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Trecho do livro Fedro Só então a alma do amante segue, com receio e pudor aquele que ama. Entretanto, o jovem que se vê mimado e honrado como um deus pelo seu amante, tem desperta em si a necessidade de amar. Se antes, os seus amigos ou outras pessoas lhe denegriram esse sentimento, afirmando ser vergonhoso tal consórcio amoroso, e se esses conselhos o afastaram do seu amante, o tempo que passa, a idade, a necessidade de amar e de ser amado, levam-no, de novo, aos braços do amante. Não é desígnio do fado que o malvado ame o malvado e que um homem virtuoso não possa ser amado pelo homem virtuoso. Quando o amado recebe o amante, que desfrutou da sua doçura e do seu convívio, compreende que o afeto de seus amigos e parentes em nada é comparável ao de um amante inspirado pelo delírio. Assim vivem, se vêem e se tocam, ora nos estádios, ora em outros lugares. Assim nasce essa emanação que Júpiter, quando amara Ganípedes, chamou de desejo. Esse desejo se insinua ao amante, e quando este se encontra cheio dele, transborda. Do mesmo modo que um zéfilo ou que um som refletido por um corpo sólido e polido, também as emanações da beleza, entrando pelos olhos através dos quais – como lhe é natural – atingem a alma, volta esta ao belo, estende as asas e, molhando-as, as torna capazes de gerar novas asas, inundando também de amor a alma do amado. Ele ama, mas sem saber o quê. Nem sabe, nem pode dizer o que aconteceu consigo; assim como um contaminado de oftalmia desconhece a origem de seu mal, assim também o amado, no espelho do amante, viu-se a si mesmo sem dar por isso. Na presença do amado a dor do amante se esvai, e o mesmo sucede com este na presença daquele. Quando o outro está longe, o amante sente tristeza, e da mesma forma esta sacode o amado, porque ele abriga o reflexo do amor – acreditando, contudo, que se trata de amizade, e não de amor…

Fedro (Trecho) Platão

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Page 1: Fedro (Trecho) Platão

Trecho do livro Fedro

Só então a alma do amante segue, com receio e pudor aquele que ama.

Entretanto, o jovem que se vê mimado e honrado como um deus pelo seu amante, tem desperta em si a necessidade de amar. Se antes, os seus amigos ou outras pessoas lhe denegriram esse sentimento, afirmando ser vergonhoso tal consórcio amoroso, e se esses conselhos o afastaram do seu amante, o tempo que passa, a idade, a necessidade de amar e de ser amado, levam-no, de novo, aos braços do amante. Não é desígnio do fado que o malvado ame o malvado e que um homem virtuoso não possa ser amado pelo homem virtuoso. Quando o amado recebe o amante, que desfrutou da sua doçura e do seu convívio, compreende que o afeto de seus amigos e parentes em nada é comparável ao de um amante inspirado pelo delírio. Assim vivem, se vêem e se tocam, ora nos estádios, ora em outros lugares. Assim nasce essa emanação que Júpiter, quando amara Ganípedes, chamou de desejo. Esse desejo se insinua ao amante, e quando este se encontra cheio dele, transborda. Do mesmo modo que um zéfilo ou que um som refletido por um corpo sólido e polido, também as emanações da beleza, entrando pelos olhos através dos quais – como lhe é natural – atingem a alma, volta esta ao belo, estende as asas e, molhando-as, as torna capazes de gerar novas asas, inundando também de amor a alma do amado. Ele ama, mas sem saber o quê. Nem sabe, nem pode dizer o que aconteceu consigo; assim como um contaminado de oftalmia desconhece a origem de seu mal, assim também o amado, no espelho do amante, viu-se a si mesmo sem dar por isso. Na presença do amado a dor do amante se esvai, e o mesmo sucede com este na presença daquele. Quando o outro está longe, o amante sente tristeza, e da mesma forma esta sacode o amado, porque ele abriga o reflexo do amor – acreditando, contudo, que se trata de amizade, e não de amor…