Aristóteles –, permaneceu por longos períodos em Assos e Mitilene,ensinando iloso ia e estudando ciências naturais, que sempre lheinteressaramvivamente.Porvoltade343/342a.C.,FilipedaMacedôniaochamoupara serpreceptorde seu ilhode13anos,Alexandre,quemaistarde revolucionaria a história da Grécia. As ideias sociais e políticas deAristóteles eram um tanto conservadoras em alguns aspectos (porexemplo,acreditavaqueoshomenseramdiferentespornatureza,algunsdestinadosamandar,outrosaobedecer)enestesentidoavisãopolíticadeAlexandre foimais longedoquea teoriado ilósofopermitira ir.Em todocaso, Aristóteles permaneceu com ele até aproximadamente 336 a.C.,quandoAlexandresubiuaotrono.Em 335 a.C., Aristóteles abriu sua própria escola de iloso ia, chamada

Liceu,porqueselocalizavapróximaaotemplodeApoloLício.Nelaasaulaseram dadas caminhando, de onde vem o nome de “peripatéticos” –caminhantes – dado aos membros da escola. O Liceu competiu com aAcademia, à qual superou expressivamente em um certo período. Nessaépoca, Aristóteles amadureceu suas principais obras. Por ter sidomestrede Alexandre, Aristóteles foi perseguido – no inal de sua vida – porinimigos políticos antimacedônicos, motivo pelo qual teve que fugir paraCálcis, junto com sua mãe, deixando a Teofrasto o comando do Liceu.Morreupoucodepois,em322a.C.As obras de Aristóteles pertenciam a dois grandes grupos: as obras

exotéricas, compostas em forma de diálogos e destinadas ao grande

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público, e as esotéricas, que não se destinavam ao grande público, masapenas a seus discípulos, que pertenciam ao Liceu. As obras aristotélicasforamlegadasporTeofrastoeNeleu, ilhodeCorisco,amigodeAristóteles.Os descendentes de Neleu conservaram as obras até que Apelicon ascomprou.Mais tarde, Sila as levou para Roma. Finalmente, Andrônico deRodes,odécimosucessordeAristótelesnoLiceu (século Ia.C.),preparouuma edição das obras de Aristóteles. As obras foram transmitidasposteriormentepeloscomentaristasgregos,os ilósofosárabes,os ilósofosmedievais e os renascentistas, até chegar, depoisde tantas vicissitudes, anossasmãos. A todas essas pessoas, frequentemente anônimas, devemosestesinestimáveistesourosintelectuais.

Principais obras:Categorias,Sobre a interpretação ,Primeiros analíticos,Segundos analíticos, Tópicos, Refutações so ísticas, Física, De Anima,Metafísica,ÉticaaNicômaco,Política,Poética,Retórica.

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IV-Textosaristotélicos

Texto1–Apoesiacomoimitação.“Parecequeduas causas,ambasnaturais, geraramapoesia.O imitaré

congênito no homem (e isso o difere dos outros viventes, já que, entretodos, ele é o mais imitador, e é por imitação que aprende as primeirasnoções),eoshomenssecomprazemnoimitado.Um sinal disso é o que acontece na experiência: contemplamos com

prazer imagensexatasdasmesmascoisasqueolhamoscomrepugnância,porexemplo,animaisferozesecadáveres.Poressacausaaprenderapraznãoapenasao ilósofomastambémaos

outroshomens,emboraparticipemmenosdoaprendizado.Portalmotivo,efetivamente, deleitam-se perante as imagens: olhando-as, aprendem efalam sobre o que é cada uma delas, por exemplo ‘isso aqui é tal coisa’.Porque, se acontecer de alguém não ter visto o original, não sentiránenhum prazer com a imagem, como imitação, mas somente comoexecução,dacorouqualqueroutracausadamesmaespécie.”(Aristóteles,Poética,1448b)

Texto2–Tragédiaecomédia.“Apoesiasediferenciou,segundoasdiferentesíndolesparticularesdos

poetas. Os de ânimo mais alto imitam as ações nobres dos mais nobrespersonagens; os de inclinações mais baixas voltaram-se para açõesignóbeis, compondo esses últimos vitupérios, e os primeiros, hinos eencômios.”(Idem,1448b)“Como dissemos, a comédia é imitação de homens inferiores; contudo

não imita toda espécie de vício, mas só aquela parte que é ridícula. Oridículoésomentecertodefeito, torpezaanódinae inocente;oqueébemdemonstrado pelamáscara cômica, que, por ser feia e disforme, não temdor.”(Idem,1449a)“Atragédiaé(...)imitaçãodeumaaçãodecaráterelevado,completa,de

extensão determinada, em linguagem ornamentada, com várias espéciesde ornamento distribuídas em suas diferentes partes, não por narrativa,maspormeiodeatoreseque,suscitandoterrorepiedade,temporefeitoapurificaçãodessasemoções.”(Idem,1449b)

Texto3–Estruturadatragédia.“Ficou de inido que a tragédia é a imitação de uma ação completa,

constituindoum todo comuma certa grandeza, pois pode existir um todo

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que não tenha grandeza. ‘Todo’ é aquilo que apresenta princípio,meio eim. ‘Princípio’ é o que, em si mesmo, não contém nada que se siganecessariamentedeoutracoisaeque, aocontrário, estánecessariamenteunido com algo que vem depois de si. ‘Fim’, por outro lado, é o quenaturalmente se segue de outra coisa, necessariamente ou porque assimcostumaocorrereque,depoisdesi,nada tem. ‘Meio’éoquevemdepoisdealgumacoisaetemoutradepoisdesi.Éfundamental,dessemodo,queos mitos bem-compostos não comecem e terminem ao acaso, mas queestejamdeacordocomosprincípiosmencionados.”(Idem,1450b)

Texto4–Vínculodapoesiacomouniversal.“Deacordocomoque foiconsideradopreviamente,semanifestaqueo

o íciodopoetanãoénarraroqueaconteceu;é,naverdade,representaroquepoderiaacontecer,istoé,oqueépossívelconformeaverossimilhançae a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta porescreverem em verso ou prosa, mas, sim, porque um diz as coisas queacontecerameooutro,asquepoderiamacontecer.Porissoapoesiaémaisilosó icaesériaqueahistória,poisaquelaserefereaouniversaleestaaoparticular. ‘Referir-se ao universal’ signi ica atribuir a um indivíduo deuma natureza determinada pensamentos e ações que, por liame denecessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza. A poesia visa aouniversal entendido dessa maneira, apesar de dar nomes às suaspersonagens;particular,aocontrário,éoquefazAlcebíadesouoqueaeleaconteceu.”(Idem,1451b)

Texto5–Exigênciadeverossimilhança.“(...)mesmoqueapersonagemrepresentadanãosejacoerenteemsuas

ações, é necessário, contudo, que ela seja coerentemente incoerente. Umexemplo demaldade desnecessária de caráter éMenelau, emOrestes; deimpropriedadee inconveniênciasãoas lamentaçõesdeUlissesnaCila e odiscurso de Melanipa; paradigma de caráter incoerente é a I igênia emÁulis, pois a I igênia suplicante émuitodiversa da I igênia que semostranofim.Éimportanteprocurarsempreaverossimilhançaeanecessidade,tanto

na representação dos caracteres quanto no entrecho das ações (...) É,portanto,evidentequeosdesenlaces tambémsejamresultadodaprópriaestrutura domito e não dodeus exmachina, como acontece naMedeia ounaquela parte daIlíada que tratado regressodosnavios. (...)O irracionalnão deve entrar no desenvolvimento do drama,mas, se entrar, deve ser

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somenteforadaação.ComonoÉdipo,deSófocles.(Idem,1454a,1454b)