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EXPECTATIVAS PARA O IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: A MEMÓRIA HISTÓRICA E FILOSÓFICA SOBRE O BRASIL DE JOAQUIM JOSÉ DA SILVA MAIA (1820-1824) WALQUIRIA DE REZENDE TOFANELLI ALVES* Introdução: Desde o século XIX, inúmeras produções historiográficas abordaram o tema da Independência do Brasil. No decorrer dos últimos anos, a historiografia tem se interessado e investigado, cada vez mais, a complexidade constitutiva do processo de Independência, em destaque a consolidação do Estado e a formação das identidades nacionais, sobretudo para demonstrar a diversidade de projetos possíveis para a o futuro político do Império fundado na América portuguesa 1 . Nossa proposta é abordar aspectos dessa complexidade a partir de escritos de Joaquim José da Silva Maia, personagem favorável à preservação do Império luso-brasileiro. Joaquim Maia, natural da cidade do Porto, em Portugal, nasceu em 1776 e faleceu em 1831, no Rio de Janeiro. Há referências de que teve formação intelectual mediana e praticou desde cedo a profissão de negociante, apesar de não sabermos de que modo e onde teria iniciado tais atividades antes de se fixar na Bahia. Segundo seu relato, transferiu-se à capitania em 1795, estabelecendo-se na cidade de Cachoeira e depois na capital Salvador, onde se matriculou na Real Junta do Comércio. (SILVA, 1860: 112). Em 1° de março de 1821 iniciou uma atuação na imprensa com a publicação do Semanário Cívico, que saia às quintas-feiras, e era impresso na Tipografia Viúva Serva e Carvalho. Neste periódico abordou diversos assuntos, entre eles, a adesão da Bahia às Cortes de Lisboa, instruções para as eleições dos deputados de província, comentários sobre a América hispânica, relatos sobre a economia política da região, opiniões contrárias à presença inglesa no comércio luso-brasileiro e à pressão desta para abolir o tráfico de escravos. * Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), mestranda no programa de pós-graduação em História. Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 1 Mais informações sobre os debates da historiografia sobre a Independência podem ser encontradas na obra “A independência na historiografia brasileira” de Wilma Peres da Costa.

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EXPECTATIVAS PARA O IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO: A MEMÓRIA

HISTÓRICA E FILOSÓFICA SOBRE O BRASIL DE JOAQUIM JOSÉ DA

SILVA MAIA (1820-1824)

WALQUIRIA DE REZENDE TOFANELLI ALVES*

Introdução:

Desde o século XIX, inúmeras produções historiográficas abordaram o tema da

Independência do Brasil. No decorrer dos últimos anos, a historiografia tem se

interessado e investigado, cada vez mais, a complexidade constitutiva do processo de

Independência, em destaque a consolidação do Estado e a formação das identidades

nacionais, sobretudo para demonstrar a diversidade de projetos possíveis para a o futuro

político do Império fundado na América portuguesa1. Nossa proposta é abordar aspectos

dessa complexidade a partir de escritos de Joaquim José da Silva Maia, personagem

favorável à preservação do Império luso-brasileiro.

Joaquim Maia, natural da cidade do Porto, em Portugal, nasceu em 1776 e

faleceu em 1831, no Rio de Janeiro. Há referências de que teve formação intelectual

mediana e praticou desde cedo a profissão de negociante, apesar de não sabermos de

que modo e onde teria iniciado tais atividades antes de se fixar na Bahia. Segundo seu

relato, transferiu-se à capitania em 1795, estabelecendo-se na cidade de Cachoeira e

depois na capital Salvador, onde se matriculou na Real Junta do Comércio. (SILVA,

1860: 112).

Em 1° de março de 1821 iniciou uma atuação na imprensa com a publicação do

Semanário Cívico, que saia às quintas-feiras, e era impresso na Tipografia Viúva Serva

e Carvalho. Neste periódico abordou diversos assuntos, entre eles, a adesão da Bahia às

Cortes de Lisboa, instruções para as eleições dos deputados de província, comentários

sobre a América hispânica, relatos sobre a economia política da região, opiniões

contrárias à presença inglesa no comércio luso-brasileiro e à pressão desta para abolir o

tráfico de escravos.

* Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), mestranda no programa de pós-graduação em

História. Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq). 1 Mais informações sobre os debates da historiografia sobre a Independência podem ser encontradas na

obra “A independência na historiografia brasileira” de Wilma Peres da Costa.

2

O objetivo desta comunicação é expor os principais argumentos do projeto

político deste negociante a partir de suas “Memórias históricas e filosóficas sobre o

Brasil” escritas em 1824 para problematizar interpretações que, pejorativamente,

qualificaram Silva Maia como “áulico” e “recolonizador” por ser “português”, portanto,

adversário dos “brasileiros” nas circunstâncias da luta pela independência na Bahia,

vivenciada como uma verdadeira guerra civil.

1. Avaliação sobre o posicionamento de Silva Maia: problematização

Vários autores que estudaram a guerra civil ocorrida na Bahia (1822-1823) no

contexto da luta contra as Cortes portuguesas, a compreenderam como resultado de

disputas entre “identidades nacionais” já constituídas, ou seja, “portugueses” versus

“brasileiros” 2, leitura que interpreta, sem rigor histórico, comentários de personagens

envolvidos no embate político contemporâneo aos acontecimentos. Em uma das

primeiras obras sobre o processo de Independência do Brasil publicada, em 1836, João

Armitage analisou o decreto emitido pelas Cortes,em 24 de abril de 1821, que liberava

os Governos Provinciais da submissão ao Rio de Janeiro, e transferia a obediência

exclusivamente ao centro de poder sediado em Lisboa. Para Armitage, esta resolução

teria sido uma “excentricidade” das Cortes, justificada pela desconfiança que tinham em

relação aos planos do Príncipe Regente que permanecera no Rio de Janeiro. Comentou o

apoio dado ao decreto pelas classes comerciais compostas por “portugueses natos”,

adeptos do constitucionalismo de Lisboa, esperançosos da restauração de antigos

privilégios praticados no comércio luso-brasileiro. A adesão destes mercadores ao

decreto das Cortes devia-se à expectativa de que somente as leis seriam capazes de

revogar os benefícios comerciais concedidos aos britânicos pelo tratado de 1810.

(ARMITAGE, 1837: 48).

Armitage registrou o apoio da Bahia ao decreto, explicando que o partido

político ali dominante era composto preponderantemente por negociantes

“portugueses”:

2István Jancsó em “Brasil e brasileiros – Notas sobre modelagem de significados políticos na crise do

Antigo Regime português na América” realizou interessante estudo sobre a complexidade das identidades

políticas no Brasil naquele momento e da emergência dos Estados Nacionais nas Cortes, exemplificando

o caso baiano.

3

Pela preponderância deste partido na Cidade da Bahia, negou-se

explicitamente à respectiva Junta Provisória, que governava desde o

estabelecimento da Constituição, a reconhecer a autoridade de D. Pedro

como Regente, a pretexto de ter sido nomeado por El-Rei, e não pelas

Cortes; deduzindo deste princípio de nulidade do decreto de 22 de abril; e

como maior prova de obediência para com o Governo de Portugal, pediu-lhe

reforço de tropas, a fim de melhor se manterem as relações existentes entre

os dois países. (ARMITAGE, 1836: 48).

Segundo Armitage, o poder local baiano se negava a reconhecer o decreto

anterior, datado de 22 de abril de 1821, porque expedido pelo rei D. João VI e não pelas

Cortes Constituintes. O decreto do rei foi promulgado após discussão na Praça do

Comércio do Rio de Janeiro, que atravessou a madrugada de 21 a 22 de abril de 1821,

decorrente da oposição entre liberais fluminenses e emigrados portugueses quando da

escolha dos deputados das províncias brasileiras para as Cortes. Houve tumulto e as

tropas de D. Pedro foram chamadas com a finalidade de dissolver o confronto3. Após a

repressão e abertura de devassa, D. João VI decidiu, apoiado no referido decreto, que

retornaria a Lisboa deixando a Regência a cargo de seu filho, D. Pedro. A análise deste

episódio revela o poder dos liberais fluminenses ao se oporem publicamente à que

nobres emigrados e homens de famílias tradicionais ligadas ao poder central

continuassem a ocupar os cargos mais altos na Corte, prorrogando assim políticas de

privilégios. (OLIVEIRA, 2013: 98).

Estas descrições de Armitage são importantes porque fundamentam a visão de

um britânico interessado nos negócios, na política e na história do Brasil, notadamente,

porque desde há muito os ingleses investiam na continuidade de rentáveis acordos

comerciais com Portugal. Naquele momento preocupavam-se com a manutenção dessas

relações agora mediadas pelo Rio de Janeiro, mais do que por Lisboa, que se orientavam

por princípios do capitalismo industrial, os quais aconselhavam a ampliação dos

mercados consumidores dos produtos ingleses e fornecedores de matérias primas para

as manufaturas. (CAVALCANTI, 1972: 233-234).

3A opção pela Independência foi resultado de intensa articulação política de liberais ligados à economia

do Centro-Sul da América portuguesa. Desde o final do século XVIII, este grupo de liberais da região

fluminense reuniu capitais e poderes políticos suficientes para pressionar o monarca a representar suas

demandas. Fizeram parte deste grupo homens ilustres por seu desempenho político no Rio de Janeiro,

como Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, José Clemente Pereira, Luís Pereira da

Nóbrega de Souza Coutinho e Manuel dos Santos Portugal. (OLIVEIRA, 1999: 107).

4

A obra de Armitage destaca a oposição entre “brasileiros” e “portugueses” para

explicar a situação baiana na Independência, explicação bem avaliada historicamente

por Guilherme Paula dos Santos, quando analisou esta obra para compreender a

diplomacia do reconhecimento da Independência:

A despeito da descrição de um e outro pormenor, Armitage reuniu em um

ponto as tratativas: as negociações foram compreendidas como uma

manifestação de oposição entre brasileiros e portugueses. Compreendendo,

particularmente os episódios desencadeados ao longo da década de 1820,

marcados por ações que visavam, além da separação com Portugal, a

remoção de práticas consideradas ‘atrasadas’. O Autor enfatizou uma

aparente ‘identidade brasileira’ em contraposição a uma ‘portuguesa’.

Assim, delineou conotação mais nítida para o conflito: a luta diplomática

espelhava a luta dos brasileiros que pleiteavam um regime constitucional, de

liberdade e segurança individual, enquanto os portugueses representavam o

absolutismo, ‘pretendiam impor a soberania’. (SANTOS, 2015: 28).

Interpretações como as de Armitage, feitas após os acontecimentos e criadas

pelas solicitações políticas do momento em que foram preparadas (a disputa que ocorreu

nos primeiros anos do período regencial) projetam para o início dos anos de 1820 uma

concepção de nacionalidade “brasileira” vivenciada posteriormente, nos anos 1830,

porém diversa da que se teria posteriormente, no século XX. Muitos contemporâneos

reproduziram a mesma análise em periódicos e manuscritos acusando os “portugueses”

de comporem um partido “recolonizador” no Brasil, acusação acentuadamente política

cujo sentido se remetia, hipoteticamente, ao período anterior à vinda da Corte.

Por sua vez, (re)inventando esta leitura, a historiografia do século XX transferiu

as noções de “Estado” e de “Nação” para tempo e espaço (a década de 1820) em que

não estavam estabelecidas claramente4. Podemos encontrar essa interpretação nos

escritos de Braz Hermenegildo do Amaral (1926), Nelson Werneck Sodré (1966),

Consuelo Pondé de Sena (1983) e Christiane Peres Pereira (2013), que entenderam o

processo independentista na Bahia a partir da oposição entre “identidades nacionais”

plenamente configuradas. Alguns imputaram a Joaquim Maia o título de “áulico” e

4Muitos autores ao referenciarem acontecimentos de 1821 e 1822 na Bahia, usaram os termos

“portugueses” e “brasileiros” de forma genérica opondo, na verdade, políticos e comerciantes que

apoiavam o poder das Cortes em Lisboa, àqueles que aderiram ao centro de poder do Rio de Janeiro.

Destarte, também há autores que carregam esta oposição como se as identidades nacionais já estivessem

consolidadas, sugerindo que na Bahia, o anúncio da Independência era mais premente porque esta

oposição nacionalista aos “portugueses” resultou em uma guerra civil (1822-1823).

5

“reacionário” ao reconhecer sua atividade jornalística como expressão de uma

“imprensa lusitana” no Brasil.

Inspirada pelo trabalho de Antonio Penalves da Rocha5, ao analisar os debates

nas Cortes de Lisboa Márcia Regina Berbel mostrou que o termo “recolonização” foi

utilizado retoricamente por deputados americanos para atacar opiniões de europeus que

limitavam o poder político do Reino do Brasil. O uso do termo foi mais freqüente após

desobediência do Príncipe às ordens das Cortes, mais precisamente quando decidiu, em

09 de janeiro de 1822, permanecer na América. A decisão demonstrou a existência de

dois centros de poder no Império, o Rio de Janeiro e Lisboa, fato que acirrou ainda mais

os debates nas Cortes. (BERBEL, 2005: 792-793).

Abordando o conceito de “identidades” durante as transformações do XVIII para

o XIX, João Paulo Pimenta e István Jancsó reforçaram o caráter provisório e movediço

das noções de “pátria”, “país” e “nação” naquelas circunstâncias. Destacaram a

multiplicidade de projetos construídos por grupos cujas “identidades” além de serem

forjadas coletivamente, também se referiam a interesses políticos e de negócios. Isto

significa que o termo “nação” não estava simplesmente associado ao sentido que

atualmente atribuímos a ele: lugar de nascimento ou de origem. Na verdade, a “nação”

congregava todos os súditos do Império, com a diferença de nomearem-se portugueses

da América e portugueses da Europa. O objetivo desses grupos variava de acordo com

as percepções coletivas que desenvolviam no interior da crise do Antigo Regime.

(JANCSÓ; PIMENTA, 2000: 135-136).

Dessa forma, a coesão desses grupos, opostos como “portugueses e brasileiros”,

na verdade, dependia de interesses coletivos políticos e econômicos relacionados a um

ou outro centro de poder: Lisboa ou o Rio de Janeiro. Seria, então, mais adequado falar

em diversidades de propostas políticas, e não de supostos antagonismos nacionais no

sentido atual destes termos. As relações com esses centros dependiam da produção e

comércio de cada região e das proximidades e diálogos das províncias com esses pólos

de poder político e econômico. (WISIAK, 2005: 448).

5 Márcia Berbel observou que: “Antonio Penalves Rocha recuperou as origens do vocábulo recolonização

como “um neologismo cunhado durante o movimento de Independência para denunciar o caráter das

disposições legais impostas ao Brasil pelas Cortes”. (ROCHA, 2001: mimeo; apud, BERBEL, 2005:

792).

6

A cidade do Rio de Janeiro era “um dos centros comerciais mais ativos dos

domínios portugueses” (OLIVEIRA, 1999: 62). Desde o final do XVIII vivenciou um

processo de mercantilização da terra e da força de trabalho, demonstrando a crescente

liberalização nas relações sócio-econômicas que afetava não só a Europa, mas

igualmente as possessões na América. O que se percebe são contradições entre formas

de governo tradicionais e o liberalismo crescente que transformava atividades e relações

de trabalho em uma escala americana e europeia. Com a transferência da Corte para o

Rio de Janeiro, em 1808, a cidade foi muito valorizada, como capital e centro de poder

do Império português. (OLIVEIRA, 1999: 63).

Trata-se de considerar, neste caso, que dentre os diversos setores sociais que

enfrentavam a crise do Império luso-brasileiro, havia os que desfrutavam de maiores

lucros nas relações com o Rio de Janeiro e aqueles cujas relações mais rentáveis vinham

das ligações com Lisboa. Thomas Wisiak apresentou o quadro da crise política do

Antigo Regime com o intuito de mostrar que diversos grupos orientavam suas forças

políticas no sentido de buscar alternativas para a crise. (WISIAK, 2001: 35-36). Richard

Graham também acredita que as províncias do Norte apoiaram o centro de poder

sediado em Lisboa porque o predomínio do Rio de Janeiro, desde 1808, nunca teria sido

bem aceito por eles:

A maioria dos políticos portugueses não via razão para tratar as províncias

brasileiras de maneira distinta das de Portugal, onde supunham que a

autoridade central fosse indiscutível num novo governo liberal unitário. Até

mesmo alguns delegados brasileiros queriam ver a província do Rio de

Janeiro despojada de sua posição especial, pois seu predomínio a partir de

1808 nunca fora bem-aceito nas províncias do Norte. As Cortes votaram pela

abolição total do reino do Brasil como entidade separada, e pela submissão

de todas as províncias ao governo de Lisboa, sem ao menos um vice-rei no

Brasil. Em outubro, as Cortes instruíram d. João VI a ordenar a d. Pedro

que deixasse o Brasil e retornasse para a Europa – ordem que chegou ao

Brasil em dezembro de 1821. (GRAHAM, 2013: 214).

Para notabilizar a atuação dos baianos neste processo, Braz Hermenegildo do

Amaral elencou, em 1923, problemas na vinculação da memória histórica da

Independência às províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro. Fosse pelo “dia do Fico”,

em 9 de janeiro, fosse pelo anúncio do Príncipe às margens do Ipiranga, em 07 de

7

setembro de 1822, a valorização destes eventos teria encoberto a luta dos “verdadeiros”

protagonistas da história nacional6:

O vivo desejo de fazer da independência uma propriedade patriótica do Rio

de Janeiro e de S. Paulo, levou os interessados a dar aquela festividade um

cunho demasiado particularista, apagando o trabalho e o sacrifício de

outros que também contribuíram para levar a cabo a grande obra da

libertação em diversos ponto do território brasileiro. (...) A Independência

foi realizada pela ação decisiva e enérgica dos brasileiros e todos os

artifícios empregados para fantasiar uma falta da história convencional,

destinada a pôr em relevo aqueles dois pontos do país, não se podem manter,

diante de uma ligeira análise dos fatos precursores e preparatórios dela, os

quais se passaram em Minas Gerais, em Pernambuco e principalmente na

Bahia, onde ela foi, na realidade, feita e onde teve a sua terminação.

(AMARAL, 2005:09- negrito nosso).

É nesta linha argumentativa que Consuelo Pondé de Sena também avaliou o

processo baiano, ao abordar a participação de Maia no Sentinela Bahiense (1822),

periódico que durou apenas alguns meses, sendo impresso pela mesma Tipografia,

Viúva Serva e Carvalho concomitantemente ao Semanário Cívico. Ambos noticiavam

assuntos semelhantes e eram redigidos pelo mesmo redator (SILVA, 2008: 20). Para

Consuelo Ponde de Sena, o jornal foi um difusor da propaganda “antinacionalista”:

É nosso intento, pois, comentar a propaganda antinacionalista promovida

pelo referido Jornal, contribuindo, assim, para a divulgação de um assunto

alusivo ao memorável processo libertário baiano. (SENA, 1986: 04 – negrito

nosso).

Mais adiante, ratificou que a folha defendia “a causa lusitana” em oposição aos

“patriotas brasileiros”:

Tantas são as notícias tendenciosas, que o Sentinella transmite, que nos seria

impossível comentá-las na sua totalidade. Afinal, a gazeta tinha por objetivo

denegrir a ação dos patriotas brasileiros, os quais eram denominados

“facciosos” e exaltar as benemerências das forças portuguesas, aqui

sediadas, contra a vontade do povo baiano. Aliás, não se poderia pretender

daquele jornal uma atitude de imparcialidade diante dos fatos, quando seu

objetivo era exatamente o de defender a causa lusitana. (SENA, 1986: 21-22

– negrito nosso).

6 Amaral propõe o deslocamento da ênfase da memória nacional sobre a Independência deslocar-se do

Centro-Sul para a Bahia, sugerindo que o 2 de julho de 1823 fosse a data de real comemoração, já que

apenas quando aquela província, depois de confronto armado, aderiu à causa independentista expulsando

as tropas lisboetas, que a separação efetivamente se consolidou (AMARAL, 2005: 18).

8

De maneira parecida, Nelson Werneck Sodré remeteu-se à Silva Maia e ao

Semanário Cívico, classificando-os como participantes da imprensa “áulica e lusitana”

contra a qual lutavam os baianos7:

A censura era implacável. Sob a sua férula, apareceram, em 1821, antes que

o movimento portuense dispusesse sobre a liberdade de imprensa e, portanto,

integrando a imprensa áulica, o Semanário Cívico, que começou a circular,

na Bahia a 1° de março daquele ano, fundado e dirigido pelo comerciante

luso José da Silva Maia, fazendo coro com a Idade do Ouro do Brasil e

merecendo o apelido de “semanário cínico” que lhe puseram os baianos

(SODRÉ, 1999: 49).

Christiane Peres Pereira, em estudo sobre a trajetória do negociante nas

atividades de imprensa, apesar de comentar todas as produções do autor, atribuiu a ele a

característica de “áulico” baseando-se no texto de O Brasileiro Imparcial, periódico

redigido enquanto Silva Maia esteve no Rio de Janeiro, publicado de janeiro a dezembro

de 1830 e impresso pela Tipografia do Diário. Polemizando com o personagem

estudado, a autora considerou que: “O Imparcial está apenas no nome se nos detivermos

à característica principal dos áulicos...” (PEREIRA, 2013: 106). Justifica a importância

de seu estudo justamente porque pretende analisar as trajetórias de um “áulico” na

imprensa do Primeiro Reinado:

o que pretendemos demonstrar aqui é que a Bahia não se resume à

resistência armada contra a Independência, que tem também sua

importância enquanto foco de debates. Que o Rio de Janeiro não enfrenta

uma “onda” de descontentamento e movimentos de rua sem a contrapartida

dos “cortesãos”, daqueles que se empenharam tanto na imprensa como no

parlamento defendendo o governo. E que a trajetória de um áulico pode

contribuir para a compreensão do Primeiro Reinado nesses dois espaços.

(PEREIRA, 2013: 12).

O termo era fartamente utilizado no debate político da imprensa desde meados

da década de 1820. O Astréa (1826-1832) e o Aurora Fluminense (1827-1838)

contemporâneos do Brasileiro Imparcial, acusaram seu redator de “áulico”8 e

“recolonizador” porque acreditavam que o apoio a D. Pedro era parte de uma política de

7 O próprio autor define imprensa áulica pela referência ao Idade do Ouro do Brasil e o apoio que teria

dado à propaganda absolutista, mais precisamente, a D. João VI: “O absolutismo luso precisava, agora,

defender-se. E realizou a sua defesa em tentativas sucessivas de periódicos, senão numerosas pelos menos

variadas. Depois da Gazeta do Rio de Janeiro, de 1808, surgiu na antiga capital colonial, a Bahia, a

segunda cidade brasileira, a Idade de Ouro do Brasil...” (SODRÉ, 1999: 29-30). 8 No dicionário de Antônio de Morais e Silva o verbete “áulico” refere-se à qualidade daquele que é

palaciano ou cortesão. (SILVA, 1813: 232).

9

“estrangeiros” para “recolonizar” o Brasil. A denominação de “áulico” era usada de

forma pejorativa por estes redatores fluminenses, para atacar os “satélites” do Imperador

que, em seus argumentos, “contrariavam” a Independência. Desde 1815, o Brasil havia

sido elevado à condição de Reino Unido a Portugal e a Algarves e, em 1830, desfrutava

de estatuto mais sólido em relação à Independência. A possibilidade de retorno à

política de Antigo Regime no Brasil era quase nula, mas o receio dos liberais

brasileiros, moderados e exaltados, em 1830, permanecia. Este sentimento não era

propriamente em relação ao absolutismo e colonização, mas às medidas arbitrárias que,

porventura, o Imperador pudesse adotar. (Cf. SOUZA, 1999: 335).

Após a independência, muitos fluminenses e políticos de outras províncias

desconfiavam do caráter “constitucional” e “emancipador” de D. Pedro desde que

determinou o encerramento da Assembleia Constituinte, em 1823 e incluiu o poder

Moderador na Constituição de 1824. Para esses liberais, o monarca incentivou a

emigração dos portugueses para que cumprissem o papel de “áulicos”, ou seja, adulando

o governo de D. Pedro. Esses termos forjados no interior da linguagem política, sob a

observância de ataques e debates públicos, não foram problematizados por Christiane

Peres Pereira, dando-nos a impressão de que corroborou algumas das ideias destes

redatores moderados da década de 1830, ao classificar Silva Maia como um “áulico”.

Após a morte de D. João VI, em 1826, as questões ficaram ainda mais sensíveis

porque D. Pedro I do Brasil, o filho mais velho do rei, foi designado pelo pai herdeiro

dos dois Impérios. Em nossa hipótese, o receio de muitos destes moderados brasileiros,

a partir deste episódio, pode ser compreendido pelo fato de que, defensores de projetos

para a recomposição do Império luso-brasileiro, semelhantes aos de D. Rodrigo de

Souza Coutinho ou de Hipólito José da Costa, poderiam ganhar força política, apesar de

Pedro I ter transferido o trono de Portugal para sua filha Maria da Glória:

As relações deveriam pautar-se, não mais no sistema usual de dominação de

metrópole sobre colônia, mas numa relação de parceria de Estados iguais.

Dessa maneira, a preservação da unidade do mundo português consistia o

objetivo precípuo do projeto político embutido no programa de reformas,

cuja mira era a formação de um grande Estado atlântico – um novo e

promissor império lusitano ou, como a historiografia vem nomeando, um

império luso-brasileiro. E esse novo império aparecia como o elemento

unificador das partes distintas do mundo português, enquanto o sentimento

de pertencimento à nação lusa – então explícita e objetivamente evocada –

aparecia com a função de fortalecer essa unidade e, sobretudo, assegurar a

10

criação de um sentimento de identidade entre os habitantes do que era até

então “genericamente” chamado Brasil. (LYRA, 1994: 20).

Essa expectativa, embora muito enfraquecida no decorrer dos anos, não foi

totalmente descartada, pelo menos até a abdicação de D. Pedro, em 1831, e, sobretudo,

seu falecimento em 1834. É neste amplo contexto de definição do estatuto político do

Brasil (1821-1834) que o projeto de Joaquim da Silva Maia se modelou, defendendo

uma proposta conciliatória: um centro de poder constitucional em Lisboa, porém com

garantia de autonomia dos Reinos, que compunham o “vasto Império” português.

Sublinhamos com especial atenção seu contato com Hipólito José da Costa, outro

defensor daquele Império, que por referências de Maia teria sido um amigo com quem

se correspondeu nos anos em que viveu na Bahia:

Quando residíamos na Bahia o nosso falecido amigo H. J. da Costa, nos

pediu de Londres [que] lhe mandássemos uma estatística circunstanciada da

população do Brasil; porque pretendia escrever a história deste país, e

encontrava um vácuo imenso desde 1750 até os nossos dias; porque antes

daquela época os Jesuítas escreveram sobre este país, e depois de sua

extinção nada mais se publicou; e ainda hoje o que anda escrito é inexato;

mas nós encontramos dificuldades insuperáveis para satisfazer aquele

amigo: contudo lhe enviamos algumas memórias. (O Brasileiro Imparcial,

1830, n°29, folha 02)

Em depoimento de 1830, Silva Maia explicou que se retirou da Bahia e se

transferiu com a família para o Maranhão em 10 de julho de 1823“... tempo em que

ainda ali se não havia aclamado a independência do Império”. (O Brasileiro Imparcial,

n°02, 1830: 03). Após a adesão daquela província à Independência, que ocorreu no dia

28 do mesmo mês, o redator disse que a teria aceitado solenemente em 07 de Agosto, na

Câmara. Em suas palavras por demonstrar adesão pública à causa da independentista: “a

Junta do Maranhão nos deu legal Passaporte para a Europa (...) regressamos a Portugal

para colocar nosso filho na Universidade de Coimbra” (O Brasileiro Imparcial, 1830:

03). O filho em questão era Emílio Joaquim da Silva Maia, futuro sócio-fundador do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, e editor das obras do pai

divulgadas após sua morte, na década de 1840, dentre elas as Memórias históricas e

filosóficas sobre o Brasil, escrita em 1824 mas só publicada na Revista Minerva

Brasiliense, em 1844.

11

2. “As memórias históricas e filosóficas sobre o Brasil”: a crítica ao absolutismo e

defesa do Império luso-brasileiro como monarquia constitucional:

Na quarta edição do Dicionário de Antônio de Morais Silva, reeditada por

Theotônio José de Oliveira Velho e publicada, em 1831, há definições detalhadas sobre

o verbete “memória” enquanto gênero literário. A partir destas definições e da análise

da estrutura e dos argumentos das memórias de Silva Maia, optamos por elencar alguns

pontos significativos para a compreensão das memórias como escrita no início do XIX.

Memórias enquanto formas narrativas: 1) podem ser “escritos de narração

política” 2) Ou descrição de “fatos literários e científicos” servindo ou não às

Academias. 3) Geralmente depositam-se como matérias para a História [Geral]9. 4) As

memórias escritas “desenvolvem miudamente os fatos e suas causas, discutem o que são

duvidosos, determinam e verificam datas e copiam documentos”. 5) “Seu estilo deve ser

simples, livre, corrente” e não admite a ordenação que tem a História [Geral]. 6) O

próprio nome, “memória”, revela o caráter de fornecer testemunho ou relato de

proximidade com o fato a ser descrito, quando isto não acontece, a análise parte de

documentos anexos complementando o que não foi possível presenciar. 7) Por este

motivo, as memórias históricas fornecem análise de acontecimentos relativamente

recentes, observando certas diretrizes científicas do início do XIX. 8) Escrevem

memórias “quem quer conservar ou deixar em memória os sucessos públicos do seu

tempo” relatando desde grandes até pequenos fatos, como também, suas causas e

consequências para servir à posteridade. (SILVA, 1831: 300-301).

Por estas definições é possível perceber o pragmatismo deste tipo de narrativa,

bastante próximo ao das gazetas, pelo menos, quanto ao intuito de tornar público um

acontecimento recente. Observamos que na Memória Histórica em pauta existem

organização de fatos, sentidos políticos, argumentos e enredos orientados por começo,

meio e fim, que delimitam o tema e sua periodização. Silva Maia como político e

negociante, relatou acontecimentos considerados por ele de utilidade pública. Justificou

seu projeto, engajado na defesa de uma monarquia constitucional estendida a um grande

9 Este gênero, certamente, desfrutava de maior importância na historiografia do que as memórias porque

versavam sobre muitos assuntos, da história eclesiástica à história profana. (ARAÚJO; PIMENTA,

2009:124).

12

Império que reunia reinos dos dois lados do Atlântico, respeitando concepção

progressiva do tempo histórico moderno, pelo que, em alguns momentos, considera os

“erros de um passado colonial” como ensinamentos úteis para o presente e a posteridade

da monarquia constitucional 10.

Nas Memórias históricas e filosóficas sobre o Brasil, Silva Maia estabeleceu a

seguinte lógica-temporal: no início da narrativa tratou da história do descobrimento do

Brasil para elucidar as desvantagens do país decorrentes da colonização portuguesa. No

desenvolvimento, abordou a história político-administrativa da colônia no século XVIII,

ressaltando os malefícios daqueles povos que não dispunham de uma Constituição, ou

seja, estavam submetidos à dominação absoluta de um governo metropolitano que,

mesmo quando da elevação do país a Reino Unido, em 1815, não teria experimentado

profundas transformações. Na finalização fez um comentário breve sobre a Revolução

do Porto de 1820, ao que tudo indica, para valorizar que só a Constituição e as Cortes

em Lisboa poderiam limitar o poder absoluto.

A “descoberta”, na opinião de Maia, foi vista com “indiferença” pelos

portugueses, pois na época estariam mais ocupados em tirar riquezas da exploração da

Ásia. Explicou que a situação “primitiva” daquela colônia vinha do fato de que os

“selvagens” não contavam com qualquer riqueza ou indústria. Além disso, os primeiros

a povoarem o lugar foram miseráveis degradados e missionários jesuítas que, apesar de

terem sido os mestres na educação da mocidade e de gentios por muito tempo,

empreenderam um ensino demorado por lecionarem muitas aulas de latim e teologia,

em detrimento, de outras disciplinas consideradas por ele de maior importância.

(MAIA, 1844: 384).

Apenas durante o reinado de D. João IV (1640-1656), quando Portugal já havia

perdido a maior parte de suas possessões asiáticas, o Brasil tornou-se a única colônia

10Na virada do XVIII para o XIX houve aceleração do tempo que modificou as relações entre espaço de

experiência e horizonte de expectativa, trazendo novos paradigmas para a historiografia moderna, a qual

tornou-se capaz de projetar futuros sobre a perspectiva de um tempo progressivo. Reinhart Koselleck

comentou essas transformações a partir da dissolução do antigo topos História Magistra Vitae, em que

reconhece premente aceleração temporal causada por revoluções políticas e sociais. A historiografia até

este período orientava a vida dos homens a partir de relatos exemplares capazes de se “repetirem” devido

à lenta transformação das sociedades antigas e medievais (Historie). Com a dissolução deste topos na

modernidade, outra concepção para história submergiu (Geschichte) adquirindo natureza de referenciais

próprios para o tempo histórico e abrindo-se à experiência do passado composta por diferentes tempos e

novas expectativas para o futuro. (KOSELLECK, 2006: 48-49)

13

considerável. Antes deste período, o reino também experimentara circunstâncias difíceis

como a guerra com os holandeses e com os espanhóis, motivo pelo qual esteve carente

de população para enviar à sua colônia. Nesta situação, o autor explica que Portugal não

podia fornecer homens para administrar, explorar e cultivar terras do Brasil:

...pela dilatada guerra que foi obrigado a sustentar com a Holanda, e depois

com a Espanha, estava exaurido de população que enviasse ao Brasil, e os

grandes proprietários daquele país não tinham forças com que pudessem

explorar e cultivar as terras e recorreram a violentar os indígenas (...) Em

breve tempo viu-se o Brasil coberto de negros, e os colonos entregaram os

cuidados dos seus negócios domésticos, e da lavoura, aos escravos,

vegetando em ociosidade, que os devia necessariamente fazer viciosos em um

país adusto onde as paixões são prontas, e impetuosas.(MAIA, 1844: 383).

José Roberto do Amaral Lapa demonstrou em seus estudos a importância

adquirida pela Bahia no comércio transatlântico. Documentos seiscentistas chegaram a

nomeá-la como “o porto do Brasil”, atribuindo-lhe representatividade para todo o

território colonial. Seu destaque remonta à metade do XVI quando se tornou escala

marítima para o comércio com a Ásia. Com a gradativa decadência dos negócios

portugueses no Oriente e a invasão dos territórios coloniais por barcos de outras nações,

o porto da Bahia foi sendo destacado dentre os demais da América portuguesa. Na

emergência de crise econômica e restauração de Portugal, em 1640, a Bahia adquiriu a

importância de “pulmão por onde respira a colônia” notadamente pela experiência

herdada na Carreira das Índias (LAPA, 2000: 01).

Esta relação com os mercadores para o Oriente legou abertura comercial para as

transações entre gêneros coloniais e de tráfico de escravos nos períodos subsequentes. A

Bahia desde muito tempo foi o centro político e administrativo principal de portugueses

em território colonial. Sua importância se dava pelos produtos que produzia como o

tabaco, o açúcar, a madeira, as especiarias, as fibras tropicais e as matérias-primas, além

disso, havia facilidade de contato com a África ocidental portuguesa por sua localização

geográfica. Ademais, era mais próxima também do centro metropolitano se comparada

com os portos do Sul. (LAPA, 2000: 01-02).

Silva Maia chamou de “mau sistema”, ao sistema colonial que dividiu o Brasil

em quatorze capitanias, governadas pelos capitães-gerais “absolutos (...) sem entre si ter

contato e relação, e somente sujeitos a Portugal” (MAIA, 1844: 383). Criticou a

14

ambição destes homens, especialmente, em Minas Gerais, capitania sobre a qual recaía

fiscalização pesada, por conta da extração do ouro e de pedras preciosas e a corrupção

dos poderosos locais que, para ele, agiam como “cônsules, com mais autoridade do que

tinham os dos antigos Romanos”:

Um código ditado pela ambição, foi o que por muitos anos regeu aquela

capitania (...) [os capitães] desenvolviam sucessivamente uma ambição

desmedida, autorizada pela lei. Eles decidiam, sem apelação da vida, honra

e fazenda de todos aqueles que tinham a desgraça de lhes serem sujeitos (...)

ninguém podia vender coisa alguma sem sua licença (...); o parente não

podia comunicar-se com o parente, o amigo com o amigo. Se as outras

capitanias não tinham governos tão anômalos, a sua sorte em pouco

melhorava. (MAIA, 1844: 383 – negrito nosso).

Para o negociante, talvez fosse planos da Metrópole:

no tempo do sistema colonial conservar os Brasileiros na ignorância para os

fazer sujeitos e dependentes, e eles não conhecerem o estado ignóbil a que se

achava reduzidos, ou fosse porque Portugal, faltou dessas luzes pelos

obstáculos da inquisição, não podia comunicar o que não possuía; o certo é

que os habitantes do Brasil em geral viviam entregues a uma crassa

ignorância... (MAIA, 1844: 384).

A saída apresentada para “estancar a corrupção” e os problemas causados pelo

sistema colonial foi a “instrução pública” a partir da expansão das luzes. Possibilitadas

pela emancipação dos Estados Unidos, em 1776 e pelo início da Revolução Francesa,

em 1789, os obstáculos da censura no Brasil não conseguiram barrar “escritos de

Thomas Paine, o governo civil de Locke, o contrato social de Rousseau, e a revolução

d’América de Raynal, e outras obras desta natureza, principiaram-se então a ler no

Brasil” (MAIA, 1844: 384). Entretanto, “a imaginação ardente dos brasileiros se

inflamou”, vulgarizando termos como os “direitos do homem” e “do estado opressivo

de colônia”, o que evidenciava para ele, que estes não estavam preparados para o

sistema republicano, tampouco, para a abolição da escravidão, este último fato que

também ocorreu nos Estados Unidos. (MAIA, 1844: 385).

Fez inúmeras críticas à Corte instalada no Rio de Janeiro, em 1808, pelos

dispêndios que os “luxos verdadeiramente [semelhantes aos dos] asiáticos” causavam

“às rendas nacionais”. Além disso, disse que no Brasil causaram “males de maiores

transcendências” quando beneficiaram “muitos cidadãos” pertencentes à nobreza,

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pesando para isso impostos “sobre as classes industriosas” e “tirando braços [da]

lavoura, e [do] comércio”. (MAIA, 1844: 385).

Em sua análise a “importante lei que elevou o Brasil à categoria de reino,

publicada com tanto aparato, não produziu os resultados que eram de esperar” porque,

ainda se conservou nas capitanias, “o antigo regime militar dos capitães generais com

todos os seus defeitos e despotismos”. (MAIA, 1844: 386). Terminou a Memória

dando-nos a ideia de que teria continuidade em outra ocasião, pois ao escrever “Fim do

primeiro Livro” anunciou que no volume seguinte abordaria os acontecimentos da

Revolução do Porto de 1820 e “o efeito, que causou no espírito dos povos”, intenção

que não se concretizou. (MAIA, 1844: 389). Para o autor só a Constituição das Cortes

reunidas em Lisboa poderia regular os abusos e privilégios da Corte do Rio de Janeiro e

da “classe de déspotas” ligados a este centro administrativo.

Entendemos que, assim como outros escritos, as Memórias registram um dos

projetos em debate no complexo contexto da Independência, denotativo das dissensões

de grupos e ideias então existentes na província da Bahia, que se dividiam entre dois

centros de poder distintos na expectativa de melhor contemplar seus próprios interesses.

Estes homens comunicaram-se entre si através de cartas, memórias e periódicos, como

também o fez Silva Maia, e construíram opiniões sobre um futuro ainda incerto pensado

naquele momento, dentre outras propostas, como um Império apoiado no

constitucionalismo das Cortes com “a moldura da Monarquia para o mosaico luso-

brasileiro” (JANCSÓ, 2008: 267).

Acreditamos que os escritos de Silva Maia não receberam destaque na

historiografia, marcada por posturas nacionalistas, porque suas propostas políticas

foram derrotadas e ficaram cada vez mais encobertas, juntamente com o personagem,

debaixo da problemática acusação de ser um “reacionário”, “áulico” e “recolonizador”,

em outras palavras, um inimigo da Independência do Brasil (1822-1831) 11.

11 Izabel Lustosa no prefácio do livro “Semanário Cívico: Bahia 1821-1822” de Maria Beatriz Nizza da

Silva comentou que: “os dois principais impressos ligados ao grupo derrotado na pouca estudada guerra

de independência na Bahia até hoje não tinham sido lidos com a devida atenção. Vinculados à história

como jornais da reação portuguesa ao nosso movimento de independência, ficaram à margem,

conformando-se os historiadores com o que dele se disse nos jornais do Rio de Janeiro. Naqueles, como

bem o mostra o livro de Maria Beatriz, tanto o Idade do Ouro (em sua última fase) quanto o Semanário

Cívico – e este especialmente – foram duramente atacados”. (LUSTOSA, apud, SILVA, 2006, p. s/n).

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