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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL FERNÃO LOPES E A RETÓRICA MEDIEVAL Editora da UFF

Fernao Lopes e a Retorica Medieval

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Essa importante historiadora brasileira faz aqui um estudo da retórica presente na obra do cronista Fernão Lopes, dito "pai da historiografia portuguesa", em busca de legitimar a nova dinastia que tomara o poder, a dinastia de Avis.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL

FERNÃO LOPES

E A RETÓRICA MEDIEVAL

Editora da UFF

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A Eslanle Meclieml da EdUFF tem por finalidade tornar acessíveis aos estudiosos da Idade Média fontes primúrias medievais c teses doutorais, bem como outros estudos

considerados relevantes, sobre o medievo.

Este número acolhe a tese de doutorado, revista c atualizada. de Maria do Amparo Tavares Ma leva L defendida em 19X2, na Universidade de São Paulo. Tendo como corpus a primeira pat1c da Crônica de D. Joiio I, de Fernão Lopes. nela observa os recursos retóricos utilizados pelo cronista em defesa da ascensão da Dinastia de Avis. ressaltando nesse processo a herança dos clássicos. notadamente Aristóteles c Cícero. c da ars praedicandi que no medievo deu scquência à arte da oratória persuasiva.

9788522 805648

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m aria do Amparo Tavares Ma levai é, sem dú­vida, uma das maiores incentivadoras dos estudos medievais no Brasil. Como pes­

quisadora, seu trabalho remonta ao fina l da década de setenta, a partir de quando passou a produzir textos científicos e a divulgar a Idade Média sis tematicamente. Se da sua produção acadêmica temos muito a destacar­ainda que não seja possível, dada a sua amplitude, comentar cada uma das suas expressões , cabe desde já ressaltar que seu envolvimento com o medievo pode ser verificado, também, nas várias atividades de promoção c difusão que desenvolve. Neste conjunto, podemos sublinhar, entre outras iniciativas, a produção de CDs e a participação na organização e/ou coordenação geral de quase duas de7cnas de eventos nos últimos dez anos.

Possui doutorado em Letras, pela USP ( 1982), e estágios de pós-doutorado na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa, 1983), na USP (1989-1990) e na UNICAMP (2006-2007). Professora aposentada da UFF, concebeu e dirige, na EdUFF. a série Estudos Galegos e, no m'omcnto, é co-responsável pela Estante Medieval. Nesta instituição fundou ainda o Núcleo de Estudos Ga legos. Atualmente, leciona na UERJ. opdejá orientou dezenas de trabalhos. Também na UERJ, ~ndou e coordena o Programa de Estudos Galegos c seu Leitorado, mantido por convênio com a X unta de Galícía.

Suas pesquisas mais relevantes estão voltadas para as atualizações da Idade Média nas literaturas galega. portuguesa c brasileira. Responsável por uma vasta produção acadêmica, tem recebido nos últimos anos o reconhecimento da qualidade do seu trabalho, dentre outras formas. por meio do Prociêncía I UERJ, no qual tem sido contemplada desde 1997. e pelas várias premiações que já obteve, como as conferidas pela União Brasileira de Escritores e pela Academia Carioca de Letras. Da sua vasta produção, destacam-se Mara1•illras de Seio Ttago (Niterói: EdUFF. 2005), Poesia medieval no Brasil (Rio de Janeiro: Á gora da Ilha. 1999), Rastros de Eva no imaginário ibérico (Santiago de Compostela: Laiovento. 1995) e "Humanismo"'(in Literatura portuguesa em per.1pectiva, dirigida por Massaud Moisés. Vol. 1: Trovadorismo. Humanismo. São Paulo: Atlas, 1992, p. 97-204).

Além de ter presidido a Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) durante duas gestões (2005-2007 c 2007-2009), integra várias iniciativas relacionadas a núcleos de pesquisa. esse sentido. é líder. desde 1996, de grupo registrado na base de dados do CNPq; coordena a parte brasileira do Projeto de Cooperação Internacional UERJ (CA PES) I Universidade da Corunha (MECD) sobre linguistica e literatura: participa do GT da ANPOLL. do qual também foi coordenadora; c é pesquisadora associada do Programa de Estudos Medievais da UFRJ.

Nesta publicação. retoma a tese A revolução pelos ornamentos: Femào Lopes, defendida no inicio da década de 80, na USP. Mantendo como eixo central sua preocupação em relação à análise da Crónica de/Rei dom João I da boa memória. com destaque para as técnicas destinadas à persuasão presentes no discurso de Fernão Lopes. a autora realiza a atualização bibliográfica do tema e incorpora uma súmula da história da ars praedicandi. Dessa fonna. proporciona-nos, não apenas a satisfação da leitura de um estudo cuidadoso e apoiado em ampla documentação, mas também o contato com as obras mais recentes sobre Fernão Lopes e uma aprofundada renexào sobre a arte do discurso na Idade Média c sua relação com

a herança clássica c o substrato judaico-cristão.

Portanto. o livro ora publicado. de interesse particular para as âreas de Letras. História c Filosofia. certamente contribuirá para o enriquecimento dos debates realizados por pesquisadores e estudiosos.

Lei/a Rodrigues da Silva Professora de História Medieval da UFRJ

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Editora da UFF

Nossos livros estão disponíveis emhttp://www.editora.uff.br (impressos)

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Livraria IcaraíRua Miguel de Frias, 9, anexo, sobreloja, Icaraí,

Niterói, RJ, 24220-900, BrasilTel.: +55 21 2629-5293 ou 2629-5294

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Dúvidas e sugestõesTel./fax.: +55 21 2629-5287

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FERNÃO LOPES

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A RETÓRICA MEDIEVAL

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Copyright © 2010 Editora da Universidade Federal Fluminense – EdUFFDireitos dessa edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal FluminenseRua Miguel de Frias, 9 – Anexo – Sobreloja – Icaraí - Niterói – CEP: 24220-900 – RJ – BrasilTel: (21)2629-5827 – Fax: (21)2629-5288 – http://www.propp.uff.br/eduff – [email protected]

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa da Editora.

Edição de texto: Maria do Amparo Tavares MalevalEditoração eletrônica: Caroline Moreira ReisColaboração na pesquisa iconográfica: Laís M. da Costa, Glicia S. Campos e Pe. Valdir P. LimaRevisão: Fernando Ozorio Rodrigues e Isadora Tavares MalevalCapa: Moema Mariani (segundo projeto original de José Luis Stalleiken Martins)Diagramação e supervisão gráfica: Casa Doze Projetos & EdiçõesIlustração da capa: Iluminura da página inicial do manuscrito apógrafo, que remonta àsprimeiras décadas do século XVI, da Crônica de D. João I – parte primeira, escrita porFernão Lopes no século XV. Documento cedido pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo(ANTT) – Cota: Crónicas, nº 8 – Código de Referência: PT-TT-CRN/8.

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEReitor: Roberto de Souza Salles

Vice-Reitor: Emmanuel Paiva de AndradePró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Diretor da EdUFF: Mauro Romero Leal PassosDiretor da Divisão de Editoração e Produção: Ricardo Borges

Diretora da Divisão de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de MoraesAssessora de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos

COLEÇÃO ESTANTE MEDIEVAL

Direção: Fernando Ozorio Rodrigues (UFF)Maria do Amparo Tavares Maleval (UFF/UERJ)

CONSELHO CONSULTIVOÂngela Vaz Leão (PUC-Minas)Célia Marques Telles (UFBA)

Evanildo Calvacante Bechara (UERJ/UFF/ABL)Gladis Massini-Cagliari (UNESP)

Hilário Franco Júnior (USP)José Rivair Macedo (UFRGS)

Leila Rodrigues da Silva (UFRJ)Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (USP)

Luís Alberto de Boni (PUC- RS)Mário Jorge da Motta Bastos (UFF)

Massaud Moisés (USP)Vânia Leite Fróes

Yara Frateschi Vieira (UNICAMP)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M 248 Maleval, Maria do Amparo TavaresFernão Lopes e a retórica medieval / Maria do Amparo Tavares – Niterói: Editora da Univer-

sidade Federal Fluminense, 2010.

256 p.; il.; 23 cm - (Coleção Estante Medieval, v.5, 2010)Bibliografia: p.243ISBN: 978-85-228-0564-81. Fernão Lopes. 2. Crônica. 3. Retórica. I. Título. II. Série

CDD 909

COMISSÃO EDITORIAL DA UFF

Mauro Romero Leal Passos (Presidente)Ana Maria Martensen Roland Kaleff

Gizlene NederHeraldo Silva da Costa MattosHumberto Fernandes Machado

Juarez DuayerLivia Reis

Luiz Sérgio de OliveiraMarco Antonio Sloboda Cortez

Renato de Souza BravoSilvia Maria Baeta Cavalcanti

Tania de Vasconcellos

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Maria do Amparo Tavares Maleval

FERNÃO LOPES

E

A RETÓRICA MEDIEVAL

Niterói - RJ

2010

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Agora vemos em espelho e de maneira confusa,

mas, depois, veremos face a face.(Paulo aos Coríntios, I, 13-12)

A verdade, se ela existe, Ver-se-á que só consiste

Na procura da verdade, Porque a vida é só metade.

(Fernando Pessoa)

Para Isadora, filha queridaque comigo partilha do gosto pela pesquisa,

pela busca da verdade,mesmo sabendo-a fugidia.

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AGRADECIMENTOS

Aos Mestres Massaud Moisés e Luís Filipe Lindley Cintra (in memoriam),pela orientação sábia e prestimosa durante o Doutorado, respectivamenteem São Paulo (USP, 1978-1982) e Lisboa (Fundação Kalouste Gulbenkian,maio a agosto de 1979).

Aos que me ajudaram na aquisição de material bibliográfico, como EmmanuelCarneiro Leão, Maximiano de Carvalho e Silva e Rosalvo do Valle na épocada elaboração da tese; e Andréia Cristina Frazão da Silva, Carlos PauloMartínez Pereiro, Cristina Sobral, Laura Tato, Maria Ângela Beirante, PauloAlexandre Cardoso Pereira, Teresa Amado e Yara Frateschi Vieira, quandoda sua revisão.

Aos colegas amigos da UERJ e de outras instituições, particularmente aosmais próximos em relação aos estudos galego-portugueses e medievais – comoos do Programa de Estudos Medievais da UFRJ e do Núcleo de EstudosGalegos da UFF –, pelo apoio e incentivos constantes.

Aos meus alunos e orientandos, pela oportunidade do diálogo constante e pordemonstrarem, com o seu interesse, que a minha dedicação aos estudos medie-vais não tem/terá sido vã.

À Xunta de Galicia, por fornecer subsídios à publicação dos títulos da ColeçãoEstante Medieval, através do PROEG/UERJ e do NUEG/UFF.

Ao ProCiência / UERJ e ao CNPq, pelo apoio financeiro imprescindível àpesquisa para a presente refundição da minha tese de Doutorado.

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APRESENTAÇÃO............................................................................Fernando Ozorio Rodrigues

INTRODUÇÃO..........................................................................

FERNÃO LOPES........................................................................1. Vida..................................................................................2. Formação intelectual........................................................3. Época................................................................................4. Obras................................................................................5. Fontes historiográficas.....................................................

A RETÓRICA MEDIEVAL........................................................1. A retórica clássica.............................................................

1.1. Origem e sistematização............................................1.2. Os gêneros de discurso. A crônica............................1.3. As fases de elaboração do discurso...........................1.4. Revalidação da retórica na atualidade......................

2. A cristianização da retórica..............................................2.1. A herança latina.........................................................2.2. A cristianização.........................................................2.3. As artes praedicandi.................................................2.4. Recapitulação............................................................

A RETÓRICA DA CRÔNICA DE D. JOÃO I – parte primeira1. Da obra.............................................................................

1.1. Considerações preliminares......................................1.2. Valoração..................................................................1.3. Assunto, tema(s) e personagens principais...............

2. Do prólogo ou exórdio.....................................................2.1. A imparcialidade apregoada......................................2.2. Um arquivista à busca de provas..............................2.3. A negação retórica da retórica...................................

3. Da consciência retórica na obra........................................3.1. A interação com os interlocutores.............................3.2. A dispositio interna...................................................3.3. As sequências narrativas..........................................

4. Da narratio alegórica......................................................

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SUMÁRIO

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10 FERNÃO LOPES E A RETÓRICA MEDIEVAL

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4.1. As preliminares revolucionárias...............................4.2. A sequência das lutas...............................................

5. Da confirmatio do providencialismo..............................5.1. O sermão de Frei Rodrigo de Sintra.......................5.2. O Mestre, o Evangelho Português e a ladainha dos heróis.................................................................5.3. Uma digressio significativa.....................................

6. Um discurso forense como peroratio.............................6.1. A primeira parte.......................................................6.2. A segunda parte.......................................................6.3. A parte final.............................................................

7. O panegírico do Condestável........................................7.1. O santo cavaleiro.....................................................7.2. O santo Condestável e o Mestre providencial.........7.3. Vozes discordantes..................................................

8. Facécia e refutatio..........................................................8.1. A ‘Sétima Idade’ e outras facécias do narrador.......8.2. Facécias dos homens do Mestre..............................8.3. Escárnios e outras facécias dos opositores..............

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................

REFERÊNCIAS.........................................................................1. Fontes primárias – obras de Fernão lopes.........................2. Fontes auxiliares...................................................................3. Sobre o autor e a época........................................................4. Fundamentos teóricos..........................................................5. Dicionários...........................................................................

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APRESENTAÇÃO

A obra Fernão Lopes e a retórica medieval é mais um expressivoresultado do incansável trabalho de Maria do Amparo Tavares Maleval emsuas constantes pesquisas sobre a Idade Média e as literaturas galega e portu-guesa. O título enriquece sobremaneira a coleção Estante Medieval, seja pelaimportância do escritor estudado, seja pela percuciente exegese que da suaprincipal obra – a primeira parte da Crônica de D. João I – é estabelecida pelaespecialista, desenvolvendo minucioso estudo sobre aspectos retóricos dodiscurso do eminente cronista luso.

Sua proposta consiste em refundir a tese de doutoramento que de-fendeu na USP em 1982, intitulada A revolução pelos ornamentos: FernãoLopes. Nela demonstrou que Fernão Lopes, ao contrário do que afirma quandodiz que, ao narrar os acontecimentos históricos, buscou a verdade clara e nua,sem ornamentos em seu discurso, teria usado, sim, de recursos retóricos quelhe servem de argumentos para justificar a ascensão da Dinastia de Avis, nafigura de D. João I; e, em especial, para confirmar que a Revolução de 1383-1385 em Portugal, quando do interregno proveniente da morte de D. Fernando,teve, entre outros fatores que lhe foram favoráveis, as graças doprovidencialismo.

Como pressupostos teóricos, a autora privilegiou a retórica sis-tematizada por Aristóteles, divulgada na Idade Média principalmente pelaobra de Cícero, De inventione, e da Retorica ad Herennium também a eleatribuída por muito tempo. Também destacou a importância da arte de pregarmedieval, fundamentada na retórica clássica e na tradição da prédica judaico-cristã, para a época, o contexto de produção e o discurso do cronista. Alémdisso, foram considerados importantes estudos interdisciplinares que, já noséculo XX, atualizaram a retórica.

O resultado é um texto profundo, de alta erudição, de leituraextremamente agradável. Se muito acrescenta aos que buscam fontes primáriaspara ler, entender e pesquisar sobre Fernão Lopes, também será de enormevalia para os que necessitam informar-se sobre a retórica, desde sua concep-

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ção clássica, passando pela sua cristianização no Ocidente – que redundou naarte de pregar –, até à sua revalorização implementada por estudiosos no finaldo século XX.

Portanto, este quinto volume da coleção Estante Medieval, iniciadaem 2006 na Editora da Universidade Federal Fluminense e que vem sendopatrocinada pela Xunta de Galicia através de convênios mantidos com a UERJe a UFF, faz juz ao objetivo que norteou-lhe a criação: tornar acessíveis aosestudiosos da Idade Média fontes primárias medievais e teses de doutoradojulgadas inovadoras, bem como outros estudos considerados relevantes sobreo medievo.

Fernando Ozorio RodriguesCodiretor da Coleção Estante Medieval

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13 FERNÃO LOPES E A RETÓRICA MEDIEVAL

Folha inicial de cópia apógrafa, que remonta às primeiras décadas do século XVI, daCrônica de D. João I – parte primeira, escrita por Fernão Lopes na primeira metade doséculo XV [c. 1443]. Documento cedido pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT)– Cota: Crónicas, nº 8 - Código de Referência: PT-TT-CRN/8

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14 FERNÃO LOPES E A RETÓRICA MEDIEVAL

Instrumento de aprovação do Testamento do Infante D. Fernando, de 18/08/1437, escritopelo seu escrivão da puridade Fernão Lopes, que, dentre outros cargos importantes, comoo de cronista-mor, era também tabelião geral do reino. O Infante assina o documento àesquerda, firmado à direita pelo autor. É um dos raros documentos autógrafos de FernãoLopes. Reproduzido por Anselmo Braamcamp Freire em sua edição da Crônica de D.João I, publicada pelo Arquivo Histórico Português, 1915.

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Este livro acolhe a minha tese de doutoramento refundida. Com otítulo A revolução pelos ornamentos: Fernão Lopes, foi elaborada sob a ori-entação do Professor Doutor Massaud Moisés e defendida em 1982 na Uni-versidade de São Paulo.

A hipótese que norteou-me as reflexões diz respeito à negação‘retórica’ que o genial primeiro cronista-mor de Portugal estabelece no prólo-go da Crónica delRei dom João I da boa memória, parte primeira – de quenela o leitor ou ouvinte não encontraria “fremosura e novidade de pallavras”,mas sim a “clara” e “nua” “çertidom da verdade” (LOPES, 1977, p. 2-3).Então, intentei demonstrar que Fernão Lopes usou, sim, de ornamentos váriospara ‘vestir’ o discurso factual.

No entanto, a sua não é uma retórica vazia. A linguagem figuradaserve de argumento para justificar a ascenção da Dinastia de Avis, notadamentepara confirmar o providencialismo em torno da Revolução de 1383-1385,quando do interregno proveniente da morte de D. Fernando. Encabeçada peloMestre de Avis D. João, contra todas as expectativas iniciais saiu-se vitoriosa epossibilitou a esse filho ilegítimo de D. Pedro I tornar-se rei, eleito em cortes.

Dentre os pressupostos teóricos, escolhidos a partir da própria indica-ção da obra, privilegiei a retórica sistematizada por Aristóteles, divulgada na IdadeMédia principalmente pela obra juvenil de Cícero, De inventione, e da Retoricaad Herennium que se lhe atribuiu por séculos. Também levei em conta estudosimportantes, interdisciplinares, que no século XX revalidaram a retórica.

Além de proceder à atualização de dados e da exegese da obra,acrescentei ao ensaio de 1982 uma súmula da história da ars praedicandi,originada dos substratos retóricos clássico e judaicocristão, que constituiuuma das artes do discurso na Idade Média, ao lado da epistolografia e dagramática. E busquei destacar a importância dessa arte na corte dos primeiros reisda Dinastia de Avis, em que o nosso cronista ocupou cargos de alto prestígio.

INTRODUÇÃO

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16 FERNÃO LOPES E A RETÓRICA MEDIEVAL

Este livro compõe-se de três partes. Na primeira, foramestabelecidas algumas considerações sobre o autor, sua formação, o contextode produção das suas crônicas, a interligação entre elas, e a tradição literáriade que foi produto – incluindo a parenética e a historiografia. Na segunda,reportei-me à história da retórica e sua cristianização no Ocidente, redundandona arte de pregar. E na terceira, foram analisados elementos retóricos da crôni-ca escolhida, a partir da teoria da elaboração dos discursos, focalizando-se ele-mentos da dispositio e da elocutio usados conscientemente pelo autor.

Ao proceder às leituras necessárias à atualização bibliográfica, den-tre os muito bons estudos desenvolvidos sobre Fernão Lopes a que então tiveacesso – como os de Maria Ângela Beirante (1984), João Gouveia Monteiro(1988) e Teresa Amado (1991 e 1997) –, encontrava-se o de Luís de SousaRebelo (1983), sobre A concepção do poder em Fernão Lopes. Embora todostenham sido extremamente úteis à revisão do meu trabalho, neste momentogostaria de reportar-me a este último por ter sido agradavelmente surpreendidacom certas informações que julgo aproximadas ou semelhantes ao meu per-curso de envolvimento com a obra do cronista.

Assim sendo, Luís de Sousa Rebelo (1983, p. 10) inicia a sua obracom observar a coincidência entre a publicação da mesma (1983) e o sextocentenário da Revolução de 1383, que constitui o assunto por excelência, oápice da obra conhecida de Fernão Lopes. Coincidência que pode ser observadatambém com relação ao oitavo centenário do nascimento de São Francisco deAssis, que Rebelo indiretamente homenageia, ao destacar a importância dofranciscanismo nos sucessos da Revolução e na Dinastia de Avis a que deu ori-gem, bem como a sua influência na escrita das crônicas de Fernão Lopes.

Frisa Rebelo (1983, p. 10) que “mais por acaso do destino do quepor deliberada intenção” isto se deu. E que o seu livro recolhe e desenvolveestudos que a partir de 1980 vieram a público, sob a forma de conferência emevento (1980) ou de participação em livro-homenagem (1981).

Ora, a minha grata surpresa deveu-se ao fato de que, também por coin-cidência, por essa mesma época eu trabalhava na minha tese de doutorado, inician-do estudos sobre Fernão Lopes em 19781 e coroando-os com a defesa da tese em1982 (ano em que Rebelo assina o Prefácio do seu livro).

1 Desenvolvi pesquisas inclusive em Lisboa, durante alguns meses (de maio a agosto de1979), como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian e sob a orientação do ProfessorDoutor Luís Filipe Lindley Cintra.

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Mas as afinidades dos meus estudos, embora mais modestos, comos de Rebelo não se limitam a este acaso: em minha tese, destaquei a herançada retórica de Aristóteles em Fernão Lopes. E defendi que o discurso do cro-nista é predominantemente judicial-deliberativo, sem exclusão do epidítico –o que, de certa forma, coincide com os três planos que Rebelo acata na obra deFernão Lopes: ético-político, jurídico e providencial (REBELO, 1983, p. 18).

Ora, os dois primeiros planos relacionam-se aos discursos deliberativoe judiciário, que têm por objetivo a avaliação da utilidade, da honestidade2 , dalegalidade das causas; e o providencialismo se apresenta como o argumento queos completa, o qual, sem se limitar ao discurso epidítico, sustenta o elogio dacausa do Mestre de Avis. Este, ao lado dos portugueses ‘verdadeiros’, encabeça-dos por Nun’Álvares Pereira, defendeu a Casa de Portugal e o Papa de Roma noGrande Cisma do Ocidente que então ocorria.

Portanto, com Rebelo consideramos ser o plano providencial “par-te de um programa de persuasão política” que fecha “a argumentação dosplanos ético-político e jurídico, imprimindo ao discurso uma coesão interna,que tem como efeito ideológico a consolidação do poder do fundador da novadinastia” (REBELO, 1983, p. 22). Suas lições vieram, pois, confirmar o quedesde os primórdios da minha pesquisa eu vislumbrava ser o sentido primeiroda obra do grande cronista: a defesa da justiça e da necessidade de instaura-ção da Dinastia de Avis, fundada a partir de uma revolução em que as massaspopulares adquirem destaque, sob o beneplácito divino.

Mesmo que por vias distintas, defendemos a presença de Aristótelesno texto e no contexto de Fernão Lopes. E ao debruçar-me sobre a retórica,isto é, sobre as técnicas destinadas à persuasão do leitor-ouvinte presentes nodiscurso do cronista, também analiso-o

como entidade estrutural e significante, que é a representação de umarealidade empírica e não uma duplicação dela, dentro de uma estratégiade códigos retóricos e da dialética de um processo, que é comum a todoe qualquer gênero de discurso (REBELO, 1983, p. 16).

A nossa hipótese de trabalho parte do pressuposto de que a retóricaaproximada da dialética, nos termos ensinados ou sistematizados pelo Sábio

2 Cf., a propósito, as lições de Aristóteles ([s.d.], p. 258) no sentido de que “o caráter moral éindispensável à narração”. Reconhecendo que a retórica tanto serve ao bem quanto ao mal,alerta para o seguinte: “De um modo procede o homem prudente, de outro o homem de bem:a prudência consiste em buscar o útil, a honestidade, o bem”. Evidentemente que o recomen-dável é a união das duas instâncias – o que se nos afigura como o propósito de Fernão Lopes.

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grego, são diretrizes evidentes da escrita da história por Fernão Lopes. Esteutiliza-se também do arquivismo – de resto inciado pelos discípulos doEstagirita na esteira da arqueologia de Tucídides. No entanto não se restringea simplesmente arrolar documentos penosamente reunidos, como faz questãode acentuar: assume diante deles uma atitude crítica e, o que principalmentenos interessa, utiliza-os como provas não técnicas, às quais se juntam as pro-vas retóricas, construídas pelo discurso, para a defesa da causa abraçada.

Resta lembrar que nas crônicas de Fernão Lopes, notadamente naque me serve de corpus – a de D. João I, primeira parte –, os historiadoresmarxistas encontraram elementos para considerá-lo um precursor da “história-ciência” que apenas séculos adiante se afirmaria, pautada na conjuntura econô-mica, social e política e não mais apenas no mero arrolar de acontecimentostípico da “história-crônica” (CARVALHO, 1972, p. 94-95). Mas a sua obraresiste a exegeses das mais diversas orientações; e hoje, quando tanto se discutea relação da historiografia com a literatura, quando novamente se acentua aimportância da retórica para compreensão das técnicas ornamentais ou persuasi-vas dos discursos, para uma melhor depreensão do(s) seu(s) sentido(s), ela sedesvela em toda a sua atualidade.

Enfim, assistimos também a uma revalorização da retórica deAristóteles, que tem na prova o núcleo da argumentação: se a física concebida porAristóteles, pautada na epistemologia do sensível, foi ultrapassada pela de Galileue Newton no século XVII, o mesmo não acontece com a sua retórica, que temsido revalidada por estudiosos do discurso em diversas áreas do conhecimento.

Portanto, Aristóteles assimilado por Fernão Lopes ou o cronistalido através das lições do Estagirita se apresentam como propostas oportunas.Daí nos dedicarmos à revisão e publicação da nossa tese de 1982, que se situanesse âmbito de discussão.

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FERNÃO LOPES

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20 FERNÃO LOPES E A RETÓRICA MEDIEVAL

Painel do Arcebispo, um dos seis painéis chamados de S. Vicente de Fora, pintadosprovavelmente por Nuno Gonçalves, no século XV [c. 1450-1490]. No alto, à direita, estariahipoteticamente retratado Fernão Lopes portando um livro, insígnia da sua profissão. Pertençado Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. Fotografia de José Pessoa, 1994, cedida pelaDivisão de Documentação Fotográfica – Instituto dos Museus e da Conservação, I.P.

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21 FERNÃO LOPES E A RETÓRICA MEDIEVAL

1. VidaHipotéticas são as notícias acerca da origem de Fernão Lopes. Teria

nascido à roda de 13801, talvez em Lisboa2, e falecido por volta de 1460. Ocerto é que data de 29 de novembro de 1418 o mais antigo documento por eleassinado – uma certidão –, como guarda das escrituras do Tombo. E que umacarta régia, de 4 de julho de 1459, constitui o último documento relativo à suavida efetiva. Nela, D. Afonso V o autoriza a dispor livremente dos bens, ape-sar da existência de um herdeiro natural, Nuno Martins, neto bastardo repudia-do pelo cronista por motivo do comportamento da mãe, que tivera váriosfilhos de homens vários.

Portanto, os quarenta e um anos que correm de 1418 a 1459correspondem à época conhecida e documentada da vida do grande escritor,quando foram escritas as suas preciosas crônicas. E, por esse período, desem-penhou diversas funções de confiança junto à Casa de Avis, nos reinados deD. João I, de D. Duarte e na Regência de D. Pedro.

Como guarda-mor da Torre do Tombo, arquivo geral do reino fixa-do por D. Fernando e instalado na torre de menagem do castelo de Lisboa,tinha por encargo dirigir o arquivo e passar, mediante ordem do rei, as certi-dões ou públicas-formas dos documentos, requeridas pelos interessados. Comessa função acumulava as de escrivão dos livros de D. João I – de 1419 até1433, data da morte do monarca – e de D. Duarte – de 1418 até 1438 possi-velmente, quando a morte prematura põe fim ao curto reinado deste sobera-no, que tanto promovera o cronista, desde quando ainda Infante3.

Exerceu, também, o cargo de escrivão da puridade do Infante D.Fernando, de 1421 até à morte desse príncipe em 1433 (MARQUES, 1985, p.56), dele redigindo o Testamento4. Aliás, o filho de Fernão Lopes, mestreMartinho, era o médico de confiança do ‘Infante Santo’, e a este acompanhariana desastrosa expedição a Tânger, onde faleceram após serem aprisionados.

1 Anselmo Braamcamp Freire, na Introdução à Crônica de D. João I (1915, 1977, p. XXXIII),supõe, em nota de pé de página, que Fernão Lopes nasceu entre 1378 e 1383.2 Como acreditam, dentre outros, Aubrey F.G. Bell (1931) e Manuel Rodrigues Lapa (1973, p. 352).3 António Borges Coelho (1977, p. 13) alude à função de escudeiro de D. Duarte que FernãoLopes teria desempenhado, deslocando-se até Aragão em tal serviço. Remete, em nota derodapé, à fonte dessa informação – Monumenta Henricina, vol. III.4 O Testamento do Infante D. Fernando, juntamente com o respectivo Instrumento de apro-vação, guardados na Torre do Tombo com a cota ‘gav. 16, mac. 2º, nº 13’, é um dos rarostextos autógrafos de Fernão Lopes, e nele lhe é concedida a quantia de 50.000 réis e a devo-lução de um livro, o Ermo Espiritual.

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Fernão Lopes foi, ainda, tabelião-geral do reino já antes de 1437(MARQUES, 1985, p. 56), categoria privilegiada de notários que podia atuarem qualquer área do país, não tendo de ficar circunscrita a apenas uma loca-lidade ou um conselho, como a maioria.

O que principalmente nos interessa é que D. Duarte o encarregou,possivelmente quando ainda Infante, em 1419, e oficialmente através de cartarégia de 19 de março de 1434, de escrever a crônica de todos os reis de Portu-gal, incluindo seu pai, D. João I; ou, em suas palavras, de “poer em caronycaa estoria dos Reys que antygamente em portugal forom Esso meesmo os gran-des feytos e altos do muy uertuoso E de grãdes uertudes ElRey meu Senhor epadre cuja alma deus aja” (FREIRE, 1915, 1977, p. XLV). Para tanto, rece-bia uma tença anual de 14.000 reais brancos, sendo que nesse cargo seriaconfirmado em 1439 por Afonso V, através da rainha regente5; e em 1449 atença ser-lhe-ia aumentada para 20.000 reais.

Oliveira Marques não considera exagerado classificar Fernão Lopescomo “alto funcionário público, valido da casa real e figura de relevo nainteligentzia da época” (MARQUES, 1985, p. 56). Chegara mesmo a recebercarta de nobreza, passando a usufruir dos privilégios de ‘vassalo del-rei’,conforme certidão de 8 de maio de 1433, ainda no reinado de D. João I. Eaventa-se a hipótese de que Nuno Gonçalves, o grande pintor da época, aoqual são atribuídos os magistrais Painéis de São Vicente de Fora, tê-lo-iapossivelmente retratado no ‘Painel do Arcebispo’.

Foi afastado do cargo de cronista logo após a morte do regente D.Pedro, sendo substituído em ambos os misteres por Gomes Eanes de Zurara,“filho de cônego, criado na casa real, moço lacaio bem ensinado”, na irônicaafirmação de António José Saraiva (1965, p. 16). E já em 1450 Zurara assina-ria como obra sua a terceira parte da Crônica de D. João I, intitulada Crônicada Tomada de Ceuta.

Teresa Amado sublinha, em relação aos que veem nessa substitui-ção um ato de perseguição política, que “aqui convém não exagerar a sua hipo-tética condição de vítima”: Fernão Lopes teria então cerca de setenta anos e oque o rei Afonso V fez foi “aproveitar o pretexto que as limitações biológicaspróprias daquela idade lhe ofereciam” e tomar como segundo pretexto “a de-mora da conclusão da obra”, passando tal missão “a quem, efectivamente, se

5 Cf. Torre do Tombo, Livro 19o da Chancelaria de D. Afonso V, fl. 22 (citado por FREIRE,1915, 1977, p. XLV).

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desempenhou dela com grande rapidez” (AMADO, 1997, p. 56). Isto deduz-sedo próprio testemunho de Zurara na mencionada crônica: o rei Afonso V, “aotempo que primeiramente começou de gouernar seus rregnos”, “soube comoos feitos de seu auoo ficauam por acabar” e, “consirando como o tempoescorregaua” (ZURARA, 1915, p. 13), mandou-o desenvolver o trabalho deelaboração da terceira parte da Crônica de D. João I, que presumivelmente teriasido iniciado por Lopes.

Finalmente, datada de 6 de junho de 1454, logo no início do reinadoefetivo de Afonso V, uma carta régia aposenta Fernão Lopes da função de guar-da das escrituras do Tombo, sob a alegação de ser “já tam velho e flaco que perssy nom pode bem seruyr o dito offiçio”6.

Outros dados, conjecturais, costumam ser apontados pelos estudio-sos do cronista, como os relativos à classe social de onde teria ele provindo:possivelmente de camponeses, mesteirais ou oficiais mecânicos, aparentado,através da mulher Mor Lourenço, com um sapateiro casado com a sobrinhadesta. O que parece certo é que seria de origem humilde, comprovada pelo seusobrenome Lopes, ‘filho de Lopo’, como supunha Luís Filipe Lindley Cintra7.E que, mesmo frequentando a casa real, investiu na compra de modestas propri-edades – em 1439, uma casa com quintal, algumas vinhas e um pinhal emAldeia Galega (Montijo), comprada por 5.500 reais brancos, o que não excediametade da tença que recebia; e em 1446, um pequeno terreno anexo, por 100reais brancos mais 10 pretos (MARQUES, 1985, p. 57). Possuíra outros bens,inclusive casa em Lisboa, Alfama, próxima à igreja de S. Miguel. E “ainda em1439-1446 se relacionava com gente de baixa condição”, figurando como teste-munhas de suas compras um tanoeiro e um ferreiro lisboetas, “ao lado de umescrivão da Torre do Tombo, de um escudeiro do escrivão da câmara do rei e deum porteiro” (MARQUES, 1985, p. 57).

Talvez essa pertença e contato com os populares lhe tivessem pro-porcionado o “sentido crítico que o fez incomparável no panorama do tempo elhe temperou as subserviências de valido do Paço”, conforme ajuíza A. H. deOliveira Marques (1985, p. 58).

6 Torre do Tombo, Livro 10o da Chancelaria de D. Afonso V, fl. 30 (Apud FREIRE, 1915,1977, p. LVIII).7 Tal suposição foi apresentada por Luís Felipe Lindley Cintra em aulas sobre as primeirasmanifestações e fontes da prosa portuguesa, ministradas na Faculdade de Letras da Universi-dade de Lisboa, por mim assistidas em julho/julho de 1979, na qualidade de ‘bolseira’ daFundação Calouste Gulbenkian, sob a orientação de Cintra.

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2. Formação intelectualIgualmente que aos dados biográficos, são hipotéticos os dados

concernentes à formação escolar que recebera Lopes, sendo que muitos críti-cos são propensos a acreditar que a extensa cultura observável nas obras queescreveu indica que, se não frequentou o Estudo Geral, dado o percalço dasua origem humilde, teria frequentado pelo menos alguma escola monástica.Contra os que assim pensam se insurge José Hermano Saraiva:

Suponho que não fez estudos superiores. Quando se fala na cultura deFernão Lopes, os nossos historiadores referem sempre uma frase do seusucessor Zurara, que lhe chama homem de comunal saber e grande auto-ridade. Considera-se isso um enorme elogio, valioso precisamente porser dito pelo sucessor. Na realidade, é só meio elogio. A palavra comunalsignifica vulgar, plebeu. O próprio Fernão Lopes utiliza muitas vezes otermo, e sempre por oposição a bom: de um lado os bons, isto é, a gentefidalga ou rica, do outro os comunais. O termo desapareceu depois dalíngua, mas deixou vestígios. A frase bens comunais quer dizer bens deconcelho ou do povo; o composto descomunal quer dizer grande, fora dovulgar (SARAIVA, 1977, p. 7-8).

Portanto, o saber “comunal” de Fernão Lopes, significando saberpopular, plebeu, desautorizaria os que se baseiam nessa caracterização quelhe foi dada por Zurara para considerá-lo dono de instrução proveniente deescolas. Continua José Hermano Saraiva:

Homem de saber plebeu, e não acadêmico, foi, portanto, o que Zurarachamou ao genial escritor. Na época, isso não era elogio, mas era a ver-dade. Vivia-se então um período de intensa importação cultural e deprosápia estilística. A literatura passava pelo latim. A influência das hu-manidades é perfeitamente visível na prosa de D. Duarte e do infante D.Pedro, jovens que Fernão Lopes viu crescer. O panegírico do fundadorda dinastia, antes de o ter sido por Fernão Lopes, foi redigido por um Dr.Christophorus, doutor em Decretais, isto é, formado em universidades láde fora; e foi escrito em latim (SARAIVA, 1977, p. 8).

Não para aqui o arrazoado desse historiador. Mas ele se reduz a doispontos principais: primeiro, que o testemunho de Zurara, atribuindo a FernãoLopes uma “comunal ciência”, dado o significado que tinha então o epítetocomunal (vulgar, comum), comprova o “saber plebeu, e não acadêmico” docronista; segundo, se confrontado com os autores e obras seus contemporâneos,o seu estilo muito se afastaria do academicismo e latinismo então vigentes.

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Permanece a dúvida se tal estilo, que se deseja ‘rude’, mas ‘verda-deiro’, seria proveniente da opção confessada por Fernão Lopes, por exem-plo no prólogo da Crônica de D. João I, primeira parte (1977, p. 2-3), ou seprocederia dos próprios limites da sua “formação plebéia, não acadêmica”,como quer José Hermano Saraiva, para quem o cronista “não sabia usardoces palavras nem grandes sentenças”.

Luis de Sousa Rebelo (1983, p. 103-104) discorda veementementeda opinião de José Hermano Saraiva ao interpretar “a discrição de FernãoLopes, quando este diz não querer ‘nomear autores’, como falta de culturafilosófica, o que o levaria a atribuir um caráter pessoal a toda a sua teorização”([SARAIVA, 1977], p. 487-488). Para Rebelo, “Nada está mais longe da ver-dade do que este comentário e do que nele se diz da cultura do cronista”. Ejustifica: “É de admitir que Fernão Lopes não quisesse citar autores por suporque essas idéias fossem do conhecimento geral dos letrados do seu tempo”(REBELO, 1983, p. 104).

Que Fernão Lopes conheceu Aristóteles, mesmo que indiretamente– por exemplo, através da obra de Frei Egídio Romano De regimine principum –,não há dúvida. Luís de Souza Rebelo (1983) acentua a influência em FernãoLopes, em D. Duarte e no Infante D. Pedro8 dessa obra do frade agostinianonascido em Roma entre 1246 e 1247 e falecido em Avinhão em 1316. CitandoJoaquim de Carvalho, destaca que o De regimine principum foi “a fonte maisdirecta e viva da teoria política e até das normas governativas dos dois pri-meiros monarcas da dinastia de Avis” (CARVALHO, 1949, p. 99). E, ainda,que esse tratado “era obra dileta de D. João I, que a fazia ler muitofreqüentemente perante os fidalgos na câmara real, como ele próprio lembrouem Ceuta, em 1415, na alocução aos membros que iam ficar na praça” (RE-BELO, 1983, p. 96), segundo registra a Chronica do Conde D. Pedro deMenezes, de Zurara (1792, p. 237-240).

O filósofo e teólogo Egídio Romano foi escolar da Universidadede Paris (1276-1291) e, como destaca Rebelo (1983, p. 96), discípulo de SãoTomás de Aquino e Geral da sua Ordem a partir de 12929 . Compôs o tratado,

8 Lembra Rebelo (1983, 97) que o Visconde de Carreira e o de Santarém foram os primeirosque destacaram a dita influência nos primeiros reis da dinastia de Avis, “muito antes de CostaLobo e Joaquim de Carvalho”.9 Foi, também, arcebispo de Bourges, cargo para o qual nomeou-o o papa Bonifácio VIII em1295. É ainda conhecido como Egídio Colonna Romano, Gil de Colonna, Frei Gil de Roma,Frei Gil Correado.

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dividido em três livros, por volta de 128510 , visivelmente fundamentado naÉtica a Nicómaco e na Política de Aristóteles. D. Duarte possuía essa obraem sua biblioteca, tanto no original latino quanto na tradução11 feita peloInfante D. Pedro12 , a acreditarmos em Rui de Pina, na Crônica de Afonso V13 .Era também conhecida na corte avinicense a versão castelhana de Frei JuanGarcía de Castrojeriz, Regimiento de Príncipes.

Observa Luís de Souza Rebelo que o plano ético14 da obra de FernãoLopes se assenta justamente na concepção aristotélica de politeia divulgadapelo tratado, significando “não só uma forma de governo, mas também umaforma de conduta ou um sistema de ética social, assim como um modo deatribuir cargos públicos” (REBELO, 1983, p. 28). Fundamenta-se, pois, noconceito de “justiça distributiva a ser dispensada aos cidadãos”, na idéia deque “o poder político existe para servir o Estado, não devendo visar a satisfa-ção do interesse particular de um grupo ou secção da sociedade, mas, sim, asatisfação do interesse comum, ou seja, o de todos e cada qual” (REBELO,1983, p. 28). Outra não é a concepção de justiça do Prólogo da Crônica de D.Pedro: “A razom por que esta virtude [a justiça] he necessaria nos sobditos hepor comprirem as leis do principe que sempre devem de seer ordenadas peratodo bem” (LOPES, 1966, p. 88).

Além dos aspectos ideológicos assimilados do Filósofo, a obra deFernão Lopes se ordena pelo princípio também aristotélico de causa e efeito, talcomo o interpretava a Escolástica, e não mais por critérios meramente cronoló-gicos, como era comum aos cronistas de então. Como também apresenta um

10 Dedica-o ao futuro rei de França Felipe IV, que era seu aluno.11 Na relação dos livros de D. Duarte, que consta no Livro dos Conselhos conhecido comoLivro da Cartuxa, capítulo 54, datável em nota de rodapé pelo editor de 1433-1438, arrolam-se não apenas os dois volumes do Regimento de Príncipes em latim e em “lingoajem”, masinclusive duas obras de Aristóteles, intituladas Dialetica e Segredos, e mais um “liuro delogica”; e também duas obras de Marco Túlio (Cícero), ambas sem título, sendo uma delastraduzida pelo Infante – “Marco tulio o qual tirou em lingoajem o Ifante dom pedro” (DUARTE,1982, p. 207).12 O Infante D. Pedro, em sua obra denominada Livro da Virtuosa Benfeitoria, refere-se aoRegimento dos Príncipes de Frei Gil de Roma da mesma forma que à Ensinança dos Prínci-pes de São Tomás de Aquino (1910, p. 125).13 Diz Rui de Pina: “elle tirou de latym em linguajem o Regimento de Pryncepes, que FreyGilCorreado compos, e assy tirou o lyvro dos Offycios de Tullio, e Vegecio de Re Militari, ecompos o livro que se diz da Virtuosa Bemfeytorya...” (PINA, 1977, p. 754).14 Conforme apontamos antes, Rebelo defende a existência na obra de Fernão Lopes (Crôni-cas de D. Pedro, D. Fernando e D. João I, partes primeira e segunda) de três grandes planos:ético-político, jurídico e providencial (REBELO, 1983, p. 18).

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largo uso de técnicas retóricas, percebendo-se inclusive aí a herança do sábioEstagirita, que foi o primeiro sistematizador da arte do discurso persuasivo. A istovoltaremos na segunda parte do nosso estudo, terminando agora por lembrarque a admiração do cronista pelo pensador grego não deixa sequer de seenunciar, na expressão qualificativa “aquell claro lume de filosophiaAristotilles” presente na Crônica de D. Pedro (1966, p. 216).

Fernão Lopes também conhecera, diretamente ou indiretamente,outros autores antigos como Tito Lívio e, sobretudo, Cícero – por sua vezseguidor de Aristóteles. Isto se percebe, por exemplo, na concepção da rela-ção lei / rei estabelecida no Prólogo da Crônica de D. Pedro, onde se pode ler:“as leis som rregra d’o que os sogeitos am de fazer, e som chamadas prinçipenom animado: e o rrei he principe animado, porque ellas rrepresentam comvozes mortas o que o rrei diz per sua voz viva” (LOPES, 1966, p. 88). É nítidaa semelhança com Cícero, na relação que estabelece entre o magistrado e a leiem As Leis: “e pode-se certamente afirmar que o magistrado é uma lei quefala, e, por sua vez, a lei é um magistrado mudo” (CÍCERO, 1989, p. 266;traduzimos). Também a concepção exemplar do rei ou dirigente os aproxi-ma: “Que seja modelo para os demais” (CÍCERO, 1989, p. 281; traduzimos).Isto também se constata em A república: “Que ele (o príncipe) seja para osoutros um modelo vivo: que, pela limpidez de sua alma e de sua vida, possaservir de espelho a seus concidadãos” (CÍCERO, 1965, p. 72; traduzimos)15.

Teresa Amado (1997, p. 80) também acredita “que se devem admi-tir casos de recurso directo à obra de Cícero”, e não que Fernão Lopes tenhatão somente “colhido resquícios dos autores clássicos”, como defende AlbinBeau16 , “na tradição da historiografia cristã medieval” (BEAU, 1959, p. 33) acres-cida da Bíblia, da hagiografia, da liturgia e da patrística (BEAU, 1959, p. 80).

Acrescenta Rebelo (1983, p. 98) que, ao comparar a justiça comuma teia de aranha na Crônica de D. Pedro, Fernão Lopes estaria retomandoexemplo do tratado didático intitulado Liber de vita ac moribus philosophorumpoetarumqueveteres, do inglês Gualterus Burlaeus17 (1275-1345), que, após

15 Segundo Rebelo (1983, p. 102), Lopes também se aproxima de Cícero, em De NaturaDeorum, ao apontar, no Prólogo da Crónica de D. João I, I (1977, p. 1), fatores físicos eorgânicos que prendem o homem à sua terra natal, tornando-o parcial na visão de aspectos aela concernentes.16 Beau (1959, p. 36) considera a frase de Sulpicio Severo “Melius est enim taceri quam falsaloqui”, do Prefácio de Vita Martini, como fonte da afirmação do cronista no Prefácio à Crónicade D. João I, I, “ante nos callariamos, que escprever cousas fallsas” (LOPES, 1977, p. 2).17 Ou Walter Burley, que estudou em Oxford e Paris e foi preceptor do futuro Eduardo III daInglaterra.

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circular amplamente manuscrito, foi publicado provavelmente em 1470. Ditacomparação possui uma vetusta tradição, remontando a Plutarco, Sólon eDiógenes de Laércio, sendo que a obra deste último, De vitis, dogmatis etapophtegmatis clarorum philosophorum libri (X, I, 58), teria servido de baseà compilação de Gualterus, como observa Rebelo (1983, p. 99)18 .

Defende ainda Luís de Sousa Rebelo (1983, p. 42-43), no planoprovidencial que depreende na obra de Fernão Lopes, que a concepção dopoder descendente dos reis por este adotada está “ancorada na idéia da Gran-de Cadeia do Ser”, de inspiração plotiniana, e que serve de suporte ao Trata-do da Virtuosa Benfeitoria do Infante D. Pedro19 . Destaca, nesta obra, a influ-ência do Comentário ao sonho de Cipião, do cristão Macróbio Teodósio (sé-culo V), que se debruça sobre o epílogo da obra De republica, de Cícero, aqual contém o referido sonho do general romano Públio Cornélio CipiãoEmiliano (século II a.C.)

A visão que esse general tivera da eternidade apresenta a ascensãoàs mais altas esferas celestiais pelos que praticaram “feitos grandes e desinte-ressados, realizados em nome da pátria e não para granjear qualquer prêmiovil ou galardão” (apud REBELO, 1983, p. 44). O comentador do sonho deCipião, Macróbio, se baseara, por seu turno, em Virgílio, que na Eneida falada “conexão de todas as partes, desde o Deus Supremo até à mais ínfimaescória das coisas, ligadas por laços mútuos e sem qualquer interrupção. Éesta a cadeia áurea de Homero, que Deus, segundo conta o poeta, mandouestender do Céu à terra” (apud REBELO, 1983, p. 46). Como observa Rebelo(1983, p. 48-49), o Infante D. Pedro tenta conciliar em seu tratado “o pensa-mento plotiniano de Macróbio” com “a versão cristã que daquele mesmopensamento oferece Santo Alberto Magno em De caelesti hierarchia”.

Mas o poder descendente, ligado à hereditariedade, seria com D.João I subordinado ao princípio eletivo, ascendente, expressão da vontade po-pular. Fazia-se, pois, necessário a Fernão Lopes apoiar-se em autoridades, comoJoão de Salisbury, que no Policraticus defendia claramente

como norma de sucessão no trono, quando esta não possa seguir o critério datransmissão imediata por via hereditária, que o príncipe seja eleito por meio

18 Rebelo remete-nos, a propósito, para Joaquim de Carvalho, Estudos sobre a cultura portu-guesa do século XV, vol. I. Coimbra, 1949, p. 17-18.19 “Deus em as suas criaturas faz cadeamento per guisa que as uertudes dos ceeos nom ueemaa terra, que pellos corpos nom passem que som antre elles, nem se moue cousa de huutermo pera outro que pella meyatade nom faça movimento” (PEDRO, 1910, p. 169).

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do voto popular em conformidade com os secretos desígnios da Providência,e que, nesses casos, se dê a preferência, sempre que possível, a um preten-dente que seja de estirpe real, desde que este tenha procedido de acordo comos juízos do Senhor (REBELO, 1983, p- 54-55)20.

Portanto, se o trono não pode ser conseguido por hereditariedade,que o seja por merecimento21 , devendo os candidatos terem a proteção divinae possuírem preferentemente estirpe real. Esta a tese que seria defendida porJoão das Regras por ocasião das cortes de Coimbra, que elegeram o Mestrede Avis, filho ilegítimo de D. Pedro I, rei de Portugal. Aí poderia ser observa-da a fundamentação no princípio do direito romano justinianeu22 , já que opoder do trono é conseguido através do povo.

Com relação à alegoria da Sétima Idade, que Fernão Lopes apre-senta na Crônica de D. João I, I, capítulo 163, é patente a herança da obra Detemporibus liber minor, composta em 703 por Beda, o Venerável, que viveude cerca de 673 a 73523 . Nesta obra apresenta uma teoria providencial dahistória da humanidade, que se dividiria em seis idades, a começar do Gênesis.Rebelo confronta atentamente o capítulo XVI, “De mundi aetibus”, com o

20 Rebelo (1983, p. 55) transcreve o trecho do Policratus (livro V, capítulo 6) de João deSalisbury em que se apoia: Dictum est autem principem locum obtinere capitis et qui soliusmentis regatur arbitrio. Hunc, itaque, ut iam dictum est, dispositio diuina in arce rei publicacollo cauit et eum nunc archano prouidentiae suae misterio ceteris praefert, nunc ad eumpraeficiendum totius populi uota concurrunt. E apresenta-lhe a tradução: “Disse-se que opríncipe obtém o lugar de chefia e é inteiramante guiado pela sua própria razão. Deste modo,como também já se afirmou, é o ordenamento divino que o coloca à frente da comunidade elhe dá preferência a todos os outros, umas vezes por oculto desígnio da Providência, outraspor meio dos votos de todo o povo, que o alça a um lugar de autoridade”. Acrescenta, ainda o trecho sobre as prerrogativas dos pretendentes ao trono: Nec tamenlicitum est fauore nouorum recedere a sanguine principum quibus priuilegio diuinae promissioniset iure generis debetur sucessio liberorum, si tamen [ut praescriptum est] amabulauerint iniustitiis Domini. Tradução: “Convém, todavia, não preterir, em benefício de homens sem condi-ção, aqueles que são da linhagem dos príncipes e que têm direito, por promessa divina e porrazões de família, a que seus filhos lhes sucedam no lugar, desde que, como atrás se disse,tenham procedido de acordo com os juízos do Senhor” (REBELO, 1983, p. 55-56).21 Lembra Rebelo que outra possível fonte de Fernão Lopes, García de Castrojeriz, noRegimiento de Príncipes, coteja as duas posições (hereditariedade e merecimento) e, mesmoinclinando-se para a defesa da hereditariedade, conclui ligeiramente: “E esto mesmo dizepolicrato en el quarto libro al dozeno capítulo, que el principado non es devido a la sangremas a los merecimientos” (Apud REBELO, 1983, p. 56).22 Como defende Francisco Elías de Tejada Spínola em Las doctrinas políticas en Portugal(Edad Media), Madrid, 1943, citado por Rebelo (1983, p. 103).23 Beda foi também autor da Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum que remonta a 731.

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capítulo 163 da citada crônica de Fernão Lopes, observando que coincidem“na divisão dos grandes períodos e nas linhas gerais da sua caracterização”,mas que se diferenciam principalmente pelo fato de o cronista português ex-cluir a comparação das idades do mundo com as do ser humano, “metáforacriada por Aristóteles para compreender a vida das sociedades como organis-mos sujeitos à usura e desgaste do tempo” (REBELO, 1983, p. 63). Com isso,Lopes assume uma posição muito mais moderna, por otimista e de acordo“com o espírito de renovação que a luta revolucionária de 1383-1385 lheinspirava” (REBELO, 1983, p. 63).

Observa Rebelo (1983, p. 64) que, antes de Beda, essa concepçãodo tempo e da história apresenta-se na História Eclesiástica de Eusébio deCesareia, que viveu de 260 a cerca de 340. Sua obra, escrita originariamenteem grego, foi vertida para o latim entre 400 e 402 por Rufino de Aquileia, queviveu de cerca de 345 a 410, e filia-se a uma longa tradição, recolhida edivulgada por Sexto Júlio Africano (século III). Eusébio é autor citado porFernão Lopes, da mesma forma que Beda. Segue o mesmo esquema de SextoJúlio, das idades comparadas aos dias da semana, durando cada uma mil anos24.

O mesmo esquema seria mantido, em linhas gerais (REBELO,1983, p. 64), na Cidade de Deus, de Santo Agostinho, escrita entre 413 e426. E difunde-se na Península Ibérica através das Chronica Majora deIsidoro de Sevilha no século VII. Aliás, Rebelo (1983, p. 65) tambémchama a atenção para o fato de que Fernão Lopes, na esteira de Santo Agosti-nho e de Santo Isidoro, é reticente com relação ao fim do mundo, não acreditan-do em um fim previsível para a sexta idade como supunha Beda: durará até“quamto Deos quiser que a todas criou” (LOPES, 1977, p. 309).

Com relação ao bispo de Hipona, lembremos que a Cidade deDeus é inclusive mencionada pelo cronista (LOPES, 1977, p. 327). E, notocante à influência de Beda em Fernão Lopes, apesar das divergências queapontamos com Luís de Sousa Rebelo, P. E. Russel a notara também no estiloe no respeito às fontes: “O estilo de Beda, a um tempo desafectado e pitores-co, e o escrupuloso respeito das fontes, característico do autor inglês, são-notambém da obra de Fernão Lopes” (RUSSEL, 1941, p. 8).

Portanto, o pensamento greco-romano e o dos padres e doutoresda Igreja estiveram na base da formação de Fernão Lopes, se não em escolas,

24 Isto porque as idades já somavam cinco mil anos, bem como, nas palavras de S. Pedro: “umdia diante do Senhor é como mil anos e mil anos como um dia” (Epístola II, 3-8) (REBELO,1983, p. 64).

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nas obras possuídas, traduzidas ou escritas por D. João I e por seus filhos D.Duarte e D. Pedro25 .

A biblioteca de D. Duarte, que, segundo o testemunho de Zurara(1899, vol. I, p. 25), mandara vir “muitas escrituras” de várias partes do reinoe de Castela, para colocá-las à disposição de Fernão Lopes, continha obras depensadores e historiadores antigos, como vimos, a par das principais crônicasibéricas dos séculos XII ao XIV, fontes do cronista, como será visto, e possi-bilitar-lhe-ia a aquisição de todo um lastro cultural. Alfonso de Cartagenaescrevera para esse rei um Memorial de virtudes e traduzira a obra De casibusvirorum, de Boécio, e, o que mais nos interessa, o tratado de retórica Deinventione, de Cícero, o mais popular na Europa de então ao lado dopseudociceroniano Ad Herennium. Também de Cícero foram traduzidos Deamicitia e De officiis, este pelo infante D. Pedro, também tradutor de De remilitari26, de Vegécio.

Para a formação do cronista também concorreria a oratória cleri-cal, que manteve viva por toda a Idade Média, adaptando-a aos imperativosda Igreja e unindo-a à herança judaico-cristã, a tradição retórica greco-roma-na. A sua importância na corte dos reis à época de Fernão Lopes pode sercomprovada nos seguintes dados: no rol dos livros de D. Duarte (1982, p.207) encontra-se um Liuro das pregações; o franciscano Frei Alfonso d’Alprãho, confessor de D. João I, foi também autor de uma das mais interes-santes artes praedicandi ibéricas (HAUF, 1982, p. 234). E, na Crónica de D.João I (I e II), Lopes reproduz sermões dos franciscanos Frei Rodrigo deCintra e Frei Pedro, feitos em momentos importantíssimos para a história dePortugal no nascedouro da Dinastia de Avis.

Dos franciscanos, altamente influentes à época, Lopes teria tam-bém assimilado a doutrinação de Joaquim de Fiore ou Flora (ca.1135-1202),cujas ideias, “altamente combatidas por S. Tomás de Aquino, difundem-se na

25 A propósito do panorama literário de então, lembramos com António José Saraiva e OscarLopes (1982, p. 131) que traduziam-se “os Quatro Evangelhos, recopiavam-se a Demanda doSanto Graal e os outros romances do mesmo ciclo, e refundiam-se, literariamente, tradiçõescomo a de D. Afonso Henriques, registada na Crônica Geral de 1344. Ao mesmo tempo,davam-se os primeiros passos para a assimilação do estilo latino e da língua abstracta dosescolásticos”.26 Figura no rol dos livros da biblioteca de D. Duarte (1982, p. 207) sob o título Liuro daguerra. No Leal Conselheiro de D. Duarte corresponderia ao Livro da Cavalaria (Cf. AMA-DO, 1997, p. 48).

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Península Ibérica, como, aliás, noutros países europeus, através da alaespiritualista dos franciscanos” (REBELO, 1983, p. 68-69). Defende Rebeloque

No plano doutrinal e teórico, a idéia da Sétima Idade, no modo em que seencontra na alegoria de Fernão Lopes, tem como chave a meditação deuma das figuras do Apocalipse, o livro dos Sete Selos, que mais intensa-mente reteve a atenção de Joaquim de Fiore e onde ele cria haver encontra-do o símbolo de toda a História (REBELO, 1983, p. 69).

E acrescenta: “ora a alegoria de Fernão Lopes não só se conformacom as grandes linhas do pensamento de Joaquim de Fiore27 , como tambémcompreende no seu âmbito outros temas característicos do programa narrati-vo que aquele implica” (REBELO,1983, p. 70). Para demonstrar essa posi-ção, argumenta que o Mestre de Avis é um “libertador carismaticamente váli-do”, num Portugal “dilacerado pelo ódio e pela discórdia”, etc. (REBELO,1983, p. 70-71).

Rebelo considera como bases para as alegorias da Sétima Idade edo Evangelho Português: deste, “o comunismo de Santo Ambrósio com osseus anelos igualitaristas e a preocupação franciscana dos mendicantes com aexaltação dos humildes” (REBELO, 1983, p. 20), sugerindo “um jogo deanalogias entre o simples mesteiral, ou a senhora Pobreza, com Cristo; e, poroutro, entre Cristo e o próprio mestre de Avis”, cujo modelo formal seriaencontrado na literatura evangélica: “na Biblia Pauperum, no Evangeliumsecundum marcas argenti e no Evangelium Aeternum, obras compostas noséculo XIII” (REBELO, 1983, p. 20-21). Neste último evangelho a SétimaIdade é “considerada um período de justiça e de reparação dos danos sociais,profecia do advento da Idade do Espírito Santo, o que imprime uma nítidaconotação joaquimita à alegoria do tempo e da história de Fernão Lopes”(REBELO, 1983, p. 21). Tais aspectos, sublinha o estudioso, foram por eledetectados pela primeira vez no discurso histórico de Fernão Lopes, “cuidado-samente indagados e identificados nos seus respectivos contextos ideológicos,ao nível da cultura e da mentalidade do tempo, o que nos permite confiar na suavalidade e nos resultados da nossa inquirição” (REBELO, 1983, p. 21).

27 A propósito da penetração do joaquimismo em Portugal, Rebelo (1983, p. 69) cita, além demencionar Jaime Cortesão, Eugenio Asensio e Frei Marcos de Lisboa, o estudo de Almir deCampos Bruneti, A lenda do Graal no contexto heterodoxo do pensamento português (Lis-boa, 1974, p. 62-86), que acentua a importância de D. Isabel de Aragão, esposa de D. Dinis,na afirmação dessa corrente (REBELO, 1983, p. 107).

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Acreditamos, pois, que Lopes se incluiria na categoria dos letra-dos, designação que, segundo Ângela Beirante (1984, p. 41), tanto pode apli-car-se “a indivíduos com formação universitária como a outros que freqüen-taram somente as escolas episcopais ou monásticas”, cujo corpo docente tam-bém pertence, obviamente, a essa categoria. Continua a especialista: “as qua-lidades que o cronista, que era também um letrado, associa a tais homens são:discrição, prudência, siso, subtileza e clareza de bem falar”.

Terminamos por lembrar, ainda no tocante à formação do cronista,que a posição de conservador da torre do Tombo, por trinta e seis anos desem-penhada, colocaria ao seu dispor todo um rico e variado tesouro documental,que consultou com afinco, para alcançar a exatidão pretendida nas suas crôni-cas. Escolar ou autodidata, Lopes foi inegavelmente homem de muito saber.

A originalidade de Fernão Lopes no trato com as fontes será adian-te focalizada. No momento, importa ressaltar – porquanto elementos de au-toridade e prestígio do cronista, mas também indiciadores da sua parcialidade –,os importantes cargos e os muitos privilégios que logrou obter dos primeirosmonarcas da dinastia de Avis: D. João I, seu fundador, D. Duarte e o regenteD. Pedro. E que, com a derrota das forças populares comandadas por estepríncipe regente e a sua morte na batalha de Alfarrobeira, foi logo afastado docargo de cronista – o que é interpretado por António José Saraiva (1965, p.16)como um ato de perseguição política, alegando que “após a vitória dos fidal-gos em Alfarrobeira, a obra do cronista, com a sua simpatia pelas insurreiçõespopulares, o seu pouco apreço pelos valores da nobreza, de forma algumapodia agradar ao novo pessoal governante”.

A propósito da opinião de José Hermano Saraiva (1979, p. 25-47), abo-nada por João Gouveia Monteiro (1988, p. 117-118), acerca da relação de FernãoLopes com o Infante D. Pedro, Teresa Amado (1997, p. 54-55) acentua que a relação“mais ou menos íntima” que Fernão Lopes tivera com o Príncipe Regente fora maisque tudo motivada pelo fato de ter sido este o irmão preferido de D. Duarte –conforme declara o próprio rei na sua obra Leal conselheiro (1944, p. 145) – ecom quem trocava cartas onde falavam de questões várias, inclusive administra-tivas. Fernão Lopes esteve pelo menos vinte anos ao serviço de D. Duarte e trans-creve na Crônica de D. João I, II, trechos longos do capítulo 98 dessa citada obraeduardina, “acerca das relações dos infantes com seu pai”, oferecendo “mais umindício de cumplicidade reverente” do cronista para com D. Duarte (AMADO,1997, p. 55). Deste, tencionava Lopes escrever a crônica, conforme anuncia logoapós noticiar-lhe o nascimento na Crônica de D. João I, II: “o qual reinou depoisde seu padre como ao diante ouuyrees” (LOPES, 1977, p. 306).

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Aliás, Teresa Amado (1997, p. 54) discorda cabalmente de que aCrônica de D. João I tenha sido escrita “em homenagem a D. Pedro oumesmo com a sua orientação, e que uma das finalidades do cronista foi dene-grir a imagem de D. João”. Aceita, sim, que o cronista “tenha querido exerceruma ação pedagógica e regeneradora, pois conhecia demasiado bem a tradi-ção historiográfica para não o fazer, e a época, de grandes mudanças, estavalonge de a tornar supérflua”. No entanto, defende que “os exemplos são os dopassado, e os ideais os de então”. E não lhe parece que D. Pedro “os personi-ficasse, antes, enquanto detentor do poder, a esperança estava em que fossecapaz de os seguir” (AMADO, 1997, p. 54).

Deixemos por agora tal questão e situemos Lopes no contexto eu-ropeu, para depois retornarmos ao contexto especificamente português.

3. ÉpocaFernão Lopes surge e escreve numa época de acentuada crise do

feudalismo europeu, concomitante à ascensão do mercantilismo que culmi-naria na expansão ultramarina.

Período conturbado na história da Europa Ocidental, nele aconte-cem: surtos de fome terríveis, como o de 1315; a peste negra (1347-1350),que exterminaria pelo menos um terço das populações italiana, francesa einglesa; a Guerra dos Cem Anos (1337-1453); e o Grande Cisma do Ocidente,onde se defrontam Inglaterra e França, partidários, com seus aliados, respec-tivamente do papado de Roma (Urbano VI) e do papa cismático de Avinhão(Clemente VII), eleitos ambos em 1378, pondo em desequilíbrio o poder maiorda época – da Igreja. Aliás, ao cisma o cronista representa, na Crônica de D.Fernando, através de monstruosa imagem: “d’esta guisa, por nossos peccados,foi estonce o corpo mistico da egreja feito com duas cabeças, assi com corpomonstruu, que era fea cousa de veer” (LOPES, 1975, p. 411).

A par desses acontecimentos, e relacionados com eles28 , eclodemvárias insurreições camponesas e urbanas, onde os ‘pequenos’ se defrontamcom os ‘grandes’, isto é, com as ‘classes privilegiadas’. Dentre os movimen-tos urbanos, citam-se, dentre outros, o de 1302, em Bruges, Ypres e Gand; odos Ciompi, em Florença, 1378; ou o de Colônia no final de trezentos. Den-tre os rurais, a revolução inglesa de 138129 . E dentre os urbanos-rurais, o

28 A esta interrelação, reconhecida pela maioria dos historiadores, se opõe Álvaro Cunhal(1975, p. 39 e ss.).

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marítimo de Flandres (1323 – 1328) e a Jacquerie francesa, aliada ao movi-mento urbano de Étienne Marcel em Paris, 1358.

Para Joel Serrão, que as sintetiza e explica30 , “as revoluções desteséculo, sejam urbanas, rurais ou urbano-rurais, filiam-se em causas de idênti-ca raiz: o incremento capitalista e a ascensão da burguesia”. E explica suaposição nos seguintes termos:

O incremento capitalista e as necessidades do comércio internacionalprovocam, por um lado, a intérmina Guerra dos 100 anos, por outro,estabelecem uma grande diferenciação social nos centros urbanos. Aguerra, por seu turno, vai tornar cada vez mais crítica a situação econô-mica do senhor, proprietário de extensas terras, obrigando-o a exercermaior pressão sobre os trabalhadores rurais. Com o incremento dastransações comerciais (nacionais e internacionais), com as conexões daeconomia local com a nacional, e depois com a internacional, as popu-lações rurais não poderiam também deixar de sofrer as consequênciasdas perturbações urbanas da Flandres (SERRÃO, 1978, p. 15-16).

Serrão não deixa sequer de elogiar o espírito que norteou tais mo-vimentos, reivindicadores, antes de tudo, de igualdade econômica, e não ape-nas de direitos políticos ou liberdades civis – o que os tornaria superiores emlucidez aos movimentos operários da época da Revolução Industrial, séculosadiante. Diz ele:

doenças do capitalismo europeu são todas as “revoluções” do século XIV,que brevissimamente esboçamos. Doenças para que se procurou, em vão,remédio. Ora, o remédio foi procurado de tal modo que se pode afirmarcom Gettell: “os trabalhadores do século XIV, ao pedirem, antes de tudo,igualdade econômica, em vez de exigirem somente direitos políticos ouliberdades civis, demonstraram um instinto mais certeiro da situação doque os operários do tempo da Revolução Industrial”31 (SERRÃO, 1978,p. 22-23).

Também em Portugal o “incremento capitalista e a ascensão daburguesia”, que estariam na base das sublevações européias de trezentos,provocaram, juntamente com outros fatores, um importante evento, eclodido

29 Nele se divulgava o dito, sobre a igualdade natural dos homens, extraído do sermão de JohnBall (REBELO, 1983, p. 84) mas já tornado lugar comum sob diversas formas (aparecia emsermões, poemas e murais da época): “Quando Adão cavava e Eva fiava / Quem era então ofidalgo? (Whan Adam dalf and Eve span / wo was thanne a gentilman?)30 Para a discussão sobre a precisão terminológica desse historiador, cf, dentre outros, COE-LHO, 1977, p. 26 e ss.31 Cita Raymond Gettel, Historia de las ideas políticas, da Coleção Labor, Barcelona, (s.d.).

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em 1383-85 e que, conforme defende Antônio Borges Coelho (1965, p. 26 ess.), constitui a primeira revolução burguesa nacional, embora poucodivulgada como tal no mundo europeu.

Com respeito à decadência do feudalismo, motivada pelosurgimento de forças protocapitalistas, já assinalara António Sérgio:

Ora, a estabilidade da arquitectura de tal regime, todo ele alicerçado nariqueza agrícola, abalar-se-ia no momento em que lhe aparecesse ao lado,em grande número e poderosa, uma classe empreendedora no comércio ena indústria. A alta burguesia, fabricadora e mercante, não achava cabi-mento numa estrutura dessas, e não poderia servir-se da sua traça políticapara as finalidades características da civilização que lhe é própria. Nasci-da a burguesia, o regime senhorial desmoronar-se-á aos poucos (SÉR-GIO, 1945, p. XXXVI).

Portanto, o surgimento de uma burguesia fabril e mercantilista de-terminaria o esboroar da estrutura feudal, baseada no modo de produção agríco-la. E exigiria um modelo civilizacional fundamentado na “concepção estatal,que fora sendo substituída pela de bando épico desde a invasão do Impériopelos caudilhos bárbaros”. Nesta, continua António Sérgio (1945, p. XXXVI),o rei figura como encarnação do Estado, apoiado no direito imperial romanoressurgido, e substitui o aristocrata “na direção efectiva: tal seria o caminho darevolução dos burgueses”.

Em Portugal, “naquele final de trezentos, na época historiada pelapresente Crônica (a de D. João I), seria esse o programa dos mercadores earmadores dos dois centros marítimos de Lisboa e do Porto”. Contudo,

eis aqui o acidente: as necessidades da luta na guerra civil de então (e acrise, no essencial, pode ser considerada uma guerra civil portuguesa,com a intervenção estrangeira de D. João de Castela) fizeram reforçar nopartido do Mestre – e sobretudo na hoste do seu condestável – o princí-pio pessoalizante do bando épico (SÉRGIO, 1945, p. XXXVI).

A centralização do poder na figura do rei, em detrimento da aristo-cracia, viera ocorrendo progressivamente na primeira dinastia portuguesa – aAfonsina ou de Borgonha – marcada por monarquias ‘populares’. No reinadodo seu último soberano, D. Fernando, as duas forças – a burguesa e a senho-rial – já se encontram em igualdade de condições e se equilibravam no poder.E os atos desse rei, à primeira vista inconstantes, não são mais do que teste-munhos deste medir de forças, ora atendendo às reivindicações dos conselhos– forma do novo poder político das classes dependentes – , expedindo leis de

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proteção à marinha, ao comércio e à agricultura, ora pactuando com as mano-bras políticas da nobreza, fomentando a guerra com Castela.

Com a morte de D. Fernando, a situação que se criou relativa à suasucessão possibilitou o eclodir da Revolução. Esta, colocando em segundoplano os conflitos de classes menores32 , em função da premência de se derro-tar o inimigo maior – tal seja, a alta nobreza33 macomunada com Castela –, reuniua ‘arraia miúda’, os camponeses, os funcionários, os assalariados em geral, osmesteirais, os comerciantes, mas também uma pequena parte da nobreza,liderada por Nuno Álvares Pereira34 , em torno do Mestre de Avis. Este foi umlíder forjado por destacados políticos como Álvaro Pais, oriundo das classespopulares e que chegara a chanceler-mor de D. Pedro e D. Fernando.

Assim é que, após o assassínio do conde de Andeiro, amante de LeonorTeles – primeiro passo concreto para a Revolução –, se defrontam, de um lado, arainha regente, apoiada pela quase totalidade da nobreza local; de outro, as forçaspopulares – às quais aderiram posteriormente os donos de capital –, e uma peque-na facção fidalga, encabeçada por Nun’Álvares, braço direito do Mestre, capitãovaloroso das batalhas empreendidas.

O rei castelhano, casado com D. Beatriz, única filha do falecido reiportuguês com Leonor Teles, acaba por invadir Portugal com o consentimentodesta, quebrando assim os tratos feitos por ocasião do casamento. Estes deter-minavam que o novo rei português seria o filho do casal, que deveria ser educa-

32 Como, por exemplo, os conflitos entre empregados e assalariados, e entre a burguesiamercantil e marítima e a rural. Cf. a propósito CUNHAL, 1975, p. 43, onde se opõe a SÉR-GIO, 1945, p. XXI. E ainda: MARQUES, 1975 p. 187-188, que destaca ser a alta burguesia,de início, contrária ao partido do Mestre.33 João Gouveia Monteiro (1988, p. 40) percebe então “três blocos distintos e antagônicos” nanobreza: “a alta nobreza da corte fernandina, obviamente interessada na preservação doordenamento sócio-político vigente, e por isso empenhada na defesa dos pontos de vista daregente Leonor Teles, ou, após a sua abdicação, da sua filha D. Beatriz (casada com o rei deCastela); um outro, identificar-se-á com a nobreza portuguesa ‘tradicional’, descontente coma governação de D. Fernando, mas nem por isso demasiado ousada, mais inclinada para oapoio à causa dos infantes D. João e D. Dinis (filhos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro);finalmente, um terceiro e último bloco acabou por polarizar-se em torno da candidatura doMestre de Avis, tornada triunfante em 1385”.34 A facção da nobreza que conduziu o Mestre de Avis ao poder era “basicamente constituídapor pequenos cavaleiros e escudeiros, muitos deles filhos segundos e bastardos, membros deOrdens militares e, em grande medida, jovens que encontravam no projecto ‘aventureiro’ doMestre – discutido no terreno de batalhas, para as quais se apresentavam particularmenteadestrados – o almejado expediente para a eliminação da sua condição social algo marginal eobscura, e, em conseqüência, para a consumação de uma ascenção política tão vertiginosaquanto gratificante” (MONTEIRO, 1988, p. 40-41).

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do no seu futuro reino, ficando na regência, até à sua maioridade, a Rainhaviúva. Após algum tempo, D. João de Castela indispõe-se com a sogra e aafasta para um convento castelhano, finando-se, assim, o curto poderio da“aleivosa”.

É a Crônica de D. João I, de Fernão Lopes, que dá ciência dessesfatos, destacando o papel do povo nos sucessos da Revolução. Os popularesatendem ao apelo inicial de Álvaro Pais, que inverte os fatos ocorridos porocasião da morte do conde de Andeiro com a finalidade de conquistar-lhes asimpatia para o Mestre de Avis, apresentado como vítima. E Fernão Lopes nosfaz ouvir-lhes os brados:

Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre, ca filho he delRei dom Pedro... Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestreque matam sem por que (LOPES, 1977, p. 21).

Ressalte-se que o Mestre só aceita a incumbência de assassinar oAndeiro quando o líder político lhe garante o apoio irrestrito das massas popu-lares, embora já anteriormente tivesse sido requisitado para este serviço pornobres como Nuno Álvares Pereira, através do tio Rui Pereira.

A partir de então, forjado o líder necessário e aceito pelo povo35 ,e vencidas as hesitações e temores em aceitar a liderança e seus riscos,instaura-se a luta dos “meudos” contra as classes privilegiadas, continuan-do a que vinha sendo encetada pelos concelhos, contra os altos tributos e amonopolização do comércio pelos nobres:

E desta guisa que teemdes ouvido, tomarom [voz] os poboos meudosmuitos castellos aos Alcaides delles, que por nom allomgar leixamos dedizer, allçamdo voz com pemdoões pella villa, braadamdo todos edizemdo: Portugall! Portugall! pollo Meestre de Avis! E nom guardavondivido ne amizade a nehuu que sua teemçom nõ tevesse; mas quamtoseram da parte da Rainha, todos amdavom aa espada.

(...) e os meudos corriam apos elles e buscavom nos e premdiam nos tamde voomtade, que pareçia que lidavom polla Fe (LOPES, 1977, p. 82).

Contra os que consideram Fernão Lopes o ‘cronista do povo’ colo-ca-se João Gouveia Monteiro, para quem “a tão propalada ‘arraia miúda’, os‘ventres ao sol’, não são senão um ‘pano de fundo’, necessário ao cronista paradescrever os nobres feitos que entronizaram em Portugal uma nova realeza”

35 Cf., a propósito da tradição ibérica visigótica da eleição dos reis e da quebra do pactumsubjectionis ao falecer um rei, REBELO (1983, p. 39).

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(MONTEIRO, 1988, p. 128). Não foi sequer o primeiro a considerar o povo“personagem histórica”, o que já Afonso X, o Sábio, reconhecera explicita-mente36. E, na visão de Monteiro, a sua “violência odiosa e inútil” causaria atémesmo repugnância ao cronista37 . Mesmo considerando a qualidade do traba-lho desse crítico, ousamos discordar e ver na descrição que Lopes faz dosdesvairios populares, por exemplo ao trucidarem a abadessa e o bispo, a mesmatendência ao ‘realismo’ que o faz representar D. Pedro em seus acessos deloucura, D. Fernando em suas fraquezas e o próprio Mestre em suas falhas.

Maria Ângela Beirante (1984), que também questiona a impor-tância do povo nas crônicas, no entanto reconhece o inegável papel que lheatribui Lopes na Crónica de D. João I38 , portanto, na Revolução, da qualnão foram meros figurantes como defende Monteiro. Embora sem considerá-lo um ‘cronista do povo’, tendo por base a frequência relativamente peque-na com que os termos que o denominam aparece na crônica – arraia miúda,gente miúda, povo miúdo, os miúdos, os pequenos, homens de baixa condi-ção, homens de baixa mão –, reconhece também a simpatia que o cronistalhe dispensa:

Essa multidão anônima detesta a rainha e revela-se partidária entusiasta doMestre de Avis e, por isso, o autor apontando-lhe embora os desmandos,não deixa de mostrar a sua simpatia por ela. Os grandes chamavam-lhe‘povo do Mexias de Lisboa’, mas os miúdos corriam atrás deles como selidassem pela fé (BEIRANTE, 1983, p. 51).

Importa salientar que a revolução se faz ‘nacionalista’ e até assu-me ares de ‘guerra santa’, uma vez que os portugueses ‘verdadeiros’ se colo-cam com a Inglaterra ao lado do papa de Roma, ao ficarem contra Castela,partidária, com a França, do papa de Avinhão. Tal fato será explorado porJoão das Regras, ao defender para o Mestre de Avis o direito ao trono portu-guês, eliminando-lhe o adversário, dentre outras, sob a seguinte alegação:

36 Já demonstrado por J. A. Maravall em Estudios de historia del pensamiento español – EdadMedia. 3. ed., Madrid,1983, p. 62), citado por Monteiro (1988, p. 148).37 Cf. Monteiro, 1988, p. 128: “O ‘povo’, certamente já personagem histórica, não é, entretan-to, o seu herói ou sequer o seu fautor principal (...). O modelo de Fernão Lopes é outro:cavaleiresco, ele encontra no rejuvenescimento da nobreza, na moralização e purificação dosseus ideais e comportamentos (rumo à mesma santidade que justificava os propósitos decanonização de Nuno Álvares Pereira), o seu objeto preferencial”.38 Cf. BEIRANTE, 1984, p. 98: “o povo não é, de modo nenhum, o sujeito da história nacrônica de D. Pedro e pouco mais o é na de D. Fernando. Ele só está verdadeiramente presentenas crônicas de D. Fernando e de D. João, na medida em que é responsável por uma insurrei-ção favorável ao Mestre de Avis e à resistência castelhana”.

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Pois avermos nos de tomar çismatico imfiell herege por nosso rei e se-nhor, que o dereito e nosso senhor o Papa deffemde! – Nom queira Deosque tall erro passe per nos; mas deffemdamos nossa terra, que justa-mente podemos fazer; e nehuu presuma per erronia e imdiscretacuidaçom, o comtrairo desto aver de seer feito (LOPES, 1977, p. 352).

A ‘burguesia’ fora coagida por um tanoeiro, Afonso Anes Penedo,a eleger o Mestre Regedor e Defensor do Reino no conselho. Aliás, comrelação a esta nova força econômica, Antônio Borges Coelho acentua-lhe aimportância e o absurdo da jurisdição vigente face a ela:

do ponto de vista jurídico, a sociedade encontrava-se dividida em doismundos estanques: o dos privilegiados – escudeiros, cavaleiros, condes,abades, bispos, mestres de ordens, etc. (não pagavam impostos, os seusserviços militares eram pagos, não podiam ser sujeitos a tortura, cobra-vam nas suas terras as rendas prediais, judiciais e gerais); e o dos vilões,onde entravam grades mercadores, armadores de navios, donos de capi-tal, proprietários rurais e, na base da escala, servos da gleba, colonos,assalariados agrícolas (COELHO , 1977, p. 33-34).

Destaca Coelho o descompasso entre a divisão jurídica, que nãolevava em conta a importância dos ‘burgueses’, e a situação econômica queos destacava:

Essa divisão jurídica contrastava com a situação econômica. SegundoFernão Lopes, o dono de um navio possuía uma renda equivalente à deum senhor feudal ‘proprietário’ de 80 vizinhos, isto é, dono de 400 almasservis. Esta anotação é ainda característica da consciência de classe docronista, que considera útil informar que o dono de um só navio batia empoder econômico a maior parte dos fidalgos do reino, embora juridica-mente fosse equiparado a um vilão e estivesse abaixo de um simplesescudeiro, de um pelintra nobilitado por carregar com a lança e a espadado senhor (COELHO, 1977, p. 34).

Álvaro Cunhal (1975, p. 47) salienta serem “a agudização dos múl-tiplos conflitos de classe e a ascensão da burguesia que conduzem a socieda-de portuguesa a uma crise revolucionária em fins do século XIV”. Isto porque

organizada fortemente nos conselhos, possuidora de grande poder econô-mico e de maior poder financeiro que a própria nobreza, a burguesia co-merciante, assim como a burguesia rural aliada aos artesãos e camponeses,pôde conseguir pela luta a satisfação de algumas das suas reclamaçõesfundamentais e pôde finalmente opor-se decididamente à ordem feudal ereclamar uma participação direta no governo (CUNHAL, 1975, p. 47).

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O apoio da ‘burguesia’ fora, pois, decisivo para a causa do Mestre.Podemos ver isto, por exemplo, no discurso do portuense Domingos Peres dasEiras, em resposta ao apelo do Mestre, através do seu emissário Rui Pereira:

e eu digo por mim e por todo este poboo que aqui esta, que nos somosprestes com boa voomtade de servir o Meestre, nosso Senhor, e fazermostodo o que ell mamdar por seu serviço e deffemssom do rregno. Ca ja ellseeria huu estranho que nos nom conheçeriamos, e quamdo sse elldesposesse a taaes trabalhos e perigoos por deffemder e emparar, nos oserviriamos com os corpos e averes; moormente seer elle filho delReidom Pedro como he, e nom teermos outrem a quem tenhamos mente,senom a Deos e a ell; mui gramde rrazom he de nos fazermos quallquercousa que sua merçee for, demais por deffemssom destes rreinos de quetodos naturaaes somos. E porem ho ouro e prata e dinheiros e todoquamto teemos, todo faremos prestes pera tall negoçio; (...) E pera estoas naaos e barchas e gallees cõ todallas outras cousas que lhe fezeremmester, lhe ofereçemos de mui boa voõtade. De farinhas, carnes e pesca-dos e vinhos que fezerem mester aa frota, de todo averees abastamento;e todallas gemtes da çidade que pera tall obra forem perteeçemtes,todas emtrarom em ella de mui boa voomtade; e porem vos poee peraesto rrequeredores quaaes vos quiserdes, e logo sera todo feito semnenhuua mimgua (LOPES, 1977, p. 209-210).

No entanto, conforme já destacara António Sérgio (1945, p.XXXVI), vemos que a vitória da burguesia não pode ser considerada comple-ta, uma vez que a ela se juntara, pelas necessidades da guerra civil, em tornodo Mestre de Avis, o “princípio pessoalizante do bando épico”, “sobretudo nahoste do seu Condestável”, Nuno Álvares Pereira. Ao que se opõe o radicalÁlvaro Cunhal (1975, p. 94), para quem “Aljubarrota foi uma vitória da in-fantaria burguesa contra a cavalaria aristocrática, foi não a batalha de umanação, mas a batalha dos burgueses revolucionários de Portugal contra a no-breza reacionária de Portugal e Castela”.

É inegável que em Aljubarrota foram utilizadas táticas muito di-versas das costumeiramente usadas nas batalhas feudais. Vale repetir que,conforme divulgou Antônio Borges Coelho,

as recentes escavações que puseram a nu os fossos e armadilhas, destru-íram o mito de um comandante agraciado com o favor celeste. A superi-oridade portuguesa estava na justiça da sua causa, em estar a defender asua terra e os seus bens, no uso de uma táctica militar revolucionária,enriquecida com a experiência militar dos ingleses, alguns dos quais pe-lejaram e morreram nos campos de Aljubarrota (COELHO, 1965, p. 114).

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No entanto, o que prova que o poder senhorial ainda se manteriaatuante é que, quando o inimigo maior deixar de existir, as revoltas campone-sas do Alentejo recrudescem e para lá se dirige Nuno Álvares Pereira, sob otítulo de fronteiro de Entre Tejo e Guadiana, mas com o fim de sufocar omovimento dos ‘pequenos’ contra os ‘grandes’, estes não apenas os nobres,mas os novos proprietários rurais.

Já para José Mattoso (1985, p. 16)39 , a Revolução de 1385 “repre-sentaria não tanto uma vitória da burguesia sobre a nobreza senhorial, comoafirmam teses bem conhecidas de todos, mas o triunfo da cidade sobre ocampo”. Acrescenta que a vitória da burguesia “pode ter-se verificado, emalguns sectores, mas foi indubitavelmente precária” Ao passo que a da cidadesobre o campo foi “definitiva. Ou melhor, irreversível” (MATTOSO, 1985, p.16). A atuação destacada da nobreza na expansão mercantilista seria distouma prova, liderando-a e subordinando a participação da burguesia ao seumando40 .

Não se pode negar, no entanto, que os ‘burgueses-cavaleiros’41

conquistam importante espaço no poder, inaugurando uma ‘Sétima Idade’,no dizer irônico do cronista, na qual passam a constituir uma nova camada danobreza:

Mas nos com ousamça de fallar, como quem jogueta, per comparaçom,fazemos aqui a septima hidade; na qual se levamtou outro mundo novo,e nova geeraçom de gemtes; porque filhos dhomees de tam baixacomdiçom que nom compre de dizer, per seu boom serviço e trabalho,neste tempo forom feitos cavalleiros, chamamdosse logo de novaslinhagees e apellidos. Outros se apegarom aas amtiigas fidallguias, deque já nom era memoria, de guisa que per dignidades e homrras e offiçiosdo rreino em que os este Senhor seemdo Meestre, e depois que foi Rei,pos, montarom tamto ao deamte, que seus deçendemtes oje em dia sechamam doões, e som theudos em gram conta (LOPES, 1977, p. 308).

Com a ‘burguesia’ pactua D. João I, o que deve ter levadoNun’Álvares Pereira a terminar os seus dias enclausurado no convento do Carmo.Este, chegara a possuir mais terras que a coroa, muitas das quais conseguidascomo pagamento por seus serviços nas batalhas empreendidas e vitoriosas.

39 Citado por Monteiro, nota 108 (1988, p. 43).40 Monteiro (1988, p. 63) remete, a propósito, para o estudo de Luís Filipe Oliveira, “Aexpansão quatrocentista portuguesa: um processo de recomposição social da nobreza.” InActas das Jornadas de História Medieval. Lisboa, 1985, p. 199-208.41 Terminologia de COELHO, Antônio Borges (1965).

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A ‘Sétima Idade’ no entanto, conforme observa Joel Serrão, termi-na por restaurar a antiga ordem: “Rapidamente, novos aristocratas, muitosdeles de recentíssima extracção popular, juntam-se aos sobreviventes de 1383-85, e restauram a harmonia da sociedade trinitária” (SERRÃO, 1978, p. 144).

Mas Antônio Borges Coelho considera a época vitoriosa para aburguesia:

a revolução burguesa de 1383 foi vitoriosa porque alcançou os seus obje-tivos fundamentais – o de cortar o cordão que prendia a criança proto-capitalista; vitoriosa no mesmo sentido relativo em que o foram as revo-luções holandesa, inglesa e mesmo francesa de 1789.

Com o desenvolvimento das forças produtivas, novas revoluções teriam desurgir a rasgar mais amplamente o caminho para a idade madura e a velhiceda jovem burguesia de 1383. Contrariado pelo golpe reacionário encober-to pela expedição a Tânger, revigorado pela revolução de 1438, o golpe deAlfarrobeira não conseguiu suster o desenvolvimento impetuoso do novomodo de produção proto-capitalista (COELHO, 1965, p. 40-41).

A discussão não se encerra aí: José Hermano Saraiva (1983, p. 95)observou que de fato aconteceram “algumas subidas espetaculares, sobretudode privados do rei, mas a tendência geral foi para a reconstituição da nobreza deque o rei fazia parte, cuja existência ele considerava um elemento de prestígioda realeza”. E as grandes linhagens continuaram sendo as dos Meneses, dosTeles, dos Castros, dos Coutinhos, dos Cunhas, dos Melos, dos Souzas. A mu-dança ocorrida foi em relação ao seu peso político, deixando de ser a classedominante devido não à “substituição por uma nova geração de gentes”, mas àtendência centralizadora da monarquia (SARAIVA, 1083, p. 95).

E João Gouveia Monteiro (1988), endossando a perspectiva deJosé Mattoso (1985), observa que as consequências da Revolução – na qual aburguesia teve importante papel, mas não exclusivo nem cimeiro – não po-dem ser interpretadas “como a expressão do exercício do poder por parte deum novo grupo social, com outras propostas e uma diferente estratégia”(MONTEIRO, 1988, p. 43).

· Estes, os acontecimentos que povoaram a infância do cronista,

que, conforme foi dito anteriormente, teria nascido à roda de 1380, poucosanos antes de acontecer a batalha de Aljubarrota. Pôde presenciar, no reinadode D. João I, de quem inclusive foi feito vassalo, os poderes alcançados pela

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nova e rica classe plebeia que se manifestava nos conselhos. Nessa época, oconselho do rei era formado por representantes dos quatro estados do reino:prelados, fidalgos, letrados42 e cidadãos (LOPES, 1977 2, p. 5). Os letrados ecidadãos adquiriram destaque, mas já no governo seguinte, de D. Duarte, osnobres mostram novamente a sua força, como dá provas a expediçãocavaleiresca ao norte da África, que termina com a desastrosa batalha deTânger, em 1437.

Com a morte prematura desse rei, estando o seu primogênito comapenas seis anos de idade, assume a regência, por disposição testamentária dopróprio monarca, a rainha viúva, Leonor de Aragão. Do lado da rainha, ali-nha-se o partido senhorial, liderado por D. Henrique e por seu meio-irmão, oconde D. Afonso de Barcelos, genro de Nun’Álvares Pereira. Contra eles, D.Pedro, duque de Coimbra, apoiado pelo irmão D. João, mestre de Santiago, epela grande parte da burguesia e das classes baixas de Lisboa e outras cidades.Quanto ao clero, mostrava-se dividido entre um partido e outro, sendo que amaior facção se alinhava ao lado da rainha.

D. Pedro é eleito “Regedor e Defensor do Reino” em 1439, talcomo o Mestre de Avis o fora em 1383. Mas, conforme salienta A. H. deOliveira Marques, a crise de 1438-1441 apresentava uma alta-nobreza dividi-da por interesses pessoais e uma adesão popular ao Regente de aparênciademagógica:

era claramente a repetição do movimento de 1383-85, conquanto os finsfossem menos patrióticos e as opções menos definidas. Mas enquantoem 1383-85 quase toda a nobreza terra-tenente de algum significado for-mava um grupo unido, interesses e ódios pessoais dividiam-na agora. Porseu turno, enquanto em 1383-85 quase todo o povo se mostrava unido epronto a lutar por uma causa bem determinada, o seu apoio a D. Pedro ea D. João tinha agora muito de adesão demagógica. A revolução de1383-85 fora, na sua essência, um movimento social com cheiro político;a rebelião de 1438-41 foi, na sua essência, uma querela feudal com chei-ro social (MARQUES, 1974, p. 190-191).

A vitória inicial coube a D. Pedro, que contou com o apoio doirmão D. João, mestre de Santiago. Governou como regente por sete anos

42 Como observa Ângela Beirante (1984, p. 40-41), os letrados, segundo o testemunho deFernão Lopes, formam “um verdadeiro grupo social com personalidade própria” compostopor “homens do foro, os legistas, donde sai parte do funcionalismo público; os oficiais”.Letrados são também “os sábios, os filósofos e até os astrólogos do tempo”.

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(1441-1448), mas com pouca força e em meio a intensa agitação política.Com a maioridade de Afonso V, este dispensou-lhe os serviços, preferindo aorientação do tio Afonso. O partido senhorial (rea)firmava-se, assim, no po-der, para nele permanecer por muitos anos. D. Pedro ainda tentaria retomar opoder, mas acabou derrotado e morto na batalha de Alfarrobeira, em 1449.

José Hermano Saraiva, cotejando as duas ‘revoluções’, e as seme-lhanças das narrativas que delas dão conta, conclui pela influência do contextoem Fernão Lopes, ao escrever sobre a revolução que lhe fora anterior, e queLopes adiantara material para Rui de Pina narrar a guerra civil de 1438-1441:

dir-se-ia que a história se repetiu. Ora, a história nunca se repete: o que sepode repetir são os olhos com que nós a vemos. Isto coloca-nos perante umadestas duas hipóteses: ou os dois relatos têm a mesma fonte e correspondema revoluções diferentes vistas pelos mesmos olhos, ou a revolução do séculoXIV foi reconstruída e narrada segundo a perspectiva de uma vivência pes-soal, precisamente a que podia ter uma testemunha da revolução do séculoXV. São hipóteses que não só se não excluem, mas se completam. Rui dePina bem pode ter aproveitado materiais de Fernão Lopes (o cronista Damiãode Góis afirma que assim sucedeu e o próprio Pina admite que outros tenta-ram escrever a história daquele período antes dele). Por outro lado, a históriada revolução do século XIV – a mais viva, presencial, dramática, de todas asobras de Fernão Lopes – sugere que quem a escreveu não se limita a ima-ginar episódios mas descreve cenas pessoalmente vividas (SARAIVA,1977, p. 14).

Portanto, Fernão Lopes descreveu – na Crônica de D. João I , I– a revolução de 1383-85 sob a inspiração e a vivência da revolução de1438-41, destacando, na descrição, a fidelidade do povo ao Mestre emoposição aos nobres traidores da terra portuguesa. No capítulo CLXIIIdesta crônica fixa a data em que a escrevia, 1443:

A sexta [idade] em que ora amdamos, que ha mill e quatro çemtos equareenta e tres que dura, (…).Assi que esta hidade [a sétima] que dizemos que sse começou nos feitosdo Meestre, a quall pella era de Çesar per que esta cronica he copillada,ha agora seseemta anos que dura; (…) (LOPES, 1977, p. 308-309).

Se os feitos do Mestre começaram em 6 de dezembro de 1421 daera de César (LOPES, 1977, p.19), data da morte do conde de Andeiro, nãoresta dúvida que o ano referido é 1481, correspondente ao ano de 1443 da erade Cristo, só adotada em Portugal em 1421 (SARAIVA, 1977, p.478); o que

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confirma a primeira indicação da data em que o cronista já escrevia os últi-mos capítulos da citada crônica. Disto se conclui que iniciara a sua escrita emplena efervescência política da regência de D. Pedro.

Recapitulando, vimos que Fernão Lopes nasceu pouco antes dabatalha de Aljubarrota, que descreverá na sua mais importante crônica. Viveue desempenhou importantes funções no reinado de D. João I, em que a forçamais poderosa é a dos conselhos43 , compostos então de 4 estados, um dosquais o dos letrados. Teve a oportunidade de servir como cronista e secretáriodos filhos desse monarca, D. Duarte e D. Fernando, o que lhe possibilitariacom eles estabelecer estreito intercâmbio de idéias.

Se acatada a hipótese de ter sido o cronista retratado por NunoGonçalves, o grande pintor português de então, no “Painel do Arcebispo”, jáentão seria incluído na galeria dos grandes da época. Nesta se destacaria, naarquitetura, a construção do magnífico Mosteiro de Nossa Senhora da Vitó-ria, verdadeiro poema gótico em pedra comemorativo da vitória dos portu-gueses sobre os castelhanos em Aljubarrota, por isso mais conhecido comoMosteiro da Batalha. E na literatura, nosso genial cronista, cujas crônicas lheasseguram lugar cimeiro entre os escritores portugueses de todos os tempos.

Atravessando também com prestígio o curto reinado de D. Duarte,durante o qual a classe fidalga usufrui de privilégios no poder, irá presenciar,e talvez participar, do movimento de 1438-1441, de matiz popular, como va-lido do regente D. Pedro. E sob a inspiração do mesmo redigiria a história darevolução de 1383-85, para ela carreando o seu olhar de observador simpati-zante do povo, por um lado, e por outro de encomiasta de uma nobreza ideal,personificada em Nun’Álvares. Da ética fidalga que elogia em suas crônicas“sobressaem a hospitalidade, a coragem, desenvolvida pela guerra, a fidelida-de e amor desinteressado ao seu senhor, o respeito aos juramentos”(BEIRANTE, 1984, p. 33).

Provavelmente por motivo da simpatia que demonstrara pelas for-ças populares, com a derrota das que se alinhavam ao lado do príncipe regen-te em Alfarrobeira (1449), também o cronista foi preterido imediatamente,afastado do cargo de cronista talvez no próprio ano da batalha e aposentado

43 Cf., a propósito, BEIRANTE, 1984, p. 78-79: “O conselho é, afinal, o grupo de homens quetem o encargo e o privilégio de aconselhar o rei, ou o próprio acto de reunir dos conselheiros.As suas atribuições vão desde o simples conselho pessoal, até às decisões que comportaminício de paz ou guerra e o bom regimento do reino. Individualmente, os membros do conse-lho podem desempenhar cargos na corte ou fora dela”.

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da sua função de guarda do Tombo poucos anos depois, em 1454. A alegaçãopara isto era estar ele “velho e flaco”, o que não o impediu de sair vitoriosonum processo instaurado com o fito de deserdar o neto natural, encerrado em1459 com o parecer régio.

4. ObrasA obra de Fernão Lopes só foi impressa pela primeira vez em

1644, por Antônio Álvares. E a sua reedição só viria a sair em 1897, dirigidapor Luciano Cordeiro, que, no Prefácio, destaca a intenção nacionalistada mesma.

Se com o Romantismo, notadamente através de Herculano, ocor-reria a justa valorização das crônicas de Lopes, seria apenas na segundametade do século XX que surgiriam as edições críticas das crônicas de D.Pedro (1955) e D. Fernando (1975), realizadas pelo italiano Giuliano Macchi,ficando por fazer a de D. João I (primeira e segunda partes).

Para a explicação desse atraso na impressão de tão importanteobra, cremos ser oportuno lembrar que o escritor medieval vivia em regimede mecenato, e os cronistas funcionavam como porta-vozes da ideologia dacorte ou da instituição que os mantivesse. De grande eficácia, a difusão dassuas idéias se dava também pela leitura em voz alta dos manuscritos, comose pode deduzir do estilo marcadamente oral do próprio Fernão Lopes. Vi-mos que muito provavelmente a simpatia de Fernão Lopes pelas reivindica-ções populares se chocou com as necessidades do novo pessoal dirigentepós-Alfarrobeira, o que explicaria o seu afastamento imediato do cargo decronista-mor, como também o pouco caso que cercará por muito tempo asua obra.

Outros motivos podem ser aventados para justificar esse silênciode séculos, dentre eles a preocupação do cronista em narrar a verdade. Con-forme observou Manuel Rodrigues Lapa (1973, p. 358-359), o próprio es-critor pressentia que a sua sinceridade não agradaria a muitos. Isto se com-prova nas irônicas palavras que seguem à apologia dos heróis da revolução:

E quem no comto destes martires e apostollos nom achar seu pay ou irmaãoou alguu paremte a que gram bem queira, nom doeste porem esta obracom gram trabalho hordenada; a quall todos nom pode comtemtar, assicomo huu vemto nom pode comprazer a desvairados mareamtes; mas ajaaquella paçiemçia que os samtos ouverom, que nom ssom postos na lada-inha, nem na sacra que dizem aa missa (LOPES, 1977, p. 306).

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Lapa ainda aponta o “incurável desleixo” que, segundo ele, caracte-riza o português como causa da obra do cronista permanecer tanto tempo semser publicada. Além do mais, o bafejo nacionalista que a percorre era inoportu-no ao domínio filipino sob o qual esteve Portugal de 1580 a 1640. E, ainda,tinha contra ela o menosprezo dos renascentistas por tudo o que fosse medieval.

A escrita das crônicas ocorre em um momento em que, em Portu-gal, a literatura documentada se restringe à prosa: os anos que correm de 1350a 1450 assistem aí a um ‘vazio poético’ até hoje ainda não historicamenteexplicado44. Anteriormente, nos dois primeiros séculos do reino, ocorrera,como sabemos, fecunda produção de uma poesia não independente, mas ga-lego-portuguesa, coligida nos velhos Cancioneiros.

Na época de Fernão Lopes, a então iniciante dinastia de Avis ad-quire, traduz, realiza e incentiva a realização de obras que vêm combater omarasmo cultural dominante. A própria família real é autora de prosas didáticascomo o Livro da montaria de D. João I, o Leal conselheiro e a Arte de bemcavalgar toda sela de D. Duarte, a Virtuosa benfeitoria do Infante D. Pedro,que, como vimos, também foi tradutor de obras antigas, inclusive de Cícero.

Mas a produção que marcaria sobremaneira o final do períodocitado é, sem dúvida alguma, a do cronista Fernão Lopes que, a mando de D.Duarte, escreveria as Crônicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João I (1a. e2a. partes), esta última, ao que tudo indica, à volta de 1440.

É provável que tivesse sido também o autor das crônicas dosprimeiros reis, que seriam posteriormente reescritas por Duarte Galvãoe Rui de Pina; este, confiado exageradamente na permissão de plágiocorrente na época, lamentavelmente não faria referência a nenhuma pro-dução anterior.

São muitas as justificativas que têm sido apontadas pelos que defen-dem tal pressuposto. A começar pelo fato de ter sido Fernão Lopes encarregadopor D. Duarte, conforme foi citado anteriormente, de escrever a história de todosos reis de Portugal até, e inclusive, D. João I, fato que o escritor confirma comotendo realizado nas suas crônicas conhecidas, a saber:

Na Crônica de D. Pedro, refere-se a uma ordem obedecida, “noprimeiro prollogo já tangida” (1966, p. 87); e atesta a escrita de, pelo menos,a crônica do rei anterior, D. Afonso IV:

44 A propósito se pronuncia, dentre outros, MARQUES, 1979, p. 22 e 227.

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Morto el-rrei dom Affonso, como avees ouvido, rreinou seu filho ho Iffantedom Pedro, avendo estonce de sua hidade trinta e sete anos e huu mes edezoito dias. E porque dos filhos que houve, e de quem, e per que guisa,ja compridamente avemos fallado, nom compre aqui rrazoar outra vez(LOPES, 1966, p. 91; sublinhamos).

Na Crônica de D. Fernando, tal fato se confirma:

Asi aveho em esta sazom que em Elvas avia huu escudeiro bem mance-bo, chamado per nome Gill Fernandez, filho de Fernam Gill, neto deGill Lourenço, prioll que fora de Santa Maria do dito logo, o quall foihomem de bõo esforço e pera muito, segundo dissemos na estoria d’el-rrei dom Affonso o quarto (LOPES, 1975, p.123; sublinhamos).

Na Crônica de D. João I, primeira parte, menciona a escrita dacrônica de D. Henrique, bem como a existência, na origem, de dois volumesde uma “Crônica de Portugal”, da qual teria sido possivelmente o iniciador,sendo que o segundo volume compreenderia a Crônica de D. João I e oprimeiro a crônica dos reis anteriores a este, os afonsinos:

de guisa que como no começo desta obra nomeamos fidallgos alguus,que ao Comde dõ Hamrrique ajudarom gaanhar a terra aos Mouros;assi neeste segumdo vollume diremos huus poucos dos que ao Meestreforom companheiros em deffender o rreino de seus emiigos (LOPES,1977, p. 299; sublinhamos).

Anselmo Braamcamp Freire invoca, a propósito da existência deuma Crônica Geral do Reino, o testemunho do cronista sucessor de FernãoLopes, Zurara, no mister de realizá-la, citando-lhe as palavras:

Siga Azurara: “como na Chronica geral do Regno mais largamente podeisachar, onde fallamos do tempo que este Rey Dom Affonso, que este Livromandou escrepver, começou de Regnar, e que o Infante Dom Pedro regeoestes Regnos”. Mais adiante: “No mes dAgosto desta Era (1437)passarom os Infantes em Cepta, para hir sobre Tanger, como de feitoforom, segundo podees ver na Chronica geral do Regno”. A não serFernão Lopes, ninguém antes de Azurara tivera o encargo de escrever ascrónicas dos reis, e como ele próprio declara haver o seu antecessor che-gado com a sua obra até à paz celebrada entre D. João I e Castela, deveráentender-se que a alegada Chronica geral do Regno formava um todo,parte coordenado por Fernão Lopes, parte composto pelo seu sucessorno cargo de cronista (FREIRE, 1977, p. XXXIV – XXXV).

Ao quinhentista Damião de Góis cabe o papel de ter sido o primeiroa advogar, para o cronista, a autoria das crônicas de todos os reis da Dinastia

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Afonsina, com base no testemunho das crônicas, de que citamos alguns exem-plos. E não se limita a denunciar o “furto” de Rui de Pina45, atribuindo ao“copioso, e discreto escritor Fernam Lopes” a realização das primeiras crôni-cas reais portuguesa. Atribui-lhe também a autoria de toda a Crônica de D.João I, inclusive a terceira parte, assinada por Zurara46, e, ainda, a da Crônicade D. Duarte – no que é contestado por Anselmo Braamcamp Freire:

Que o historiador pretendia escrever a crónica daquele rei, não há dúvi-da, na 2a. parte da Crónica de D. João I, nos capítulos 148 e 204 (da ed.impressa) citados pelos dois críticos [Damião de Góis e Francisco Manu-el Trigoso de Aragão Morato], ele o dá claramente a entender; mas, seisto é certo, também certo é Azurara afirmar, como já vimos, não haverFernão Lopes avançado na Crônica de D. João I para cá do tempo daspazes com Castela, isto é: do ano de 1431. Além do testemunho do autorda Crónica de Guiné ser do maior peso, também não é crível que FernãoLopes, não tendo vagar nem saúde para terminar a história de D. João I etrazendo as crónicas dos reis seguidas, se tivesse adiantado com a com-posição da de D. Duarte. Não creio pois que a houvesse sequer começa-do, o que não impede de ter, é possível, reunido material para ela. Salvopois este ponto, no mais estou de perfeito acôrdo com a crítica de Góes ede Trigoso (FREIRE, 1977, p. XXXVII- XXXVIII).

A elucidação do problema de autoria das crônicas dos primeirosreis se torna mais difícil até porque delas só restaram exemplares truncados,possíveis rascunhos47, como a Crônica dos cinco primeiros reis de Portugal –manuscrito redigido em 1419 e descoberto por Magalhães Bastos na Biblio-teca Municipal do Porto, em 1942 –, e a Crônica dos sete reis – manuscrito

45 RUSSEL (1941, p. 10) apresenta duas hipóteses para o desaparecimento das primeirascrônicas de Fernão Lopes: “é costume atribuir o desaparecimento ao arquivista e cronistaRui de Pina. Em começos do século XVI, Pina compôs crônicas dos primeiros reis dePortugal, plagiando, ao que parece, as de Fernão Lopes. O plágio era habitual e inevitável,mas afirma-se que Rui de Pina foi mais além e destruiu os manuscritos de Fernão Lopes nointuito de ocultar quanto lhe devia. A acusação ainda não foi de todo demonstrada: outratradição atribui a perda a Justo Baldino, dominicano italiano que à volta de 1460 foi encar-regado de verter em latim as crônicas de Fernão Lopes. Baldino morreu da peste em Almadae há quem afirme que os manuscritos de Lopes foram em parte destruídos ou se perderamnessa ocasião.”46 A propósito, quando da minha estada em Portugal, em 1979, objetivando reunir dados paraa elaboração desta tese, o Professor Antônio José Saraiva sugeriu-me que pesquisasse asmarcas do estilo de Fernão Lopes na Crônica da Tomada de Ceuta, de Zurara (?), tendendo aendossar a tese de Damião de Góis.47 Cf., a propósito, CINTRA, 1951, p. 252 – 263.

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encontrado por Carlos da Silva Tarouca no arquivo da casa dos Duques de Cadavalem Muge, 1945, posteriormente divulgada como Crônica de 1419, com textosemelhante ao da primeira, mas prolongado até ao reinado de Afonso IV.

Amélia Maria Cavalcanti Lacombe (1979) se refere aos pontos decontato entre essas crônicas e as crônicas conhecidas de Fernão Lopes, comoo fato de se basearem igualmente no critério de causa e efeito e na preocupaçãocomum com uma ordenação clara e definida, com vistas a uma melhor com-preensão da narrativa por parte do leitor. Cada crônica é considerada “comoum capítulo independente dentro de um sistema maior, a Crônica de Portu-gal” (LACOMBE, 1979, p. 6). Isto se justificaria pelas citações do autor acer-ca de escritos passados e futuros, bem como pela semelhança entre o Prólogoda Crônica de D. Pedro, apontando-lhe a finalidade e a necessidade religiosa,e o capítulo III da Crônica de 1419 ([1945], p. 51), que trata da “muj nobrecollação” que D. Henrique fizera a seu filho Afonso Henrique pouco antes demorrer, “como home muj entendido que elle era mostrandolhe que cousa erajustiça”:

Filho porque o poderio nobre aas gentes para isso he estabelecido portal que os maos seiaõ constrangidos e os bons viuaõ entre elles emassossego e em paz. & porque hua das cousas que a Ds apraz muito assihe de sere reficados aquelles que em sua maldade querem perseuerar,porem meu fº aue sempre em teu coraçom vontade de fazer iustiça a qualhe virtude... (CRÔNICA de 1419, [1945], p. 51).

Compare-se ao citado Prólogo da Crônica de D. Pedro:

Leixados os modos e diffinçoões da justiça que per desvairadas guisasmuitos em seus livros escrevem, soomente d’aquella pera que o rreal po-derio foi estabelecido, que he por seerem os maaos castigados e os bõosviverem em paz, (…). E porquanto el-rrei dom Pedro, cujo rregnado sesegue, husou da justiça – de que a Deus mais praz... (1966, p. 87).

A isto se acrescenta o fato de que certos episódios se iniciam numacrônica e se completam em outra, garantindo-lhes a interdependência – o queé incontestável a partir da Crônica de D. Pedro.

De contraditório entre as primeiras crônicas conhecidas de FernãoLopes e as de sua autoria inquestionável, aponta Lacombe (1979, p. 118-119)o fato de que, naquelas, o narrador tem como verdadeiro o casamento de D.Pedro e D. Inês, ao passo que na Crônica de D. João I João das Regras prova-ria que tal casamento nunca se realizara legalmente. Dessa forma, assegurariao direito do Mestre de Avis ao trono, inclusive com o apoio da única testemu-

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nha viva da não realização desse casamento, Diogo Lopes – aquele mesmoque, acusado de ser um dos assassinos de Inês de Castro, escapara providen-cialmente da vingança de D. Pedro.

Já Armando Lopes Rosendo (1962) lançara muitas dúvidas a res-peito da atribuição, a Fernão Lopes, da autoria da Crônica de 1419, com baseno exame das características da historiografia da época. Embora reconhecen-do a existência de um trabalho de conjunto que ultrapassa uma só crônica,marcado pela “razão como critério de verdade” e por remissões entre a Crôni-ca de D. Fernando e a de Sancho II (cap. VI), por exemplo, aponta, na Crôni-ca de 1419, a ausência de certas características comuns a Fernão Lopes,como: o estilo irônico, a alusão aos fatos econômicos e financeiros, as ‘bon-dades’ do soberano no início de cada reinado – à exceção de D. Dinis muitoreduzidas –, a limitação dos aspectos culturais ao conhecimento da Escritura.

Rosendo também aponta o fato de não existirem provas48 de queFernão Lopes tivesse exercido a função de cronista antes da carta régia de 19de março de 1434, e de ser dubitativa a interpretação de simples autoridademoral para a afirmação “…nos ho iffante fizemos esta Coronyqua”49 , queatribui a D. Duarte a possível autoria da Crônica de 1419. Mas como, a pardesses aspectos contrários à atribuição de autoria existem outros que reco-nhecidamente a creditam ao cronista, conclui que a “concórdia discorde” exis-tente entre a Crônica de 1419 e as obras reconhecidamente de Fernão Lopesé resolvida por Luís Felipe Lindley Cintra, que admite ser de um rascunho oestado do texto no códice portuense.

Daí acatar-se, por indiscutível, que completas e marcadas pelo es-tilo fernãolopeano são só as crônicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João I(1a. e 2a. partes) – as duas primeiras, como dissemos, já apresentando cuida-dosas edições críticas, respectivamente de 1966 e 1975, realizadas pelo eru-dito italiano Guiliano Macchi que é também autor, dentre outros estudos, deminuciosa bibliografia sobre Fernão Lopes (1964).

Também já a Fernão Lopes fora atribuída a autoria da Crônica doCondestável, hipótese que levantou muitas polêmicas, afastada após tese de-fendida por Hernâni Cidade (1931), que se apoiou em critérios estilísticos,ideológicos e cronológicos. Começando por apontar as identidades e as dife-renças, principalmente estas, entre a Crônica do Condestável e as crônicas deFernão Lopes que a tiveram por fonte – a Crônica de D. Fernando e a de

48 Cf., a propósito, PIMPÃO, 1959, p. 225.49 Cf., a propósito, BASTOS, 1960, p. 468.

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D. João I –, conclui que: a Crônica de D. Fernando, escrita antes da Crônicado Condestável, é-lhe no entanto superior em dramaticidade e perfeição derecursos estilísticos, prenunciando a Renascença; que, quando a Crônica doCondestável foi composta, por volta de 143550, seria Fernão Lopes jácinquentão, estando portanto completamente maduro na arte da prosa; que aCrônica de D. João I é superior na forma e na narrativa à Crônica doCondestável, opondo-lhe certas correções irônicas, indignadas, que denunci-am o ardor ‘nacionalista’ de Fernão Lopes, não encontrável naquela crônicasenhorial. Enfim, opondo-se a Anselmo Braacamp Freire, Esteves Pereira eAubrey Bell aponta diferenças de linguagem, narrativa e atitude, ressaltandosobretudo a existência, na Crônica do Condestável, de páginas que pecamcontra o ‘nacionalismo’, e que, por isso mesmo, jamais poderiam ter sidoescritas por Fernão Lopes.

Resta considerar que os manuscritos das crônicas, hoje existentes,são todos cópias apógrafas, em sua maioria do século XVI. Do punho deFernão Lopes é tão somente o Testamento do Infante D. Fernando e seu res-pectivo Instrumento de aprovação51. Os demais documentos autógrafoscorrespondem a certidões feitas por escrivães a seu mando, na qualidade deguarda-mor da Torre do Tombo, apenas assinadas por ele que, em algunscasos, as anotava, consertava ou rasurava. No final das mesmas, antes daassinatura, vinha indicado quem as redigira: “gonçalleanes a fez” (as maisdas vezes), “afonso perez gonçalo anes a fez”, “ martim vaasquez a fez” (ApudFREIRE, 1977, p. LXIII-LXX).

5. Fontes historiográficasQue a sua obra “he compillada” não o esconde o cronista, decla-

rando-o em numerosos passos das suas crônicas, como por exemplo na Crô-nica de D. João I, primeira parte, quando confessa que “esta obra hecompillada, segumdo a pouquidade do nosso emgenho” (LOPES, 1977, p.298). Atribui a si o trabalho de dar nova ordenação aos fatos, “come ajuntadorem huu breve moolho dos ditos d’alguus que nos prouguerom”, segundo de-clara no Prólogo da Crônica de D. Pedro (LOPES, 1966, p. 87), ao tratar dadefinição de justiça que o norteará.

50 Cf., a propósito, RUSSEL, P.E. Op. cit, p. 30.51 Assunto de tese (ARAÚJO, 1961), orientada pelo Professor Doutor Luís Filipe LindleyCintra.

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De há muito o qualificativo de ‘pai da historiografia portugue-sa’, tornado exemplar por Alexandre Herculano, vem sendo contestado pelacrítica especializada, mostrando, através do estudo das fontes de Fernão Lopes,que antes dele já existia toda uma tradição historiográfica peninsular e atémesmo portuguesa, aproveitada e depurada pelo cronista, que se transformouno ápice dessa tradição.

O excelente estudo de P. E. Russel (1941) a respeito não deixa deaventar nem sequer as possíveis fontes constituídas por crônicas perdidas.Dentre as fontes castelhanas, citam-se o Chronicon mundi, de Lucas de Tuy,De rebus hispaniae, de Rodrigo de Toledo, e, com mais certeza, a primeiraCrónica General de España, de Afonso X, o Sábio, que o seu neto D. Dinismandara traduzir para o português. Quanto às fontes portuguesas, dentre elasestariam as narrativas históricas, através das quais, nos mosteiros de Alcobaça,Santa Cruz de Coimbra e Santo Antônio de Lisboa, se dava continuidade àtradição historiográfico-monástica de Castela: o fragmentado Chroniconconimbricense; a Chronica gothorum, que trata da formação do reino portu-guês e das lutas e conquistas de Afonso Henriques, com a vantagem de ser-lhes contemporânea; o Chronicon alcobacense, talvez do século XIV, quefocaliza acontecimentos posteriores ao nascimento do primeiro monarca por-tuguês; a Chronica breve do Arquivo Nacional, que foi a primeira totalmenteescrita em vernáculo, à volta de 1390, para uso da chancelaria real, objetivandoevitar fraudes nos requerimentos de posse e consistindo em apontamentosrespeitantes à época que vai do Conde Henrique de Borgonha até à morte deD. Dinis, em 1325; e o códice de Santa Cruz de Coimbra, com crônicas deconteúdo heterogêneo e datas várias e imprecisas. A estas se acrescentariamcrônicas mais específicas, como a Crônica da fundação do mosteiro de SãoVicente de Lisboa e a Crônica da conquista do Algarve.

Também a prosa narrativa dos hagiolários teria constituído impor-tante herança para Fernão Lopes. A Vita Tellonis Arquideaconi fora traduzidapara o português em 1445, “seguindo uma tendência que se ia generalizandocontra o uso da língua latina” (RUSSEL, 1941, p. 14)52 ; e já no século XIVexistiriam cópias vernáculas da Vida da Rainha Santa Isabel.

Fontes importantes teriam sido ainda os Livros de linhagens,notadamente o Livro velho, que trata do período de 1085 a 1300, e o Nobiliário

52 Essa informação enfraquece a tese de José Hermano Saraiva (1977), a respeito do ‘sabercomunal’ de Fernão Lopes, que não usara o latim por ser-lhe inacessível; Saraiva sublinha sero latinismo preponderante na época, e não tendente ao enfraquecimento, como quer Russel.

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do conde D. Pedro, cujo autor já atribuía importância aos documentos e àvariedade de fontes utilizadas na elaboração do Nobiliário, trabalho que seinterromperia em 1354, com a sua morte.

Fica, então, patente a existência de toda uma escola portuguesa dehistoriografia anterior ao cronista, que não foi, portanto, o ‘pai’, mas o grandeaprimorador da tradição historiográfica.

Para a elaboração da Crônica de D. Pedro, as fontes seriam escas-sas, uma vez que no período aconteceram poucas guerras e foram raros osfeitos milagrosos, assuntos por excelência dos cronistas monásticos, que nãoteriam tido por isso matéria para os seus escritos.

Chegou-se mesmo a cogitar que por falta de assunto essa crônicase ocuparia excessivamente de feitos castelhanos. Mas, como inclusive jánotara Russel (1941, p. 17), não há exagero nem gratuidade no fato, uma vezque, dos seus 44 capítulos, 16 tratam de Pedro de Portugal, 1 de Diogo Lopes,1 do Mestre de Avis, 16 de Pedro de Castela e 10 de alianças, de acordos etratados entre os dois países. Há, portanto, equilíbrio estrutural na crônica. Ea preocupação com os feitos castelhanos se justifica pelo princípio de causa eefeito que norteia a historiografia de Fernão Lopes, sobretudo porque oenvolvimento de D. Fernando, ao início do seu reinado, nas lutas dinásticasde Castela teriam seu fundamento nos feitos de Pedro, o Cruel.

Aubrey Bell (1931, p. 60) considera que a Crônica de D. Pedro é“fragmentária e episódica, passa de Portugal para a Espanha, de Pedro I dePortugal para Pedro, o Cruel de Espanha”. Pensamos, com Armando LopesRosendo (1962, p. 78 e ss.), que tal juízo é “precipitado e injusto”, uma vezque “a Crônica se integra no esforço de ordenação de toda a vasta obra deFernão Lopes, o que prova uma intenção do autor de estruturar numa unida-de todas as crônicas” (ROSENDO, 1962, p. 69).

Comprova o nosso parecer o exame do próprio Prólogo da crôni-ca, que apresenta como tema a ser desenvolvido o da justiça dos reis, sendoque o confronto entre Pedro de Portugal e Pedro, o Cruel, de Castela só fariapor realçar as qualidades de justiceiro do primeiro, que tem suas faltas ameni-zadas pelas muitíssimo mais graves do segundo. Para não falar da já mencio-nada finalidade de compreensão da causalidade histórica, uma vez que Portu-gal interveio nas lutas de Castela “per mar duas vezes, e duas per terra”(LOPES, 1966, p. 150); e, sobretudo, porque

nom avendo alguua noticia das cruelldades e obras d’este rrei dom Pedrode Castella nom podem bem viir em conhecimento quall foi a rrazom

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por que el depois fogio de sseu rreino e se viinha a Purtugall buscar ajudae acorro, e como depois de sua morte muitos logares de Castella se derama el-rrei dom Fernando e tomarom voz por elle (LOPES, 1966, p. 151).

Portanto, é o próprio Fernão Lopes quem se refere aos imperativos dalógica, que o fizeram entremear na sua crônica capítulos da história de Castela, eainda “porque alguus, ouvindo aquesto, desejaróm saber que guerra foiesta, ou porque sse começou e durou tanto tempo” (LOPES, 1966, p. 151).

Embora reconheça a princípio que “fallar d’esto podiamos bemescusar, por taaes cousas seerem feitos de Castella e nom de Purtugall”53,essas lutas teriam de ser narradas para compreensão das atitudes posterioresde D. Fernando. E para a realização de tal propósito, a fonte narrativa maisimportante seria a Crônica de D. Pedro de Castela, de Pero Lopes de Ayala,que o cronista ora traduz literalmente, ora resume, ora completa ou critica,tendo por base outras fontes, contando-se entre as castelhanas a Crônica Ge-ral de Espanha, possivelmente na sua tradução portuguesa.

Dentre as fontes portuguesas estariam: documentos de chance-laria de D. Pedro I54 e outras fontes documentais que existiram na Torredo Tombo, cartas diplomáticas e bulas papais, apontamentos que teriamservido de base para o Livro da Noa (tido por alguns como fonte docronista), moedas, os túmulos de D. Pedro e D. Inês em Alcobaça e até,possivelmente, anedotas de origem desconhecida (talvez cantigas de es-cárnio, que continuariam a ser cultivadas, embora não subsistissem nosCancioneiros ao tempo de D. Pedro).

Aliás, a importância dessa crônica, como das subsequentes, se es-tabeleceria até pelo fato de veicular a possibilidade de restauração da desapa-recida correspondência diplomática medieval, como também de outros do-cumentos da época – testamentos, alvarás, certidões de doações de terras,moedas, etc. –, dos quais é a única testemunha.

No tocante à originalidade do cronista, adiantamos que ArmandoLopes Rosendo (1962, p. 88-89), procedendo ao cotejo dos textos de FernãoLopes e Ayala, faz crer que a mesma se encontraria principalmente na superi-or ordenação dos dados. Certas expressões, corriqueiras na obra do autorportuguês, como “por non sair fora de proposito”, “segundo rrequere ahordenança desta obra” (LOPES, 1966, p. 269), etc., são demonstrativos dasua preocupação com a ordenação dos fatos, preocupação esta não

53 Cf. PERES, 1965, p. XVIII e ss.54 Divulgados por PERES, 1965, p. XVIII e ss.

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exteriorizada tão marcadamente por Ayala; muito embora algumas técnicasordenativas, consideradas por alguns críticos desavisados como típicas docronista português, já tivessem sido exploradas pelo castelhano, como as ex-pressões “segund avemos oido” e “segund oiredes”; para não falar da apre-sentação, no final de um capítulo, da matéria do capítulo seguinte, fato corri-queiro na historiografia da época .

Como sua fonte, também Fernão Lopes se guia por critérios cro-nológicos; mas deles se afasta sempre que necessário, para ater-se ao seusubordinante princípio de causa e efeito. A serviço deste, os sumáriosexplicativos e justificativos, como o que antecede à narração das lutascastelhanas, transcrita anteriormente, e que objetivam informar ao leitorsobre o plano e a ordenação da matéria, bem como revelar as causas deacontecimentos por narrar. A serviço da melhor compreensão dos sucessoshistóricos é que adiciona certas explicações à matéria colhida em Ayala,bem como estatísticas e interpretações próprias de dados, reunindo aindapormenores dispersos, com a finalidade de fornecer uma visão ainda maiscompleta e mais lógica do narrado.

Para finalizar, há de se notar que a visão providencialista da história,tão atuante em Ayala, é colocada de lado por Fernão Lopes nesta Crônica de D.Pedro. A exceção seria o sonho profético de D. Pedro relativo ao seu filho D.João, candidato ao Mestrado de Avis, como veremos adiante.

Aliás, já nessa crônica se anuncia o grande artista do movimento eda cor, bem como o aficcionado pela filosofia, estabelecendo reflexões sobrea verdade, por exemplo. Inesquecíveis são os quadros, como o do bárbaro reia distribuir justiça ou a dançar à noite, no meio do povo, à luz dos archotes. Aperspectiva, inaugurada com o gótico, já aí se evidencia no enfoque dos vári-os acontecimentos, para atingir seu ponto culminante na Crônica de D. JoãoI, onde do rosto amorfo da multidão que se movimenta sem cessar se destacaum que outro líder.

·Para a Crônica de D. Fernando, o cronista pôde contar com um

número bem maior de fontes, narrativas e documentais. E, conforme notaRussel (1941, p. 23), “a sua maior coesão íntima e perícia estilística indicamque o cronista levou tempo a preparar-se”.

Além das numerosas fontes narrativas perdidas de autores nãonomeados, mas sobejamente indicadas pelo autor, em expressões do tipo“…Outros afirmam…” (LOPES, 1975, p. 83), foram utilizadas a Crônica do

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Condestável e uma crônica de Martim Afonso de Melo. A Crônica doCondestável foi aproveitada para a elaboração dos capítulos finais da Crôni-ca de D. Fernando, ao que tudo indica não na versão hoje corrente, impressaem 1526 e que seria um simples resumo da versão original – esta, sim, a queteria servido de base ao cronista, que, no entanto, não deixa de criticar-lhe asinexatidões. A obra de Martim Afonso de Melo é uma das duas únicas fontesnarrativas nomeadas por Fernão Lopes, que lhe critica a parcialidade – Melofoi homem de influência na época, chegando a ser governador de Ceuta em1415; teria escrito um volume de estratégia militar (Da guerra) e uma possí-vel crônica, obras desaparecidas mas indicadas por Zurara.

Outras fontes seriam os Livros de linhagens, folhetos e pequenostratados eclesiásticos, bem como uma narrativa que teria servido de base tam-bém ao monge de Santa Cruz para a elaboração do Livro da Noa.

Quanto às fontes documentais, naturalmente que seriam em nú-mero muito superior às utilizadas na Crônica de D. Pedro, até por haver tidoD. Fernando grande preocupação com a legislação. Teriam servido ao cronis-ta os velhos Livros de Chancelaria, dos quais só subsistiram as versões resu-midas feitas por Zurara, trabalho de que foi encarregado em 1459; graças aFernão Lopes se torna hoje possível a reconstituição do material perdido.Lopes teve ainda por fontes a correspondência diplomática e particular, osarquivos monásticos e, possivelmente, documentos militares.

Com relação à Crônica de D. Fernando, Maria Emília de MatosGago (1963) e Maria Emília Duarte Geada (1964) apontaram os afastamen-tos existentes entre ela e a sua principal fonte – as Crônicas de D. Henrique IIe D. João I de Castela, de Ayala. A exemplo do que ocorrera em relação àCrônica de D. Pedro, destacam elas a superioridade ordenativa do escritorportuguês que, não se limitando a seguir o critério cronológico da sua fonte,guia-se também pelo critério antropológico, centralizando os acontecimentosem função de personagens importantes. A diferença entre os cronistas podeser observada inclusive em relação aos títulos dos capítulos, procedendo FernãoLopes a um trabalho de seleção e síntese, ora reunindo vários títulos no queconsidera subordinante, ora modificando expressões ou até o próprio títuloapresentado por Ayala, com vistas à clareza. Outro distanciamento diz respei-to aos Prólogos que Fernão Lopes antepõe a cada crônica, o que já não acon-tece na obra de Ayala, que apresenta apenas um Prólogo antes do início daprimeira crônica, a de D. Pedro I, de Castela. E para além dessas peculiarida-des observadas na composição da narrativa, os cronistas apresentam dife-

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rentes visões dos acontecimentos, provocadas pelo comprometimento de cadaqual com os seus monarcas, com perigo para a imparcialidade.

Observam Gago (1963) e Geada (1964) que, se é indiscutível acapacidade ordenadora, seletiva e de síntese do cronista português, noentanto não se pode deixar de reconhecer na sua principal fonte castelhanacertas marcas de estilo tidas como originais de Fernão Lopes, como atémesmo a narração animada e pitoresca, já presente na sua fonte, emborade forma não tão acentuada. E pode-se constatar, facilmente, na obra docronista da Dinastia de Avis, todo um trabalho de depuramento estilístico,toda uma busca de expressões mais sugestivas, de maior simplicidade erealismo – como por exemplo o uso do discurso direto, às vezes transfor-mação do discurso indireto de Ayala, bem como o uso de expressões pró-prias da linguagem oral.

Podemos, pois, concluir que a ordenação e a elegância da redaçãoviva e sugestiva fazem-no superior estilisticamente a Ayala, que, no entanto, éàs vezes traduzido fielmente. Outras vezes é traduzido livremente, quandoacontecem as supressões de nomes e minúcias sem interesse e de repetiçõesdesnecessárias, bem como transposições e acrescentamentos, sendo muitosos momentos de discordância entre os dois. O que indica não ter sido esta afonte exclusiva de Fernão Lopes, que lhe discute as informações, mas quenão deixa de ser, também, algumas poucas vezes, incorreto em sua obra –com referência a algumas datas, números e topônimos (GAGO, 1964, p. 55-62). Isto apesar de dar mostras constantes da sua preocupação com a verdadedocumentada, com a fidelidade aos documentos, como por exemplo no se-guinte passo da Crônica de D. Fernando: “mas porque nehuua cousa queelles entom fazessem achamos em escripto, nom o podemos poer emestoria …” (LOPES, 1975, p. 128).

.Quanto à Crônica de D. João I, a sua fonte portuguesa mais impor-

tante é a Crônica do Condestabre, melhor dizendo a sua “Crônica-mãe”,como a chamou Russel (1941, p. 37). Essa fonte, algumas vezes criticada porFernão Lopes, em muitos passos é transcrita literalmente; em outros lhe sãofeitas omissões ou alterações que transformam “a história que é contada e,sobretudo, a personagem do herói”, conforme conclui Teresa Amado (1997,p. 227), dentre outros aspectos, após cuidadosa demonstração contrastiva.

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Outra fonte de destaque, referida pelo cronista, seria uma crônicalatina do reinado de D. João I, do “decretorum douctor” “Crisptoforus”(LOPES, 1977, p. 329-330). Este seria ao que tudo indica um eclesiástico,sendo a autoridade mais elogiada e creditada pelo cronista e que ter-lhe-iaservido de base para a interpretação da atitude da Igreja em Portugal na Revo-lução de 1383-85. Sua herança ainda se faz presente nos procedimentosretóricos utilizados, como os exemplos bíblicos. Os sermões inseridos na obra,do frade franciscano Rodrigo de Sintra, bem como as profecias de Frei Joãoda Barroca e a atividade militante do arcebispo de Braga, são outras tantasmostras do aproveitamento dessa fonte pelo cronista, que destaca a importân-cia do clero na resistência nacional.

A principal fonte castelhana seria a Crônica de D. João I de Castela,de Ayala. E, como as demais obras do cronista castelhano utilizadas, seriatraduzida literalmente ou livremente, ora com supressões, ora com acrescen-tamentos, reordenações, transposições e até omissões de fatos demeritóriospara a causa de Avis; como, por exemplo, o que segue, citado por AuroraCatarino de Matos:

é decian al Maestre Davis que él tomase el regimiento del Regno por eldicho Infante Don Juan, hasta que le pudiesen aver suelto de la prision enque el Rey de Castilla le tenia. E muchas cibdades é villas del Regno éFijos dalgo tenian esta demanda. E ficieron facer un pendon á quinas dePortogal, é en la vara del pendon era pintado el Infante Don Juan comoestaba en cadenas (Apud MATOS, 1964, p. 43).

Conforme observou Matos, Fernão Lopes não faz menção a essabandeira, que teria por signo o infante D. João, filho de D. Pedro com Inês deCastro, preso em Castela, embora seja um fato referido por historiadores por-tugueses55. Se ele não refuta o texto de Ayala, como o faz tantas vezes quandoconsidera seus dados incorretos, é porque a simples omissão do fato seriamuito mais vantajosa para a causa que defende – a de ter o Mestre de Avisdireito à coroa portuguesa, negando ao infante preso, que fora inicialmente opreferido pela nobreza tradicional portuguesa para a sucessão do seu meioirmão D. Fernando, o poder ser reconhecido como sucessor de direito.

A propósito, conclui Teresa Amado (1997, p. 228), após minucio-sa comparação, que Ayala é a principal fonte de Fernão Lopes para assuntoscastelhanos, embora não possa ser considerada a única; nas vezes em que

55 Cf., a propósito, ARNAUT, 1960, p. 175 (nota 3).

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aceita a versão de Ayala, “fá-lo mais submissamente do que no caso da Crónicado Condestabre”; “aproveita a informação mas altera quase sempre o discur-so, exceto na transcrição de documentos”; “tanto como o respeita, considera-o pouco escrupuloso e faccioso, e dirige-lhe as acusações mais acerbas que seencontram na Crônica”, rivalizando com ele, com seus pontos de vista.

Às fontes já citadas, acrescentam-se os Livros da Chancelaria e aobra de Martim Afonso de Mello, mencionada a propósito da Crônica de D.Fernando, o qual, como o doutor Christophorus, é nomeado expressamentepelo cronista.

Citem-se também os epitáfios do mosteiro de Alcobaça e as cole-ções de sermões, que dariam à obra um ‘tom heróico e por vezes retórico’,como diria Russel (1941, p. 37), e às quais Fernão Lopes teria acesso nalivraria de D. Duarte, que incluiria, entre seus livros, um de pregações e umacoletânea semelhante de autoria de um certo Frei Vicente.

Quanto às fontes documentais, embora ainda consideradas fun-damentais, não seriam usadas em tão larga escala quanto nas crônicas anteri-ores. E dentre elas contar-se-ão, além dos Livros da Chancelaria, bulas pa-pais, documentos diplomáticos e cartas particulares, bem como “cartarios depodres scripturas” e “bitafes amtiigos” (LOPES, 1977, p. 299), conformetestemunho do cronista e do seu sucessor, Zurara. Este testemunha, na tercei-ra parte da Choronica de el-Rei D. João I (1899, p. 25), que seu antecessorFernão Lopes andara “por todas as partes do reino para haver compridainformação do que havia de começar” e “despendeo muito tempo em andarper os mosteiros e igrejas, buscando os cartorios e os letreiros delles peraveer sua informaçom”.

6. OriginalidadeComo vimos, Fernão Lopes utilizara um vasto material acumula-

do pelos escritores que o precederam, em sua maioria hoje inexistente. Istoafere-se apesar de na Idade Média os autores não assinarem as suas obras, epor isso os “desvairados autores” a que Fernão Lopes faz menção seremanônimos, à exceção de Martim Afonso de Melo e do Doutor Christophorus.

Como confessa no famoso Prólogo da Crônica de D. João I(LOPES, 1977, p. 2), com “cuidado e diligemçia”, com “longas vegilias egrandes trabalhos” realizou a sua obra, coletando dados em “livros de des-vairadas linguagees e terras” e “pubricas escprituras de muitos cartarios eoutros logares”.

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Perante as suas fontes, assume uma atitude crítica, ora apresentan-do as várias versões de um fato para que o leitor escolha a que lhe parecermais certa, habilmente dirigindo-o nesse sentido, ora ajuizando sobre a ver-são que lhe parece mais verossímil, ora apresentando apenas a que julga maisdigna de crédito.

Importa lembrar que, a par das fontes escritas de que o cronistase servira, haveria também as fontes orais, embora não na dimensão emque as coloca Moraes Sarmento (1924), atacando o valor histórico dascrônicas56. Teriam existido até porque os seus contemporâneos mais ido-sos presenciaram sem dúvida, e até participaram, dos feitos da revoluçãode 1383-85. No entanto a atitude do escritor em face da tradição oral serianão a de um crédulo, mas a de um investigador, que põe em primeiroplano o documento.

Quanto ao problema de plágio, não acarretava demérito para oescritor, pois era normal e corrente na época um autor copiar os seusantecessores. E o próprio Fernão Lopes se considera um “compillador”, con-sistindo o seu trabalho maior na coleta, seleção, ordenação e crítica de dados,vertidos para um estilo que magistralmente se aproveitaria de toda a herançaliterária recebida.

Avaliar a dimensão da originalidade do cronista em relação àssuas fontes, diretas ou indiretas, daria ensejo a outra tese, de difícil ou impos-sível realização, considerando-se o desaparecimento de muitos textos bási-cos, como os de Martim Afonso de Mello e do Doutor Christophous, citadospelo cronista. Mas, conforme se pôde depreender dos estudos até aqui co-mentados, bem como das aulas a que assistimos ministradas pelo ProfessorLuis Felipe Lindley Cintra, de junho a julho de 1979, na Universidade deLisboa, é possível afirmar que a originalidade do cronista não residiria:a) no desejo de “escprever verdade”, já corrente entre os historiadores lati-nos; nem no grande número de fontes documentais utilizadas e valorizadasem decorrência dessa posição, pois que no Nobiliário do Conde D. Pedro taljá acontecia; ao que se acrescenta o fato de Fernão Lopes não ter sido tãoimparcial quanto querem alguns, e como ele próprio se pretende, uma vezque, citando apenas um exemplo, não utilizara todos os documentos relativosà batalha de Aljubarrota, valorizando com isso a atuação dos portugueses e aintervenção divina;

56 Opondo-se a Moraes Sarmento, dentre outros, cite-se: CEREJEIRA, 1925, p. 156-181 e201- 228.

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b) na concepção exemplar das crônicas, meios de se impedir o esquecimento dosfeitos passados e modelares, como também as entendia Afonso X, na CrônicaGeral de Espanha; e também as hagiografias, etc., etc.;c) no assunto apresentado, muitas vezes mera transcrição de outros textos,como as crônicas de Ayala, algumas vezes traduzidas livremente, outras literal-mente; o que, repita-se, não acarretava má reputação para o cronista, dado que,até ao século XV, o conceito de plágio era bem diverso do hoje corrente,aproximando-se as crônicas de então dos dicionários, enquanto depositáriasdo saber acumulado, da tradição;d) na preocupação com aspectos ligados à economia – moedas, preços emedidas de gêneros alimentícios, selos, etc., já presentes na historiografiamuçulmana;e) na própria relevância do papel do povo na defesa de Lisboa, que anterior-mente também se fizera notar em relação a Valência57, por exemplo;f) na permanência da medieval visão providencialista da história, mais que evi-dente na Crônica de D. João I – sob a possível influência eclesiástica do Dr.Chistophorus, os castelhanos são comparados a “hereges çismaticos” (LOPES,1977, p. 302), o Mestre de Avis ao Messias e Nuno Álvares Pereira a Pedro,no seu papel de espalhar pelo reino o ‘Evangelho português’. A providencialpeste que dizimara as hostes castelhanas que cercavam Lisboa, sem fazernenhum dano aos portugueses, aparece como prova da intervenção divina,que se mostraria muitas vezes a favor da causa de Avis, uma causa ‘sacralizada’.

A sua originalidade residiria, isto sim, na atitude crítica que assu-mia diante dos fatos, procedendo ao confronto, seleção e discussão das fon-tes, privilegiando as documentais, numa concepção ampla do processohistoriográfico, que se faz notar inclusive na importância atribuída ao ele-mento coletivo na narrativa.

Para não falar na superioridade do seu plano ordenativo, norteadopelo princípio de causa e efeito, a serviço do qual se colocam os muitos sumáriosexplicativos e justificativos que aparecem ao longo da obra, bem como oscritérios de ordenação não apenas cronológico, como em Ayala, mas tambémantropológico e topológico. E ainda, se confrontado com a sua principal fonteespanhola, sobrepõe-se a ela na superior ordenação que dá aos fatos, na capa-cidade seletiva e de síntese, que se faz notar até na organização dos títulos dos

57 Segundo anotações de aulas do Prof. Luís Felipe Lindley Cintra, Universidade de Lisboa,junho-julho de 1979.

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capítulos, resumindo, sintetizando e até modificando os da sua fonte. A ela semostra superior também na utilização dos Prólogos, apresentando-os antes decada uma das suas crônicas, que são microestruturas dentro da macroestruturaque é o conjunto da obra; ao passo que Ayala se serve de apenas um Prólogo,antes da sua primeira crônica, a de D. Pedro I de Castela. Não tem, pois, razãoMenédez y Pelayo, para quem Fernão Lopes não passaria de “evidente imita-dor das crônicas de Ayala”58 .

No tocante à valoração do escritor, entendido como artesão da pa-lavra, a sua importância não estaria na invenção, mas no aprimoramento detécnicas narrativas já existentes em toda uma tradição literária anterior, já,por sua vez, aproveitadas na Crônica Geral de Espanha (na de Afonso X,como na sua versão portuguesa de 1344). Dentre essas técnicas podem sercitadas: as heranças estilísticas de derivação genealógica, dos historiadoreslatinos, do cronista mouro Rásis, e, notadamente, dos cantares de gesta e daDemanda do Santo Graal.

Sublinhe-se que Fernão Lopes teria herdado dos latinos o tópico“estilo rude, mas verdadeiro”, que explicita no Prólogo da primeira parte daCrônica de D. João I. E a sua retórica, sem deixar de incorporar a tradiçãojogralesca, se prenderia às heranças de Aristóteles, de Cícero e da prédicamedieval, como veremos mais pormenorizadamente adiante.

As técnicas narrativas a seguir enumeradas não seriam criaçãodo escritor, mas aproveitadas e aprimoradas por ele, a saber:a) certas técnicas ordenativas, visando à continuidade da narrativa, como ouso de expressões do tipo “segundo avemos ouvido”, e “segundo ouvirees”, jápresentes em Ayala; bem como a apresentação, no final de um capítulo, da maté-ria do capítulo seguinte, fato corriqueiro na historiografia da época;b) o discurso direto, já presente na crônica do mouro Rásis, fonte de AfonsoX, o Sábio, que será magistralmente aproveitado pelo cronista para delinearos traços psicológicos dos seus personagens e presentificá-los; inclusive trans-formando os discursos indiretos de Ayala em discursos diretos, e usando mui-tas expressões próprias da linguagem oral, numa demonstração evidente daherança das novelas de cavalaria e da oratória clerical, para além e através dascrônicas que o antecederam;c) as ‘frases de orientação’, também presentes na Crônica Geral de Espanha,onde já se encontravam expressões do tipo “Mas agora leixemos falar a…”,

58 Cf. NEMÉSIO, 1930, p. 475.

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tão caras a Fernão Lopes. Aliás, como demonstrou Mário Martins (1978),esses recursos eram fartamente explorados em certas narrativas medievais,notadamente nas novelas arturianas, além de na General Estória de Afonso,o Sábio;d) o gosto por figuras como a comparação, a personificação de cidades, etc.,familiares à oratória clerical e aproveitadas também pela historiografiaafonsina: se Lisboa, como a bíblica Jerusalém, era a “vehuva que rei nontinha”, Córdoba já fora tida como “madre de todalas cidades de Espanha”. E,ainda, a alegorização descendente, de mais para menos, tão comum a prega-dores e hagiógrafos, à qual recorre o cronista, embora às vezes com “perigopara o respeito ao sagrado” (MARTINS, 1975, p. 254); ao que se junta aprofusão de sonhos e visões que permeiam as crônicas de Fernão Lopes,indicando-lhe a filiação a toda uma tradição bíblica e litúrgica, assimilada,por sua vez, pelas canções de gesta, matriz das crônicas peninsulares.

Na base do estilo fernãolopeano estaria, pois, a tradiçãohistoriográfica peninsular, e, através dela e com ela, a homilética cristã e aretórica greco-latina, bem como a historiografia árabe, as novelas de cavala-ria e as canções de gesta. O ‘estilo falado’ das crônicas, onde o verbo ouvir épresença constante, aproxima o escritor do aedo, como também do eclesiasta,ao estabelecer perguntas fictícias para seu leitor-ouvinte. Como ajuíza muitobem Mário Martins (1978, p.15), “Não foi o cronista que inventou este estilo.Sentiu, porém, a sua necessidade e soube utilizá-lo, aperfeiçoando a ferra-menta que ele tinha à mão, talvez no Livro de José de Arimatéia e decerto naDemanda do Santo Graal”.

A influência das narrativas do ciclo arturiano se faz notar, ainda,no trato dos personagens e nas sátiras, nas quais os portugueses são compara-dos aos heróis da Demanda – o que, aliás, já ocorrera também na Crônica doCondestável, onde as marcas das novelas de cavalaria e similares são evidentes.

Por conseguinte, o valor do escritor residiria não no mérito de tersido o inventor de novas técnicas da arte narrativa, mas na manipulação exem-plar das mesmas, a serviço da persuasão do leitor-ouvinte e da manutenção daunidade da obra, tecida a partir do grande tema da justiça dos reis, definidacom base nas idéias de Aristóteles e Cícero – o que o colocaria na categoriapoundiana (POUND, 1975, p. 42) de mestre da arte de escrever. E mestre dosmaiores, a julgar do que se pode detectar acerca da originalidade na ordena-ção dos fatos a que procede, juntando o ordo artificialis ao ordo naturalis nacrítica e ampliação da história de uma revolução, atribuindo-lhe dimensões

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míticas e perpassando-a de matizes irônicas, sem perturbar, antes enriquecen-do, a coerência estrutural da obra.

À maestria na arte de escrever, de compor, se acrescenta o mé-rito do historiador, dotado de visão crítica dos fatos e conscientizaçãoplena do processo historiográfico, bem como o de homem plebeu, como oindica seu sobrenome (Lopes = filho de Lopo), que conseguiu, por seuvalor, ascender às cortes e ser íntimo de príncipes e reis. Um humanista, edos maiores, que, no trato dos seus personagens e no enfoque de múlti-plos acontecimentos, realizou uma obra não estática, mas pulsante de vida,assim corroborando, na literatura, os princípios da perspectiva, inaugura-da com o estilo gótico, que sucedeu à hieraticidade do estilo românico.

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Santo Agostinho (354-430) segundo afresco [c. 1480] do pintor florentino Sandro Botticelli(1445-1510), que se encontra na Chiesa di Ognissanti (Igreja de Todos os Santos) emFlorença. Santo Agostinho foi Bispo de Hipona (situada no norte da África) e é um dosmais importantes Doutores da Igreja. Além de profundo teólogo e exegeta da Bíblia, foium grande pregador e teve papel fundamental na cristianização da retórica clássica.

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Começamos por lembrar que a Retórica, uma das disciplinas doTrivium, ao lado da Gramática e da Dialética, constituiu diretriz para os poucosque tinham acesso à leitura e à escrita na Idade Média, tanto no que toca àcomposição, quanto à interpretação dos textos. Os prólogos de obras diversas,obedientes ao que os rétores clássicos propõem para os exórdios dos discursos,indicam o aproveitamento das suas técnicas, como, por exemplo, os Prólogosdo Liber Sancti Jacobi – Codex Calixtinus do século XII (1999) e da crônicaescrita no século XV por Fernão Lopes que é nosso objeto de estudo – CrônicadelRei dom João I da boa memória (1977). Nesta, como veremos maisdetalhadamente em lugar próprio, o cronista argumenta a favor da sua imparci-alidade, buscando alcançar a confiança e a simpatia dos leitores-ouvintes a quema obra se destina, afirmando-se pesquisador incansável de numerosos docu-mentos e escritor da “simprez verdade”, avesso à “afremosemtada falssidade”(LOPES, 1977, p. 1-3). Naquele, a carta-prólogo atribuída ao papa Calisto II jáa partir dessa indicação autoral referenda o princípio retórico da autoridade, eafirma ser a matéria transcrita testemunhada ou baseada em relatos considera-dos verazes, escritos ou orais. Tudo vazado em estilo singelo, para que sejaentendida por todos, desde os eruditos aos simples (LIBER, 1999, p. 3). Talpreocupação retórica não se limita, nessas obras, aos prólogos, mas se desvelano decorrer das suas páginas, conforme temos demonstrado em diversos estu-dos, publicados ou apresentados em congressos vários1.

Para uma aproximação à Retórica medieval, começamos por lem-brar, com Murphy (1986, p. 142; traduzimos), que “a história das artes dodiscurso na Idade Média é, pelo menos em parte, a história da sobrevivênciadas obras clássicas”. Dentre estas, a da retórica aristotélica, principalmentedivulgada no medievo através da juvenil obra de Marcos Túlio Cícero, Deinventione, e da Rhetorica ad Herennium, que a ele foi atribuída por séculos2.

1 Por exemplo, para só citarmos alguns dos estudos mais recentes: “Historiografia e Retórica:Fernão Lopes” – conferência de abertura do VIII Encontro Internacional de Estudos Medievaisda ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais), realizado em Vitória, pela Universi-dade Federal do Espírito Santo, de 11 a 14 de agosto de 2009; “A arte de pregar medieval. Ossermões do Codex Calixtinus” – relatório apresentado no IX Congreso da Asociación Internaci-onal de Estudos Galegos (AIEG), realizado em Santiago de Compostela, Vigo e a Coruña, de 13a 17 de junho de 2009. Cf., ainda, MALEVAL, 2006 e MALEVAL, 2009.2 Posteriormente essa obra seria também atribuída a Cornifício. Se na Idade Média as liçõesde Aristóteles (384-322 a.C.) e Cícero (65-27 a.C.) foram as fontes por excelência para oconhecimento da retórica, no fim do período medieval, estendendo-se pelo Renascimento edepois, Quintiliano (30-100 d.C.), com Instituto oratoire, e o Cícero maduro autor de Deoratore estiveram em grande voga.

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Em Portugal, um inventário do mosteiro de Santa Cruz de Coimbraregistra cópias, possivelmente do final do século XII ao início do XIII, de Duolibri de Retorjca scilicet Tulij, ao que tudo indica os dois livros do tratado Deinventione, de Marcos Túlio Cícero (FERNANDES, 1982, p. 15). E consta dosmanuscritos do Mosteiro de Alcobaça um códice em letra gótica da segundametade do século XV da Arte Rhetorica ad Herennium, com muitos comentá-rios dos seus usuários, conforme observou Fernandes (1982, p. 15). Acrescen-te-se que, a pedido de D. Duarte, o bispo de Burgos, D. Alonso de Cartagena,traduziu o Libro de Marcho Tullio Ciceron que se llama de la Retorica, quepode ser encontrado na Biblioteca do Escorial (FERNANDES, 1982, p. 34).

Quanto às obras de autores cristãos relativas à oratória, nos mos-teiros portugueses podiam ser encontrados no medievo, dentre outros, os se-guintes códices, arrolados por Fernandes (1982, p. 34-35): Origines ouEtymologiae, de Santo Isidoro de Sevilha, em Santa Cruz de Alcobaça; Dearte praedicandi de Alão de Lille3 , em São Clemente das Penhas; De artepraedicandi, de João de la Rochelle, em Alcobaça; Institutiones grammaticae,de Prisciano, em Alcobaça; Communiloquium ou Summa collectionum4 , tam-bém em Alcobaça; etc. Também De doctrina cristiana, de Santo Agostinho,seria obra acessível nesse contexto.

Acrescente-se que o confessor de D. João I, o português Frei Al-fonso d’Alprãho, foi autor de uma das mais significativas artes praedicandiescritas por autores ibéricos5 . Isto prova a importância que nas cortes dosprimeiros soberanos da Casa de Avis se atribuía à teorização sobre a prédica– e a Cícero, como vimos a propósito do pedido de tradução do seu livro deretórica por D. Duarte; inclusive uma outra obra sua, De officiis, foi traduzidapor D. Pedro, irmão de D. Duarte.

Também em obras literárias do período podem ser observados des-taques aos teóricos do discurso. Por exemplo, no Boosco Deleitoso, obra anôni-ma que teria sido composta no final do século XIV ou início do século XV,que faz a apologia da vida ascética, nitidamente influenciada pelo De vita

3 Publicada na Patrologia latina de Migne, vol. CCX, com o título Summa de artepraedicatoria.4 Existiriam outras coletâneas similares de exemplos, do século XIV (Torre do Tombo) e doXV (BNL), segundo estudos de J. H. Welter e Joaquim de Carvalho, citados por Fernandes(1982, p. 34).5 O editor dessa Ars praedicandi, Albert G. Hauf (1979, p. 234), acentua a importância damesma no estudo introdutório de sua lavra, considerando-a “a mais interessante das obrasdesse gênero até agora descobertas na Península Ibérica”.

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solitaria de Petrarca; nela aparece como personagem Cícero, “mui granderazoador e praticador das leis e dos dereitos” e que teria se tornado “filósofomui nobre” no período em que viveu no exílio (BOOSCO, 1950, p. 206).Também Quintiliano aparece como personagem, da mesma forma que muitasoutras autoridades, clássicas ou cristãs, como Sêneca, Santo Agostinho, San-to Tomás, Santo Ambrósio, São Jerônimo, etc. – o que é mais um argumentoa favor da importância que os mestres da oratória possuíam em Portugal àépoca de Fernão Lopes.

Reportar-nos-emos a seguir à disciplina sistematizada porAristóteles no século IV a.C. e à sua apreciação ou atualização por especialis-tas no século XX. Passaremos em seguida ao processo de cristianização daretórica, destacando a relação de Santo Agostinho com Cícero. E, finalmente,à arte de pregar que, aproveitando as lições da retórica clássica acrescidas àsda tradição judaico-cristã, marcou indelevelmente a construção dos discursosna Idade Média.

1. A retórica clássicaA retórica que nos interessa revisitar não se restringe à mera enu-

meração ou classificação de figuras e/ou tropos a que foi reduzida durantemuito tempo a “arte de (bem) dizer” – embora, claro, eles devam ser levadosem conta na medida em que concorram para o processo de comoção e persu-asão do receptor do discurso. Felizmente que a disciplina tem sido reabilitadadesde meados do século XX por estudiosos da maior monta, que nela rele-vam o seu papel fundamental, e original, de indicar nos discursos os meios depersuasão usados na argumentação, como veremos.

1.1. Origem e sistematização

A retórica firmou-se6 , no século V a.C., a partir de necessidades rela-cionadas ao sistema de propriedade. Ligada a práticas democráticas e demagógi-cas, manifestou-se decisivamente nos discursos que eram enunciados para a rei-vindicação de direitos cíveis, ainda não claramente codificados7. Isto porque, apósos tiranos sicilianos Gelon e Hieron terem sido destronados por uma sublevação

6 Como notaram, dentre outros, Jean Voilquin e Jean Capelle, na Introdução à Arte retórica earte poética de Aristóteles ([s.d.], p. 19), “Desde os tempos homéricos heróis e guerreiros secompraziam em ouvir discursos veementes ou capciosos”.7 Roland Barthes, ao focalizar a ‘Retórica antiga’ (1975, p. 147-221), chama a atenção paraeste fato, remontando aos acontecimentos históricos que condicionaram o surgimento dessametalinguagem, que tem por linguagem-objeto o discurso.

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democrática, os cidadãos trabalharam por reaver antigas propriedades dasquais esses tiranos dispuseram arbitrariamente. Numerosos processos entãose instauraram, uma vez que não se encontravam ainda definidos a contentoos direitos sobre a propriedade. Nesses novos processos a eloquência do ora-dor era fundamental; sem ela, não se lograria obter um veredicto favorávelnos grandes tribunais populares, organizados para o julgamento das causas.

A eloquência tornou-se logo objeto de ensino, tendo por primeirosmestres a Empédocles de Agrigento e ao seu aluno em Siracusa, o sicilianoCorax, que teria sido o primeiro rétor a exigir remuneração por esse labor. Aodiscípulo deste, Tísias, que também se inclui na galeria dos primeiros mestresconhecidos da oratória, ou a ambos, se atribui a autoria de um tratado deretórica restrito às partes do discurso, à sua sintaxe.

Tal ensino passou para a Ática, após as guerras medas, pela neces-sidade decorrente das “contestações de comerciantes, que reivindicavam seusdireitos conjuntamente em Siracusa e Atenas” (BARTHES, 1975, p. 151). Oque mostra que, já nos meados do século V a.C, a retórica era, em parte,ateniense. E tornou-se a arte de maior prestígio em Atenas, no tempo deAristóteles8, discípulo dileto de Platão9 . Este, aliás, também se preocuparacom a eloquência em seus diálogos, como, por exemplo, em Fedro, no qualSócrates critica veementemente os sofistas, a começar por Lísias10 (PLATÃO,

8 Aristóteles nasceu em Estagira, antiga colônia jônia da Calcídia de Trácia, no ano de 384a.C., sendo o seu pai médico de Amintas II, rei da Macedônia. Aos 17 anos mudou-se paraAtenas, onde se tornou discípulo de Platão por cerca de 20 anos, após o retorno deste daSicília. Com a morte do Mestre, sai de Atenas e, em Mitilene, no ano 342 se tornou preceptorde Alexandre, herdeiro do rei da Macedônia. Desavindo-se com este por motivo da condena-ção à morte do sobrinho, retorna a Atenas onde, já com cinquenta anos, funda o Liceu, próxi-mo ao templo e ao ginásio em honra de Apolo Lício. Nessa escola, uma verdadeira universi-dade organizada e produtiva, lecionou até o ano de 321, ficando os seus discípulos conheci-dos como peripatéticos. Faleceu em Cálcis, terra natal da sua mãe, em 322, tendo saído deAtenas no ano anterior devido à reação antimacedônia que sucedeu à morte de Alexandre.9 Platão nasceu em Atenas ou Egina, entre 427 e 429 a.C. e faleceu entre 348 e 347. Recebeu onome de Arístocles, sendo Platão um apelido decorrente da sua aparência, por possuir ombrosmuito largos. Oriundo de família nobre e abastada, recebeu esmerada educação, tendo por mes-tres a Heráclito e, posteriormente, Sócrates. Viajou por muitos lugares, terminando por servendido como escravo em Egina. Quando conseguiu a liberdade, voltou para Atenas, onde crioua Academia, próxima ao ginásio de Academo. Nela se realizavam reuniões mensais, constituídaspor banquetes acompanhados de discussões filosóficas de orientações variadas. A Platão, críticoda democracia ateniense, devemos o conhecimento do que seriam as idéias de Sócrates, a reve-lação da esfera da transcendência e a possibilidade de sistematização da metafísica.10 Lísias foi um meteco, isto é, um estrangeiro domiciliado em Atenas, que se notabilizoucomo logógrafo (causídico e mestre de retórica); cogita-se que foi um dos que urdiram aconspiração que resultou na condenação à morte de Sócrates.

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[s.d.], p. 243 e ss.), ou em Górgias, onde o alvo é o sofista Górgias deLeontium11 (PLATÃO, 2002). Este, preocupou-se com a face estética dosdiscursos, com a elocutio, podendo ser considerado um precursor da estilística.

Lembremos que, embora circulassem cópias no medievo da ‘arte debem dizer’ aristotélica, esta fora considerada mais um livro de filosofia moral(MURPHY, 1986, p. 142) do que propriamente um manual de retórica. Aliás,os textos medievais se referem frequentemente ao Estagirita como filósofo –por exemplo, Fernão Lopes o chama, na Crônica de D. Pedro, de “claro lummeda fillosophia” (1966, p. 216). Na verdade, não podemos nos esquecer de que oSábio, além de interessar-se por todas as matérias conhecidas na sua época,descobriu todas as leis ideais da argumentação, criando a Lógica, que orienta aoperação de raciocinar12 . E foi não um orador, mas um mestre por excelência.

No seu tratado sobre a retórica, o Estagirita não deixa de estabele-cer reflexões filosóficas – por exemplo, sobre a felicidade, enquanto fim últi-mo a que todos aspiram e que deve ser levada em conta se desejamos persu-adir alguém sobre a utilidade de algo (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 49). E rela-ciona-a à dialética ou lógica, bem como à política, considerando-a “como queum rebento da dialética e da ciência dos costumes que podemos, com justiça,denominar política” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 35).

Recordemos que o tratado aristotélico é constituído por três partesou livros. O primeiro deles focaliza o orador e a busca dos argumentos, asprovas técnicas convenientes ao discurso. O segundo trata principalmente dopúblico receptor da mensagem, de seus caracteres e paixões, bem como dasprovas morais, subjetivas e lógicas mais adequadas à argumentação. E o ter-ceiro trata dos aspectos formais do discurso: da elocução – figuras, tropos,seleção vocabular... – e da ordenação das partes do discurso, referindo-setambém à sua pronunciação relacionada ao estilo, que deve se adequar a cadagênero de discurso e primar sempre pela justa medida. Portanto, leva em

11 Górgias foi um dos mais famosos sofistas e um dos primeiros mestres de retórica. Nasceu naSicília, Leontium, em 487 a.C., e ao que tudo indica foi discípulo de Empédocles, filósofonaturalista, criador da teoria dos quatro elementos, cujas idéias foram revistas e adotadas porAristóteles.12 As suas obras, relativas à Lógica, foram reunidas no Organon, no século VI d.C., tais sejam:1) Categorias ou teoria dos termos; 2) Da interpretação ou teoria das proposições; 3) Primei-ras analíticas ou teoria da argumentação; 4) Segundas analíticas ou teoria da demonstração– ou seja, da argumentação que parte de princípios considerados verdadeiros, inquestionáveis;5) Tópicos ou teoria da argumentação, que parte de princípios prováveis ou opiniões, levandoa uma conclusão provável – teoria da argumentação dialética, que embasaria a arte retórica.

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conta os três elementos essenciais da comunicação, modernamente retoma-dos pelos estudos linguísticos: o emissor, o receptor e a mensagem13 .

1.2. Os gêneros de discurso. A crônica

Os gêneros de discursos instituídos e estudados pela Retórica clás-sica, de acordo com as necessidades que lhes propiciaram o advento, inicial-mente se restringiam a dois: o gênero judicial, em que se defrontam a acusa-ção e a defesa, objetivando conseguir do juiz um dictamen favorável à causaque advogam, com base em fatos passados; e o gênero deliberativo ou políti-co, em que tem lugar o conselho e/ou a discussão a respeito de uma açãofutura. Caracterizam-se ambos pelo fato de, tendo o ouvinte por juiz, visarema uma mudança pragmática da situação, o que não é essencial no gênerodemonstrativo ou epidítico, que Górgias de Leontium fez juntar aos dois pri-meiros (BARTHES, 1975, p. 152-153). Este se caracteriza pelo elogio oucensura de alguém ou algo e visaria muito mais a corroborar uma situaçãoconsiderada constante do que a modificá-la radicalmente, funcionando o ou-vinte mais como espectador.

Os discursos pertencem ao gênero judicial quando objetivam ojusto ou o injusto através da acusação ou da defesa de um réu diante de juízes,baseada principalmente em fatos passados e tendo o entimema14 como prin-cipal argumento. Já o deliberativo se preocupa fundamentalmente com o útilou o prejudicial por meio do aconselhamento de uma ação futura à assembleia,tendo por principal recurso o exemplo. E o epidítico estabelece o elogio ou acensura do nobre ou do vil, fundado principalmente no tempo presente etendo a amplificação como recurso maior. Mas já o filósofo destacava que osgêneros de discurso podem apresentar variações e imbricações várias:

O fim do gênero deliberativo é o útil e o prejudicial, pois, quando se dáum conselho, este é apresentado como vantajoso, e quando se pretendedescartá-lo, ele é apresentado como funesto. Por vezes, este gênero tomaalgo dos outros, por exemplo, o justo ou o injusto, o belo ou feio. O fimpara os pleiteantes é o justo ou o injusto, mas acontece que também elescolhem elementos dos outros gêneros. Quando se louva ou se censura, as

13 Apresenta, pois, a Retórica como uma arte da comunicação, concebendo o discurso comouma mensagem (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 42) e conferindo à obra uma “divisão de tipoinformático”, conforme notou Roland Barthes (1975, p. 156), atendo-se o Livro I ao emissorda mensagem, o II ao receptor, e o III à mensagem propriamente dita.14 Espécie de silogismo incompleto, como as máximas.

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referências são feitas ao belo ou ao feio; sucede todavia que também aqui seintroduzem no assunto elementos estranhos (ARISTÓTELES [s.d.], p. 43).

Mais adiante, destaca a aproximação entre os gêneros deliberativo,cuja finalidade é o conselho, e o epidítico, que objetiva o elogio: “O elogio eos conselhos pertencem a uma espécie comum. O que podemos inserir numdiscurso, quando damos conselhos, torna-se matéria de panegírico, se lhemudarmos a forma” (ARISTÓTELES [s.d.], p. 76).

Portanto, a classificação dos gêneros é determinada muito maispela predominância que pela exclusividade de características. E se na Anti-guidade Clássica tal fato já se podia constatar, muito mais na Idade Média seacentuaria o imbricamento dos gêneros.

A crônica ora analisada é um exemplo vivo da interpenetração dascaracterísticas desses três gêneros de discurso. Fernão Lopes defende a justiçada Revolução de 1383-1385, como também, através do Dr. João das Regras,a justiça e utilidade da eleição e coroamento do fundador da Dinastia de Avis.Estabelece o panegírico dos ‘portugueses verdadeiros’, dentre os quais sedestacam um herói coletivo – o povo, notadamente o de Lisboa, – e um heróiindividual – Nuno Álvares Pereira, o cavaleiro perfeito, – os quais, unidos emtorno do Mestre de Avis, representam as duas forças então atuantes15 . E, aonarrar uma situação revolucionária passada, o cronista o faz de maneira talque a liga aos fatos seus contemporâneos – a Guerra Civil de 1438-43, que, decerta forma, repete muitos aspectos da anterior, narrada pela crônica.

Vale lembrar que esse destaque ao papel do povo, à sua fidelidadeà casa de Portugal e ao Mestre de Avis, pode ser interpretado como um serviçoao partido do regente D. Pedro, mecenas de Fernão Lopes ao tempo em queescrevia a crônica. Como D. João de Avis, D. Pedro, duque de Coimbra, foraeleito Regedor e Defensor do Reino, em 1439; bem como também foraapoiado por forças, populares em sua maioria, contra o partido predominan-temente senhorial. Se bem que a oposição entre os ‘pequenos’ e os ‘grandes’não seja tão acentuada como na Revolução de 1383-1385, o fato é que, venci-do D. Pedro na batalha de Alfarrobeira, logo após, em 1449, o cronista foiafastado do cargo. A alegação para a sua dispensa foi “estar velho e fraco”, o

15 Esse fato aponta para o declínio da estrutura feudal no protocapitalismo então observado eprenuncia os tempos modernos, em que o poder do dinheiro sobrepujou o da linhagem; istoporque são os donos do capital que sustentam financeiramente o movimento, conforme secomprova na Crônica de D. João I (LOPES, 1977, p. 209-210).

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que não convence, se considerarmos que ele foi ainda capaz de processar oneto bastardo e vencer a causa, deserdando-o, conforme documenta uma car-ta régia de 1459. Isto comprovaria o caráter político da sua obra, que foirelegada ao esquecimento durante séculos, visto que só viria a ser impressapela primeira vez em 1644.

Interligam-se, portanto, na crônica, o judicial, o epidítico e odeliberativo, sendo que, no que respeita ao judicial, a obsessão pela justiça epela verdade é recorrente em toda a produção do autor. E esses gêneros espe-cificam-se nos discursos recriados na obra, como o discurso forense do Dr.João das Regras e o epidítico da “ladainha” de Lisboa ou do Frei Rodrigo deSintra, todos mesclados ao deliberativo, já que eles têm em vista também oaconselhamento.

Que Fernão Lopes conheceu, admirou e acatou as lições dosistematizador da arte retórica não temos dúvidas, mesmo que esse conheci-mento fosse apenas indireto. Conforme o já visto, Aristóteles é por ele quali-ficado de “aquell claro lume da fillosophia” (LOPES, 1966, p. 216). Suasideias sobre a justiça e a filosofia política são pelo cronista assimiladas e atédesenvolvidas16 . E, deste, a consciência retórica é um fato incontestável, com-provado por seu próprio discurso, conforme demonstraremos.

A aproximação ao Estagirita seria mesmo proporcional ao afasta-mento em relação aos cronistas medievais, dos quais Fernão Lopes não se-guiu a tendência fundamentalmente panegírica e unilateral das crônicas, quese empenham em tecer a apologia dos mecenas, sem mostrar-lhes as falhas.Para que melhor se aquilate a sua contribuição à evolução da crônica, bastaque nos reportemos ao significado do termo.

Lembremos, com Massaud Moisés (1978, p. 131-132), que o vo-cábulo ‘crônica’, cujo étimo se liga ao grego krónos (tempo) e ao latim annu(m)(ano, ânua, anais), “mudou de sentido ao longo dos séculos”. Nos primórdiosda era cristã, “designava uma lista ou relação de acontecimentos, arrumadosconforme a sequência linear do tempo”. Colocava-se, pois, “entre os simplesanais e a História propriamente dita”, limitando-se “a registrar os eventos,sem aprofundar-lhes as causas ou dar-lhes qualquer interpretação. Em talacepção, a crônica atingiu o ápice na Alta Idade Média, ou seja, após o séculoXII”. Então, terminou por acercar-se da historiografia, resultando, na Penín-sula Ibérica, de um lado no que se considerou ‘crônica’ propriamente dita e de

16 Cf., a propósito, o Prefácio à Crônica de D. Pedro feito por Antônio Borges Coelho (1977,p. 15-28) , no qual é discutida essa questão.

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outro no que se chamou ‘cronicão’. Aquelas corresponderiam às obras “quenarravam os acontecimentos com abundância de pormenores e algo de exegese,ou fundando-se numa perspectiva individual da História”, como é o caso deFernão Lopes. Já os cronicões, denominavam “as simples e impessoais nota-ções de efemérides, ou ‘crônicas breves’” (MOISÉS, 1978, p. 131-132)17 .

Portanto, o termo, à época de Fernão Lopes, já se encontrava bas-tante distanciado referentemente à sua acepção original, à relação cronológi-ca e superficial dos eventos. E, com esse cronista, a narração pormenorizadae o posicionamento crítico diante dos fatos se fazem notórios, destacando oelemento coletivo na narrativa e subordinando a ordem cronológica à ordemcausal; para esta concorreriam ainda os critérios topológicos e antropológi-cos, determinantes dos núcleos narrativos.

A superioridade do seu plano ordenativo é uma prova da assimila-ção da lógica aristotélica. Para efetivá-lo, lançou mão dos mais diversos re-cursos, dentre eles as figuras e tropos, correndo, assim, paralelo ao ordonaturalis, o ordo artificialis. E, nos discursos judiciais-deliberativos do Dr.João da Regras, como também no sermão de Frei Rodrigo de Sintra e naladainha de Lisboa, apresenta, em ponto pequeno, os recursos disseminadospela crônica. Nesta se presentifica, pois, a tradição oratória clássica mantidaviva e atuante sobretudo pelo clero, que se utilizou dos seus processos paraveicular os ensinamentos bíblicos, por sua vez profusamente ‘ornados’.

1.3. As fases de elaboração do discurso

Os primeiros ensinamentos retóricos ligaram-se ao gênero judici-al, ao qual regulavam por meio de regras de arte, agrupadas numa ‘teoria damatéria’ e numa ‘teoria da elaboração’, estendendo-se posteriormente aosdemais gêneros. Na teoria da matéria, cogita-se sobre a questão em causa esua credibilidade, estando esta na dependência da opinião do juiz e podendo serpreliminar, ou aumentada, ou alcançada pelo esforço do orador. No caso dacrônica que analisamos, interessa-nos fundamentalmente a teoria da elabora-ção, cujos pressupostos básicos se nos tornam, portanto, imprescindíveis.

O primeiro ponto a ser levado em conta diz respeito às fases deelaboração do discurso: inventio, dispositio e elocutio, das quais se ocupou o

17 Anota Massaud Moisés (1978, p. 132) ainda que “Tal discriminação, somente possível emPortuguês e Espanhol, não atingiu o Francês e o Inglês, que englobam os dois títulos sob umrótulo comum (chronique, chronicle)”.

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tratado aristotélico18. Apresentam-se intimamente vinculadas entre si e sãoparticularmente importantes ao estudo do texto escrito. Acrescente-se que atradição posterior a Aristóteles desenvolveu a pronuntiatio, à qual ele se referesucintamente, e a memoria – que dizem respeito à recitação e ao ato oratório,sendo que, como prática escolar laica, foram relegadas ao desuso19.

Por inventio denomina-se a primeira fase da elaboração do discurso,momento de se buscarem as provas (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 205), de seencontrarem as ideias, os argumentos convenientes ao assunto ou à causa, deacordo com o interesse do partido representado. Esses elementos podem serde ordem racional ou afetiva, de acordo com a conveniência para o alcance davitória da causa com a persuasão do juiz. “Essa persuasão, em si mesma,consegue-se pela criação de um grau de credibilidade elevado, mesmo quan-do a materia em si desfrutava, de antemão, apenas de um grau muito baixo decredibilidade” (LAUSBERG, 1982, p. 91).

A inventio se constitui, pois, num trabalho de descoberta dos pen-samentos adequados para o discurso, já existentes “no subconsciente ou nasemiconsciência do orador, como copia rerum” (LAUSBERG, 1982, p. 91),a serviço da qual se colocava a tópica (os lugares: “locus a re”, “a persona”,“a loco ab instrumento”, “a causa”, “a modo”, “a tempore”). Descoberta,recordação, e não criação, mas sem invalidar a originalidade, o “ingenium”do orador e do artista.

A segunda fase20 de elaboração do discurso, a dispositio, diz res-peito à “maneira de dispor as diferentes partes do discurso” (ARISTÓTELES,[s.d.], p. 205). É “constituída pela escolha e ordenação favoráveis ao partido,as quais, no discurso concreto, se fazem dos pensamentos (res), das formula-ções linguísticas (verba) e das formas artísticas (figurae)” (LAUSBERG, 1982,p. 95). Decorre dos dois grandes caminhos da inventio: o psicológico animosimpellere (comover) e o lógico rem docere (informar, convencer).

Aristóteles observa que as partes do discurso são essencialmenteduas: proposição (exposição, indicação do assunto ou questão) e demonstração(argumentação, prova), aceitando-lhe quando muito quatro partes: “Assim, pois,

18 Embora sistematizada por Aristóteles e, portanto, escrita em grego, a retórica disseminou-sepelo medievo em latim, através principalmente de Cícero. Daí utilizarmos seus termos nalíngua do mestre romano da eloquência.19 Mas temos notícia da renovação dessa prática na atualidade, em instituições de ensinocomo a Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve (CARVA-LHO, 2006, p. 11-12).20 Aristóteles ([s.d.], p. 205) a apresenta em terceiro lugar na Arte retórica.

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de obrigatório só há a exposição e a prova (...). No máximo, podemos admitir:o exórdio, a exposição, a prova, o epílogo. A refutação depende das provas, (...)não é mais que uma amplificação das provas do orador”, é “uma parte dasprovas” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 246). Já o De inventione de Cícero ([s.d.],p. 31) e a Retórica a Herênio (2005, p. 57), afastando-se dessa lição, propõemseis partes: exórdio, narração, divisão, confirmação, refutação e conclusão, acen-tuando a importância da confirmação e da refutação, como veremos adiante.

As partes extremas do discurso – a inicial e a final – se prendem aoanimos impellere, ao passo que as partes mediais se ligam mais ao rem docere.Isto porque, no exórdio – que, diga-se de passagem, constitui um dos elemen-tos mais estáveis do sistema retórico, correspondente ao prólogo ou proêmiodos aedos e ao prelúdio da aulética – o orador deveria cativar, ganhar a simpa-tia, a atenção e a confiança do auditório ou juiz, eliminando o caráter arbitrá-rio de todo começo; para isto deveria ser necessariamente prudente, reservado,comedido. O exórdio tinha ainda, por função, estabelecer o plano e as finali-dades do discurso – o que já se relaciona mais à esfera intelectiva. Disso temconsciência Fernão Lopes, que no Prólogo da crônica em foco, como vere-mos pormenorizadamente em lugar próprio, intenta firmar a sua honestidadee autoridade, o seu propósito de “escprever verdade”, apresentando tambémo assunto de que se ocupará.

Na narração ou exposição do assunto, recomenda o Sábio gregoque se deve atentar para a justa medida, evitando-se a concisão excessiva domesmo modo que a prolixidade desnecessária. As provas devem ser demons-trativas e levar em conta os elementos da contestação. As interrrogações sãooportunas em muitas situações, para confundir ou desequilibrar o adversário,etc. E também a facécia (ironia ou bufoneria) tem o seu lugar em algumassituações. Quanto à refutação de uma acusação, foram arrolados por Aristótelesvários meios utilizáveis, inclusive os que ferem a ética. Com relação a estesúltimos, assevera: “Assim se comportam os oradores mais hábeis, mas tam-bém os mais injustos; servem-se do que é honroso para prejudicar, e mistu-ram o bem com o mal” (ARISTÓTELES, [s.d.], 255). Enfim, embora apre-sentando inclusive os meios escusos de que podem lançar mão os oradorespara conseguirem a persuasão dos ouvintes, método usado pelos sofistas,Aristóteles não abandona a ética, asseverando que “De um modo procede ohomem prudente, de outro o homem de bem: a prudência consiste em buscaro útil, a honestidade, o bem” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 258).

Quanto à parte final – peroração, epílogo –, constituía-se de quatropartes sucessivas que consistiam em “dispor bem o ouvinte em nosso favor e

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em dispô-lo mal para com o adversário”, amplificar ou atenuar o exposto,“excitar as paixões no ouvinte” e recapitular (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 268).Dela não se exigia a contensão do exórdio, e tornou-se mesmo patética echorosa entre os romanos, já que a última oportunidade de comover ointerlocutor. Adiante teremos ocasião de demonstrar a preocupação de FernãoLopes com a peroratio.

Ainda no tocante à dispositio, há que se levar em conta os seus as-pectos interno e externo à obra ou discurso21 , sendo que a dispositio interna,“como atividade ordenadora, é um meio da dispositio externa à obra”, em seuobjetivo de persuasão; “consiste, por consequência, na escolha (electio) e orde-nação (ordo) das partes (res e verba) e das formas artísticas (figurae), capazesde desempenharem funções no que diz respeito à totalidade do discurso (daobra)” (LAUSBERG, 1982, p. 95). Relacionam-se à dispositio externa fenôme-nos como a parcialidade e o estranhamento, este visando o combate ao tédio dointerlocutor, e aquela à sua persuasão; essas funções dos elementos retóricosapontam para a distinção entre ‘figuras argumentativas’ e ‘figuras de estilo’. Jána dispositio interna, na sua qualidade de veículo daquela, estudam-se os ele-mentos do discurso tendo em vista a sua coerência estrutural, como a divisãodas suas partes e as figuras e demais elementos modificadores do todo.

À dispostitio cabe, pois, de modo concreto, repartir eficazmente,tendo em vista a persuasão e/ou a novidade, o ordo naturalis e o ordo artificialisno todo do discurso, para que, por um lado, se assegure a credibilidade e, poroutro, se evite o tédio. Disso Fernão Lopes tinha consciência, conforme de-monstraremos, pois ao mesmo tempo em que defende a sua probidade dehistoriador, o grande trabalho que teve em pesquisar fontes variadas, demonstrapreocupação com o “fastio” do leitor ou ouvinte.

A terceira fase22 de elaboração do discurso, a elocutio, trata do

21 “1) a dispositio externa à obra orienta-se segundo a finalidade partidária (utilitas causae) edirige-se “para fora”: consiste na planificação” (consilium) feita pelo orador, com vista a conse-guir a finalidade do discurso (que é a persuasão), planificação essa que é idêntica à “vontadesemântica” (voluntas) do orador. 2) A planificação, que se dirige “para fora”, manifesta-se nointerior do discurso, como capaz de realizar a sua função exterior” (LAUSBERG, 1982, p. 95).22 Aristóteles ([s.d.], p. 205) a apresenta em segundo lugar na Arte retórica. Preceitua que oestilo deve ser claro, agradável, pictórico, adequado ao assunto, ao gênero de discurso (predo-minante) e a seu respectivo auditório, bem como à realização (oral ou escrita) do mesmo. Oequilíbrio, a justa medida deve nortear-lhe o tom e a escolha do vocabulário e das figuras e/ outropos, enfim, dos recursos expressivos, inclusive na pronunciação (tom de voz e, acrescenta-mos, gestualística adequados) – arte, que, segundo Aristóteles, não fora ainda elaborada à suaépoca (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 206).

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“estilo que se deve empregar” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 205). Ou seja, “é aexpressão linguística (verba) dos pensamentos (res) encontrados pela inventio”(LAUSBERG, 1982, p. 115). Liga-se, de um lado, à gramática, “sistema deregras que regulamentam a pureza linguística e idiomática (puritas)”(LAUSBERG, 1982, p. 115). De outro, à retórica, entendida como “sistemade regras que garantem o êxito da persuasão” enquanto “ars bene dicendi”(LAUSBERG, 1982, p. 115). Pode ocorrer que a virtus do recte, gramatical,entre em conflito com a virtus do bene, nos casos em que o dever de persua-são, sobrepujando o de correção idiomática, dá origem à licencia, permitida,e distinta do vitium, desvio não justificado e condenado.

No estudo da elocutio, há que se levar em conta a sua evoluçãodesde Górgias, sendo notável o seu desenvolvimento até os latinos, comoCícero e Quintiliano. Também importa considerar que, no correr dos séculos,ora ampliou os seus domínios, chegando a compreender gramática e dicção,ora se restringiu a uma das suas partes – a ‘figura’.

As muitas classificações internas que a elocutio conheceu forammotivadas também pelo fato de ter ela, enquanto techne, atravessado idiomasdiferentes, como o grego, o latim, etc., assimilando-lhes as nuances. Para nãofalar no fato de que a sua valoração crescente levou à invenção de novas erebuscadas terminologias.

Roland Barthes (1975, p. 212) a identifica com “enunciação”, oumais rigorosamente, com “locução” ou “atividade locutória”, e, no queconcerne à classificação, simplifica-a, apontando para a oposição mestra doparadigma e do sintagma: a seleção das palavras (electio, egloge) e a suareunião (synthesis, compositio). À electio se ligam a sinonímia e qualqueroutro tipo de substituição ou troca, de que se originam as figuras e os tropos.

Os percalços que cerca(va)m a diferenciação de figuras e tropos,já os divulgava Quintiliano ([s.d.], III, p. 253; traduzimos): os tropos “deri-vam seu nome da maneira pela qual são formados, ou da maneira pela qualmodificam o estilo, sendo por isso chamados também de ‘movimentos’”. Mas,adverte ele, “essas duas características se encontram igualmente nas figuras,que se prestam, também, às mesmas finalidades: reforçar ou embelezar aexpressão dos pensamentos”. Daí não faltarem autores que dão aos tropos onome de figuras; sua semelhança é tal que não é fácil distingui-los:

Pois se há os nitidamente diferentes, não se levando em conta a caracte-rística geral de que uns e outros se afastam do tipo de expressão direto esimples para embelezar o estilo, por outro lado há os que são separados

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por um limite muito tênue: por exemplo, encontra-se a ironia classificadaentre as figuras de pensamento, como também entre os tropos; doutraparte, na perífrase, no hipérbato e na onomatopeia, muitas das minhasfontes, mesmo ilustres, vêem antes figuras de palavras do que tropos(QUINTILIANO, [s.d.], III, p. 253; traduzimos).

No entanto, esse rétor latino não se exime de defini-los, da se-guinte forma:

O tropo é uma maneira de falar que se desvia de sua significação naturale principal, atribuindo-lhe uma outra, com o fim de reforçar ou embelezaro estilo: ou como o definem a maior parte dos gramáticos, uma expressãoque se transporta do lugar onde tem sua acepção própria, para outro ondenão a tem. A figura, como o indica claramente o próprio termo, é ummodo de expressão, uma mudança operada na linguagem, que se afastada maneira primordial e corriqueira de se exprimir.

Além disso, nos tropos são as palavras que se colocam no lugar de outraspalavras. (…) Do que diferem as figuras, em que se ajustam palavraspróprias e colocadas na ordem normal (QUINTILIANO, [s.d.], III, p.253-255; traduzimos).

Partindo da distinção clássica, Lausberg (1975) divide os orna-mentos em ornatus in verbis singulis e ornatus in verbis coniunctis. No pri-meiro grupo se situariam a sinonímia e os tropos. No segundo, as figuras,sendo que, no entanto, às figurae setentiae se interligariam determinados tropos,como a alegoria e a ironia (tropos de salto), e ainda a hipérbole, a perífrase ea ênfase (tropos de alteração de limite).

Mas o que importa ressaltar é a conclusão de Quintiliano: “os or-namentos de que falo, quer se lhes chame tropos ou figuras, produzirão sem-pre os mesmos efeitos: sua utilidade não consiste no seu nome, mas no seupapel” (QUINTILIANO, [s.d.], III, p. 255; traduzimos).

Sem cogitarem da distinção entre figuras e tropos, e voltados para opapel do que denominam genericamente por ‘figuras em face do interlocutor’,Ch. Perelman e O.-Tyteca (1958) se referem a ‘figuras de seleção’, mais ligadasà interpretação da matéria quando da elaboração do discurso, e ‘figuras da pre-sença’ e ‘da comunhão’, diretamente relacionadas às finalidades do discurso,objetivando a atuação sobre o leitor/ouvinte. Ao que tudo indica, umas são maiscompromissadas com a dispositio interna da obra ou discurso, outras com adispositio externa; mas ambas, por sua vez, atuam em íntima correlação.

Outra das recentes classificações dos ornamentos é a estabelecidapor J. Dubois e sua equipe (1974), com a concorrência da linguística e da

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semiótica. Chamam-nos de ‘metáboles’, referindo-se às operações linguísticasque as suscitam: supressão parcial ou completa, adjunção simples ou repetitiva,supressão-adjunção parcial, completa ou negativa, e permutação, qualquerou por inversão. E dividem-nas em ‘metáboles gramaticais’, ligadas ao códi-go, à expressão, e ‘metáboles lógicas’, concernentes ao referente, ao conteú-do do discurso. As primeiras englobam os ‘metaplasmos’ (ligados àmorfologia), as ‘metataxes’ (ligadas à sintaxe) e os ‘metassememas (ligados àsemântica, já no plano do conteúdo). As segundas, os ‘metalogismos’, funda-mentados na lógica.

Levando em conta essa terminologia, seriam do nosso interessemaior os metassememas e os metalogismos, uma vez que temos por corpusum texto em prosa, e dadas as suas finalidades não apenas descritivas, mashermenêuticas. Metassememas são a sinédoque, a antonomásia, a compara-ção, a metáfora, a metonímia, o oxímoro, e suas modalidades. Metalogismos,a litotes, a reticência, a suspensão, o silêncio, a hipérbole, a repetição, opleonasmo, a antítese, o eufemismo, a alegoria, a parábola, a fábula, a ironia,o paradoxo, a antífrase, a inversão lógica, a inversão cronológica, e variações.

Mas preferimos utilizar a orientação da retórica e os seus termostradicionais – ornamentos, figuras, tropos –, acentuando, com Quintiliano,que esses recursos importam não pelo nome, mas pelo papel que desempe-nham no discurso.

1.4. Revalidação da retórica na atualidade

Carlo Ginzburg (2002, p. 63), importante nome da Nova HistóriaCultural, alerta os historiadores para a necessidade de se reportarem à retóri-ca aristotélica, que sobreleva as provas como núcleo racional da argumenta-ção, o que a diferencia das proposições dos sofistas e de Platão23. Aí, nasprovas, deveria ser buscado o nexo “entre a historiografia, assim como foientendida pelos modernos, e a retórica”, “ainda que (...) a nossa noção de‘prova’ seja muito diversa da sua” (GINZBURG, 2002, p. 49).

Aristóteles distingue as provas técnicas e as extratécnicas; estasnão dependem da arte, são preexistentes ao discurso – como as leis, os docu-mentos ou contratos, as testemunhas, os depoimentos obtidos sob tortura, osjuramentos (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 34, 102). Já as provas fornecidas pelodiscurso são de três espécies: “umas residem no caráter moral do orador;

23 Os sofistas conceberam a retórica como arte de convencimento através da comoção, da açãodos afetos. E Platão a condenou, principalmente em Górgias, pelo mesmo motivo.

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outras, nas disposições que se criaram no ouvinte; outras, no próprio discur-so, pelo que ele demonstra ou parece demonstrar” (ARISTÓTELES, [s.d.], p.34). Servem de provas técnicas os entimemas, nos quais se incluem as máxi-mas, e os exemplos – fatos passados, parábolas, fábulas (ARISTÓTELES,[s.d.], p. 167). Essas provas técnicas são mais convenientes, respectivamente,aos discursos judicial e deliberativo24 .

Alerta Ginzburg (2002, p. 61) para o fato de que “encontrar a ver-dade é ainda o objetivo fundamental de quem quer que se dedique à pesquisa,inclusive os historiadores”. E conclui, a propósito dessa questão, que “a redu-ção, hoje em voga, da história à retórica não pode ser repelida sustentando-seque a relação entre uma e outra sempre foi fraca e pouco relevante”. Énecessário reportar-se à retórica da prova, de Aristóteles.

Remete-nos aos que, como o destacado autor da Meta-história, de1973, Hayden White (2008), veem o discurso historiográfico como uma cons-trução, aproximando-o da literatura. White inclusive releva a utilidade dateoria dos tropos, levando em conta os considerados básicos na tradição dosestudos linguísticos e literários – metáfora, metonímia, sinédoque e ironia –,que “permitem a caracterização de objetos em diferentes tipos de discurso,indireto ou figurado” (WHITE, 2008, p. 46). Vê neles “um meio de caracteri-zar os modos dominantes da reflexão histórica que tomou forma na Europano século XIX”, permitindo-lhe “descrever a estrutura profunda da imagina-ção histórica daquele período considerado como produto de um ciclo encer-rado” (WHITE, 2008, p. 52). Isto porque

cada um dos modos pode ser visto como uma fase, ou momento, dentro deuma tradição de discurso que evolui das formas de percepção metafórica,metonímica e sinedóquica do mundo histórico para uma apreensão irônicado irredutível relativismo de todo o conhecimento (WHITE, 2008, p. 52).

Não entraremos no âmbito da discussão entre esses dois grandesintelectuais da atualidade. Interessa-nos, sim, a importância que a seu modocada um deles atribui à retórica – ou para negá-la ou para exaltá-la, é necessárioconhecê-la. Daí ser fundamental proceder-se a uma “reavaliação da riquezaintelectual da tradição que remonta a Aristóteles e à sua tese central: as provas,longe de serem incompatíveis com a retórica, constituem o seu núcleo fun-damental” (GINZBURG, 2002, p. 63). Pensamos com esse historiador, ten-do em mente Fernão Lopes, que a construção do discurso historiográfico

24 A amplificação corresponderia à prova no gênero epidítico.

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“não é incompatível com a prova; a projeção do desejo, sem o qual não hápesquisa, não é incompatível com os desmentidos infligidos pelo princípo derealidade” (GINZBURG, 2002, p. 44-45).

Vale repetir que, embora alguns rétores já tivessem elaborado tra-tados parciais sobre a retórica, como Córax e Tísias, devemos a Aristóteles,no século IV a.C., a sistematização mais competente da mesma, estabelecen-do verdadeiramente os fundamentos e o estatuto dessa arte. Ligando-a àdialética e à lógica, definiu-a como “a faculdade de ver teoricamente o que,em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão” (ARISTÓTELES. [s.d.],p. 34). E acentuou a importância que deve ser dada ao auditório, do qual oorador, mais convincente se homem exemplar, teria de levar em conta os seuscaracteres e paixões, para melhor conseguir-lhe a adesão. Na observação aba-lizada de Paul Ricoeur, o seu grande mérito foi relacionar o “conceito retóricode persuasão” com o “conceito lógico de verossímil, e o de construir sobre estarelação o edifício completo de uma retórica filosófica” (RICOEUR, 1983, p. 13).

Outra contribuição importantíssima à revisão e revalorização da re-tórica aristotélica, no século XX, foi a de Chaim Perelman, considerado um dosmais importantes nomes da Filosofia do Direito na atualidade. Autor de signifi-cativos estudos de retórica e lógica, associou-se a L. Olbrechts-Tyteca para dara lume o Traité de l’argumentation (1958). Aí, nas pegadas de Aristóteles, atri-buem à retórica “o estudo das técnicas discursivas capazes de provocar ou deaumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas para a sua aquiescência”(PERELMAN, O.-TYTECA, 1958, p. 5; traduzimos). Releva-se, dessa for-ma, a importância fundamental do(s) interlocutor(es) a quem o discurso sedirige, ressaltando-se que “é em função de um auditório que se desenvolve todaargumentação” (PERELMAN, O.-TYTECA, 1958, p. 7; traduzimos).

No que concerne aos elementos específicos do discurso, distin-guem a argumentação da demonstração25 , relacionadas aos intentos depersuadir ou convencer. Este atuaria mais especificamente na esferaintelectiva, com a demonstração de uma verdade tida por incontestável eunívoca, dirigida a um auditório universal. E se diferenciaria do processode persuasão que, a partir de uma plurivociade de dados, objetiva atuarsobre a vontade do interlocutor.

Na base dessa compreensão, está a evidência de ser o homem for-

25 Aristóteles ([s.d.], p. 115) afirmou ser “absolutamente necessário não ter só em vista osmeios de tornar o discurso demonstrativo e persuasivo; requer-se ainda que o orador mostrepossuir certas disposições e as inspire ao juiz”.

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mado de razão e vontade, podendo o discurso atuar sobre o entendimento,através de documentos, e sobre a vontade, através de recursos que provo-quem a comoção. Adiante-se que Fernão Lopes lança mão de ambos, sendodo nosso interesse particularmente os últimos, que dizem respeito à sua facetade artista mais que de historiador.

Relevam também que toda argumentação, fundando-se na discus-são, na escolha entre os possíveis, é uma prática democrática, visando à co-municação e à comunhão com o interlocutor: “Não sendo nunca completa-mente necessária a prova retórica, o espírito que adere às conclusões de umaargumentação o faz por um ato que o engaja e pelo qual é responsável”(PERELMAN, O.-TYTECA, 1958, p. 82; traduzimos). Opõe-se ao fanatis-mo, cujo engajamento é dogmático, e ao ceticismo, que o recusa, sendo am-bos inimigos do diálogo:

O fanático aceita o engajamento, mas à maneira daquele que se inclinadiante de uma verdade absoluta e irrefutável; o cético a ele se opõe sob opretexto de não lhe parecer definitivo. Recusa a adesão porque faz delauma idéia semelhante à do fanático: um e outro não aceitam que a argu-mentação vise a uma escolha entre possíveis; propondo e justificandosua hierarquia, visa tornar racional uma decisão. Fanatismo e ceticismonegam esse papel da argumentação em nossas decisões. Tendem a dei-xar, por falta de razão coercitiva, livre campo à violência, recusando oengajamento pessoal (PERELMAN, O.-TYTECA, 1958, p. 82-83; tra-duzimos).

Dentre outros dos grandes especialistas que se debruçaram, no sé-culo XX, sobre a retórica aristotélica, podemos citar Roland Barthes (1975),um dos mais importantes e acatados teóricos da literatura. Destaca ser ela,antes de tudo, “uma retórica da prova, do raciocínio, do silogismo aproxima-tivo (entimema); é uma lógica expressamente rebaixada, adaptada ao nível‘do público’, isto é, ao bom senso comum, à opinião corrente” (BARTHES,1975, p. 157). Valorizando dessa forma a doxa, a opinião ou crença geral, se“estendida às produções literárias (o que não era seu campo propriamenteoriginal), ela implicaria mais uma estética do público do que uma estética daobra” (BARTHES, 1975, p. 157).

Trata-se, pois, na competente avaliação de Roland Barthes (1975,p. 157), de uma retórica muito conveniente à cultura ocidental, dita ‘de mas-sa’, em que domina o ‘verossímil’ aristotélico, isto é, “aquilo que o públicojulga possível”. Daí que seja “realmente tentador colocar esta retórica demassa em relação com a política de Aristóteles”. Esta, preconizava a virtude

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do “justo meio, favorável a uma democracia equilibrada, centrada nas classesmédias e encarregada de reduzir os antagonismos entre os ricos e os pobres, amaioria e a minoria. Daí uma retórica do bom-senso, espontaneamente sub-missa à ‘psicologia’ do público” (BARTHES, 1975, p. 157).

Papel pioneiro nessa revalidação da retórica no século XX foi de-sempenhado por Ernest Robert Curtius, que no final da década de 40 (1948)publicou o clássico Literatura europeia e Idade Média latina. Este reúneestudos iniciados em 1932, segundo nos informa o próprio autor (CURTIUS,1989, p. 9). Foi, portanto, pioneiro na revaloração da retórica – aliás, com estaexpressão intitula as reflexões iniciais do capítulo dedicado especificamentea ela (CURTIUS, 1989, p. 97), onde focalizará desde as suas origens na Anti-guidade aos autores cristãos que lhe deram sequência no Ocidente. Então,começa por relevar a importância dessa disciplina: “seu estudo nos faz pene-trar mais profundamente que a gramática no mundo cultural da Idade Média”(CURTIUS, 1989, p. 97; traduzimos). Posição destemida e inovadora, dado odescrédito que ela alcançara, retirada inclusive dos curricula escolares: “aretórica nos parece já coisa estranha; há muito que deixou de ser matéria deensino” (CURTIUS, 1989, p. 97; traduzimos).

Essa obra se detém em elementos retóricos importantes encontráveisna tradição literária medieval, como os topoi – de consolação, de falsa mo-déstia, de exórdio, de conclusão, de evocação da natureza, do mundo às aves-sas, etc. (CURTIUS, 1989, p. 122-143). Mas o mérito de Curtius foi tambémo de ter feito escola: seu discípulo Heinrich Lausberg escreveu o abrangenteManual de retórica literária publicado em 1960 na Alemanha, percorrendo-lhe a trajetória desde os gregos, os romanos, o Ocidente medieval e depois26 .Com vasta fundamentação em fontes teóricas e exemplificação retirada deobras literárias, seus estudos são particularmente úteis no tocante à elocutio.Embora se ocupe também das outras partes da retórica, remonta, de formaexaustiva e crítica, às figuras e/ou tropos do discurso, dos quais também seocupara a estilística, embora de forma menos completa.

A propósito, Rosado Fernandes, no estudo introdutório à ediçãoportuguesa de Elementos de retórica literária, de Lausberg (1982), justifica-se pela tradução dessa obra diante da corrente antirretoricista surgida no sé-

26 Lausberg, além do Manual de retórica literária, escreveu a importante suma Elementos deretórica literária. Usamos principalmente o segundo título, que citamos pela tradução de J.M. Rosado, publicada em Lisboa com 3 ed. de 1982.

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culo XVIII, que atravessou todo o século XIX, alcançando o XX. Avaliaentão que o descrédito alcançado pela disciplina teve como causa “o ensinoda retórica pela retórica”, “a imposição de uma técnica como fim em si pró-pria”. Sua finalidade primeira, de convencer e persuadir, terminou por serdeixada em segundo plano; e a finalidade de deleitar terminou por ser detur-pada pelo exagero dos ornamentos do discurso: “os autores caíam, por parci-alidade e excesso de ornato, em discursos ocos e sem matéria, destinados aagradar a assistências fúteis” (FERNANDES, 1982, p. 7).

Não se pode deixar de citar, dentre os pioneiros nesse processo deredescobrimento da retórica, Friedrich Solmsen, autor de publicações queremontam ao final da década de trinta (1938). Seu artigo “The aristoteliantradition in ancient rhetoric” (1941) tem sido considerado de fundamentalimportância para o aumento fenomenal do “interesse pela retórica antiga e asua relevância para a sociedade moderna” (ALEXANDRE Jr., 2006, p. 15).

Enfim, não apenas no Velho, mas também no Novo Continenteproliferam os estudos retóricos. Naquele, além dos nomes já citados anterior-mente, destaque-se Gérard Gennete (1970), criador da feliz expressão ‘retóri-ca restrita’ para denominar a disciplina em que acabou por se converter aretórica, restrita primeiramente à elocutio e depois à teoria dos tropos, distan-ciando-se mais e mais da sua abrangência inicial. Como também Paul Ricoeur(1983), que sublinha na lição aristotélica os seus três eixos: da argumentação(seu eixo principal), da elocução (o de mais farta descendência, terminandopor ocasionar, por seu caráter restrito e vazio, o descrédito da retórica) e dacomposição do discurso; isto sem deixar de acentuar o caráter filosófico dotratado de Aristóteles, que alia o conceito lógico de verossímil ao conceitoretórico de persuasão.

Na América, citem-se, dentre outros, os importantes estudos deEdward Corbett (1971) e George Alexander Kennedy (1998), publicados apartir da década de 60, sobre a história da teoria e prática da retórica desde aAntiguidade à atualidade. Enfim, muitos outros nomes do Novo Continentepoderiam ser lembrados para demonstração da fecundidade dos estudosretóricos na atualidade, culminando na criação da International Society forthe History of Rhetoric.

É, portanto, gratificante observar a atualização dessa arte após séculosde degradação crescente e esquecimento – embora nunca tivesse deixado de serpraticada, mesmo que de forma inconsciente, nos discursos diversos, como opolítico, o religioso, o publicitário, o jornalístico, etc. E acentua-se a suaabrangência interdisciplinar, pois interessa, ou deveria interessar, a teóricos da

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literatura e historiadores, juristas e publicitários, filósofos e políticos, etc.Ao analisarmos a Crônica de D. João I a partir dos pressupostos

dessa arte, pensamos contribuir também para esse movimento de revalorizaçãodo seu sentido original. Este, como vimos, ligou-se a práticas democráticas,em um período em que o poder da palavra sobrepujou o da força. O que secoaduna de certa forma com o nosso cronista, que viveu e escreveu numaépoca em que o poder do povo, manifesto nos conselhos, fazia frente ao po-der dos nobres. O destaque ao Terceiro Estado, que se faz notar em suascrônicas, particularmente na de que nos ocupamos, se ajusta perfeitamente àimportância atribuída ao discurso como meio de persuasão. Daí a oportunida-de do exame da retórica da sua obra, afora os motivos por ele expostos noPrólogo da crônica em questão, no qual defende um estilo simples, ‘verdadei-ro’, em detrimento da falsidade do estilo ornamentado. A sua seria uma “esté-tica do público” mais que uma “estética da obra”, na terminologia de RolandBarthes (BARTHES, 1975, p. 157) para as obras literárias que sobrelevam aimportância do receptor e o senso comum, preocupações destacadas da retó-rica de Aristóteles.

Se os numerosos ornamentos presentes na obra representam in-coerência em relação à proposta de narrar a verdade nua e crua, no entantoa incoerência é atenuada, desde que levada em conta a distinção entre ‘fi-guras argumentativas’ e ‘figuras de estilo’, observada por Perelman eOlbrechts-Tyteca nos termos que seguem:

Consideramos uma figura como argumentativa se, ocasionando umamudança de perspectiva, seu emprego parece normal para benefício danova situação sugerida. Se, ao contrário, o discurso não ocasiona a ade-são do auditório a esta forma argumentativa, a figura será percebida comoadorno, como figura de estilo. Ela poderá suscitar a admiração, mas so-bre o plano estético, ou como testemunha da originalidade do orador(PERELMAN, O.-TYTECA, 1958, p. 229; traduzimos).

A partir desse entendimento, ‘figuras argumentativas’ seriam asacatadas pelo cronista, ‘figuras de estilo’ as por ele reprovadas. Muito embo-ra os limites entre umas e outras não se possam estabelecer tão nítida e facil-mente, o que importa é que a intenção utilitarista das primeiras, em oposiçãoao caráter meramente ornamental e estético que se atribui às segundas, viriaao encontro do pragmatismo de Fernão Lopes, consoante com o da época.Nesta, a poesia, considerada “fantasia sem proveito”, fora alijada a favor daprosa, no período compreendido entre 1350 e 1450, quando se deu a consolida-ção da nacionalidade portuguesa, concomitante à desintegração da Idade Mé-

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dia; ao passo que nos primeiros séculos de formação e independência do reino,a poesia trovadoresca, formalista e aristocrática, foi cultivada em larga escala,conforme documentam os Cancioneiros em que foram recolhidas as cantigasgalego-portuguesas. A propósito, oportunas são as reflexões dos citados teóri-cos, que apontam para a interação entre estilo e estrutura social, concluindopela existência de dois grandes estilos para a expressão da ‘comunhão social’ –o das sociedades democráticas e o das sociedades hierárquicas27 . Isto porque “alinguagem, que numa sociedade igualitária, é do domínio de todos, e evoluiquase livremente, se fixa numa sociedade hierárquica. As expressões, as fór-mulas aí se tornam rituais, são acatadas num espírito de comunhão e submis-são total” (PERELMAN, O.-TYTECA, 1958, p. 82-83; traduzimos).

É realmente tentador aventar-se a hipótese, a partir de tais postula-dos, que, sendo o estilo mais ritual da poesia melhor condizente com as socieda-des hierárquicas, assim possivelmente se explicaria o seu “desaparecimento” àroda da Revolução, considerada burguesa28 , de 1383-1385, que inaugura emPortugal uma “Sétima Idade”, no dizer irônico do cronista, e na qual se destaca-ram as forças populares. Mas estas, em 1449, na Batalha de Alfarrobeira, seri-am silenciadas. E com a força fundamentalmente hierárquica da classehegemônica no poder após Alfarrobeira, ocorreria a revalorização da poesia,sendo publicado em 1516 o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende; atravésdeste, acatava-se em Portugal a moda espanhola de se colecionar poesias, aexemplo do Cancioneiro de Baena, publicado na Espanha por volta de 1445.Mas não podemos nos esquecer de que a prosa na Idade Média também seestruturava ao modo de discursos que obedeciam a uma preceptística, como,por exemplo, os sermões; e a crônica que analisaremos é disso uma prova.

2. A cristianização da retóricaNa confluência do legado clássico e do substrato judaico-cristão,

teve origem a arte da prédica (ars praedicandi) que, juntamente com a gra-mática preceptiva ou retórica da versificação (ars poetriae) e com a arteepistolar (ars dictaminis), compôs o estudo do discurso na Idade Média.Observaremos a seguir as tradições que lhe propiciaram o advento.

27 Cf. PERELMAN, O.-TYTECA (1958, p. 221; traduzimos): “Começa-se a reconhecer que,a cada estrutura social, corresponderiam modos particulares de exprimir a comunhão social.(…) Até o presente, parece que se tinham distinguido dois grandes estilos na transmissão dopensamento: o das sociedades democráticas e o das sociedades hierárquicas. Os estudos sãoainda embrionários.”28 Assim pensa, dentre outros, Antônio Borges Coelho (1965, p. 26 e ss).

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2.1. A herança latina

Conforme já observado, as principais fontes propagadoras da retó-rica aristotélica no medievo foram as obras De inventione, de Cícero29 , eRhetorica ad Haerenium, que a ele se atribuiu por muito tempo. Aquela eraconhecida como Retórica velha ou primeira, possuindo várias cópias dosséculos IX ao XIV; e esta, como Retórica nova ou segunda, apenas descober-ta no século XV (REYES CORIA, 1997, p. XXIV). Portanto, a obra de Cíceroé a que mais nos interessa, por haver atravessado toda a Idade Média e, por-tanto, influenciado a constituição da ars praedicandi.

De inventione é obra de juventude daquele que foi um dos maioresadvogados, oradores e políticos romanos: Marcos Túlio Cícero, que viveu de106 a 43 a.C. Não teria sido dessa forma nomeada pelo autor, sendo docu-mentada como Rhetorici libri por rétores posteriores, como Quintiliano(REYES CORIA, 1997, p. XXIII). Da eloquência trataria Cícero também emoutras obras, mais maduras e diferentes no estilo: De oratore, Brutus e Orator.

Como falamos de Idade Média, vamos nos ater à obra então co-nhecida, De inventione, que teria sido escrita entre os anos 91 e 88 a.C., àépoca da ditadura de Caio Mário30 , quando Cícero não participava da vidapolítica, apesar de seu parentesco com esse cônsul e da admiração que omesmo lhe inspirava, já que, inclusive, compusera versos em sua homena-gem (REYES CORIA, 1997, p. XXII). Nela Cícero se refere várias vezes aAristóteles, para referendar-lhe as posições. Mas atém-se fundamentalmenteà primeira das cinco partes da retórica – a inventio –, considerada a maisimportante, já aqui focalizando as partes do discurso. E anuncia que em outrasobras tratará especificamante das demais.

Ao iniciar o primeiro livro, discorre sobre as vantagens e os incon-

29 Cícero nasceu em Arpino, no ano 106 a.C., e morreu executado, por razões políticas, emFórmio, no ano 43 a.C.. Originário de família de linhagem equestre, estudou direito, retóricae filosofia em Roma e na Grécia. Defendendo a causa dos sicilianos contra Caio Verres, quepilhara a ilha (anos73 a 71), tornou-se famoso por seus argumentos, que podem ser conferi-dos em As verrinas, os quais levaram à condenação o acusado. Sua brilhante carreira deadvogado granjeou-lhe sólida fortuna. Dedicando-se à política, defendendo a República, ob-teve sucessos, perseguições, condenações. Após o exílio de um ano em 58, regressando aRoma dedicou-se a atividades forenses e à escrita de seus grandes tratados; novas incursõesna política, alternadas com períodos de dedicação aos estudos, terminaram por levá-lo à mor-te – apoiara Otávio, filho adotivo de Júlio César, contra Marco Antônio; com a reconciliaçãode ambos, foi perseguido e morto.30 Caio Mário foi um famoso general e político romano, que viveu de 157 a 86 a.C.; de origemhumilde, chegou a ser cônsul por sete vezes.

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venientes da eloquência, em relação aos interesses do Estado: “a sabedoriasem eloquência é de pouco proveito para as cidades, mas a eloquência semsabedoria quase sempre lhe é daninha e inútil” (CÍCERO, 1997, p. 1; traduzi-mos). A retomada dessa afirmação por Santo Agostinho é feita ao pé da letra,como veremos.

Fazendo a apologia da moral e do dever enquanto imprescindíveisao orador político que ama a pátria, discorre sobre a nobre origem daeloquência, relacionando-a ao próprio processo civilizador. Iniciativa de sá-bio, sustenta o direito, a igualdade, a boa convivência – até porque a superio-ridade do homem sobre a besta se assenta na faculdade da linguagem. Mastambém se coloca a serviço da perversidade, da mentira, de homens semsabedoria e sem virtude, nocivos ao Estado; é necessário conhecê-la paradescobrir e combater a malícia dos maus. Enfim, subordina-a à ciência política,da qual constitui parte considerável. Seu papel é “falar adequadamente parapersuadir”, sua finalidade é “persuadir pela palavra” (CÍCERO, 1997, p. 5).

Estabelece comentários acerca das fontes clássicas e suas divergên-cias – por exemplo, Górgias, Hermágoras, Aristóteles; deste referenda o desta-que dado ao objetivo de persuasão e à verossimillhança nesse processo, bemcomo os três gêneros de discurso – demonstrativo, deliberativo e judiciário – eas partes da Retórica – inventio, dispositio, elocutio e pronuntiatio, acrescen-tando a memoria, muito valorizada pelos romanos. Mas se afasta da concep-ção de Aristóteles no tocante às partes do discurso o qual, como vimos,condensara-os em duas, aceitando, no máximo, quatro partes; ao passo queCícero, da mesma forma que a Retórica a Herênio31, considera seis partes:exórdio, narração, divisão, confirmação, refutação e conclusão. Iremos nosater em seguida às mesmas, deixando de lado outros pontos apresentados porCícero32, que dizem respeito mais à teoria da matéria que da elaboração dodiscurso, já que esta é o escopo do nosso estudo.

O exórdio, como vimos em Aristóteles, é a parte inicial do discurso,onde se busca dispor favoravelmente o auditório para o que será apresentado,tornando-o benévolo, atento, dócil. Conforme destaca o orador romano, parafazer-se um bom exórdio, que pode ser direto ou por insinuação, o orador deveráconhecer bem o gênero da causa de que tratará, sendo cinco os seus gêneros:honesto, admirável, humilde, duvidoso, obscuro (CÍCERO, 1997, p. 16).

A obtenção da benevolência do auditório pode ser intentada atra-vés da exposição das qualidades do orador (humildade, perseguições sofri-

31 Ao que parece, teriam tido ambas as obras uma fonte comum.32 Por exemplo, a reflexão sobre a constituição da causa, etc.

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das, dificuldades, súplica), dos defeitos dos adversários (arrogância, negli-gência, ócio luxurioso), das características dos juízes ou ouvintes (coragem,sabedoria, mansidão), ou da causa mesma (grandiosidade, novidade, interes-se) e da maneira de anunciá-la, resumindo as suas partes e prometendo brevi-dade (CÍCERO, 1997, p. 17-18)33.

Fernão Lopes certamente conheceu esta receita de exórdio, pois asegue claramente, como veremos a seu tempo. Arremata Cícero:

O exórdio deve apresentar muito de moralidades e gravidade, e contertudo que for concernente à dignidade, para da melhor forma recomendaro orador ao ouvinte; e conter o mínimo de fulgor e de festividade e deornamento, porque destes podem nascer suspeitas de planeamento e deartificiosa diligência, que retira totalmente confiança ao discurso e auto-ridade ao orador (CÍCERO, 1997, p. 20; traduzimos)34.

A narração é a exposição dos fatos tal qual aconteceram ou poderiamacontecer, possuindo três gêneros: a causa mesma e a controvérsia; a digressãoencaixada; e a que se faz para exercitação da fala ou da escrita, para o deleite, nãosendo pertinente às causas cíveis. Podem assentar-se sobre acontecimentos dosmais aos menos passíveis de verdade ou verossimilhança, desde a história (fa-tos passados considerados verdadeiros) e ao drama (fatos imaginados, possí-veis de ocorrer) até às fábulas (fatos nem verdadeiros nem verossímeis); ouainda sobre pessoas, sua linguagem e caráter (CÍCERO, 1997, p. 21).

A exposição da causa deve ser breve – atendo-se ao essencial –,clara – seguindo a ordem dos acontecimentos35 – e verossímil. A propósitodesta, sentencia o mestre romano da eloquência, na esteira de Aristóteles:

Plausível será a narração que pareça conter todas as característicashabituais da verdade; que dê conta da dignidade das pessoas; quedestaque as causas dos acontecimentos; se poderiam ter sido realiza-dos por alguém; se mostra que o tempo foi adequado, o espaço sufici-ente, o lugar apropriado para o ato em pauta; devendo este ser apre-

33 Aponta os seguintes defeitos no exórdio: banalidade, generalidade, grande extensão, impre-cisão, inadequação ao assunto, oposição aos preceitos.34 “Exordium sententiarum et gravitatis plurimum debet habere et omnino omnia, quae pertinentad dignitatem, in se continere, propterea quod id optime faciendum est, quod oratorem auditorimaxime commendat; splendoris et festivitatis et concinnitudinis minimum, propterea quod exhis suspicio quaedam apparationis atque artificiosae diligentiae nascitur, quae maxime orationifidem, oratori adimit auctoritatem”.35 “Aperta autem narratio poterit esse, si, ut quidque primum gestum erit, ita primum exponetur,et rerum ac temporum ordo servabitur, ut ita narrentur, ut gestae res erunt aut ut potuisse geri

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sentado de maneira conveniente ao caráter das partes, à opinião públi-ca e aos sentimentos do auditório (CÍCERO, 1997, p. 23; traduzimos)36.

Quanto à divisão da causa, destaca a sua fundamental importânciapara a clareza do discurso. E propõe duas partes: a primeira deve estabelecer emque concordamos e em que discordamos do adversário, destacando-se o pontopreciso a ser observado pelo auditório; a segunda consiste em expor o planodaquilo que vamos tratar (CÍCERO, 1997, p. 24)37; deve ser breve, sóbria e com-pleta, distinguindo gênero e espécie, o geral e o particular (CÍCERO, 1997, p. 25).

A confirmação é a parte do discurso que, “pela argumentação, trazà causa a força da convicção, da autoridade e da fundamentação” (CÍCERO,1997, p. 27; traduzimos)38. Apresenta regras precisas, adequadas aos gênerosde causas e apoia-se em geral nos atributos das pessoas (nome, natureza,modo de vida, fortuna, hábitos, afeição, formação, orientação, intenções, con-duta passada, acontecimentos, linguagem) ou das coisas (próprios ou circuns-tanciais – de lugar, tempo, maneira, ocasião ou possibilidade –, aproximadosou consequentes). “Mas, tirada das fontes de argumentos indicadas, deveráser ou provável ou necessária39 ” (CÍCERO, 1997, p. 32; traduzimos)40. Epode basear-se ou na indução (método socrático) ou na raciocinação41.

A refutação consiste na argumentação que dissolve ou debilita ouironiza as razões do adversário42. Utiliza-se da mesma fonte de invenção da

videbuntur” – traduzindo: “Todavia a narração poderá ser clara se tudo se expõe sucessiva-mente como se realizou, e se conserva a ordem de tempos e de fatos, de modo que as coisas senarrem assim como foram realizadas ou como pareça que pudessem ser realizadas” (CÍCERO,1997, p. 22-23; traduzimos). Fernão Lopes demonstra conhecer essa lição; mas opta pelaordem da causalidade dos acontecimentos a partir de critérios antropológicos e topológicosmais que meramente cronológicos, como veremos.36 “Probabilis erit narratio, si in ea videbuntur inesse ea, quae solent apparere in veritate; sipersonarum dignitates servabuntur; si causae factorum exstabunt; si fuisse facultates faciundividebuntur; si tempus idoneum, si spatii satis, si locus opportunus ad eandem rem, qua de renarrabitur, fuisse ostendetur; si res et ad eorum, qui agent, naturam et ad vulgi morem et adeorum, qui audient, opinionem accommodabitur”.37 “Recte habita in causa partitio inlustrem et perspicuam totam efficit orationem. Partes eius suntduae, quarum utraque magno opere ad apariendam causam et constituendam pertinetcontroversiam. Una pars est, quae, quid cum adversariis conveniat et quid in controversiarelinquatur, ostendit; ex qua certum quiddam destinatur auditori, in quo animum debeat habereoccupatum. Altera est, in qua rerum earum, de quibus erimus dicturi, breviter expositio poniturdistributa; ex qua conficitur, ut certas animo res teneat auditor, quibus dictis intellegat foreperoratum”.38 “Confirmatio est, per quam argumentando nostrae causae fidem et auctoritatem etfirmamentum adiungit oratio”.

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confirmação, pois com os mesmos lugares com que algo se confirma estealgo pode ser debilitado (CÍCERO, 1997, p. 49)43 .

Para a conclusão, que é a saída e arremate do discurso, diferindode Aristóteles, que nela observava quatro partes, estabelece três partes: a enu-meração, que reúne sumariamente o que foi dito dispersa e confusamente44 ; aindignação, que estimula o ódio a alguém ou impinge grave ofensa a algo45 ,através dos mesmos lugares usados na confirmação e outros quinze ora apre-sentados; e o lamento, que objetiva alcançar a misericórdia dos ouvintes,fornecendo-se-lhe dezesseis tópicos (CÍCERO, 1997, p. 59-65).

Enfim, estes são os pontos que por hora destacaríamos da obra deCícero, e que teriam influído na ars praedicandi medieva e na crônica deFernão Lopes, como veremos. Para terminar, valeria destacar o modus operandiadotado por Cícero para compor o seu tratado, que também será o expressa-mente aceito pelo cronista: defende, no início do Livro II, a necessidade deutilização de várias fontes para escolher o dado que for mais conveniente ouconvincente em cada uma. O modelo seguido, explicitado por Cícero, éAristóteles, que não foi o inventor da retórica, mas reuniu os preceitos jáexistentes e os explicou com propriedade e brevidade, incluindo no tratado asua própria contribuição (CÍCERO, 1997, p. 68-69). Esse processo constituiuma significativa diferença em relação à Retorica ad Herennium, que emdiversas passagens opõe-se aos gregos46 e propõe exemplos retirados de uma

39 A argumentação necessária baseia-se na complexão, na enumeração ou na conclusão sim-ples. O provável ou verossímil, que corresponde ao que ocorre comumente, ou que a opiniãopública aceita, ou que tenha alguma semelhança com isto, seja verdadeiro ou falso, podelançar mão de índices, crenças, prejulgamentos, comparações (imagens, símiles, exemplos).40 “Omnis autem argumentatio, quae ex iis locis, quos commemoravimus, sumetur, autprobabilis aut necessaria debebit esse”.41 Não deve ser confundida com o silogismo e é dividida em cinco partes: proposição, prova,assunção, prova da assunção e complexão, sendo que determinados discurso omitem as provas.42 “Reprehensio est, per quam argumentando adversariorum confirmatio diluitur [autinfirmatur] aut elevatur” (CÍCERO, 1997, p. 49)43 São apresentados quatro modos de refutação: não se concedendo alguma coisa ou muitas doque foi levado em conta na citação; ou se, no caso de concedidas, se nega que a constituiçãoprocede cabalmente delas; ou se o gênero da própria argumentação se mostra defeituoso; ou se,contra uma firme argumentação, se contrapõe outra tão ou mais firme (CÍCERO, 1997, p. 49).44 “Enumeratio est, per quam res disperse et diffuse dictae unum in locum coguntur etreminiscendi causa unum sub aspectum subiciuntur” (CÍCERO, 1997, p. 59).45 “Indignatio est oratio, per quam conficitur, ut in aliquem hominem magnum odium aut inrem gravis offensio concitetur” (CÍCERO, 1997, p. 60).46 Critica nos gregos a arrogância e a vaidade, vendo nos seus escritos detalhes que dificultama clareza do método retórico; e diz não ter, como eles, por finalidade a glória ou o lucro.

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só fonte, da própria experiência do autor e relacionados à política do seucontexto de produção47. No entanto, apresenta muitos exemplos de ornatosreconhecíveis em fontes gregas, o que poderia indicar, na crítica a estas apon-tada, um processo de emulação, uma tentativa de superação do modelo.

Se considerarmos que este último tratado apenas no século XV setornaria acessível aos portugueses (e não só), dado que o códice existente nomosteiro de Alcobaça teria sido escrito com letra da segunda metade do sécu-lo XV (FERNANDES, 1982, p. 35), não se encontraria entre os subsídiosutilizados pelo cronista para a elaboração do seu discurso. Mesmo assim, aela nos reportaremos a seguir, conquanto que sumariamente.

De forma muito esquemática, atém-se em seus quatro livros a to-das as partes da retórica e apresenta-se na forma epistolar, aproximada dodiscurso coloquial e escrita apesar da alegada ocupação com os negóciosfamiliares48 do seu anônimo autor49. Este coloca-se humilde em relação aodestinatário, por dedicação ao qual escrevera a obra, apesar da falta de tempo– utiliza, pois, já na elaboração do seu discurso, de técnicas para o alcance dacaptatio benevolentia que caracteriza o exórdio.

Foi provavelmente escrito entre 86 e 82 a.C., contemporaneamente “àcrise das instituições da República, identificada aos conflitos entre optimates epopulares” (FARIA, SEABRA, 2005, p. 23). A ocasião era propícia à oratória,particularmente ao pleito judicial, que poderia beneficiar-se da animosidade entreas facções – o que poderia ser uma explicação para o relevo dado na obra aogênero judiciário e à elocução, e, nesta, às figuras ou ornamentos da linguagem.

47 A maioria dos exemplos que aparecem na obra são francamente favoráveis aos “populares”(seguidores do general publicano Mário, sete vezes eleito cônsul e morto no ano 86 a.C.), talcomo acontecia com a escola de Plócio Galo (FARIA, SEABRA, 2005, p. 19).48 “Ainda que, impedidos pelos negócios familiares, dificilmente possamos dedicar ócio sufici-ente ao estudo” como diz o autor no início do Livro I (RETÓRICA A HERÊNIO, 2005, p.53).49 Durante muito tempo permaneceu desconhecida dos rétores romanos e foi referida emtextos apenas no século IV por Jerônimo, Rufino e Prisciano, que imputam a Cícero a autoria– o que só começou a ser questionado no séc. XV. Possivelmente, se não forem meros recur-sos retóricos os indícios presentes no Prólogo do livro I – levando em conta, como já ensinaraAristóteles, que a persona compõe-se de paixões, hábitos, idade e fortuna – o autor pertence-ria à ordem social equestre (nova classe sem tradição na magistratura, que paulatinamenteganharia força política em Roma), seria adulto (digno de crédito pelos ‘negócios’ e ‘estudos’,ou talvez um senador), hostil aos gregos (decorrente ou da superficialidade do autor ou de suarecusa aos predecessores, em nome da originalidade).

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Não apresenta reflexões filosóficas ou discussões sobre o caráter doorador e dos afetos dos ouvintes como meios de persuasão nos moldes de Aristótelese Teofrasto (FARIA, SEABRA, 2005, p. 17). Antes, se configura como umasíntese dos tratados anteriores, nele se acentuando o pragmatismo dos romanos.Assemelha-se a anotações de aulas esquematizadas e destaca a importância doexercício assíduo da oratória, indicando que sem este o método de nada serviria.

No livro I, define o “ofício do orador” como “poder discorrer so-bre as coisas que os costumes e as leis instituíram para o uso civil, mantendoo assentimento dos ouvintes até onde for possível” (RETÓRICA A HERÊNIO,2005, p. 55). Referenda os gêneros de discurso50 e as partes da retóricaaristotélica, apresentando-os de forma mais limitada e específica e acrescentaa memoria51. Divide o discurso em seis partes52, como Cícero, de quem se apro-xima também no modo de definir cada uma delas; e analogamente a este desta-ca os gêneros ou tipos de causa – honesto, torpe, dúbio e humilde53.

No livro II, trata mais especificamente da inventio no discursojudiciário, o método adequado a cada constituição de causa (conjectural,legal, jurídica absoluta), ou suas partes, e quais os argumentos convenien-tes à causa, quais os que competem à confirmação ou à refutação. Por últi-mo, trata da conclusão, estabelecendo os lugares das suas partes – as quaissão a enumeração, a amplificação e a comiseração. No livro III, trata da

50 “O demonstrativo destina-se ao elogio ou vitupério de determinada pessoa. O deliberativoefetiva-se na discussão, que inclui aconselhar e desaconselhar. O judiciário contempla a con-trovérsia legal e comporta acusação pública ou reclamação em juízo com defesa” (RETÓRI-CA A HERÊNIO, 2005, p. 55).51 As partes da retórica, que devem ser conhecidas pelo orador, são: “invenção é a descobertade coisas verdadeiras ou verossímeis que tornem a causa provável. Disposição é a ordenaçãoe distribuição dessas coisas; mostra o que deve ser colocado em cada lugar. Elocução é aacomodação de palavras e sentenças adequadas à invenção. Memória é a firme apreensão, noânimo, das coisas, das palavras e da disposição. Pronunciação é a moderação, com encanto,da voz, semblante e gesto” (RETÓRICA A HERÊNIO, 2005, p. 55).52 1) exórdio – começo do discurso, onde se objetiva conquistar a disposição do ouvinte parao mesmo; 2) narração – exposição dos fatos acontecidos ou passíveis de acontecer; 3) divisão– anúncio do que será falado e explicitação do que está de acordo e/ou das controvérsias; 4)confirmação – apresentação firme dos argumentos; 5) refutação – destruição dos argumentoscontrários; 6 ) conclusão – término do discurso.53 Honesto, quando a defesa ou acusação da causa está de acordo com a opinião do sensocomum; torpe, quando se defende o torpe e se acusa o honesto; dúbio, quando contém parteshonesta e torpe; humilde, quando versa sobre matéria desprezível.

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inventio nos gêneros deliberativo e demonstrativo, da dispositio, dapronuntiatio54, da memoria55. E no Livro IV, da elocutio.

Este último livro corresponde a quase metade da obra, e se dedicaprimeiramente à apresentação das figuras e seus vícios, distribuindo-as, deacordo com o estilo, em graves (palavras graves em construção polida e orna-da), médias (palavras mais humildes, conquanto não totalmente vulgares ecomuns) e tênues (palavras costumeiras a conversas comuns) (RETÓRICA AHERÊNIO, 2005, p. 213). Após recomendar a conveniência da variação dessesgêneros para combater o tédio ou fastio no ouvinte (RETÓRICA A HERÊNIO,2005, p. 221), passa à explanação sobre a utilidade dos ornamentos à elegância(correção e clareza), composição (arranjo de palavras para tornar as partes dodiscurso igualmente bem polidas) e dignidade do discurso (através dos orna-mentos variados) (RETÓRICA A HERÊNIO, 2005, p. 223-225). Dividindo osornamentos em ornamentos de palavras (nos quais inclui os tropos) e de sen-tenças, passa à descrição e exemplificação de cada um deles56.

E a obra se encerra afirmando ser um manual completo de retórica,nada tendo omitido a respeito dessa arte, e recomendando a prática diligentede exercícios (RETÓRICA A HERÊNIO, 2005, p. 313).

54 Na pronuntiatio destaca a configuração da voz (magnitude, estabilidade, flexibilidade –adequação às suas partes: à conversa dignificante, demonstrativa, narrativa ou jocosa; à con-tenda, levando-se em conta a continuação e a distribuição; à amplificação na investigação ouqueixa; e à pronunciação idônea a cada parte). Como também encarece a importância dosgestos, dos movimentos do corpo adequados.55 Divide a memória em natural e artificial (esta subdividida em lugares e imagens, ensinando-se a como encontrar os lugares e a como encontrar e dispor as imagens).56 Ornamentos de palavras (RETÓRICA A HERÊNIO, 2005, p. 226-271): repetição, conver-são, complexão (união dos dois anteriores), transposição, contenção (construção a partir decontrários), exclamação, interrogação, arrazoado, sentença (provérbio), antítese, membros,articulação, continuidade, paridade, semelhança de desinências, agnominação, subjeção,gradação, definição, transição, correção, ocultamento, disjunção, conjunção, adjunção,reduplicação, interpretação, comutação, permissão, dubitação, expediência, desligamento,rescisão, conclusão. Além destes, arrola mais dez, que pertencem ao mesmo tipo, com transposição para outroplano discursivo (tropos): nomeação, pronominação, transnominação, circunlóquio, trans-gressão, superlação, intelecção, abusão, translação, permutação. Ornamentos de pensamento ou sentenças (RETÓRICA A HERÊNIO, 2005, p. 271-311):distribuição, licença, diminuição, descrição, divisão, frequentação, expoliação, delonga, con-tenção, similitude, exemplo, imagem, efígie, notação, sermocinação, personificação, signifi-cação, brevidade, demonstração.

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2.2. A cristianização

A fase primacial da arte de pregar cristã, devedora às interpreta-ções judaicas do Velho Testamento, foi encabeçada pelo próprio Jesus Cris-to57. Este, instruído na liturgia judaica com leituras e exegeses, sobretudo doscinco primeiros livros bíblicos – o Pentateuco –, ordenara aos seus apóstolosque difundissem as suas ideias através da prédica: “e designou doze para queestivessem com ele e para enviá-los a pregar” (Mateus, XXVIII, 16-20). Elhes deu exemplos de adequação dos discursos aos ouvintes, utilizando-seconstantemente de analogias e metáforas entre o mundo terreno e o divino, ede parábolas para alcançar os menos instruídos.

Baseada na verdade das Escrituras e na sua exegese, essa prédicafundacional consistiu na evangelização (anúncio) e na exposição da doutrina(ensino). Como na Retórica antiga, sistematizada por Aristóteles, intentava-se a persuasão, sendo que a argumentação se apoiava no que o Filósofo cha-mava de prova apodítica, isto é, incontestável – já que a Bíblia é, para oscristãos, a fonte da Verdade.

Diferindo da oratória clássica, a prédica cristã, seguindo a ordemdo Mestre, procurava atingir a todos os homens, não apenas a um auditórioseleto, como o dos cidadãos nas sociedades escravocratas grega e romana.Mas ambas intentavam adequar o discurso ao auditório. Por exemplo,Aristóteles ensinava que “é em função do auditório que se desenvolve toda aargumentação”, e Marcos (IV, 33-34) testemunhava que Jesus Cristo “Anun-ciava-lhes [às multidões] a Palavra por meio de muitas parábolas (...), confor-me podiam entender; e nada lhes falava a não ser em parábolas. A seus discí-pulos, porém, explicava tudo em particular” (BÍBLIA, 1981, p. 1327).

Toda a Bíblia está permeada de pregadores, como, por exemplo,os profetas. Na fase primacial do cristianismo merece destaque o apóstoloPaulo, que foi não apenas um dos pregadores mais eficientes, como tambémteórico da pregação. Por exemplo, destacou, na epístola aos Coríntios (I, 14-9), a necessidade de clareza para a eficácia do discurso: “se vossa linguagemnão se exprime em palavras inteligíveis, como se há de compreender o que

57 “Cristo estableció un modelo para los predicadores cristianos de vários modos y, aún másimportante, confirmó y reforzó la práctica judía del uso de las Escrituras como prueba; distinguíaescrupulosamente entre parábolas y discurso ‘directo’, entre evangelización (anuncío) y enseñanza(exposición de la doctrina), y hacía constantes comparaciones de lo terreno y lo divino, median-te analogías y metáforas. Estos rasgos aparecen en la predicación cristiana hasta el día de hoy,pero tuvieron especial relevancia en el período medieval” (MURPHY, 1986, p. 282).

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dizeis?” (BÍBLIA, 1981, p. 1503). Ou ainda, a da conduta exemplar do prega-dor, na epístola ao seu discípulo Timóteo (I, 4-12): “Sê para os fiéis um mode-lo na palavra, na conduta, na caridade, na fé, na pureza” (BÍBLIA, 1981, p.1547). E referendou, em Timóteo II, 3-16, as finalidades da pregação – ins-truir, refutar, corrigir, educar –, fundamentada na Bíblia: “Toda Escritura éinspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educarna justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, qualificado para todaboa obra” (BÍBLIA, 1981, p. 1553).

Levando às últimas consequências a ordem de Jesus, a responsabi-lidade de converter ao cristianismo os pagãos, com a certeza na força divinada mensagem, estabeleceria o que Murphi (1986, p. 286) considerou umaverdadeira ‘teologia da pregação’, introduzindo conceitos sobre “a relação dagraça com a prédica, o contraste entre esta e a oratória ordinária, a questãosobre quem deve pregar e inclusive a relação entre pregação e culto”.

Enfim, na Bíblia se encontram exemplos de pregadores, teorizaçõessobre a prédica e também técnicas retóricas diversas, sendo abundantes asfiguras e/ou tropos reconhecidos desde os primeiros séculos cristãos e nomedievo por autores como Santo Ambrósio, Santo Agostinho, Casiodoro,Beda, Alcuíno, Roberto de Deutz, etc. Daí a necessidade de ser interpretadalevando em conta a pluralidade de sentidos veiculada pela sua linguagem,não apenas o literal.

Após Jesus Cristo e Paulo, apenas no século V surgiria um tratadoconsiderável sobre a prédica: De doctrina christiana de Santo Agostinho (396-426). Como explicar esse vazio de séculos no mundo cristão, se o seu funda-dor fora tão enfático quanto à necessidade da pregação? As perseguições aosprimeiros cristãos e em seguida a revolta contra a cultura pagã seriam expli-cações plausíveis (MURPHY,1986, p. 291). Depois de Santo Agostinho, asinvasões bárbaras contribuiriam para um novo silêncio. Então, a Igreja preo-cupava-se com temas mais intrinsecamente relacionados à doutrina e à admi-nistração eclesial, como o celibato sacerdotal, a jurisdição episcopal, a pobre-za e divindade de Cristo, a natureza do pecado, a relação com os judeus, etc.:“Diante da evidência de que a Igreja se debatia com questões mais urgentes,só resta concluir que a teoria da prédica não era considerada problema chave”(MURPHY, 1986, p. 291; traduzimos).

Destaquemos, pois, que, para a aceitação e prestígio da retóricaentre os cristãos, inclusive compondo as disciplinas do Trivium, foi funda-mental a posição de Santo Agostinho (354-430 d.C), que a defendeu veemente-mente dos seus opositores, considerando-a, na esteira de Platão (427-347), um

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eficiente meio de catequese das almas e canalizando-a para o ensino das vir-tudes cristãs, para a exegese da Bíblia. Assumindo uma posição teológica eética, propugnou a importância da prédica clerical, apoiada na pedagogia doamor, na retidão do pregador, na capacidade de evocação do ouvinte, nasEscrituras como base do conhecimento e fonte de provas incontestáveis.

Na sua citada obra De doctrina christiana, cujos três primeiroslivros teriam sido concluídos em 396, mais especificamente no Livro IV, ter-minado em 426, divulga os princípios básicos da retórica58, destacando oquão vantajoso é ensinar-se de modo claro, agradável e persuasivo as verda-des cristãs – “o útil unido ao agradável” (AGOSTINHO, 2002, p. 214). Masalerta sobre o perigo do sofisma, uma vez que é a arte da persuasão tanto doverdadeiro quanto do falso: “que se diga ao menos com sabedoria o que nãose consegue dizer com eloquência, de preferência a dizer eloquentementecoisas tolas” (AGOSTINHO, 2002, p. 274). Inclusive reporta-se a Cícero –De inventione, liber I, 1, a propósito dessa questão, transcrevendo-lhe as pa-lavras: “a sabedoria sem eloquência foi pouco útil às cidades, mas, em troca,a eloquência sem sabedoria lhes foi frequentemente nociva e nunca útil”(AGOSTINHO, 2002, p. 212).

Portanto, a finalidade primeira da prédica não pode ser o deleite,embora seja este desejável para a melhor transmissão dos ensinamentos. Damesma forma que Cícero, propugna como finalidades do discurso ensinar,agradar e comover, recomendando que “assim como é preciso agradar aoauditório para o manter na escuta, também é preciso convertê-lo para o levarà ação” (AGOSTINHO, 2002, p. 234).

A adequação dos tipos de estilo ao discurso, às suas finalidades, é

58 Também nos breves tratados De magistro (Sobre o mestre), de 389, e De catechizandisrudibus (A catequese dos rústicos), de 399, contribui para a sedimentação da retórica nomundo cristão, indo mais longe que Cícero na reflexão sobre o conceito de signo, destacandosua essencialidade, sua relação com a graça e a beatitude. Aproximou-se de Quintiliano narecomendação do ensino para os jovens, que mais facilmente aprendem ou imitam. Mas,como Platão, considerava a capacidade do indivíduo aprender por si mesmo, “em contraposiçãoà capacidade de outra pessoa alheia, de instruir o ouvinte ou persuadi-lo somente por forçados signos convencionais que emprega para comunicar-se” (MURPHY, 1986, p. 294; tradu-zimos). Contrapunha-se, pois, à fé que os romanos depositavam na imitatio, investindo nainventio (descoberta) para o processo de aprendizagem e na pedagogia do amor, que está nabase inclusive do próprio processo de comunicação, já que o amor nos obriga a comunicarmo-nos com o nosso próximo. Sublinhe-se, a propósito desse sentimento, com Murphy (1986, p.297), que o amor cristão (caritas) implica em um conceito mais elaborado que o ethos deAristóteles, já que abrange não apenas o orador, mas também o ouvinte.

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outra lição que aproxima de Cícero o bispo de Hipona, conforme o seu pró-prio testemunho:

Pois a esses três objetivos (instruir, agradar e converter) correspondemtrês tipos de estilo, como parece ter desejado demonstrar aquele mestrede eloqüência romana quando disse de modo análogo: “Ser eloquente époder tratar assuntos menores em estilo simples; assuntos médios emestilo temperado e grandes assuntos em estilo sublime (Cícero, De oratore,29, 10s) (AGOSTINHO, 2002, p. 241).

E propõe a mistura desses estilos na pregação: o orador deve buscarinstruir o ouvinte, para que este alcance o entendimento das verdades cristãs,através do estilo simples; e convertê-lo, tornando-o dócil para a prática doscomportamentos recomendáveis, através do estilo sublime; isto sem deixar,sempre que possível, de proporcionar-lhe o deleite através do estilo temperado,que tem por meta principal o elogio ou a censura. E fornece vários exemplosbíblicos da boa eloquência, já que veiculadora da sabedoria, no que foi peritoSão Paulo, dentre outros, cujos estilos e ornamentos do discurso analisa.

O pregador deve, antes de tudo, ter perfeito conhecimento do assun-to a ser tratado, e adequar o seu discurso ao auditório. E, fundamentalmente,possuir uma vida exemplar, mais convincente que qualquer sermão para o ensi-no das virtudes. Transcrevendo a já citada recomendação do apóstolo Paulo aTimóteo (1, 4-12), referenda Santo Agostinho: “Sê para os fiéis um modelo napalavra, na conduta, na caridade, na fé, na pureza” (AGOSTINHO, 2002, p.272). Enfim, que o pregador transforme o seu modo de viver em “uma espéciede eloquente pregação” (AGOSTINHO, 2002, p. 274).

Já no final da obra, defende os que se utilizam de discursos feitospor outrem, já que “as idéias expressas pelo que compôs o discurso são dapropriedade de Deus. E são também de Deus os que não souberam compor porsi próprios, mas vivem conforme essas idéias” (AGOSTINHO, 2002, p. 276).Insiste, pois, reiteradamente na importância da retidão do pregador. E terminapor, no último capítulo, enfatizar a necessidade da oração antes de tomar apalavra – para ser iluminado por Deus, para pedir-lhe pelos autores do discurso,se alheio, e pelos ouvintes, a fim de que a pregação lhes seja proveitosa. E queno final seja louvado o Senhor pelo sucesso da pregação. Enfim, insiste em queo pregador “deve ser orante, antes que orador” (AGOSTINHO, 2002, p. 238).

Antes de passarmos para outros teóricos da oratória, registre-seque, para o desenvolvimento da prédica medieval, foram muito importantes atradução da Bíblia para o latim, supervisionada por São Jerônimo no séculoIV, e as exegeses que sobre a Vulgata vieram a lume. Bem como o fato de a

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liturgia cristã contemplar a leitura bíblica seguida de comentário em cultosregulares, pelo menos dominicais59.

Quase dois séculos após Santo Agostinho ter estabelecido o modode se ensinar a doutrina através da prédica, surge Cura pastoralis, obra do papaGregório Magno (540-604) de 59160 . Nessa obra, além de ser destacada a im-portância da prédica61 e do pregador, no que concerne à exemplaridade da suavida e à necessidade de fazer-se amado pelo auditório para melhor recepção dasua mensagem, releva-se a adequação do discurso ao auditório, considerado emsuas especificidades e heterogeneidade62. Neste sentido, resume alguns enfoquesmoralizantes que se podem abordar para vários pares de tipos de ouvintes,como, por exemplo: homem / mulher, humilde / arrogante, servo / amo, etc.63

59 Murphy (1986) adverte que, para o estudo do sermão medieval, há que se levar em conta adiferença então existente entre a sua realização mais formal, baseada em normas, e a informal,a que se dava o nome de homilia. Hoje os termos são sinônimos, mas, no medievo, a homiliase caracterizava pela sua informalidade, pela conservação do enfoque personalizado proce-dente dos cultos primitivos, realizados em pequenos recintos, em casas particulares. Confor-me observa Murphy (1986, p. 305), o próprio Santo Agostinho se referia às “conversaçõespopulares que os gregos chamam de homilia” (traduzimos). Antes dele, Orígenes (falecidoem 253) popularizara o termo em grego, e se tornara “famoso por suas interpretações alegó-ricas da Bíblia, seguindo a tradição Alexandrina, derivada, em última instância, da antigatradição judaica” (Murphy, 1986, p. 305; traduzimos). Mais que isso, “sua cuidadosa deter-minação das múltiplas interpretações de um texto – prática que viria a ser um importanteinstrumento de amplificação para os pregadores medievais – consistia em uma escrupulosaanálise oral das Escrituras diante do público. Por este método, em realidade era o texto oorganizador do discurso. Seguindo desse modo a Bíblia, o pregador ficava também isento dequase todos os problemas de memória e disposição, e a homilia podia ser, dessa forma, umaespécie de ‘glosa falada’ ou ‘comentário falado’ do texto bíblico” (MURPHY, 1986, p. 305;traduzimos).60 Essa obra alcançou grande aceitação nos meios clericais até começos do século XIII, torna-da inclusive leitura obrigatória para os bispos pelos concílios de 813 e 836 (MURPHY, 1986,p. 298).61 Considerada fundamental já desde o Velho Testamento, comparando a função do pregadorà dos anjos da escada de Jacó: “Hinc Iacob domino desuper innitente, et uncto deorsumlapide, ascendestes ac descendentes angelos uidet; quia scol. Praedicatores recti non solumsursum sanctum caput ecclesiae, uidelicet dominum, contemplando appetunt, sed dorsumquoque ad membra illius miserando descendunt” (Patrologia Latina – doravante P.L., t. 75,col. 33).62 Este seria um dado novo em relação à retórica antiga, baseada mais na circunstância dodiscurso – judicial, deliberativo, demonstrativo – que na índole dos ouvintes, muito embora jáAristóteles apresentasse as diferenças de caracteres e paixões dos homens.63 Trata-se de uma lista não sistemática, que mistura gênero, posição social, caráter, hábitospessoais, nível de conhecimento, idade, virtudes e vícios.

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Considerando o pecado como uma enfermidade, que deve ser curadacom a ajuda do pregador, é muito mais um ‘tratado sobre patologia moral’(MURPHY, 1986, p. 303) que de retórica, interessando-se sobretudo por te-mas, não pela forma do discurso. Não se reporta aos autores clássicos, antesretira da Bíblia, notadamente de S. Paulo, as bases das suas proposições.

Posteriormente, Santo Isidoro de Sevilha (560-636 d.C), com aobra Etymologiarum, também contribuiria de forma decisiva para o desen-volvimento da prédica. Na esteira dos clássicos, valorizou o papel da gramá-tica para a oratória: “com a gramática nos instruímos na ciência de falar cor-retamente; com a retórica aprendemos de que modo se devem expor os co-nhecimentos adquiridos” (ISIDORO, 2004, p. 353; traduzimos). Da mesmaforma que Paulo, Santo Agostinho e São Gregório – para só citarmos teóricoscristãos –, destacou a concepção de que o orador deve ser, antes de tudo, umhomem reto em sua natureza, em seus costumes, em suas qualidades. Aliás, jáAristóteles, e antes dele Platão, relevava a importância da retidão do orador,colocando-a entre as provas persuasórias do discurso:

Entre as provas fornecidas pelo discurso, distinguem-se três espécies:umas residem no caráter moral do orador [que deve se mostrar digno deconfiança]; outras, nas disposições que se criaram no ouvinte; outras, nopróprio discurso, pelo que ele demonstra ou parece demonstrar(ARISTÓTELES, [s.d.], p. 34).

A diferença é que o sábio estagirita trabalha também com a catego-ria do verossímil, com o que se apresenta como possível, com o que pareceverdadeiro; ao passo que a oratória clerical se fundamenta em dogmas.

Analogamente a Aristóteles, Isidoro reduz a quatro as partes dodiscurso: exórdio, narração, argumentação e conclusão, afastando-se de ou-tros teorizadores do medievo, que, na esteira dos romanos, estabelecem seispartes: exórdio, narração, divisão, confirmação, refutação e conclusão. E sedebruça sobre muitos outros aspectos e técnicas do discurso, que não cabeneste momento desenvolver.

As suas reflexões sobre o saber antigo não se restringem à retórica,abarcando de um modo geral, enciclopédico, as instituições e os seres, a partirdas palavras que os denominam. Etymologiarum constitui “uma espécie deexplicação por procedimentos linguísticos de tudo quanto existe, proporcio-nando um modo de conhecer e compreender melhor o universo” e uma me-lhor e mais aprofundada exegese dos textos antigos, como já observara Diaz

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y Diaz (apud ISIDORO, 2004, p. 163; traduzimos). Esta, a sua principal con-tribuição para o sermonário medievo, para a amplificatio, que lhe é típica eaos discursos epidíticos em geral.

Passando por Rabano Mauro, escritor germânico que em 819 pro-duziu um manual destinado aos sacerdotes, De institutione clericorum, noqual cita e/ou transcreve muito das obras citadas de Santo Agostinho e SãoGregório, chegamos aos séculos XI-XII. Então, o beneditino Guiberto deNogent (1053-1124) elaborou ainda jovem um pequeno tratado sobre comose compõe um sermão, anteposto à sua interpretação do Gênesis, intituladoLiber quo ordine sermo fieri debeat, que concluiria em 1084.

Muito geral no que respeita à prédica, essa obra é sobremaneiraimportante por destacar a polissemia das Escrituras, as quatro maneiras deproceder-lhe à exegese, levando-se em conta 1) a história; 2) a alegoria; 3) atropologia ou edificação moral; 4) a anagoge, que leva à iluminação espiritu-al. Mesmo não sendo o inventor do conceito de interpretação múltipla daBíblia, estabeleceu “uma primeira explicação medieval de como devem serutilizados os ‘quatro sentidos’ da interpretação bíblica para a descoberta damatéria da prédica” (MURPHY, 1986, p. 309; traduzimos):

Há quatro maneiras de interpretar as Escrituras; sobre elas, como se fossemrolos múltiplos, gira cada página sagrada. A primeira é a história, que falados sucessos reais tal como ocorreram; a segunda é a alegoria, em que umacoisa representa outra distinta; a terceira é a tropologia ou edificação mo-ral, que trata da ordenação e disposição da vida de cada um; e a última é aanagoge ou iluminação espiritual, pela qual nós, que estamos em condi-ções de tratar de assuntos celestiais e sublimes, somos levados a um modosuperior de vida (Apud MURPHY, 1986, p. 308; traduzimos).

Dá como exemplo a palavra ‘Jerusalém’, interpretando-lhe osquatro sentidos:

historicamente representa uma determinada cidade; alegoricamente, re-presenta a santa Igreja; tropológica ou moralmente é a alma de todo ho-mem de fé que anela pela visão da paz eterna; e anagogicamente refere-se à vida dos cidadãos celestiais que já contemplam o Deus dos deuses,revelado em toda sua glória em Sião (Apud MURPHY, 1986, p. 308-309; traduzimos).

O monge beneditino, embora reconhecendo a importância de cadaum desses métodos, elege o moral como o que parece ser “o mais adequado e

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prudente nas matérias que concernem às vidas dos homens” (Apud. MURPHY,1986, p. 308-309; traduzimos)64.

Reitera também Guiberto que, sendo a finalidade da prédica daraos ouvintes um ensinamento moral e religioso, a retidão do pregador é atri-buto imprescindível. Nesse sentido, fornece sábios conselhos aos pregadores,relativos às qualidades a serem seguidas e aos defeitos a serem evitados, com-batendo duramente certas faltas correntes, como o orgulho, a tristeza, a inveja(DAVY, 1931, p. 31; traduzimos).

2.3. As artes praedicandiNo final do século XII, o monge cisterciense Alain (Alão) de Lille

(falecido em 1202), autor destacado de tratados de lógica, literatura e teolo-gia, deu a lume, em cerca de 1199, um tratado mais significativo, mais empe-nhado em estabelecer uma retórica da pregação, unindo fontes clássicas eeclesiásticas65: De arte praedicatoria.

A definição e finalidade do sermão são por ele estabelecidas clara-mente: “um ensino público e coletivo dos costumes e da fé, apoiado na razãoe fundamentado na autoridade, tendo em vista a instrução dos homens”66

(apud DAVY, 1931, p. 31; traduzimos). Bem como suas partes (quatro) egêneros (três)67, adaptados dos clássicos.

Na esteira dos antigos, que recomendavam em relação ao exórdioser este o momento do discurso em que o orador deve conseguir a simpatia e aatenção do ouvinte, Alain de Lille estabelece: “O pregador deve captar a bene-volência de seu auditório para com sua própria pessoa através da humildade.Deve também prometer que apenas dirá coisas úteis e pouco numerosas; que

64 Isidoro de Sevilha distingue sobretudo os três primeiros sentidos. Da mesma forma Hugode São Vitor, que compara os sentidos da Escritura Sagrada a um edifício, em que a históriaseria o fundamento, a alegoria os muros, a tropologia a ornamentação.65 Como São Gregório, aproxima os pregadores dos anjos da escada de Jacó: “Vidit scalamJacob a terra usque ad caelum attingentem, per quam ascendebant angeli (...). Septimumgradum sdcrndit, quando in manifesto praedicat quae ex scriptura didicit”. (P. L., t. 210, col.111)66 “Praedicatio est, manifesta et publica instructio morum et fidei, informationi hominumdeserviens, ex rationum semita, et auctoritatum fonte proveniens” (P. L., t. 210, col. 111).67 “Tres species praedicationis: uma quae est in verbo (...) alia est in scripto (...) alia est infacto” (P. L., t. 210, col. 111)

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não desejará tomar a palavra senão que por dedicação a seus ouvintes”68 (apudDAVY, 1931, p. 32; traduzimos).

Em seguida, “deve empreender a exposição do texto proposto, fa-zendo-o servir inteiramente à instrução dos que o escutam” recorrendo aosensinamentos não apenas bíblicos e patrísticos, mas até pagãos – “da mesmaforma que o apóstolo Paulo inscrevia, nas suas epístolas, as palavras dosfilósofos”69 (apud DAVY, 1931, p. 32; traduzimos).

Recomendava, também, que o sermão não fosse exagerado, teatral.Nele não deveria haver “nem bufoneria, nem puerilidades, nem melodias ca-denciadas ou versos bem torneados, que servem mais para encantar aos ouvi-dos que para formar os espíritos”70 (Apud DAVY, 1931, p. 32; traduzimos).

Sobre a arte da prédica é obra preceptiva no prefácio e na primei-ra parte. As seções restantes arrolam temas a serem utilizados na pregação,sobre determinadas virtudes ou vícios, e a matéria adequada a diferentes ou-vintes, considerando os seguintes tipos: advogados ou oratores, doutores,outros prelados, príncipes, soldados, enclausurados, casados, viúvos e vir-gens. Isto porque diversos podem ser os assuntos tratados no sermão, desde quedirecionados para o ensino da religião e da moral, devendo o tema ser interpre-tado de forma adequada às circunstâncias e ao auditório (DAVY, 1931, p. 33).

Murphy sintetiza da seguinte forma essa obra Alain de Lille:

Define a pregação, esclarece a sua relação com as Escrituras, declara queseus temas [fundamentais] são a fé e a moral, distingue-a de outros tiposde discurso e faz breves observações sobre o uso adequado das ‘autori-dades’. Embora sinteticamente – o prefácio e o cap. I juntos não passamde 1.400 palavras latinas – apresenta pela primeira vez, depois de SantoAgostinho, um ponderado intento de estabelecer uma retórica dapredicação (MURPHY, 1986, p. 312; traduzimos).

68 “Debet captare benevolentiam auditorum a propria persona per humilitatem (...) debet etiampromittere se pauca dicturum et utilia; nec se trahi ad hoc nisi amore auditorum, neque etiamse loqui, quod majoris sit scientiae aut prudentiae vel melioris vitae (...)”.69 “(...) debet accedere ad auctoritates propositae expositionem, et totam inflectere ad auditoruminstructionem; nec auctoritatem nimis obscuram vel difficilem proponat, ne auditores eamfastidiant, et ita minus attende audiant... poteri etiam ex occasione interserere dicta gentilium,sicut et Paulus apostolus aliquando in epistolis suis philosophorum auctoritates interserit” (P.L. t. 210, col. 113-114).70 “Non debet habere verba scurrilia, vel puerilia vel rhythmorum melodias et consonantias,metrorum, quae potius fiunt ad aures demulcendas quam ad animum instruendum, quaepraedicatio theatralis est et mimica, et ideo omnifarie contemnanda (...)” (P. L., t. 210, col. 112)

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Mas acrescenta em seu ajuizamento tratar-se de uma obra que sepreocupa muito mais com o pregador, com sua técnica, do que com estabele-cer uma arte geral da prédica, no que coincidiria “perfeitamente com o espíri-to de sua época” (MURPHY, 1986, p. 315). Isto porque omite completamentedados sobre como organizar um sermão (a dispositio), sobre o estilo (aelocutio), e pouco se refere à pronuntiatio e à memoria. Destaca que as Escri-turas fornecem ideias e provas apodíticas, sendo, pois, dupla fonte da inventio.Emprega analogias e outras comparações mais que formas silogísticas – enfim,baseia-se sobretudo na experiência. Mas a técnica da auctoritas, bem comoda divisio (tríptica) e da correspondentia, típicas da prédica posterior, já seapresentam delineadas na metodologia de Alain de Lille.

Na segunda década do século XIII a prédica já se encontrava bemestabelecida e, em meados desse século, plenamente desenvolvida, apresen-tando um “vocabulário técnico completo e uma pauta estabilizada de orga-nização” (MURPHY, 1986, p. 317). Dentre os autores ou teóricos mais conheci-dos, de 1220 a 1250, encontram-se Alexandre de Ashby, Tomás Chabham, Ricardode Thetford, João de la Rochelle, Guilherme de Auvernia e Jacques de Vitry71 .Após 1250, podem ser citados Arnoldo de Pódio, João de Galles, Gualtério deParis. Ao todo, o século XIV contou com mais de trinta teóricos, fora os anôni-mos, e o século XV com não menos de vinte (MURPHY, 1986, p. 317).

A Universidade teria desempenhado importante papel nessa evo-lução, ou pelo menos na fixação e/ou aprimoramento da tradição já existentefora dos seus muros, já que “a estrutura do sermão e os artifícios amplificatóriosdo que se converteu em um gênero independente estavam muito claros jáantes de 1200” (MURPHY, 1986, p. 318; traduzimos). Um exemplo dessatradição é o Liber Sancti Jacobi (1999), do século XII72, que apresenta umaimportantíssima recolha de sermões e/ou homilias.

Quanto ao sermão universitário, a mais antiga coleção de sermõesprocede da Universidade de Paris, ano acadêmico de 1230-1231, que conhece-mos pela edição de M. M. David (1931). Dirigidos a um público erudito, certa-mente obedeceriam ao magistério das artes praedicandi do período, como as de

71 Falecido em 1240, como Santo Isidoro também estranhamente preterido por Murphy, quetambém não nos dá conta dos teorizadores ibéricos (1986).72 A cópia mais completa encontra-se em perfeito estado de conservação na catedral de Santiagode Compostela. Intitula-se Codex Calixtinus, por atribuir-se, falsamente, a sua autoria ao papaCalisto II. No ano jacobeu (em que o dia de São Tiago, 25 de julho, cai num domingo), do anode 1999, foram editados o texto em latim e a sua tradução espanhola, pela Xunta de Galicia.

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Alexandre, prior do convento agostiniano de Ashby (Northamptonshire) de 1205a 1215, do mestre Tomás de Salisbury (ou Chabham) e de Ricardo de Thetford.

De modo praedicandi, da autoria de Alexandre de Ashby, possi-velmente do ano de 1200, começa por relevar, na esteira dos seus antecessores,clássicos ou cristãos, que “em todo escrito e em todo discurso, o homemsábio procura que seus leitores ou ouvintes estejam dóceis, bem dispostos eatentos”73 (apud MURPHY, 1986, p. 319; traduzimos). Esta deve ser a preo-cupação de filósofos, poetas e teóricos das artes. E estipula que “O modo depredicar consiste na divisão em partes do sermão e em sua pronunciação. Háquatro partes num sermão, a saber: prólogo, divisão, prova e conclusão. Todaa matéria do sermão é a proposição e a autoridade”74 . Segue, pois, a Aristótelese Santo Isidoro ao observar quatro partes no discurso, e não cinco ou seiscomo os romanos. Afasta-se de Cícero também ao propor a imediata compro-vação das partes, não vendo as provas como algo independente.

Assim, o prólogo, da mesma forma que o exórdio clássico, se des-tina a captar a atenção e benevolência dos ouvintes; a divisão da matériaestabelece o plano do sermão – propõe no máximo três divisões, para nãocansar o ouvinte comum; as provas – adequadas ao auditório e respaldadasem autoridades, arrazoados, alegorias, exemplos, etc. – devem acompanharcada divisão ou subdivisão, ratificando-as de imediato; a conclusão deve con-ter uma breve recapitulação, a exortação ao medo do castigo e a oração emotiva,incentivando à devoção constante.

Ao pregador atribui uma tríplice tarefa, referendando a tradição:ensinar a doutrina, exortar à boa conduta e dar bom exemplo. No tocante àpronunciação, embora de forma concisa, estabelece que deve ser clara e modes-ta, agradável e adequada ao plano do sermão e à índole do tema. Relaciona-a,pois, ao estilo, preconizando cuidados com a voz e os gestos75. Quanto ao modode pregar, dá como certa a existência de um modo estável, e presumivelmente

73 “In omni scriptura et sermone primum satagit sapientis intencio ut lectores sive auditores[redaat] dociles, benivoles et attentos” (P. L., T. 210, col. 111).74 “Modus vero consistit in partibus sermonis et pronunciacione. Quartorum autem est partessermonis, scilicet prologus, divisio, confirmacio, conclusio. Propositio atque auctoritas quesit sermonis tocius materia” (P. L., T. 210, col. 111).75 “In omnibus hiis observandum est ut pronunciacio non sit tubida non superba nom amaranom inconcinna, sed modesta et humilis, dulcis et scematibus condita et materie conformis.Nec solum oportet vocem, sed etiam vultum materie conformari ut leta ultu leto, tristia tristipronuncientur” (P. L., t. 210, col. 111).

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admitido, de regras a serem seguidas (como as da ars dictaminis, estabelecidasum século antes pelos italianos).

Sublinha Murphy (1986, p. 324) que, das obras que nos chegaram,esta seria a primeira a estabelecer “a atitude fundamental e os princípiosretóricos concretos que só alguns anos depois seriam amplamente conheci-dos como a forma ‘moderna’ da prédica, como a ars praedicandi”.

A Summa de arte praedicandi de Tomás de Salisbury (ouChabham), que foi aluno e professor em Paris, foi escrita provavelmente en-tre 1210 e 1215. É considerado “o tratado mais significativo do século XIIIsobre a matéria”, nem por isso devidamente estudado pelos especialistas doséculo XX (MURPHY, 1986, p. 324).

Explica a nova terminologia (thema, antethema, divisio); com-para as tarefas do pregador com as dos oradores antigos, destacando, comoSanto Agostinho, a necessidade de conhecimentos retóricos pelo pregador;relaciona a prédica às seis partes da oração propostas pelos romanos (exórdio,narração, divisão, confirmação, refutação e peroração) e às cinco da retórica(invenção, disposição, estilo, memória e pronunciação); trata da persuasão,da dissuasão e da memória do público; relaciona retórica, poesia, teologia eprédica – enfim, “reflete os interesses do ‘Renascimento’ de fins do séculoXII: a relação entre as diversas artes, e entre a cultura antiga e a moderna”(MURPHY. 1986, p. 324; traduzimos).

Refletindo sobre a questão da exegese em sua relação com as diver-sas disciplinas, estabelece que “dos quatro tipos de significados, o sentido lite-ral ou histórico corresponde em particular à filosofia e à teologia”; já os outrostrês – moral ou tropológico, alegórico e anagógico – “pertencem ao estudo dassagradas Escrituras”. E justifica: “o sentido literal retira o significado de umacoisa (res), ao passo que os três restantes o derivam de uma locução (vocum)” –como fábulas, argumentos, etc. (MURPHY, 1986, p. 327; traduzimos).

Acentua que a pregação tem por finalidades a evangelização (anún-cio) e a instrução sobre a fé e os costumes, as virtudes e os vícios. E a retóricaé encarecida como fonte de conhecimento para o pregador.

O paradigma do ‘sermão artístico’, por ele proposto, reconhecia osseguintes elementos: 1) prece inicial, evocativa da ajuda divina; 2) protema ouapresentação do tema (antetema); 3) tema ou citação de uma passagem bíblica;4) divisão ou enunciado das partes do tema; 5) desenvolvimento (prosecutio)dos membros mencionados na divisão; 6) conclusão (considerada parte opta-tiva, não necessariamente integrante do sermão) (MURPHY, 1986, p. 332).

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É importante salientar, com Murphy, que, contrariando a tese daorigem universitária da arte da prédica, tanto Alexandre como Tomás “de-monstram que todos os elementos do novo gênero estavam em circulaçãoperto do ano 1200 e pouco depois. Seus testemunhos nos levam a inferirque a teoria básica da ars praedicandi já era conhecida em 1190 e talvez em1180 ou antes” (MURPHY, 1986, p. 333; traduzimos).

Gostaríamos de neste ponto acrescentar um nome geralmente deixa-do de lado nas histórias da prédica medieval: Santo Antônio, cuja vida transcor-reu de 1191 ou 1192 a 123176. No Prólogo geral da antologia de sermões, a cujaredação se dedicou nos últimos anos da sua vida, estabelece uma síntese dateoria da prédica e da exegese bíblica que a sustenta. Então, na esteira dos que,como Santo Agostinho e Guibert de Nogent, dentre outros, se debruçaram so-bre a técnica de interpretação da Bíblia, compara, a partir do Gênesis 2, 11-12,a Sagrada Escritura à terra, “que primeiramente produz a erva, depois a espigae, finalmente, o grão maduro na espiga” (ANTÓNIO, 2000, I, p. 5). Esclarece,a seguir, os vários sentidos – alegórico, topológico e anagógico – que devem serbuscados nas lições bíblicas: “a erva constitui a alegoria, que edifica a fé”; “naespiga, chamada assim de spiculus (ponta), entende-se a moralidade, que infor-ma os costumes e com a sua doçura transpassa e fere o ânimo”; e, no grãomaduro, “figura-se a anagogia, que trata da plenitude do gozo e da felicidade

76 Santo Antônio nasceu em Lisboa, em 1191 ou 1192, de família nobre ou abastada, receben-do no batismo o nome de Fernando. Sua formação deu-se no lisboeta convento de S. Vicentede Fora (a partir de 1209) e posteriormente no de Santa Cruz de Coimbra, onde teria entradoem 1210 ou 1211 e se ordenado entre 1218 e 1220. Ainda em 1220 teria passado à Ordem dosFrades Menores, desejoso de partir para Marrocos em missão evangelizadora. Mas, por mo-tivo de doença, é obrigado a retornar, sendo a sua embarcação levada por ventos contrários àSicília, onde aporta em 1221. Ainda neste ano participaria do capítulo geral da Ordem emAssis, presidido pelo próprio São Francisco, após o qual é enviado como sacerdote para oeremitério de Monte Paulo. Após uma vida “de rigorosa ascese e contemplação” (SOBRAL,2000, p. 322) nesse ermitério na România, em companhia de Frei Graciano, participa, nacidade de Forli, em 24 de setembro de 1222, de uma cerimônia de ordenação de dominicanose franciscanos. É quando se revela publicamente a sua sabedoria ímpar e o dom da oratóriaque o distinguiria para sempre, ao ser instado a pregar diante da recusa dos demais.Em Rimini contra os cátaros, no sul da França e de novo na Itália predicou de forma admirá-vel, mas também exerceu outras funções, administrativas e pedagógicas, como a de primeiroleitor franciscano de Teologia, de 1223 a 1224, em Bolonha, ensinando também em Montpelliere Toulouse ao redor de 1225; foi mestre de Teologia na escola franciscana de Pádua, onde,após ser recebido pelo Papa em Roma no ano de 1230, dedica-se à redação dos sermões e àpregação. Morre em 1231, a caminho de Pádua onde desejou finar-se quando se encontravano ermitério de Camposampiero. Para Pádua o seu corpo foi levado, após muitas disputas. Osmuitos milagres que lhe atribuíram resultaram no processo que levou à sua rápida canonização,em 30 de maio de 1232.

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angélica” (ANTÓNIO, 2000, I, p. 5). Não se atém ao sentido histórico ou lite-ral, talvez por ser o mais óbvio; e, como observa Rema (2000, I, LIV), da mes-ma forma que Guibert de Nogent (PL 156, 25-26), “privilegia a regra damoralidade” sobre as demais.

Comparando os seus sermões a uma quadriga de quatro rodas, sen-do as rodas a matéria que os sustenta, esclarece serem estas “os Evangelhos dosdomingos, factos históricos do Velho Testamento, tais quais se lêem na Igreja,os intróitos e as Epístolas da missa dominical” (ANTÓNIO, 2000, I, p. 7-8). Oseu labor, declara-o com humildade, consistiu em coligir estas matérias e con-cordá-las entre si, “segundo o que me concedeu a graça divina e consentiu afrágil veia da minha ciência pequenina e pobrezinha” (ANTÓNIO, 2000, I, p.8). Portanto, não nega a ciência, embora a reconheça modesta.

A estrutura do sermão que apresenta é a mesma consagrada pelasartes praedicandi em geral, compondo-se de tema (geralmente retirado dos Evan-gelhos); protema (em princípio uma passagem concordante do Velho Testamen-to); divisão ou distinção do tema (em cláusulas); exposição do tema (comportan-do cinco fases ou processos: interpretação dos vários sentidos do texto bíblico,alegação de outras sentenças bíblicas, citação de lições da patrística, definições eetimologias de nomes e descrição da natureza das coisas e animais77 , e exem-plos); e, por fim, o epílogo (com a súplica, o louvor, o agradecimento).

Alega Santo Antônio que “para que a vastidão do assunto e a vari-edade das concordâncias não gerassem a confusão e o esquecimento no espí-rito do leitor” – portanto, para melhor ser entendido e assimilado, dividiu “osevangelhos em cláusulas, conforme Deus nos inspirou”; estabeleceu a con-cordância “entre as partes do facto histórico e as da Epístola”; utilizando aamplificatio, expôs “algumas vezes mais difusamente os Evangelhos e osfactos históricos”; ou, obediente à abreviatio, foi “mais breve e resumido noIntróito e na Epístola, a fim de que o excesso das palavras não causasse estra-go e fastio”. E conclui pela dificuldade da tarefa ser realizada segundo as leisretóricas da brevitas e da utilitas, revalidando o tópico da humilitas: “é tarefasumamente difícil recolher matéria muito vasta em discurso breve e útil”(ANTÓNIO, 2000, I, p. 8).

Portanto, Santo Antônio conheceu e assimilou ou interagiu com aarte retórica da prédica, condenando, no entanto, o rebuscamento da retóricapreferida por leitores ou ouvintes coevos que, degradados a tal ponto, “se não

77 Segundo REMA (2000, p. LV), retiradas “das Glossas, de Santo Isidoro de Sevilha, doléxico de Pápias, de Solino, de Aristóteles, etc.”.

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encontram e não ouvem palavras elegantes, rebuscadas e altissonantes denovidade, enfastiam-se da leitura e recusam-se a ouvir” (ANTÓNIO, 2000, I,p. 8). Todavia, também a estes buscou satisfazer, através de recursos como oPrólogo relacionado ao Evangelho a ser glosado no sermão e a inserção deexplanação topológica sobre as coisas e animais, bem como sobre a etimologiadas palavras; e, ainda, para a inventio a ser observada pelos pregadores, pro-cedeu ao arrolamento de sentenças da Bíblia que servissem de mote aos ser-mões e à indicação dos topos indicados à especificidade de cada discurso:

para que a palavra de Deus, com dano das suas almas, não lhes mereces-se desprezo e enfado, no princípio de cada Evangelho pusemos um Pró-logo correspondente ao mesmo Evangelho, e inserimos no mesmo traba-lho uma exposição moral sobre a natureza de coisas e de animais eetimologias de vocábulos. Também os inícios de todas as sentençasescriturísticas citadas nesta obra, a partir das quais pessoa competentepode tratar o tema do sermão, os compilamos numa tábua. E no princípiodo livro anotamos os lugares em que se podem encontrar e aquilo queconvém a cada discurso (ANTÓNIO, 2000, I, p. 8-9).

Mas os sermões que pronunciou e através dos quais conquistou e enle-vou multidões no norte da Itália e no sul da França não corresponderiam neces-sariamente às lições que nos deixou. Cumpre lembrar, no entanto, que, segundoajuízam alguns especialistas78 , como em nota observa o editor dos sermõesantonianos, Henrique Pinto Rema (2000, I, p. 8), “a opinião generalizada, apoiadapela Legenda Assidua, é a de que estes sermões se destinavam aos futurosprofessores e pregadores da nascente Ordem dos Frades Menores”. E concordacom os que veem neles “mais cultura que eloqüência”, destacando inclusive aimportância atribuída por Santo Antônio a elementos gramaticais, como asetimologias, na esteira de São Jerônimo, Santo Agostinho, Marciano Capella e,sobretudo, Santo Isidoro de Sevilha (Rema, 2000, p. 9; nota). Enfim, fez juz aotítulo de Doutor Evangélico, consagrado por Pio XII na bula Exulta Lusitaniafelix, de 16 de janeiro de 1946. Nela, além de exaltar “o brilho da sua santida-de”, e “a fama dos seus milagres”, destacou “o esplendor da sua doutrina”,reconhecendo nele “o exegeta peritíssimo na interpretação da Sagrada Escritura eo teólogo exímio na definição das verdades dogmáticas, bem como o insignedoutor e mestre em tratar as questões de ascética e mística” (REMA, 2000, p.CXXXIX). E, acrescentamos, o percuciente teorizador da prédica, raramentelembrado como tal.

78 Cf. a propósito REMA, 2000, I, p. LVI.

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Voltando à nossa história sucinta da prédica, dentre os tratados dedi-cados à técnica da amplificação, destacou-se o de Ricardo de Thetford, Arsdilatandi sermones. Escrito certamente antes de 1268, indica oito modos con-cretos da amplificação que segue à divisão e à subdivisão do tema, a saber: 1)utilizar uma locução no lugar de um nome, ao definir, descrever, interpretar,etc.; 2) dividir; 3) raciocinar, valendo-se do silogismo, da indução, do exemploe do entimema; 4) recorrer a autoridades; 5) basear-se nas raízes do conhecido;6) propor metáforas, mostrando serem adequadas à instrução; 7) expor o temade diversos modos, a saber, nos sentidos literal, alegórico, topológico e anagógico;8) assinalar a causa e o efeito (MURPHY, 1986, p. 334).

Citem-se, ainda, dentre outras, a Ars conficiendi sermones, dofranciscano João de la Rochelle (falecido em 1245), e De arte praedicandi,de Guilherme de Auvernia (bispo de Paris em 1228-1249). E também, dasegunda metade do século XIII, a obra Forma praedicandi, atribuída aofranciscano João de Gales, aluno em Oxford e mestre em Paris (cerca de1270), falecido em 1302. Esse tratado confirma que o novo gênero está plena-mente assimilado, apresentando uma tipologia de sermões e definindo aprédica, ao levar em conta o formato aceito (tema, divisão, amplificação...),sublinhando que as provas de cada subdivisão devem ser retiradas das autori-dades bíblicas; omite a conclusão.

O tratado mais completo da nova retórica da predicação seria For-ma praedicandi, de Roberto de Basevorn, escrito em 1322. Nele reúne oselementos encontrados no desenvolvimento da nova arte de pregar.

No prólogo, exalta a necessidade de os pregadores conheceremo sistema e método da prédica artística. No primeiro dos cinquenta capí-tulos, define a prédica: persuadir um público em um moderado espaço detempo, para que se comporte dignamente (MURPHY, 1986, p. 351). De-termina, a seguir, aqueles que podem pregar: o Papa, os bispos, os cardeaise os pregadores de ofício.

Ao tratar da questão do método, destaca o papel da imitação; osmétodos francês e inglês como os de uso mais geral; o método de Jesus Cris-to, que lançava mão de promessas, ameaças, exemplos, razões – de formavelada ou clara, segundo o auditório; o de Paulo, que unia a razão à autorida-de do Evangelho, da Lei, dos profetas; o de São Gregório, que recorria afiguras bíblicas, autoridades, exemplos, significados dos nomes, etc.; o estilopróprio de São Bernardo, que lançava mão de toda ‘cor’ retórica.

Arrola os elementos retóricos presentes nos sermões mais traba-lhados, mais elegantes: invenção ou descoberta do tema; conquista do públi-

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co; prece; introdução; divisão, declaração das partes; prova das partes; ampli-ficação; digressão ou “transição”; correspondência; acordo de correspondên-cia; desenvolvimento em circuito; convolução; unificação; conclusão; colo-ração; modulação da voz; gestos apropriados; humor – que deve ser usadocom adequação e parcimônia; alusão; convicção; ponderação sobre a matéria(MURPHY, 1986, p. 354).

Quanto ao tema, estipula que uma boa escolha requer: conveniênciaà celebração; clareza; respaldo em texto bíblico fidedigno, não alterado nemcorrompido; limitação – ao máximo três declarações ou uma só que possa seconverter em três; concordâncias dessas três idéias (MURPHY, 1986, p. 355).

No que concerne à conquista do público para escutar e reter a liçãoimpetrada, recomenda que se apresente algo sutil e interessante, prodigioso;alguma causa desconhecida; algum exemplo assustador; exemplo ou anedotasobre a intenção do demônio de impedir que se escute a palavra de Deus; apalavra de Deus como um grande signo de predestinação ao Bem; a intençãodo pregador: converter, não pedir esmola (MURPHY, 1986, p. 355).

Referenda a posição de Santo Agostinho (2002, p. 238) de queantes de pregador há que se buscar ser homem de oração, etc.; e estabelece osornamentos do tema79. Termina por lembrar a existência de outros dois métodos:o primeiro (parisiense-gregoriano), adaptado ao idioma vulgar dos incultos,que seleciona três materiais adequados aos ouvintes, sendo o tema desenvol-vido em três partes – através de prova tomada da natureza ou das artes, daEscritura, ou do relato de autoridade; o segundo, dirigido exclusivamente a

79 Introdução, resumo e localização (livro e capítulo de onde foi retirado) – antetema; repeti-ção do tema; introdução (autoridade – algo original, um filósofo, um poeta, alguém de pres-tígio – e/ou argumento – por indução, por um exemplo, por um silogismo, por um entimema).Os exemplos podem ser da natureza, das artes, da história; os entimemas podem ser irrefutáveis(definidos por Aristóteles) ou prováveis (definidos por Boécio). A divisão se apresenta comoo quinto ornamento do tema, podendo ser feita de acordo com o fato ou com a ordem deconstrução, ou com a ordem de apresentação do sermão. Em seguida, a declaração, que podemostrar as partes de um todo virtual, as partes de um todo universal, ou outra maneira –principalmente através de substantivos.Apresenta também as provas e a amplificação com suas oito espécies (definição ou seu con-trário, de um nome; divisão; raciocínio ou argumentação – resolução de contrários, entimemaque exige do ouvinte uma conclusão, exemplos; concordâncias – de autoridades; exposição –coisas coincidentes na essência, mas divergentes nos acidentes; invenção de metáforas; expo-sição do tema – histórica, alegórica, moral, anagógica; causas e efeitos; digressão ou transi-ção; correspondência ou concordância entre as partes; desenvolvimento em circuito, conside-rado mais decorativo que útil; convolução; unificação; conclusão (prece), recomendando-seque “quanto mais o fim se pareça com o princípio, tanto mais elegante será a culminação”(MURPHY, 1986, p. 360; traduzimos).

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um público mais erudito ou inteligente, abstém-se de citação de autoridades, dis-simulando o artifício. E conclui com os métodos extrínsecos ao sermão: colora-ção (Cícero); modulação da voz (Santo Agostinho); ademanes apropriados (Hugode São Vitor); humor oportuno (Cícero), para sobretudo espantar o sono dos ou-vintes; alusão não literal às Escrituras; impressão de firmeza através de alusõesconstantes; reflexão sobre a matéria (quem, a quem, de que e quando se devefalar). E termina dizendo que o capítulo final é de silêncio.

Depois de Baservorn, o dominicano Tomás de Gales foi consideradoo tratadista mais importante do século XIV. Foi mestre de teologia em Oxford nadécada de quarenta e autor de De modo componendi sermones cum documentis.Na esteira da tradição já firmada, prescreve a seguinte fórmula: “a predicaçãoconsiste, após a invocação da ajuda divina, na exposição de um tema escolhido esua divisão em várias partes convenientemente concordantes entre si, com a fina-lidade de dar um ensinamento religioso, ao mesmo tempo que intelectivo, capazde inflamar de caridade os corações” (Apud DAVY, 1931, p. 31; traduzimos)80.Discorre, nos nove capítulos da obra, sobre os quatro elementos básicos do ser-mão: identificação, apresentação, divisão e ampliação do tema; preconiza o en-saio da pronuntiatio (voz e gestos), por considerar o modo de dizer tão importantequanto o que se diz. De forma inteligente e em estilo próprio sintetiza a doutrinacorrente; assim, no capítulo final, enumera e exemplifica quinze modos de relacio-nar o tema e as autoridades, podendo o nexo ser intrínseco, mediato, por exposi-ção, por definição, por descrição, por causalidade, por especificação, por modi-ficação, por confirmação, por totalidade ou parcialidade, por substituição, porcircunstância (entre autoridades), por contrariedade, por exceção, ou de formaextrínseca (MURPHY, 1986, p. 341).

João de Chalons foi outro dos autores destacados, que subdividiu,na tentativa de torná-lo mais lógico, o quadro temático usual:

A) Tema

1. Declaração do tema.

2. Admissão do postulado do tema.

3. Assunção do tema, afirmando sua aplicação.

80 Citado por E. Gilson em “Michel Menot et la technique du sermon medieval”, Révued’histoire franciscaine, t. II (1925), p. 304: “Viso que sunt predicationis genera, restat viderequid sit predicatiodillinitive, de qua intendimus quantum ad primum gepus. Potest ergo sicdescribi: predicatio est, invocato Dei auxilio, propositi thematis dividendo et concordando,congrue data et devota expositio, ad intellectus catholicam illustrationem et affectus caritativaminflammationem”.

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4. Formação do termo principal da proposição.

5. Prova do termo principal por probabilidade.

6. Amplificação do termo principal [por correspondência].

7. Subscrição do termo menor.

8. Amplificação ou prolongação da matéria.

9. Digressão sobre moral.

10. Proposição sobre o postulado, se procedente.

11. Autoridade bíblica (introduzida como concordância oucircunlocução).

12. Conclusão do tema.

B) Divisão

13. Divisão do tema quando necessário para o desenvolvimento(amplificação).

C) Conclusão

14. Apresentação conveniente do todo como uma conclusão (MURPHY,1986, p. 343; traduzimos).

Conclui Murphy que “como quase todos os escritores medievaisda matéria, João termina gastando a maior parte de seu tempo nos meios deamplificação” (MURPHY, 1986, p. 344; traduzimos).

Já o anônimo Modus sermocinandi do século XIV, muito menospretensioso, restringe a três partes a estrutura do sermão: assunção do tema,divisão do tema e desenvolvimento ou exposição das divisões. E o italianoTomás da Todi, também do século XIV (final), notabilizou-se particular-mente pela distinção sistemática entre ‘prova’ (baseada em autoridade, fi-guras e simbolismo metafórico, razões e causas, exemplos e testemunho dahistória) e ‘amplificação’ (acumulação de autoridades, subdivisões detalhadas,análises de figuras, análises para elogiar ou maldizer, refutação, exemplos),bem como pelo uso do ritmo na prédica (“para o prazer auditivo do público”).

Não termina por aí o rol dos tratadistas. Por ora, interessa-noslembrar, com Murphy (1986, p. 349-350; traduzimos), que o sistema retóricode que dispunha o pregador medieval tinha cinco elementos:

1) As próprias escrituras (com suas glosas), que forneciam tanto aproposição como sua prova apodítica.

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2) Coleções de exempla e outros dados sobre o homem, os animais e omundo.3) Concordâncias, listas alfabéticas, quadros de tópicos e outras ajudasbibliográficas para buscar materiais.4) Coleções de sermões, com esquemas de como deviam ser compostose sermões já feitos, para determinadas circunstâncias.5) A própria ars, que correspondia ao tipo de tratados retóricos preceptivosescritos por Aristóteles ou Cícero.

O pregador medieval possuía, pois, “amplos meios para cumprir atarefa ordenada” (MURPHY, 1986, p. 350).

Para concluir essa panorâmica sobre a história da teorização sobrea prédica, acrescentaríamos um autor que, como Santo Antônio e tantos ou-tros ibéricos, dificilmente aparece nos estudos publicados sobre o assunto:Frei Alfonso d’Alprãho.

Albert G. Hauf, um dos poucos que se aprofundaram na teoria daprédica na Península Ibérica, publicou em 1979 a Ars praedicandi dofranciscano Fr. Alfonso d’Alprãho, precedida de estudo introdutório, no qualdestaca ser esta “a mais interessante das obras deste gênero até agora desco-bertas na Península Ibérica” (HAUF, 1979, p. 234).

Frei Alfonso, formado em Teologia na Universidade de Bolonha,era português de origem e franciscano da Provintia Sancti Jacobi. Alcançougrande prestígio no reinado de D. João I, que o escolheu para confessor e orecomendou à Santa Sé para o cargo de Inquisidor em Portugal, cargo quetambém fora ocupado por Frei Rodrigo de Sintra – de quem Fernão Lopesreproduziria um sermão em sua crônica, como veremos –, mas sem que sedocumentem punições impetradas por nenhum dos dois. Sua Ars praedicandi,estruturada em prólogo e ‘corpo’ ou processo (desenvolvimento), apresentano breve prólogo uma definição das três partes básicas do sermão: introdu-ção, divisão e distinção (também denominada dilatação ou prosecução). Es-sas partes serão desenvolvidas nos três capítulos em que se divide a obra,sendo o primeiro, dedicado à introdução do sermão, muitíssimo mais extensoque os demais, até por já conter elementos concernentes aos mesmos, isto é, àdivisão e à distinção.

Apresenta como elementos fundamentais da introdução o tema,suas condições, modos e tipos. Na definição do tema encontra-se implícita afinalidade do sermão, de ensinar e louvar a Deus, combatendo os vícios eencarecendo as virtudes. Como condições, estabelece, referendando a tradi-ção, que o tema deve ser apanhado da Bíblia, ser susceptível de divisão e se

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relacionar com a matéria do sermão. Dentre os modos de desenvolvimento,propõe os seguintes recursos: o silogismo – o mais pormenorizado eexemplificado pelo autor –, a consequência, a indução, o exemplo, a funda-mentação na patrística e/ou na autoridade dos filósofos, a divisão, a distinção,a figura, a interrogação.

Ao apresentar pormenorizadamente os modos da introdução, adi-anta técnicas da divisão e da distinção, fundamentais para o desenvolvimentodo sermão. Por isso, evitando repetições, não as retoma nos capítulos seguin-tes. Os exemplos minuciosos de que lança mão para tornar clara a lição cons-tituem o principal mérito dessa arte, como bem conclui seu editor (HAUF,1979, p. 261).

Enfim, a maneira como enaltece o valor do silogismo para a ar-gumentação, bem como o recurso à autoridade dos filósofos, etc., e, sobre-tudo, a importância atribuída ao exórdio na própria elaboração do tratadosão marcas evidentes da dívida para com os clássicos. A prédica medievalse apresenta, portanto, como herdeira incontestável das heranças greco-ro-mana e judaico-cristã.

2.4. Recapitulação

Vimos que, da união dos preceitos retóricos aristotélico-ciceronianos com a tradição da prédica e da exegese judaico-cristã, com ocontributo da patrística, firma-se nos fins do século XII – inícios do XIII anova arte da oratória, materializada nos sermões.

A dispositio que preceitua para os sermões compõe-se basicamen-te de um protema ou antetema, seguido ou constituído de uma oração; emseguida, apresenta-se a declaração do tema (citação bíblica) e seu desenvolvi-mento, com divisões, subdivisões e amplificações através de diversos modos(inclusive de razões contrárias – herança da dialética aristotélica –, digres-sões, etc.); podendo conter ou não uma conclusão.

O sermão, endereçado mais à sensibilidade que à razão, objetivavafundamentalmente comover os corações dos ouvintes, levando-os à contrição ea uma conduta edificante, para o que concorreria o exemplo de vida do orador.

Além do imprescindível respaldo bíblico para a argumentação, osexemplos (historietas e fábulas) eram geralmente recomendáveis, desde queadequados, podendo servir de provas às teorias apresentadas no decorrer daexposição. Não apenas pelo que pudessem conter de ensinamento moral oureligioso, mas também para “estimular o fervor dos fiéis, prender-lhes a atenção,e até mesmo combater-lhes a sonolência” (DAVY, 1931, p. 35; traduzimos).

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Os tratados estabeleceram regras bastante rígidas para a prédica.Para esta, também concorreram as recolhas de modelos de sermões apropria-dos a determinadas circunstâncias e auditórios, bem como de exemplos ade-quados à seriedade do culto, etc. Os pregadores escolhiam e adaptavam essasfórmulas ao interesse do momento, às ideias em voga, fornecendo, dessa forma,uma representação da vida e dos costumes da sociedade sua contemporânea.

O sermão teria por principais objetivos, tal como propostos nasartes praedicandi, instruir e comover. Instruir por meio da exegese das Escri-turas, principalmente; e comover para o exercício de uma vida edificante comvistas à recompensa celestial. Por aconselhar a utilidade da prática das virtu-des e a nocividade dos vícios, a prédica se apresenta como um discurso dogênero deliberativo, muito embora mesclado ao epidítico no elogio do santo eda santidade; e mesmo ao judicial, uma vez que justa se mostra a recompensadivina através das provas apresentadas para o seu alcance.

Com o surgimento das ordens mendicantes, certas particularida-des do sermão seriam precisadas ou destacadas. Por exemplo, os franciscanosinsistiam em que “as palavras do sermão devem ser discretas, puras e bre-ves”; para com maior eficácia “pregar sobre as virtudes e os vícios, a expia-ção e a recompensa gloriosa”, etc. (DAVY, 1931, p. 33; traduzimos). E vimoscomo Santo Antônio, ele próprio, foi não apenas o mais famoso orador dosprimórdios da Ordem dos Frades Menores, mas também um dos mais compe-tentes teorizadores da pregação.

Matéria ensinada na Faculdade de Teologia, aí se exercitava umatríplice função: ler (legere, lectio), discutir (disputare) e pregar (praedicare)(DAVY, 1931, p. 23). M. M. Davy observa, em seu cuidadoso estudo e antolo-gia de sermões universitários parisienses do século XIII, que estes, dirigidos aum auditório formado por clérigos e, por isso, compostos em latim, se apresen-tam “carregados de divisões e subdivisões, plenos de textos escriturais epatrísticos, semeados de alegorias e de exemplos simbólicos” (DAVY, 1931, p.75; traduzimos). Neles eram seguidos os preceitos de Guibert de Nogent, deAllain de Lille, de Jacques de Vitry: “Quer se trate de recorrer à Bíblia, aos paisda Igreja, às autoridades profanas, ou ainda de interpretar palavras gregas ehebreias, recontar anedotas ou considerar as propriedades dos animais e das pe-dras preciosas, a técnica é sempre a mesma” (DAVY, 1931, p. 75; traduzimos).Evidentemente que essa técnica poderia variar de acordo com o gosto pessoaldos pregadores e as circunstâncias do tempo e do lugar em que pregam, avisaDavy (1931, p. 76), ressaltando na conclusão que a prédica universitária do

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período estudado caracteriza-se por um caráter eminentemente simbólico(DAVID, 1931, p. 75).

Mas os sermões obviamente, já o vimos, não se limitavam às uni-versidades, “tinham lugar também nas igrejas” e frequentemente, “entre oscultores de São Tiago” (DAVY, 1931, p. 28; traduzimos). Assim é que nume-rosos sermões destinados aos ofícios em torno desse Apóstolo, cujo sepulcroacredita-se estar na basílica de Santiago de Compostela, são documentadosno Livro I do Liber Sancti Jacobi compostelano, o precioso Códice Calistinodo século XII, ao qual já nos referimos.

Para terminar, acentuaríamos que a reflexão sobre a prédica medi-eval é importante por permitir um maior detalhamento desse subgênero lite-rário, em que são tão abundantes as figuras de retórica e os símbolos. Princi-palmente através da sua feição topológica, possibilita o conhecimento doscostumes condenáveis e reprováveis de cada época – e, portanto, do seu quo-tidiano e dos seus valores.

Unida ou veiculadora dos preceitos da retórica clássica, penetrounos vários gêneros da literatura medieval – por exemplo, nas crônicas cleri-cais e laicas, como as de Fernão Lopes. Impossível fazer uma boa exegesedos seus textos (mas não só) sem levar em conta a tradição parenética medieval.Para não falar da importância que a teorização sobre a retórica e a prédicaalcançou na corte dos reis que o prestigiaram – de D. João I, de D. Duarte e doRegente D. Pedro –, onde traduções de Cícero eram feitas ou incentivadas eem que um teórico da prédica, Frei Alfonso d’Alprãho, foi tão próximo dofundador da Dinastia de Avis, já que seu confessor.

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A RETÓRICA DA

CRÔNICA DE D. JOÃO I

Parte primeira

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Retrato do fundador da Dinastia de Avis, D. João I (1357-1433), pintado por autor anônimono século XV, pertença do Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. Fotografia de FranciscoMatias, 1990, cedida pela Divisão de Documentação Fotográfica – Instituto dos Museus eda Conservação, I.P.

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1. Da obraAntes de adrentarmos pelo campo específico de estudo – tal seja,

as técnicas retóricas da crônica escolhida – achamos conveniente proceder aocomentário de alguns aspectos da obra relativos à sua constituição e valoração.Para tanto, levamos em conta a contribuição de alguns críticos, cujos estudosse inscrevem nas margens dos textos de Fernão Lopes, no intuito de iluminar-lhes a compreensão.

1.1. Considerações preliminares

Começamos por lembrar que a obra de Fernão Lopes, pelo menosa de sua autoria incontestável, é formada pela Crônica de D. Pedro, pelaCrônica de D. Fernando e pela Crônica del rei D. João I da boa memória,Parte primeira e Parte segunda1 . Essas crônicas se distinguem das dos demaiscronistas medievais em muitos aspectos. Um deles é o fato de não se basea-rem fundamentalmente na ordenação cronológica dos acontecimentos masnos imperativos da lógica, do que resulta um superior plano ordenativo.

Os critérios de causa e efeito norteiam, pois, a sua narrativa, que seestabelece a partir de núcleos antropológicos e topológicos, evidentementeque sem a exclusão da cronologia dos acontecimentos tornada subordinadaàqueles, e não subordinante, como então acontecia. A produção do primeirocronista-mor de Portugal afasta-se, assim, da característica por excelência dogênero em suas origens, indicada de resto pela etimologia do termo ‘crônica’,procedente do grego khronikós (de khrónos, tempo) através do latim chronica(MOISÉS, 2004, p. 110).

1 As duas primeiras já se apresentam em cuidadosas edições críticas, publicadas, respectiva-mente, a primeira em Roma, 1966, e republicada em Lisboa, 2007; e a segunda em Lisboa, em1975 e em 2004. Foram elaboradas pelo estudioso italiano Guiliano Macchi, também autor debibliografia sobre o cronista, de 1964. Quanto aos dois volumes da Crônica de D. João I,podem ser encontrados em edições dignas de fé, embora não críticas. A primeira parte, prepa-rada por Anselmo Braamcamp Freire, constitui facsímile da edição do Arquivo HistóricoPortuguês; foi publicada em 1915 e republicada em 1973 e 1977, na capital portuguesa. Asegunda parte, foi “copiada fielmente dos melhores manuscritos” por William J. Entwistle,com primeira edição de 1968 e segunda de 1977, em Lisboa. Todas essas edições lisboetasforam publicadas pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda.Diga-se de passagem que tais edições se estabeleceram a partir de cópias apógrafas, em suamaioria do século XVI, uma vez que os manuscritos do autor hoje existentes se restrigem aoTestamento do Infante D. Fernando e seu respectivo Instrumento de Aprovação. Os demaisdocumentos autógrafos, todos ligados à função de notário exercida pelo cronista, teriam sidofeitos por escrivães a mando de Fernão Lopes e apenas assinados por ele, bem como anota-dos, consertados ou rasurados por vezes.

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Outro aspecto relevante na escrita de Fernão Lopes é a atitudecrítica que assume diante dos fatos: embora confessando que sua obra “hecompillada” (LOPES, 1977, p. 298) – o que não era considerado uma falhana época, sendo o plágio então normal e corrente entre os escritores –, não serestringiu à cópia pura e simples das suas fontes. Antes, procedeu-lhes aoconfronto, seleção, discussão e síntese dos dados, o que se faz notar já a partirdos títulos por ele atribuídos aos capítulos.

Privilegiando as fontes documentais, apresenta uma concepçãoampla do processo historiográfico, sobretudo na importância fundamentalque concede ao elemento coletivo (CIDADE, 1968, p. 59). Esta, uma dassuas marcas mais características, não se restringindo a sua obra à apologia denobres enquanto heróis individuais. Principalmente na parte primeira daCrônica del Rei D. João I alcançam destaque os movimentos das massas, oherói coletivo – particularmente o povo de Lisboa. Por esse motivo, tem sidoerguida à altura de uma epopeia por muitos críticos, como Aubrey Bell (1931,p. 39) e António José Saraiva (1965, p. 70), suplantando as outras produçõesdo autor pelo assunto mesmo de que se ocupa – tal seja, a revolução emi-nentemente popular de 1383-1385, em Portugal.

1.2. Valoração

As crônicas de Fernão Lopes apresentam uma forte interligação,já suficientemente demonstrada por muitos dos seus críticos, como por exemploAubrey F.G. Bel (1931, p. 40), para quem não são “obras diferentes”, mas“capítulos duma história nacional, cujo auge é atingido na primeira parte daCrônica de D. João”. De tal ajuizamento já se percebe a importância da mes-ma, que serve de corpus às nossas reflexões.

Considerada pela crítica como a mais artisticamente acabada obrade Fernão Lopes, já desde o Prólogo se distancia das demais, não o utilizan-do, como de costume, para a apresentação das qualidades do monarca titu-lar2 . Antes, serve-se dele para a propagação do seu trabalho de escritor, queafirma ser honesto e imparcial, objetivando “scprever verdade”, ainda querude, e apesar dos muitos percalços enfrentados. A isto retornaremos adiante.

Nos outros Prólogos assume atitudes diversas: na Crônica de D.Pedro, o elogio do rei acontece através do elogio da virtude que essencial-

2 E disto tem perfeita consciência, pois na segunda parte da Crônica do fundador da Dinastiade Avis diz que “em começo de cada huum reynado costumamos de poer parte das bomdadesde cada huum rey” (LOPES, 1977b, p. 1).

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mente o caracterizaria – a justiça; na Crônica de D. Fernando, o panegíricodo rei se estabelece – principalmente no que concerne à sua formosura evirtudes cavaleirescas, sobretudo de caçador –, mas prejudicado por indica-ções de alguns aspectos negativos da sua atuação, ligados à infeliz políticaexterna desenvolvida por esse monarca. E na Parte Segunda da Crônica deD. João I, é tecida a apologia do fundador da Dinastia de Avis, não sem antesquestionar a distância que vai do fato à sua reprodução e lançando mão dotópico da humildade – “nom somos abastante pera compridamente louuar edizer as bomdades deste poderoso Rey” (LOPES, 1977 b, p. 1).

Portanto, a maior preocupação literária, presente desde o Prólogoda crônica de que nos ocupamos, atribui-lhe um caráter autorreflexivo, aomesmo tempo que a subordina ao senso de justiça, por desejar-se veículo daverdade. O que não lhe invalida o direcionamento político, se considerada emrelação à época em que foi escrita: tinha então o cronista por mecenas oRegente D. Pedro, que, em meio a uma grave crise, liderava forças, popularesem sua maioria, contra facções fidalgas.

Se Fernão Lopes foi ou não porta-voz de D. Pedro, é uma questãomuito debatida pelos especialistas. Por exemplo, Teresa Amado (1997, p. 54)discorda dos que consideram ter sido a Crônica de D. João I “escrita emhomenagem a D. Pedro ou mesmo com a sua orientação, e que uma das fina-lidades do cronista foi denegrir a imagem de D. João”. Quanto ao seuindubitável objetivo pedagógico e regenerador, observa que D. Pedro nãopersonificava os ideais almejados. De nossa parte, interessa-nos particular-mente o destaque dado pelo cronista a acontecimentos coletivos e ao trabalhodo escritor em reproduzi-los, mais do que a individualidades – salvo rarasexceções, como Nun’Álvares Pereira.

Não parece inoportuno lembrar que a Crônica é ainda consideradacomo a de maior interesse histórico por muitos especialistas, como, para sócitarmos alguns nomes, Antônio Sérgio (1945), Marcelo Caetano (1951),Antônio Borges Coelho (1965), Álvaro Cunhal (1975), Joel Serrão (1978).Antonio Borges Coelho (1965, p. 15) tenta, inclusive, justificar certas omis-sões e falhas do cronista (como, por exemplo, as relacionadas à descrição dabatalha de Aljubarrota, na segunda parte da Crônica), que pecam contra aimparcialidade pretendida pelo autor.

Já Antônio H. de Oliveira Marques (1971, p. 806-808) deles dis-corda, e coloca em xeque o valor histórico da obra, ao considerar o cronistaum autor parcial, “apaniguado dos príncipes de Avis”. Aproxima-se da posi-ção de Antônio José Saraiva (MARQUES, 1971, p. 806-808), que veria em

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Fernão Lopes “objetivos de caráter político”, “justificativos da nova dinas-tia”, criada com a revolução. Em que pese a esse historiador tê-la preteridoem favor da Crônica de D. Fernando, que apresenta, a seu ver, as melhorespáginas históricas do autor, reconhece-lhe no entanto o maior valor literário,o seu “poder evocativo e descritivo”, o seu “sentido de movimento, sobretudoquando individualiza as massas ou personaliza uma cidade como Lisboa”.Considera, enfim, que

muitos dos episódios afamados da Crônica de D. João I (sobretudo naprimeira parte) valem antes como romance histórico de alto nível literá-rio (pela movimentação das massas, pela psicologia dos homens, pelodesenrolar dos atos) do que como testemunhos de uma realidade passada(MARQUES, 1971, p. 808).

Portanto, mesmo para os que lançam dúvidas sobre o seu valorhistórico, a obra é reconhecida como de alto nível literário, o que levou Torquatode Sousa (1963, p. 35) a considerá-la “uma concepção estética da Históriaque considera como uma ressurreição”.

Manuel Rodrigues Lapa (1973, p. 371) é outro dos grandes especia-listas que se manifestaram a propósito, asseverando que “se, portanto, ainda élícito, num ou noutro caso, duvidar da perfeita serenidade do historiador, omesmo não sucede do artista literário, que é seguramente dos maiores que aliteratura tem produzido”.

Antônio José Saraiva, no abrangente estudo a Fernão Lopes dedi-cado, ressalta essas qualidades artísticas do escritor, considerando que “ahistoriografia de Fernão Lopes corresponde a uma visão global do mundo, auma forma de sentir e apreender a realidade. Nela está empenhada a sensibi-lidade do autor”. E sublinha a importância de abordagens da obra “tambémdo ponto de vista estético, quanto mais que, por coincidência, o guarda-morda Torre do Tombo e cronista da Corte era ao mesmo tempo um escritorprivilegiadamente dotado” (SARAIVA, 1965, p. 49).

Mais recentemente, para só citarmos alguns dentre os especialis-tas que valorizam a obra, Teresa Amado (1997, p. 18) destaca ser a Crônicade D. João I “a mais ambiciosa, a mais completa e a mais perfeita das três,aquela em que o autor pôs todo o seu saber e capacidades, e portanto ondeseria mais legítimo procurar as marcas mais autênticas da sua actividadeescritural”. E João Gouveia Monteiro (1988, p. 114), considerando-a a “crô-nica-chave” de toda a obra do cronista, destaca a excelência da sua composi-ção, que obedece a “um plano muito preciso, escrupulosa e estrategicamente

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pensado e executado pelo Autor”, funcionando “como o enquadramento im-prescindível e silencioso de uma narrativa sempre empolgada pelo recurso aodiálogo e ao semi-diálogo, ao discurso indirecto e à imagem metafórica”.Também observou Monteiro (1988, p. 82-83) que, para cobrir os 10 anos dereinado de D. Pedro, Lopes escreveu apenas 44 capítulos; para os 16 anos dode D. Fernando, 178 capítulos; e para os 16 meses (dezembro de 1383 aoutubro de 1411) cobertos pela primeira parte da Crônica de D. João I, 193capítulos! Isto já nos indica a importância da mesma, ainda mais que a suasegunda parte, que cobre 26 anos de reinado desse mesmo soberano, constaapenas de 204 capítulos.

Tais juízos (e não são os únicos) firmam, pois, o valor literário daCrônica, parecendo, no entanto, necessário lembrar que, no tocante à valoraçãodo escritor, entendido como artesão da palavra, a sua importância não residi-ria na invenção, mas no aprimoramento de técnicas narrativas já existentesem toda uma tradição literária encontrada por Fernão Lopes, conforme obser-vamos anteriormente. Dessa tradição fariam parte a historiografia peninsular,e, através dela e com ela, a homilética cristã e a retórica greco-latina, bemcomo a historiografia árabe, as novelas de cavalaria e as canções de gesta; aoque se acresce ainda a tradição jogralesca, presente nos muitos ‘escárnios’utilizados pelo cronista.

Destaque-se que o ‘estilo falado’ das crônicas, tão decantado pelacrítica, aproxima o escritor do aedo, como também do eclesiasta. Assim sen-do, o valor do escritor não residiria no mérito de ter sido o inventor de novastécnicas da arte narrativa, mas na manipulação exemplar das mesmas, a servi-ço da coerência interna da obra e da melhor atuação sobre o leitor/ouvinte.

1.3. Assunto, tema(s) e personagens principais

A primeira parte da Crônica do Rei da Boa Memória constitui-sena história de uma revolução – a de 1383-1385, em Portugal. Subrepticiamentea ela se insere, no correr da narrativa, o relato da luta do cronista na elabora-ção da obra, preocupado com a verdade e/ou com a verossimilhança3 . O seuobjetivo é a defesa da justiça da causa de Avis, apresentada sob a proteçãodivina, que lhe proporciona vitórias até sem batalhas decisórias, como se

3 Outra não é a concepção de Aristóteles ([s.d.], p. 35): “é pelo discurso que persuadimos,sempre que demonstramos a verdade ou o que parece ser a verdade, de acordo com o que,sobre cada assunto, é susceptível de persuadir”.

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verá. E, relacionado a estes aspectos, é estabelecido o elogio da lealdade, dacoragem e da fé dos “portugueses verdadeiros”, dentre os quais se destacam a“arraia meuda” e o cavaleiro sem mácula, Nun’ Álvares Pereira.

Os seus dois grandes heróis – o coletivo e o individual – se articu-lam na figura do Mestre de Avis e representam as duas forças rivais à épocaprotocapitalista: o povo4 , que se manifesta nos conselhos através dos “homensbons” e dos “honrados” 5, isto é, dos donos de capital; e a nobreza, que tentamanter a abalada ordem feudal e, em restrita minoria, apoia ao Mestre.

Os assuntos da crônica, anunciados no Prólogo, são

os claros feitos, dignos de gramde rrenembrança, do mui famoso Reidom Joham seemdo Meestre, de que guisa matou o Comde JohamFernandez, e como o poboo de Lixboa o tomou primeiro por seurregedor e deffensor, e depois outros alguus do rregno, e dhi em deamtecomo rregnou e em que tempo, breve e sãamente comtados (LOPES,1997, p. 3).

Mas não corresponde exatamente ao que será desenvolvido na crô-nica, uma vez que aponta para D. João de Avis como protagonista da narrativafutura, ao qual se aliam adjuvantes como o “poboo de Lixboa” e “outrosalguus do rregno”, sem que se refira ao destacado papel que esses ‘algunsoutros’ desempenharão efetivamente, como Nun’Álvares. Este, no entanto,merecerá no correr da narrativa inclusive um subprólogo, que antecede a ca-pítulos que tratam da sua vida, e um retrato panegírico, respectivamente noinício6 e no final7 da obra, como veremos a seu tempo.

Mais adiante, ainda no Prólogo, o cronita faz referência ao outroponto a ser tratado na crônica: as lutas decorrentes da disputa do trono portu-guês pelo rei de Castela, denunciando a parcialidade de alguns historiadoresque escreveram sobre “os feitos de Castella com os de Portugall”, sobre o“gramde desvairo, que o mui virtuoso Rei da boa memoria dom Joham” “ouvecom o nobre e poderoso Rei dom Joham de Castella” (LOPES, 1977, p. 2). Não

4 Adverte Maria Ângela Beirante (1984, p. 148) que “o povo não é, de modo nenhum, osujeito da história na crônica de D. Pedro e pouco mais o é na de D. Fernando. Ele só estáverdadeiramente presente nas crônicas de D. Fernando e de D. João, na medida em que éresponsável por uma insurreição favorável ao Mestre de Avis e à resistência anti-castelhana”.5 Esclarece Maria Ângela Beirante (1984, p. 44) que “os cidadãos honrados são aqueles queemergem da categoria dos homens bons para a de honrados e bons. Estão a meio caminho econstituem ponte de ligação entre o povo e a nobreza”.6 Capítulo XXXI (LOPES, 1977, p. 55-56).7 Capítulo CXCIII (LOPES, 1977, p. 373-375).

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nos deteremos por ora no modo como Fernão Lopes se propõe imparcial edesejoso “de escprever verdade” – o que faremos no próximo capítulo, dedica-do exclusivamente à análise do Prólogo.

Mesmo que seja questionável a imparcialidade do cronista, no en-tanto é indubitável que a preocupação com a justiça, aliada da Verdade, seapresenta como o grande motivo recorrente, não apenas da crônica em foco,mas das demais, promovendo-lhes a interdependência. Basta lembrar que, naCrônica de D. Pedro, o Prólogo subordina a apresentação elogiosa do rei àapologia da justiça, da qual seria portador, tida, em consonância com Aristóteles(1965, p. 125), por “toda virtude”; “assi que qualquer que he justo este com-pre toda virtude” (LOPES, 1966, p. 88). Na Crônica de D. Fernando, emnome da justiça o rei é criticado pela sua fraqueza, pelas guerras injustas queempreende, baseadas no objetivo de conquista, tão ao gosto das classes fidalgasque se equilibram em poder com as forças concelhias. Diga-se de passagem quea ambas o rei buscava agradar – àquelas, através das guerras com Castela; aestas, através de medidas que favoreciam ao comércio, marítimo principalmente,e à agricultura.

Na Crônica de D. João I pode-se confirmar, notadamente na pri-meira parte, a perseguição desse ideal de justiça. E não apenas na luta daspersonagens históricas, que lhe servem de assunto; mas, como foi dito, naluta paralela do escritor a elaborar a sua obra. Por desejar que ela seja consi-derada justa, busca realizá-la da forma mais convincente. E o resultado é queassistimos, comovidos como o narrador, a uma verdadeira histeria coletiva emtorno do Mestre da Ordem Militar de Avis. A “arraia meuda”, com os “ven-tres ao sol”, alcança conquistar castelos, vilas e vitórias em batalhas contra opoderoso partido senhorial, conivente com o rei de Castela, que invade Portu-gal. Com os “pequenos”, incluindo-se aí os frades franciscanos, estão a no-breza dissidente encabeçada por Nun’Álvares, o financiamento da burguesianascente, e, sobretudo, a providência divina, que, na alegoria estabelecidapelo cronista, só poderia colocar-se ao lado do Bem e, portanto, da justiça.

Daí que, não sem razão, Antônio José Saraiva, dentre outros, con-siderou tal narrativa como épica, pelo realce mesmo do papel da coletividade.Isto porque

a realidade é para o poeta épico uma totalidade em marcha com que elese identifica. A epopéia é por isso o gênero global por excelência, sópossível quando um processo histórico objetivo tem como reverso sub-jetivo nos seus participantes o sentimento de marcha para uma finalida-

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de positiva, isto é, para uma vitória do bem sobre o mal (SARAIVA,1965, p. 70).

Quanto aos heróis, consideramos com Maria Lúcia Perrone de FaroPassos (1974) que, “ao terminar a leitura da Crônica de D. João I, dois ‘he-róis’, realmente, permanecem de maneira mais acentuada na mente do leitor:o povo de Lisboa e o Condestável”. Mas tal destaque procede de razões “to-talmente diversas”: o povo “emociona-nos pela perfeição da narrativa, quan-do surge em cena, pela modernidade do estilo rico, brilhante, grandioso e levea um tempo, de um Fernão Lopes que surge com todo o fôlego e a envergadu-ra de um historiador”. Ao passo que “quanto a Nuno Álvares, somos quaseobrigados a admirá-lo, pois ele está sempre presente, sempre ‘herói’” (PAS-SOS, 1974, p. 19). O Condestável se apresentaria como a “síntese das virtu-des pátrias, do que sobrevive da ética cavaleiresca, aliada à nova moral bur-guesa que se afirma” (PASSOS, 1974, p. 27). E ao ocupar-se dele, o escritorse mostra “mais medieval, menos científico, menos historiador e mais ‘cro-nista’” (PASSOS, 1974, p. 18), tornando-o sua “personagem mais estática,mais padronizada, mais ‘forçada’” (PASSOS, 1974, p. 23). O que, lembra-mos, não o impede, todavia, de por vezes denunciar-lhe a ambição e a vaidade.

É inegável que a Nun’Álvares, e não ao Mestre, são prestadas todas ashonras de herói. Não apenas o capítulo final da crônica lhe tece o elogio, mas tam-bém fora merecedor de uma apresentação destacada, “per modo de prollogo que ellbem merece”, num dos primeiros capítulos da Crônica:

Scprevemdo em este passo, sem constramger nenhuu que ouça,emtemdemos teer nos feitos deste homem, o modo que tem alguuspreegadores, que demtro no sermom emxertam a vida daquell de quepreegam, e na fim delle comcludem seu tema. E nos posto que jáfalassemos alguuas cousas deste NunAllvarez, seus gloriosos feitosadeamte escpritos comvem que espertem pregumtar alguus dhu veo seulinhagem, e quall foi seu primeiro começo; porem çessando huu poucode prosseguir nossa hordenança, amte que isto em breve ponhamos, permodo de prollogo que ell bem merece, primeiramente dizemos assi (…)(LOPES, 1977, p. 55; sublinhamos).

Tal subprólogo iria, à primeira vista, contra o plano narrativoproposto no Prólogo propriamente dito da Crônica: não serão “os clarosfeitos (…) do mui famoso Rei dom Joham, seemdo Mestre” o assunto porexcelência a ser tratado?... Mas o cronista fundamenta esse procedimentono dos clérigos ao tratarem do santo que elogiam no sermão – diz ter seguido

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“o modo que tem alguus pregadores, que demtro no sermom emxertam avida daquell de que pregam, e na fim delle comcludem seu tema”. E o ser-mão, como sabemos, baseia-se na Bíblia, estabelecendo relações entre oVelho e o Novo Testamento. Como veremos adiante, o cronista criará aalegoria do Evangelho Português, no qual o Mestre é comparado a Jesus eNun’Álvares a Pedro. Portanto, não houve mudança de tema, mas o encaixede um novo, que se coloca a serviço do primeiro. Assim, como aos santosna parenética, que não tomam o lugar da divindade, poderá ser feita a apo-logia do fidalgo, das virtudes cavaleirescas nele corporificadas – tais comoa coragem, a lealdade, a bondade, a religiosidade, a fé... – enfim, a Justiça,que “contém em si todas as outras virtudes” (ARISTÓTELES, 1965, p.125), como apregoa Fernão Lopes (1966, p. 88).

Se o Condestável se assemelha aos santos dos hagiolários, ouaos heróis das novelas de cavalaria, em D. João, por sua vez, o cronista“simboliza a transição da crônica para a História”, segundo Maria LúciaPassos (1974, p. 19). A sua apresentação acontece apenas no epílogo daobra, através da prosopopeia de Lisboa, o que significa ser o seu valor de-corrente da coletividade que em torno dele se une. Por um lado, é mostradocomo personagem de romance realista (SARAIVA, 1965, p. 57) em suasfraquezas e vulgaridades (LAPA, 1973, p. 382), imparcial e objetivamente;por outro, é também mostrado como espontaneamente dedicado – uma fi-gura que se abeira do messiânico, cuja ascensão ao poder tem a ajuda dosobrenatural, prenunciada de vários modos: pelo sonho do rei D. Pedro(LOPES, 1966, p. 276) e pelas revelações do emparedado Frei João daBarroca (LOPES, 1977, p. 42-43). Neste aspecto, assemelha-se aNun’Álvares, cujo futuro glorioso fora profetizado por um astrólogo(LOPES, 1977, p. 58) e pelo alfageme de Santarém (LOPES, 1977, p. 63).

Mas até pelo discurso o Mestre, “homem de pouco falar”, eva-sivo, se distingue do Condestável, desafiador, solene e sarcástico por ve-zes, como veremos adiante. Também a educação os diferencia: se oCondestável fora criado na corte de D. Fernando e feito escudeiro da RainhaLeonor Teles, a D. João criara um cidadão lisboeta, Lourenço Martins daPraça. Apenas posteriormente dele se encarregaria D. Nuno Freire deAndrade, Mestre de Cavalaria da Ordem de Cristo, que pediu ao rei D.Pedro o Mestrado de Avis para o príncipe.

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Se é apresentado por vezes como anti-herói, no entanto

este anti-herói, que tem consciência de suas limitações, que muito ouve epouco fala; que tem acesso aos diversos grupos sociais e de todos seutiliza, porque parece inofensivo; este homem extrairá das suas própriasdeficiências a série de fatores que o levarão à sua afirmação como líder,e ao poder (PASSOS, 1974, p. 93).

Inclusive as concessões que o Mestre faz ao Condestável podemser entendidas como astúcia política, o que o aproxima da concepção do Prín-cipe de Maquiavel, o qual

para garantir-se do ministro, deve pensar nele, honrando-o, fazendo-orico, fazendo com que ele contraia obrigações para consigo, fazendo-oparticipar de honras e cargos, de modo que as muitas honrarias não lhetragam o desejo de outras, as muitas riquezas não lhe façam desejar maio-res, e os muitos encargos não lhe façam temer mutações (MAQUIAVEL,[s.d], p. 134).

Se há exagero ou não nessa indicação do maquiavelismo do Mes-tre, o fato é que ele consegue permanecer firme no poder por toda a vida, aopasso que o Condestável termina os seus dias recluso no convento do Carmo,afastado de todas as glórias e honrarias. A interpretação dessa atitude temsido atribuída à religiosidade e santidade de Nun’Álvares. Mas não faltam osque vejam nela a expressão de uma derrota política. Assim pensa AntonioBorges Coelho (1965, p. 116), para quem “a tese mística não explica cabal-mente a retirada de Nuno Álvares para o seu convento do Carmo. Nessaretirada tem de ver-se também o reconhecimento, ou, pelo menos, a expres-são de uma derrota política”.

D. João de Avis consegue, pois, impor-se ao poder fidalgo. E igual-mente ao poder do povo, às forças conselhias. Isto porque, segundo Passos (1974,p. 186), “as qualidades de caráter deste Rei, suficientemente falível e imperfeitopara que o povo não o sinta distante, suficientemente grande para que o sintasuperior, permitem que se diga dele: ‘é um de nós, e o melhor de nós’”.

Quanto à ‘heroína’, outra não é senão a cidade Lisboa, colocadano lugar da donzela, da mulher a ser salva a qualquer preço pelo herói – temacorriqueiro na literatura medieval (e não só). Mas que também o defende,quando necessário. E o cronista apresenta o seu ‘casamento’ com o Mestre,ressaltando a sua fidelidade irrestrita ao ‘esposo’ – tal qual, aliás, deve ser arelação da Igreja com Jesus Cristo.

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Contrasta sensivelmente com Leonor Teles, a rainha adúltera. Masesta, pensamos com Antônio José Saraiva (1965, p. 57), é a “grande criaçãodramática” da Crônica, tornando-se respeitada pela sua “grandeza e vigor”,“indomável até na derrota final”, diante do genro que termina por enclausurá-la. E isto ocorre ao lado da concepção misógina apresentada pelo cronista, damulher enquanto Eva pecadora, que torna Leonor Teles símbolo de astúcia esedução, e por isso merecedora do castigo final. Essa concepção, embora seestenda a outras personagens femininas, como à mulher de Fernão Gonçalves(LOPES, 1977, p. 208), não é no entanto exclusiva, pois não orienta os retra-tos de todas as mulheres que se encontram na crônica, como por exemplo o davirtuosa mãe de Nun’Álvares (LOPES, 1977, p. 57) e de Maria Teles, a irmãda rainha que possuia “gram cordura e siso” (LOPES, 1975, p. 199, 356, 357,366). Esta foi barbaramente assassinada pelo marido D. João (filho de Inês deCastro), em decorrência das intrigas da rainha, que intentava na verdade afastá-lo da concorrência futura ao poder – e o consegue, uma vez que o Infante tevede exilar-se em Castela após o crime, fugindo do Mestre da Ordem de Cristo,filho da vítima, e do seu irmão, o Conde de Barcelos.

Para finalizar, ainda consideraríamos a classificação dos heróislevada em conta por Passos (1974): o grande homem de pensamento e ogrande homem de ação. Grandes homens de ação seriam D. João eNun’Álvares. Mas o grande homem de pensamento da crônica seria FernãoLopes, herói na sua luta consciente de escritor, como se depreende desde oPrólogo. Luta vitoriosa, a julgar pela valorização da sua obra por parte dosestudiosos que sobre ela se debruçam. Da sua altura, conseguiria abeirar-se LeonorTeles, a voz reacionária mais ferina, derrotada por colocar-se a serviço doMal na alegoria construída pelo cronista; embora sendo “mui solta em fallar”e “aleivosa”, era reconhecidamente dotada de “sajeza de costumes e gramdeavisamento; e de nenhuua cousa que a prudemte molher perteença, eraignoramte” (LOPES, 1977, p. 31).

Não parece gratuito o fato de ser a primeira personagem a merecerdo cronista, na obra em questão, todo um capítulo de apresentação, anteriormesmo à de Nun’Álvares. Como também o fato de que, antes de ser silencia-da pelo genro mediante a clausura, o seu último discurso é, como será visto, nãomais sarcástico para com o Mestre, mas dele simpatizante. Cessada a tensãoentre os discursos dos partidários da causa de Avis e o da sua grande opositora,a crônica se encaminha para o final. Como se, vencido esse discurso crítico, anarrativa não tivesse mais razão de prosseguir.

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2. Do prólogo ou exórdioO genial cronista, já no Prólogo da Crônica do Rei da Boa Memó-

ria – primeira parte, revela-nos a concepção que possuía do discursohistoriográfico: a narrativa de fatos acontecidos, que no entanto podem serdeturpados pelo sujeito do discurso, pelo seu comprometimento com o quehoje chamaríamos de “lugar de fala” (CERTEAU, 2002). Inicia esse prólogoacentuando a parcialidade de muitos dos “que teverõ carrego dordenarestorias”, devida ao apego à terra de origem e aos senhores “em cuja merçeee terra viviam, e hu forom nados seus antiigos avoos, seemdo lhe muiitofavoravees no rrecomtamento de seus feitos” (LOPES, 1977, p. 1). Ou seja, ocronista tem consciência de que ordenar estórias para recontar feitos implicaem escolhas e julgamento, comprometidos pela relação do historiador com oscostumes da terra e pelas suas afeições e compromissos decorrentes dos pa-gamentos ou favores recebidos; assim é que, “louvamdoa [a terra], dizemsempre mais daquello que he; e sse doutro modo, nom escprevem suas per-das, tam mimguadamente como acomteçerom” (LOPES, 1977, p. 1).

Coloca, desde aí, em questionamento a distinção entre o historia-dor e o poeta estabelecida por Aristóteles na Poética: “não compete ao poetanarrar exatamente o que aconteceu [que seria o objeto do historiador]; massim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou anecessidade” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 306).

2.1. A imparcialidade apregoada

Como no exórdio clássico, o cronista procede nesse Prólogo demodo a alcançar a captatio benevolentia dos que o julgarão. Daí que se apresenteenquanto movido pelo desejo de escrever a verdade, de forma imparcial, colocan-do de lado toda afeição à terra, aos costumes, aos senhores:

Nos certamente levamdo outro modo, posta adeparte toda afeiçom, quepor aazo das ditas rrazoões aver podiamos, nosso desejo foi em estaobra escprever verdade, sem outra mestura, leixamdo nos boõsaqueeçimentos todo fingido louvor, e nuamente mostrar ao poboo, quaaesquer comtrairas cousas, da guisa que aveherõ (LOPES, 1977, p. 2).

A questão da parcialidade / imparcialidade de Fernão Lopes jáfez correr rios de tinta aos especialistas no percurso dos séculos. De nossaparte, temos como certa a lição da retórica clássica – a de que toda argu-mentação é indício de uma dúvida (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 161), e a deque os exórdios que iniciam os discursos só não podem ser dispensados nas

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causas dubitativas, que necessitam conquistar a benevolência dos receptoresda mensagem, dos seus juízes.

Aristóteles, no capítulo dedicado ao exórdio, levando em contaos tipos de discurso de que se ocupa especificamente a retórica – epidítico,judicial e deliberativo –, ensina que no gênero epidítico os exórdios ligam-se ao elogio ou à censura, como também ao conselho. Quanto ao judiciário,estabelecem “considerações que dizem respeito ao ouvinte” em se tratandode “assunto que fere a opinião comum, ou que é difícil de aprender, oudemasiado repisado; este processo terá por efeito conciliar a indulgência dojuiz” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 248-249). Mais adiante, observa que osexórdios “desempenham o mesmo papel que os prólogos das peças teatraise os preâmbulos dos poemas épicos” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 249), sen-do que “a função mais indispensável do prólogo, a que lhe é essencial,” “émostrar qual o fim do assunto versado” – o que é desnecessário “quando amatéria é evidente por si e de pouca monta”. E sentencia:

As demais espécies de exórdio que se empregam não passam de precau-ções oratórias e de expedientes comuns. São tirados ou da pessoa quefala, ou do ouvinte, ou da matéria, ou da parte adversa. Da própria pes-soa, ou da parte adversa, tira-se o que pode refutar e estabelecer a acusa-ção (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 250).

Vimos de início que desde o prólogo o cronista se defende do jul-gamento dos leitores e/ou ouvintes a quem a sua crônica se dirige, afirmando-se diferente dos cronistas comprometidos pela afeição. Tal atitude já era umatópica observada pelo sábio Estagirita: a da “aparência de honestidade que oorador se dá” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 250) no exórdio dirigido ao ouvinte, oqual tem por finalidade “obter a benevolência e provocar a cólera do mesmo,por vezes chamar-lhe a atenção, ou, pelo contrário, distraí-la, pois nem sempreé oportuno que o ouvinte esteja atento” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 250)8 .

8 Com relação ao receptor da mensagem, o Filósofo ainda assevera que apenas aos de nívelmedíocre o exórdio que busca conquistar-lhes a benevolência se impõe, sendo nos demaiscasos útil apenas “para exprimir sumariamente o assunto e para servir como que de cabeça aodiscurso, que é uma espécie de corpo” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 250). Mas, adverte, “im-porta obter a atenção dos ouvintes para todas as partes do discurso, quando necessário; poisnão é tanto no princípio quanto na continuação do discurso que os ouvintes afrouxam”(ARISTÓTELES, [s.d.], p. 25). E disto Fernão Lopes também tem consciência, como de-monstraremos no correr deste estudo.

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O Sábio ainda acentua que, nos discursos de gênero deliberativo,os exórdios retiram-se do judiciário, sendo que

ninguém ignora qual o objetivo do discurso e a matéria não necessita depreâmbulo, a não ser que este se refira à pessoa do orador ou à dos adver-sários, ou que os ouvintes não tomem a questão como o orador desejaria,ou que lhe concedam importância de mais ou de menos. Nestes casos éforçoso ou atacar logo de entrada ou refutar os ataques, amplificar ouatenuar a questão (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 252).9

Portanto, insistimos, o cronista procede nesse prólogo como noexórdio clássico para as causas sobre as quais há controvérsia, intentandoalcançar a confiança, a simpatia e o interesse dos seus leitores-ouvintes,prometendo-lhes, como vimos, imparcialidade no enfoque dos fatos queapresentará.

Esses acontecimentos, já o vimos, se relacionam, dentre outros, ao“gramde desvairo, que o mui virtuoso Rei da boa memoria dom Joham (...)ouve com ho nobre e poderoso Rei dom Joham de Castella” (LOPES, 1977,p. 2) durante o interregno de 1383-1385, subsequente à morte de D. Fernando.Mas, desde os epítetos utilizados nessa primeira referência aos reis são res-saltadas as qualidades intrínsecas e o comportamento elogiável do fundadorda Dinastia de Avis: foi ele ‘virtuoso’ e deixou ‘boa memória’, ao passo que ocastelhano se apresenta com características herdadas, não cultivadas: nobreza epoder.

Lopes insiste repetidas vezes na sua diferença em relação a algunsoutros cronistas que escreveram sobre o mesmo episódio, os quais, comanda-dos pela “mundanall afeiçom”, “posto que homees de boa autoridade fossem”,desviaram-se da “dereita estrada” e correram “per semideiros escusos, poras mimguas das terras de que eram, em certos passos claramente nom seeremvistas” (LOPES, 1977, p. 2). Parece, pois, conhecer de perto os ensinamentosde Aristóteles ( [s.d.], p. 223) no sentido de que “o orador deve, antecipando-se, prever as censuras de outrem; o que ele diz parece então ser verdade, vistoque tem consciência do que faz”. E ainda, que as técnicas de persuasão tantose colocam a serviço do verdadeiro quanto do falso, sendo o verossimil mui-tas vezes mais convincente que a verdade10.

9 Acrescenta ainda: “noutras circunstâncias, pode servir também de ornamento, para evitardar a impressão de improvisação, no caso de ele faltar” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 252).10 Cf., a propósito, o endosso de tal pressuposto por Cícero e seu leitor Santo Agostinho

(AGOSTINHO, 2002, p. 208).

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2.2. Um arquivista à busca de provas

O cronista tem o cuidado de referir-se à proteção divina para aobtenção da “clara certidom da verdade”, obedecendo, pois ao tópico dahumilitas particularmente endossado pela oratória clerical11 . Mas, assumin-do a posição do arquivista, enaltece o grande trabalho que dispendeu na reu-nião dos documentos necessários para alcançá-la:

Oo! com quamto cuidado e diligemçia vimos gramdes vollumes de li-vros, de desvairadas limguagees e terras; e isso meesmo pubricasescprituras de muitos cartarios e outros logares nas quaaes depois delongas vegilias e gramdes trabalhos, mais çertidom aver nom podemosda contheuda em esta obra (LOPES, 1977, p. 2).

A propósito, Ginzburg (2002) destaca, de acordo com Finley, que“a pesquisa de arquivo, que para os gregos se encaixava na arqueologia e nãona historiografia propriamente, foi iniciada pelos discípulos de Aristóteles”(GINZBURG, 2002, p. 56). Estes seriam os continuadores de Hípias – que foinão apenas o retórico satirizado por Platão em Hípias maior, mas filósofo earqueólogo ou antiquário. E é justamente esse pendor arquivista dos peripatéticosque nos ilumina para a compreensão do “filósofo que submete a terminologiada prova a uma cerrada crítica conceitual e identifica, na prova, o núcleo racio-nal da retórica” (GINZBURG, 2002, p. 54). Assim é que, “na Grécia do séculoIV, retórica, história e prova estavam estreitamente interligadas” (GINZBURG,2002, p. 59). Mas, adverte, “a arte retórica de Aristóteles era muito diferente doque entendemos hoje pelo termo ‘retórica’” (GINZBURG, 2002, p. 60). Daí aimportância de nos reportarmos às suas origens.

Observa ainda Ginzburg, em sua reflexão sobre as raízes gregas dahistoriografia, que o Sábio, ao sistematizar a poética e ao criticar nesta a histó-ria, minimizando-a em relação à maior abrangência e universalidade da poesia,teria em mente a historía de Heródoto. “Tucídides (sobretudo o Tucídides ‘ar-queólogo’), que usou repetidamente argumentos baseados em entimemas (‘onúcleo central da prova’ ), deve ter representado, aos olhos de Aristóteles, umcaso diferente e menos exposto à crítica” (GINZBURG, 2002, p. 57).

Portanto, o historiador italiano redimensiona a relação dahistoriografia com a retórica (GINZBURG, 2002, p. 63), encarecendo que na

11 Seguindo a orientação do tomismo, busca compatibilizar a razão com a fé, se bem que nospareça ser o cronista muito mais partidário daquela que desta, já que, mesmo quando assumeares providencialistas em seu discurso, termina por ironizá-los, como veremos a propósito daalegoria por ele construída da “Sétima Idade”.

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retórica de Aristóteles – que sobreleva no discurso, notadamente no judiciário,as provas como núcleo racional da argumentação –, deve ser buscado o nexo“entre a historiografia, assim como foi entendida pelos modernos, e a retórica”,ressalvadas as diferenças de concepções de ‘prova’ (GINZBURG, 2002, p. 49).

Isso referenda a importância de remontarmos à concepção dehistoriografia que possuía Lopes e sua relação com os tipos de discurso ava-liados por Aristóteles, bem como com a arte de pregar medieval. As provas,como veremos adiante, serão uma preocupação do cronista desvelada magis-tralmente na reconstituição do discurso de um jurista, o Dr. João das Regras,a modo de peroratio.

2.3. A negação ‘retórica’ da retórica

Destaca o cronista (LOPES, 1977, p. 2) a sua opção por um estilorude, mas representativo da verdade dos fatos: desprezará a “fremosura enovidade de pallavras”, os “compostos e afeitados rrazoamentos, que muitodeleitom aquelles que ouvem” pois a sua preocupação é com a “çertidom dasestorias”, com a “simprez verdade” e não com a “afremosemtada falssidade”– o que, insistimos, não corresponde ao que será apresentado na crônica,famosa também pela perfeição das alegorias que apresenta e pela dramaticidadealcançada através dos recursos de que lança mão.

E termina, também como no exórdio clássico, após referir-se àgrandiosidade da matéria que se dispõe a ordenar, a sumariá-la: “os clarosfeitos, dignos de gramde rrenembrança, do mui famoso Rei dom Joham”quando era Mestre de Avis, o modo como matou o Conde Joham Fernamdeze como foi elevado a Regedor e Defensor do reino, primeiramente pelo povode Lisboa e depois por “outros alguus do rregno”; e, posteriormente, “comorregnou e em que tempo, breve e sãamente comtados” (LOPES, 1977, p. 3) –o que já é assunto da segunda parte da crônica de D. João I, da qual não nosocuparemos por ora. Na primeira parte trata, pois, da revolução de 1383-1385, que elevou ao trono português uma nova dinastia, a de Avis.

Portanto, a partir desse prólogo-exórdio, fica evidente a herançada retórica na crônica de Fernão Lopes12 . A impressão que nos deixa é a dequem conheceu os ensinamentos do Estagirita acerca da retórica, como por

12 Cf. Prólogo da Crônica Geral de Espanha de 1344 (1984, Vol. II, p. 3 e 4), onde também seacentua a escrita da história como fruto de “muyto trabalho” e “grandes estudos”, após estabe-lecer-se a concepção fundante da historiografia como memória e exemplo, pela qual “os homeespodem aprender os boos costumes e saber os famosos feitos que fezerom os antigos”.

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exemplo ao estabelecer que “Três são as questões relativas ao discurso, queprecisam ser versadas a fundo; a primeira, donde se tirarão as provas; a se-gunda, o estilo que se deve empregar; a terceira, a maneira de dispor asdiferentes partes do discurso” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 205). Porque o cro-nista, em seu metadiscurso, preocupa-se com a inventio, a elocutio e adispositio, anunciando de onde tirará as provas – de documentos, penosamentereunidos –, o estilo desataviado que utilizará e a ordenação do discurso, que sepretende cuidadosa e marcada pela brevidade e clareza, objetivando a apresenta-ção da “nua verdade”, isto é, sem ornamentos e falsidades (LOPES, 1977, p. 3).De resto, norteia-se, nessa ordenação, pelos critérios aristotélicos de causa e efei-to, aliás assimilados pela Escolástica, e não já pelo simples arrolamento cronoló-gico dos acontecimentos.

Se conhecera diretamente o tratado de retórica aristotélico, não opodemos afirmar – não conhecemos disto registros. Mas as técnicas do dis-curso persuasivo, sistematizadas por “aquell claro lume de filosophia”(LOPES, 1966, p. 216), como o cronista chama a Aristóteles, eram bastamentedivulgadas na Idade Média, inclusive por Santo Agostinho (2002) através dasleituras de Cícero. Deste, a obra juvenil De inventione ao lado da Rhetoricaad Herennium que se lhe atribuiu por séculos são considerados os tratados deretórica mais conhecidos no medievo. Inclusive D. Duarte solicitara a Afonsode Cartagena a tradução do primeiro, que possivelmente possuiria em suabiblioteca (AMADO, 2007, p. 117); e o segundo encontra-se entre os códicesalcobacenses, hoje pertença da Biblioteca Nacional de Lisboa; escrito emletra da segunda metade do século XV, aventa Teresa Amado (AMADO, 2007,p. 117) não ser improvável que tenha existido “versão anterior, em circuns-tâncias que tenham permitido o seu acesso a Fernão Lopes”.

O cronista refere-se à autoridade de ‘Túlio’, que outro não é senãoMarcos Túlio Cícero, para apoiar-se na questão da parcialidade (LOPES,1977, p. 1). E em muitas passagens vemos o magistério ciceroniano (e comele o de Aristóteles) não apenas no que concerne à concepção da justiça13,mas também à oratória. Por exemplo, com relação aos gêneros de causa (ho-nesto, admirável, humilde, duvidoso ou obscuro), o orador romano destacava

13 Cf. o Prólogo da Crônica de D. Pedro, p. 43, onde inclusive se refere explicitamente aCícero a propósito da justiça: “que rainha e senhora seja das outras virtudes, segundo dizTúlio” (LOPES, 1977, p. 43). Conforme demonstrou António Borges Coelho, também aquíse apresenta, mesmo que indiretamente, o magistério de Aristóteles na Ética a Nicômaco(COELHO, 1977, p. 18).

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que na causa duvidosa, que “tem parte de torpeza, parte de honestidade, seráoportuno captar a benevolência, para que pareça que a causa foi trasladadaao gênero honesto” (CICERO, 1997, p. 16; traduzimos). Portanto, a FernãoLopes não seria estranho poder transformar uma causa torpe em honesta. Ea lição aprendida do famoso mestre da eloquência latino, que desculparia ocronista da Casa de Avis, é a de que “Ninguém, de fato, quer que as leissejam salvas por causa das leis, mas por causa da república”; portanto, que“todos os escritos se interpretem segundo essa causa; isto é, já que servimosà república, interpretemo-los pela sua conveniência e utilidade para a repú-blica” (CICERO, 1977, p. 44; traduzimos).

Mas cumpre observar que, a par desse inovador espírito crítico,iluminado pela concepção aristotélica de causa e efeito que demonstra diantedos fatos e documentos, Lopes conserva, da historiografia medieval, a visãoprovidencialista da história, que subordina os acontecimentos à vontade divina(LOPES, 1977, p. 327). A orientação para essa perspectiva pode ser encontra-da em Santo Agostinho, sendo a Cidade de Deus, inclusive mencionada pelocronista (LOPES, 1977, p. 327). Nem que seja para melhor argumentar emprol da Dinastia de Avis.

No tocante à retórica, vimos que as suas lições foram cristianizadase divulgadas por Santo Agostinho e pelas artes praedicandi e sermonáriosmedievos – que as assimilaram juntamente com os ensinamentos da Bíblia eda tradição exegeta judaico-cristã. No âmbito ibérico, Santo Isidoro de Sevilhatambém merece ser lembrado, já que na obra Etymologiarum, facilmenteencontrável nos mosteiros portugueses, não só apresenta lições sobre as linhasbásicas das artes do discurso – gramática e retórica – , mas muitas informa-ções aproveitáveis na amplificatio dos sermões.

Voltando ao exórdio, também as artes praedicandi medievas, naesteira dos antigos, insistiam na sua importância.Como vimos, já o mongecisterciense Alão de Lille, no seu tratado De ars praedicatoria (1199?), reco-mendava que, nessa parte inicial do discurso,

o pregador deve captar a benevolência de seu auditório para com a suaprópria pessoa através da humildade. Deve também prometer que apenasdirá coisas úteis e pouco numerosas, que não desejará tomar a palavrasenão que por dedicação a seus ouvintes. (DAVY, 1931, p. 32; traduzimos).

Aliás, esses ensinamentos estão na base não apenas dos sermões, mastambém das hagiografias, que têm dentre os seus tópicos mais frequentes os dosprotestos de verdade, de humildade e de brevidade (NASCIMENTO, 1993, p. 307).

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Portanto, referendando essa tradição, Fernão Lopes insiste na sua ho-nestidade, na forma árdua de realizar a sua tarefa e na simplicidade do seu estilo:“leixados os compostos e afeitados rrazoamentos que muito deleitom aquellesque ouvem, amte poemos a simprez verdade que a afremosemtada falssidade”(LOPES, 1977, p. 2). Dessa forma, intenta angariar o respeito, a simpatia, a aten-ção do receptor do seu discurso. E no decorrer da obra muitos são os momentosde reflexão sobre o seu fazer cronístico. Por exemplo, com relação ao tópico dabrevidade, desculpa-se por às vezes deter-se em determinados assuntos, em nomeda fidedignidade às fontes: “nom por nos prazer de prolixidade, que aos senho-res geera fastio; mas porque nom seemdo taaes rrazoões achadas em este volu-me lhe seja comtado por imperfeiçom” (LOPES, 1977, p. 327).

Novamente a herança de Santo Agostinho deve ser considerada,enquanto norteadora dessa preocupação com um estilo desataviado,direcionado para o ensino do que é verdadeiro. Como vimos, recomenda eleem “Sobre a maneira de ensinar a doutrina”, livro IV de A doutrina cristã, queo pregador deve preferir “em seus discursos, agradar mais pelo fundo do quepela forma”, e se persuadir de que “nunca fala melhor do que quando diz averdade” (AGOSTINHO, 2002, p. 273). E, ainda, destaca a importância fun-damental da retidão do orador14 . Portanto, essas lições se coadunam com ainsistência de Lopes em frisar o seu exaustivo trabalho à cata de documentose a sua honestidade e isenção no trato com os mesmos – virtudes que deveri-am nortear os historiadores e os pregadores.

Enfim, o cronista, firmando a sua competência e autoridade aobasear-se em “cousa de muitos aprovada e per escprituras vestidas de fe”(LOPES, 1977, p. 2), no entanto não deixa de, no desenvolvimento da obra,trabalhar por diminuir o tédio ou fastio do possível leitor/ouvinte, bem comopersuadi-lo da ‘verdade’ que narra, lançando mão da linguagem figurada.

A propósito, já Albin Eduard Beau (1953, p. 128-155) demonstra-ra que “a proclamação do ideal de verdade”, herdada dos historiadores latinose manifesta na opção por um estilo rude, mas ‘verdadeiro’, entra em choquecom a forma pela qual o cronista a expressa. Procedendo a uma análiseestilística dos Prólogos das crônicas fernãolopeanas, conclui por sua precio-sidade estilística, que desmente, juntamente com outros processos utilizados

14 Referenda, como já foi mostrado, as palavras de Paulo na epístola a Timóteo (I, 4-12): “Sêpara os fiéis um modelo na palavra, na conduta, na caridade, na fé, na pureza” (AGOSTI-NHO, 2002, p. 272).

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no correr da obra, e até por manifestações de grandiloquência, a intençãoconfessa de humildade, simplicidade e brevidade de estilo, insistentementeapregoada pelo autor. Também a Vitorino Nemésio (1930, p. 637-654) talfato não passara despercebido, o que o levaria a comparar o cronista a umpintor, perfeito conhecedor da sua técnica. Para Segismindo Spina ([s.d.], p.79), “esse gosto insistente do pictórico a invadir a obra de Fernão Lopes e ainfundir nela um encanto que conduz a criação historiográfica para o campoda arte, é em grande parte fruto da sensibilidade estética da época”. Masquem melhor que o nosso cronista conseguiria elaborar um painel com tama-nha perspectiva, tão colorido, tão pulsante de dinamismo, de vida?...

3. Da consciência retórica na obraO desejo implícito, que se depreende da leitura da obra, de con-

quistar a simpatia do leitor/ouvinte para a causa de Avis – apresentada comoa causa dos ‘pequenos’ (os vilãos) contra os ‘grandes’ (os nobres ‘entreguistas’e hereges) – faz com que numerosos recursos retóricos, numerosos ‘orna-mentos’ vistam a ‘nua verdade’ do discurso: ao ordo naturalis se acrescenta oordo artificialis, para melhor sensibilizar e, com isso, persuadir o interlocutor.

Por ordo naturalis entende-se a “situação normal do pensamento eda linguagem”, que se pode observar, por exemplo, “na sucessão de aconteci-mentos que corresponde ao decorrer histórico desses mesmos, na narratio,ou na sucessão lingüisticamente usual das partes da frase, na própria frase”(LAUSBERG, 1982, p. 96). Resulta em “uma clareza e uma credibilidademédias, mas corre o perigo de ser demasiado uniforme”, provocando no re-ceptor da mensagem o tédio (LAUSBERG, 1982, p. 96).

E, por ordo artificialis ou ‘figura’, a “alteração artística da situa-ção normal” (LAUSBERG, 1966, p. 96). As figuras, de pensamento ou depalavra, “têm como efeito um estranhamento, que excita a atenção e é umantídoto contra o tédio, mas que, por outro lado, enfraquecem a credibilidade”(LAUSBERG, 1982, p. 96).

Partiremos de tais pressupostos, mesmo que se fundamentem emdicotomias questionáveis como ‘normal’ versus ‘artificial’, relativas à exis-tência de uma ‘linguagem figurada’ que se distanciaria de uma ‘linguagemnatural’ – já que o artificialismo da linguagem é uma questão apenas de graus.E, no que concerne à (também) problemática distinção, aos muitas vezes tê-nues limites, entre ‘figuras’ e ‘tropos’, o impasse pode ser resolvido pelaaceitação do termo genérico ‘ornamentos’. Por agora, importa ressaltar queFernão Lopes, embora negando-os aprioristicamente, se utilizou fartamente

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desses recursos retóricos, não para simplesmente ‘colorir’ o discurso, mascom finalidades persuasivas.

Os conhecimentos de elementos de retórica por parte do cronistase manifestam a todo instante na obra, não se restringindo ao Prólogo. Apreocupação com o leitor/ouvinte, a consciência constante de uma situaçãode comunicação, aliada à consciência do processo de elaboração do seu dis-curso, não apenas fornecem a medida desses conhecimentos, mas remetempara o que, nos dias que correm, costuma ser apontado como característicafundamental da arte moderna – tal seja, a sua autorreflexibilidade. Recorren-temente autorreflexivo é o discurso do cronista, como o exemplo que segue,no qual a preocupação com a perfeita ordenação, com o “boom e claro istillo”,a par das dificuldades encontradas no ato da escrita, se explicitam:

Certo he que quaaesquer estorias muito melhor sse emtemdem e nembramse som perfeitamente e bem hordenadas, que o seemdo per outra maneira;e posto que nossa teençom seja, de estas que escprever queremos, hoseerem em boom e claro istillo, porem tam gramde aaz destorias nossom prestes, moormente em este logar, que desviam muito de tallhordenança nosso desejo e voomtade (LOPES, 1977, p. 51-52).

A influência da oratória clerical nesse processo é um fato que jáconstatamos ao tratarmos do herói Nun’Álvares, cuja biografia foi “enxerta-da” na crônica, segundo o cronista do mesmo modo que fazem os pregadores,“que demtro no sermom emxertam a vida daquell de que preegam, e na fimdelle comcludem seu tema” (LOPES, 1977, p. 55). Seguindo-lhes a lição, arre-matará a obra com o panegírico do Santo Cavaleiro.

O interesse em não desagradar ao público, apesar da negativaretórica do prólogo – recorrente, como veremos –, o faz freqentementecolocar-se contra o fastidium, inclusive obedecendo ao tópico da brevitase procedendo a uma economia narrativa15, confessada em expressões dotipo “depois de lõgos rrazoados que leixar queremos, por vos nom deteer”(LOPES, 1977, p. 285); “nom por nos prazer da prolixidade, que aossenhores geera fastio” (LOPES, 1977, p. 327). Ou na que segue, onde o“fastio” do ouvinte encontra correspondência no “cansaço” do escritor:“Assi que comtamdo per meudo todallas cousas que em combatos e esca-

15 Como ensina Aristóteles ([s.d.], p. 257), “nada de prolixidade na narração, nem no exórdio,nem na exposição das provas. O que fica bem aqui não é nem a rapidez, nem a concisão, masa justa medida”.

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ramuças acomteciam a huus cõ outros, nom abastaria o presemte diadamdo a vos fastio douvir, e a nos camssaço de escprever” (LOPES, 1977,p. 247-248; sublinhamos).

3.1. A interação com os interlocutores

A preocupação de Fernão Lopes para com os leitores/ouvintespor ele previstos na crônica é uma constante que a percorre por inteiro.Constitui-se num dos componentes da obra que mais explicitam a impor-tância da sua dispositio externa, dirigida ‘para fora’ dela, visando à persua-são do interlocutor e desvelando fenômenos ligados ao estranhamento –antídoto para o tédio tão combatido pelo autor, avesso à prolixidade 16 – e àimparcialidade, como vimos.

Por interlocutores tem o cronista os seus possíveis leitores, mediatosou imediatos, dada a natureza escrita do seu discurso. Mas também os ‘ouvintes’,em que amiudemente (n)os transforma, até mesmo pelos hábitos seus contempo-râneos de serem as crônicas lidas diante de um público (SARAIVA, 1965, p. 19),que constituiria o seu receptor mais imediato.

Muitos são os passos da obra em que tal fato se comprova, comopor exemplo no capítulo que fala de como treze galés partiram de Lisboa parao Porto, a fim de retornarem com embarcações desta cidade para lutaremcontra a frota do Rei de Castela no cerco de Lisboa: “Ouvido teemdes, (…) epera melhor veermos todo o que sse fez, depois que hi chegarom [as trezegalés], leamos primeiro tres capitullos seguimtes do que aveo amte sua che-gada (LOPES, 1977, p. 201; sublinhamos).

Assim é que os interlocutores são, antes de tudo, ouvintes, sendoque o verbo ouvir, ao lado do ver, e similares, percorre toda a crônica, consti-tuindo índices de oralidade tão ao gosto da tradição literária medieval, quefuncionariam como ‘truques’, para estabelecer a familiaridade, a aproxima-ção entre o escritor/orador e o seu leitor/ouvinte. Deste, são esperadas inda-gações, como na passagem relativa à fama que a rainha Leonor Teles tinha deser amante do conde João Fernandez: “Nom parece cousa indigna, se alguuque leer ou ouvir esta estoria fezer pregunta, (…) se tiinha el Rei dello alguuasospeita? ou sabia de tall fama parte? Aos quaaes se responde desta guisa”(LOPES, 1977, p. 6; sublinhamos).

16 Além dos exemplos já citados (LOPES, 1977, p. 327, 347), encontramos muitos outros,como os das páginas 324, 368, 370, etc.

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Essas perguntas, esperadas pelo narrador, tornam ainda mais vivo odiálogo que simula com o leitor/ouvinte, por exemplo na passagem sobre o quefazia o Mestre de Avis em Lisboa após a ida de Nun’Álvares para o Alentejo: “Vostodos ouviis e nehuu nom pregunta depois que NunAllvarez passou a Allemtejo...(…) E pois que o nemguem nom pregunta, queremos que saibaaes,(…) comoteemdes ouvido” (LOPES, 1977, p. 184; sublinhamos).

Enquanto discurso escrito, é óbvio que o aparte não poderia ocor-rer como no último exemplo, no momento da enunciação mesma. Da mes-ma forma os ‘ouvintes’ não poderiam ‘ver’ os acontecimentos, senão atra-vés do narrador, cuja presença se impõe por toda a narrativa; são constantesos convites ao interlocutor, no sentido de acompanhá-lo como cicerone quese faz, no enfoque de personagens e lugares tornados núcleos da narrativa.Veja-se, por exemplo, o modo como nos leva do arraial do Condestável aLisboa: “NunAllvarez er apagou seus fogos por cobrar o sono que damteperdera, omde fique com boas noites; e nos tornemos veer a atribullada deLixboa em que pomto esta” (LOPES, 1977, p. 268; sublinhamos).

Por meio de uma técnica que tem muito a ver com a cinematografiaatual, o cronista se coloca, e aos que o ouvem ou leem, por detrás da câmara,locomovendo-se com ela e promovendo a articulação da narrativa a partir denúcleos que reduplicam e/ou convergem para os acontecimentos de Lisboa.Tal se percebe ao anunciar a mudança de foco do rei de Castela, que se dirigiua Santarém, para o Mestre e os da cidade, em Lisboa, no momento posteriorao levantamento do cerco: “ElRei partio de Torres Vedras e chegou a Samtaremcõ sua molher e gemtes que levava, omde faça seus feitos, e hordene suasfromtarias, em quamto nos formos veer que fez o Meestre e os da çidade depoisque sse elRei levamtou do çerco” (LOPES, 1977, p. 276; sublinhamos).

Como no teatro de marionetes, é permitido ao interlocutor, acom-panhando o narrador, até mesmo mover os personagens, expediente que, diga-se de passagem, é bastante corriqueiro nas novelas de cavalaria. São utiliza-das para tal fim as “frases de transição” ou de “convivência temporal”, jáanalisadas por Mário Martins, bem como a tradição a que se filiam (MARTINS,1977, p. 3-24). Assim, as embarcações são deixadas a navegar, enquantoNun’Álvares é levado para o Alentejo, retornando o foco posteriormente àque-las: “Onde leixemos as naaos e gallees amdar pello mar; e em quamto ellasfazem sua viagem, levemos NunAllvarez a Alemtejo; e como for em Evoradomde partio, emtom tornaremos a comtar da frota como chegou a Lixboa, edo que lhe hi aveo” (LOPES, 1977, p. 216; sublinhamos).

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Em outro passo da crônica, ao herói é permitido descansar umpouco em Évora, enquanto o narrador irá pôr o Rei de Castela fora doreino: “omde folgue por huu pouco, ataa que vaa tomar Portell, e noshiremos poer emtamto elRei de Castella fora do rreino” (LOPES, 1977, p.288; sublinhamos).

Portanto, o narrador não se restringe a dirigir a palavra ao público,o que seria “uma forma normal de contato com ele” (LAUSBERG, 1976, v. II,p. 190). Mas busca intensificar tal contato, incluindo-se e incluindo-o na his-tória, nela instaurando, pois, o espaço da ficção.

Das chamadas ‘figuras frente ao público’ (LAUSBERG, 1976, v.II, p. 190) utilizadas, destaca-se a ‘pergunta retórica’ (interrogatio), que “fus-tiga os afetos, por meio da evidência de que é desnecessária uma formulaçãointerrogativa. Por isso, não se espera uma resposta a essa pergunta, pois queela é, já por si, a formulação, próxima da exclamatio, de uma afirmação”(LAUSBERG, 1982, p. 259). Tal figura se apresenta como meio de comovero interlocutor em relação ao assunto da narrativa, e assim conquistá-lo para acausa revolucionária. Mas é também um meio de convencê-lo da autoridadee do grande trabalho dispendido pelo escritor na elaboração da sua obra:

Quem querees vos que tire já agora descoridom de tamtos anos os no-mes daquelles que outras testimunhas nom tem salvo esqueeçimento eciimza, que aadur pode seer achada? Quem cuidaaes que sse nomemffade, rrevolver cartairos de podres escripturas, cuja velhiçe edesfazimento, nega o que homem queria saber? Quem achara tamtosbitafes amtiigos, que os muimentos em que som escpritos, dem testemu-nho de quem jaz em elles? Quem comtemtara voomtades alheas e tamdesvairados juízos dos homees de guisa que a todos praza o que dizerqueremos? Çertamente he cousa impossibell (LOPES, 1977, p. 299; su-blinhamos).

São, dessa forma, enfatizadas as dificuldades inerentes à tarefado historiador, que, a modo do arqueólogo ou do arquivista, procura suasprovas em cartórios de escrituras já podres e em epitáfios de túmulos. E asperguntas retóricas não apenas justificam possíveis omissões como preveemfuturas críticas, terminando por considerar inviável ‘que a todos agrade’ anarrativa.

No dramático capítulo que trata das tribulações do cerco de Lisboa(LOPES, 1977, p. 268-271), mais uma vez se nota o caráter autorreflexivo dodiscurso, através da interrogação “pera que he dizer mais de taaesfalleçimentos?” (LOPES, 1977, p. 271). Aí, faz-se muito clara a autoconsciência

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do discurso diante dos recursos utilizados para o alcance do clímax narrativodos fatos. Assim, considerando suficiente a sua exposição dos sofrimentosdos sitiados, o narrador ‘afrouxa’ a narrativa.

Do mesmo modo, na magnífica descrição de uma tempestade quedesbarata, a caminho de Sintra, uma expedição bélica chefiada pelo Mestrede Avis, reconhece a impossibilidade de se reproduzir com exatidão os fatosatravés da escrita: “Que compre sobresto fazer deteemça, pois se per escpritodizer nom pode?” (LOPES, 1977, p. 310-311).

E, ao introduzir o primeiro discurso do Dr. João das Regras nascortes de Coimbra, que teve como objetivo a elevação do Mestre ao trono, maisuma vez o escritor se apresenta refletindo sobre o mesmo problema. Neste caso,refere-se à impossibilidade de reprodução do discurso do jurista:

Mas quem poderia rreteer segundo alguus escprevem, a avomdamça deseu boom fallar, e come sse ouve tam sabedormente açerca de tam altofeito? Das quaaes cousas alguus leigos, leixamdo as migalhas do quepercallçar poderom em escprito, dizem que começou desta guisa (LOPES,1982, p. 259).

Quanto às perguntas retóricas usadas como meio de comoção dointerlocutor diante da causa, são ainda mais numerosas, aparecendo a par epar das exclamações ou confundindo-se com elas, dado o caráter enfático deambas as figuras e o seu parentesco – como foi visto, com Lausberg (1982, p.259), “a interrogatio é, já por si, a formulação, próxima da exclamatio, deuma afirmação”.

A exclamatio “consiste na transformação de uma frase afirmativanuma exclamação (acentuada pela pronuntiatio), a qual, as mais das vezes, éacompanhada por vocativos (frequentemente apostróficos) ou construçõesanálogas” (LAUSBERG, 1982, p. 259). E a sua utilização ocorre no exemploque segue, em que se confunde com a interrogação, para enfatizar a desuniãoque reinava entre os portugueses quando da Revolução, através da inclusãodo interlocuror na narrativa, na qualidade de juiz dos fatos a que é chamado atestemunhar: “Quamta descordamça pemssaaes que era de pais com filhos, e deirmaãos com irmaãos, e de molheres com os maridos!” (LOPES, 1977, p. 82).

Tais figuras se tornam mais e mais impressivas no enfoque dramá-tico do sofrimento dos portugueses sitiados, notabilizando-se a participaçãodo narrador, juiz simpatizante da aflição do povo diante da incerteza do por-vir: “Quall estado nem modo de viver era emtom isemto deste cuidado?Çertamente nehuu; porque nom soomente as leigas pessoas, mas aimda as

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rrelligiosas, todas eram postas so ho gramde manto de tall pessamento”(LOPES, 1977, p. 227-228).

Essa participação do narrador incita à compaixão todo legítimoportuguês. Nesta categoria o autor também se coloca, uma vez que o seudiscurso é emocionante e emocionado, ao focalizar as desesperadas precesque nas igrejas eram dirigidas em brados e lágrimas a Deus, para que lhessocorresse e à ‘Casa de Portugal’:

Quall sera o peito tam duro de piedade, que nom fosse amollemtadocom a maviosa compaixom, veemdo as egrejas cheas dhomees e demolheres com os filhos nos braços, todos braadando a Deos que lhesacorresse, e que ajudasse a casa de Portugall? Çertas nehuu, salvo sefosse nom limdo Portuguees (LOPES, 1977, p. 228).

Assim é que não apenas como espectador dos fatos, mas comoouvinte e juiz da narração e como manipulador da mesma se coloca o cronis-ta, e, a seu convite, o interlocutor, levando-nos a ‘ver’ a extensão do desespe-ro dos que padeciam ou viam padecer o seu próximo:

Toda a cidade era dada a nojo, chea de mezqinhas querellas; sem nehuuprazer que hi ouvesse: huus com gram mimgua do que padeçiam; outrosavemdo doo dos atribullados; e isto nom sem rrazom, ca sse he triste emezquinho o coraçom cuidoso nas cousas comtrairas que lhe aviinrpodem, veede que fariam aquelles que as comthinuadamente tam pre-sentes tiinham? (LOPES, 1977, p. 270; sublinhamos)

Associa-se, e nós com ele, aos próprios sucessos narrados, fazen-do-se notar a sua comoção, vale repetir, principalmente ao focalizar as tribu-lações de Lisboa quando do cerco a que a submetera o rei castelhano, consti-tuindo-se no clímax da narrativa.

A pergunta retórica é ainda o recurso usado para justificar certas medi-das tomadas pelo Mestre Avis por ocasião do cerco, à primeira vista impiedosas:

Como nom lamçariam fora a gemte mimguada e sem proveito, que oMeestre mamdou saber em çerto pella çidade que pam avia per todo emella, assi em covas come per outra maneira, e acharom que era tampouco que bem avia mester sobrello comsselho? (LOPES, 1977, p. 269).

A interrogatio serve também para desculpar a falta de tenacidadede alguns dos sitiados, que maldiziam a vida e desejavam a morte, diante daterrível fome dos seus filhos, que não podiam minorar:

Como nom querees que malldissessem sa vida e desejassem morrer alguushomees e molheres, que tamta defferença ha douvir estas cousas,

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aaquelles que as emtom passarom, como ha da vida aa morte? Os pa-dres e madres viiam estallar de fame os filhos que muito amavom, rrompiãas façes e peitos sobrelles, nom teemdo com que lhe acorrer, senom plamtoe espargimento de lagrimas (LOPES, 1977, p. 271).

E, ainda, para lhes justificar a tristeza diante dos boatos de que oMestre ordenara que fossem lançados fora da cidade os famintos: “mamdavadeitar fora todollos que nom tevessem pam que comer, e que soomente os queo tevessem ficassem em ella; mas quem poderia ouvir sem gemidos e semchoro tall hordenamça de mandado aaquelles que o nom tiinham?” (LOPES,1977, p. 271).

Essa atitude crítica, contrária à imparcialidade pretendida pelo autore por ele tão decantada no Prólogo, se instaura também, e negativamente, emrelação ao rei castelhano, tido por impiedoso e insensato. Isto porque, duranteo cerco à cidade de Lisboa, muitos dos seus comandados foram acometidospela peste, sem que o rei desistisse do cerco, o que só fez ao ser a rainha suamulher também atacada pela doença. Então, através da exclamação o cronistacritica a teimosia do soberano de Castela e o seu desamor pelos vassalos:

Que forte cousa pareçe de creer, seer huu Rei assi acompanhado e servi-do, (…) e veer sem nehuu proveito tamtos delles morrer amte ssi (…) enom mudar seu desejo do que começado tiinha, (…) come sse ciintementelhe prouguesse de os offereçer aa morte! (LOPES, 1977, p. 273).

Assim é que, num crescendo de interrogações e interjeições, bemcomo de palavras fortemente impressivas, vivamente impregnadas da influ-ência litúrgica dos sermões, a fala solene e emocionada do narrador nos con-tagia. E atinge o seu auge na exortação à geração posterior aos eventos narra-dos – que é também a sua (do cronista), sendo-lhe, assim, a interlocutora maisimediata –, a ver e, certamente, tomar como exemplo a lição, desvelando-se ocaráter deliberativo do seu discurso:

Hora esguardaae como sse fossees presente, hua tall çidade assidescomfortada e sem nehuua çerta feuza de seu livramento, comoveviriam em desvairados cuidados, quem sofria omdas de taaesaffliçoões? Oo geeraçom que depois veo, poboo bem avetuirado, quenom soube parte de tantos malles, nem foi quinhoeiro de taaespedeçimentos! (LOPES, 1977, p. 271; sublinhamos).

Portanto, estamos diante de um narrador que participa e nos fazparticipar da sua narrativa, e para quem o nosso julgamento importa sobre-maneira. Estamos diante, pois, de um escritor que opta pelo que Roland Barthes

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(1971, p. 156) considerou uma “estética do público”, muito mais que uma“estética da obra”, embora também com esta se preocupe, mas sem atribuir-lhe um caráter intransitivo.

Daí porque seja tão adequado ver-lhe a crônica à luz da retórica, apartir dos preceitos aristotélicos hoje revalidados, que objetivam, nas pala-vras de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958, p. 5; traduzimos), “o estudo dastécnicas discursivas capazes de provocar ou de aumentar a adesão dos espíri-tos às teses apresentadas para a sua aquiescência”.

E a tese primeira apresentada pelo cronista é a de ser o orador daverdade, sendo que as figuras apresentadas ora buscam firmar-lhe a honesti-dade, competência e autoridade, através de todo um procedimentoautorreflexivo, ora presentificam os fatos narrados, tornando-os, assim, maisconcretos ou ‘reais’. Enfim, permitem-nos presenciar, de um lado, a luta doescritor a elaborar a sua obra. De outro, a luta, por ele narrada, dos ‘pequenospoboos’ contra os ‘grandes’, liderada pelo Mestre de Avis, com o auxílio deuma pequena facção dissidente da nobreza e dos donos de capital, ligados aomercantilismo.

Para finalizar, observamos que autor, narrador e demais persona-gens se confundem na narrativa, como por exemplo na prosopopeia de Lis-boa, cujo discurso, enunciado a modo de ladainha, para louvação dos heróisrevolucionários, a coloca na qualidade de autora, reconhecendo inclusive aimpossibilidade de a sua obra, “com gram trabalho hordenada”, agradar atodos: “a quall todos nom pode comtemtar, assi como huu vemto nom podecomprazer a desvairados mareamtes; mas aja aquella paçiemçia que os samtosouverom, que nom ssom postos na ladainha, nem na sacra que dizem aamissa” (LOPES, 1977, p. 306).

Através do símile – o “semelhante, que, empregado como locuscomprovativo e como ornatus, consiste em que uma qualidade seja comuma várias (pelo menos duas) coisas” (LAUSBERG, 1982, p. 238) –, compara-se o locutor/autor ao vento, e o interlocutor aos “desvairados mareamtes”,isto é, aos diversos marinheiros que não podem ser todos agradados pornenhum ‘vento’ ou discurso. Configura-se desde já a participação contextualnas relações estabelecidas pelos ornamentos, sendo, neste símile, invoca-dos os marinheiros, como o serão, no correr da crônica, os camponeses e,até, os comerciantes. Sem sair do âmbito da realidade medieval, do seu quo-tidiano, aos leitores é solicitada, ainda, a exemplar conformação dos santosquando não lembrados nos sermões. Salvaguarda-se, assim, o valor da obra,

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“com gram trabalho hordenada”, afirmativa que aponta para a importânciada sua dispositio interna.

3.2. A dispositio interna

Importa frisar, de saída, que a dispositio interna se apresenta “nointerior do discurso como princípio ordenador, o qual garante a totalidade dodiscurso como capaz de realizar a sua função exterior” (LAUSBERG, 1982,p. 95). Diz respeito à “escolha e ordenação das partes que formam a totalida-de da obra artística e cada uma das suas partes, chegando até cada frase isola-da, até ao mais pequeno grupo de palavras e a cada som isolado” (LAUSBERG,1982, p. 97). Nesse processo, a liberdade do autor é sempre relativa, e aindamais restrita no campo dos fonemas, enquanto unidades menores do discurso.

Que Fernão Lopes tem consciência da importância da dispositio,não há dúvida. Afora o exemplo anterior, muitos outros existem que testemu-nham tal fato. Assim é que, a certa altura da crônica, ao iniciar a narrativa darevolução propriamente dita, procede à seguinte advertência:

Certo he que quaaesquer estorias muito melhor sse emtemdem e nembramse som perfeitamente e bem hordenadas, que o seemdo per outra manei-ra; e posto que nossa teençom seja, de estas que escprever queremos, hoseerem em boom e claro istillo, porem tam gramde aaz destorias nossom prestes, moormente em este logar, que desviam muito de tallhordenamça nosso desejo e voomtade (LOPES, 1977, p. 51-52; subli-nhamos).

Portanto, o desejo da boa ordenação, visando à compreensão ememorização por parte do interlocutor, é imperativo do escritor, embora muitossejam os percalços por ele encontrados, dada a variedade dos assuntos a se-rem reproduzidos.

Não deixa sequer de nos fazer acompanhar o seu trabalho em prolda clareza do discurso: “E pois teemos aqui a pena, e nom torvarmos depoisa hordem do que avemos de fallar, digamos logo outro boom jogo dAffomssoAmrriquez...” (LOPES, 1977, p. 241; sublinhamos). Essa labuta às vezes sedeixa orientar por critérios não mais lógicos, mas psicológicos, para privilé-gio do Condestável. Isto porque se deixa levar pela vontade do autor, pela suamão, e não pelo critério da “ordem de fidalguia”:

nom escprevemdo per hordem de fidallguia, mas como a maão quisermover a pena, o primeiro neesta ladainha seja o mui nobre NunAllvarezPereira, gloria e louvor de todo seu linhagem, cuja claridade de bemservir, numca foi eclipsi nem perdeo seu lume (LOPES, 1977, p. 299).

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Há que se atentar para o fato de o cronista confessar que a sua obraé copiada – “he compillada, segumdo a pouquidade do nosso emgenho” – eque tem por finalidade a perpetuação dos feitos exemplares dos companhei-ros do Mestre: “a nos pareçe seer digna cousa e boa, que aquelles que foromcompanheiros ao Meestre, em seus gramdes e virtuosos trabalhos, ouveromquinhom dalguua rrenembramça, que soomente ficasse em scprito”. Isto por-que, se até a memória dos grandes príncipes se desgasta com o tempo, quantomais a “das outras pessoas”, isto é, não nobres: “Ca sse o escorregamento dosgramdes tempos, gasta a fama dos exçellemtes primçipes, muito mais a lomgahidade, soterra os nomes das outras pessoas, demtro no moimento com elles”(LOPES, 1977, p. 298; sublinhamos).

Marca-se, assim, o caráter utilitário e exemplar da obra, fican-do a sua originalidade por conta da ordenação a que procede o cronista,conforme já afirmara no Prólogo da sua primeira crônica conhecida, a deD. Pedro I: “come ajuntador em huu breve molho dos ditos d’alguus quenos prouguerom” (LOPES, 1966, p. 87; sublinhamos). Através de tal símile,o seu trabalho se apresenta análogo ao do camponês. Analogia que semostrará recorrente na produção do autor, notadamente na crônica emestudo, onde os heróis são reunidos, na prosopopeia de Lisboa, em um“pequeno feixe, como sse melhor apanhar poderom” (LOPES, 1977, p.304; sublinhamos). Ao que se acresce a metáfora – entendida porQuintiliano ([s.d.], p. 223-225) como translatio e, “de uma maneira ge-ral”, como “uma similitude abreviada” – do enxertador, com quem seidentifica o cronista: “Mas huu outro compillador destes feitos, de cujosgarfos per mais largo estillo exertamos neesta obra segumdo que com-pre, rrecomta isto per esta maneira... (LOPES, 1977, p. 281; sublinha-mos). Tal relação entre o seu trabalho e o do agricultor é reiterada aindana passagem, já atrás citada, relativa a Nun’Álvares, na qual se explicita ainfluência dos sermões (LOPES, 1977, p. 55).

Adiante-se que a atividade oratória, seguindo a tradição bíbli-ca17 , seria, no discurso do Dr. João das Regras reproduzido pelo cronista(LOPES, 1977, p. 368), também considerada análoga ao ato de semear:“semear pera sepre” é a expressão que usa para referir-se à divulgação doincestuoso nascimento dos infantes, filhos de D. Pedro com Inês de Castro,

17 Cf. a parábola em que Jesus compara a prédica ao ato de semear em Mateus, 13 – 3: “Eis queo semeador saiu a semear...” (BÍBLIA,1981, p. 1299); reiterada em Marcos, 4, 1 e Lucas, 8, 11.

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que teve de fazer através do seu discurso a fim de defender a eleição doMestre de Avis ao trono português.

Enfim, vale insistir na importância atribuída pelo autor à boa orde-nação do discurso, cujo alcance se faz com muito trabalho. E que nessa tarefarepresenta-se igualado aos profissionais de então, principalmente dedicadosao cultivo da terra ou religiosos.

No que concerne à ordenação das partes maiores do discurso, im-porta ressaltar o caráter específico da obra em pauta, que, mesmo extrapolandoem sua totalidade os limites dos gêneros de discurso preceituados pela retóri-ca clássica, possui características principalmente dos discursos judicial edeliberativo; e até os reproduz por vezes, do que é exemplo o discurso do Dr.João das Regras.

Considerada no seu todo, apresenta as seguintes partes, devedorasa seu modo da dispositio clássica: o Prólogo, a narrativa dos acontecimentoscom a sua confirmação e refutação, e a peroratio constituída pelo discurso doDr. João das Regras, à qual se segue o happy end: a coroação do Mestre deAvis e a nomeação de Nun’Álvares para seu Condestável.

O Prólogo, como foi visto, não se afasta do exordium clássico,parte inicial do discurso em que o orador deveria, com parcimônia, cativar,ganhar a simpatia, a atenção e a confiança do interlocutor, bem como traçar oplano a ser seguido na sua exposição e tentar eliminar o caráter arbitrário detodo começo. É o que faz o cronista, apregoando a sua honestidade, imparciali-dade, autoridade e competência.

Quanto à narração, que possui também elementos dos gêneros épicoe dramático estudados pela poética, podemos considerar como confirmatiodo plano providencial, que sustenta os demais (REBELO, 1983), o sermão deFrei Rodrigo de Sintra em agradecimento ao levantamento do cerco de Lis-boa, e ainda a sua prosopopeia e ladainha finais. E como refutatio a ironia eoutras facécias, que no correr da narrativa colocam em questionamento agrandeza e resultados do movimento.

Vale lembrar que a narratio (diegesis) clássica correspondia à nar-ração ou exposição dos fatos concernentes à causa. Concebida univocamente,do ponto de vista da prova, caracterizava-se pela objetividade, clareza, veros-similhança e brevidade, como também pela funcionalidade. Deveria ser umapreparação para a argumentação, tanto mais eficiente quanto mais contivesse,em estado latente, velado, as semina probationum. Comportando os fatos e asdescrições, há que se levar em conta, com Roland Barthes (1975, p. 209), que,

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relativamente aos fatos na retórica antiga, a sua exposição “obedece a umaúnica regra estrutural: que o encadeamento seja verossímil”18 .

Ainda na narratio, há que se considerar também as descrições, “eixoaspectual, durativo, formado de uma seqüência flutuante de estases” (BARTHES,1975, p. 210), bem codificadas, e que podem apresentar-se em modalidadesvárias como topografias, cronografias, prosopografias ou retratos. Notadamenteestes últimos não se ausentam da obra fernãolopeana, como se verá.

Quanto à confirmatio (apodeixis), que segue à narratio¸ se confi-gura como a exposição dos argumentos, sendo nela enunciadas as provaselaboradas na inventio. Compõe-se de propósito (prothesis), que é a defini-ção condensada da causa (simples ou múltipla); da argumentatio, que é aexposição das razões probantes; e, às vezes, da altercatio, desconhecida dosgregos e que consiste num vivo diálogo entre os advogados (e mesmo destescom uma testemunha). A refutatio, que objetiva dissolver, debilitar ou ridicula-rizar a confirmatio, lança mão dos mesmos elementos (CÍCERO, 1997, p. 49).

A parte final do discurso, denominada pelos antigos peroratio (con-clusão, epílogo), é a última oportunidade de se conquistar o ouvinte, de atenu-ar ou amplificar o que foi apresentado, de recapitular, de “excitar as paixõesnos ouvintes” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 268). Caracterizou-se pelo patéticoentre os romanos, por ser a última oportunidade de comover o interlocutor,opondo-se, assim, à contenção do exordium (prólogo). Na crônica, esses pre-ceitos originais não foram abandonados; podemos observar as funções típi-cas da peroratio no discurso do Dr. João das Regras, encarregado pelo Mestrede Avis de resolver juridicamente o problema sucessório. Daremos destaquea esta questão no momento próprio.

Lembremos que Aristóteles defendeu que são essencialmente duasas partes do discurso: exposição (ou questão ou proposição) e prova (ou de-monstração). Quando muito, “podemos admitir: o exórdio, a exposição, aprova, o epílogo. A refutação depende das provas e a controvérsia não é maisque uma amplificação das provas do orador”, fazendo, pois, parte das mes-mas provas (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 246).

18 Afirma Barthes (1975, p. 209) que na Idade Média “a retórica se separa completamente dojudiciário” e “a narratio passa a gênero autônomo”, tornando-se a ordenação de suas partes“um problema teórico: é a oposição de ordo naturalis e ordo artificialis”. Aponta em seguidao paradoxo da relação entre o ordo naturalis (correspondente às partes do discurso da retóricaclássica, cultural) e o ordo artificialis (espontâneo, contigente, natural).

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A classificação aristotélica sucedeu à de Corax, da qual elidiu aegressio ou digressio – “um trecho de aparato, fora do assunto ou que serelaciona com ele por um laço bem frágil, cuja função é fazer brilhar oorador” (BARTHES, 1975, p. 206). E foi seguida de muitas outras, quesão basicamente variações da sua – por exemplo, Cícero (1997, p. 15)preconizou seis partes: exórdio, narração, partição, confirmação, refuta-ção e conclusão.

Portanto, temos de levar em conta, com Roland Barthes (1975, p.211), que a dispositio é um seccionamento dentre outros. E, ainda, a nãorigidez da divisão de qualquer totalidade e seus dois tipos fundamentais, res-saltados por Lausberg (1982, p. 97-102): a bipartição e a tripartição (princí-pio, meio e fim) – a primeira acentuando a tensão, e a segunda a perfeição, acompletude da obra. Há que se considerar, igualmente, as variantes, frutos dacondensação das três partes em duas, ou da sua subdivisão. E, finalmente, asmodalidades de um todo – circular e linear –, sendo a alteração de uma tota-lidade linear feita pelo ordo artificialis.

3.3. As sequências narrativas

Os postulados que comentamos acima indicam a variação de con-cepções sobre as partes do discurso e apontam para a não rigidez da divisão deum todo. Levando isto em conta, bem como a especificidade da obra enquantonarrativa medieval e certas indicações fornecidas pelo cronista à maneira desubprólogos, observamos na crônica, após o Prólogo, três grandes sequênciasou movimentos – sendo que a última conteria a confirmatio, a refutatio e aperoratio. A nossa intenção é fundamentalmente destacar a causalidade dessesblocos narrativos e os recursos da linguagem figurada, utilizados pelo cronistapara tornar mais comovente a sua história.

Mas antes de os apresentarmos, reportar-nos-emos às sequênciasdepreendidas por João Gouveia Monteiro (1988, p. 112-113), que se norteoupelas frases de ligação que, como já nos referimos anteriormente, constitu-em recurso muito utilizado pelo cronista na elaboração da sua obra. Perce-beu este historiador “vinte grandes conjuntos, organizados por Fernão Lopesem função do desenvolvimento de acções muito concretas, normalmentepolarizadas em torno de uma personagem ou de uma localidade”(MONTEIRO, 1988, p. 113). São os seguintes:

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1 - Capítulos I-IX: A morte do conde Andeiro (preliminares e consu-mação).

2 - ” X-XXVIII: Agitação em Lisboa. Aclamação do Mestre de Avis.3 - ” XXIX-XXX: Leonor Teles muda-se para Santarém.4 - ” XXXI-XXXIX: Nuno Álvares Pereira entrega-se à causa do Mestre.

(biografia e história(s) da adesão).5 - ” XL-LI: A Revolução alastra pelo Reino.6 - ” LII-LXXIII: O rei de Castela entra em Portugal – movimenta-

ções subseqüentes.7 - ” LXXIV-LXXXVI: Escaramuças diversas. “Conspiração” de Coimbra e

degredo de Leonor Teles. Lisboa em vésperas docerco.

8 - ” LXXXVII-XCVI: Combates de Nuno Álvares Pereira no Alentejo (in-cluindo Atoleiros).

9 - ” XCVII-CVIII: Episódios da Revolução no Alentejo.10 - ” CIX-CXVI: D. João de Castela cerca Lisboa.11 - ” CXVII-CXX19 : Episódios ao norte – a frota portuguesa no Porto.12 - ” CXXVI-CXXVIII: Penúria, honradez e façanhas de Nuno Álvares Pe-

reira.13 - ” CXXIX-CXLII: Lisboa (e Almada) – combates navais, resistência e

cerco.14 - ” CXLIII-CXLVII: Novas operações de Nuno Álvares Pereira, entre o

Tejo e Almada.15 - ” CXLVIII-CLIV: Lisboa; os castelhanos levantam o cerco; Nuno Ál-

vares Pereira junta-se ao Mestre de Avis – renova-ção das menagens e privilégios à cidade.

16 - ” CLV-CLVI: Regresso do Rei de Castela à sua terra.17 - ” CLVII-CLXIII: (Nuno Álvares Pereira toma Portel.) A ladainha dos

heróis e dos traidores e a 7ª. idade do mundo.18 - ” CLXIV-CLXX: Ofensiva do Mestre de Avis na região de Lisboa.19 - ” CLXXI-CLXXIII: Episódios em Elvas, Vila Viçosa e Gaia.20 - ” CLXXIV-CCXCIII: De Torres Vedras a Coimbra – as cortes e a

aclamação do Mestre de Avis como rei de Portugal.

(MONTEIRO, 1988, p.112-113).

Monteiro, apesar de reconhecer que “não existe uma uniformida-de espácio-temporal absoluta e até uma unidade de ação perfeita” dentro decada um desses blocos, afirma ser este “o plano geral de construção da Crô-nica”, baseando-se em que “todos os cortes são assinados pelo próprio Fernão

19 Creio que aqui deve ter havido um erro de digitação ou tipográfico, pois há uma lacuna emrelação ao bloco seguinte, sendo deixados de lado cinco capítulos.

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Lopes, o que torna aquela ‘desmontagem’ praticamente inatacável”(MONTEIRO, 1988, p. 113-114).

Voltando à nossa proposta de divisão da narrativa para melhorestudar-lhe os recursos retóricos a partir da lógica que a fundamenta, temosque a primeira parte seria constituída pelos capítulos I a XXVIII, que tra-tam das preliminares, das causas mais imediatas dos acontecimentos cen-trais: o assassinato do Conde de Andeiro pelo Mestre de Avis e a versão quedeste acontecimento é apresentada ao povo por Álvaro Pais, importantelíder político em Lisboa. Nesta versão, o Mestre aparece não como algoz,mas como vítima – o que lhe carreia, de um lado, o ódio mortal da Regente;de outro, a total simpatia popular, fazendo eclodir a insurreição violenta ecega. Do que resulta a elevação do Mestre – que inclusive chegara mesmoa pensar em fugir para a Inglaterra – a Regedor e Defensor do Reino. Ditaeleição, diga-se de passagem, foi efetivada pelo conselho, mas sob a coaçãodo povo.

A segunda sequência narrativa abrangeria os capítulos XXIX aCL, correspondendo à narração das lutas que se desencadeiam entre o par-tido do Mestre e as forças senhoriais partidárias da Rainha, Regente dedireito, e as do rei castelhano, sendo ambos comparsas de início. Centrali-za-se no cerco de Lisboa pelo invasor, mancomunado com a maior partedos fidalgos portugueses, dos quais a exceção mais importante é Nun’ÁlvaresPereira. Aos acontecimentos da capital fazem coro as lutas ocorridas pelasprovíncias, abrangendo todo Portugal e toda uma situação sociopolítica eeconômica, que desvela a crise da organização feudal. A par disto, perma-nece, na crônica, a medieval visão providencialista da História, sendo que aluta, extrapolando os limites humanos, se decide por forças sobrenaturais,em que o Bem, representado pelas hostes celestiais, vence o Mal, fato queserá comprovado adiante, ao estudarmos a alegoria construída pelo cronista.

Esta sequência se destaca da anterior por uma espécie de Prólo-go, já anteriormente referido, no qual o escritor fala da sua preocupaçãocom a boa, clara e perfeita ordem, que pretende imprimir à narrativa dosfatos, sendo que estes, por sua diversidade, tornam dificultosa a tarefa:

Porque elRei de Castella vem pera emtrar em Portugall; NunAllvarezoutro ssi veemsse a Lixboa; desi o castello da çidade trabalhasse oMeestre com ho poboo de o tomare; alçamsse villas comtra os alcaidesdos castellos pello rregno; levamtãsse hunioões dhuus comtra os ou-tros; ffazemsse outras muitas cousas em huua sazom, de guisa quehuas torvam as outras, a sse nom poderem comtar nos dias queacomteçerom (LOPES, 1977, p. 52).

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Observe-se que o cronista se refere à dificuldade ou impossibilida-de de obedecer à ordem cronológica dos acontecimentos, até por serem mui-tos deles concomitantes. Opta, então, por contar uns, depois outros, com vis-tas à clareza: “melhor he dizer huuas [cousas] e depois outras, posto que aalguus isto nom apraza, que as emvurilhar comfusamente e seere peores muitode emtemder” (LOPES, 1977, p. 52).

A quem não agradaria tal ordenação?... Na Retórica a Herênio(2005, p. 67), como em Cícero, se apregoa a necessidade de obediência àordem cronológica: “Narraremos de modo claro se expusermos em primeirolugar aquilo que tiver acontecido primeiro e conservarmos a ordem cronoló-gica dos acontecimentos tal como tiverem ocorrido ou parecerão ter ocorri-do”. Já Aristóteles reconhecia que: “Por vezes importa evitar a narração detodos os fatos uns após os outros, porque tal demonstração causa dificuldadesà memória” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 39).

Então, o cronista focalizará, cada qual a seu tempo, os aconteci-mentos em torno de personagens e lugares:

E segumdo nosso juizo, (...) levemos primeiro a Rainha a Santarem, edepois fallaremos do muito de louvar NunAllvarez como sse veo a Lixboapera o Meestre; e desi da tomada do castello, e assi doutras cousascomo as melhor podermos emcaminhar (LOPES, 1977, p. 52)..

A construção da narrativa assim se desvela, optando o cronistapelos imperativos da lógica, em detrimento, mas sem exclusão, da cronolo-gia. A ordenação dos núcleos narrativos, tendo em vista o princípio de causae efeito adotado, se estabelece com a ajuda de critérios antropocêntricos etopológicos: o Rei de Castela prestes a invadir Portugal, a Rainha em Santarém,Nun’Álvares a caminho de Lisboa para juntar-se ao Mestre, etc.

Portanto, para os acontecimentos de Lisboa, ‘unida’ ao Mestre,convergem os demais núcleos narrativos, por sua vez reduplicadores da ‘líder’exemplar ou antitéticos a ela, quando referentes ao inimigo, mas semprerealçadores do seu (dela) papel. Esses núcleos narrativos giram em torno dorei de Castela, de Leonor Teles, das atividades de Nun’Álvares no Alentejo, dareceptividade dos burgueses do Porto à causa de Avis, e de outros fatores demenor monta, concernentes ao traidor Vasco Porcalho, ao leal Gil Fernandez, etc.

Assim é que os acontecimentos de Lisboa não apenas centralizam,em ordenação concêntrica, mas avultam em primeiro plano sobre os simila-res de outros lugares, onde a vila se opõe ao castelo, os ‘pequenos’ aos ‘gran-des’. O que levou alguns críticos, como Antonio José Saraiva (1965, p. 67), a

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comparar Fernão Lopes a Giotto, por inaugurar a terceira dimensão na prosa,dispondo os planos de maneira a fornecer uma perspectiva dos acontecimen-tos. Vale repetir que o gabaritado crítico considerou a crônica essencialmenteuma epopeia (1965, p. 70-72), aproximando-a dos poemas homéricos e dosfilmes de Eisenstein, primeira fase. Nela se combinam os caracteres com osmovimentos de massa, o estilo analítico com a condensação poética, tendoem vista a irreversível vitória do Bem sobre o Mal.

Quanto à terceira sequência, que iria do capítulo CLI ao final, oCXCIII, que conteria partes relativas ao que os clássicos chamavam deconfirmatio, refutatio e peroratio, trata do reconhecimento, louvações e re-compensas dos heróis. Estes são expressos não apenas pelo discurso donarrador, mas pelos discursos por ele reproduzidos de um eclesiasta e de umjurista, bem como por uma ladainha alegórica.

Nela se imiscuem fatos pertinentes à narratio – as lutas que conti-nuam por todo o país –, funcionando como elos de ligação, como preparadoresdo advento da segunda parte da Crônica do Rei da Boa Memória.

A recapitulação da tribulação do cerco de Lisboa, fato capital danarrativa, como já foi dito, constitui o assunto por excelência do sermão doFrei Rodrigo de Sintra (LOPES, 1977, p. 277-281). Este tematiza a grandemisericórdia de Deus para com os sitiados, proporcionando-lhes a libertação,a exemplo do que já acontecera com diversos povos bíblicos. A intervençãodivina é, assim, considerada decisiva para a vitória da Causa de Avis, a eladevendo-se todos os louvores.

A louvação dos heróis nacionais se estabelece principalmente atra-vés do diálogo fictício do narrador com a cidade de Lisboa (LOPES, 1977, p.302-307), a modo de ladainha, sendo que tal prosopopeia significa a própriavoz da coletividade, dos vilãos que se insurgiram contra os castelãos e contraa ordem feudal que o poder destes representava. Daí ser a cidade recompen-sada com a liberação de tributos, além de outros privilégios, também estendi-dos às demais que aderiram à causa.

E os discursos judiciais/deliberativos do jurista Dr. João das Re-gras (LOPES, 1977, p. 345-359; 362-368; 368-370), a modo de peroratio,retomam os acontecimentos capitais e, mediante provas que habilmente sãochamadas à argumentação, terminam por convencer as cortes de Coimbra àelevação de D. João de Avis ao trono português.

Quanto a Nun’Álvares, é agraciado pelo novo monarca com o títu-lo de Condestável; e pelo narrador, com o capítulo final da crônica, que lhe

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tece o panegírico. Ao passo que Leonor Teles é castigada pelo próprio genrocom o enclausuramento; e este, com a derrota vergonhosa.

Todos são, assim, devidamente pagos, desvelando-se o caráterexemplar da narrativa, abalado, no entanto, pela ironia do próprio autor, cha-mando de ‘Sétima Idade’ à época que se instaura, criticando mordazmenteaos oportunistas, como se verá no capítulo dedicado à facécia.

Portanto, a partir do capítulo CLI, intitulado “Como os da çidadehordenarom huua proçissom, por darem graças a Deos, e da preegaçom quehuu frade em ella fez” (LOPES, 1977, p. 277), vemos explicitar-se mais enfa-ticamente o compromisso com a persuasão através da comoção do interlocutor,já que a última oportunidade de conquistá-lo. Tornam-se, então, mais profu-sos os ornamentos, principalmente nos discursos litúrgicos.

Importa considerar que às sequências dos fatos se acrescentamdescrições e/ou digressões, como a reflexão sobre os modos de revelação, nocapítulo que trata da origem do emparedado Frei João da Barroca (LOPES,1977, p. 41-42); os retratos de personagens como Leonor Teles (LOPES, 1977,p. 31-32) e Nun’Álvares (LOPES, 1977, p. 55-56; 373-375); a descrição datempestade que acomete a expedição do Mestre a Sintra (LOPES, 1977, p.309-311); e outras “alguuas cousas posto que ligeiras sejam” (LOPES, 1977,p. 163), que funcionam a modo de catálises20. Importa considerar igualmenteque as sequências narrativas detectadas, constituindo-se numa variante detripartição da obra, apontam para a perfeição linear do seu todo, alterada aquie ali pelo flash back (LOPES, 1977, p. 62). E as muitas figuras e/ou troposque a percorrem condensam a tripartição numa bipartição, fundada na tensãoBem/Mal, de cuja alegoria, em última instância, a obra se constitui.

Finalmente, vale mais uma vez salientar que a dispositio impregnaa obra em sua totalidade, das unidades maiores às mínimas, cabendo a elatratar “respectiva e concretamente, de uma distribuição eficaz e favorável aopartido, do ordo naturalis e do ordo artificialis (figura) na totalidade do dis-curso, a fim de que, por um lado, se assegure a credibilidade, e, por outro, secombata o tédio” (LAUSBERG, 1982, p. 96). Como diria Santo Agostinho(2002, p. 214), “os que falam eloqüentemente são escutados com prazer e osque falam sabiamente, com proveito”; “nada de melhor do que o útil unido aoagradável”.

20 Cf., a propósito da definição de catálise, BARTHES, 1971, p. 32 e ss.

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Há que se levar em conta que os ornamentos, focalizados maisdetidamente nos capítulos que seguem, são estudados tradicionalmente naelocutio ou elocução – “a expressão linguística (verba) dos pensamentos (res)encontrados pela inventio” (LAUSBERG, 1982, p. 115). Mas pertencem tam-bém ao domínio da dispositio, a mais abrangente das fases de elaboração dodiscurso, por ser constituída, repita-se, “pela escolha e ordenação favoráveisao partido, as quais, no discurso concreto, se fazem dos pensamentos (res),das formulações linguísticas (verba) e das formas artísticas (figurae)”(LAUSBERG, 1982, p. 95).

É inegável a inter-relação das três fases de elaboração do discurso,inventio, dispositio e elocutio. Sobretudo se considerados os ornamentos depensamento como os reconhece Lausberg, para quem “o ornatus de pensa-mento (sententiarum exornatio) é uma função do aptum [virtus dispositionis:conveniência] relativo ao pensamento e pertence propriamente, como fenô-meno relacionado com os pensamentos (res), à inventio e à dispositio”. Contu-do, dele se trata tradicionalmente na elocutio, sob a rubrica ‘figuras de pensa-mento’ (LAUSBERG, 1982, p. 138).

Portanto, a dispositio continuará em pauta nos capítulossubsequentes, através das figuras de pensamento. Como também através dostropos, dada a dificuldade de delimitação entre ambos, já sentida desdeQuintiliano. Lausberg (1982, p. 246) inclusive os inclui no capítulo das “figuraesententiae per immutationem” – os “tropos de salto”, como ele denomina àalegoria e à ironia. Estes serão os objetos por excelência dos próximos capítu-los, por se constituírem nos ornamentos centrais da crônica.

4. Da narratio alegóricaA alegoria destaca-se dentre os ornamentos da crônica, apresen-

tando-se mesmo como subordinante dos demais, que concorrem fundamen-talmente para atribuir à história da revolução portuguesa de 1383-1385 ocaráter de luta entre o Bem e o Mal. Ampliam-se, assim, os horizontes danarrativa, extrapolados que são os limites de tempo e espaço.

Segundo Quintiliano ([s.d.], v. III, p. 259), esse ornamento, emlatim inversio, “apresenta um outro sentido que o das palavras que substitui,às vezes, mesmo, contrário”; neste último aspecto remete para a ironia. Talconcepção foi endossada por Santo Isidoro de Sevilha no século VI através daobra Etymologiarum, facilmente encontrável nas bibliotecas do medievo. Apósdefinir a alegoria como “a expressão de um conceito distinto, no qual se dizuma coisa mas é preciso entender-se outra”, apresenta-lhe diversas varieda-

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des, das quais as sete mais importantes são: ironia (sentido contrário dadopela pronunciação), antífrase (emprego da palavra ou frase em sentido con-trário ao original), enigma (expressão obscura e de difícil entendimento, ne-cessitando explicação), carientismo (eufemismo irônico), paremia (provér-bio, máxima), sarcasmo (motejo ou zombaria plena de hostilidade) e astismo(figura educativa desprovida de hostilidade) (ISIDORO, 2004, p. 337).

Voltando a Quintiliano, estabelece que a alegoria resulta “sobretu-do de uma sequência de metáforas”, o que levou Lausberg, nas pegadas doretor latino, a representá-la como “a metáfora, que é continuada como tropode pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outropensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse pensamen-to em causa” (LAUSBERG, 1982, p. 249).

Classicamente entendida como translatio e “similitudo abrevia-da” (QUINTILIANO, [s.d.], v. III, p. 223-225), a metáfora não teve o seuconceito substancialmente alterado, como demonstra Massaud Moisés (1978,p. 323-333) reportando-se aos muitos enfoques de que ela tem sido objeto;dentre os mais atuais encontra-se o de Benveniste, que a considera uma “trans-ferência analógica de denominações” (MOISÉS, 1978, p. 330).

Por sua vez, questionando a tendência, que se acentuou nos últi-mos tempos, inclusive através de Proust, de denominar ‘metáfora’ a toda fi-gura fundada na analogia, Gérard Genette conclui:

por definição, todo tropo consiste em uma substituição de termos e, porconseguinte, sugere uma equivalência entre esses dois termos, mesmo sesua relação não for absolutamente analógica: dizer vela em lugar de na-vio é fazer da vela o substituto, o equivalente de navio. A relação semân-tica mais próxima da equivalência é evidentemente a semelhança, espon-taneamente sentida como uma quase identidade, mesmo que se trate ape-nas de uma semelhança parcial. Há, portanto, como parece, uma confu-são quase inevitável, e somos levados a considerá-la como ‘natural’, en-tre valer por e ser como, e em seu nome qualquer tropo poderia passarpor uma metáfora (GENETTE, 1975. p. 145; sublinhamos).

Já Aristóteles, na Poética ([s.d.], p. 332), reunira sob o mesmotermo as figuras da contiguidade e da similaridade. Então, definiu a metáforacomo a “transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gê-nero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie paraoutra, por via da analogia”.

Considerados tais percalços advindos do entendimento de ‘metáfo-

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ra’, o que importa ressaltar é que, vista em suas peculiaridades, por vezes fluídicas,em relação aos demais ornamentos, tanto ela quanto o símile, bem como osornamentos que se estabelecem por contiguidade (metonímia, sinédoque, etc.),entram na constituição da alegoria. Aliás, tal fato já fora teoricamente reconhe-cido, embora de forma restrita, por Lausberg (1982, p.250), para quem “ametonímia mitológica ou simbólica pode ser transformada em alegoria”.

Finalmente, importa considerar, ainda com o teórico alemão, que aalegoria “é chamada símbolo ou alegoria simbólica, quando, entre o objetopretendido e a alegoria, se admite uma real participação que, pela alegoria, édada a conhecer” (LAUSBERG, 1982, p. 250). Lausberg (1982, p. 249; su-blinhamos) ainda admite que, “se o pensamento propriamente dito não for indi-cado por sinais, mas sim expresso adicionalmente, no seu todo, surgem entãoas figuras da definição alegórica e da similitudo: – Os limites são pouco níti-dos.” E exemplifica com a parábola bíblica, que ora se formula como alego-ria21, ora como definição alegórica22 .

Assim entendida, a alegoria será focalizada a seguir na Crônicaem sua abrangência, resultando num discurso segundo, por assim dizer, quecorre paralelo aos fatos narrados, terminando por modificá-los e condensá-los na tensão Bem X Mal a que, em última instância, se reduz a históriamonumental da Revolução portuguesa de 1383-1385.

4.1. As preliminares revolucionárias

A alegoria Bem X Mal manifesta-se, de início, ligada à dicotomiaque lhe é correlata, Amor X Ódio, atribuindo-se a sentimentos humanos ascausas imediatas da Revolução. Tal dicotomia se estabelece do capítulo I aoXXIII, que corresponderiam à primeira grande sequência narrativa. E um dosprimeiros e mais significativos ornamentos que a veiculam, no discurso donarrador, é constituído por um admirável símile, que exprime o amor do povopelo Mestre de Avis, estabelecendo-se desde já o noivado da cidade-mulher,Lisboa, com o futuro rei D. João I:

Soarom as vozes do arroido pella çidade ouvimdo todos braadar quematavom o Meestre; e assi como viuva que rei nom tiinha, e como sse lheeste ficara em logo de marido, se moverom todos com maão armada,corremdo a pressa pera hu deziam que sse esto fazia, por lhe darem vida

21 Mateus 13, 24-40: “O Reino dos Céus é semelhante a um homem que semeou boa sementeem seu campo...” (BÍBLIA, 1981, p. 1300).22 João, 15, 1-2: “Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor...” (BÍBLIA, 1981, p. 1405).

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e escusar morte (LOPES, 1977, p. 21; sublinhamos).

O símile, vale lembrar com Lausberg (1982, p. 238), “consiste emque uma qualidade seja comum a várias (pelo menos duas) cousas”. Daí serLisboa, com a morte de D. Fernando, a ‘viúva de rei’, ficando-lhe o Mestre‘no lugar de marido’. Mas é na qualidade de metonímia dos seus habitantes –isto é, dos ‘vilãos’ – que a cidade assim se apresenta, unificando em si odesejo e a ação dos lisboetas, que armados se uniram para defender o líder.Este, apesar de construído pelos mentores do movimento, possuía a necessá-ria aceitação popular, até por ser filho de rei, do justiceiro D. Pedro – qualida-de imprescindível ao pretendente de tal ‘dama’.

Coloca-se, assim, a serviço da alegoria também a metonímia, queconsiste em pôr no lugar do verbum proprium outra palavra cuja significa-ção própria está em relação real (res consequens) com o conteúdo signifi-cativo ocasionalmente mentado. Portanto, não em uma relação comparati-va (similitudo) como na metáfora (LAUSBERG, 1976, v. II, p. 70-71).

E já pelos ornamentos analisados se percebe a valorização do povonos sucessos revolucionários. Adiante-se que a personificação de Lisboa comoviúva, através da similitudo, será desenvolvida na crônica, culminando com aladainha alegórica enunciada pela cidade com a provocação do narrador, queficticiamente a interroga nos capítulos CLX a CLXII, já na parte final da obra.E o seu ‘casamento’ com o Mestre termina por ser oficializado em Coimbra,onde é eleito rei o fundador da Dinastia de Avis.

O amor do povo para com D. João de Avis é correlato ao ódioque dedica àqueles que os líderes políticos apresentam como algozes: a Re-gente e o Conde de Andeiro. Ódio que tem antecedentes inclusive na desleal-dade destes para com o falecido rei, que traíram com o adultério. E desenca-deia-se a fúria popular contra as forças centralizadas no casal, que é designa-do pelo cronista, através da antonomásia, por suas características negativas:“Delles braadavom por lenha, e que vehesse lume pera poerem fogo aosPaaços, e queimar o treedor e a aleivosa” (LOPES, 1977, p. 22; sublinhamos).

A propósito do citado ornamento, por antonomásia entende-se umavariante da sinédoque, que, por sua vez, é considerada como a “metonímia derelação quantitativa entre a palavra empregada e a significação mentada”(LAUSBERG, 1976, v. II, p. 76). Acrescenta Lausberg que

na terminologia da retórica antiga designa-se por antonomásia apenas asubstituição de um nome próprio por uma perífrase ou apelativo (“tropoque está em vez de um nome”). O fato, porém, de que a substituição de

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um nome próprio por um apelativo é um fenômeno (species pro individuo)análogo à sinédoque (genus pro specie) levou, nos tempos modernos, G.J. Vossius a transpor a reversibilidade possível da sinédoque (species progenere) analogamente para a antonomásia (individuum pro specie), con-servando-lhe, contudo, o termo de antonomásia (LAUSBERG, 1982, p.153; sublinhamos).

O que importa salientar é que, através desse ornamento, substitu-indo-se a pessoa pelo seu atributo, a falsidade da Rainha viúva é realçada, emcontraposição à lealdade de Lisboa, a cidade também viúva.

Assassinado o traidor pelo Mestre, com a ajuda de Rui Pereira,lamenta o povo que o mesmo não tenha sido feito também com a ‘aleivosa’:“Oo que mall fez! pois que matou o treedor do Comde, que nom matou logoa alleivosa com elle...” (LOPES, 1977, p. 22; sublinhamos).

Mas esse ódio dos lisboetas pela Rainha é correspondido à alturapor ela e seu séquito. Assim é que, ao partirem de Lisboa para Alenquer,amaldiçoam a cidade: “que maao fogo a queimasse, e que aimda a visseestroida e arada toda a bois (LOPES, 1977, p. 33; sublinhamos). Da mesmaforma que, posteriormente, o faria o rei de Castela: “Oo Lixboa! Lixboa!tamta merçee me faça Deos que aimda te veja lavrada de ferros darados!”(LOPES, 1977, p. 276). Já agora a destruição da cidade se representa unica-mente pela consequência desse fato desejado – ou seja, pela metonímia: oefeito pela causa.

E se a cidade estabelece de saída uma relação amorosa para com oMestre, tal não acontece com Leonor Teles que, com a morte do conde deAndeiro, seu amante, passa a nutrir pelo assassino um mortal ódio. Amor eódio, os motores imediatos dos acontecimentos que se deflagram, exploradosàs últimas consequências pelos líderes políticos, são comparados pelo cronis-ta nos termos que seguem:

Nom tem ho odio menos semtido daver vimgamça daquell que desama,que o amor de trigosos pemssamentos, de çedo possuir quem muito de-seja; e assi como homde ha mui grãde amor se geeram desvairadoscuidados, por çedo percallçar a fim de seu desejo, assi o que tem rramcordalguua pessoa, nom çessa pemssar desvairados caminhos com queapague a sede da sua mortall sanha (LOPES, 1977, p. 38).

Partindo do geral para o particular, individualiza e especifica asrazões da “mortal sanha” da Regente, acentuando o lado vingativo das mu-lheres por um lado – a “voomtade femenina que geerallmente he muito

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desejador de vimgamça” –; e por outro, destacando a coragem da Rainha, o“gramdioso coraçom de que natureza lhe nom fora escassa”. Daí que elabusque de todos os modos a desforra, “per que do Meestre podesse avercomprida ememda” (LOPES, 1997, p. 38).

Justapondo o amor do povo ao ódio da Rainha pela mesma pessoa,o escritor só faz por realçá-los e aponta-se, assim, para a tensão estruturanteda narrativa, que se marca por dicotomias correlatas a Amor e Ódio, comoLealdade X Deslealdade, Verdade X Mentira, Justiça X Injustiça, Eros XThanatos, subordinadas todas ao princípio maniqueísta da irrefragável vitóriado Bem sobre o Mal.

Uma imagem relacionada ao fogo, elemento simbólico por exce-lência, é invocada pelo narrador para falar do desejo passional do povo em tero Mestre por líder: “ardiam todos com cobiiça de o averem por senhor”(LOPES, 1997, p. 37). E desse relacionamento amoroso dá conta, magistral-mente, o seguinte símile, que redunda numa imagem mítica de grande beleza:“quamtas vezes o Meestre cavallgava pella villa, era assi acompanhado docomuu poboo, como sse das maãos delle caissem tesouros que todosouvesse[m] dapanhar” (LOPES, 1977, p. 38). Tal imagem atribui feiçãosoteriológica ao Mestre e nos reporta à de Cristo nos Evangelhos: “E seguindooas gemtes com gramde prazer, huus lhe travavam da rredea da besta, outrosdas falldras da vestidura”. Esse ‘comum povo’ não apenas lhe implora aproteção, mas promete-lhe os haveres e a própria vida para que fique no reinocomo Regedor e Defensor. Quanto ao Mestre, limita-se a rir:

e braadando todos deziam altas vozes, que os nom quisesse desemparar,mas ficasse no rregno por senhor e regedor prometemdolhe cada huu dasrriquezas e averes que tiinham, offereçemdo os corpos aa morte por seuserviço; e elle olhavoos rriindo do que deziam; e assi chegavoom cõ ellataa homde o Meestre pousava, e desi tornavomsse (LOPES, 1977, p. 38).

A imagem resulta, pois, em simbologia messiânica. Por imagem,entenda-se o ornamento aparentado com a metáfora – “A imagem é igual-mente uma metáfora: entre uma e outra, a diferença é pequena”, já diziaAristóteles ([s.d.], p. 216). Há que se ressaltar a sua grande plasticidade. GérardGenette destaca a generalização do termo, que em sua origem se ligava àanalogia e até à mimese:

o emprego muitas vezes abusivo, em nosso vocabulário crítico, do termoimagem, usado para designar não somente as figuras por semelhança,mas qualquer espécie de figura ou anomalia semântica, apesar de a palavra

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conotar quase inevitavelmente por sua origem um efeito de analogia, tal-vez mesmo de mimese (GENETTE, 1975, p. 143-144).

Com relação ao deslocamento (também redutor) do sentido dapalavra ‘símbolo’, Genette apresenta importantes reflexões:

Como se sabe, o termo grego symbolon designa originariamente (…)uma relação metonímico-sinedóquica entre as partes, ou entre cada partee o conjunto, de um objeto cortado em duas partes para servir posterior-mente como signo de reconhecimento. Deixemos, porém, a etimologiaque logo somos tentados a invocar quando ela favorece nossa tese: arealidade é que o emprego do termo na língua francesa tem em vistaqualquer relação semiótica motivada (e mesmo não motivada, em mate-mática) – seja essa motivação de ordem analógica ou outra (GENETTE,1975, p. 143-144).

O que nos interessa é que Fernão Lopes utilizou conscientementeimagens e símbolos para representar a luta que se desencadearia a partir deemoções humanas contraditórias. Assim, conforme vimos, a alegoria Bem XMal se expressa inicialmente na tensão Amor/Ódio pelo Mestre por parte dasduas ‘mulheres’ que, como personagens romanescas, se defrontam: Lisboa eLeonor Teles. Ambas viúvas, enquanto aquela se faz ‘noiva’ do Mestre, esta,sua inimiga, o rejeita como pretendente. E a narrativa prosegue, a partir destasua tensão geradora.

4.2. A sequência das lutas

A segunda grande sequência que com base na causalidade dos fa-tos pode ser observada na crônica, abrangendo os capítulos XXIX a CL, tempor assunto as lutas que se desencadeiam entre as forças que se unem emtorno do Mestre de Avis contra as de Leonor Teles e, posteriormente, do rei deCastela. O ponto de convergência é a cidade de Lisboa e o seu cerco quetermina por motivo da peste que ataca o arraial inimigo. Vencido desta formao invasor, as lutas continuam, mas disseminadas pela sequência final – a daslouvações e recompensas dos heróis –, e como meio de assegurar a continui-dade da crônica, cuja segunda parte tratará igualmente da Revolução, centra-lizando-se na decisiva batalha de Aljubarrota.

Como foi visto, na primeira sequência os ornamentos do discursose subordinaram à tensão Amor/Ódio, endereçada ao líder revolucionário porduas personagens femininas: Lisboa, isto é, os seus vilões, e Leonor Teles, aRegente de direito.

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Nesta segunda sequência narrativa, a luta se deflagra totalmente.Vale ressaltar que, antes que se exteriorize, já existe no âmago dos pensamen-tos e sentimentos da Rainha: ao saber que os lisboetas tomaram o Mestre porRegedor e Defensor, e que ele já usava tal título em suas cartas, “outra novaguerra se geerou nas emtranhas della com mortaes cuidaçoões de lheempeeçer” (LOPES, 1977, p. 52). Dessa forma a ambivalência alegórica maisuma vez se configura, por meio da metáfora da ‘nova guerra’ gerada no seuíntimo, tomada do desejo de vingança contra o Mestre. Do que decorre que aslutas narradas figuram também na interioridade da pessoa, bem como entre pes-soas e entre forças naturais e sobrenaturais, o que redunda num entendimentomítico dos acontecimentos.

A profusão de ornamentos bíblico-litúrgicos enfatiza a visãoprovidencialista da História, nesta obra assumida pelo cronista. Antes defocalizá-los, convém mencionar os que se prendem à tradição clássica, cujamitologia se caracteriza pela personificação de sentimentos, configurada, noexemplo que segue, na personificação da inveja: “Segumdo emsina o lomgohuso, e a pratica disto nos faz muito certos, em nehuua parte tem a emvejatam gramde morada, como na corte dos Reis e Senhores (LOPES, 1977, p.90). Através dessa prosopopeia, evidentemente alegorizante, marca-se a mávontade do cronista para com os poderosos, os ‘grandes’, e, em decorrência,a sua simpatia para com os ‘pequenos’. Diga-se de passagem que aprosopopeia ou personificação – “figura de retórica que consiste em atri-buir vida, ou qualidades humanas, a seres inanimados, irracionais, ausen-tes, mortos ou abstratos” (MOISÉS, 2004, p, 374) – é um ornamento bastanteutilizado por Fernão Lopes, muito contribuindo para acentuar o caráter ale-górico, e mítico, da sua obra.

Dentro da linhagem clássica, também o amor, como o ódio e ainveja, fora personificado na sequência anterior:

Certo he que amtre as comdições que do amor escprevem, os que dellecompridamente fallarom e forom criados em sua corte, assi he que pormuito que emcobrir queira o que ama, nom sse pode tamto teer, que peralguus signaaes e fallas e outros demostradores geitos, nom de aemtemder aquell ardemte desejo que em sua vomtade comtinuadamentemora (LOPES, 1977, p. 6).

Portanto, a referência à ‘corte’ do Amor atribui a este um caráteralegorizante, semelhante ao que se observa na ‘morada’ da Inveja, constituin-do ambos reminiscências da Antiguidade utilizadas pelo cronista.

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Quanto à influência bíblico-litúrgica, que é a predominante, faz-senotar nos ornamentos retóricos a seguir focalizados, acentuando-se omaniqueísmo da obra, que se traduz na alegoria da vitória do Bem sobre oMal. A pouco e pouco a analogia entre a Revolução de Avis e a RevoluçãoCristã vai-se firmando, não fora ela, mesmo que ironicamente, considerada aRevolução dos ‘pequenos’ contra os ‘grandes’, àqueles pertencendo as bem-aventuranças bíblicas anunciadas por exemplo no Salmo 147-6 (BÍBLIA, 1981,p. 786) ou no evangelho de Lucas, 6-20 (BÍBLIA, 1981, p. 1352).

E um dos primeiros exemplos veiculadores de tal analogia é a se-guinte metáfora, designadora dos recentes aliados do Mestre: “eram ja doMeestre deçipullos escomdidos, teemdo outra creemça, mui contraira da pri-meira seemdo já da sua parte comtra ha Rainha” (LOPES, 1977, p. 70). Ametáfora dos ‘discípulos’, reforçada por ‘crença’, amplia os horizontes danarrativa, indicando ser D. João de Avis análogo a Jesus. Analogia que éreiterada pelas próprias vozes dos opositores, pelos ‘gramdes’ ao escarnece-rem dos ‘pequenos’, confiados estes na proteção do Mestre contra a sujeiçãoao rei de Castela: “Os gramdes aa primeira escarneçemdo dos pequenos,chamavõ-lhe poboo do Mexias de Lixboa, que cuidavom que os avia de rremiirda sogeiçõ delRei de Castella” (LOPES, 1977, p. 75; sublinhamos).

Tal alegoria é evidentemente irônica, e à ironia e outras facéciasdedicaremos todo um capítulo, motivo pelo qual não estabeleceremos poragora maiores considerações a respeito. Mas importa observar que, muitoembora sarcasticamente, também os ‘grandes’ consideraram D. João como oMessias, senhor dos pobres, fracos e oprimidos, como o seu paradigma bíbli-co. E que, por sua vez, são eles considerados traidores cismáticos pelos ‘pe-quenos’: “E os pequenos aos gramdes depois que cobrarom coraçom, e sejumtavom todos em huu, chamavomlhe treedores çismaticos, que tiinham daparte dos Castellaãos, por darem o rregno a cujo nom era” (LOPES, 1977, p.75; sublinhamos).

Através da dupla antonomásia, são indicados os dois rumos toma-dos pela Revolução: a defesa da Casa de Portugal e do Papa de Roma. Nãocombater o invasor castelhano significaria aceitar a perda da autonomia doreino português e o cisma da Igreja. Nem podemos nos esquecer que a Espanha,aliada da França, apoiava o Papa de Avinhão, ao passo que Portugal, com aInglaterra, o Papa de Roma. A Revolução portuguesa assume, pois, ares de‘guerra santa’, tendo, por isso mesmo, do seu lado – do lado dos “pequenospoboos”, que “chamavom naquell tempo arraya meuda” (LOPES, 1977, p.75) – a providência divina:

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Era maravilha de veer, que tamto esforço dava Deos nelles, e tamtacovardiçe nos outros, que os castellos que os amtiigos rreis per lomgostempos jazemdo sobrelles, com força darmas, nom podiam tomar; ospoboos meudos, mall armados e sem capitam, com os vemtres ao soll,amte de meo dia os filhavom por força (LOPES, 1977, p. 75-76).

Relacionado ao cerco de Lisboa pelo rei de Castela, o exemploque segue confronta o rei, senhor tão alto e poderoso, não com o Mestre deAvis, mas com a cidade, tão nobre: “Oo que fremosa cousa era de veer!Huu tam alto e poderoso senhor como he elRei de Castella, com tamtamultidom de gemtes assi per mar come per terra, postas em tam gramde eboa hordenamça, teer çercada tam nobre çidade” (LOPES, 1977, p. 198;sublinhamos).

Consubstancia-se, através do procedimento retórico que mais umavez personifica a cidade, o caráter do cerco e da revolução, a significar a medievalforça senhorial, castelã, tentando sufocar a força crescente dos ‘vilãos’. Destes,da sua disposição em defender Lisboa, dá conta o seguinte símile:

E quando os emmiigos os torvar queriam, eram postos em aquell cuida-do em que forõ os filhos de Isrraell, quamdo Rei Serges, filho de ReiDario, deu lecemça ao profeta Neemias, que rrefezesse os muros deJerusallem; que guerreados pellos vezinhos darredor, que os nom alças-sem, com huua maão poinham a pedra, e na outra tiinham a espadapera sse deffemder; e os Portugueeses fazemdo tall obra, tiinham asarmas jumto comssigo, com que sse deffemdiam dos emmiigos,quamdo sse trabalhavom de os embargar, que a nom fezesem (LOPES,1977, p. 198).

Comparam-se, assim, os lisboetas aos filhos de Israel, quando re-faziam os muros de Jerusalém no tempo do profeta Neemias. E ampliam-semais ainda os horizontes da Revolução, que assim se circuscreve na históriada cultura judaico-cristã, fazendo-se claro o aproveitamento da tradiçãoconcionatória por Fernão Lopes. Isto porque o desenvolvimento dos sermõeslança mão dessas correlações entre o Evangelho e o Velho Testamento; nocaso presente, trata-se do ‘Evangelho Português’ como o cronista o chamou,porta-voz da causa de Avis.

Voltando à narrativa, com o prolongamento do cerco aumenta aaflição dos sitiados diante da incerteza do seu destino; para representá-laFernão Lopes usa a metáfora do ‘grande manto’, que corrobora a imagemdas ‘trevas’ relativa a tempos tão escuros, vale dizer, de tamanho sofrimen-to: “porque nom soomente as leigas pessoas, mas aimda as rrelligiosas,

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todas eram postas so ho gramde manto de tall pessamento” (LOPES, 1977,p. 228; sublinhamos).

Importa frisar que os símiles constituem ornamentos dos mais abun-dantes na crônica, e são principalmente utilizados com a finalidade já citada –para a ampliação de uma história nacional à história da cultura judaico-cristã.Assim é que, para falar da escassez de alimentos na cidade sitiada e da impossi-bilidade de solucionar-se este problema com o trigo que, por via fluvial, entrava“de noite escusamente” (LOPES, 1977, p. 268), é invocado, através da compa-ração, o milagre evangélico da multiplicação dos pães, que seria o único meiode se acabar com a fome que assolava a população: “E posto que tall triiguoalguua ajuda fezesse, era tam pouco e tam rraramente, que ouvera mester de omultiplicar como fez Jhesu Christo aos paães, com que fartou os çimquo milhommees (LOPES, 1977, p. 268).

Também através do símile as lamentações dos lisboetas assumemproporções bíblicas. Invocando o auxílio divino devotamente nas missas epregações, e com os joelhos ‘beijando a terra’ – outra imagem sugestiva daligação dos portugueses com o seu solo –, diante do não atendimento de suaspreces desejavam a morte para findar o sofrimento, “como sse dissessem como Propheta: “Hora vehesse a morte amte do tempo, e a terra cobrisse nossasfaçes, pera nom veermos tamtos malles!” (LOPES, 1982, p. 241).

O lamento profético, tomado como exemplum, e no qual se pro-jeta o desalento dos sitiados, aparece no período citado como o seu clímax.Esse recurso retórico é também dos mais recorrentes nos sermões, constitu-indo um “domínio mais finito do símile e consiste num fato fixado histori-camente (ou mitologicamente, ou literariamente), o qual é posto em compa-ração com o pensamento propriamente dito” (LAUSBERG, 1982, p. 241).Tornado ainda mais impressivo pela frase exclamativa em que se encontra,ditos recursos – o exemplum e a exclamatio – traem a participação donarrador, o seu envolvimento com o que narra, a sua patente comoção dian-te dos sofrimentos focalizados. Assim é que, em tom solene, comovido ecomovente, o seu discurso dá conta das tribulações do cerco, dos desespe-rados rogos dos sitiados. A estes, o ‘divinal poderio’ termina por atender,sacralizando-se, pelo sofrimento, a causa dos ‘vilãos’:

amtre todallas cousas em que o devinall poderio veemos que maisrresplamdeçe, assi he naquellas que de todo pomto som desesperadas,(…) prougue aaquell Senhor que he Primçipe das hostes, e Vemçedordas batalhas que nom ouvesse hi outra lide nem pelleja senom a Sua; e

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hordenou que o angio da morte estemdesse mais a sua maão e percudisseasperamente a multidom daquell poboo (LOPES, 1977, p. 272).

A alegoria, aí, se desvela por inteiro: a luta se estabelece não maisentre os homens, mas entre Deus, personificação do Bem, e o arraial dosinimigos cismáticos. E a antonomásia com que o Senhor é denominado –‘Príncipe das hostes, e Vencedor das batalhas’ – aponta para a irreversibilidadeda vitória do Bem sobre o Mal.

O caráter da luta se reforça ainda mais através da personifiação damorte, soldado das hostes divinas. Como em guerreiros humanos, a ‘sanha’lhe comanda as ações contra os inimigos: “começou a triste morte de mostrarsua sanha mais asperamente cõtra os do arreall” – tanto os de baixa como osde grande condição – que “era estranha cousa de veer”, provocando “gramdeespamto em todos” (LOPES, 1977, p. 249).

E a arma que usa para exterminar os inimigos é a peste: “começoude sse atear a pestellemça tam bravamente em elles”, que “era espamto deveer aos que padeçiam, e estranho douvir aos que eram çercados (LOPES,1977, p. 272; sublinhamos). Observe-se o caráter de purificação pelo fogoindiciada pelo verbo atear, tão ao gosto da retórica clerical, bem como o caráterépico do qualificante modal bravamente, atribuído à ação da Providência.

O cerco castelhano, que durara quase cinco meses (LOPES, 1977,p. 276), é levantado quando a Rainha de Castela D. Beatriz, filha de D.Fernando de Portugal, é, também ela, acometida da peste. Se “prougue aDeos de cobrar saude”, no entanto “o angio da morte nom çessava depersseguir” os retirantes, que se encaminham para Torres Vedras, “morremdoalguus pello caminho, e nos logares hu depois chegou” (LOPES, 1977, p. 276).Configura-se, assim, a vitória em uma batalha cuja decisão é apresentada comosobrenatural, protegendo Deus aos portugueses sitiados e atacando aos invaso-res cismáticos, aos quais aderira a alta nobreza portuguesa reacionária.

É certo que lutas não decisivas já haviam ocorrido entre os homens,sobressaindo-se, dentre os partidários do Mestre, o valente e destemido RuiPereira, cuja morte em batalha, lamentada pelo cronista, é expressadaeufemisticamente pela metáfora “lançou aquell fidallgo o spiritu” (LOPES,1977, p. 231). Observe-se que, através do ornamento, compara-se o ato de mor-rer à ação de ‘lançar’, corriqueira nas atividades cavaleirescas. E aponta, ainda,para a crença na vida post-mortem, após a separação entre a carne e o espírito.

A heroicidade do guerreiro é firmada pela apóstrofe – que “consis-te em se dirigir a um outro que não o juiz” (QUINTILIANO, [s.d.], vol. VIII,

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p. 289) –, através da qual o narrador dirige-se ao morto em seu discurso,comparando-o em seguida a Jesus Cristo, na sua ação redentora: “Oo nobre evallemte barom e verdadeiro Portuguees!”, que, como falava o “comuu poobo”,“assi como Jhesu Christu morrera por salvar ho mundo todo, assi morreraRui Pereira por aazar salvaçom dos outros” (LOPES, 1977, p. 231). Note-seque mais uma vez o símile se constrói com um exemplum bíblico, evidencian-do-se a pouco e pouco a sua recorrência.

O entendimento de que a luta pela causa popular de Avis só pode-ria sair-se vitoriosa com a intervenção divina já o possuía Nun’Álvares Perei-ra. Este, o Galaaz fernãolopeano, ao falar da causa que abraçara a seus ho-mens, através do discurso direto que lhe atribui o autor, fá-lo como convém aum típico cavaleiro medieval, cuja grande coragem não se intimida diantedos perigos. Para tanto, utiliza-se da metáfora do profundíssimo e escuro poço,com a qual indica a dificuldade, a incerteza e os perigos da empresa, subordi-nando a vitória à vontade divina:

“(...) huu poço mui alto e mui profumdo cheo de gramde escoridoõe; ebem me diz a voomtade, que nom ha homem que em elle salte, que dellepossa escapar, salvo per gramde millagre, queremdoo Deos livrar dellepor sua merçee. E nom posso com meu coraçom, se nom todavia quesalte em elle” (LOPES, 1977, p. 64; aspeamos).

Tal discurso que, diga-se de passagem, não figura na Crônica doCondestável, fonte utilizada pelo cronista, é continuado no que segue, queesclarece o enigma a pedido dos escudeiros a quem o fidalgo se dirigiu paraque decidissem se continuariam ou não junto com ele na luta; para estes ametáfora é enigmática, necessitando ser decodificada:

NunAllvarez tornou estomçe a sua rrazom e disse: “amigos, ho poçomui alto e escuro que vejo ante meus olhos, he a gramde demanda que oMeestre dizem que quer começar por deffemssom destes rregnos, comtraelRei de Castella; e emtemdo que quem com elle em ella emtrar, que lhesera grave e mui periigoso, nem he aimda de cuidar que della escape,salvo per graça de Deos” (LOPES, 1977, p. 65; aspeamos).

Evidencia-se, deste modo, o distanciamento de uma linguagemconsiderada ‘comum’, denotativa, através do procedimento metafórico e dosornamentos em geral. E pode-se constatar, com Quintiliano ([s.d.], vol.VIII, p. 277), que o uso “muito prolongado da metáfora degenera em ale-gorias e enigmas”.

Mas a narrativa não apenas se amplia pela utilização de ornamen-tos que a circuscrevem na história judaico-cristã, fazendo da Revolução uma

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causa sacralizada. Reveste-se ela, ainda, de um caráter cosmogônico, onde aTerra e os elementos são invocados. A Terra é a mãe comum dos portuguesesentão divididos. E a metáfora que segue fala da unidade de origem e criação,lamentavelmente renegadas:

Oo que forte cousa e mortall guerra de veer, huus Portugueeses, quere-rem destruir os outros! e aquelles que huu vemtre geerou e huua terradeu criamento, desejarem de sse matar de voomtade, e esparger o samguede seus divedos e parentes! (LOPES, 1977, p. 118; sublinhamos)

As dificuldades enfrentadas pelo Mestre são metaforizadas em ‘tem-pestades’: “Mas estas e todallas cousas que emtemder podees, que lhe eramassaz de comtrayras, nom o mudavom porem de seu firme proposito comoaquellas que cahiam em huu gramde e alto coraçom no vemçido de taaestempestades (LOPES, 1977, p. 127; sublinhamos).

Da mesma forma, os padecimentos de Portugal, notadamente osde Lisboa, têm sua analogia nos elementos diluvianos: “Seemdo a tormentado rreino tam gramde como ouvistes, e Lixboa assi aflita com omdas de taaestempestades” (LOPES, 1977, p. 273; sublinhamos). É como se a Terra, comoGaia, tivesse contra si a Água e seus elementais, desencadeados pela força dopoder, pelo reacionário Cronos, devorador dos filhos temendo ser por elesdestronado.

A liderança de Lisboa se manifesta através da sinédoque: “Lixboaera o melhor logar de todos, e cabeça primcipall do rreino”. Vencendo-a,todo Portugal seria dominado: “de tall guisa tinham neella olho, quamtoslogares hi avia: que gaanhada Lixboa, todo Portugall era cobrado” (LOPES,1977, p. 145; sublinhamos).

Também o mundo animal é invocado, como se constata na metáfo-ra ‘manadas’, utilizada para representar o modo como as multidões vinhampara Lisboa, fugindo do Rei de Castela, tornando mais impressivo pelaexclamatio o quadro que se oferece ao nosso olhar:

Oo! que doorida cousa era desguardar, veer de dia e de noite, tamtoshomees e molheres viir em manadas pera a çidade com os filhos nosbraços e pella maão, e os pais cõ outros aos pescoços, e suas bestascarregadas dalfayas e cousas que trager podiam! (LOPES, 1977, p.121; sublinhamos).

É, assim, estabelecida a comparação entre seres humanos, que vêmrefugiar-se em Lisboa, e o gado, já que chegam em ‘manadas’. Tal analogia é,por sinal, recorrente. Manifesta-se em outro símile, utilizado para expressar a

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bravura dos portugueses em contraste com os castelhanos: “bravos tourosmetidos em corro, em companha de mansso gaado” (LOPES, 1977, p. 245;sublinhamos). A similitudo ‘curral’ também aparece no diálogo do Mestre deAvis com Nun’Álvares Pereira, para significar o passado cerco em que oMestre se encontrava “emçarrado em este curral” (LOPES, 1977, p. 281;sublinhamos), isto é, na cidade sitiada.

Também o futuro Condestável se utilizaria, através do discursoindireto do narrador, de uma metáfora que remete para o reino animal: com-para a pequenas e indefesas perdizes, destinadas à morte inglória, os portu-gueses que não se dispussessem a lutar contra o invasor castelhano:

que muito melhor era morrerem todos alli homrradamente arredor dasfalldras dhuu tam nobre Rei, que os amdar elle depois apanhãdo delogar em logar come perdigotos, e emforcallos huus e huus pellossovereiros (LOPES, 1977, p. 255).

A propósito, José Hermano Saraiva (1977, p. 522 e 544) consideraque a imagem seria alusiva à revolta camponesa do Alentejo, à punição dossublevados. Portanto, à luta de classes, muito mais que à resistência ao inva-sor, uma vez que não era costume cavaleiresco enforcar soldados vencidos.

Portanto, as lutas, através do ordo artificialis, se estabelecemmiticamente, não apenas entre os homens, elementos culturais, mas entreelementos naturais e sobrenaturais.

5. Da confirmatio do providencialismoOs capítulos CLI e seguintes tratam de confirmar a argumentação até

então desenvolvida e apresentar a recompensa dos atos praticados pelos ‘perso-nagens’. Mas alguns capítulos, paralelamente, constituem mini-sequências quedão continuidade às lutas, de menor porte, preparando a batalha decisiva que seráapresentada na segunda parte da Crônica de D. João I.

Como vimos, a narrativa ampliara, com o concurso da linguagemfigurada, a história de Portugal à do próprio Cristianismo. E veremos a confir-mação, a partir de agora, do que Luís de Sousa Rebelo (1983, p. 28), retoman-do a exegese de António José Saraiva (1950-1953, v. I, p. 470-484), considera o“plano providencial da obra”. Este seria um dos os três grandes planos que Rebeloobserva na crônica, que se junta ao “plano ético-político” – reconhecido por ele,pela primeira vez na fortuna crítica do cronista, e fundamentado no paradigma doRex justus – e ao “plano jurídico” – também já detectado por António José Sarai-va e onde se examina “a questão da hereditariedade do senhorio inerente ao pro-cesso de sucessão” (REBELO, 1983, p. 27-28).

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A confirmação do providencialismo observado se inicia pelocomovente sermão de um frade franciscano e se continua pelas alegoriasdo ‘Evangelho Português’ e da ladainha de Lisboa. Por confirmatio, en-tendiam os antigos a parte do discurso em que, através da argumentaçãomais incisiva, se acrescenta à causa “confiança e autoridade e fundamento”(CÍCERO, 1997, p. 27).

Diga-se de passagem que o fato – de ser um sermão franciscano oprimeiro recurso da confirmação do ‘plano providencial da obra’ – é condi-zente com a destacada atuação do clero menor nos feitos da Revolução. Bastalembrar que, graças à conclamação de um frade na cidade do Porto, tem fim odesvairo que acometera o povo, no início do movimento:

Preegou estomçe huu Frade, muito aproposito de sua emteençõ,comcludimdo que todos deviam de seer dhua voomtade e desejo, e nomamdar amtrelles desvairo nehuu; mas servir ho Meestre leallmente e deboom coraçom, come verdadeiros Portugueeses, (…); e dhi em deamtenehuu desacordo ouve amtre elles, mas todos dhuu tallamte se desposeroma teer e seguir a teemçom do Meestre (LOPES, 1977, p. 82).

O apoio dos franciscanos à causa também se observa no procedimen-to que tiveram esses religiosos durante o cerco de Lisboa. Então, empunharamarmas para defendê-la, desobedecendo ao próprio decreto papal, que lhes atribuíao papel da oração tão somente: “clerigos e frades, espeçialmente da Trindade,logo eram nos muros, com as melhores que aver podiam” (LOPES, 1977, p. 196).

4.3.1. O sermão de Frei Rodrigo de Sintra

Corroborando esse apoio do clero menor ao Mestre, após o le-vantamento do cerco, uma procissão de agradecimento a Deus é organiza-da. Nessa ocasião, o franciscano Frei Rodrigo de Sintra fez uma pregaçãoque, na percuciente observação de Luís de Sousa Rebelo, “é não só umaacção de graças pela vitória alcançada, como [também] uma lição do mé-todo exegético a aplicar na leitura de sucessos que se apresentam com umcaráter sobrenatural” (REBELO, 1983, p. 72).

E Fernão Lopes, conhecedor da necessidade de se demonstrar aautoridade e o fundamento sólido da argumentação que objetiva grangearconfiança, começa por destacar a competência do pregador23 , “huu gramde e

23 Sobre a importância da arte de pregar à época do cronista, como já observamos anterior-mente, D. João I teve como confessor a Frei Alfonso d’Alprãho, autor da “mais interessante dasobras desse gênero até agora descobertas na Península Ibérica”, segundo seu editor, Albert G.

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notavell preegador mui leterado em theolesia”; bem como a fundamentaçãobíblica do seu discurso: “fez huua sollemne e comprida preegaçom, muibastamemte teçida de textos das Samtas Escrituras, que a sseu proposito muisabedormente trouve” (LOPES, 1977, p. 277). O alcance da confiança doauditório seria, então, a consequência natural.

O cronista nos esclarece que dito sermão não poderia, por falta dedocumentação, ser reproduzido à risca. Daí, “se mais dizer nom pode, senomo modo que em ella levou segumdo muito breve alguus leixarom em escripto”(LOPES, 1977, p. 277). Mas nele podemos perceber alguns elementos bási-cos preceituados pelas artes praedicandi. Estas, lembramos, recomendavampara os sermões as seguintes partes: o tema (tirado do Evangelho); o protema(passagem correspondente do Velho Testamento); a divisão do tema (com aconcordância entre passagens do Novo e do Velho Testamento); a exposiçãodo tema (que podia lançar mão de recursos como a exegese dos quatro senti-dos dos textos escriturais – literal, alegórico, moral e anagógico –, como tam-bém de outras passagens bíblicas, de obras patrísticas, de definições eetimologias de nomes, bestiários, exemplos, etc.); e, por fim, o epílogo, geral-mente uma súplica ou louvor (REMA, 2000, p. LVII-LVIII).

O discurso reconstituído teve por tema a grande misericórdiade Deus para com os portugueses fiéis ao Mestre e à Igreja romana,diante do seu sofrimento extremo: “Ell tomou por tema em começo deseu sermom: Misericordiam fecit nobiscum, tornamdo a dizer per lin-guagem: “Gram misericordia fez o Senhor Deos com nosco” (LOPES,1977, p. 277; sublinhamos).

Em seguida, apresentou a declaração do tema: “declarou que cousaera misericordia e piedade, e como a misericordia proçedia dos naturaaesdereitos, a quall era rrellevar homem seu prouximo da miseria que padeçesse.e como toda perfeiçom da rrelligiam christãa estava em misericordia e pie-dade” (LOPES, 1977, p. 277).

Passou, então, ao assunto relacionado ao tema, criticando a preva-ricação do rei de Castela, que, quebrando os tratos estabelecidos, invadiuPortugal e submeteu Lisboa às agruras do cerco (LOPES, 1977, p. 277). Eque assim procedera por cobiça e mau conselho:

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Hauf (1979, p. 234). Esse autor franciscano foi, por conseguinte, não apenas contemporâneo docronista, mas como ele prestigiado na corte do fundador da Dinastia de Avis. E o contato entreambos, com a probabilidade de troca intelectual, seria algo perfeitamente possível.

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emtom trautou, que movera elRei de Castella leixar seus gramdes e po-derosos rreinos comtra o gram juramento dos trautos que prometera, eviinr nom dinamente ocupar o rreino, que lhe ainda [o dereito] nomcomçedia. Dizemdo que esto fezera huua nom discreta cobiiça, comdelleitaçom de sse asenhorar; desi maao comsselho dalguus seus priva-dos, com os quaaes depois de gramdes trabalhos e mortes de muitos,ficaria sem nenhuu fruito (LOPES, 1977, p. 277- 278).

Os artifícios do discurso direto e dos ornamentos são abundantes,a começar pela interpelação hiperbólica aos ouvintes, dos quais se exige,seguindo-se os ensinamentos de Jesus Cristo, não mentes abertas, mas cora-ções abertos, vale dizer, intuição e fé: “Paraae mentes e abrii os olhos dosvossos coraçõoes – disse ell”. E apela para a sua participação, convidando-os a visualizarem os acontecimentos como se estivessem presentes, do mes-mo modo como o cronista procedera anteriormente, como vimos: “esguardaae,como veherom dias em estes rreinos, e espeçiallmente sobresta çidade emque seus emmiigos a çercarom, e poserom em gramde amgustia” (LOPES,1977, p. 278; sublinhamos).

Esse convite à visualização já aponta para os numerosos recursosretóricos que utilizará para torná-la fácil, pois, como já observava Cícero(1997, p. 35), o adorno é não só “agradabilíssimo, como também sumamentenecessário”, particularmente quando se intenta comover o auditório. Nesseprocesso, destacava o uso da imagem, do símile e do exemplo (CÍCERO,1997, p. 35). Também a Retórica a Herênio (2005, p. 295) recomendava o usoda similitude “com o objetivo de colocar o caso diante dos olhos”, da mesmaforma que o exemplo e a imagem (RETÓRICA A HERÊNIO, 2005, p. 297).

A cidade, enquanto metonímia dos seus habitantes, é novamentepersonificada, a exemplo do que ocorrera no discurso do narrador, como vi-mos. E a personificação24 , como ensinava a Retórica a Herênio (2005, p.307), é “especialmente útil nas partes da ampliação e da comiseração”.

Se Lisboa fora posta por seus inimigos em grande sofrimento, damesma forma o foi, e mais completamente, o reino – “Portugall comtraPortugall pelleja” é a sinédoque que, ao mesmo tempo, sintetiza e amplia aação e divisão dos portugueses ao próprio reino, que acaba, como o atesta a

24 Lembramos que a personificação “consiste em configurar uma pessoa ausente como se esti-vesse presente, também em fazer falar uma coisa muda ou informe atribuindo-lhe ou forma ediscurso ou uma ação adequados a sua dignidade” (RETÓRICA A HERÊNIO, 2005, p. 307).

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prosopopeia, “quasi nuu e desemparado” (LOPES, 1977, p. 278). Arrema-tando e corroborando tais ornamentos, é invocada a metáfora das trevas, re-corrente na Bíblia, para qualificar a época: “toda maldade em este tempo degramdes treevas” (LOPES, 1977, p. 278).

Dentre as numerosas figuras e/ou tropos utilizados para aamplificatio, típica dos sermões e dos discursos epidíticos em geral, destaca-se no discurso do franciscano o exemplum bíblico. No entanto, as passagensdos Evangelhos que constituíam via de regra a prédica medieval (e não só),correlacionadas a episódios do Velho Testamento, são agora substituídas pe-los acontecimentos da história de Portugal. Daí serem comparadas as tribula-ções de Lisboa às das cidades de Samaria (pela fome sofrida), Jerusalém (cujosinimigos que a cercavam foram mortos por um anjo celestial) e Betúlia (pelasede) – todas tinham sido cercadas pelo inimigo e salvas por intervenção divina:

Emtom fallou per claros exemplos da gram çidade de Samaria que çercouBenadab, Rei de Siria, no tempo do propheta Heliseu; (…) Comtou daçidade de Jerusalem como fora çercada per Senacharib, Rei se Assur,seemdo estomçe Ezechias Rei della; (…) Disse mais do PrimçipeOlloffernes como çercara a çidade de Betulia (LOPES, 1977, p. 278;sublinhamos).

Repare-se que Lopes tem consciência desse recurso retórico sermuito frequentemente utilizado nos sermões25 , já que, como destacamos, obser-va haver Frei Rodrigo falado “per claros exemplos”. Importa salientar queLisboa, sozinha, padeceu os sofrimentos que acometeram as três cidadesbíblicas juntas. Isto não apenas realça-lhe a agonia, mas a importância damisericórdia alcançada.

Tais comparações, apresentadas reiteradamente no sermão, teriamproporcionado a este o alcance do patético e despertado nos ouvintes a como-ção, segundo atesta o cronista:

taaes semelhamças e comparaçoões, nom eram ouvidas, sem grandeschoros e sallucos, e espargimento de muitas lagrimas, de guisa quepareçia gram plamto feito por alguu senhor, alçamdo todos as maãos aoçeeo e damdo muitas graças ao Senhor Deos, que tam gramdemisericordia quisera fazer com elles (LOPES, 1977, p. 279).

25 Lembramos que tais exempla podem ser considerados como typus, recursos retóricos usa-dos “não só como meio de comprovação ou de ornatus, mas como relação de duas realidadeshistóricas, historicamente significativas” (LAUSBERG, 1982, p. 242).

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O franciscano se utilizara, pois, do “estilo sublime e os acentospróprios a comover os corações”, como diria Santo Agostinho (AGOSTINHO,2002, p. 245), levando os fiéis ao sentido pranto.

Confirmando o que já nos apresentara o discurso do narrador, asalvação da cidade, que já se encontrava na “postumeira parte de tamanhalastima e amgostura”, é, assim, mais uma vez, atribuída a Deus, denominadopor antonomásia “o mui alto Rei çellestriall, Padre de gramdes misericordiase Deos de toda comssolaçom”. Através da prosopopeia, a este, “no comssistorioda sua sabedoria”, é atribuída uma fala dirigida a Lisboa:

“Tempo he que ajamos compaixom com a çidade atribullada e nom aleixemos mais padeçer”, como se dissesse: “Oo çidade de Lixboa! ouvi-da he a tua oraçom! e porque te amei querote livrar (...) e a tua feuzadaqui em deamte, em mim sera” (LOPES, 1977, p. 279).

Está reconfirmada a alegoria, que se relaciona a uma visãoprovidencialista da História, assumida em vários passos da crônica pelo autor.

A metáfora do fogo, enquanto símbolo de sofrimento e purgação,fora utilizada pelo frade para a representação do sofrimento máximo da cida-de, tornada ainda mais impressiva pela adjetivação hiperbólica que a cerca:

“Hora” – disse ell – “seemdo esta çidade assi atribullada, e ardemdo ofogo da sua grã tribullaçom, na força da sua moor queemtura, que eraaficamento de gramde çerco, e sofreemça de muita fame, ho apagouDeos per seu partimento” (LOPES, 1977, p. 279).

Lembramos que o providencialismo que cerca D. João de Avisdesde a Crônica do seu pai, D. Pedro, também da autoria de Fernão Lopes, jáfora premonitoriamente indicado. Então, o rei D. Pedro narrara um sonho quetivera, no qual aparecia o reino português se incendiando e este seu filhoapagando tal fogo. Por tal motivo, decidiu outorgar-lhe o Mestrado de Avissendo ainda criança:

porque eu sonhava huua noite o mais estranho sonho que vos vistes: amim parecia em dormindo que eu viia todo Portugall arder em fogo deguisa que todo o rreino parecia huua fugueira; e estando assi espanta-do veendo tall cousa, viinha este meu filho Johanne com huua vara namaão e com ella apagava aquelle fogo todo (LOPES, 1966, p. 276).

Voltando ao sermão, outro exemplum bíblico compara a liberta-ção da cidade através da peste que assolou o arraial inimigo à dos judeus noEgito, sendo o endurecido Rei castelhano tido por similar ao Faraó (LOPES,1977, p. 279):

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Mas por quamto aquell gram Rei de Castella era emdurado em seucoraçom, a nom deçercar esta çidade por cousa que aviinr podesse,ataa que per fame ou força darmas a podesse tomar, nom quis Deos comell teer outro geito, por mostrar seu grãde poderio, salvo aquelle queteve com elRei Faraó, a que mamdou per tamtas vezes que leixasse hiro seu poboo sacrificar ao deserto (LOPES, 1977, p. 279).

Analogamente ao seu paradigma, D. João de Castela perde, porsua teimosia, desde homens de pequena condição aos grandes fidalgos que oacompanhavam, dele próximos como filhos: “começarom de morrer dosfidallgos e senhores que eram seus primogenitos”. Mas só desistiria do cercoao ver atingida pela doença a Rainha sua mulher, filha do falecido rei portu-guês (LOPES, 1977, p. 280):

ataa que o Deos percudio no seu primogenito filho que mais amava, quefoi a Rainha sua molher, aa quall naçerom duas pestellemçiaaespostemas; e entom seu duro coraçom com espamto da triste morte separtio e deçercou esta çidade, na quall cousa Deos com nosco fez muigramde misericordia (LOPES, 1977, p. 280).

Observa-se nesse trecho, inclusive, o uso da sinédoque, relativa aosopositores – o “duro coraçom” do Rei e a “triste morte”, instrumento de Deus.

O sermão compara, finalmente, a ação futura do rei castelhano, suainsistência em subjugar os portugueses ‘verdadeiros’ – isto é, os que não sebandearam para o lado do rei de Castela, partidário do Cisma religioso –, à teimo-sia do faraó em perseguir os judeus, pelo que teve as suas hostes destruídas: “eaconteçerlhe ha, disse ell, em sua tornada, aquello que acomteçeo a Farao como poboo dIsrrahell, que depois que os leixou hir pera o deserto, foi depos ellescom mui grande hoste” (LOPES, 1977, p. 280).

A derrota dos castelhanos, e da nobreza portuguesa reacionáriaque os acompanhava, não se explica racionalmente, mas pela fé, que, porisso, fora invocada ao início da pregação, e que agora novamente o é: “quererhome escodrinhar, como e por que esto se assi faz, nom he outra cousa,senom dar guerra e camssaço ao emtemdimento” (LOPES, 1977, p. 280). Eo sermão termina com a exortação à penitência e louvores pela piedade doSenhor, acrescida das apóstrofes costumeiras, que se estabelecem com o con-curso de ornamentos rituais, como as antonomásias “Primçipe dos reis daterra, doçe Sollaz dos atribullados”, etc. (LOPES, 1977, p. 280-281).

Portanto, o sermão confirma ser o povo de Lisboa eleito por Deuspara ser protegido, pelos seus muitos sofrimentos, pela suas fervorosas pre-ces e pela justiça da sua causa – tal seja, defender a terra portuguesa dos

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invasores cismáticos. E o caráter de ampliação do símile mais que nunca aí seconfigura, circunscrevendo, repita-se, a história de Portugal na história dacultura judaico-cristã. Assim, a revolução de Avis assume ares de guerra san-ta, unindo-se ao movimento que então dividia a Igreja.

Observe-se que as figuras e/ou tropos aventados, bem como certasnotações interpelativas do sermão – “como todos sabeis”, “como vistes”, etc.– são comuns ao discurso do narrador, estudado nos capítulos anteriores. Nãoapenas os aspectos formais, mas de conteúdo, que se resumem na visãoprovidencialista da História, falam da semelhança da visão que dos fatos têmo narrador e o clero menor.

5.2. O Mestre, o Evangelho Português e a ladainha dos heróis

O sermão de Frei Rodrigo de Sintra, como foi visto, já por si pode-ria constituir-se na confirmatio da intervenção divina a favor dos partidáriosdo Mestre, realçando-lhes os sofrimentos passados e comparando-os a exem-plos bíblicos, de modo a comover os ‘ouvintes’. Mas o narrador retoma odiscurso para reafirmar ser D. João de Avis não apenas o líder necessário emtorno do qual o povo, os donos de capital e alguns nobres se uniram e sefizeram capazes de tantos sacrifícios e de tamanha perseverança na defesa daterra. É também, passadas as agruras do cerco, com a retirada dos castelhanos,representado como o senhor magnífico, que regiamente recompensa seus sú-ditos, através da imagem de um rio corrente, limpo e fecundante:

Como nobre senhor de rreall coraçom, em que nom soomente avomdavalargueza de gramdes doões, mas aimda sse podia dell bem dizer que erahuu corremte rrio, de limpa e virtuosa graadez; com firme proposito,sem fazer tardamça, pos logo em sua voomtade, de rregar os coraçoõesdelles, das mui doçes aguas do agradeçimento (LOPES, 1977, p. 286;sublinhamos).

Ressalte-se o caráter consciente da linguagem figurada, uma vezque o escritor desvela o seu procedimento retórico ao afirmar que ‘se podia’do Mestre ‘bem dizer’. Dessa forma, o caráter abstrato e condensado da me-táfora se dilui, abeirando-se da comparação explícita. Aliás, a preferênciapela pormenorização e maior concreção do símile não é de estranhar em FernãoLopes, no gótico do seu estilo, que concretiza e humaniza as figuras, afastando-se do hieratismo a que as subordinava a arte românica.

Note-se, ainda, a simbologia da água, veiculada pela similitudo,que constitui domínio mais infinito do símile como ensina Lausberg (1982, p.

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238). Trata-se de “corremte rrio”, imagem que é continuada em “rregar (…)das mui doces aguas do agradeçimento”. O símbolo do rio, que se relacionaà vida, amplia a importância do Mestre e corrobora a relação erótica que entreele e seu povo se estabelecera. E a mitologia considera que “o simbolismo dorio, do escoamento das águas, é, ao mesmo tempo, o da posssibilidade univer-sal e o da passagem de formas, o da fertilidade, da morte e do recomeço”(CHEVALIER, GHERBRANT, 1973, vol. II, p. 331; traduzimos). Portanto,um símbolo adequado para o fundador da fecunda Dinastia de Avis.

O Mestre, através dessa imagem do rio, é comparado implicita-mente a Jesus Cristo, que, no discurso do Evangelista João (4, 10-14, 7, 37-38), se apresenta como a “fonte de água viva” (BÍBLIA, 1981, p. 1388, 1394).E o símile que segue confirma essa aproximação entre ambos, a partir daordem que deram aos seus discípulos, de pregar:

Porque assi como o Filho de Deos depois da morte que tomou por sal-var a humanall linhagem, mamdou pello mumdo os seus Apostollospreegar o evamgelho a toda creatura; por a quall rrazom som postos emcomeço da ladainha, nomeamdo primeiro sam Pedro; assi o Meestre,depois que sse despos a morrer se comprisse, por salvaçom da terra queseus avoos gaanharom, emviou NunAllvarez e seus companheiros preegarpello rreino ho evamgelho portuguees; o quall era que todos creessem etevessem firme ho Papa Urbano seer verdadeiro pastor da egreja, [forade cuja hobediencia nehu salvarse podia;] (LOPES, 1977, p. 299-300).

Se o Mestre de Avis é comparado a Jesus Cristo, os seus sequitárioso são aos apóstolos. A estes, caberia ‘pregar o Evangelho Português’, isto é,‘converter’ a todos para a causa do Mestre, aliada do combate ao cisma. Rei-tera-se, desse modo, o que o sermão de Frei Rodrigo já estabelecera: a subs-tituição do novo Testamento pelo novíssimo Evangelho Português, defensorda unidade da Igreja.

No que concerne à louvação dos heróis, utiliza-se o cronista de umaladainha alegórica, cujo primeiro homenageado é Nun’Álvares, considerado“gloria e louvor de todo seu linhagem, cuja claridade de bem servir, numca foieclipsi nem perdeo seu lume” (LOPES, 1977, p. 299). Tal imagem qualificaesse fidalgo pelo seu ‘claro’ comportamento. A propósito, observara João Men-des (1974, p. 119) que “para o cronista, tudo o que for excelente é justo eluminoso”. Daí que tenha se referido a Aristóteles, já o vimos, como ‘clarolume da filosofia’. E a Nun’Állvares, comparará, ao final da crônica, à ‘estrêla

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da manhã’ (LOPES, 1977, p. 373), pois como ela ‘foi claro em sua geração’26.No panegírico desse fidalgo ainda serão usados muitos outros termos que sealinham no campo da claridade, por exemplo ‘limpeza’, conforme veremos.

Ao Condestável, segundo o cronista na passagem a seguir transcrita,foram então concedidos poderes ilimitados por D. João de Avis, que sobre elefunda a sua ‘igreja’, a exemplo do que fizera Jesus Cristo com Pedro:

assi como o nosso salvador Jhesu Christo, sobre Pedro fumdou a suaegreja damdolhe poderio que aquell que legasse e assolvesse na terra,seria legado e assolto nos ceeos; assi o Meestre que sobre a bomdade eesforço de Nuno Allvarez fumdou a deffenssom daquella comarca, lhedeu livre e isemto poder (LOPES, 1977, p. 301).

Dessa comparação Lopes tem consciência, pois afirma, antes deapresentá-la: “podemos be dizer e apropriar”. Portanto, a utilização dos re-cursos retóricos é feita de forma planejada.

Após referir-se aos “Outros homrrados diçipullos” que se junta-ram ao Condestável “pera lhe ajudar a preegar este evamgelho portuguees,cuja perseveramça fez a elles e a seu linhagem sobir em gramde homrra eacreçemtamento” (LOPES, 1977, p. 301), são louvados os mártires – isto é,os moradores de Lisboa e os que ajudaram a defendê-la e à unidade da Igrejapor extensão. E o cronista explicita mais uma vez o procedimento retórico deque lança mão – tal seja, o símile: “Per semelhavell comparaçom podemosem outra hordem nomear por martires os moradores de Lixboa, e aquellesque com o Meestre seemdo çercado, esteverom em sua cõpanha” (LOPES,1977, p. 302; sublinhamos). Em seguida justifica o emprego de tal símile,comparando os ‘mártires’ de Lisboa aos fiéis perseguidos por não adoraremfalsos ídolos: “e esto com justa rrazom; porque nom soomente som martires,os que padeçem por nom adorar os idollos; mas aimda aquelles que doshereges sçismaticos som perseguidos por nom desemparar a verdade que tem”.E empreende a análise do significado da palavra, o que era praxe nos sermões –no caso, da palavra ‘mártir’, sinônimo de ‘testemunha’, para reiterar a justifica-tiva de sua atribuição aos partidários do Mestre: “e sse martir quer dizer teste-

26 “De modo que, para o cronista, tudo o que for excelente é justo e luminoso. Assim, desde omodo como define Aristóteles ‘aquele claro lume da filosofia’ e Nun’Álvares, que ‘como aestrela da manhã foi claro em sua geração’ e ‘cuja claridade de bem servir nunca foi eclipse,nem perdeu seu lume’ até às nódoas com que se puderam ‘prasmar’ grandes senhores, vaiuma série de vocábulos luminosos que fazem pendente a correspondência com os de sentidojurídico” (MENDES, 1974. p. 119).

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munha, bem testemunhas som os de Lixboa, dos que no çerco della morrerom,e de suas tribullaçõoes e padecimentos” (LOPES, 1977, p, 302).

E a alegoria atinge o seu ápice através da personificação máximade Lisboa: o cronista com ela estabelece um diálogo – processo que, de resto,também se desvela –, na qualidade de ‘esposa’ do Mestre, metáfora que, comovimos, desde o início da crônica se firmara: “E pore a ella como çidade vehuvade rei, teemdo emtom o Meestre por seu deffemssor e esposo, podemos fazerpregumta dizemdo (...)” (LOPES, 1977, p. 302; sublinhamos).

O tom utilizado é grandiloquente e solene como o das pregaçõessublimadoras27: “Oo çidade de Lixboa, famosa amtre as cidades, forte esteo ecollumpna que sostem todo Portugall! quegemdo he o teu esposo? e quaeesforom os martires que te acompanharõ em tua persseguiçom e doorido çerco?”(LOPES, 1977, p. 302).

A apóstrofe dirigida à cidade constitui um entrecruzamento desinédoque (parte pelo todo: “esteo e collumna”) e metáfora (‘Portugal’, se-melhante a ‘casa’). Iniciado o diálogo, atribui-se à cidade ‘viúva’ respostas àsperguntas do narrador sobre o seu novo ‘esposo’, bem como sobre seus ‘már-tires’. Disso resulta o retrato de D. João de Avis, pela primeira vez apresenta-do na crônica:

– E ella rrespomdemdo, pode dizer: “Se me pregumtaaes de que paremtesdescende? – delRei dom Affomsso o quarto he neto. A altura do seucorpo? – de boa e rrazoada gramdeza, e a composiçom dos membrosem bem hordenada igualldade com graçiosa e homrrada presemça. Hede gram coraçom e emgenho, nos feitos que a minha deffemssomperteecem, e todo meu bem e deffemdimento soomente he posto em elle”(LOPES, 1977, p. 302).

Importa destacar esse fato – de que somente agora, e pela cidade, éfeito o retrato do fundador da Dinastia de Avis, acentuando-se a sua descen-dência da Casa Real, o seu agradável aspecto físico e a sua coragem eengenhosidade. É, dessa forma, envolvido por um halo mítico que mais emais se acentua. E ainda se vê apontada uma concepção centralizadora, nãofeudal, da figura do rei.

27 A propósito dos estilos a serem utilizados nas pregações, vimos que Santo Agostinho reco-mendava que, para ensinar a doutrina, deve ser usado o estilo simples; para agradar, o estilotemperado; e para converter, o estilo sublime. O magistério de Cícero fica aí evidenciado,inclusive através da remissão que é feita à sua obra De oratore (29, 10s), onde se estipula:“Ser eloqüente é poder tratar assuntos menores em estilo simples; assuntos médios em estilotemperado e grandes assuntos em estilo sublime” (AGOSTINHO, 2002, p. 241).

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Quanto aos mártires, são de duas espécies, sendo focalizados pri-meiro os que abandonaram a causa de Avis, através de metáforas que confluempara a alegoria que se vem processando:

“veemdo a boa emteemçom e justa querella que eu tiinha em me traba-lhar de deffemder o rreino de seus tam mortaaes emmiigos, pubricamenteforom comvertidos, rreçebemdo tall creemça em seus coraçoões,chegamdosse a mim, por seer delles ajudada (...); mas depois a brevesdias, emduzidos de todo per spiritu de Sathanas, e maao comsselho defalssos Portugueeses, poucos e poucos leixarom seu boõ proposito,tornamdo a fazer seus sacrifíçios, e adorar os idollos em que amte criiam”(LOPES, 1977, p.302).

Mais uma vez se consubstancia a luta entre o Bem e o Mal, agorarelacionados a Deus e ao Diabo: ‘Satanás’, protótipo do Mal, tem por aliadosos ‘falsos portugueses’, que induzem os ‘convertidos’ à infidelidade. E o dis-curso assume o caráter de ladainha – que, como sabemos, é constituída porenumerações longas e monótonas, através de cantos ou preces, para honrar aDeus, à Virgem e aos santos. É interessante observar-se que as ladainhas “fo-ram instituídas pelo papa Gregório Magno (590-604) para serem entoadas nodia de S. Marcos (25 de abril) e logo antes da Quinta-Feira da Ascensão”(LARROUSSE, 1998, p. 3466). E essa ladainha enunciada por Lisboa aparecena crônica pouco antes da elevação do Mestre de Avis ao trono de Portugal.

A herança religiosa nesse discurso se estabelece também atravésde metáforas que se relacionam a vegetais28 , muito recorrentes na linguagembíblica. Através delas, os traidores de má linhagem são desculpados, o que nosremete à lição de Mateus, 7-17: “toda árvore boa dá bons frutos, mas a árvore mádá frutos ruins” (BÍBLIA, 1981, p. 1291). Da mesma forma, Lopes considera que“de alguus delles isto fazerem, sem damdo tall fruito, quaaes folhas mostravomsuas pallavras, nom som tamto de culpar, pois que eram exertos tortos, nadosdazambugeiro bravo” (LOPES, 1977, p. 302).

Quanto ao Mestre, é exaltado na sua excelência de plantador, decultivador, cuja generosidade é apregoada a modo de refutatio às acusasõesque a D. João de Avis pudessem ser feitas:

“E sse alguem disser, por todos escusar, que sse huus e os outros ouveromdo Meestre boom gasalhado mesturado com merçees, que muito cria os

28 Cf. a propósito, SARAIVA (1965, p. 51), que atribui às imagens vegetais a “sensibilidadede camponês” do autor, através das quais dá “um tom pouco cortesanesco” à sua obra.

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fidallgos coraçoões, que os tortos exertos e vergomteas novas, todosderom saboroso fruito; a esto posso be rrespomder, que tam graçiosogasalhado nem mais doçe companhia, podia seer achada em outro ho-mem” (LOPES, 1977, p. 303).

Assim, tanto os ‘enxertos tortos, nascidos de azambujeiro bravo’,quanto os ‘bacelos de boa casta’ – isto é, tanto os portugueses de má estirpequanto os de honrada ascendência – não achariam motivos no Mestre para otraírem, uma vez que este lhes teria sido agradável e generoso:

“mais pareçia que fora emlegido pera largo destribuidor dos bees e ter-ras do rreino, que pera seer deffemssor delle; (…) mas os exertos nom quiserompreder; e as vergomteas mudarom sua natureza, como acomteçe alguuasvegadas, que os baçellos de boa casta, tornamsse em outra muito comtraira,sem culpa daquelle que os plamtou” (LOPES, 1977, p. 303-304).

Mas Lisboa inclui também, em sua ladainha, nomes dos que abandona-ram o Mestre, segundo ela induzidos por Satanás ou por mal conselho de falsos portu-gueses (LOPES, 1977, p. 302). Atentando para a verossimilhança, uma justificativapolítica para essa inclusão se estabelece habilmente, aludindo-se à futura adesãodos mesmos à causa de Avis, à qual prestariam bons trabalhos os seus rebentos:

“E porem taaes martires como nomeei, nom quisera postos em meukallemdairo, se nom forom as boas promageens que de ssi lãçarom, de queo Meestre, meu Senhor, foi depois bem servido e aguardado, e o rregnodeffeso e emparado de seus emmiigos e comtrairos” (LOPES, 1977, p. 304).

Quanto aos mártires que nunca traíram a causa, dada a impossibi-lidade de nomeá-los todos, são reunidos num ‘pequeno feixe’, metáfora queretoma a já anteriormente formulada pelo cronista, que se colocara como“ajumtador em huu breve molho” na Crônica de D. Pedro (LOPES, 1966, p.87), como foi visto, relacionando o trabalho com a palavra ao trabalhocampesino. Desculpa-se, dessa forma, Lisboa pelas lacunas do seu discur-so, necessárias à boa ordenação, à clareza, avessa da prolixidade29:

“os quaaes se ja todos nom podem achar, por ficarem em memoria; eposto que sse todos achar podessem, fariam tam gram proçesso, quemais seria de sobejo que neçessario e bem hordenado; pore estes pou-cos que aqui som postos, nõ per hordem de fidallguia como ja dissemos,

29 O aprendizado da lição básica da retórica clássica é evidente, pois até a esquemática Retó-rica a Herênio (2005, p. 67) insistia em que “três coisas convêm à narração: que seja breve,clara e verossímil”.

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mas feito dalguus este pequeno feixe, como sse melhor apanhar poderom,fiquem por ssi e por todollos outros...” (LOPES, 1977, p. 304).

Os que abandonaram o partido do Mestre são, ainda, justificadospela máxima da queda do justo, que “cada dia caae sete vezes e outras tamtasse levamta” e pela “humanall fraqueza, e desvairamça dos tempos” (LOPES,1977, p. 306).

A diferença entre os portugueses leais e os desertores situa-se noâmbito das dicotomias claro/escuro, luz/trevas, verdade/mentira e, em últimainstância, da alegoria Bem/Mal. Assim, aqueles foram os que “com limpaemtemçom, sem dobreza de palavra”, permaneceram firmes diante das situa-ções ameaçadoras. Tais “verdadeiros Portugueeses e ao Meestre leaaes ser-vidores” foram, em consequência, regiamente recompensados, “postos emgramdes homrras e acreçemtamentos” (LOPES, 1977, p. 304).

Na enunciação do seu discurso, a cidade, confundido-se com onarrador e com o autor, não deixa sequer de prever o desagrado de alguns dosfuturos leitores por não se verem mencionados na ‘ladainha’. E o faz atravésde ornamentos já citados e comentados anteriormente – da mesma forma que“huu vemto nom pode comprazer a desvairados mareamtes” (LOPES. 1977,p. 306), também o cronista não poderia a todos agradar.

O narrador reassume o discurso para mais uma vez interpelar acidade, desta vez sobre os seus ‘confessores’:

comvem outra vez que pregumtemos aa çidade de Lixboa, dizemdo: “Oomui nobre çidade de Lixboa, vida e coraçom deste rreino, purgada detodas fezes no fogo da lealldade! (...) quaaes forom os comfessores quete fezerom clara amtre as gemtes, comfessamdo sempre tua temçom,sem desfallecer nelles tall fe?” (LOPES, 1977, p. 306; sublinhamos).

Repare-se na apóstrofe, à qual se aglutinam ornamentos dacontiguidade e da similaridade, valiosa sobretudo por indicar o caráter simbóli-co da purificação de Lisboa pelo fogo ‘da lealdade’. Atente-se, ainda, para ametáfora ‘clara’ (entre as gentes), que define a cidade pela ação dos seus con-fessores. Conforme já observamos a respeito de Nun’Álvares, do lado da clari-dade, da luz, se situam todos os que foram leais à causa do Mestre – é o quereitera o ornamento. E a causa do Mestre é também a da Igreja, no combate aoCisma, fato recorrente na obra, agora expresso pela resposta de Lisboa:

E ella rrespomdemdo a tall pregumta, pode dizer desta guisa: “Os quecomfessarom comigo, o Papa Urbano seer verdadeiro pastor da egreja,e o Meestre rregedor e deffemssor destes rreinos, foi a boa leall cidadedo Porto, que muito trabalhou comigo neeste tam forte negoçio,

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ministramdo gramdes ajudas e despesas, por mamteer a verdade que eudeffemdia. E com ella Coimbra, Evora e a Guarda, e Viseu, e Lamego, ea çidade de Sillves; e desi irmãamente com estas, no Algarve: CrastoMarim, Tavira, Faarom e os outros logares daquell rreino” (LOPES,1977, p. 306 -307; sublinhamos).

Novamente é explicitado o caráter de ficção, de construção do dis-curso, uma vez que Lisboa ‘pode dizer’, isto é, pode dar uma resposta como aque se lhe atribui a seguir, acerca dos confessores. Esses confessores da ‘reli-gião’ de Lisboa são as cidades nomeadas, que a ela se uniram na defesa doPapa de Roma e do Mestre. As demais a ‘desampararam’, o que se explicapor covardia, deslealdade ou sofrimento insuportável: “huas per fraqueza decoraçom, e dellas per nom leaaes Portugueeses, outras per força de tormen-to, que soportar nõ poderom”.

Lisboa ainda se queixa dos escárnios de que foi vítima por lutar contraa sujeição que os inimigos lhe queriam impor: “fazemdo alguuas de mim escarnho,e da teemçom que tomava, por sahir da sogeiçom, a que comtra rrazom nossosemmiigos per força nos obrigar queriam” (LOPES, 1977, p. 307).

A fala de Lisboa serve, ainda, de adiantamento a fatos que só pos-teriormente seriam acontecidos/narrados, tal seja, a eleição do Mestre paraRei de Portugal nas cortes de Coimbra:

“E eu assi vihuva e descomssolada, nom teemdo outro que me emparasse,senom o Meestre, meu Senhor e esposo, em que era minha gramde feuzae esperamça, jumtaromsse todas na cidade de Coimbra, e alli merreçeberom com elle de praça, damdomo por Rei e Senhor como depoisouvirees” (LOPES, 1977, p. 307; sublinhamos).

Portanto, a metáfora recorrente, ‘viúva’, pela qual, logo no inícioda Crônica, fora a cidade qualificada, é assumida por ela. E é noticiada aoficialização do seu ‘casamento’ com o Mestre, que viria coroar o ‘romance’entre eles estabelecido desde o assassínio do conde de Andeiro, o primeiro‘inimigo’ do qual a ‘dama’ tinha de ser liberta.

E as suas palavras finais são uma verdadeira profissão de fé dedicadaao novo rei e descendentes – enfim, à Dinastia de Avis, iniciada por D. João I:“O quall sempre emtemdo servir e amar, e seer muito obediemte, nõ soomentea ell, mas a todollos que del deçemderem, em quaaes quer cousas que me a suamercee mamdar, e meu boom desejo poder abramger” (LOPES, 1977, p. 307).

A alegoria litúrgica se vê, assim, completada, ocupando Lisboa, naqualidade de esposa do Mestre, a posição mesma da Igreja, esposa de JesusCristo. Isto equivale a dizer que uma nova ‘religião’ se instaurara – a dos

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vilãos, que vem substituir ou, pelo menos, rivalizar com a dos castelãos, apon-tando para o fim do direito feudal e sua estrutura sócioeconômica.

Ao dirigir-se a Coimbra, para a reunião das cortes que o elegeriamRei de Portugal, D. João de Avis é comparado ao patriarca Moisés, estenden-do-se ao Velho Testamento a similitudo, que até aqui o vinha comparando aJesus. É seguido por uma multidão de oprimidos, como o paradigma bíblicoao conduzir o seu povo pelo deserto: “Estomçe partio o Meestre com ellesassi como Moises quando trouve os filhos dIsraell pello deserto”. Mas onarrador não deixa de desmitificá-lo, falando da sua preferência por guerrei-ros que o ajudassem, ao invés dos numerosos miseráveis que o cercavam: “emais lhe prouguera com outros tantos homees darmas que o ajudassem, quelevar comssigo homees e molheres e parvoos, compridos de muita miseria”(LOPES, 1977, p. 339).

Se o Mestre é apresentado como homem pragmático, a Nun’Álvaresse atribui a virtude da piedade, que o faz levar à garupa da mula que cavalgavao pobre cego que aos brados implorava para ser levado com eles a fim de nãoficar à mercê dos castelhanos: “NunAllvarez quamdo esto ouvio, movido comdooo e piedade delle, mamdou que lho pos[e]ssem nas amcas da mulla emque já estava, e desta guisa foi com os outros” (LOPES, 1977, p. 340).

Mas a festiva recepção ao Mestre em Coimbra faz-se análoga àentrada triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém: “Os da çidade fezeromsse prestespera hir rreçeber o Meestre, a cleerezia em proçissom, e os leigos com seusjogos e trebelhos, e desi os fidallgos e Comçelhos, que hi eram, todosjumtamente de bestas como melhor podiam” (LOPES, 1977, p. 342).

As crianças, que vêm espontaneamente ao encontro do Mestre,remetem para outra passagem bíblica (Mateus, 13-14) em que Jesus fala:“Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, pois delas é o Reinodos Céus” (BÍBLIA, 1981, p. 1308). Então, D. João é por elas saudado comoRei de Portugal:

E em sse corregemdo huus e os outros começarom muitos cachopos desahir fora da çidade sem lho mamdamdo neguem, pello caminho per huviinham o Meestre, com cavallinhos de canas que cada huu fazia e nasmaãos canaveas com pemdoões, corremdo todos e braadamdo:“Portugall! Portugall! por elRei dom Joham! em boa hora venha onosso Rei!” e assi forom per mui gramde espaço acerca dhuua legoa(LOPES, 1977, p. 342).

Por esse motivo, são comparadas a profetas, através dos quaisDeus falava:

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O Meestre e NunAllvarez e muitos dos que hi viinham, maravilhavamssedesto muito, avemdoo por cousa estranha, e assi como milagre, dizemdoque Deos os movera a fazer aquello, e fallava per aquelles moços comeper bocas de profetas; e assi veherom antelle ata a çidade, omde foy comgramde homrra rreçebido (LOPES, 1977, p. 342).

Adiantam, assim, o que aconteceria na corte, que elegeria o novorei, graças sobretudo à hábil argumentação de um jurista, o Dr. João das Regras.Desse discurso forense trataremos a seu tempo.

5.3. Uma digressio significativa

Temos visto que os ornamentos da crônica sustentam a alegóricaluta do Bem contra o Mal e ampliam uma história nacional à do judaísmo-cristianismo. Mas o seu sentido mítico se corrobora ainda pelos ornamentosque estabelecem analogia entre o humano, o animal, o vegetal e o mineral, oque atribui à luta um caráter cosmogônico, onde se defrontam elementos nãoapenas culturais, mas naturais e sobrenaturais.

Nessa cosmogonia, a providência divina, colocando-se ao ladodos portugueses ‘verdadeiros’, dizima o arraial dos ‘cismáticos hereges’ –os castelhanos, apoiados pelos portugueses ‘desnaturados’. Os traidores domestre são apresentados como “exertos tortos, nados dazambugeiro bra-vo” (LOPES, 1977, p. 302), ou como “baçellos de boa casta”, que “mudaromsua natureza” (LOPES, 1977, p. 304). Os povos que acorreram a Lisboa,fugindo do invasor, são representados como “manadas” (LOPES, 1997, p.121) em direção ao curral; os soldados, na defesa das suas galés, são “bra-vos touros”, “em companha de mansso gaado” (LOPES, 1977, p. 245).Também com comparantes do mundo animal constrói-se o discuso irônicodo traidor Vasco Porcalho, cujos soldados são apresentados como “ovelhas”buscando a segurança do curral (LOPES, 1977, p. 176).

Os padecimentos de Lisboa são metaforizados em fogo, como tam-bém em tempestades, sendo grande a “tormenta do rreino” (LOPES, 1977, p.273-274) nesse “tempo de gramdes treevas” (LOPES, 1977, p. 278). E por umsímbolo aquático – o do rio – se firma o caráter soteriológico do Mestre de Avis.

Também ocorre o processo inverso, de antropomorfização de elemen-tos sobrenaturais e naturais. Isto se observa, por exemplo, e respectivamente, naintervenção providencial da peste, que ‘fere’ o arraial inimigo (LOPES, 1977,p. 249), e na descrição da tempestade ocorrida quando da expedição do Mestrenos arredores de Sintra intentando subjugá-la (LOPES, 1977, p. 310). Nesta sãopelo menos animizados os elementos, como veremos a seguir.

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Antes, vale destacar que essa descrição, por tal motivo – de in-cluir-se em uma cosmogonia –, não funciona como uma digressão pejorativa-mente entendida como divagação ou desvio ou subterfúgio; apenas à primei-ra vista pode parecer que o autor está se afastando do seu tema e incluindo“matéria estranha àquela tratada no momento” (MOISÉS, 2004, p.124). Mes-mo ao utilizar-se de recurso retórico tão difícil de manejar, que pode até “com-prometer a integridade da obra em que se insere” (MOISÉS, 2004, p. 125),Fernão Lopes atribui aos elementos em fúria a função de obstáculos a seremvencidos pelo Mestre, integrando-os, pois, na narrativa.

O trecho a seguir transcrito demonstra o movimento e a plasticidadede que é dotada a descrição, para o que concorre o recurso da personificaçãoda natureza:

naçerom no çeeo huas leves nuvees com escuro emvorilhamentomolhamdo a terra de ligeiros orvalhos; e creçemdo mais sua espessura,foi assi o aar cuberto de negridom chuivosa, que a noite mostrou suagramde tristeza, ante das horas perteeçemtes (LOPES, 1977, p. 310;sublinhamos).

Os montes também adquirem vida: não foram simplesmente la-vados pela chuva, mas “começarom de sse lavar com multidom de grossaschuivas, e deçemdo aas estradas, seu trigoso escorrimento dava gram torvaaos armados que queriam seguir seu caminho” – portanto, explica-se a funci-onalidade da descrição na narrativa: mostrar mais um perigoso obstáculo aoMestre e seus homens e, com isto, realçar-lhes a bravura e persistência. Talfunção é reiteradamente observada: “de guisa que dos pobres rregatos, huaadur morava hua simprez rrãa, se faziam tam gramdes rribeiros, que poinhamespanto de sse poder passar” (LOPES, 1977, p. 310; sublinhamos).

A magnífica descrição, que nos faz presenciar a terrível tormentacomo se estivéssemos diante de um quadro animado, vai num crescendo,inclusive ajuizando o cronista, também participante da cena que pinta, que“pareçia que naciam no çeeo novas maneiras de chuvas, pera sorverter omudo outra vez com mortall diluvio”. As pontes foram cobertas pelos riosque cresceram “fora de mesura”. A despeito do perigo, o Mestre “seguia seucaminho passo e passo, ca nom conviinha doutro geito, por os que hiam comelle de pee” (LOPES, 1977, p. 310; sublinhamos). Firma-se, desse modo, asua coragem e espírito de sacrifício pelos que o seguiam.

E o clímax é atingido nessa descrição animada, a modo de narra-ção de batalha deflagrada:

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seemdo ja as trevas de todo çarradas, com imfernal escuridom, naçeode sospeita huu pesado soom avomdoso de gramdes vemtos mesturadocom sarraçom e saraiva; e partimdosse o vemto, o çeeo se soltou todoem lampados e torvoões fora do rrazoado costume, come sse ciimtementefossem emviados, pera torvar o Meestre de sua hida (LOPES, 1977, p.310; sublinhamos).

As palavras finais desvelam a participação do cronista, a sua ava-liação do acontecimento, como se o temporal de proporções diluvianas tives-se sido propositalmente enviado para provar o Mestre. Nem teria sido gratui-to o emprego em passagens anteriores da crônica, como vimos, das metáforas‘tempestade’ e ‘tormenta’ para representar as dificuldades e sofrimentos porque passou Portugal, quando da Revolução, atribuindo à mesma um sentidocosmogônico e escatológico.

E o discurso acaba por se tornar mais uma vez autorreflexivo, con-fessando o autor a impossibilidade de traduzir na escrita acontecimento tãofenomenal: “Que compre sobresto fazer deteemça, pois de per escprito dizernom pode?” (LOPES, 1977, p. 310-311).

Ainda se acrescenta dimensão sobrenatural ao mesmo através dosímile, que compara os expedicionários a náufragos, a receberem avisosmilagrosos:

mas assi como aos mareantes, na postumeira desesperaçom da grã tor-menta, parecem nas arcas e cordas dos navios lumes e camdeas, que hechamado Corpo Samto, assi em esta danosa noite, apareçerom trescamdeas nas pomtas das lamças dalguus que eram açerca do Meestre(LOPES, 1977, p. 311).

E o caráter de oralidade do discurso se acentua, seja pela interpela-ção ao leitor/ouvinte, seja pela reiteração paralelística das orações coordena-das sindéticas aditivas:

Omde sabee, que estas forom as moores aguas que os homees numcavirom nem ouvirom fallar; e durarom ataa çerca da manhaã, himdossepouco e pouco como começarom (…) e nadou hua gallee na taraçena, eoutras muitas cousas que pareçeriam impossivees de creer (LOPES, 1977,p. 311; sublinhamos).

Inclusive se aponta haver sido oral, testemunhal, a fonte utilizada paraa reconstituição do acontecimento, o que fica patente nas palavras que encerramo capítulo (e a digressio): “e comtamdo cada huu os aqueeçimentos que lhesaveherom, era saborosa cousa douvir” (LOPES, 1977, p. 311; sublinhamos).

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Essa descrição vem, pois, corroborar o caráter mítico da narrativa,que antagoniza sentimentos humanos, seres humanos, elementos sobrenaturais enaturais (animais, vegetais e minerais). Concluímos, com Michel Zéraffa, que

o pensamento mítico (…) diviniza o humano e humaniza o divino. Faz deuma divindade o duplo superior do homem e, simetricamente, do animalou do vegeral os duplos inferiores do humano. Essa superioridade e essainferioridade são, todavia, não de valor, mas de nível, ou de reino(ZÉRAFFA, 1971, p. 94).

Portanto, é como se toda uma revolução cosmogônica se estivesseprocessando, ampliando-se, assim, pela visão mítica da história, os horizon-tes de um acontecimento nacional. E dos mitos, o mais invocado é o bíblico,que, como foi visto, cristianiza a revolução, sendo que, colocado a serviço daironia, como será visto mais adiante, põe em xeque o valor dos revolucionários,principalmente decantado na ‘ladainha dos heróis’30 .

Esclarecemos, com Mircea Eliade (1972, p. 8), para terminar, que“a palavra mito é hoje empregada tanto no sentido de ‘ficção’ ou ‘ilusão’, comono sentido – familiar sobretudo aos etnólogos, sociólogos e historiadores dereligiões – de ‘tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar’”. E,lembramos, a construção de Fernão Lopes utiliza-se do providencialismo comoum dos planos da sua obra, considerado mesmo o mais importante (REBELO,1983, p. 28), justificadores da ascenção da Dinastia de Avis.

6. Um discurso forense como peroratioJá no final da crônica, posteriormente ao discurso do franciscano,

à ordem de pregação do ‘Evangelho Português’ e à ladainha alegórica deLisboa, Fernão Lopes recria o discurso de “huu notavell barom, homem deperfeita autoridade, e comprido de sçiencia, mui grande leterado em lex,chamado doutor Joham das Regas, cuja sotilldade e clareza de bem fallaramtre os leterados, oje em dia he theuda em comta” (LOPES, 1977, p. 345).Dessa forma, através de várias perífrases, o cronista destaca a autoridade ecompetência do orador, acentuando tratar-se de um jurista respeitado peloseu saber e pela sua clara e inteligente eloquência.

Tal discurso, feito nas cortes de Coimbra em 1385, intentava con-seguir a adesão dos indecisos ou opositores à eleição do Mestre para o trono.Este, vale lembrar, fora alçado Regente de Portugal, em 16 de dezembro de1383, após a insurreição de 6 de dezembro, de forma inusitada à época: pri-

30 Cf., a propósito, MARTINS, Mário. “A ‘ladainha’ de Fernão Lopes” (1975, p. 251-254).

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meiramente pelo “poboo meudo” e depois, à sua instância, pelos burgueses,os “homrrados cidadãos” reunidos em conselho na cidade de Lisboa. A propó-sito, destaca Rebelo (1983, p. 53) que D. João apareceu “na cena política semgrandes possibilidades de êxito”, já que, além de eleito regente dessa formainusual, era filho bastardo e “clérigo, freire da Ordem de Avis, e, conseqüente-mente, incapacitado pela natureza dos seus votos religiosos para ascender aotrono, tomar o governo do reino e casar”.

No seu discurso, o jurista teve o “cuidado de mostrar per sçiemçiae rrazom a verdade e proveito de tam gram negoçio como este, e aos poboosficar depois emcarrego, escolher qualll determinaçom quisessem” (LOPES,1977, p. 345). Trata-se, pois, de um discurso judicial-deliberativo, já que tempor finalidades demonstrar a justiça e a utilidade da causa – a defesa da can-didatura do Regedor e Defensor do reino, filho ilegítimo de D. Pedro I, aotrono de Portugal através da apresentação de provas legais, da refutação dascontrovérsias e do enaltecimento das qualidades do Mestre de Avis.

A sua recriação por Fernão Lopes na crônica concorreindubitavelmente para justificar e legalizar a Dinastia de Avis, erigidasobre bases passíveis de questionamento: não apenas pela bastardia dofundador, mas por ter ele praticado perjúrio, ao aceitar a regência e trair avassalagem devida à rainha Leonor Teles. Esta fora oficialmente nomea-da Regente em outubro de 1383, em cumprimento da disposição testa-mentária do falecido rei. Mas importa salientar que este fato foi deixadode lado na argumentação do jurista, como veremos.

O discurso de João das Regras é ainda mais persuasivo por seapresentar estrategicamente na crônica, a modo de peroratio. Esta é a partefinal do discurso que, segundo a retórica aristotélica, constitui-se de quatropartes: “a primeira consiste em dispor bem o ouvinte em nosso favor e emdispô-lo mal para com o adversário; a segunda tem por fim amplificar ou atenuaro que se disse; a terceira, excitar as paixões no ouvinte; a quarta, proceder a umarecapitulação” (ARISTÓTELES) [s.d.], p. 268)31.

O cronista, antes de iniciar a reconstituição do discurso com basenas “migallas do que percallçar poderom em escprito” os que a intentaramrealizar antes dele, releva a impossibilidade de fazê-la de forma adequada àsua grandeza – o que é condizente com o tópico clássico da humilitas, tam-

31 Cícero (1997, p. 59) e a Retórica a Herênio (2005, p. 143) consideram três partes: enume-ração ou recapitulação, indignação ou amplificação e lamento ou comiseração; mas que con-

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bém recorrente na oratória clerical: “Mas quem poderia rreteer segundo alguusescprevem, a avomdamça de seu boom fallar, e come sse ouve tamsabedormente açerca de tam alto feito?” (LOPES, 1977, p. 345).

Os documentos conhecidos sobre a matéria são o Auto de eleiçãoou levantamento de D. João de Avis e o Contrato de casamento da filha de D.Fernando e Leonor Teles, D. Beatriz, com o rei de Castela. A propósito, GraçaLérias Pacheco (1998, p. 134)32 observou que, se cotejadas essas fontes, odiscurso apresentado por Lopes ganha em presentificação, dramaticidade,clareza e concisão a serviço da causa:

Fernão Lopes terá alinhavado os segmentos cruciais do documento [oAuto], inserindo entre eles frases de ligação, técnica em que ele de restoera exímio; noutros passos acrescentou termos e expressões novos, a fimde conferir mais força dramática ao discurso; noutros lados abreviou esuprimiu o que pudesse ser acessório ou pouco útil aos objetivos da suaescrita. Mas quanto ao tronco do discurso, manteve os tópicos da argu-mentação e o percurso que esta estabelece (PACHECO, 1998, p. 135).

Comparando-o ao depoimento de Diogo Lopes Pacheco, testemu-nha nos autos, percebeu que

o que foi registo do escrivão presente no plenário, na forma de discursoindirecto, foi transformado pelo cronista em testemunho vivo, sendotransferidas por vezes para o discurso referências que eram à partida extra-discursivas, isto é, que pertenciam à forma narrativa do relato do texto doauto e não à verbalização da testemunha (PACHECO, 1998, p. 135).

Portanto, mais do que reunir provas o cronista trabalha por torná-las verossímeis, dramáticas, e, assim, mais convincentes, com a finalidade denão apenas legitimar a candidatura do Mestre ao trono, inscrevendo seu dis-

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têm, obviamente, o que Aristóteles propõe como “dispor bem o ouvinte a nosso favor”, contrao adversário.32 Em sua dissertação de Mestrado intitulada “Estratégias persuasivas no discurso das perso-nagens nas crônicas de D. Fernando e de D. João I de Fernão Lopes”, orientada por TeresaAmado e defendida em 1998 na Universidade de Lisboa, observa ser tal discurso “compostopelo gênio de Fernão Lopes à custa de documentos que constam do Auto de Eleição, é bomexemplo da oratória forense da época, praticada nos tribunais, ou a propósito de disputasparticulares, ou da discussão e aplicação de leis e tratados” (PACHECO, 1998, p. 134). Econstrói-se a partir de um método analítico, dividindo a argumentação em partes compostastotal ou parcialmente de proposição / narração / argumento a contrário ou refutação / hipóteseconcessiva / confirmação (PACHECO, 1998, p. 143).

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curso no âmbito forense, mas demonstrar a sua honradez e utilidade para oReino, o que é objeto do discurso deliberativo.

6.1. A primeira parte

O jurista toma a palavra em três momentos durante as cortes de1383, que duraram vários dias. Inicia, no capítulo CLXXXIV da crônica(LOPES, p. 345), por apresentar a vacância do trono com a morte deD. Fernando e o tipo de causa de que tratará: trata-se de uma causa dubitativaa determinação do herdeiro – “alguus dizem que nom ha hi dereito herdeiro;outros afirmam que o teemos mui çerto, e por esto sooes e alguu desacordo”(LOPES, p. 345). Afirma pretender demonstrar “que nom soomente ha hi huuherdeiro, mas que teemos assaz delles, de que podemos tomar quall nosprouguer” (LOPES, 1977, p. 345). E, antecipando-se às refutações dos quepoderiam considerar inválida a eleição ou escolha do rei por tão poucos33,argumenta com a necessidade de se pôr fim à crise que dividia o reino. Apoia-se, ainda, num fato de direito: o próprio Papa pode ser eleito por um só cardeal,se os demais faltarem (LOPES, 1977, p. 346); e os que elegerão o novo reisão não apenas um, mas alguns representantes da nobreza e cinquenta procu-radores de vilas e cidades do reino de Portugal.

Portanto, há herdeiros – quatro – e a eleição é válida e necessá-ria; pois “estes rreinos som desemparados e am mester rei e deffemssor quesse por elles ponha” (LOPES, p. 346). Começa, então, por afastar o candi-dato mais fácil politicamente de ser eliminado: o rei de Castela, primocoirmão de D. Fernando e casado com a filha deste, por invadir Portugal edesrespeitar os tratos feitos. Em seguida, passa à eliminação dos outroscandidatos: no capítulo CLXXXIV, desacredita D. Beatriz por ser fruto decasamento ilegítimo, aventando até mesmo a hipótese, com base na opiniãopública, de ser ela filha de outro que não o rei, dado ser Leonor Teles sua mãeconsiderada adúltera – neste caso (que não é o único), o jurista utiliza-se aomesmo tempo de um lugar-comum e de um silogismo, já que lança mão deum raciocínio analógico, hipotético-dedutivo, como observou Pacheco (1998,p. 138-139). E culmina a eliminação de D. Beatriz e do seu marido apelandopara o fato de ser D. João de Castela um ‘herege’, por ser partidário do Papade Avinhão, Clemente VII, e traidor da promessa feita inclusive sobre osEvangelhos e sobre a hóstia durante o contrato nupcial. Aqui, lança mão de

33 Observa Rebelo (1983, p. 103), com base em Tejada Spínola, a relação com “o fundo do direitoromano justinianeu, pois aí se sustenta que o poder do mando está na coroa por entrega do povo”.

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argumentos não apenas racionais, mas também emotivos, intentando dessemodo convencer a assembléia a aderir à causa que defende.

Mesmo num discurso jurídico o maior apelo é o religioso. Atéporque, conforme Rebelo (1983, p. 27), o plano providencial é o que sustentadecisivamente os demais que compõem a crônica, tais sejam, o jurídico e oético-político. Esse apelo religioso no discurso de um jurista apresenta-serealçado pela impressividade dos ornamentos, que transformam enfaticamenteo Rei de Castela em herege, por ter aderido ao Cisma, colocando-se contra acúria romana:

Pois sse o Papa Urbano nosso pastor e Deos sobre a terra, nos mamdae amoesta que perssigamos todollos çismaticos imfiees assi como here-ges e membros talhados da egreja, avemdoos por escomungados damayor escomunhom; outorgamdonos por esto, aquelles privillegios eperdoamças, que outorga aos que vaão comtra os emmiigos da ffe, emajuda da Casa Samta; como tomaramos nos por nosso rei e senhor,quem foy e he tam claramente cõtra ele a cabeça de tamta malldade eçisma? (LOPES, 1977, p. 352; sublinhamos).

Observe-se que não apenas a metáfora destacada acima confereforte impressividade a esse discurso. Também concorrem para ela o argu-mento da excomunhão ou da recompensa pelo Papa Urbano VI e o uso dainterrogatio que atua diretamente sobre o ânimo do auditório.

Ainda lançando mão da linguagem figurada, compara o Reicismático ao mouro, reforçando o caráter de Guerra Santa atribuído à situa-ção que então se atravessava: aceitá-lo no trono de Portugal seria o mesmoque “querer tomar huu Mouro, ou outro alguu de fora de ffe, por seu rrei esenhor”. E isso implicaria na condenação pela Santa Sé, pois “dizem os dereitos,que em pecado e malldade de pagaão vive, quallquer que afirma que hechristaão, e aa See apostollica despreza obedeeçer” (LOPES, 1977, p. 352).

A unidade original da Igreja, fundada por Jesus Cristo, representa-sepela metáfora “vestidura do Senhor nom cosida” (LOPES, 1977, p. 352).Insiste-se, dessa forma, na necessidade de se combater o Cisma e os que a eleaderiram – os que querem ‘talhar’ a Igreja, metáfora que novamente se repete –,incluindo-se aqui o Rei de Castela.

Tal argumentação se conclui pelo artifício da exclamação retórica,através da qual o jurista, como que falando pela assembleia, condena o possívelherdeiro, denominado pela antonomásia reiterativa ‘cismático / infiel / herege’:

Pois avermos nos de tomar çismatico imfiell herege por nosso rei e se-

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nhor, que o dereito e nosso senhor o Papa deffemde! – Nom queira Deosque tall erro passe per nos; mas deffemdamos nossa terra, que justa-mente podemos fazer; e nehuu presuma per erronia e imdiscretacuidaçom, o comtrairo desto aver de seer feito (LOPES, 1977, p. 352;sublinhamos).

Firmam-se, assim, a união dos ideais de fidelidade ao Papa edefesa da terra portuguesa.

A seguir, nos capítulos CLXXXVI e CLXXXVII, o jurista investena bastardia dos filhos de Inês de Castro com D. Pedro (D. João e D. Dinis),meio-irmãos do rei falecido, argumentando contra a legitimidade da uniãoque os gerou: “Como o Doutor mostrou claramente que nuca foi certo quedona Enes fosse molher delRei dom Pedro” e “Dos impedimentos que o Dou-tor disse por que dona Enes nom podia seer molher delRei dom Pedro” sãoos títulos dos capítulos, que a modo de ementa dão conta do seu teor.

A estratégia do jurista foi, pois, a de começar pelos mais fáceis deserem eliminados – D. João de Castela e D. Beatriz –, passando em seguidaaos que possuíam mais adeptos entre a nobreza portuguesa – os filhos de Inêsde Castro, principalmente o mais velho, D. João –, demonstrando não apenasa sua bastardia, mas o fato de terem invadido Portugal nas hostes de Castela(LOPES, 1977, p. 359).

Antes de questionar-lhes os direitos, apela o orador para a imparciali-dade da Corte. E o faz através do símile, invocando aspectos religiosos: “por-que assi como o que sse quer salvar, nehuua cousa duvida na ffe que cree,assi a estes sem mais duvida que ponham, sempre som prestes a ouvir quessom lidemos herdeiros sem comtradiçom que em ello achem” (LOPES, 1977,p. 353). Sabia, portanto, que seria muito difícil convencer os partidários dosInfantes a mudarem de opinião.

E conclui esse primeiro momento da sua fala34 após nomear astestemunhas presentes que poderiam comprovar os seus argumentos, esclare-cendo qual o partido que defende – o do Mestre de Avis a quem não citanominalmente mas aos seus feitos na defesa do reino: “pois mui desaguisadofariamos nos, emleger por rei a quem sse del desnaturou, e veo comtra ellepera o destruir; e nom o dar a quem tamtos trabalhos e periigos de mortesoportou por o deffemder, e he prestes pera soportar” (LOPES, 1977, p. 359).

34 Usando terminologia específica, observou Pacheco (1998, p. 136-137) que o discurso dojurista começa por demonstrar “em traços preliminares as circunstâncias que rodeiam a cau-sa”, isto é, o status causae, “com base nos lugares genéricos de essência [haver herdeiros],quantidade-amplitude [haver vários herdeiros] e qualidade-competência [serem os herdeirosindignos e ilegais]”.

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Aqui se nota novamente a mesma estratégia que o cronista vem desenvol-vendo quanto à apresentação do Mestre: sempre através de outras personagens(Lisboa personificada, como vimos) ou, agora, de seus feitos. E fica evidencia-da a orientação de Aristóteles para a primeira parte da peroratio: “dispor bemo ouvinte em nosso favor” e “dispô-lo mal para com o adversário”(ARISTÓTELES, [s.d.], p. 268); no caso, estes são apresentados enquantoindignos e/ou ilegais.

Mas a afeição de alguns fidalgos pelos filhos de Inês de Castro eramuito forte, a começar por Martim Vasquez e seus irmãos, defensores doinfante D. João; e esse primeiro discurso do Dr. João das Regras não foisuficiente para conquistá-los à causa do Mestre, como nos informa o cronista:

pero porque a bemqueremça he muito firme na maginaçom daquell queama; e nom sse tira assi de ligeiro, por muitas rrazoões que lhe sobrellodigam, nom poderom todallas que avees ouvidas, arramcar da voomtadee desejo dalguus a primeira teemçom, que por parte dos Iffamtes tiinham(LOPES, 1977, p. 360).

O cronista gasta todo um capítulo para falar das desavenças entreesses fidalgos e Nun’Álvares. Este, juntamente com outros correligionári-os, defendia a candidatura do Mestre de Avis, que por sua vez tentava apa-ziguar os ânimos e incumbiu o Dr. João das Regras de resolver pelo direitoa situação.

6.2. A segunda parte

Diante da resistência dos defensores de D. João, filho de Inês deCastro, João das Regras retoma a palavra, instado pelo Mestre de Avis a porfim às desavenças. Então, lança mão de provas documentais incontestáveis,decisivas para convencer os presentes, das quais não se quisera utilizar ante-riormente “por husar de boa mesura”. E demonstra a bastardia dos Infantes.

O discurso se torna mais incisivo frente à teimosia dos partidáriosdos infantes, apesar das muitas provas apresentadas, invalidando-lhes o direitoao trono. Com o concurso da metáfora, mais uma vez se estabelece a analogiaentre política e religião: “estam aimda na septa que tiinham” (LOPES, 1977,p. 362). E o jurista começa por ameaçar aos opositores, comparando-os ahereges, caso não aceitassem a evidência dos documentos: “E quem das cousasque hora eu disser, nom for comtemto, e ficar em sua teemçom, bem mostraraque quer arremedar a perfia dos Judeus, que esperam o Messias que numca hade viir” (LOPES, 1977, p. 363). Essa ameaça, como se percebe, também sesitua no âmbito religioso, comparando-se aos judeus que não aceitaram a Jesus

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como o Messias os que teimassem em não aceitar os argumentos incontestáveisapresentados. Daí que também o discurso do jurista corrobore a alegoria que seestabelece na obra, ‘cristianizando’ a causa de Avis.

O discurso do jurista também desdenha, como o cronista o fizerano Prólogo, da ‘falsidade’ retórica. Defende-se da possível acusação de usar“pallavras afremosemtadas, que he ligeira cousa dachar aos homees; asquaaes eu buscara pera viinr a meu proposito, mas nom que fosse assi defeito” (LOPES, 1977, p. 364). Esse caráter autorreflexivo do seu discurso semostra igualmente reiterativo da posição do cronista no subprólogo que ante-cede à apresentação do retrato de Nun’Álvares (LOPES, 1977, p. 55), assu-mindo ambos metáforas relacionadas ao cultivo da terra para representar as-pectos de composição e finalidade do discurso. Se atrás nos deparamos com ametáfora do enxertador para representar a atividade do cronista, aqui retoma-se a metáfora do semeador, recorrente na Bíblia para representar o prega-dor35 , ao qual se compara o jurista: quisera evitar “semear pera sempre” asprovas do nascimento incestuoso dos Infantes.

Diga-se de passagem que uma da provas apresentadas – a cartacom que o Papa Inocêncio responde ao rei D. Pedro (LOPES, 1977, p. 366-368) – é ela própria eivada de torneios retóricos, de adjetivação floreada,revestindo diplomaticamente de um tom afetuoso a negação ao requerimentodo monarca; este, se deferido, lhe permitiria casar com a sua aparentada Inêsde Castro. Aí, no “rrool de purgaminho husado de velhice”, são atribuídos aoRei, pelo Papa, o qualificante metafórico “rreal clareza” – novamente o sig-nificado da claridade –; e também as muito usuais perífrases “filho muitoamado”, “rreal alteza”, etc., referindo-se, ainda, aos seus “homrrados e dis-cretos embaixadores”.

Neste segundo momento da argumentação de João das Regras, asprovas documentais são interligadas, transformando-se em verdadeirosentimemas comprobatórios de que nunca foi legitimado o casamento deD. Pedro com Inês de Castro: a carta de Afonso IV ao arcebispo de Braga paraque intercedesse junto ao Papa a fim de que este não autorizasse a união (capí-tulo CLXXXIX); a petição de D. Pedro ao Papa relativa ao consentimento

35 Cf. a parábola do semeador em Lucas, 8, 4-15: “ O semeador saiu a semear sua semente. (...)A semente é a palavra de Deus...” (BÍBLIA, 1981, p. 1354). A mesma parábola pode serencontrada em Mateus, 13, 4-23 e Marcos, 4, 3-20.

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desse casamento e à legitimação dos filhos resultantes dessa união; e a res-posta negativa deste (capítulo CXC)36 .

Conclui então o Dr. João das Regas, lamentando, como vimos, tersido necessário “pubricar de praça e semear pera sepre” (LOPES, 1977, p. 368)o incestuoso nascimento dos Infantes, filhos de parentes muito próximos e proi-bidos de casamento segundo o direito canônico. Dessa forma, também age con-soante ao estipulado por Aristóteles, com relação à segunda parte da peroratio,que “tem por fim amplificar ou atenuar o que se disse” (ARISTÓTELES, [s.d.],p. 268). No caso, amplificou e verticalizou a demonstração, com provas incon-testáveis37 . Como diria Cícero (1997, p. 60), este é o momento da indignação,de concitar ao ódio ou estabelecer grave ofensa a alguém ou algo; e funciona naperoratio como a confirmação na narratio, podendo dela usar os lugares.

6.3. A parte final

O Estagirita fala que, para finalizar o discurso, após “excitar as paixõesno ouvinte”, o orador deve “proceder a uma recapitulação” (ARISTÓTELES,[s.d.], p. 268). Dessa forma, vemos que, após ser estabelecida a concórdia entreos presentes, o jurista conclui o seu discurso, primeiramente retomando o esta-do da questão: a vacância do trono e a necessidade (LOPES, 1977, p. 368) ouutilidade e conveniência (LOPES, 1977, p. 369) da eleição de quem defenda oreino dos hereges e o governe – o que é próprio do discurso deliberativo. E emseguida passa a enumerar as qualidades que se requerem do candidato a ser

36 Pacheco (1998, p. 138) demonstra os raciocínios entimemáticos resultantes desses docu-mentos. Em síntese seriam: 1) se Afonso IV fez tal pedido ao Papa, é porque a união não eralegítima; 2) se D. Pedro pediu ao Papa a legitimação dos seus filhos com a Castro é porquenão eram legítimos; 3) se o Papa negou, então a união nunca foi legitimada.37 Pacheco (1998, p. 139-140) destaca outros elementos retóricos, que se colocam a serviço daargumentação, além dos que apontamos – lugares de pessoa e de tempo/lugar, provas docu-mentais, entimemas, lugares-comuns, testemunhos, comparação do rei de Castela a um mouroou algum outro “de fora da fé”, que o torna indigno de ser tomado por rei; ou descrição decircunstâncias, do casamento de D. Beatriz, quando os noivos juraram sobre a hóstia a obedi-ência ao tratado. São eles: ilustrações, como a do argumento da Rainha Leonor Teles a D.Fernando, para não considerar como seu o filho da mulher casada com quem dormira poucasvezes; contradições relativas ao casamento de D. Pedro e Inês, levantadas por testemunhaspresentes e que redundam em controvérsia acerca da sua publicação posterior à morte de D.Afonso; hipóteses, com “a refutação das teses contrárias e a concessão de uma validade irreala essas mesmas teses, com vista à sua aniquilação total por intermédio do argumento maisforte, que é sempre deixado para último lugar” (PACHECO, 1998, p. 140); ironia, diante doesquecimento da data de seu casamento por D. Pedro.

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eleito, para proveito do reino – o que é próprio também do discurso judiciário eque torna justa a eleição (LOPES, 1977, p. 369).

Demonstra, então, ser o Mestre de Avis possuidor de todas asqualidades que se exige de um rei: ser de linhagem excelsa (é filho de rei);possuir “gram coraçom” (demonstrou coragem ao enfrentar tantos inimi-gos poderosos); ter amor aos súditos (não aceitou as ofertas do rei de Castela,quando do cerco de Lisboa sacrificou-se para não deixar os seus súditos empoder dos inimigos, etc.); ser bondoso (protegeu os judeus dos saques elibertou os cativos); ser devoto (dava esmolas e deu crédito à profecia dosanto emparedado, Frei João da Barroca). Além de tudo, segundo ajuizamentopróprio do jurista, ninguém mais competente que D. João de Avis para“hordenar tam discretamente todallas cousas que a deffemssom deste rreinoperteeçem” (LOPES, 1977, p. 369).

Portanto, demonstra ser não apenas necessária e útil ou conveni-ente a sua elevação, mas também justa – o que é próprio da conquestio, desti-nada a captar a misericórdia dos juízes no final do discurso (CÍCERO, 1997,p. 63). Mas a isto será ainda acrescentado o argumento relativo ao Cisma, aomal que poderia advir ao reino se caísse nas mãos dos cismáticos. Do quedecorre a concitação do orador aos ouvintes, no sentido de elegerem rei aoMestre de Avis, desvelando-se a influência da prédica clerical também nodiscurso forense reconstituído:

E por tamto pois que he serviço de Deos, e proll e homra da SamtaEgreja, pera nom seermos destruidos de nossos emmigos, e ella viinr emmaãos de çismaticos, acordemos em huu amor e proposito; e em nomede Deos que he Samta Trimdade, Padre, e Filho e Spiritu Samto, no-meemos e escolhamos na melhor maneira que poder seer, este domJoham, filho delRei dom Pedro,(...) e mãde fazer no rregimento edeffemssom delles, todallas cousas que perteeçem ao offiçio de rei,segumdo costumarom de fazer aquelles que o ata aqui forom (LOPES,1977, p. 370).

Portanto, a modo de exhortatio, num discurso em que foram de-cisivas as provas documentais, firma-se o argumento eclesial, tornando odiscurso do jurista similar ao dos clérigos através das palavras utilizadas –‘em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo’38.

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38 Como bem concluíra Pacheco (1998, p. 142), os argumentos utilizados “são de ordemhumana e temporal e reportam-se a alguns lugares específicos como facere/pati/habere (o queo Mestre faz, o que suportou, as qualidades que tem), e são coroados por um último, o argu-

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Confirma-se, portanto, que o discurso do jurista tem a função deperoração na crônica, retomando em síntese os seus pontos mais significati-vos39. E apresenta-se herdeiro da retórica clássica, principalmente na concep-ção das partes do discurso, da utilização de provas técnicas – exemplos eentimemas – e não técnicas – dentre estas, os testemunhos e os documentosescritos – e dos lugares adequados à ratiotinatio. Como também da arte depregar medieval, em seus aspectos doutrinários e retóricos.

7. O panegírico do CondestávelSe D. João de Avis é recompensado com a coroa, Nun’Alvarez é

por ele feito Condestável, sendo que a este, e não ao novo Rei, é dedicado oúltimo capítulo da crônica, que lhe tece o panegírico. Como vimos, já mere-cera do cronista, em capítulos situados no início da narrativa, uma apresentaçãode sua ascendência, formação, costumes virtuosos e feitos cavaleirescos, demodo a aproximá-lo dos santos dos hagiolários. Ao passo que o Mestre só pelosdiscursos posteriores de Lisboa e do jurista teria o seu retrato apresentado.

7.1. O santo cavaleiro

No capítulo XXXI e seguintes temos esses primeiros dados sobrea vida de Nun’Álvares, que “per pelleja que numca çessa, nom ssem gramdeforça e rresistemçia sobjugou de tall guisa os vicios carnaaes, que cheo defruito de gramde proveito, o nom podia nehuu prasmar de mimgua algua quenotavell fosse” (LOPES, 1977, p. 55; sublinhamos). Portanto, vemos que aconcepção que aí se apresenta é a da santificação como um processo, uma‘aventura pessoal’, como diria Vauchez (1989, p. 219). Este é um modelo desantidade surgido após as mudanças socioculturais, um verdadeirorenascimento, do século XII; então, o ascetismo é substituído pelo apostolado,

mento espiritual. (...) Neste momento, (...), tece-se um apelo ao auditório através da exhortatio(“acordemos...”), depois de ter sido feita a conquestio, isto é, o resumo das qualidades docandidato que o orador defende, em que se ressalvam novamente os elementos já abordadosno início, como a qualidade, dada pelos adjetivos e substantivos abstractos, e competênciaque se ressalva pela adequação da escolha em função da inaptidão ou desadequação total dosrestantes candidatos.”39 Nas palavras de Pacheco (1998, p. 143), “o orador orienta o seu discurso em função de umasérie de eventos e tópicos que correspondem exactamente àqueles sobre os quais o narradorse deteve ao longo da história: ascendência real do Mestre, exposição ao perigo pela causaabraçada, fidelidade e perseverança a serviço da Casa de Portugal, proteção aos mais fracos,devoção, religiosidade”.

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inspirado em Cristo e no cristianismo dos primórdios. Valoriza-se não maistão somente o desapego aos bens materiais, mas o trabalho piedoso e a divul-gação dos ensinamentos cristãos junto à comunidade laica40. Só posterior-mente o fidalgo terminaria por optar pela vida asceta.

Alguns dos lugares retóricos mais estáveis nas hagiografias são aafirmação da verdade, da humildade do autor no reconhecimento das suaslimitações para dar conta de tão grandioso assunto e da necessidade de síntese41.Desse modo procede o cronista, que justifica a impossibilidade de “digna-mente comtar os louvores deste virtuoso barom” (LOPES, 1977, p. 55) atépelo pouco espaço que dispõe para fazê-lo na crônica; e, ainda, a dificuldadede reconstituição dos fatos, uma vez que já se encontravam mortos o fidalgoe seus companheiros, que poderiam servir de testemunhas – isto porqueNun’Álvares faleceu em 1431, dez anos antes da escrita da crônica.

Após retomar o tópico da impossibilidade de a todos agradar coma sua escrita, afirma a sua proposta: “sob huua brevidade de curto estillo”“seguir seus exçellemtes autos” para “espertar a fazer semelhamtes” (LOPES,1977, p. 56) – portanto, apresentará uma síntese dos grandes feitos do fidalgopara servir de exemplo aos leitores ou ouvintes.

Como nas hagiografias42 , que mostram procederem os santos defamílias virtuosas, a exemplo do próprio Jesus na Bíblia, do pai de Nun’Álvaresé destacada a virtude da generosidade, da liberalidade, da “graadeza”; já asqualidades que identificam sua mãe são a castidade, a frugalidade, a abstinên-cia e a caridade (LOPES, 1977, p. 55).

Ao serem referidas a sua formação e virtudes cavaleirescas, é indi-cado o seu modelo: Galaaz, o principal cavaleiro da Demanda do Santo Graal,

40 As lições de Vauchez (1995 e 1989) são bastante esclarecedoras do processo de transforma-ção dos ideais de espiritualidade e, por extensão, das concepções de santidade e da própriahagiografia durante a Idade Média.41 Sobre esses lugares retóricos comuns nas hagiografias, cf. Aires Nascimento (1993, p. 307):“o tópico do protesto de verdade, tanto por conhecimento pessoal como por indagação detestemunhos, e bem assim, como forma de encarecimento; o tópico da humilitas ou inadequaçãodas qualidades literárias para matéria tão elevada; ou também o tópico da brevitas, contençãoda narrativa perante a grandiosidade ou abundância de material”.42 O termo hagiografia provém do grego hagio (=santo) + grafia (=escrita) e é geralmenteempregado para designar obras sobre santos com finalidades religiosas. A sua origem remon-ta aos documentos oficiais do Império Romano, aos processos judiciais referentes aos martí-rios de cristãos nos primeiros séculos do Cristianismo. E também a registros testemunhais dosque então presenciaram ou ouviram falar de tais suplícios, aos quais se acrescentariam maistarde o panegírico litúrgico e o convencionalismo que caracterizou o gênero. As hagiografiasencontraram na ‘teocêntrica’ Idade Média o solo propício para o seu desenvolvimento.

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em quem foi inatacável a virtude da castidade43 : “per virtude de virgiindade”“acabara gramdes e notavees feitos, que outros acabar nom podiam” (LOPES,1977, p. 60). Esta a virtude que o fidalgo português desejara manter, igualan-do-se ao seu paradigma. Mas por obediência ao pai, termina se casando.

Outras qualidades lhe são atribuídas, como a perfeição em todas asatividades cavaleirescas, a discrição e temperança – era “de pouca e bramdapallavra” –, a generosidade, a amabilidade, a ausência de rancor ou ódio, ahonestidade, o temor a Deus, a prática constante da religiosidade. Para acen-tuar-lhe a coragem e/ou destemor e a confiança na proteção divina, o cronistanarra um episódio no qual o jovem fidalgo dirige-se aos seus companheiros,utilizando-se da metáfora do poço muito escuro e profundo, a que já nosreferimos anteriormente, para representar a difícil luta que teriam de travarapoiando ao Mestre, só possível de ser vencida “queremdoo Deos livrar dellepor sua mercee” (LOPES, 1977, p. 64). A sua piedade se mostra, por exem-plo, na passagem em que a comitiva do Mestre se encaminha para Coimbra,onde se reuniriam as Cortes para elegerem o novo rei de Portugal, eNun’Álvares atende aos brados de um pobre cego, levando-o junto a si nagarupa da sua alimária: “movido com doo e piedade delle, mandou que lhoposessm nas amcas da mulla em que ja estava, e desta guisa foi com osoutros” (LOPES, 1977, p. 340).

Como dos santos nas hagiografias, a exemplaridade do fidalgo seapresenta, pois, como modelo a ser seguido. Assemelha-se àquele ideal decavaleiro que pode ser conferido, por exemplo, no Livro da Ordem da Cavala-ria, de Ramon Llull44 (2000), escrito provavelmente no final do século XIII.

Aí se estabelece a necessidade de serem cultivadas pelo cavaleiro asvirtudes e os bons costumes. Essas virtudes são as três teologais – fé, esperançae caridade – e as quatro cardeais – justiça, prudência, fortaleza e temperança(LULL, 2000, p. 89). A fé estaria na base de muitas outras virtudes, pois atra-vés dela “o homem tem esperança, caridade, lealdade, e é servidor da verda-de” (LULL, 2000, p. 89); esperança na ajuda divina, caridade fundada noamor a Deus e ao próximo. Sem a justiça não poderia existir a Ordem de

43 Basta recordarmos, como exemplo, o modo como Galaaz resiste à tentação da filha do rei Brutus; esta, apaixonando-se à primeira vista pelo cavaleiro, suicida-se diante da sua recusaem possuí-la (DEMANDA, 1995, p. 94) .44 Ramon Llull nasceu em Palma de Maiorca, por volta de 1232, vindo a falecer provavelmen-te em Túnis, norte da África, em 1316 (COSTA, 2000, p. XV-XXI). O tratado a que nosreferimos teria sido escrito entre os anos de 1279-1283, em catalão.

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Cavalaria; a prudência consiste na sabedoria de escolher “ser amante do beme inimigo do mal” (LLUL, 2000, p. 93); a fortaleza, no combate sem tréguasaos sete pecados capitais – gula, luxúria, avareza, preguiça, acídia, soberba,inveja e ira; e a temperança, que é a virtude do justo meio, do equilíbrio entreo excesso e a falta.

Entre os costumes recomendados para o cavaleiro estão: assistirmissa; cultuar, temer e pregar a Deus; usar da arte de maneira apropriada aoofício, sem acreditar em augúrios e presságios; usar de razão e de discrição;amar o bem comum; falar e vestir-se bem, ter boas armas e casa condizentecom o seu estado, por serem coisas que honram a Cavalaria; possuir a amiza-de de homens bons, “lealdade, verdade, ardor, verdadeira largueza, honesti-dade, humildade, piedade e as outras coisas semelhantes a estas” (LLUL,2000, p. 107); e finalmente, não apenas cuidar da educação de seu cavalo,mas de si próprio e de sua prole.

Portanto, as virtudes e os costumes preconizados no tratado deRamon Llul para o cavaleiro ideal podem ser encontrados na descrição dofidalgo português. Vale lembrar que a própria origem da cavalaria teria sidomotivada porque

faltou caridade, lealdade, justiça e verdade no mundo; começou inimiza-de, deslealdade, injúria, falsidade; e por isso surgiu erro e turvamento nopovo de Deus, que foi criado para que Deus fosse amado, conhecido,honrado, servido e temido pelo homem (LLUL, 2000, p. 13).

Fernão Lopes parece remontar a essa origem, para criticar osdesmandos similares ocorridos à sua época.

7.2. O santo Condestável e o Mestre providencial

O providencialismo envolve tanto a Nun’Álvares como ao Mes-tre, desde as muitas profecias que lhes anunciam o futuro. Dentre elas, avultaem importância a do emparedado Frei João da Barroca (LOPES, 1977, p.42), castelhano de nascimento e que vivera recluso em Jerusalém, ondeteve uma revelação que o fez vir providencialmente para Lisboa, aostempos de D. Fernando, onde se emparedou a pedra e cal. E, como observa-ra Mário Martins (1976, p. 17), não sem uma ponta de ironia, aí aconselha-va aos devotos “também sobre negócio deste mundo e não unicamente so-bre caminhos do espírito”. Consultado pelo Mestre quando este se encontra-va em vias de abandonar a insurreição e se ir para a Inglaterra, manifesta-secontrário a isto, afirmando que “a Deos prazia de ell seer rei e senhor delle, eseus filhos depos sua morte” (LOPES, 1977, 43). O conselho foi seguido e a

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predição realizada. Muito embora não se escuse o cronista de indicar ter sidoele encomendado por Álvaro Pais, que “lhe disse que todavia comselhasse aoMeestre que sse nom partisse, ca a Deos prazia de ell seer rregedor destaterra e senhor della” (LOPES, 1977, p. 43). Outro fato que acarreta descon-fiança para com o valor da profecia é que o castelo de Lisboa se entregou porsi mesmo, e a ‘gata’ que o emparedado mandara D. João fazer só funcionoucomo elemento de ameaça (LOPES, 1977, p. 70-71).

Com relação aos augúrios relativos a Nun’Álvares, segundo “huugram leterado e mui profumdo astrollogo, que chamavom meestre Thomas”,“avia de seer vemçedor de batalhas” (LOPES, 1977, p. 58). Prenúncio noqual acredita o seu pai, que o manda com o irmão para a corte de D. Fernando.Então, com treze anos, o futuro ‘herói’ foi feito escudeiro pela Rainha “muipaaçãa e de graciosa pallavra”, usando a armadura que fora do Mestre quan-do mais jovem (LOPES, 1977, p. 59). Anos adiante um alfageme também lheprediria o futuro, negando-se a receber a paga do serviço que lhe prestaraantes de ser ele conde – “e tornarees per aqui Comde dOurem, e emtom mepagarees o que mereço” (LOPES, 1977, p. 63).

Mas o providencialismo “os marca diferentemente”, conforme bemobservara Luís de Sousa Rebelo:

Enquanto Nuno Álvares, como defensor da terra, talvez devido à admira-ção do cronista pelo seu gênio militar, ou às fontes de que este se serviu,surge já nimbado de uma auréola de santidade, quaisquer que sejam as suasincompreensões dos objectivos da revolução, já D. João é retratado emtoda a sua humanidade, com as suas fraquezas e indecisões, para emergirprogressivamente como o salvador da pátria (REBELO, 1983, p. 57).

Observamos o modo como essa auréola de santidade foi atribuídaa Nun’Álvares desde o início. Lembramos, para tanto, que já no capítuloXXXI o cronista revelara que procederia como os pregadores que ‘enxertam’no sermão a vida do homenageado e no fim dele concluem o seu tema. Estaproposta é cumprida, pois realmente o capítulo final da crônica correspondeao panegírico do ‘Santo’ Condestável. Temos, pois, que, enquanto o Mestreteve no final a defendê-lo o discurso judicial-deliberativo do Dr. João dasRegras, que contém todos os elementos da peroratio clássica, o Condestável tema louvá-lo o discurso epidítico do narrador, coroando o ‘enxerto’ anunciado.

Então, o elogio se estabelece através de diversos recursos, desdeas perífrases – como “mui leall e fiell servidor”, “dhonestos costumes e muiavisado nos autos da cavallaria” (LOPES, 1977, p. 373; sublinhamos) –, atéà metáfora e à sinédoque, atribuídas a registros alheios: “E porem se escpreve

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45 Cf., a propósito, MENDES (1970, p. 97).

delle, que foi gramde e forte muro, e segumdo braço da deffemssom do rreino”(LOPES, 1977, p. 373; sublinhamos). Portanto, novamente são reiteradas asqualidades por ele possuídas e apregoadas pelo tratado da Ordem da Cavala-ria: lealdade/fidelidade, bons costumes, perícia cavaleiresca, defesa dos ne-cessitados. Mas veja-se que, embora tecendo-lhe o panegírico, ele é colocadoem segundo lugar na defesa do reino.

Na sua qualificação se destacam principalmente os elementos li-gados semanticamente à claridade, à luz, como no seguinte símile; “Como aestrella da manhãa foi claro em sua geeraçom, seemdo de honesta vida ehomrrosos feitos, no quall pareçia que rrelluziam os avisados costumes dosamtiigos e gramdes baroões” (LOPES, 1977, p. 374). Isto se observa igual-mente na metáfora que segue: “Na limpeza da sua verdade, nehuua cousaemcuberta nem fimgida avia; e sua pallavra nom era menos çerta, que sse afirmasse com juramento” (LOPES, 1973, p. 375; sublinhamos).

A ‘claridade’ de Nun’Álvares, fidalgo de “limpa comçiemçia” (LOPES,1977, p. 374), se opõe à dissimulação de outros personagens, de modos “encober-tos”45 , como Leonor Teles. E análogo a ele se pretende o cronista, ao optar pela‘clara’ “çertidom das estorias”, como foi visto no comentário do Prólogo.

Para o elogio do Condestável são ainda muito caros os artifíciosretóricos que o apresentam como tabernáculo de virtudes, a começar da tem-perança: “no quall porem sempre morava hua discreta mamssidom, que heama dos boõs costumes”. Nele se ausentavam os vícios pertencentes aos ho-mens comuns, firmando-se-lhe a santidade: “E porque semelhamtes bomdades,nõ eram husadas amtre os outros homees, eram em ell theudas em mui gramdecõta; de guisa que hu tamtas virtudes aviam morada, aadur podia nhehuucuidar, que viçio alguu podesse seer hospede (LOPES, 1977, p. 374). A cas-tidade e a conciliação orientavam a sua relação com os seus comandados, “deguisa que seu arreall, nom pareçia hoste de guerreiros, mas honesta rrelligiamde deffemssores” (LOPES, 1977, p. 374).

Comparado aos guerreiros romanos, suplanta-os em religiosidade:“feita primeiro sua devota oraçõ aaquell Senhor em cujo poder he todovemçimento, ledo e sem nehuu rreçeo, pellejava sempre com os emmiigos(LOPES, 1977, p. 375). Portanto, os costumes religiosos e a fé em Deus lheproporcionavam a alegria e a esperança na vitória.

Enfim, suas qualidades, metaforizadas em ‘jóias’ preciosas, o tor-nam inigualável: “nom soomente dos naturaaes doões da graça, que he mui-

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to de notar; mas aimda dos bees da fortuna, ouve tam gramdes e espeçiaaesjoyas, que ataa o seu tempo, des ho começo do reino, nom sse lee de nehuusemelhamte” (LOPES, 1977, p. 375).

As palavras finais da crônica atestam a perpetuação do herói, cujalouvação será continuada na segunda parte da obra. E no panegírico do cava-leiro ideal paga o cronista o seu tributo maior ao medievalismo.

Quanto a D. João, não era exímio no manejo das armas, poissequer desferiu golpe mortal no Conde de Andeiro, que Rui Pereira termi-nou de matar. Suas respostas eram evasivas. Sua coragem só aos poucos serevela, uma vez que a primeira intenção após iniciado o levante foi fugirpara a Inglaterra. Uma das críticas que lhe são dirigidas se relaciona aomodo que tinha para com os traidores, a sua falta de firmeza na punição,desculpando-os: o povo “com queixume amtre ssi fallamdo, diziam comtrao Meestre” muitas razões, que culminam no “exemplo antiigo, que quemseu emmiigo poupa, aas suas maãos moyra” (LOPES, 1977, p. 334). Masnessa aparente carência de virtudes, delineia-se um herói dos novos tem-pos, como defendeu, dentre outros, Maria Lúcia Passos (1974, p. 93). Ob-serve-se que no contexto, mesmo que irônico, da aproximação dos aconte-cimentos à Bíblia, a lei veterotestamentária do “olho por olho, dente pordente” é a que comanda a opinião comum, ao passo que a evangélica, querecomenda o “dar a outra face”, parece, mesmo que para ridicularizá-lo, serapresentada como a seguida pelo “Mexias de Lisboa”.

E a ‘santificação’ desse homem imperfeito, mas totalmente dedi-cado à causa que abraçou, discreto, humilde, conciliador, mas até possivel-mente maquiavélico, como o consideram alguns (PASSOS, 1974, p. 93),culminaria na atribuição do poder da cura às moedas que mandou lavrar:“estes rreaaes primeiros que o Meestre mandou lavrar (...) prestavom peraalguuas dores” (LOPES, 1977, p. 88).

7.3. Vozes discordantes

Alguns historiadores portugueses vêm interpretando negativamenteo elogio do Condestável, como Antônio Borges Coelho (1977. p. 14), paraquem “há de fato uma figura com a qual Fernão Lopes não se sente à vontade.Essa figura é a de Nuno Álvares Pereira. Aqui a prosa esborrata-se emiluminura, doura em panegírico, mas a verdade ilumina-lhe as rugas do rosto,

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estala-lhe o óleo”46. Coelho atribui esse artificialismo na representação doCondestável à preocupação do cronista em não desagradar aos Braganças,que rivalizavam em força com o seu mecenas à época em que redigia a crônica,o Regente D. Pedro. Acrescenta que “como escrivão da puridade do infanteD. João e servidor, portanto, da neta estremecida de Nuno Álvares, mulherdaquele”, Fernão Lopes sentiria “natural constrangimento (constragimentode servidor, de servidor amigo, constrangimento de homem – escritor – vassalo– amigo?)” (COELHO, 1977, p. 14).

O citado historiador acrescenta ainda:

Contrariando a muitos autores, defendemos que Nuno Álvares Pereira nãoé para Fernão Lopes o herói querido de dentro; herói sim, mas incômodo ede que aproveita para inculcar conselhos e exemplos aos príncipes do seutempo. – Compare-se o fogo que anima a prosa do cronista nos principaisepsódios da revolução, compare-se a ternura com que lamenta a morte do“bom” Rui Pereira, por exemplo, com o estilo baço de martirológio, aocantar as virtudes do Condestável (COELHO, 1977, p. 110).

Se há exagero na interpretação de Antônio Borges Coelho, numacoisa ele concorda com a maioria dos críticos: no caráter exemplar atribuídopelo cronista ao Condestável.

Também Álvaro Cunhal (1975, p.112) acredita na “falsidade” dalouvação do herói, apontando para a sua “avidez e ganância” de guerreiro“mais bem pago que o rei”. “Quem recebe ‘quase metade’ de Portugal, querde juro e herdade, quer em préstamo?”– indaga Antônio Borges Coelho (1977,p. 112), corroborando a opinião de Álvaro Cunhal. O que lança dúvidas sobreo seguinte depoimento de Fernão Lopes, figuradamente enfático do despren-dimento do Condestável:

“sem nehuua cobiiça dhomrra nem de gaanho, mas soomente por servi-ço de seu Senhor, e deffemsom da terra dhu era naturall, reçebeo suaemcomemda e mamdado, como aquell que com limpa voomtade tiinhagram desejo de o servir em toda cousa que lhe a maão vehesse” (LOPES,1977, p. 146).

Em favor do cronista, diz Álvaro Cunhal (1975, p. 113) que o mesmo“procurava glorificar Nun’Álvares, mas cuja honradez leva a citar fatos des-favoráveis à sua intenção”.

46 Também Passos (1974, p. 23) considera, como vimos, Nun’Álvares a “personagem maisestática, mais padronizada, mais forçada” da crônica, embora o veja como a “síntese dasvirtudes pátrias, do que sobrevive da ética cavaleiresca” (PASSOS, 1974, p. 27).

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Em suma, se levada em conta a condenação da “afremosentadafallssidade” estabelecida pelo cronista no Prólogo da sua obra maior; se con-siderado que o seu personagem mais profusamente apresentado através deornamentos é Nun’Álvares, pode-se concluir que o próprio autor dá a chavepara que se desconfie da exaltação do seu herói. Essa idealização do cavaleirosem mácula só poderia ser entendida como meio de crítica aos fidalgos con-temporâneos do cronista, para os quais a honra seria sinônimo de proveito.

A história contada pelos ornamentos, pelo ‘discurso da simula-ção’, corre criticamente paralela aos fatos, denunciando a parcialidade doautor. Até mesmo porque, segundo António Borges Coelho, o concurso daarqueologia veio desmentir o caráter providencial da vitória portuguesa nabatalha de Aljubarrota:

em Aljubarrota, as recentes escavações que puseram a nu os fossos earmadilhas destruíram o mito de um comandante agraciado com o favorceleste. A superioridade portuguesa estava na justiça da sua causa, emestar a defender a sua terra e os seus bens, no uso de uma tática militarrevolucionária, enriquecida com a experiência militar dos ingleses, al-guns dos quais pelejaram e morreram nos campos de Aljubarrota (COE-LHO, 1977, p. 114).

Mas o próprio Fernão Lopes se faz iconoclasta em relação aosrevolucionários, criticando os oportunistas através da ironia, conforme serávisto a seguir.

8. Facécia e refutatioJá Aristóteles na Retórica ([s.d.], p. 267) destacava o valor da

facécia – que Aurélio (FERREIRA, 1999, p. 870) define como “ditochistoso, meio termo entre a graça e a zombaria” – como arma poderosana argumentação: “Pretendia Górgias que se deve confundir a seriedadedos adversários pela facécia, e suas facécias pela seriedade; e nisso tinharazão”. E diferenciava a ironia da bufoneria a partir da conveniência decada uma: “a ironia quadra melhor ao homem livre que a bufoneria, poisironizamos para nos deliciarmos, ao passo que bufoneamos para deliciaraos outros” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 267).

Uma das marcas mais características do discurso fernãolopeano éa ironia. Portanto, deve ter se deliciado muito e muito confundido seus adver-sários com a utilização de tal recurso. Antes de focalizá-la na crônica, vamosrecorrer a algumas outras teorizações sobre tal ornamento, lamentando que a

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parte da Poética de Aristóteles, que analisaria as diferentes formas de facéciacomo ele próprio o indica (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 267), concernente àcomédia, desapareceu.

Considerada como o grau contrarium da metáfora (LAUSBERG,1976, v. II, p. 86), corresponde, para Quintiliano ([s.d.], v. III, p. 243), àsalegorias “onde se entende o contrário do que as palavras exprimem (…), emlatim illusio”.

Em suas origens gregas, a eironeia ligava-se à maiêutica socrática,conforme lembra Massaud Moisés (1978. p. 294), sendo que

modernamente, o termo assumiu o indeciso contorno de figura de pensa-mento e de palavra. De modo genérico, a ironia consiste em dizer o con-trário do que se pensa, mas dando-o a entender. Estabelece um contrasteentre o modo de enunciar o pensamento e o seu conteúdo (MOISÉS,1978, p. 295).

Para Lausberg (1975, vol. II, p. 85-87), que, comprovando os tênu-es limites entre as figuras e os tropos, a estuda primeiramente entre estes, eposteriormente, junto com a alegoria, entre as figuras de pensamento(LAUSBERG, 1976, v. II, p. 290-295), a ironia coloca-se a serviço da parcia-lidade, quando o orador ou autor confia tanto na força de persuasão da causaque defende e da simpatia que desperta no juiz que

utiliza a escala léxica de valores de seu adversário, fazendo ver sua falsi-dade mediante o contexto (linguístico ou funcional). A voluntas do ora-dor é, pois, tão forte que desfaz o tecido de mentiras do adversário eajuda o triunfo da verdade (expressa pelo seu contrário) (LAUSBERG,1976, v. II, p . 85; traduzimos).

Portanto, a ironia é ela própria uma arma da refutatio, que, segun-do Cícero (1997, p. 49; traduzimos), é o argumento que “dissolve a confirma-ção dos adversários ou a enfraquece ou a elogia falsamente”. Lança mão,lembramos, “da mesma fonte de invenção usada na confirmação, porque comos lugares mediante os quais alguma coisa pode ser confirmada, com essesmesmos lugares pode ser debilitada”.

8.1. A ‘Sétima Idade’ e outras facécias do narrador

Atendo-se à sua proposta inicial de ‘escrever verdade’, o cronis-ta lança mão da ironia para criticar alguns dos resultados da revolução, queenaltecera consideravelmente através da alegoria, ampliando-lhe oshorizontes, conforme foi visto. Como que criticando a exaltação a que proce-

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deu, levando a que se ponha em dúvida a própria parcialidade do seu discurso, fazcom que esse ornamento descambe na ironia; e o faz utilizando-se da mesmamodalidade de exemplo que lhe fora predominante, tal seja, o bíblico. Certamenteteria consciência, com Aristóteles ([s.d.], p. 253), que “o primeiro meio para refu-tar uma acusação consiste em dissipar a má impressão que poderiam ter de nós”.

Assim sendo, após referir-se às seis idades do mundo para os cris-tãos, dizendo apoiar-se em “Eusébio e Beda e outros alguus” (LOPES, 1977,p. 307)47 , alude à ‘Sétima Idade’, que corresponderia aos tempos pós-revolu-cionários, por analogia a uma hipotética idade da compensação e do descan-so. Para tal concepção, toma por base o sétimo dia da criação do mundo: “assicomo Deos criara o mudo per espaço de seis dias, e no septimo follgara”,“assi a follgamça das sprituaaes almas que no Paraiso averiã, seria a septimahidade” (LOPES, 1977, p. 308).

Ao relacionar esta ‘Sétima Idade’ aos primórdios da Dinastia deAvis, diz o cronista que o fará “com ousamça de fallar, como quem joqueta,per comparaçom” (LOPES, 1977, p. 308; sublinhamos), uma possível remi-niscência do ‘joguete d’arteiro’ que na Arte de Trovar se apresenta comocantiga de escárnio – “nõ sõ mais ca d’escarno ne hã outro entendimento”(D’HEUR, 1975, p. 329). Desvela, pois, o procedimento retórico de que lan-ça mão; isto o eximiria da culpa de desrespeito para com o sagrado, apontadapor Mário Martins (1975, p. 254). O que poderia parecer uma exaltação atésacrílega desses novos tempos é na verdade uma severa crítica, como esclare-ce a seguir o próprio cronista.

Afirma que nessa nova era surgiu uma nobreza sem ascendênciafidalga, como recompensa dos trabalhos prestados à causa de Avis. Nela

se levamtou outro mumdo novo, e nova geeraçom de gemtes; porquefilhos dhomees de tam baixa comdiçom que nom compre de dizer, perseu boom serviço e trabalho, neste tempo forom feitos cavalleiros,chamamdosse logo de novas linhagees e apellidos (LOPES, 1977, p.308; sublinhamos).

Além dessas novas linhagens e títulos surgidas, alguns dessafidalguia adventícia ocuparam antigos títulos de linhagens desaparecidas: “seapegarom aas amtiigas fidallguias, de que ja nom era memoria”. Dessa for-ma, o Mestre recompensou tão regiamente a vários dos que o apoiaram, que

47 A primeira idade iria de Adão a Noé; a segunda, de Noé a Abraão; a terceira, de Abraão aDavid; a quarta, de David ao trespassamento da Babilônia; a quinta, daí ao nascimento doSalvador; e a sexta, correspondente à era de Cristo, até o final dos tempos.

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nobilitaram-se prestigiosamente, e aos descendentes: “per dignidades ehomrras e offiçios do rreino em que os este Senhor seemdo Meestre, e depoisque foi Rei, pos, montarom tamto ao deamte, que seus deçendemtes oje emdia se chamam doões, e som theudos em gram comta” (LOPES, 1977, p. 308;sublinhamos).

A ironia, portanto, se desvela, sendo evidente a má vontade docronista para com esses oportunistas e falsos fidalgos, que, à época em que eleescrevia a crônica, possuíam um prestígio não condizente com a origem. Por-tanto, o principal sentido da ironia é a crítica à falsa nobreza que se instaurou,aos “burgueses-cavaleiros”, no dizer de Antônio Borges Coelho (1977, p. 138).

A esses oportunistas, que se apossaram de honras e haveres alhei-os, o cronista representa pela metáfora dos ‘pescadores’, a partir do exemplobíblico agora colocado a serviço da sátira: “E assi como o Filho de Deoschamou os seus Apostollos, dizemdo que os faria pescadores dos homees,assi muitos destes que o Meestre acreçemtou, pescarom tamtos pera ssi perseu gramde e homrroso estado” (LOPES, 1977, p. 308) que tinham sob seucomando muitos homens a cavalo e bem armados, inclusive alguns fidalgosde linhagem. Dessa forma, Fernão Lopes parece-nos rebater as acusações quelhe poderiam ser feitas, de elogiar pessoas indignas.

Fica explicitado ser justamente nessa ‘Sétima Idade’, onde tais‘pescadores’ se fazem presentes, que a crônica é compilada:

Assi que esta hidade que dizemos que sse começou nos feitos do Meetre,a quall pella era de Çesar per que esta cronica he cõpillada, ha agorasessemta annos que dura; e durara ataa fim dos segres ou quamto Deosquiser que as todas criou (LOPES, 1977, p. 309).

Portanto, a nova era se iniciara com os feitos do Mestre, mais pre-cisamente em 1383, com a morte do conde de Andeiro. E em 1443, sessentaanos passados, época em que a crônica era elaborada, poderia apresentar bemnitidamente os seus frutos. O que firma o caráter deliberativo do discurso docronista, que critica não apenas fatos passados, mas presentes, seus contem-porâneos. Denunciando a falsidade da origem dos ‘fidalgos’ de então, acabapor realçar a nobreza verdadeira dos Bragança, descendentes de Nun’Álvares.

Também fora da alegoria bíblica as facécias do cronista se fazemnotar. Assim é que, por ocasião do recebimento, pelo rei de Castela, de umacarta de Leonor Teles, incitando-o a invadir Portugal, coisa que ele já tinhaem mente, é utilizado o seguinte símile, em que compara o convite da rainhaa esporas que são dadas ao cavaleiro que já tem vontade de correr:

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como aquelle que aviia gram desejo de emtrar em no rreino, nom lheforom menos estas cartas da Rainha quamdo assi chegarom, se nomenhader esporas ao que avia voomtade de correr, e logo em outro diahordenou de partir (LOPES, 1977, p. 105).

Da mesma forma procede através do gracejo que utiliza para realçar abravura de Nun’Álvares, que vai ao encontro dos poderosos senhores castelhanos– Joham Rodriguez de Castanheda e Garcia Fernandez, Comendador-mor daOrdem de Santiago – que com muitos cavaleiros vinham atacá-lo: o herói “foisselogo caminho dElvas amte que Joham Rodriguez partisse de Badalhouçe, polloescusar de trabalho” (LOPES, 1977, p. 257; sublinhamos). A valentia e descasodo fidalgo para com os inimigos se marca também no recado que a eles teriaenviado: “que lhe prazia muito de sua viimda, e que elle lhe teeria be feito dejamtar”, partindo com a sua tropa ao encontro deles “tam ledos, como sse fossempera a voda” (LOPES, 1977, p. 258). Se para o futuro Condestável a batalha quese travaria é ‘jantar’, para o narrador, que dele participa – pela própria modalidadede discurso indireto, em que a fala de ambos se confunde –, é comparada a ‘boda’,ampliando-se, assim, o gracejo48 .

Em relação ao clérigo João Mateus e sua atuação na tomada dePortel sob o comando de Nun’Álvares, fala ironicamente o cronista que “dabriras portas tiinha moor cuidado que de rrezar as matinas” (LOPES, 1977, p.295-296). Critica, desse modo, a preocupação mais política que religiosa doclérigo, ao mesmo tempo que indica o destacado papel desempenhado peloclero menor na Revolução.

8.2. Facécias dos homens do MestreMais que irônico, é sarcástico49 o discurso direto de Nun’Álvares:

quando da reunião das cortes, que elegeriam o novo rei, qualifica pejorativa-mente, através da antonomásia, a blasonaria do opositor – “este rroncador deMartim Vasquez”. E se oferece ao Mestre para eliminá-lo, utlizando em suas pala-vras o eufemismo “eu vos despacharei de seu estorvo” (LOPES, 1977, p. 361).

48 Aliás, este símile, que serve de veículo à ironia, teria sido acrescentado por Fernão Lopesao relato da Crônica do Condestável que lhe servira de fonte; pelo menos não consta nopasso análogo da Estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra (1991, p. 77).49 A respeito da distinção entre ironia e sarcasmo, observa Massaud Moisés (1978, p. 295;sublinhamos): “Quando, porém, o fingimento empalidece e a idéia recôndita se torna dire-ta, acessível à compreensão instantânea do oponente, temos o sarcasmo. Neste caso, a am-bigüidade permanece, mas de forma grosseira e violenta. Por outro lado, a ironia resulta dointeligente emprego do contraste, com vista a perturbar o interlocutor, ao passo que o sar-

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E quando da coroação de D. João, a sua ironia para com a oposiçãose estabelece no seguinte jogo de palavras: “Desta vez meu senhor o Meestreserá rei a prazer de Deos, e a pesar de quem pesar” (LOPES, 1977, p. 372;sublinhamos). Essa ameaça velada e mesmo arrogante é desculpada pelo cro-nista, que a atribui ao momento, de grande prazer pela eleição do Mestre, jáque o fidalgo era “mui temperado”, isto é, muito equilibrado e discreto “emfallar” – como, de resto, convinha ao modelo de cavaleiro por ele encarnado.

Observe-se que o gracejo de Nun’Álvares aponta para a existênciade vozes discordantes em relação ao novo rei, contrariando o discurso donarrador, segundo o qual, após o discurso final do Dr. João das Regras, “foi oprazer gramde em todos” por sua eleição, fruto de “mamssa e paçificacomcordia, hua virtuosa e finall emtemçom” (LOPES, 1977, p. 368). Comefeito, alguns viriam a abandonar a causa de Avis – como os nobres da Beira,que não participaram da batalha de Aljubarrota, segundo a Crônica doCondestável, conforme observação de José Hermano Saraiva (1977, p. 567).

Ainda com relação aos procedimentos retóricos utilizados nos dis-cursos atribuídos a Nun’Álvares, também irônico é o símile, já focalizado nocapítulo anterior, que compara a “perdigotos” os covardes que se recusassema enfrentar os invasores. E, ainda, o modo com que sorria dos que, a exemplode João das Regras, o contradiziam, por inveja e/ou oposição partidária(LOPES, 1977, p. 90-91). Bem como a maneira como responde à carta do seuirmão Pedro Álvares, Prior do Hospital, que objetivava indispô-lo com oMestre, dizendo que “sse maravilhava muito delle aver tã pouco tempo queamdava com os Castellaãos, e saber ja tamtas castellanias” (LOPES, 1977,p. 252). E, ainda, à reação diante do sonho profético de um seu escudeiro,Vasco Martins do Outeiro, que predizia o insucesso da travessia do Rio Tejo,que iria empreender, augurando que o seu batel cairia nas mãos dos castelhanos:“pera vos nom veerdes esto que assi sonhastes, eu vos mamdo que fiquees enom vaades comigo; e per esta guisa vos nom verees vosso sonho comprido,nem prazera a Deos que sera assi” (LOPES, 1977, p. 282).

Dessa forma, desprezava os maledicentes e sorria “dos agoiros edos sonhos”, como tão bem ajuíza Mário Martins (1978, p. 24) ao analisar-lhe a ironia, sentindo-a presente ainda no javali que o cavaleiro envia a Pero

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casmo lança mão da dualidade para aniquilá-lo. A ironia parece respeitar o próximo, temqualquer coisa de construtiva, enquanto o sarcasmo é demolidor, impenitente. Mais ainda:a ironia depende do contexto; fora dele, o seu efeito desaparece, tragado pela obscuridaderesultante; o sarcasmo, por sua vez, não se condiciona tão estreitamente ao ambiente psico-lógico e verbal no qual se move”.

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Sarmento, com um recado do qual não se sabe o conteúdo:

calculamos que Nuno Álvares enviou o porco bravo ao espanhol, meiopor cortesia, meio por desafio, numa espécie de ironia ambígua: Mando-lhe este presente e em breve lhe farei uma visita! E fê-la, mal rompia osol. Não foi sem razão que lhe chamaram Nuno madruga! (MARTINS,1978, p. 24).

Fazendo coro ao seu capitão, dentre os escudeiros de Nun’Álvareshá os que zombam dos inimigos, menosprezando-os. Assim é que Pedro AnesLobato, discordando de Álvares do Rego sobre o valor dos castelhanos, atri-bui-lhes eufemisticamente hábitos adamados: são “gramdes senhores e bemdellicados”, “que veem banhados daugua rrosada, e de froll de laramjo”,podendo, pois, serem facilmente vencidos: “nom sse ham de teer muito queos logo nom veçaaes” (LOPES, 1977, p. 154).

O cronista também faz referência aos que gracejam diante do medo.Por exemplo, o conde Álvares Peres de Castro, diante da proximidade dosinvasores, no Lumiar, ao serem nomeados os seus temerários capitães,

quamdo deziam: “Vem hi foaão, Meestre de Samtiago”; respondia oComde dom Alvoro Perez emcolhemdosse todo, e dezia: “Ay! quemenino!”E em dizemdo: “E vem hi mais foaão”; e ell rrespõdia dizemdo:“E esse que parvoo!” E assi dizia por outro: “Ay que cachopo!” (LOPES,1977, p. 128; aspeamos).

A tais gracejos – chamados de “motetes” pelo cronista, apontandopara a procedência occitana do termo50 –, se acrescenta a linguagem gestual,que lhes dá o total significado, para o que chama a atenção o autor: “E assidava a cada huu seu motete, dando a emtemder [per taaes trejeitos] que nomera bem de hirem pellejar com elles” (LOPES, 1977, p. 128).

Também irônico é o discurso de Álvaro Pais, líder político e ver-dadeiro mentor do movimento em seus primórdios, ao aconselhar o Mestrede Avis a usar de demagogia, “em tom de sátira à estupidez alheia”, de acordocom a sua “grande e cínica sabedoria” (MARTINS, 1978, p. 21): “Daae aquelloque vosso nom he, e prometee o que nom teemdes, e perdoaae a quem vosnom errou” (LOPES, 1977, p. 49).

Esse conselho foi acatado pelo Mestre, a quem tambémsugestionara Rui Pereira, aludindo ser Lisboa “boom Londres”, com oque intentava dissuadi-lo de ir para a Inglaterra, abandonando a causa

50 Do occitano motet; como registra o Dicionário Novo Aurélio, corresponde a dito engraça-do ou satírico, usado para zombar, troçar, escarnear... (FERREIRA, 1999, p. 1371).

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iniciante e os que tão devotamente o reverenciavam: “Vos, dizem que voshiis pera Imgraterra; mas a mim pareçe que boom Londres he este”(LOPES, 1977, p. 40). Portanto, o tio de Nun’Álvares – um dos primeirosfidalgos a desejarem a liderança de D. João de Avis, permanecendo a elefiel até à morte – insinua o quão desnecessário é ao Mestre buscar emterras estranhas as honrarias que pode obter em Lisboa51.

O ‘povo miúdo’ forçou os ‘honrados cidadãos’ do conselho atomarem o Mestre oficialmente por Regedor e Defensor do reino. Nesseprocesso destacou-se o tanoeiro Afonso Anes Penedo que, vendo a hesita-ção dos conselheiros, acusa-os de não serem ‘verdadeiros portugueses’(LOPES, 1977, p. 47) e os ameaça de morte, com a espada às mãos: “ca euem esta cousa nom tenho mais avemtuirado que esta gargamta; e quem istonom quiser outorgar, logo ha mester que o pague pella sua, amte que daquisaya”. Nisto foi apoiado por todos os “do poboo meudo” presentes na oca-sião, que “aquella meesma rrazom disserom” (LOPES, 1977, p. 48). Comose percebe, lança mão de uma sinédoque, que expressa o todo (homem)pela parte (garganta) para indicar a morte por degolamento.

Sarcástica é a cantiga que as moças de Lisboa entoavam, quandodo cerco:

Esta he Lixboa prezada,mirala e leixalla.Se quiserdes carneiro,quall derom ao Amdeiro;se quiserdes cabrito,quall derom ao Bispo (LOPES, 1977, p. 198).

Aí alude-se aos assassinatos do conde de Andeiro, pelo Mestre, edo bispo de Lisboa, pela população ensandecida. Desta, a barbárie é ironizadapelo narrador: “logo o Bispo foi morto com feridas e lamçado a pressa afumdo,homde lhe forom dadas outras muitas, como sse gaamçassem perdoamça,que sua carne ja pouco semtia” (LOPES, 1977, p. 25).

Quando da divisão que aconteceu nas Cortes que discutiam sobrea escolha do novo soberano português, um dos partidários do Mestre assim

51 Esse ponto de vista é corroborado pelo arrazoado do escudeiro Álvaro Vasques de Góis(LOPES, 1977, p. 40). E o emparedado Frei João da Barroca, possivelmente a pedido deÁlvaro Pais, termina por convencê-lo a não partir (LOPES, 1977, p. 42-43).

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criticara52 o outro candidato: fazia de Portugal “tam boom mercado a sseusemiigos”. Referia-se ao Infante D. João, filho de Inês de Castro, na ocasiãoveementemente defendido por Martim Vasques e seus irmãos. Observe-seque a atividade mercantilista é o comparante invocado para denunciar oentreguismo desse possível herdeiro do trono.

Há que se atentar para o fato de que ao Mestre de Avis são atribu-ídos poucos discursos, e apenas defensivos, nunca ofensivos. Podem ser ob-servados nas respostas por ele dadas aos seus opositores. Por agora, ressalte-se que, ao que tudo indica, na aparência por vezes simplória de seus atos epalavras, esconderia uma grande argúcia política. Assim é que as respostasevasivas, quiçá irônicas, que dá a Pero Fernandez, emissário do rei castelhano,o irritam a tal ponto que o levam a desabafar com o seu soberano: “Daaeo aodemo, Senhor, ca numca outra rrazom em ell pude achar, de quamtas cousaslhe fallei, nem outra rresposta que me rrespomdesse, salvo: Nom, nom, nõ,nõ!” (LOPES, 1977, p. 251). Essa qualidade do pouco falar e muito ouvir éum dos seus destacados dotes políticos, que lhe asseguraram tão longo e fe-cundo reinado.

8.3. Escárnios e outras facécias dos opositores

Como foi visto, a analogia que se estabelecera entre a Revolução eo Cristianismo acaba por descambar na ironia, pelo próprio discurso donarrador. Mas o discurso dos opositores, logo no início da crônica, já escarne-cia da mesma, antes mesmo de ela se firmar. Vale repetir a metáfora atravésda qual, a modo de escárnio, os grandes do reino zombavam dos ‘pequenos’ eda sua crença no caráter soteriológico de D. João de Avis, o ‘Messias deLisboa’: “Os gramdes aa primeira escarneçemdo dos pequenos, chamavõ-lhe poboo do Mexias de Lixboa, que cuidavom que os avia de rremiir dasogeiçõ delRei de Castella” (LOPES, 1977, p. 75; sublinhamos).

A denominação desse procedimento retórico como escárnio era co-mum no medievo, indicando a existência, na época, de cantigas de escárnio,que provavelmente teriam servido de fonte ao cronista – muito embora as reco-lhas que se documentaram nos Cancioneiros terminem em meados do século

52 Analisando esse discurso, que contém a seguir o provérbio “rei pera rei, e o all pera nada”– isto é, “a um rei só outro rei deve se opor: o resto de nada serve”, José Hermano Saraiva(1977, p. 565) considera ter sido ele dito por um membro da ‘burguesia’ nascente, uma vezque aponta para a centralização do poder na pessoa do rei; o que vai de encontro ao sistemafeudal, fundamentalmente senhorial, ficando, assim, evidenciado o seu declínio.

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XIV. Tais cantigas, que a Arte de Trovar apensa ao Cancioneiro Colocci-Brancuti,hoje pertença da Biblioteca Nacional de Lisboa, definia como “aquelas que ostrobadores fazen querendo dizer mal d’algue”, lançavam mão do que “chamãos clérigos de hequivocatio”, “palavras cubertas que aja dous entendymentospera lhe-lo nõ entenderen ligeyrament[e]” (D’HEUR, 1975, p. 321).

Na esteira dessa tradição, também Vasco Porcalho “dezia per mododescarnho” a seguinte crítica aos seus soldados fracos e desertores:

Em verdade ei por estranho, numca nehuus de vos me pedirem o quimtodestas cavallgadas que fazees; cemto de vos pellejam com triimta, e sem-pre de vos ficam mortos duas duzeas; e os outros fugimdo come ovelhastornamsse pera este curral; quamto com tall homrra como esta, boafama hira de nos a elRei (LOPES, 1977, p. 176).

Vale ressaltar a analogia que se estabelece com o mundo animal,através de “ovelhas” e “curral” que, como foi visto anteriormente, é recorrentena crônica.

Mas onde o escárnio se mostra em toda a sua rudeza, usando“descubertamente” de palavras obscenas e nomeando a pessoa satirizada – pro-cessos que na Arte de Trovar seriam pertinentes às ‘cantigas de mal dizer’(D’HEUR, 1975, p. 331) – é na cantiga de Fernão Gonçalves, ao ter de aban-donar Portel, conquistada por Nun’Álvares. Então, dirigira-se à sua mulher,após “dizer que lhe chamassem as trombas pera tanger”, nos seguintes termos:

Amdaae per aqui, boa dona, e hiremos balhamdo, vos e eu, a ssoomdestas trombas; vos por maa puta velha, e eu por villaão fodudo no cuuca assi quisestes vos. Ou camtemos desta guisa, que será melhor:

Pois Marina bailloutome o que ganou;melhor era Portell e Villa Ruiva,que nom Çafra e Segura,tome o que ganoudona puta velha (LOPES, 1977, p. 298).

A explicação de tão desbocados “sabores”, ditos com acompanha-mento musical – ao som de “trombas”, como vimos –, pelo espirituoso cava-leiro, considerado o “mais saboroso homem que em Portugall avia, e muisollto em suas pallavras” (LOPES, 1977, p. 296), é dada a seguir: seguindo aorientação da mulher, perdera Portel e Vila Ruiva, superiores às outras locali-dades que ganhara em Castela. E fundamenta-se no provérbio popular “Di-vertiu-se, aguente agora as consequências”.

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Escárnio igualmente pornográfico e ofensivo fora dirigido ao Mes-tre por João Duque, encarregado de defender contra ele Torres Vedras, cujapopulação padecia de fome e sede:

mamdoulhe Joham Duque huu dia em dous baçios, huu vergonhosopresemte, comvem a saber: hua natura dasno cozida com duas laramjas;e com ella, hua troba, cuja comclusom era, que das carnes nom avia tallbocado como aquelle que lhe emviava; mas porem que lhe pedia pormerçee, que lhe mamdasse algua carne fresca, que dias avia que eradella desejoso; ca ell nom era em culpa de lhe deffemder o logar, poislhe seu senhor tall emcarrego leixara (LOPES, 1976, p. 326; sublinha-mos) .

Mas nem diante de tão violento insulto, possivelmente à sua pró-pria masculinidade, através do pênis de asno e das laranjas que lhe foramenviados como presentes, perde D. João de Avis o bom humor e a humildade:

O Meestre começou de rrir, e momdoulhe dar carnes, quanto podesseavomdar huu dia; e na parte do desculpamento rrespomdeo que lhonom avia por mall, mas por bem, porque aquello era theudo de fazertodo boom fidallgo; e que ell trabalhasse bem por sse defender, ca ellmuito avia de fazer por lhe tomar o logar (LOPES, 1977, p. 326).

O código de honra da antiga cavalaria não é quem comanda asações do Mestre, pois sorri dos insultos e procede como se desse a outra facea quem o esbofeteia – como ensinara Jesus Cristo, ou como convinha aoPríncipe dos novos tempos.

A ironia, e suas variações e modalidades53, é ornamento bastantefrequente nas falas dos opositores ao Mestre. Faz-se notável no discurso dire-to que expressa o recado do conde D. João Afonso, irmão de Leonor Teles,enviado como resposta à solicitação de Martim Afonso, alcaide do castelo deLisboa. Este, diante da ameaça feita pelos vilãos de matarem mulheres e fi-lhos dos moradores do castelo, negociara a entrega deste ao Mestre, caso nãofosse socorrido no exíguo espaço de quarenta horas. A crítica irônica do con-de se evidencia desde o termo usado para representar a ameaça: “bioco”, queera também sinônimo da mantilha que escondia o rosto. E se corrrobora eexplicita pelo símile, que lança mão da fábula da raposa a ameaçar com orabo o corvo no alto da árvore, ridicularizando a ameaça e denunciando afalta de tenacidade e o medo do castelão:

53 Cf., a propósito, LAUSBERG, (1976, v. II, p. 85-87 e 290-295).

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“Em verdade boom bioco era esse que vos elles poinhã por lhe averdesde dar o castello; dizee que ouvestes voomtade de lho dar, e destolho;pareçe que fostes taaes com esse medo que vos poserom por vos espamtar,como a rraposa que estava ao pee da arvor, e ameaçava com o rrabo ocorvo, que estava em çima com o queijo no bico, por lho aver de leixar”(LOPES, 1977, p. 71-72).

Mas em nenhum discurso a ironia é tão impiedosa e recorrentequanto no de Leonor Teles, ‘a aleivosa’. Quando o Mestre retorna a Lisboa,interrompendo a sua viagem para Entre Tejo e Odiana como fronteiro nomeadopela rainha, ao irromper no castelo com seus homens, todos armados, visandoa assassinar o conde de Andeiro, a Regente, dissimulando qualquer receioque sentisse, assim se pronunciara:

“Samta Maria vall! como os Imgreses ham mui boom costume, quequamdo som no tempo da paz, nom tragem armas, nem curam damdararmados, mas boas rroupas e luvas nas maãos come domzellas; e quamdossom na guerra, emtom costumam as armas e husom dellas como todo omumdo sabe” (LOPES, 1977, p. 18).

Através da alusão aos bons modos dos ingleses em tempos de paz,critica os ‘maus modos’ do Mestre, buscando encombrir e, talvez, afastar overdadeiro motivo do acontecimento. Ao que o Mestre, aceitando o jogo im-plícito, responderia, também dissimuladamente, que os ingleses assim agiampor terem frequentemente guerra, ao contrário dos portugueses, que teriammuita dificuldade de portarem armas quando necessário, se não as usassemem tempos de paz:

“Senhora”, disse o Meestre,“he mui gram verdade. Mas isso fazem ellesporque ham mui a meude guerras, e poucas vezes paz, e podemno muibem fazer; mas a nos he pollo comtrairo, ca avemos mui a meude paz epoucas vezes guerra; e sse no tempo da paz nom husarmos as armas,quamdo vehesse a guerra nom as poderiamos soportar” (LOPES, 1977,p. 18).

Temos, pois, que os discursos da rainha se marcam pela dissimula-ção, uma forma de ironia que consiste no “ocultamento da opinião própria”(LAUSBERG, 1976, v. II, p. 290); segundo Quintiliano ([s.d.], v. III, p. 265),esse recurso, que expressa “o contrário do que se quer fazer entender”, é“muito agradável num discurso de tom não oratório, mas familiar”.

Após a morte do Andeiro, mais uma vez usaria a dissimulaçãopara encobrir a sua culpa de mulher adúltera:

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“Oo Samta Maria vall! como me matarom em elle huu mui boom servi-dor, e morre martir, ca o matarom mui sem por que; mas eu prometo aDeos que me vaa de manhaã a sam Framçisco, e que mamde fazer hihuua gram fugueira, e eu farei taaes sallvas quaaes numca molher fezpor estas cousas” (LOPES, 1977, p. 20).

Através de apóstrofes e hipérboles, enfatiza o seu discurso dissi-mulado, propondo-se inclusive a submeter-se à costumeira prova de fogo aque eram condenadas as acusadas de adultério. O que, na avaliação do cronis-ta, “ella tiinha mui pouco em voomtade de fazer” (LOPES, 1977, p. 20).

Aliás, o modo como a rainha mantém o sangue frio e disfarça oque realmente sente ou pensa é realçado pela descrição que faz o narrador dafuga desordenada dos que a acompanhavam:

Os outros que hi estavom, assi homees e molheres, quamdo isto viromcuidamdo aaquella hora todos seer mortos, nom ousavom sahir pollasportas, mas fugiam pellas janellas, e delles pelos telhados, outros perdegraaos nom comtados, e assi cada huu per hu melhor podia (LOPES,1977, p. 20).

O cômico/grotesco de tal fuga é, desse modo, descrito com grandepoder de visualização e movimento. O que, em confronto com a aparente enobre serenidade de Leonor Teles, lhe atribui força, tornando-a, por isto, dig-na de admiração.

Voltando ao caráter dissimulado do discurso e das atitudes da rai-nha, dele mais uma vez dá provas o discurso do narrador, ao analisar a respos-ta positiva da então Regente ao pedido de segurança dos lisboetas que sehaviam sublevado por ocasião do assassinato do conde de Andeiro:“rreçeberom della gramde e fimgido gasalhado, espiçiallmente Alvoro Paaeza que ella moor mall queria” (LOPES, 1977, p. 44; sublinhamos). Esseajuizamento do narrador é corroborado pelo próprio discurso da rainha:“Quamto a mim nom me pesa tamto doutra cousa que me alla ficasse, comodo baçinete e da cota d’Alvoro Paaez” (LOPES, 1977, p. 45; sublinhamos).Como se percebe, a ‘aleivosa’ lança mão da metonímia – ‘baçinete’, isto é,peça de armadura que cobria a cabeça como um elmo, usada sob o capace-te; e ‘cota’, armadura ou gibão que cobria do pescoço até à cintura – nolugar do seu proprietário para aludir ao seu desejo verdadeiro, tal seja, o dever degolado o líder político. Tal se esclarece pela explicação que é dada aseguir; “souberom que o dezia porque Alvoro Paaez era calvo, e por a cotada cabeça” (LOPES, 1977, p. 45).

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Importa salientar que, como aqui podemos observar, também asfiguras da contiguidade (sinédoque e metonímia) se colocam a serviço daironia que, entendida lato sensu como grau contrarium da metáfora, atribui aesta a abrangência que lhe dera Aristóteles ([s.d.], p. 332).

Voltando a Leonor Teles, a boa acolhida que dá aos lisboetas sefunda na falsidade, na argúcia política, do que dá conta a alegoria do narrador:“fimgeo que comungava dhuua hostia, a qual afirmam que nom era sagrada”(LOPES, 1977, p. 45). Novamente o comparante se fundamenta na religião.

Mas diga-se a favor da rainha que ela não atende a todas as solici-tações da embaixada, uma vez que se nega a casar-se com o Mestre, pedidoque lhe fora feito nessa mesma ocasião. O que, mais uma vez, dá provas doseu caráter forte. E a ironia e pouco caso para com o que chamou de ‘alvoro-ço’ de Lisboa e a ‘sandice’ de seus habitantes se exacerba na pejorativa alu-são, relacionada a D. João de Avis: “veedes bem ho alvoroço de Lixboa comosse levamtarom com ho Meestre, que nom ssei”, disse ella, “sse he meestre detroos, sse de bombardas. E maravilhome quall foi a sanha ou samdice que osfez demover a tall cousa” (LOPES, 1977, p. 54; sublinhamos). Observe-secomo o cronista frisa ser a alusão pejorativa ao Mestre de responsabilidade darainha. Até porque, se o termo ‘bombardas’ refere-se ao canhão, que serviapara arremessar grandes balas e pedras, já o termo ‘troos’ tanto pode indicar aorigem onomatopaica do nome da antiga máquina de atirar, passando do somdo tiro a este e ao instrumento que o produz (MACHADO, 1989, vol. V, p.344), como também o trovão; considerando-se o som onomatopaico, poderiaestar indicando um grosseiro hábito de liberação barulhenta de gases do apa-relho digestivo – o que ridicularizaria ainda mais o Mestre.

Ao escrever ao rei de Castela, seu genro, incitando-o a invadirPortugal, move-se, segundo as fontes consideradas pelo cronista, pelo desejode vingança, que intentava tirar do Mestre e seus partidários: “depois queelRei de Castella chegasse, (…) que a vimgaria de todos, espeçiallmente doshomees e molheres de Lixboa de que ella dezia, que numca avia de seervimgada, ataa que tevesse huu tonell cheo das linguas dellas” (LOPES, 1977,p. 105). Nota-se que o discurso indireto, confundindo as falas de Leonor Telese do narrador, lança mão da sinédoque – figura entendida (LAUSBERG, 1976,v. II, p. 291) como meio de dissimulação por excelência – para referenciar oodioso desejo da rainha em relação aos lisboetas, principalmente às mulheresdas quais deseja as línguas, numa clara alusão à maledicência e às acusaçõesde adultério que lhe faziam.

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A aliança da Regente com o genro é, no entanto, bastante efêmera,sendo ela comparada ao princípio abstrato a que se liga – a malícia, cuja‘peçonha’ se volta contra si: “Se dizem que a malliçia bebe gram parte da suapeçonha, bem sse pode esto dizer da Rainha dona Lionor” (LOPES, 1977, p.129). Na base da desavença entre ambos, estaria o fato de ser ela “mui soltaem fallar” (LOPES, 1977, p. 130).

Diante da situação, não mascara o sofrimento: “desamparada dasua primeira esperamça, e posta em amargosas e tristes cuidaçoões, mostra-va de ssi torvado sembramte, de guisa que quallquer lhe podia emtemderseus nojosos pemssamentos” (LOPES, 1977, p. 133). Mas nem assim termi-nam os ditos espirituosos e ferinos de Leonor Teles. Respondendo ao beija-mão do conde D. Gonçalo, critica a hipocrisia das vênias cortesãs através dafrase “Maão beyja home que queria veer corta” (LOPES, 1977, p. 135). Issotorna o seu discurso duplamente mascarado, uma vez que disfarça a cumpli-cidade que teria estabelecido com este nobre, às escondidas, com o fito delivrar-se do genro, que a mantinha prisioneira. E em resposta ao metafórico‘jantar’, que o conde se dispõe a oferecer ao rei, ironiza-lhe a blasonaria:

“O que lhe eu farei,” disse o Comde, “he esto: se elRei com cem lamçase ella quiserem viinr comer comigo demtro em esta villa, eu lhe dareimui bem de jamtar”. “ElRei”, disse ella, “nom faria essa cousa e issossom pallavras de boom mercado” (LOPES, 1977, p. 135).

Note-se que a ironia da rainha aponta para a atividade mercantilista,que novamente serve de referência para as analogias estabelecidas.

Abrindo um parêntese, há que se atentar para o fato de que a pos-sível conspiração de Leonor Teles contra o genro é malograda. E há indíciosde que tenha sido por ele inventada, para desculpar o afastamento definitivoda sogra que, como punição, seria enclausurada num convento castelhano.Teria sido forjada, segundo José Hermano Saraiva (1977, p. 519), para “liqui-dar a posição política de Leonor Teles”, uma vez que o judeu cúmplice nogolpe, e que o confessa, é por demais facilmente perdoado e atendido nopedido de dispensa de tortura: “nom avia por que o dessomrar” (LOPES, 1977,p. 140). Conforme lembra o historiador, “os interrogatórios aos acusados decrimes graves eram feitos durante a tortura; esta deixava lesões e deformidadespermantentes e era considerada infamante” (SARAIVA, 1977, p. 519).

As perífrases com as quais o rei castelhano se refere ao judeu e àrainha não deixam de ter um matiz irônico, até pelo eufemismo, construído a

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partir das antíteses vida / morte, com que se refere à traição da sogra: “Maisrrazom he,” disse elRei, que seja elle aqui que me deu a vida, que quem metiinha bastiçida a morte” (LOPES, 1977, p. 140; sublinhamos).

Na resposta ao genro, Leonor demonstra toda a sua coragem erebeldia, acusando-o inclusive de ter inventado a conspiração para culpá-la eafastá-la; serve-se, então, de um sarcástico provérbio popular: “Digovos quequamto a isto podem bem dizer, que quem o seu cam quer matar, rraiva lhepoem nome” (LOPES, 1977, p. 141).

A partir de então, a rainha passa a mostrar simpatia pelo Mestre,exortando os seus a seguirem-no e lamentando ter ele tantos traidores juntode si. E a ironia que lhe caracteriza a linguagem, novamente utilizando umadágio, torna-se agora melancólica: “Porque quamtos demtes te na boca, to-dos lhe aballam senom huu”. Isto é, seria traído por todos, menos por um: “Eeste dizia que era NunAllvarez” (LOPES, 1977, p. 337; sublinhamos).

O narrador endossa tal opinião e tal metáfora – dos dentes queapodrecem, equivalentes aos traidores – ao referir-se ao alcaide de Leiria, quese passou para os castelhanos, vindo mais tarde a morrer em Aljubarrota:“Assi que sse ao Meestre aballavom todollos demtes, como disse a Rainhaem Castella, bem aballou este e apodreçeo, ataa que cahiu de todo comofezerom outros” (LOPES, 1977, p. 34; sublinhamos). Assim, assumindo-lhe odiscurso, o narrador, de certa forma, redime Leonor Teles.

Resta lembrar que, entre os opositores do Mestre, alguns se nota-bilizaram como traidores. Tal é o caso de Vasco Porcalho, apresentado comotraidor de “boas e mesuradas rrazoões, como he custume dos que emganarquerem” (LOPES, 1977, p. 167; sublinhamos). Da mesma forma, João Afon-so e Garcia Gonçalves que, no malogrado cerco do Mestre a Torres Vedras,entregue ao castelhano João Duque, traíam-no dissimuladamente “per escpritose sinaaes” (LOPES, 1977, p. 331-332); aliás, aqui novamente o cronista fazreferência também à linguagem gestual, fazendo-nos imaginar a cena.

Para finalizar, há que se atentar para o fato de que, do mesmomodo com que o discurso do narrador termina por corroborar o de LeonorTeles, como vimos acima, a sua irônica metáfora do ‘pescador’, com a qualdenunciou os oportunistas, já fora utilizada no discurso (direto) de certos‘portugueses desnaturados’, dirigido ao Arcebispo de Santiago, em Braga,em relação ao seu plano de cercar o Porto: “se er ouverem voomtade desahir a pellejar comnosco, numca pescador lamçou melhor lamço, do quenos em isto podemos lamçar” (LOPES, 1977, p. 203).

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Substitui-se, pois, o sentido da metáfora bíblica, usada com finali-dades puramente espirituais, pelo sentido contrário, de busca de honras ehaveres. O que acarreta desconfiança para com as analogias bíblicas usadaspara enaltecer os revolucionários, que poderiam todas elas estar a serviço daironia do autor. Este assim se eximira da acusação de parcialidade, atendo-seà verdade dos fatos, mostrando-lhes as várias faces.

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Considerações finais

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Vista de Lisboa no início do século XVI conforme a tarja superior da folha inicial daCrônica de D. João I, de Fernão Lopes, pertença do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.Avivada à pena e reproduzida por Anselmo Braamcamp Freire na sua edição da referidaCrônica (Arquivo Histórico Português, 1915).

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Fernão Lopes, apesar da origem plebéia, foi homem de vasto sa-ber, autoridade e prestígio, ocupando cargos de confiança nas cortes dos pri-meiros reis da Dinastia de Avis – D. João I e D. Duarte, bem como na Regên-cia do Infante D. Pedro. Um destes cargos, o de guarda-mor da Torre doTombo, facilitar-lhe-ia o acesso aos documentos; e a intimidade com a CasaReal, da qual foi escrivão, indica o lugar de onde escreveu e ao qual servia,sem no entanto nunca ter cortado os laços que o ligavam aos populares, ami-gos e parentes. Esse lugar era também de profundo interesse pelo conheci-mento, onde inclusive autores como Cícero foram traduzidos. E se o cronistanão cursou a universidade, certamente que compartilhava junto aos príncipesavinicenses de um saber que nada tinha de ingênuo ou comum.

Importa-nos destacar que dentre os assuntos que interessaram so-bremaneira à Corte encontrava-se a retórica de Cícero, cuja tradução do Deinventione D. Duarte encomendou; como também a arte de pregar, de que oconfessor de D. João I, Frei Alfonso d’Alprãho, foi inclusive teorizador. Nãoé, pois, estranho a tal contexto de produção que já desde o Prólogo da Crônicade D. João I, primeira parte, o cronista-mor do Reino nos indique ser o seuum discurso preocupado com a demonstração da ‘verdade’ dos fatos, com aimparcialidade no enfoque dos mesmos e, por extensão, com a persuasão dosleitores-ouvintes para a honestidade do narrador e do narrado. Já então, bemcomo no correr da obra, muitos são os elementos desveladores do domínio daretórica filosófica de Aristóteles e da sua revitalização por Cícero e SantoAgostinho, dentre outros. Por extensão, da prédica medieval, fundamentadanas tradições clássica e judaico-cristã concernentes ao discurso que se querconvincente, persuasivo ou didático.

O que se intenta, inclusive, é combater o tédio do interlocutor,mediato ou imediato, com a finalidade de melhor e mais facilmente conquistá-lo para a causa de Avis, através de elementos argumentativos emotivos, quese vêm juntar aos racionais, estes pertinentes à demonstração pura e simplesdos fatos, às provas documentais e testemunhais. E realiza-se a defesa, oelogio e o aconselhamento dos comportamentos de portugueses ‘verdadeiros’que construíram a nova Dinastia. Bem como do trabalho do escritor, quereconhece a dificuldade de “per escprito” reproduzir com exatidão os fatos ea impossibilidade de a todos agradar, “assi como huu vemto nom podecomprazer a desvairados mareamtes” (LOPES, 1977, p. 306).

Como vimos, a crônica se confessa “com gram trabalho ordenada”(LOPES, 1977, p. 306), o que dá conta da preocupação do autor com a sua

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dispositio. O trabalho de compilação do cronista, mostrando-se análogo aolabor do camponês, é por ele metaforizado em ‘enxerto’, ressaltando-se, as-sim, o caráter mimético do seu labor, que ‘re-produz’ a realidade: o ‘enxertador’,embora trabalhando com matéria pré-existente, conseguirá um resultado queé produto, isto é, um resultado modificado da realidade, nele entranhada con-tudo. Para tanto, concorre, ao lado dos documentos pesquisados, as tradiçõeshistoriográfica e retórica latina e peninsular, e inclusive a herança das can-ções de gesta, das novelas de cavalaria e dos escárnios e maldizeres jogralescos.E o ‘enxerto’, ou por vezes o simples ‘juntar de vegetais’ ou ‘semear’, naesteira da tradição bíblica – ações às quais o cronista compara a construção dosdiscursos (LOPES, 1977, p. 55-281, p. 304, p. 368) –, resulta numa obra alegó-rica e mitificadora, mas sobretudo irônica, na acepção original do termo – isto é,questionadora –, da Revolução de 1383-1385 em Portugal.

A analogia que se estabelece com o Cristianismo – não fora a revo-lução retratada dos “pequenos” contra os “grandes” – marca-lhe o caráter denarrativa exemplar, maniqueísta, onde o Bem vence o Mal, sendo recompen-sados os bons – os ‘portugueses verdadeiros’ –, e punidos os maus – os rea-cionários, invasores e cismáticos. E a luta se configura nas tensões entre lealdadee deslealdade, justiça e injustiça, verdade e mentira, claro e escuro, luz etrevas, amor e ódio, Eros e Thanatos – enfim, Bem versus Mal, subordinantede todas as demais.

A história contada pelos ornamentos, ampliando os horizontes danarrativa dos fatos e extrapolando os limites de tempo e espaço, corre-lhe para-lela e crítica, modificando a linearidade das suas partes ou sequências econdensando-as na tensão alegórica apontada. Veicula o símbolo e o mito, atri-buindo a D. João de Avis características soteriológicas, como a que se depreendeda imagem do claro, corrente e fecundante rio ao qual foi comparado (LOPES,1977, p. 286) e que simboliza a possibilidade de revitalização, de renovaçãocósmica (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1973, v. II, p. 331) – portanto, umaimagem bem apropriada àquele que foi o fundador da nova dinastia.

A analogia mais insistente é a que se estabelece entre o Mestre deAvis e Jesus Cristo e, em decorrência, entre Lisboa, esposa do Mestre, e aIgreja, esposa de Cristo (LOPES, 1977, p. 307), bem como entre Nun’Álvarese Pedro (LOPES, 1977, p. 299-300). Este, com os demais ‘discípulos’, foraencarregado de pregar pelo reino o ‘Evangelho Português’, revolucionário eanticismático.

Encarando-se a obra de Fernão Lopes em relação ao contextosociocultural de onde emerge, vê-se que tal procedimento – comparar fatos e

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personagens históricos a elementos bíblicos – era corriqueiro em sua época.Com Mircea Eliade (1975, p. 211-213) vale lembrar que “certos movimentoshistóricos da Idade Média ilustram de uma maneira particularmente gritanteas manifestações mais típicas do pensamento mítico”. Reporta-se Eliade àsexaltações milenaristas e aos mitos escatológicos “que aparecem nas Cruza-das, nos movimentos de um Tanchelm e Eudes de l’Étoile, na elevação deFrederico II à categoria de Messias” – não sendo esta última, como frisa ele,“senão um exemplo ilustre de um fenômeno muitíssimo difundido e persis-tente”. E acrescenta que até o século XVII se manteve na Europa, sob a influ-ência da religiosidade, essa “função escatológica dos reis”. Até porque

A secularização do conceito de Rei escatológico não aboliu a esperança,profundamente arraigada na alma coletiva, de uma renovação universaloperada pelo Herói exemplar sob uma de suas novas formas: oReformador, o Revolucionário, o Mártir (em nome da liberdade dos po-vos), o Chefe do Partido (ELIADE, 1975, p. 213; traduzimos).

Portanto, o caráter messiânico atribuído pelos ornamentos ao Mes-tre, mesmo que ridicularizado pela ironia dos seus opositores ou do própriocronista, faz eco às tendências então vigentes na Europa. Na percuciente in-terpretação de Luís de Souza Rebelo (1983, p. 57), o fenômeno que se obser-va, no entanto, “não apresenta rigorosamente as características que se associ-am com um movimento messiânico”. Não há “nas camadas sociais, que, deinício, vão seguir o Mestre de Avis, a mentalidade apocalíptica da espera deum redentor, nem tão-pouco se nota nelas a passividade que antecede a Parusia,ou seja, o segundo retorno do Messias depois da morte”. Ao contrário, omovimento de 1383 “tem uma germinação demorada e sai de conversas derua e de janela, de aglomerações espontâneas nas praças das vilas e cidades,para comentar os acontecimentos do momento, até se darem os primeirospassos no sentido da acção revolucionária”. O que ocorre, sim, é um sutilprocedimento retórico que “adopta livremente, no plano providencial da nar-rativa, a técnica do sermão e o método da exegese medieval” para veicular “osentido último da sua mensagem” (REBELO, 1983, p. 58).

Lembremos que Rebelo parte do pressuposto de ser a crônicaconstruída em três planos: ético-político, jurídico e providencial. O leitor se-ria levado a “fazer uma leitura retrospectiva do texto”, da seguinte forma:

Partindo do significado literal dos sucessos e dos feitos dos personagens,dado no discurso histórico, ele ascende ao sentido moral, que lhe forne-cem os planos ético e jurídico do discurso político, onde encontra a lição

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das obras exemplares ou anagógicas e o rol dos actos viciosos. E irávoltar ao plano providencial, onde se revelará o sentido alegórico, que oselementos para-religiosos, disseminados pela trilogia [as três crônicas deFernão Lopes], haviam sugerido e que só agora lhe será possível coorde-nar na totalidade (REBELO, 1983, p. 58).

Portanto, confirma-se a construção alegórica do providencialismodo Mestre, através das figuras e/ou tropos da analogia, notadamente do símile,como vimos. Isto se veio processando desde a Crônica de D. Pedro (LOPES,1966, p. 276), através do sonho deste rei, profético em relação ao seu filho D.João: este, lembramos, se apresentava como salvador do reino de Portugaltransformado em uma grande fogueira, cujo fogo apagava. Por isto recebeudo pai o Mestrado de Avis ainda criança. A profecia se cumpre, sendo queLisboa, quando do cerco pelos castelhanos, se apresenta também metaforizadaenquanto ardendo no “fogo da sua grã tribulaççom” (LOPES, 1977, p. 279),salva pela misericórdia divina e “purgada de todas fezes no fogo da lealldade”(LOPES, 1977, p. 279).

Outras profecias, relativas ao Mestre e ao seu braço direito,Nun’Álvares, e ainda ao Rei de Castela, percorrem a crônica, contribuindopara reforçar a dimensão providencial da mesma – por exemplo, respectiva-mente, os augúrios do emparedado Frei João da Barroca (LOPES, 1977, p.42) e do Mestre Tomás (LOPES, 1977, p. 58), bem como do brasão portuguêsque o vento descoseu da bandeira do castelhano. Também se registram algunsmilagres, que culminam com a atribuição do poder de cura às moedas manda-das lavrar pelo Mestre (LOPES, 1977, p. 88).

Quando o Mestre de Avis se dirigia para as cortes reunidas emCoimbra a fim de discutirem a questão da vacância do trono, os miseráveis oacompanhavam – muito embora a seu pesar, pois preferia homens preparadospara a luta, como faz questão de frisar o cronista –, pelo que é comparado aMoisés, a guiar o povo oprimido pelo deserto (LOPES, 1977, p. 339-340). Asua chegada à cidade lembra a entrada triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém,sendo festiva e espontaneamente aclamado rei de Portugal pelos jovens. Estefato, também ‘profético’, em pouco tempo se concretizaria com a sua eleiçãopara rei de Portugal (LOPES, 1977, p. 342-345), mesmo que tramado politica-mente.

A alegoria da Revolução se configura irônica, procedimento retóricoque se desvela, uma vez que o narrador chama aos tempos pós-revolucionári-os de Sétima Idade, “com ousamça de fallar, como quem jogueta” (LOPES,1977, p. 308). Nela abundam os ‘pescadores’, metáfora referente aos oportu-

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nistas, que se afidalgaram e enriqueceram, e dos quais se originou grandeparte da nobreza da época em que a crônica era redigida (1443).

Tal ironia coloca em questionamento o caráter redentor da Revolu-ção, que no entanto se enfatiza na confirmatio e na peroratio da obra, atravésdos discursos reproduzidos do Frei Rodrigo de Sintra e do Dr. João das Regras,bem como da ladainha alegórica enunciada pela prosopopeia de Lisboa, quereapresenta a voz unificada da coletividade. Através dela, são louvados os ‘dis-cípulos’, os ‘mártires’ e os ‘confessores’ da ‘religião’ de Avis, e anunciada aoficialização próxima do ‘casamento’ da cidade com o Mestre – ou seja, dos‘vilãos’ com o Rei. Tal alegoria aponta para o declínio do poder senhorial, ou aomenos para a substituição das velhas fidalguias pelos “burgueses-cavaleiros”(COELHO, 1977, p. 138), a nova classe de privilegiados (SERRÃO, 1978, p. 144).

O sentido mítico da Revolução se corrobora pelos ornamentos queestabelecem analogia entre o humano, o animal, o vegetal e o mineral. Istoatribui à luta um caráter cosmogônico, onde se defrontam elementos não ape-nas culturais, mas naturais e sobrenaturais, colocando-se a providência divinaao lado dos portugueses. Como nos sermões, são utilizados a serviço daamplificatio e reforçam na obra o árduo embate alegórico entre o Bem e o Mal.

A ironia, assumida pelo cronista, que assim aponta para a relativi-dade da verdade, excusa-o de ser condenado pelo uso da linguagem figurada,‘afremosentada’, na crônica. Usa-a para criticar a falsa nobreza que se instau-ra nos tempos revolucionários, como também o clero, mais preocupado comos sucessos políticos que com as obrigações religiosas, e, ainda, o cinismodemagógico do líder político Álvaro Pais. Também não deixa de mostrar aatrocidade e o sarcasmo do povo, embora lhe destaque a coragem e lealdade.

No discurso (direto) dos personagens, sobretudo dos nobres, se faznotória a facécia, notadamente a ironia ou o sarcasmo. Através dela, é menos-prezado por Nun’Álvares e seus escudeiros o valor combativo dos inimigos;o Mestre é objeto do sarcasmo dos ‘grandes’, principalmente ao chamarem-no pejorativamente de ‘Messias de Lisboa’; etc.

A ‘aleivosa’, que é a voz reacionária mais ferina, caracterizando-se oseu discurso quase que exclusivamente pela crítica aos seus opositores, seria noentanto castigada pelo genro, bebendo, assim, da sua própria peçonha (LOPES,1977, p. 129). Ao passo que o Mestre, o de poucas palavras, o muitas vezessimplório, seria recompensado com a coroa, ao final, apontando o fato para umadas bem-aventuranças evangélicas segundo Mateus (5, 3): “Bem-aventurados ospobres em espíritos, porque deles é o Reino dos Céus” (BÍBLIA, 1981, p. 1288).

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Aliás, num contexto alegórico onde predominam as figuras e/outropos da similaridade (metáforas, símiles, etc.), o discurso de Leonor Telesdele se distingue, constituindo-se quase que exclusivamente de figuras e/outropos da contiguidade (sinédoques, metonímias, etc.). É a grande opositora,também na formalização do seu discurso. A tal personagem/discurso, que secircunscreve no âmbito do Mal, só restaria a punição, no contexto maniqueístaem que se apresenta. Com o castigo, efetivado pelo genro que a enclausuranum convento castelhano, a Rainha passa a simpatizante do Mestre, podendoo narrador, inclusive, endossar a melancólica ironia – através da imagem dosdentes que lhe cairão – com que, ao final, se refere aos traidores que cercamo Mestre, à exceção de Nun’Álvares (LOPES, 1977, p. 337). A “briga” dediscursos chega ao fim. E a crônica tem também os seus últimos momentos,cessada a polifonia que a alimentava.

Importa observar, ainda, que os exemplos da Bíblia, ou seja, daVerdade que se impunha soberana no medievo, caracterizam o discurso donarrador, bem como o do frade e até mesmo o do jurista; mas não os discursosdiretos das demais personagens. Quando os opositores lançam mão de referên-cias bíblicas, fazem-no ironicamente, como no caso do ‘Messias de Lisboa’. Asua preferência vai para as fábulas, para os provérbios e ditos populares.

Também vale observar que, a par dos ornamentos bíbliolitúrgicos,são também utilizados os que se ligam à Antiguidade Clássica, embora maisraramente. Sentimentos são, por eles, personificados, como na alegoria da‘corte do amor’ (LOPES, 1977, p. 6), da ‘morada da inveja’ (LOPES, 1977, p.90), etc. – o que não desmente, antes corrobora, a visão mítica que a crônicafornece dos acontecimentos, mesmo que posta em questionamento através daironia. Tais reminiscências clássicas eram, aliás, correntes na Idade Média.

Para finalizar, vimos que, manipulando a língua portuguesa emseus primórdios, a prosa de Fernão Lopes se apresenta num estilo simples edireto, tendendo para a representação do sensorial comum, do concreto muitomais que o abstrato, derivando para um visualismo que é a característica porexcelência da época. Concordamos com Manuel Rodrigues Lapa (1973, p.374-375) ao afirmar que esse “sentido visual extremamente apurado” nãoindicaria um “certo depauperamento da inteligência”. Ao contrário, “a ima-gem é um processo eminentemente artístico e até pedagógico, para substituirno discurso o abstrato pelo concreto”.

Esse visualismo se comprova no exame dos ornamentos a que pro-cedemos, os quais, a par de esclarecerem a sua própria formalização, se ligam à

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mundividência de então, extraindo os seus comparantes da realidade medieval,sobretudo de atividades então desenvolvidas pelo homem – cavaleiro, agricultor,pescador, marinheiro, comerciante, religioso. A abundância de símiles quepermeiam a obra é mostra dessa tendência para o concreto e para o analítico porparte do cronista – ligam-se à alegoria mas a desvanecem, por marcarem muitoclaramente a distância que vai do ordo naturalis ao ordo artificialis.

Equilibrando-se entre a lógica persuasiva, que é seu objetivo pri-meiro, e a singela elegância estilística que marca a obra, Fernão Lopes podeser comparado aos grandes artistas da arquitetura, escultura e pintura góticas,conforme já observara Hernani Cidade (1960, p. 55-65). O messianismo his-tórico, a escolástica, a oratória – que, através do clero, manteve viva e atuantea tradição retórica dos gregos – ao lado da arte gótica – com seu dualismo eabertura –, são elementos que, correlacionados, se complementam e marcama crônica. Nela se patenteia, pois, de um lado, e à primeira vista, o religiosismomedieval e a sua aceitação do sobrenatural. De outro, a visão crítica dos fatose a abertura para com a contribuição clássica.

E o cronista estabelece, assim, magnificamente, o diálogo com ocontexto de produção da obra, para o qual é também chamado o leitor/ouvinte,e do qual emerge a voz da Bíblia, como ponto de coesão, mesmo que crítico.Com o que a ‘Revolução de Avis’ ganha foros de Guerra Santa.

A época – em que o poder dos conselhos rivalizava com o poderfidalgo, e em que se dera a eleição de um rei pelas cortes, persuadidas pelodiscurso de um jurista – lhe permitia escrever uma obra de características nãoapenas epidíticas, mas judiciais-deliberativas, onde a persuasão do interlocutorpara a(s) verdade(s) apresentada(s) é desejável, não a sua imposição. Daí quese permita dialeticamente ironizar/questionar os próprios méritos dos parti-dários do Mestre, sendo ele próprio um escritor da Casa de Avis.

As interpelações constantes ao leitor-ouvinte demonstram a preo-cupação recorrente com seu interesse e julgamento. Bem como o reconheci-mento de ser impossível a todos agradar a sua narrativa, embora para isto seesforce, uma vez que, ao mesmo tempo, enaltece e ironiza os acontecimentos.

E as concessões teriam de ser feitas. Daí resultaria o retratohierático do Santo Condestável, que, diga-se de passagem, foi o ascendenteda Casa de Bragança, a mais poderosa ao tempo em que o cronista redigia asua obra, mas também a de depurada origem – o que, de certa forma, redimeo autor, que, através do panegírico desse fidalgo exemplar, critica a falsanobreza que se formara na ‘Sétima Idade’.

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Embora fosse seu mecenas o Regente D. Pedro, apoiado pelas forçaspopulares como D. João de Avis seu pai o fora, este pôde ser retratado emsuas falhas, sobrepondo-se a elas e firmando o seu poder, duradouro por sinal.E o povo, rude, ignorante, por vezes brutal, mas fiel, sai engrandecido, nãoatravés do discurso figurado, mas pela demonstração de suas ações, pela fir-meza da sua união em torno do líder acatado. Do que dá conta a linguagemcoletiva e anônima do seu discurso, que se enuncia por cantigas e pregõescomo o que, logo ao início da Revolução, conclamavam em altos brados, auma só voz: “Arreall! Arreal! por o Meestre de Davis, Regedor e Deffemsordos rregnos de Portugall!” (LOPES, 1977, p. 198).

Enfim, cremos não restar dúvidas quanto a ser a crônica de FernãoLopes uma cuidadosa construção a serviço da Dinastia de Avis – em seus trêsgrandes planos, o ético-político, o jurídico e o providencial (REBELO, 1983,p. 27). Onde, então, estaria a verdade que tão insistentemente apregoa, desdeo Prólogo da obra?

A ‘nua verdade’ do cronista apresenta-se em sua relatividade: D.João de Avis é filho ilegítimo, mas os seus rivais lhe são até inferiores nessequesito; como também no da traição à palavra empenhada, atenuando-lhe aculpa ter sido o seu compromisso feito a uma Rainha com fama de “aleivosa”e cujo casamento com D. Fernando possuía caráter dubitativo. Mas o que otorna definitivamente superior aos demais candidatos ao trono é a sua fideli-dade e dedicação à Casa de Portugal e à Igreja Romana. Por conseguinte, averdade defendida por Fernão Lopes pode ser entendida como a dos portu-gueses ‘verdadeiros’ (os que não se bandearam para o lado do rei de Castela)e a dos ‘verdadeiros’ cristãos (os que não aderiram ao Cisma).

Marca-se, portanto, o valor do escritor também pela eficácia dasua retórica a serviço da causa de Avis. E, sobretudo, pela originalidade daironia que lhe caracteriza o estilo, permitindo ao leitor vislumbrar o outrolado da verdade, o seu caráter relativo: conforme distinguira na Crônica deD. Pedro, há os leitores “de chaão e simprez entender” e os “mais sotiisd’entender, leterados e bem discretos” (LOPES, 1966, p. 215). A estes, sãodados os elementos para que seja questionado o enunciado manifesto, nabusca da hermenêutica mais precisa do conteúdo latente. Sem a pretensãode tê-la alcançado, o presente estudo se oferece como contribuição para osque intentem obtê-la, intenção com que espera ser desculpado das falhasque possa apresentar.

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Referências

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5. DicionáriosCHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire de symboles. 4 vols. 6.ed., Paris: Seghers, 1973.FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI. O dicionárioda língua portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.LARROUSSE CULTURAL, Grande enciclopédia. São Paulo: Nova Cultural, 1998.MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 5 vols. 5.ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1989.MAGNE, Augusto. Glossário da Demanda do Santo Graal. Vol. I. Rio de Janeiro:INL, 1967.MOISÉS. MASSAUD. Dicionário de termos literários. 2. ed. revista. São Paulo:Cultrix, 1978. 12. ed. revista e ampliada, 2004.NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 1a. e únicaed. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1932.PRADO COELHO, Jacinto do (ed.). Dicionário de literatura – Literatura brasileira,literatura portuguesa, literatura galega e estilística literária. 3 vols. 3. ed. Porto:Figueirinhas, 1937.SERRÃO, Joel. (dir.). Dicionário de história de Portugal. Lisboa: IniciativasEditoriais, 1971.SILVA, Antônio de Moraes. Diccionário da língua portuguêza, composto pelo Pe.Raphael Bluteau, reformado e acrescentado por Antonio de Moraes e Silva. 2 vols.Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.TAVANI, Giuseppe, LANCIANI, Giulia (Org.). Dicionário de literatura medievalgalega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993.VITERBO, Joaquim de Santa Rosa de. Elucidário das palavras, termos e frases, queem Portugal antiguamente se usarão e que hoje regularmente se ignorão. 2 vols. 3ed. acrescentada, de Mário Fiúza. Porto: Liv. Civilização Ed., 1962.

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Mosteiro da Batalha, que D. João I, em cumprimento de voto feito, mandou edificar emhonra de Santa Maria, após a vitória alcançada na Batalha de Aljubarrota de 14 de agostode 1385. Belo exemplo de arquitetura gótica tardia, seu primeiro mestre e certamentearquiteto foi Afonso Domingues e sua construção se estendeu por vários reinados. Fotografiado usuário Waugsberg, Wikimedia Commons.

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Coleção Estante medieval - números anteriores:

1. As cantigas de Santa Maria. Um estilo gótico na lírica ibéricamedieval.Autor: Bernardo Monteiro de Castro

2. As cantigas de D. Joan Garcia de Guilharde e estudos dispersos.Autor: Oskar NobilingOrganizadora: Yara Frateschi Vieira

3. Reflexões sobre a hagiografia ibérica medieval. Um estudocomparado do Liber Sancti Jacobi e das vidas de santos deGonzalo de Berceo.Autora: Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva

4. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do séculoVI. O modelo de monarca nas obras de Martinho de Bragadedicadas ao rei suevo.Autora: Leila Rodrigues da Silva

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Esse livro foi impresso em julho de 2010 na cidadedo Rio de Janeiro nas oficinas da Stamppa GrupoGráfico com tiragem de 500 exemplares; a tipologiaaplicada no miolo foi a Times New Roman e o papelutilizado, o Pólem Soft 75g/m2; para a confecção dacapa usou-se o papel Cartão Supremo 250g/m2.