Exposição "A Olhos Nus" - A política poética do Coletivo Passaros Proibidos

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Comentários sobre a exposição "A Olhos Nus" do Coletivo Pássaros Proibidos (Javier Valado, Moema Costa e Tiago Oliveira), apresentada no Centro de Cultura e Arte da UFS (Cultart) em 17 de julho de 2015. As imagens, com foco nos direitos humanos, trazem o cotidiano de pessoas marginalizadas.

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  • Foto de Javier Valado. A

    mgica de revelar alegria

    em pessoas que

    constroem sua dignidade

    daquilo que foi jogado

    fora.

    Exposio A Olhos Nus A Poltica Potica do Coletivo

    Pssaros Proibidos.

    Por Luciano Freitas*

    Em 1976, em uma priso do Uruguai[] Os presos polticos no podem falar sem permisso, assobiar, cantar, caminhar rpido, nem cumprimentar outro preso. Tampouco podem desenhar, nem receber desenhos de mulheres grvidas, casais, borboletas, estrelas e pssaros. Didask Prez, professor da escola, torturado e preso por idias, recebe no domingo a visita de sua filha, Milay, de 5 anos. A filha lhe traz um desenho de pssaros. Os censores o destroem entrada da priso. No domingo seguinte, Milay lhe traz um desenho de rvores. As rvores no esto proibidas, e o desenho liberado. Didask lhe elogia e pergunta o que seriam os pequenos crculos que aparecem nas copas das rvores, muito pequenos crculos entre os ramos: So laranjas? Que frutas so? A filha o faz calar. Ssssssshhh. E, em segredo, lhe explica: Bobo! No vs que so olhos? Os olhos dos pssaros que te trago s escondidas? (Pssaros Proibidos, de Eduardo Galeano)

    Ser capaz de observar algo a olho nu no tarefa fcil. Exige sensibilidade

    aguada, que no se deixa enganar, treinada durante um longo tempo, at tornar-se capaz

    de reconhecer os aspectos mais sutis da realidade sem a necessidade de nenhum aparato,

    mecanismo ou meio, exceto o prprio olhar, a prpria percepo. como um retorno

    primeira infncia, poca em que usvamos os olhos apenas para enxergar... no para

    julgar e condenar. Aberta em 18 de julho, (um sbado noite meio quente, meio

    chuvoso) no Centro de Cultura e Arte da UFS, s margens do Rio Sergipe, a exposio

    coletiva A Olhos Nus prope ao espectador que desnude seu olhar de todo e qualquer

    preconceito e se debruce sobre pessoas marginalizadas,

    individual e coletivamente, pelas mais diversas causas.

    O preconceito como um mecanismo sem mquina.

    Instalando-se sistematicamente em todas as instncias da vida

    de um indivduo, replicando-se, este mecanismo opera apenas

    com o propsito de fabricar cada vez mais preconceito. No

    demora a se tornar discurso, expandindo-se como um gs txico, por vezes atraindo

    multides inteiras como platia de seu espetculo desumanizante.

    Porm, que ningum se iluda: a prpria fotografia tambm tem l os seus

    preconceitos! Interpondo uma lente entre si mesmos e seus temas, fotgrafos

    inevitavelmente tendem a recortar e enquadrar a realidade, compor uma cena. O aparato

    os obriga a eleger, por exemplo, o que fica e o que no entra no quadro, o que domina o

    primeiro plano e o que retrocede para o fundo... Impem, nesse processo seletivo, um

    olhar pr-estabelecido pr-concebido - ao espectador. Instala-se o dilema. E agora?

    Como se refuta o irrefutvel? O que fazer para desnudar o olhar?

  • Foto de Tiago Oliveira.

    Imagens como num filme

    P&B da dcada de 50.

    Foto de Moema Costa. Um

    olhar transcendental e um

    colorido que encanta, ao

    comunicar a realidade

    indgena.

    A estratgia destes trs fotgrafos para despir o prprio preconceito no poderia

    ser outra, e nem mais eficaz: Durante um longo perodo, conviveram com as pessoas que

    retratam, transpondo a barreira transparente da objetiva e re-humanizando a relao entre

    fotgrafo e fotografado. Como os pssaros proibidos de Eduardo Galeano - escritor e

    ativista de esquerda falecido recentemente e a quem o nome do coletivo homenageia -

    seus olhares se infiltraram na realidade dessas pessoas permitindo cmera acessar suas

    verdades mais internas. O que acaba sendo impresso no papel fotogrfico so

    histrias de vida que assumem, intencionalmente ou no, uma postura poltica,

    um clamor de resgate aos direitos e dignidade da pessoa humana, inscrito na

    prpria face, descrito na prpria carne. Em nossa poca de imagens

    inflacionrias, de uma esttica voltada quase que exclusivamente para o consumo

    e de uma uniformizao que fascina, esvazia os espritos e os desumaniza,

    - para que se possa depois vender a promessa de satisfao e plenitude

    em 12 vezes e com at 50% de desconto - o olhar passarinho sobre essas

    pessoas e vivncias proibidas, excludas do discurso hegemnico e

    estigmatizadas pela histria nica, como uma convocao em regime de

    urgncia.

    Os trabalhos expostos compem uma interessante trade: Javier traz uma

    ocupao de sem-teto na periferia da capital de Aracaju, batizada de Novo

    Amanhecer, revelando uma inesperada dignidade e vontade de viver - e ser feliz - de

    pessoas que constroem seu direito moradia, negado pelo poder pblico, com o que a

    sociedade jogou fora. Moema viaja at Roraima e apresenta a surpreendente

    suburbanizao de populaes indgenas, em um processo de assimilaes, embates e

    perdas que merece um olhar atualizado, livre de esteretipos e convenes. Tiago retrata

    o dia-a-dia solitrio da sexagenria Magnlia, travesti pioneira de Aracaju, harmonizando

    o rigor esttico e a sensibilidade de quem produz uma obra ao mesmo tempo biogrfica e

    cinematogrfica, levando a expresso popular colocar tudo no preto e no branco at as

    ltimas conseqncias.

    O resultado que o lirismo, a poesia e, apesar dos pesares, a beleza dessas trs

    vises convergentes no perde sua fora de denncia e humanismo. Resta agora esperar

    que os olhares de quem visitou a exposio voltem a ser capazes de reconhecer, em seu

    entorno, em seu prprio cotidiano, a essas pessoas desprivilegiadas e invisibilizadas que

    estas imagens - polticas e poticas - representam e nos re-apresentam.

    *Luciano Freitas Servidor Pblico da Educao, desde 2009, e aluno do curso de

    Comunicao Social/Audiovisual-UFS, desde 2013.