7
Amêijoa apanhada no feio é grave ameaça à saúde pública Todos os dias são recolhidas ilegalmente toneladas de amêijoa no estuário do Tejo. Um negócio pirata que vale milhões e para o qual alertam autarcas, autoridades e um estudo científico Pãgs. 14 a 21

feio é grave ameaça - ulisboa.ptªijoa-apanhada-no-Tejo... · o estuário do Tejo, todo o circuito co-mercial, desde a apanha, depuração, até ao consumidor final tem sido alvo

  • Upload
    lethu

  • View
    216

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: feio é grave ameaça - ulisboa.ptªijoa-apanhada-no-Tejo... · o estuário do Tejo, todo o circuito co-mercial, desde a apanha, depuração, até ao consumidor final tem sido alvo

Amêijoa apanhada no

feio é grave ameaçaà saúde públicaTodos os dias são recolhidas ilegalmente toneladas de amêijoa noestuário do Tejo. Um negócio pirata que vale milhões e para o qualalertam autarcas, autoridades e um estudo científico Pãgs. 14 a 21

Page 2: feio é grave ameaça - ulisboa.ptªijoa-apanhada-no-Tejo... · o estuário do Tejo, todo o circuito co-mercial, desde a apanha, depuração, até ao consumidor final tem sido alvo

Apanha Ilegalde toneladas de

no Tejoameaçasaúdepública

Centenas de pessoas retiramdiariamente do estuário do

Tejo cerca de 15 toneladas deamêijoa ilegal. Muita espalha-sepelo mercado nacional. Bivalves

que podem estar contaminadoscom toxinas e metais pesados.Um estudo científico, autarcase autoridades alertam parauma grave ameaça para a saúde

pública que o consumo desta

amêijoa pode significar. Noestuário mistura-se um mundode miséria e um negócio pirataque vale milhões de euros

Page 3: feio é grave ameaça - ulisboa.ptªijoa-apanhada-no-Tejo... · o estuário do Tejo, todo o circuito co-mercial, desde a apanha, depuração, até ao consumidor final tem sido alvo

LucianoAlvarez Texto

Enric Vives-Rubio Fotos

Todos os dias, quando a maré bai-xa, centenas de pessoas entram Tejoadentro entre a Trafaria e Alcochete.Munidos de sachos, ancinhos, facasde mariscar ou mesmo enxadas, fa-mílias inteiras, homens, mulheres e

crianças, andam quilómetros paraescavar o lodo. Buscam todo o gé-nero de bivalves, mas especialmenteamêijoa-japonesa. Para muitos, estaactividade ilegal é o único sustento.Mas há também um circuito orga-nizado de intermediários que com-

pram a amêijoa a estes mariscadoresa preços irrisórios para a levar para omercado espanhol, onde a procura é

grande, ou para a passar para o mer-cado nacional. Tudo de forma ilegal.

Muitos destes bivalves que che-

gam ao prato dos portugueses não

passam por qualquer análise, trata-mento ou depuração e podem estarcontaminados com toxinas e até me-tais pesados, levantando um graveproblema de saúde pública. Existem

também impactos ambientais nega-tivos, causados especialmente pelacaptura com uma técnica de arrasto:

ganchorras atreladas a barcos (apa-relhos com uma espécie de lâminas

que rasgam o fundo do rio), por mer-gulho, ou uso de berbigoeiros, umaarte que revolve o solo do Tejo deforma manual.

Desde o dia 3 deste mês que a

apanha de bivalves está proibida noestuário do Tejo "devido à presençade fitoplâncton produtor de toxinasmarinhas ou de níveis de toxinas oude contaminação microbiológica aci-

ma dos valores regulamentares", in-forma o Instituto Português do Mare da Atmosfera (IPMA).

Um estudo científico que reuniudepartamentos de investigação devárias universidades, realizado entreJaneiro e Dezembro do ano passado,revela existirem mais de 1700 maris-cadores, cerca de 1500 ilegais, queretiram do estuário a maioria dos 19

mil quilos de amêijoa-japonesa pordia (dez mil pelos aparelhos de arras-to) num negócio na sua larga parte

pirata que, em 2014, terá envolvidouma verba estimada entre os 10 e os

23 milhões de euros.Se se tiver em conta que os 182

apanhadores legais licenciados em2014 registaram em lota nesse anoum valor de cerca 1,6 toneladas pordia e as apreensões feitas pela GNRnos primeiros quatro meses desteano (58 toneladas a nível nacional),percebe-se melhor a dimensão destaactividade completamente desregu-lada.

Autarcas da região do estuárioouvidos pelo PÚBLICO falam de um"problema gravíssimo", "assusta-dor", "dramático" e com "gravesconsequências para a saúde públi-ca e ambiente". Dizem-se de "mãosatadas" por não terem poderes pa-ra a resolução do caso e já apelarama diversos ministérios, mostrandoestar "totalmente disponíveis paracolaborar". "É um problema que to-da a gente conhece, mas que poucosquerem resolver", diz Luís MiguelFranco, presidente da Câmara deAlcochete.

Page 4: feio é grave ameaça - ulisboa.ptªijoa-apanhada-no-Tejo... · o estuário do Tejo, todo o circuito co-mercial, desde a apanha, depuração, até ao consumidor final tem sido alvo

O PÚBLICO contactou o Ministériodo Mar para saber que medidas tinhaem curso para combater esta activi-dade ilegal. A resposta veio atravésde um comunicado. "Os diferentescontornos do problema e a nature-za inorgânica dos apanhadores, queagem a título individual, sem qual-quer estrutura ou organização deenquadramento, exigem que a res-

posta a dar ao problema seja pensadade forma integrada", lê-se no texto.O comunicado acrescenta que o IP-MA "continuará o seu programa de

acompanhamento e monitorizaçãoda qualidade das águas e as autorida-des fiscalizadoras mantêm a pressãono combate às ilegalidades", mas re-conhece que "estes dois factores não

bastam" . O ministério aponta para anecessidade de "um plano de gestãointegrado" que o Governo irá "de-senvolver com as autarquias e outros

parceiros locais para criar condições

para a regulamentação da apanha noestuário do Tejo".O impacto de um estudoO estudo, intitulado "Amêijoa-japo-nesa, uma nova realidade no rio Te-

jo, reestruturação da pesca e pres-são social versus impacto ambien-tal", juntou os investigadores João

Ramajal (do Centro em Rede de In-

vestigação em Antropologia, CRIA,da Faculdade de Ciências Sociaise Humanas da Universidade Novade Lisboa e do Centro de Ciênciasdo Mar e do Ambiente, MARÉ, daFaculdade de Ciências da Univer-sidade de Lisboa), David Piccard(também do CRIA), José Lino Costa

(MARÉ e Instituto Português do Mare da Atmosfera, IPMA), Frederico B.Carvalho (MARÉ), Miguel B. Gaspar

(IPMA e Centro de Ciências do Mar,da Universidade do Algarve) e Pau-la Chaínho (MARÉ).

O trabalho teve como objectivo a

"caracterização da pesca de amêi-joa-japonesa e a caracterização docircuito comercial dos exemplarescapturados no estuário do Tejo,providenciando o conhecimen-to científico essencial para apoiaruma proposta de regulamentaçãode pesca sustentável às entidadespúblicas". O quadro que este estu-do traça é negro: começa logo porrevelar que, embora não exista umregulamento específico para a pescade R. philippinarum (nome científico

para amêijoa-japonesa) em Portugal,"a pesca deste bivalve no estuário do

Tejo é enquadrada através da publi-cação da Portaria 1228/2010, de 6 de

Dezembro, onde aparece elencadacom a designação genérica de Rudita-

pesspp., na lista de espécies animaismarinhas que podem ser objecto de

apanha". "Apesar deste en- ¦*

Page 5: feio é grave ameaça - ulisboa.ptªijoa-apanhada-no-Tejo... · o estuário do Tejo, todo o circuito co-mercial, desde a apanha, depuração, até ao consumidor final tem sido alvo

quadramento legal específico parao estuário do Tejo, todo o circuito co-

mercial, desde a apanha, depuração,até ao consumidor final tem sido alvode uma gestão deficitária, quer peladimensão da actividade, em expan-são, que envolve um número cadavez maior de pessoas, na sua maioriailegais, quer aos meios limitados dasautoridades públicas competentes na

fiscalização", acrescenta.Com base em diversas metodolo-

gias aplicadas no terreno, os investi-

gadores chegaram a uma estimativade um total de 1724 apanhadores de

amêijoa-japonesa no estuário dorio Tejo, "sendo a grande maioriaapanhadores apeados com apanhamanual, com sacho, ancinho, facade mariscar ou enxada (1111 apanha-dores) e com berbigoeiro (431)". Asartes com menor representatividade"são o mergulho em apneia e comberbigoeiro com vara, perfazendocerca de 1% da média de apanhado-res diários no estuário do rio Tejo".

Os investigadores concluem ain-da que a maioria dos apanhadores"exerce a sua actividade durantetodo o ano e em todos os tipos demaré (47%)". No entanto, uma boa

proporção efectua a apanha apenasquando a maré está baixa (42%), emparticular os apanhadores que estãomais dependentes da área disponí-vel que surge quando a maré baixa,como é o caso dos apeados e comberbigoeiro.

Relativamente ao esforço sema-nal, a maioria dos inquiridos indi-cou que "exerce esta actividade 6dias por semana (33%), havendotambém uma elevada proporçãode apanhadores que o fazem todosos dias da semana (22%) e 5 dias porsemana (21%).

Os resultados do estudo apon-tam para um esforço de pesca (idasà apanha) anual "maior para os apa-nhadores apeados (167.327 unidadesde esforço/ano)". "No entanto, o in-tervalo de rendimento (5-10 quilos/dia) desses apanhadores é inferiorao das restantes artes, pelo que as

capturas diárias são dominadas pe-los apanhadores por arrasto comganchorra, cujo rendimento diáriovaria entre os 300 e os 1200 kg."

A disparidade destes e de outros

valores apresentados no estudo fi-

cam a dever-se ao facto de os apa-nhadores retirarem quantidadesmuito variáveis de amêijoa do rio,além das variações de apanha nosdiversos meses do ano.

Os investigadores estimaram umnúmero aproximado de 35 interme-diários (centros de depuração e ex-

pedição e compradores com locaisde armazenamento) "a distribuir 5

toneladas/semana/ cada para Espa-nha, perfazendo um total estimadoem cerca de 9400 toneladas no ano

de 2014".A lei em vigor estabelece um má-

ximo de 80 quilos por dia por apa-nhador legal no estuário do Tejo.Em 2014, foram emitidas 182 licen-

ças, o que pode perfazer um total de

14,7 toneladas por dia como limitemáximo de capturas legais. Os regis-tos das descargas em lota em 2014,cedidos pela Direcção-Geral dos Re-cursos Naturais aos investigadores,apontam para um valor aproximadode 1,6 toneladas por dia. "Estes dados

agregam os registos nas capitanias de

Cascais, Lisboa e Setúbal e Sesimbra,tendo em conta que os apanhadorespodem registar as suas capturas nas

capitais imediatamente a montante e

jusante daquela onde está registada a

sua licença. Tendo em conta o inter-valo de esforço anual estimado, quevaria de 4000 a 17.000 toneladas,grande parte das capturas não são

registadas em lota e entram ilegal-mente no circuito comercial nacio-nal. Foram identificadas diferentesvias de canalização da amêijoa-japo-nesa até ao consumidor final, fora docircuito legal. Foi observada a vendadirecta efectuada por apanhadores a

mercados, restaurantes e cafés. Nãofoi possível quantificar este volumedevido ao elevado número transac-ções efectuadas a este nível", revelao estudo.

9 mil toneladas sem controloOutra forma ilegal de comerciali-zação identificada, acrescentam os

investigadores, "foi o transporte de

amêijoa-japonesa por apanhadoresem viaturas próprias e de lotes de

amêijoa com rótulos falsos, sendodifícil obter informação junto dos in-

tervenientes, sempre reticentes emrevelar detalhes". Também a GNRjá

detectou a falsa rotulagem, tendoinstaurado dois processos-crime adois intermediários.

Os autores do estudo apuraramainda que a amêijoa-japonesa é ven-dida pelos mariscadores aos interme-diários "entre os 8 cêntimos e 4 euros

por quilo" e "chega ao consumidor a

preços que podem variar entre os 8e os 12 euros/quilo". Autarcas e mili-tares da GNR dizem que em alturasde maior procura, como no Verãoou fins-de-semana, o preço mais alto

pode chegar aos 5 euros/quilo."Verificou-se que 90% das capturas

de amêijoa-japonesa são expedidaspara Espanha, podendo representar9000 toneladas/ano, sem controlo

por parte das autoridades, estandoas mais-valias deste recurso a serdeslocalizadas para o país vizinho",salientam.

Segundo o estudo, os impactosambientais "são diferenciados en-tre as diferentes artes de apanha debivalves e devem-se maioritariamen-te ao revolvimento dos sedimentosem zonas estuarinas". A apanha re-alizada pelos apanhadores apeados"aparenta ser a menos lesiva sobreo ecossistema (...) uma vez que asua intervenção restringe-se as áre-as intertidais e o tempo de trabalhoé limitado ao período e amplitudedas marés". Continua o estudo: "A

ganchorra rebocada por embarcaçãoé mais lesiva para o ecossistema porintervencionar uma maior profundi-dade do sedimento, devido à maiordimensão dos dentes, à extensãoda área da actuação e tempo médiode operação superior desta arte no

Após apanhar a amêijoa noSamouco,a GNR regressou aLisboa para a devolver ao rio noPoço do Bispoestuário." Esta arte de apanha temainda "consequências ao nível ben-tónico [comunidade de organismosque vive no substrato de ambientes

aquáticos], seja pela alteração da sua

biologia, suspensão de nutrientes e

consequente alterações na composi-ção química e biologia na estabilida-de do sedimento".

Perigo para a saúdeEm termos de recomendações, os

investigadores dizem ser "necessá-rio um plano estratégico de apoio à

Page 6: feio é grave ameaça - ulisboa.ptªijoa-apanhada-no-Tejo... · o estuário do Tejo, todo o circuito co-mercial, desde a apanha, depuração, até ao consumidor final tem sido alvo

gestão da apanha desta espécie noestuário do Tejo, evitando uma po-tencial exploração excessiva e conse-

quentemente a sua exaustão, comoverificados noutros ecossistemas" e"de uma urgente regularização detoda a cadeia-de-valor, visando adap-tar o esforço de pesca ao estado de

conservação dos bancos de amêijoa-japonesa".

"O circuito comercial é deficientee ineficiente face a grande expansãodesta espécie no estuário do Tejo e

requer a colaboração e participaçãode todos os intervenientes para a re-

gulamentação desta actividade eco-nómica face a uma nova realidade",recomendam no documento que foi

entregue no final do ano passado à

Direcção-Geral de Recursos Naturais,

Segurança e serviços Marítimos tute-lada pelo Ministério do Ambiente.

Os problemas graves para a saúde

pública, abundantemente referidosno estudo, é o que mais preocupa as

diversas entidades ouvidas pelo PÚ-

BLICO. Segundo explicou Paula Cha-

ínho, bióloga do MARÉ, o estuáriodo Tejo está, em termos de salubri-dade, classificado como área de ní-vel C. Esta classificação significa quepara estes bivalves serem vendidos e

consumidos teriam de ser colocadosem depuração prolongada em meionatural, numa zona de nível A, ondeos bivalves podem ser apanhados e

consumidos. Acontece que em Por-

tugal não está definida em termos de

regulamentação nenhuma área de

transposição para essa depuraçãoprolongada, não podendo assim le-var a cabo esse processo.

A amêijoa japonesa apreendida

pela GNR é assim lançada ao estuáriodo Tejo, podendo acabar por voltaràs mãos dos apanhadores ilegais.

Paula Chaínho não tem dúvidasde "que o consumo desta amêijoa só

poderia ser feito após um processa-mento industrial", ou seja, cozida.Consumida sem tratamento, acres-

centa, "pode constituir um graveproblema para a saúde pública",podendo causar doenças como in-

toxicação diarreica.A bióloga aconselha que os portu-

gueses consumam apenas amêijoa"devidamente ensacada e rotuladacom a autorização ao consumo" e

lembra que a venda de amêijoa emtabuleiros ou outros recipientes e

sem rótulos, como acontece em mui-tos restaurantes, "é proibida".

Page 7: feio é grave ameaça - ulisboa.ptªijoa-apanhada-no-Tejo... · o estuário do Tejo, todo o circuito co-mercial, desde a apanha, depuração, até ao consumidor final tem sido alvo