Filosofias Da Matematica Jairo Jose Silva P&B

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O presente livro, Filosofias da Matemática, de Jairo José da Silva professor com invejável formação tanto em matemática quanto em filosofia - é a primeira apresentação sistemática em português das posições tradicionais e atuais daquela problematização filosófica sobre a matemática.

Citation preview

  • Jairo Jos da Silva

    oeditoraunesp

    Filosofia da matemtica

  • Este livro nasceu na sala de aula, pois foi escrito originalmente para um curso de Filosofia da Matemtica ministrado a alunos de ps-graduao em Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Unicamp, repetido alguns anos depois. Esses alunos formavam um grupo muito particular; com graduados em filosofia, que conheciam pouca matemtica (como ocorre em geral, infelizmente, com estudantes de filosofia) e estudantes de matemtica que conheciam pouca filosofia (outra caso a lamentar), alm de graduados em outras reas, que no conheciam muito bem nem uma nem outra. Mas todos eram inteligentes e interessados o suficiente para que tais deficincias no constitussem um problema. Por isso, eu evito aqui, como evitei nos cursos originais, pressupor qualquer conhecimento prvio, quer em filosofia quer em matemtica.

    Sempre que possvel eu explico em que determinada postura filosfica consiste, enuncio teorias em term os mais simples, escolho exemplos matemticos elementares, esclareo o significado de questes matemticas menos triviais, procurando sempre a maior clareza de que sou capaz.

    H, infelizmente, certa confuso entre dificuldade e obscuridade em alguns meios filosficos muito preocupados em dar filosofia uma absurda aura de mistrio (talvez porque temam degrad-la, ou degradar-se). Um assunto pode exigir esforo para que encontremos o ponto de vista de onde seus elementos se encaixam num todo articulado com sentido explcito, como aqueles na Praa de So Pedro em Roma, de cuja mirada as colunas de Bernini se alinham perfeitamente, restaurando a racionalidade do conjunto.

    No pensamento obscuro, por outro lado, esse ponto no existe, no importa quanto o procuremos, As grandes filosofias, como a de Kant ou Plato, podem ser difceis, mas nunca obscuras. Eu penso

  • F i l o s o f i a sDA M ATEM TICA

  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador Flerman VoorwaldDiretor-Presidente

    Jos Castilho Marques Neto Editor Executivo

    Jzio Hernani Bomfim GutierreConselho Editorial Acadmico

    Antonio Celso Ferreira Cludio Antonio Rabello Coelho

    Jos Roberto Ernandes Luiz Gonzaga Marchezan

    Maria do Rosrio Longo Mortatti Maria Encarnao Beltro Sposito

    Mario Fernando Bolognesi Paulo Csar Corra Borges

    Roberto Andr Kraenkel Srgio Vicente Motta

    Editores Assistentes Anderson Nobara

    Arete Zebber Christiane Gradvohl Colas

  • JAIRO JOS DA SILVA

    Filosofias da matemtica

    2a reimpresso

    editora m unesp JAPESP

  • 2007 Editora UNESPDireitos de publicao reservados : Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Praa da S, 108 01001-900 - So Paulo - SP

    Tel.: (0xx11)3242-7171 Fax: (0xx11)3242-7172

    www.editoraunesp.com.br [email protected]

    CIP - Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    S58fSilva, Jairo Jos da

    Filosofias da matemtica/Jairo Jos da Silva. - So Paulo: Editora UNESP, 2007.

    Inclui bibliografiaISBN 978-85-7139-751-41. Matemtica - Filosofia. I. Ttulo.

    07-0765. CDD: 510.1CDU: 510.2

    Este livro publicado pelo projeto Edio de Textos de Docentes e Ps-Graduados da UNESP - Pr-Reitoria de Ps-Graduao

    da UNESP (PROPG) / Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Editora afiliada:

    IAsociacin dc Edltoriales Universitrias

    de Amrica Latina y el CaribeAssociao Brasileira dc Editoras Universitrias

  • Para J.

    Com amor

  • A gradecimentos

    Quero agradecer ao C L E da Unicamp, em cujo mbito esse livro foi concebido e em cujas dependncias os cursos que o motivaram foram dados. Em particular amiga tala D Ottaviano, que criou as condies para que aqueles cursos e este livro existissem, convidando-me a fazer parte, como professor colaborador, do programa de ps-graduao em Filosofia daquela instituio. Seu entusiasmo foi, mais uma vez, uma potente fora motriz.

    A filosofia da matemtica brasileira encontra abrigo, em especial, nos Encontros Brasileiros de Lgica, a cargo da Sociedade Brasileira de Lgica, que sempre tiveram sees dedicadas a questes filosficas; aos Colquios Conesul de Filosofia das Cincias Formais, realizados na Universidade Federal de Santa Maria (RS) anualmente h dez anos, com a organizao segura de Abel Lassalle Casanave; e, claro, ao Centro de Lgica, Epistemologia e Histria da Cincia (C LE) da Unicamp, um centro de excelncia e referncia para atividades filosficas dessa natureza. Evidentemente h outros locais onde se cultiva a filosofia da matemtica, mas os nomeados so aqueles onde eu transito mais assiduamente. Aos colegas e amigos - muitos para serem individualmente listados que nessas e outras instituies e encontros mantm vivos o estudo e a pesquisa nessa rea, meus mais sinceros agradecimentos.

  • Agradeo tambm Fapesp pelo auxlio publicao concedido e ao CN Pq pela bolsa de produtividade em pesquisa vigente por todo o perodo de escrita deste livro.

  • S umrio

    Apresentao 11 Prlogo 13 Introduo 25

    1 Plato e Aristteles 312 Leibniz e Kant 773 Frege e o Logicismo 1234 O Construtivismo 1435 O Formalismo 1 83

    Eplogo 221 Bibliografia 237

  • A presentao

    Questes sobre a natureza dos objetos da matemtica e o carter do conhecimento matemtico tm uma longa histria no decorrer da filosofia ocidental. Entre os filsofos que mais influenciaram essas discusses esto Plato, Aristteles, Leibniz e Kant. Mas foi somente no sculo 19, com a formulao do programa logicista de fundamentao da matemtica por Frege, Dedekind e Peano, que a filosofia da matemtica chegou maturidade. As dificuldades que surgiram no incio do sculo 20, com a descoberta dos paradoxos da lgica e da teoria de conjuntos, afetando diretamente o projeto logicista, levaram um grupo notvel de matemticos e filsofos a propor diversos programas filosficos de fundamentao da matemtica. Surgem assim uma verso renovada de Logicismo, formulada principalmente por Russell, vrias verses de Construtivismo formuladas por Poincar, Brouwer, Weyl e outros, e uma importante verso do Formalismo formulada por Hilbert.

    O presente livro, Filosofias da Matemtica, de Jairo Jos da Silva professor com invejvel formao tanto em matemtica quanto em

    filosofia - a primeira apresentao sistemtica em portugus das posies tradicionais e atuais daquela problematizao filosfica sobre a matemtica. Baseado em um curso introdutrio ministrado por Jairo na Unicamp, o livro vem preencher uma importante lacuna editorial

  • 12 JAIRO JOS DA SILVA

    e ser uma referncia indispensvel tanto como texto para cursos de graduao e ps-graduao em Filosofia da Matemtica como para leitores independentes, com alguma formao filosfica e matemtica. E um grande prazer para mim apresent-lo e tambm poder passar a utiliz-lo em meus cursos de Filosofia da Matemtica.

    Oswaldo Chateaubnand Filho

  • Prlogo

    Desde os gregos antigos, que praticamente a inventaram, at hoje, a matemtica d origem a problemas que ela mesma no pode resolver. Eu no me refiro queles famosos, como a duplicao do cubo ou a quadratura do crculo por rgua e compasso1, a soluo da equao do quinto grau por radicais1 2 ou o ltimo teorema de Fermat3, que desafiaram a inteligncia de matemticos por sculos, mas que foram resolvidos (o ltimo da lista) ou dissolvidos pela demonstrao da impossibilidade de sua resoluo (os outros), nem queles problemas que ainda, neste momento, esto espera de soluo, como

    1 Quadrar um crculo significa construir, usando apenas uma rgua para traar retas e um compasso para traar crculos, um quadrado cuja rea seja igual rea do crculo dado. A restrio rgua e ao compasso equivale exigncia que a construo utilize apenas retas e crculos como elementos bsicos.

    2 Ou seja, por operaes algbricas usuais, incluindo a radiciao, sobre os coeficientes da equao.

    3 Pierre de Fermat (1601-1665) afirmou que a equao x" + y" = z", em que n um nmero inteiro positivo, no admite razes x ,y ez inteiras (ou fracionrias) para n maior do que dois, mas no apresentou nenhuma demonstrao desse fato. Esse teorema (conhecido como o ltimo teorema de Fermat), apesar dos esforos hercleos que geraes de matemticos empregaram, s foi demonstrado por A. Wiles em 1995, mais de trs sculos depois de enunciado.

  • 1 4 JAIRO JOS DA SILVA

    a hiptese de Riemann4. Eu tenho em mente problemas de um tipo especial, que em geral surgem em momentos de crise do pensamento matemtico, mas que podem aparecer a qualquer momento, desde que nos coloquemos a certa distncia da matemtica e a encaremos com algum estranhamento. A s questes a que me refiro no so problemas de matemtica, mas sobre a matemtica.

    Algumas tm carter geral e surgem assim que contemplamos a matemtica de uma perspectiva reflexiva. Por exemplo, a zoologia estuda animais, a astronomia, os corpos celestes; o que estuda a matemtica? A resposta bvia: a matemtica trata de nmeros, figuras, e outros objetos abstratos do gnero; mais que uma soluo, fonte de novos questionamentos, pois o que so, afinal, os nmeros, as figuras e os outros objetos matemticos; que realidade atribuir-lhes, so meras invenes nossas ou existem independentemente de ns e, em caso afirmativo, que lugar habitam, j que no so objetos espao-temporais? Em geral, que tipo de objeto um objeto abstrato da matemtica?

    H tambm problemas com carter mais local que aparecem no contexto de determinadas prticas e teorias matemticas. Por exemplo, correto usarmos, como os gemetras gregos da antiguidade, uma linguagem construtiva em matemtica (por exemplo, construa um tringulo eqiltero dado um dos seus lados, como pede o primeiro problema proposto nos Elementos de Euclides)? Plato, como veremos, achava que no (porque para ele os objetos matemticos, tringulos, por exemplo, preexistem e so independentes de nossas atividades). Ou ento, lcito o uso, como mtodo de demonstrao matemtica, do chamado reductio ad absurdum, em que a veracidade de uma assero demonstrada mostrando-se a falsidade de

    4 Essa hiptese (enunciada em 1859) diz respeito aos zeros, ou razes, de uma funocom domnio no corpo dos nmeros complexos (a chamada funo zeta de Riemann), um importante instrumento da teoria analtica dos nmeros (onde se estuda o domnio discreto dos nmeros inteiros positivos com mtodos desenvolvidos para o estudo de domnios contnuos, como o dos nmeros reais ou complexos). A demonstrao da conjectura de Riemann teria relevantes consequncias para a teoria dos nmeros primos e outros ramos da matemtica pura e aplicada.

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 1 5

    sua negao (extensamente usado, por exemplo, por Arquimedes, embutido em seu mtodo de exausto)? Aristteles e, cerca de 24 sculos depois, Brouwer, como tambm veremos, achavam que no (Aristteles porque demonstraes desse tipo no so causais, elas demonstram um fato, mas no do a sua causa; ns sabemos que algo verdadeiro, mas no sabemos por qu. Brouwer porque demonstraes por reduo ao absurdo lanam mo de leis lgicas cuja validade incondicional ele no reconhecia).

    Essas questes extrapolam os domnios da matemtica, elas no podem ser objetos de teorias matemticas. So questes de metodologia, ontologia, epistemologia, ou seja, questes filosficas que s podem ser objeto de reflexo filosfica (e tanto a crtica de Plato ao construtivismo da linguagem matemtica de seus contemporneos quanto a recusa, por parte de Aristteles e Brouwer, do mtodo de reductio ad absurdum s podem ser compreendidas no interior de suas filosofias). A matemtica fonte constante de questionamentos que transbordam os seus limites e requerem um contexto propriamente filosfico para serem adequadamente tratados. A filosofia da matemtica o departamento do imenso edifcio da filosofia que tem por competncia acolh-los.

    Mas, se esperamos que problemas cientficos sejam resolvidos de modo consensual, isso quase nunca acontece em filosofia. No h problema filosfico que no tenha recebido muitas respostas entre si incompatveis. Para piorar a situao, nem sempre todos os filsofos esto de acordo sobre os problemas que tm interesse filosfico, alm de raramente aceitarem os mesmos mtodos para abordar aqueles que compartilham. A causa dessa situao, em parte pelo menos, que no h em filosofia um tribunal supremo de deciso, como o teste emprico no caso das cincias naturais a no ser, claro, a coerncia lgica. Vrias teorias filosficas em si consistentes - e boas - , mas entre si incompatveis, podem coexistir. Por isso a filosofia no uma cincia. M as isso no quer dizer que ela no seja til e mesmo imprescindvel. A filosofia talvez no nos fornea conhecimento, se por isso entendemos a crena verdadeira e justificada, mas ela pode nos oferecer compreenso, se por isso entendemos a crena justificada,

  • 1 6 JAIRO JOS DA SILVA

    mas cuja veracidade no pode se avaliada. A compreenso esclarece, e por isso se justifica, na medida mesma em que ilumina mistrios que de outro modo permaneceram imersos na escurido - ainda que ela no abra o flanco a possveis testes que possam desmenti-la. Penso que filosofia no compete dar-nos teorias necessariamente verdadeiras, mas teorias interessantes que, apesar de imunes verificao, podem, ainda assim, oferecer uma perspectiva de onde podemos encarar, com algum conforto, providos de conceitos e idias adequados, uma imensidade de problemas tericos e prticos com os quais nos deparamos. Enfim, uma boa teoria filosfica se non vera, ben trovata, como diz o ditado italiano.

    Em muitos casos uma teoria filosfica pode tambm ser um programa de trabalho. Para ficarmos com um exemplo em filosofia da matemtica: alguns filsofos ditos nominalistas acreditam que a referncia a entidades matemticas pode ser eliminada das teorias fsicas, o que eliminaria concomitantemente, se essa tese fosse verdadeira, um forte argumento para a existncia objetiva dessas entidades. Tenham eles razo ou no, o certo que o esforo que empreendem para reescrever a cincia sem apelar para objetos matemticos revela aspectos interessantes das teorias cientficas. A filosofia formalista da matemtica de Hilbert, para citarmos outro exemplo, foi tambm um programa que, apesar de impossvel de ser levado a cabo como originalmente concebido (como veremos adiante), deslanchou um esforo de formalizao de teorias matemticas e fsicas que, entre outros mritos, esclareceu importantes questes conceituais no interior da matemtica e da cincia, alm de abrir caminho para a moderna teoria da computao.

    Creio que o teste crucial para uma teoria filosfica o papel articulador e coordenador que desempenha no contexto global do conhecimento e das prticas humanas e o poder de esclarecimento dos conceitos e idias que manipula. A metafsica de Schopenhauer, por exemplo, em que o teatro trgico do mundo dirigido dos bastidores por uma Vontade cega, apesar de irremediavelmente imune ao teste da experincia, uma teoria fascinante precisamente medida que fornece uma perspectiva a partir da qual possvel entrelaar

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 1 7

    domnios aparentemente to dspares como a esttica, a psicologia e a biologia, entre outros. A teoria de Frege sobre a natureza dos nmeros, que como veremos foi to falsificada como uma teoria pode ser, nos moldes em que foi proposta, mesmo assim esclarece de modo to cogente a ntima relao entre lgica e aritmtica que, apesar do seu fracasso, no falta quem a queira ressuscitar em forma corrigida e atualizada. Alm disso, a filosofia de Frege gerou como subproduto a lgica matemtica moderna, o que no pouca coisa.

    Por isso, como so muitas as respostas que os problemas que nos interessam neste livro produziram, ou seja, so mltiplas as filosofias da matemtica, eu no vou me comprometer aqui com nenhuma perspectiva filosfica em particular, nem mesmo com aquela que mais me agrada. Procurarei antes transitar por diferentes filosofias, no como quem passeia por um museu, mas porque acredito que todas elas do respostas interessantes aos problemas que abordam. Espero tambm que tal viso panormica, mas longe de exaustiva, possa oferecer ao leitor subsdios para a sua prpria reflexo, caso ele esteja disposto a faz-la.

    A filosofia, alm de interessante, inevitvel. Mesmo que alguns filsofos, como Wittgenstein, tenham querido releg-la condio subalterna de uma espcie de exorcismo para os enfeitiamentos da linguagem (Wittgenstein acreditava que todo pretenso problema filosfico era apenas o resultado indesejvel do uso incorreto da linguagem, a ser dissolvido, antes que resolvido, por cuidadosa anlise lingustica) e os positivistas lgicos tenham procurado infatigavelmente desterrar questes metafsicas para o limbo das perguntas sem sentido, o retorno do reprimido irrefrevel. Os problemas filosficos simplesmente recusam-se a, graciosamente, se retirar de cena; o seu fascnio sobre ns inextinguvel. (A propsito, tanto Wittgenstein quanto os positivistas lgicos foram contestados, ainda no auge da influncia de suas idias, por pensadores que, como Karl Popper, insistiram na existncia real de problemas filosficos.)

    A mim, parece bvio que problemas filosficos legtimos existem, em particular, problemas em filosofia da matemtica. J mencionamos

  • 18 JAIRO JOS DA SILVA

    alguns, mas como o modo mais fcil de convencer algum da existncia de uma espcie de coisa apresentar-lhe coisas dessa espcie, eis mais alguns. Um matemtico preocupado em axiomatizar um domnio matemtico (por exemplo, o dos nmeros), isto , selecionar um conjunto de verdades no demonstradas a partir das quais sej a possvel derivar - em geral por meios puramente lgicos, mas no necessariamente - todas as verdades pertinentes a esse domnio, pode muito bem se perguntar quais seriam os critrios razoveis para que uma verdade seja entronizada como um axioma, uma verdade bsica. Pois bem, ele poderia colocar essa questo nos seguintes termos: o que um axioma matemtico (ou, o que isso: um axioma matemtico, se ele tiver lido muito Heidegger)? Eis a um problema que aparece no contexto da atividade matemtica, mas que no pode ser a resolvido. No h um teorema matemtico que nos diga o que um axioma matemtico; ns precisaremos questionar a prpria atividade matemtica para obtermos uma resposta. Ou seja, esse um problema de filosofia da matemtica.

    Eu no escolhi esse exemplo arbitrariamente. H um sistema axio- mtico muito importante a teoria axiomtica dos conjuntos - e uma questo matemtica relevante afinal, quantos nmeros reais existem? (nmeros reais medem grandezas contnuas, como o tempo, as distncias etc.) - que no pode ser respondida no interior desse sistema. Ns temos uma demonstrao matemtica (ou metamatemtica, se quiserem) desse fato. Se desej armos responder a essa questo nesse sistema teremos que estend-lo pela adjuno de novos axiomas. Como faz-lo? A questo filosfica parece ento se impor: o que , afinal, um axioma?

    N s poderiamos, trivialmente, juntar aos axiomas j existentes da teoria dos conjuntos a resposta questo que mais nos agrada que seja compatvel com o que j sabemos sobre os conjuntos, por exemplo: a quantidade de nmeros reais a menor quantidade infinita maior que a infinidade dos nmeros inteiros positivos5 (essa a chamada

    5 No h um infinito apenas, mas uma multiplicidade de infinitos maior que qualquer quantidade infinita. H uma totalidade absolutamente infinita - portanto, maior que qualquer infinito matematicamente mensurvel - de infinitos matematicamente mensurveis.

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 19

    hiptese do contnuo6). Qual o problema com essa soluo ? Obviamente, o problema que ela completamente arbitrria. Se um axioma no pode ser escolhido arbitrariamente, ento estamos de volta ao problema filosfico: como escolh-lo? O que , afinal, um axioma, e com quais critrios selecion-lo?

    Alguns filsofos torceram o nariz para essa questo em particular, mesmo que eles aceitassem a existncia de problemas filosficos reais. Popper um deles; ele cr que questes do tipo o que isso:...? , onde o espao vazio pode ser preenchido por praticamente qualquer coisa, no so boas questes. Isso porque, segundo ele, essas questes perguntam pela essncia de algo, ou pelo significado de uma palavra, e ele no acata a existncia nem de uma coisa nem de outra (mesmo que os dilogos de Plato estejam cheios de questes desse tipo). No parece muito custoso aceitarmos que essncias e significados no existam mesmo; pois, afinal, se existissem, por que tm o pssimo hbito de se esconderem, requerendo esforos imensos, nunca recompensados, para serem trazidos luz (experimente buscar a essncia de no importa o qu, por exemplo, maneira de Plato, a virtude, ou a verdade; ou o significado verdadeiro de uma palavra absolutamente banal, por exemplo, cadeira e ver o que quero dizer)? - mas voc tem o direito de discordar, no importa, esse no um problema que nos ocupar aqui.

    Seja como for, podemos entender que questes como o que um axioma? no nos impem a ingrata tarefa de buscar uma essncia fugidia (compartilhada por todos os axiomas matemticos), ou um significado igualmente arredio (o da palavra axioma ), mas simplesmente que decidamos por um conjunto de critrios razoveis para a eleio de um axioma matemtico (juntamente com a justificao de porque so razoveis esses critrios; o gosto pessoal do matemtico, por exemplo, no pode ser um critrio razovel). Popper diria que um axioma apenas o pressuposto mais elegante dentre outros

    6 Georg Cantor, o criador da teoria dos conjuntos, tentou inutilmente demonstr- la; hoje sabemos que essa teoria impotente para isso.

  • 2 0 JAIRO JOS DA SILVA

    possveis, isto , que resolve o maior nmero de problemas do modo mais interessante. Alm de retirar dos axiomas sua pretenso de obviedade e veracidade, ele cr que axiomas podem ser eventualmente abandonados em favor de pressupostos melhores. M as essa j uma resposta filosfica. Enfim, esse um problema que ocupa alguns filsofos da matemtica contemporneos.

    M as no o nico, claro. Procedimentos eminentemente m atemticos, como definir e demonstrar (como j notamos), e noes essencialmente matemticas, como as de infinito e contnuo, so fontes inesgotveis de problemas filosficos. Por exemplo, podemos perguntar: o que uma definio nos d, um significado de um termo, a caracterizao de um objeto ou, ainda, esse objeto ele mesmo (definies podem, em algum sentido, ser criativas)? O que distingue uma definio vlida de uma invlida? Definies podem envolver o termo ou objeto definido de algum modo (ou seja, a circularidade de uma definio incua)? Ou ento: que mtodos de demonstrao matemtica so aceitveis, e por qu? Que relaes h entre verdade matemtica e demonstrabilidade?

    Esse ltimo exemplo merece algum comentrio. H um teorema (meta)matemtico que nos garante que em algumas teorias, entre elas a aritmtica usual, no podemos identificar essas duas noes, se confinarmos a demonstrabilidade a um sistema bem definido de demonstrao, com uma linguagem, princpios e regras bem determinados. O teorema ao qual aludimos (demonstrado por Kurt Gdel em 1931) nos diz que, dados determinados contextos formais para certas teorias matemticas, sempre haver verdades dessas teorias que no podem ser demonstradas nesses contextos. Mas, ento, como sabemos que elas so, de fato, verdades? Evidentemente, por mtodos que extrapolam as possibilidades do sistema formal de demonstrao adotado. Claro, esses sistemas podem ser estendidos a sistemas formais mais abrangentes, mas ento haver outras verdades que escaparo do escopo desses sistemas estendidos, e assim sucessivamente. Isso levanta a questo, no mais matemtica, mas filosfica, sobre a natureza da verdade matemtica e suas relaes complexas com a demonstrabilidade em sentido formal. Se no

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 21

    queremos recusar problemas desse tipo - e no o queremos como trat-los se no filosoficamente?

    Nesse ltimo exemplo interessante notar como a matemtica e a filosofia dialogam. A matemtica suscita o problema, que a rigor no lhe pertence, mas fornece os parmetros para o debate. N s no precisamos - na verdade, no podemos - ignorar resultados matemticos ao procurar respostas para questes filosficas pertinentes matemtica. Isso, porm, no nenhuma novidade, ou no deveria ser. A filosofia da cincia, quando levanta questes importantes sobre, por exemplo, o espao e o tempo, no pode ignorar as teorias fsicas do espao e do tempo (em particular a teoria de relatividade de Einstein). A tica no pode ignorar o conhecimento acumulado da medicina ou biologia, elas prprias fontes constantes de problemas ticos. Em suma, a filosofia no se ope cincia, nem pretende ocupar o seu espao. Elas dialogam cientes de suas diferenas e especificidades. Se os problemas filosficos de uma cincia surgem da sua prtica, mas a extrapolam, isso no quer dizer que no podem ser iluminados por essa prtica. A filosofia da matemtica, em particular, se nutre do conhecimento matemtico (por isso se espera que um filsofo da matemtica tenha suficiente treino matemtico).

    M as ela tambm no pode ignorar a histria da matemtica. Imre Lakatos, um filsofo da matemtica que trouxe para essa disciplina alguns temas caros filosofia da cincia de Popper (mas no se restringiu a isso, produzindo idias originais muito interessantes), dizia, coberto de razo, que a filosofia da matemtica sem a histria da matemtica vazia, e esta sem aquela cega (adaptando um conhecido dito de Kant: o entendimento sem a sensibilidade vazio, a sensibilidade sem o entendimento cega - sendo que, para Kant, a sensibilidade a nossa capacidade, ou faculdade, se sermos afetados pelo ambiente por meio dos sentidos, e entendimento nossa capacidade de produzir juzos).

    A histria da matemtica guarda lies importantes para um filsofo da matemtica. A maior delas que a matemtica um produto da cultura humana, no uma espcie de man cado dos cus. Ela muda com o tempo, em funo das culturas em que viceja

  • 2 2 JAIRO JOS DA SILVA

    e dos problemas prticos e tericos que essas culturas enfrentam. A matemtica dos gregos, por exemplo, que a inventaram nos moldes como a entendemos hoje, deve tanto ao esprito terico-especulativo de sua cultura quanto a matemtica dos babilnios, ao carter prtico de uma cultura talvez mais preocupada com problemas cotidianos que com metafsica. A geometria projetiva de Kepler e Desargues, no incio do sculo XVII, para tomarmos outro exemplo, surge em contraponto ao uso da perspectiva linear na pintura renascentista, e nenhuma delas seria possvel ao esprito finitista e sensibilidade ttil - no visual - dos gregos7.

    Que a matemtica seja um produto cultural, como a cincia, a arte, os sistemas de crena etc., nos impede de prever como ela ser no futuro, o que talvez sugira ao filsofo historicamente bem informado que intil buscar uma essncia imutvel da matemtica, e que as vrias respostas dadas, por filsofos de vrias pocas, sobre a natureza da matemtica, seus objetos e mtodos, devam ser lidas luz da matemtica e da cultura poca em que eles produziram suas filosofias. Ademais, a matemtica tem muitas moradas (o que justifica que seja chamada de matemticas, no plural, como o fazem o Ingls e o Francs). Isso, eu creio, explica o poder esclarecedor que mltiplas e dspares filosofias da matemtica parecem ter. Afinal, possvel que cada uma delas ilumine um recanto particular desse domnio to amplo e multiforme, ou ento a matemtica produzida na poca em que essa filosofia foi gestada.

    Por tudo isso, eu procurei aqui, sempre que possvel, complementar a discusso filosfica com alguns dados histricos, buscando projetar uma filosofia contra o pano de fundo da matemtica do seu tempo.

    Este livro nasceu na sala de aula, pois foi escrito originalmente para um curso de filosofia da matemtica ministrado a alunos de

    7 Veja a respeito Ivins Jr. 1964. Mas no podemos esquecer a influncia da Geografia de grego Ptolomeu no surgimento da perspectiva linear do Renascimento (veja a esse respeito Thuillier, 1994, cap. II).

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 23

    ps-graduao em Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Unicamp, repetido alguns anos depois. Esses alunos formavam um grupo muito particular, com graduados em filosofia, que conheciam pouca matemtica (como ocorre em geral, infelizmente, com estudantes de filosofia) e estudantes de matemtica que conheciam pouca filosofia (outra caso a lamentar), alm de graduados em outras reas, que no conheciam muito bem nem uma nem outra. M as todos eram inteligentes e interessados o suficiente para que tais deficincias no constitussem um problema. Por isso, eu evito aqui, como evitei nos cursos originais, pressupor qualquer conhecimento prvio, quer em filosofia, quer em matemtica. Sempre que possvel eu explico em que determinada postura filosfica consiste, enuncio teorias em termos mais simples, escolho exemplos matemticos elementares, esclareo o significado de questes matemticas menos triviais, procurando sempre a maior clareza de que sou capaz.

    H, infelizmente, certa confuso entre dificuldade e obscuridade em alguns meios filosficos muito preocupados em dar filosofia uma absurda aura de mistrio (talvez porque temam degrad-la, ou degradar-se). Um assunto pode exigir esforo para que encontremos o ponto de vista de onde seus elementos se encaixam num todo articulado com sentido explcito, como aqueles na Praa de So Pedro em Roma, de cuja mirada as colunas de Bernini se alinham perfeitamente, restaurando a racionalidade do conjunto. No pensamento obscuro, por outro lado, esse ponto no existe, no importa quanto o procuremos. A s grandes filosofias, como a de Kant ou Plato, podem ser difceis, mas nunca obscuras. Eu penso que simplific-las um tributo que lhes prestamos. J as teorias obscuras, que zelosamente evitamos, vem a simplificao como um insulto. Acima de tudo eu quero que este livro possa ser til quele estudante, no importa a sua origem intelectual, que queira se iniciar na filosofia da matemtica, mas que talvez no tenha estudado nenhuma filosofia antes e de matemtica s conhea o elementar (sem, no entanto, alienar os j iniciados tanto num domnio quanto no outro).

  • Introduo

    Suponhamos que voc no soubesse que a soma dos trs ngulos internos de um tringulo qualquer sempre igual a dois ngulos retos, isto , 180 graus, e que algum lhe mostrasse isso. (No importa como, se intuitivamente por meio de desenhos ou diagramas, ou racionalmente por pura argumentao lgica.) Suponhamos ainda que voc se deixasse convencer por essa demonstrao e, con- seqentemente, aceitasse o fato demonstrado como verdadeiro. Agora, suponhamos que voc se encontre numa situao em que precise estimar na prtica o valor de um particular ngulo interno de uma superfcie triangular concreta, conhecidos os valores dos outros dois ngulos. E de esperar que voc lance mo de seus conhecimentos matemticos e obtenha o valor desejado com uma simples operao aritmtica: subtraindo de 180 a soma dos valores dos ngulos conhecidos.

    Voc no duvida nem por um instante que esse fato geomtrico, cuja demonstrao no depende em nenhuma medida do testemunho dos cinco sentidos externos (mesmo que se tenha valido da imaginao visual, se a demonstrao escolhida apia-se em diagramas e na intuio espacial, como o caso da clebre demonstrao desse teorema em Os elementos de Euclides), tenha uma aplicao prtica; e se acontecer de uma verificao posterior mostrar que a medida

  • 2 6 JAIRO JOS DA SILVA

    angular obtida por seu intermdio no corresponde ao real, voc provavelmente ir atribuir esse erro s imprecises intrnsecas s medidas, grosseira triangularidade da figura em questo, ou outro fator qualquer. No lhe ocorrer considerar esse tringulo em particular uma exceo ao teorema. Voc acredita, e com razo, que um teorema matemtico no conhece exceo - se foi corretamente demonstrado que as previses extradas dele valem irrestritamente para no importa qual tringulo; e que mesmo tringulos grosseiramente traados ainda assim so tringulos, e para eles o teorema tambm vale, ainda que aproximadamente.

    Essa situao perfeitamente banal, mas se examinada de perto faz pensar. Como voc pode estar to confiante no seu teorema? Se as cincias naturais e suas teorias podem falhar, por que no a matemtica? Como um teorema demonstrado sem nenhum apelo verificao emprica pode ter algo a dizer sobre os tringulos que voc encontra na vida real? Como esse teorema pode pretender validade universal irrestrita, quando a sua demonstrao usual por meio de diagramas considera apenas um tringulo particular, ainda que arbitrrio? Essas questes no so facilmente respondidas e as tentativas de dissipar o embarao que criam constitui um longo captulo, ainda no encerrado, da reflexo filosfica.

    A teoria do conhecimento, ou epistemologia, a vertente filosfica que se preocupa com o conhecimento humano; e a filosofia da matemtica - que tematiza e problematiza as caractersticas peculiares e as pretenses nicas do conhecimento matemtico constitui talvez um dos seus captulos mais instigantes. Como uma disciplina filosfica com carter prprio, ela uma criao relativamente recente; seu aparecimento na cena filosfica remonta a fins do sculo XIX, aproximadamente, e deve muito chamada crise dos fundamentos . Essa crise , caracterizada por um abalo de confiana nos alicerces da matemtica - muito exagerado nos meios filosficos -, se estendeu das ltimas dcadas dos Oitocento at as primeiras do sculo XX, e foi desencadeada por uma srie de paradoxos - alguns reais, outros

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA TI

    aparentes - descobertos na teoria dos conjuntos e na lgica que pareciam pr em questo a confiabilidade dos mtodos matemticos1.

    M as o maior impacto dessa crise fundacional no se deu na matemtica, mas na filosofia. Acostumados s crises, a maioria dos matemticos prosseguiu seu trabalho como de hbito (um pouco mais preocupados, talvez); j os filsofos viram a uma oportunidade nica para refletir sobre a natureza do conhecimento matemtico. Nascia assim uma filosofia da matemtica de carter sistemtico, que nesse perodo inicial estava inevitvel e estreitamente ligada s tentativas de se colocar a matemtica sobre bases slidas confiveis, num esforo para superar a crise dos fundamentos.

    Os filsofos, entretanto, logo se deram conta de que a matemtica no precisava de bases slidas, se por isso se entende um fundamento de certeza. Os matemticos, eles prprios, aparentemente nunca duvidaram disso. Como toda comunidade cientfica, a dos matemticos assenta suas prticas em pressupostos universalmente aceitos, em geral no questionados at que eventuais problemas obriguem-na a rev-los e de algum modo corrigi-los. At que uma crise se instale, pressupe-se tacitamente que as bases do edifcio matemtico sejam slidas. Abre- se, assim, mo da certeza e da segurana absolutas para que o trabalho cotidiano no seja prejudicado, pois uma excessiva preocupao com os fundamentos pode ter efeito nocivo sobre a prtica matemtica, ainda mais se no se chega, como de hbito, a uma concluso consensual sobre a melhor fundamentao. E, na hiptese de crise, a comunidade cientfica adapta de maneira mais ou menos ad hoc seus pressupostos de modo a super-la da melhor forma possvel (em geral, desviando-se minimamente de seus procedimentos usuais)1 2.

    1 Alguns paradoxos, como os de Russell, Cantor e Burali-Forti envolvem noes centrais da teoria dos conjuntos, como a prpria noo de conjunto, nmero cardinal e nmero ordinal, respectivamente; outros, como o de Richard, apenas noes lgicas, como a de definibilidade.

    2 A histria da matemtica uma histria de crises, desde a descoberta das grandezas incomensurveis pelos filsofos pitagricos do sculo V a.C., passando pela descoberta dos nmeros imaginrios - smbolos aparentemente sem sentido, mas teis, largamente utilizados pelos algebristas italianos do sculo XVI -, a

  • 2 8 JAIRO JOS DA SILVA

    M as o fim da febre fundacional no marcou simultaneamente o fim da filosofia da matemtica. Pelo contrrio, hoje mais que nunca ela est viva e saudvel, tendo-se tornado uma disciplina filosfica por direito prprio. M as mesmo antes da crise dos fundamentos - bem antes na verdade, desde pelo menos os antigos gregos a matemtica freqentou a preocupao de inmeros filsofos, ainda que a filosofia da matemtica no tenha sido sempre vista como um corpo independente no contexto das disciplinas filosficas. Mas, de qualquer modo, como o conhecimento matemtico no pode ser ignorado por nenhuma teoria do conhecimento sria, a reflexo filosfica sobre a matemtica aparece j em Plato, para nunca mais abandonar os domnios da filosofia.

    O conhecimento matemtico apresenta de fato peculiaridades desconcertantes para qualquer epistemologia. Para filsofos de orientao empirista, por exemplo - para os quais no h conhecimento sem o concurso dos sentidos , a matemtica coloca um problema srio. Afinal, ela (ou pelo menos parece ser) o exemplo por excelncia de um conhecimento a priori, isto , independente dos sentidos, puramente intelectual. J filsofos racionalistas, que admitem uma faculdade intelectual (que podemos chamar simplesmente de razo ou entendimento3) que nos torna capazes de conhecimento a priori, devem explicar como possvel que um conhecimento puramente racional possa oferecer s cincias empricas uma linguagem e um aparato conceituai to apropriados, como o caso da matemtica.

    Para o idealista (ao menos em uma de suas variantes, a transcendental) o conhecimento define-se pela acomodao dos dados sensoriais em moldes racionais a priori (que no apenas independem

    introduo dos mtodos infinitrios no sculo XVII, at a crise dos fundamentos do incio do sculo XX (apenas para citar uns poucos exemplos notveis). Mas em nenhum momento a matemtica duvidou, ou abriu mo, de seus mtodos, sempre fiel, mesmo avant la lettre, ao conselho de D Alembert queles que poderiam fraquejar diante dos mtodos infinitesimais: sigam em frente que a f lhes vir.

    3 Esses dois termos no so neste momento entendidos tecnicamente, como o sero em breve quando discutirmos as filosofias de Plato e Kant.

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 2 9

    dos sentidos, mas sem os quais a prpria experincia sensorial como a conhecemos seria impossvel). Esse ponto de vista, mais ou menos a meio caminho entre o empirismo e o racionalismo, parece apto a acomodar tanto a natureza a priori do conhecimento matemtico, que seria ento nada mais que o conhecimento racional de algumas das formas que o pensamento impe experincia (as formas matemticas precisamente), quanto a aplicabilidade da matemtica ao mundo emprico. M as o idealista enreda-se em outros problemas igualmente embaraosos. Se as formas a priori da experincia no so, a rigor, aspectos intrnsecos da experincia (mas a ela impostos por ns), ento a matemtica apenas uma espcie de autoconheci- mento, o que contraria nossa impresso de que ela trata de entidades objetivas, que esto a independentemente de ns.

    Seja como for, o fato que a matemtica aparece-nos como um corpo altamente desenvolvido de conhecimento puramente racional - portanto independente da experincia sobre entidades abstratas apenas pensveis, e de modo nenhum perceptveis por meio dos sentidos, que no obstante so capazes de oferecer meios para organizarmos os dados dos sentidos e estruturarmos nossa experincia do mundo a ponto de podermos prever experincias futuras. Em que medida esse modo de ver justificvel? Que sentido de existncia tm os objetos da matemtica, se existem de fato objetos matemticos propriamente ditos? Qual a natureza da verdade matemtica? Como possvel que a matemtica tenha algo a dizer sobre o mundo emprico? A filosofia da matemtica a tentativa de responder a essas e a outras questes correlatas.

    Vamos aqui privilegiar uma abordagem histrica desses problemas, apesar de nossa preocupao no ser histrica. Nosso objetivo ltimo apresentar uma (ou muitas) resposta(s) (mais ou menos) satisfatria(s) s muitas questes filosficas suscitadas pelo conhecimento matemtico. Mas como nenhuma tentativa dessa espcie pode ignorar a tradio filosfica, iremos buscar nossas respostas no dilogo com as solues paradigmticas oferecidas pela tradio, a comear pelos seus fundadores, Plato e Aristteles (sem, no entanto, pretendermos um tratamento exaustivo da histria da filosofia da matemtica). Comecemos.

  • Plato e A ristteles

    1

    Prlogo: a matemtica gregaA matemtica entrou na cultura primeiramente como uma tc

    nica, a de fazer clculos aritmticos e geomtricos elementares, e suas origens perdem-se nos primrdios da histria. Dentre os povos antigos, os egpcios foram bons matemticos, como suas realizaes tcnicas o atestam, mas os babilnios foram ainda melhores. M as, ainda que essas culturas tenham produzido uma matemtica reconhecvel como tal, faltava a ela o carter sistemtico, rigoroso, puro - isto , no emprico - e, em grande medida, a indiferena com respeito a aplicaes prticas imediatas que caracterizam o conhecimento matemtico, tal como o entendemos hoje.

    Gertamente os babilnios conheciam o teorema de Pitgoras - segundo o qual o quadrado construdo sobre a hipotenusa de um tringulo retngulo tem rea igual soma das reas dos quadrados construdos sobre os outros dois lados - , pelo menos em casos particulares, como atestam documentos arqueolgicos, mas faltava-lhes uma demonstrao rigorosa desse teorema, se por isso se entende uma argumentao irrefutvel de carter puramente racional da validade universal do fato enunciado. Essa uma inveno grega e caracteriza a matemtica produzida por essa civilizao.

  • 3 2 JAIRO JOS DA SILVA

    O incio da matemtica grega pode ser remetido aos tempos de Tales de Mileto, um dos mticos sbios da Grcia herica, por volta do sculo VI a.G., a quem a tradio atribui a primeira demonstrao matemtica (ainda que pelo mtodo emprico de epharmzein ou superposio1). Claro que tanto ele quanto seus contemporneos e conterrneos, os filsofos Anaximandro e Anaxmenes, no criaram conhecimento ex nihilo, eles certamente beberam em fontes gregas e no gregas (babilnicas e egpcias, em particular), mas o seu modo especfico de tratar questes cientficas e filosficas - no esprito da pura especulao desvinculada de interesses prticos imediatos , seus mtodos, fincados no debate racional, e a concepo que mantiveram de uma natureza racionalmente compreensvel os apartam de seus predecessores e mestres como os legtimos criadores do que se entende at o presente por Filosofia e Cincia. Se os babilnios estavam principalmente interessados em desenvolver mtodos teis de clculo, os gregos viam na matemtica o meio de acesso prpria estrutura ntima do cosmos. Pitgoras e Plato so assim os antecessores em linha direta de Galileu, Kepler, Newton e Einstein.

    Talvez os primeiros grandes matemticos gregos tenham sido mesmo Pitgoras e seus seguidores - os chamados filsofos pitag- ricos. Pitgoras de Samos viveu por volta do final do sculo VI a.C. e criou, com seus discpulos, uma seita mstica na qual conviviam o racionalismo grego e os elementos do pensamento mgico de povos mais ao leste e ao sul. Porm, pouco se conhece da vida e dos feitos do Pitgoras histrico, ele e seus ensinamentos dissolvem-se na nvoa de um passado mtico em que a realidade e a lenda se misturam. M as a tradio pitagrica sobreviveu ao seu fundador e influenciou de modo inequvoco o pensamento e a cincia ocidentais.

    Os pitagricos so conhecidos principalmente pela teoria, meio metafsica, meio mgica, que tudo se reduz a nmeros. Alm de Galileu, que dizia que o livro do Universo est escrito em caracteres matemticos, talvez tambm derive do pitagorismo as crenas mgicas da numerologia, ainda bastante vivas entre os que abrem mo da

    1 Veja a propsito Eggers Lan, 1995.

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 33

    cincia, mas no do pressuposto de que h uma ordem no Universo, onde tout se tient. A teoria da constituio numrica do mundo tambm tributria de uma outra contribuio notvel dos pitagri- cos: a descoberta que os intervalos musicais correspondem a razes numricas simples (a oitava a V2, a quarta aV3e a quinta a V).

    Uma descoberta em particular, atribuda aos pitagricos, constituiu-se numa das mais importantes descobertas matemticas daquela pocae talvez de qualquer p o c a a d a s grandezas incomensurveis. Eles descobriram que a mdia proporcional, ou geomtrica, entre a unidade e o seu dobro - isto ,o x tal que \ /x = x / 2 -n o podia ser expressa em termos dessa unidade2. M as essa foi uma conquista amarga, pois levantava dvidas quanto correo da tese pitagrica de que os nmeros eram os constituintes ltimos da realidade (por isso essa descoberta deveria ser mantida em segredo e, segundo a lenda, custou a vida do filsofo pitagrico que a divulgou Hippasus).

    Se tudo , de fato, feito de nmeros, todas as grandezas deveram poder ser comparadas quanto quantidade de unidades que contm; isto , duas quaisquer grandezas deveram ser comensurveis - como cada uma delas conteria uma quantidade inteira de unidades elas estariam entre si numa relao de proporcionalidade. M as no foi isso que se verificou. O s pitagricos notaram - supe-se, com espanto que a mdia proporcional entre 1 e 2 no comensurvel com essa unidade ou, equivalentemente, a diagonal de um quadrado qualquer no comensurvel com o lado desse quadrado. No h uma unidade tal que o lado de um quadrado e a sua diagonal con

    2 Resolver esse problema equivalente a resolver o problema da duplicao da rea de um quadrado; assim como o problema do clculo de duas mdias proporcionais entre 1 e 2 (isto , x ey tais que 1/x = x/y = y / 2 ) equivalente a resolver o problema (insolvel por rgua e compasso) da duplicao do volume de um cubo (famoso problema da geometria grega). A mdia proporcional entre um segmento unitrio e o seu dobro dada pela diagonal do quadrado de lado unitrio, que ento um segmento incomensurvel com essa unidade; em geral, acredita-se que a descoberta da incomensurabilidade tenha se dado nesse contexto geomtrico, mas talvez os pitagricos a tenham descoberto no contexto aritmtico do estudo de propores, j que notrio o interesse que eles tinham por questes desse tipo.

  • 3 4 JAIRO JOS DA SILVA

    tenham um nmero inteiro dela. Euclides, o matemtico que no sculo III a.C. codificou parte substancial da matemtica grega at ento, ofereceu em seus Os elementos (livro X) uma demonstrao desse fato que provavelmente o modelo de todas as demonstraes matemticas - pela sua elegncia, sua simplicidade e seu poder cogente. A descoberta da incomensurabilidade foi a primeira grande crise da matemtica, mas os matemticos souberam super-la bravamente, inicialmente com a teoria das propores de Eudoxo, que Euclides incorporou a Os elementos, e, depois, j no sculo XIX, com a teoria dos irracionais de Dedekind.

    O apogeu da matemtica grega, porm, deu-se no perodo helenista, posterior a Plato e Aristteles, e os seus nomes mais vistosos, que se contam entre os maiores de todos os tempos, foram os de Euclides, Arquimedes e Apolnio, todos ligados universidade e famosa biblioteca de Alexandria, cidade grega no Egito. O s dois ltimos foram grandes criadores m atemticos e o primeiro foi antes de tudo um genial sistematizador do conhecimento acumulado pela tradio. Conforme Proclo, um comentador de Os elementos do sculo V d.C ., Euclides coletou de forma sistemtica e segundo um tipo modelar de cincia, a matemtica produzida, por exemplo, por Eudoxo e Teeteto. M as, claro, Euclides no foi apenas um coletor. Coube-lhe tambm prover demonstraes rigorosas (para a poca) em que elas faziam falta e corrigir outras menos perfeitas.

    O gnio de Euclides, porm, estava no modo como ele fez isso. A partir de um sistema mnimo e supostamente completo de verdades no-demonstradas e indemonstrveis - axiomas e postulados (posteriormente verificou-se que no sistema faltavam pressupostos, substitudos pela intuio espacial) , Euclides demonstrava racionalmente todos os enunciados de Os elementos. Estava assim criado o mtodo axiomtico-dedutivo que viria a servir de modelo para toda a matemtica a partir de ento: a reduo racional (preferivelmente lgica) de todas as verdades de uma teoria a uma base mnima e completa de verdades evidentes ou simplesmente pressupostas. No havia nada de remotamente similar na matemtica no grega.

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 35

    Apesar, contudo, de todo o seu gnio, a matemtica grega tambm tinha as suas limitaes. A cincia matemtica grega por excelncia era a geometria, ainda que alguma aritmtica houvesse, mas fortemente restrita pela pesada e ineficiente notao numrica grega (a notao posicionai decimal com um smbolo para o zero - extremamente gil e apropriada para o desenvolvimento dos algoritmos de clculo - s aparecera sculos depois, na Idade Mdia, com a difuso da matemtica indiana por meio da expanso rabe) e pela ausncia de uma concepo exclusivamente aritmtica de nmero. Para os gregos, nmeros eram sempre pensados como colees de unidades3, e essas colees, como figuras geomtricas. Os conceitos de nmero par e mpar impunham-se naturalmente nesse contexto, uma vez que correspondem possibilidade ou no de repartir essas figuras em partes iguais; noes como as de nmeros triangulares e outras do gnero, caractersticas da aritmtica grega, so obviamente devedoras dessa concepo geomtrica do nmero. A lgebra, entendida como a teoria das equaes, no existia, sendo essencialmente uma criao rabe da Idade Mdia (claro, h alguma lgebra na Aritmtica de Diofanto, um matemtico grego do sculo III d.C., mas num estgio intermedirio entre a aritmtica ou, mais precisamente, a logstica grega e a cincia mais desenvolvida criada pelos rabes a partir do advento do Islamismo).

    Mesmo a geometria era concebida pelos gregos como uma teoria do espao da percepo sensorial. Obviamente, no lhes ocorria, nem poderia acontecer-lhes, a idia de uma geometria realmente formal, que descrevesse um espao simplesmente concebvel, concepo que se tornou moeda corrente com o advento, j no sculo XIX, das geometrias no-euclidianas (como ficaram conhecidos os sistemas geomtricos em si consistentes, mas incompatveis com a geometria de Euclides - chamada agora de euclidiana , no mais de Geometria pura e simplesmente).

    3 Como veremos a seguir, a concepo platnica dos nmeros ditos matemticos - colees de unidades puras indiferenciadas - a forma ideal dessas colees.

  • 3 6 JAIRO JOS DA SILVA

    O s gregos conheciam tambm - como os povos mais antigos dos quais so herdeiros, os babilnios em especial - uma matemtica aplicada, especialmente na astronomia (e, conseqentemente, alguma trigonometria, como aparece, por exemplo, no Almagesto de Ptolo- meu, no sculo II d.C.). M as quando pensamos na matemtica grega, de Tales a Arquimedes, na geometria euclidiana que pensamos; e quando pensamos em um mtodo e um modo de conceber essa cincia, em Os elementos de Euclides que pensamos. Nessa cincia e nesse mtodo eles foram os mestres insuperveis.

    Essa geometria de corte euclidiano - cincia racional fundada na demonstrao, pura em larga medida, sem preocupaes imediatas com as aplicaes, mas aplicvel em princpio, em especial na astronomia, juntamente com uma aritmtica geometrizada comparativamente bem mais elementar - fundamentalmente a matemtica que conheciam Plato e Aristteles. Mas, do ponto de vista filosfico, a questo que importa como eles a viam, em particular que estatuto atribuam aos objetos da matemtica (a isso chamaremos o problema ontolgico), como podemos conhec-los (o problema epistemol- gico) e como, segundo eles, pode-se dar conta da aplicabilidade da matemtica ao mundo real. inegvel que Plato o continuador da tradio pitagrica, em que a matemtica descortina a essncia mesma do mundo (e o seu dilogo Timeu seja talvez a prova mais clara disso), enquanto Aristteles, empenhado numa crtica da teoria platnica das Idias, ir recusar aos entes matemticos a idealidade platnica, reconduzindo-os, de algum modo, ao mundo emprico.

    Plato e Aristteles

    Plato e seu discpulo Aristteles so, em muitos sentidos, filsofos paradigmticos. Os sistemas filosficos que erigiram oferecem um vasto repertrio de idias que a tradio freqentemente retoma e elabora. E isso no menos verdade no caso da filosofia da matemtica. As teorias sobre a natureza da matemtica - dos seus objetos em particular - propostas por ambos oferecem dois modelos exem-

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 37

    piares de explicao. Enquanto para Plato as entidades matemticas constituem um domnio objetivo independente e auto-suficiente, ao qual temos acesso pelo entendimento4, para Aristteles os entes matemticos tm uma existncia parasitria dos objetos reais - uma vez que objetos matemticos s existem encarnados em objetos reais - e s nos so revelados com o concurso, ao menos em parte, dos sentidos. Para Plato, o mundo real apenas reflete imperfeitamente um mundo puro de entidades perfeitas, imutveis e eternas - os conceitos matemticos entre elas. Para Aristteles, o mundo sensvel a realidade fundamental, os entes matemticos so extrados dos objetos sensveis por meio de operaes do pensamento, e os conceitos matemticos so apenas modos de tratar o mundo real.

    De um lado o racionalismo de Plato, que atribui razo humana o poder de penetrar nos domnios supra-sensveis da matemtica, e o seu realismo ontolgico transcendente, que afirma a existncia independente dos entes matemticos num reino fora deste mundo; de outro, o empirismo de Aristteles, que se recusa a dar morada aos entes matemticos em qualquer outro reino que no o deste mundo, e o seu realismo ontolgico imanente, que garante, ele tambm, uma

    4 Esse termo pode ser tomado em sentido tcnico para traduzir o termo que Platousa para a faculdade que nos permite ascender ao reino dos objetos matemticos: dinoia. Plato distingue entre dinoia, a atividade ou faculdade do pensamento, que traduziremos por entendimento, e nesis, a atividade de inteleco ou a razo pura, que traduziremos simplesmente por razo. Aquela apropriada ao conhecimento da aritmtica e da geometria; esta, cincia filosfica por excelncia: a dialtica, cujos objetos so as Idias. Ambas so atividades prprias inteligncia. A razo nos fornece a nica cincia (epistme) verdadeira: a dialtica; o entendimento, visto como uma faculdade, nos d, claro, o entendimento - visto agora como o produto dessa faculdade. O entendimento uma forma mais baixa de cincia e compreende exemplarmente a aritmtica e a geometria. Aqum desses produtos da inteligncia temos os frutos da mera opinio (dxa): a crena e a conjectura. A cincia e o entendimento, para Plato, tm por objeto o real, isto o reino das Idias e dos objetos matemticos; a opinio, o reino sensvel, habitado por cpias imperfeitas das Idias e objetos matemticos. Segundo Plato, o real est para o sensvel assim como a inteligncia est para a opinio; e aquela est para esta assim como a cincia est para a crena, e o entendimento, para a conjectura, (cf. A Repblica, livro VII, em particular 533b-534a)

  • 3 8 JAIRO JOS DA SILVA

    existncia aos objetos matemticos independentemente de um sujeito, mas no de outros objetos do mundo emprico.

    Ambos comungam da tese que a verdade matemtica independente da ao de um sujeito a tese do realismo epistemolgico , mas discordam quanto ao que deve fazer o sujeito para revelar essa verdade. Enquanto para Plato basta o entendimento para que ela nos seja desvelada (e a metfora de uma verdade sob vus cabe bem a Plato), Aristteles deve contar tambm, e no de modo meramente acidental, com os sentidos, se bem que no possa confiar apenas neles (contia teses empiristas mais radicais). Para Plato, o mundo emprico uma degradao do real propriamente dito, e a matemtica em nada sofreria se o mundo que experimentamos pelos sentidos no existisse; para Aristteles, a destruio desse mundo seria concomitantemente a destruio dos domnios e da verdade matemticas.

    Enquanto Aristteles o filsofo com os ps no cho , Plato o filsofo com a cabea nas nuvens ; ambos nos ofereceram modos paradigmticos de se entender a matemtica, a natureza de seus objetos e dos seus domnios, e suas relaes com o sujeito do conhecimento e o mundo emprico. Vamos a eles.

    Plato

    N a filosofia de Plato (~ 429 - 347 a.G.) a realidade - sentida ou apenas pensada- divide-se em dois nveis: um mundo transcendente perfeito e imutvel - o mundo do ser, atemporal e eterno - e outro imperfeito e corruptvel o mundo imanente do vir-a-ser, imerso no tempo e no torvelinho da transformao incessante, este em que ns vivemos. O mundo imanente nos acessvel por meio dos sentidos, o transcendente apenas pela razo ou pelo entendimento5. Esse refletido naquele como as nuvens do cu nas guas de um lago, apenas de modo imperfeito e aproximativo. No mundo emprico, onde vivemos com os objetos que nos rodeiam, h, por exemplo, figuras aproximadamente circulares e pessoas aproximadamente boas, mas

    5 Vide nota anterior.

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 3 9

    apenas no mundo transcendente do ser, onde habitam as Idias e as essncias perfeitas, encontram-se a prpria Idia de circularidade, a bondade sem jaa e os crculos perfeitos6. Esses so os modelos das figuras mais ou menos circulares e pessoas apenas grosseiramente bondosas do mundo sensvel. Conhecer em sentido prprio consistia, para Plato, em ascender ao mundo real do ser pelo uso exclusivo das faculdades da inteligncia: a razo e o entendimento7. Conta-se que uma inscrio no prtico da Academia de Plato8 alertava para que no entrasse ali quem no conhecesse geometria, e isso porque ele a considerava, alm de exemplo de conhecimento intelectual, uma atividade propedutica essencial filosofia prpria9.

    Segundo Plato, as Idias matemticas (como as Idias de trian- gularidade e dualidade) admitem instncias tambm perfeitas, nesse caso os tringulos matemticos e as vrias instncias do nmero 2. Sendo perfeitos, esses objetos no so acessveis aos sentidos. Os exemplos puros da dualidade - como de resto todos os nmeros

    6 Plato claro nesse ponto: as Idias e formas matemticas no admitem exemplos sensveis (cf. a Stima carta 342a-343b).

    7 Plato admite certa interferncia dos sentidos no exerccio do entendimento, contrariamente razo, sempre pura. Os gemetras, afinal de contas, ao lanar mo, de modo essencial nessa poca, de grficos e diagramas de natureza emprica e de procedimentos e linguagem construtivos (tudo isso exemplificado de modo muito claro em Euclides, sendo o modo de falar construtivo criticado pelo prprio Plato - cf. A repblica livro VII, 527a), parecem no poder abrir mo dos sentidos, mesmo se os objetos de que tratam no sejam objetos dos sentidos. Mas o importante para Plato que, mesmo olhando para o mundo sensvel, a geometria mira o real (ainda que um real de ordem inferior ao domnio das Idias) com os instrumentos da inteligncia (ainda que uma forma de inteligncia - o entendimento - menos radical que a razo) (cf. A repblica, livro VII). Mesmo que houvesse no tempo de Plato uma geometria pura, como os sistemas axiomticos modernos, ela ainda assim seria vista como um produto do entendimento, no da cincia, por repousar sobre axiomas de natureza hipottica, isto , pressupostos no-demonstrados.

    8 Escola fundada por Plato em Atenas por volta de 387 a. C., a qual ele dirigiu at sua morte, em 347 a.C. A Academia sobreviveu at o ano de 529 d.C., quando foi fechada pelo imperador cristo Justiniano, sob a acusao de paganismo.

    9 Em A repblica a aritmtica, a geometria, a astronomia matemtica, alm da msica, so indicadas como propeduticas reflexo filosfica.

  • 4 0 JAIRO JOS DA SILVA

    ditos matemticos ou mondicos (os arithmoi monadikoi, que so as instncias perfeitas das Idias numricas, chamadas essas de arithmoi eidetikoi) so simplesmente colees de duas mnadas indiferencia- das (uma mnada uma instncia perfeita da Idia de unidade)10.

    Pode parecer estranho primeira vista que, para Plato, exista uma pluralidade indeterminada de nmeros matemticos, por oposio aos nmeros eidticos, que so objetos singulares h apenas uma Idia de dois, mas vrios nmeros dois. A razo para tal multiplicidade a seguinte. Se existisse no mundo ideal apenas um nmero 2, que sentido teria a identidade 2 + 2 = 4, na qual comparecem duas instncias da Idia de dois? Essa identidade no pode ser uma relao entre Idias numricas sendo entidades singulares ela no admitem cpias de si prprias - mas entre nmeros, que precisam ento existir em abundncia para que ela tenha sentido. Plato teve assim que admitir a existncia, alm da perfeita Idia de 2, das vrias instncias perfeitas dessa Idia.

    Embora os termos Idia e forma sejam sinnimos na filosofia de Plato, eu os usarei aqui com sentidos distintos, ao menos no que diz respeito matemtica. Reservo os termos Idia para as Idias matemticas propriamente ditas como triangularidade e dualidade

    e forma para seus exemplos perfeitos, que habitam o mesmo mundo transcendente das Idias, mas so entidades distintas dessas. As formas perfeitas que correspondem Idia de triangularidade, por exemplo, so os tringulos matemticos perfeitos; as que correspondem Idia da dualidade, as vrias instncias do nmero 2. A forma da dualidade a forma comum a todos os pares de coisas, quaisquer que sejam elas. Poderiamos express-la assim: algo e algo. Essas formas, diz Plato, participam das suas respectivas Idias - como se a Idia de 2 fosse um conceito ou noo geral e as suas vrias (infinitas)

    10 Assim, alm da aritmtica usual, cujos objetos so os nmeros matemticos e que nos fornece entendimento, h uma aritmtica filosfica, cujos objetos so os nmeros eidticos. Essa apenas cientfica em sentido estrito. (Que sentido dar hoje a essa aritmtica filosfica, talvez o de uma investigao do prprio conceito de nmero, como nos deram Frege ou Dedekind?)

  • Fl LOSOFIAS DA MATEMTICA 41

    instncias fossem a extenso desse conceito11. As Idias, entretanto, no se subordinam s formas, a Idia de dualidade no tem a forma de algo e algo; a Idia de triangularidade no tem a forma triangular. Mas, contrariamente, faz sentido dizer que uma forma aplica-se a si prpria; por exemplo, que as formas triangulares so triangulares e que algo e algo tem a forma de algo e algo.

    Os objetos triangulares e os pares de objetos do mundo fsico, por sua vez, tm apenas uma relao de semelhana - no de identidade - com as formas. Dizemos que um objeto sensvel tem a forma triangular - e isso quer dizer que ele semelhante a um tringulo, mas no ele prprio um tringulo - e que um par qualquer de objetos tem a forma do nmero 2, isto , a forma de algo e algo - e isso um modo de dizer que ele semelhante a um qualquer nmero 2, mas no um deles. A relao de semelhana ou isomorfia exclui a perfeita identidade. Um tringulo sensvel apenas aproximadamente um tringulo em sentido matemtico estrito, uma coleo de dois objetos sensveis tem apenas aproximadamente a forma do 2. s porque tomamos cada um dos objetos que compem um par de objetos reais como uma unidade perfeita indivisvel o que nenhum objeto sensvel de fato - que a dualidade lhe cabe como forma. E porque nenhum objeto deste mundo uma unidade perfeita, nenhuma coleo de dois deles uma instncia perfeita da Idia do 2. As formas ocupam, assim, uma posio intermediria entre as Idias e as coisas do mundo fsico, o mundo imperfeito acessvel aos sentidos.

    Para Plato, a matemtica se ocupa das formas, no das Idias. Essas so objetos da filosofia; delas ocupa-se a dialtica11 12, a mais elevada e

    11 O que faz com que algo (uma dada multiplicidade) seja um par, isto , seja 2, no algo intrnseco a ele, ou uma qualquer operao (por exemplo, a juno), mas a sua participao na Idia de 2 (cf. Fedo, lOlb-c).

    12 A dialtica , para Plato, a cincia filosfica que consiste em ascender dos conceitos e proposies at os conceitos mais gerais e primeiros princpios. A dialtica tem, assim, a tarefa de ordenar e hierarquizar as Idias, estabelecendo entre elas as conexes necessrias. Esse termo, que originalmente designava apenas o dilogo, conhece depois de Plato (com Aristteles, Kant, Hegel e Marx) uma variedade de novos sentidos, alguns gozando de boa fama, outros, de reputao menos brilhante.

  • 4 2 JAIRO JOS DA SILVA

    caracterstica disciplina filosfica. As formas, os objetos matemticos por excelncia, habitam, como dissemos, um lugar celeste fora deste mundo imperfeito, fora do espao e do tempo, e assim imunes gerao e degradao. Preexistem, portanto, atividade matemtica13; qual cabe apenas ascender at eles e estud-los. Ou seja, tanto os objetos quanto as verdades matemticas tm, segundo Plato, existncia independente de ns (realismo ontolgico e epistemolgico).

    Como ento podemos conhec-los? A resposta de Plato : pelo intelecto. Os sentidos podem apenas nos sugerir, conduzir nossa ateno para as entidades perfeitas; conhec-las, porm, tarefa exclusiva da inteligncia. Plato o exemplo acabado do racionalista em filosofia. Para ele o homem tem uma alma racional e um corpo sensvel, aquela pode ascender ao mundo das Idias, onde, segundo alguns dilogos platnicos, j esteve antes de juntar-se ao corpo14; esse tem apenas aquilo que lhe fornecem os sentidos, que no nos podem dar um conhecimento perfeito e indubitvel15. As verdades matemticas, em particular, expressam simplesmente, para Plato, relaes universais e imutveis entre as formas matemticas. Ns as conhecemos, ou podemos conhecer, a priori, isto , independentemente dos sentidos, por meio do entendimento. E mesmo as verdades que desconhecemos no momento estaro sempre disposio do nosso intelecto com seu valor de verdade inalterado.

    Apesar de no ter sido ele prprio um matemtico, quase toda a matemtica que se fazia na poca de Plato era feita ao seu redor,

    13 PorissoPlatocriticaalinguagemconstrutivistadosgemetras, quefaziam, eainda fazem, uso irrestrito de termos como prolongar, construir, traar, estender etc.

    14 Esse o fundamento da teoria platnica da reminiscncia. Segundo Plato, o conhecimento racional jaz dormente na alma, essa parte de ns que j teve contato direto com as Idias e formas. Aprender apenas uma forma de recordar (cf. Fedo, 73a-75e).

    15 No dilogo Meno Plato pe sua teoria da reminiscncia em prtica com um exemplo matemtico, precisamente. Um jovem escravo levado a construir um quadrado com o dobro da rea de um quadrado dado por meio de uma srie de intervenes de Scrates que, como um parteiro, conduz o entendimento do jovem luz. O momento de "intuio de uma verdade matemtica , assim, em Plato, um momento de recordao.

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 43

    por seus alunos e amigos. Como j dissemos antes, muito do que est em Euclides veio de autores anteriores a ele, em particular Teeteto e Eudoxo. Pois bem, o primeiro foi aluno e o segundo amigo de Plato.

    Dificilmente poderiamos exagerar a importncia da matemtica no pensamento de Plato e o papel que ele lhe reservava na estruturao do mundo, no esquema geral do conhecimento e na educao. Mas, ainda mais que uma filosofia da matemtica, Plato nos legou um esteretipo. Hoje, poucos ainda aceitam seriamente o reino puro de Idias de Plato, a sua teoria da reminiscncia, e outras idiossincrasias da sua filosofia, mas a imagem da matemtica como uma cincia de um domnio fora desse mundo ao qual ascendemos pelo pensamento ainda a filosofia natural dos matemticos. Os filsofos platonistas de hoje procuram arduamente transformar esse esteretipo numa filosofia articulada.

    Aristteles

    O discpulo de Plato, Aristteles (384 - 322 a.C.), permitia-se discordar do mestre16. Em primeiro lugar, ele no admitia a existncia de um reino transcendente de Idias e formas matemticas. A s formas geomtricas e numricas existem, para Aristteles, apenas como aspectos de objetos e colees de objetos reais, isto , notas caractersticas desses objetos cuja existncia depende da existncia dos prprios objetos17. No h uma Idia ou uma forma transcendente de tringulo ou de dualidade, apenas objetos

    16 As idias de Aristteles sobre a natureza da matemtica so apresentadas, por exemplo, nos livros XIII e XIV da Metafsica, no contexto de uma polmica contra Plato. Aristteles no duvida de que os objetos matemticos existam, mas discorda que existam separadamente dos objetos reais (Metafsica, livro XIII, 1076a). O problema que Aristteles polemiza, em grande medida, contra o Plato da tradio oral, que contm uma forte componente pitagrica, no o Plato que encontramos nos dilogos.

    17 Para Aristteles, os objetos matemticos so posteriores em substancialidade (isto , so objetos que no tm existncia independente), mas anteriores em definio, j que podem ser definidos independentemente de seu suporte material (enquanto a definio de um corpo envolve referncia sua forma) (Metafsica, livro XIII, 1077b).

  • 4 4 JAIRO JOS DA SILVA

    triangulares e pares de objetos. Assim , a matemtica no tem um domnio distinto do de qualquer cincia emprica; como a fsica, ela se ocupa dos objetos deste mundo. Elas diferem apenas no modo de trat-los. A matemtica considera-os exclusivamente do aspecto formal matemtico18, isto , v neles apenas sua forma geomtrica ou aritmtica19.

    Podemos dizer que, para Aristteles, os objetos matemticos so uma abstrao apenas ou, na pior das hipteses, uma fico til. Eles no tm existncia separada dos objetos empricos, so apenas aspectos deles, e se vezes os pensamos como independentes, isso apenas um modo de pensar sem maiores conseqncias prticas20. Um objeto emprico um objeto matemtico na medida em que ns podemos consider-lo do ponto de vista de seu aspecto matemtico, ou seja, como um objeto matemtico.

    Se, por exemplo, Paulo marido de Maria, no existe um ente o marido de Maria separadamente de Paulo, e do qual Paulo de algum modo participa; ser marido de Maria apenas um aspecto de Paulo. Podemos trat-lo como um homem sem considerar em nada esse aspecto, mas podemos tambm, talvez para efeitos legais numa ao de divrcio, consider-lo apenas sob esse aspecto. Assim, ns abstramos de Paulo (abstrair significa literalmente tirar fora) apenas o seu aspecto que nos interessa nesse contexto. O homem Paulo em nada se modifica, claro; a operao de abstrao simplesmente uma

    18 Nas palavras do prprio Aristteles: "D e fato, a matemtica se ocupa apenas com as formas: ela no tem a ver com os substratos; pois ainda que as propriedades geomtricas sejam propriedades de um certo substrato, no enquanto pertencentes ao substrato que ela as mostra . (Segundos analticos, I, 13.) Essa sentena contm o essencial da filosofia da matemtica de Aristteles.

    19 Por forma aritmtica de uma multiplicidade qualquer de objetos entendo essa multiplicidade considerada apenas como uma quantidade de unidades indife- renciadas, uma para cada um dos seus elementos.

    20 Assim como um gemetra pode, para fins de demonstrao, traar um segmento e declarar que mede hipoteticamente um metro, mesmo que assim no seja na realidade (Metafsica, livro XIII, 1078a).

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 45

    operao lgica, no real21. Na ao de divrcio pouco nos interessa a cor de seus olhos, ou qualquer outro aspecto seu, apenas o que diz respeito a Paulo qua (isto como) marido de Maria nos interessa.

    Analogamente, para Aristteles, a matemtica estuda objetos sob certos aspectos apenas, uma bola como uma esfera, um par de dois livros como dois. Ao fazer isso, dizemos, abstramos da bola a sua forma geomtrica e da coleo de livros a sua forma aritmtica. Visto assim, Aristteles um empirista em ontologia, pois, para ele, apenas os objetos dos sentidos existem realmente, com um sentido pleno de existncia.

    Poderiamos, porm, perguntar, e os nmeros to grandes que no podem numerar nenhuma coleo real, e as formas geomtricas to esdrxulas que no podem dar forma a nenhum objeto real (como o mirigono, o polgono de dez mil lados)? A sada, para Aristteles, admitir entre os objetos matemticos tambm certas formas fictcias. Essas, no entanto, por serem construtveis a partir de formas reais, so possveis na realidade. Um nmero muito grande pode ser construdo, por adio sucessiva de unidades, a partir de qualquer nmero pequeno, e o mirigono pode ser construdo a partir de figuras geomtricas reais, como crculos e segmentos de reta. Assim, numa compreenso mais ampla, a matemtica, segundo Aristteles, trata no apenas de formas abstratas atuais, mas tambm de formas simplesmente possveis22.

    Apesar de admitir que alguns objetos do mundo emprico, como as estrelas fixas, por exemplo, tm formas matemticas perfeitas (as estrelas so, para ele, esferas perfeitas), Aristteles, claro, estava consciente do fato de que a forma matemtica dos obj etos deste mundo sublunar nunca

    21 Numa perspectiva "psicologista , que considera o pensamento como uma manipulao de representaes, e essas como objetos mentais - cpias dos objetos externos que montamos a partir dos estmulos sensoriais que recebemos deles

    a abstrao pode ser entendida como um processo mental, portanto real, de gerao de representaes a partir de representaes. Foi esse modelo da abstrao que Frege ridicularizou em sua cruzada antipsicologista como uma espcie de solvente universal que elimina das representaes aquilo que no queremos, deixando s o que nos interessa.

    22 E, para Aristteles, se o matemtico afirma, por exemplo, que existem infinitos nmeros, isso s pode ser entendido em termos de um infinito potencial, isto , da possibilidade ilimitada em princpio de gerao de novos nmeros.

  • 4 6 JAIRO JOS DA SILVA

    so perfeitas. Uma bola apenas aproximadamente uma esfera. Como, ento, podemos trat-la matematicamente como uma esfera? Muitas vezes Aristteles afirma que os objetos reais instanciam realmente formas matemticas perfeitas, no apenas esboos imperfeitos delas. No me parece fcil fazer sentido dessas afirmaes; assim, prefiro considerar a abstrao aristotlica como uma operao mais complexa que a mera separao em pensamento (ou, melhor ainda, separao lgica23) de um aspecto como ele realmente se apresenta no objeto24.

    Como a entendo, a abstrao aristotlica, a operao pela qual consideramos objetos e colees de objetos empricos como objetos matemticos, comporta tambm um elemento de idealizao. Tratar uma bola como uma esfera uma operao complexa: abstrai-se da bola a sua forma mais ou menos esfrica e, simultaneamente, idealiza-se essa forma, isto , desconsideram-se as diferenas entre ela e a esfera matemtica perfeita (determinada pela sua definio como um lugar geomtrico de pontos espaciais eqidistantes de um centro). Uma esfera matemtica , assim, a idealizao de um aspecto da bola, e s assim ela existe25.

    E as asseres verdadeiras da matemtica, de onde, segundo Aristteles, elas tiram sua verdade? Tambm da experincia ou, como queria Plato, da razo? Consideremos este enunciado: a soma dos ngulos internos de um tringulo x qualquer igual a dois retos. Segundo Aristteles, a varivel x nessa assero matemtica tem por domnio os objetos sensveis, no as formas platnicas ideais, que, como vimos, ele no via como objetos independentes. Assim, da perspectiva aristotlica, o enunciado correto deve ser este: (1) a soma dos ngulos internos de um objeto triangular qualquer igual a dois retos. Ou ainda, equivalentemente: (2)

    23 U ma separao lgica no uma separao real, mesmo que apenas no nvel das representaes, mas to-somente um modo de tratar o objeto, sob um aspecto e no sob outros.

    24 Dizer, para efeitos matemticos, que um segmento tem um certo comprimento quando de fato no tem parece-me o modelo do tratamento matemtico do real para Aristteles.

    25 A definio apenas, em nenhum sentido, cria qualquer coisa; no por termos uma definio de um objeto que ele existe.

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 47

    a soma dos ngulos internos de um objeto triangular qualquer, na medida em que ele um objeto triangular, igual a dois retos.

    O acrscimo na verso (2) significa apenas que a propriedade atribuda aos objetos triangulares lhes pertence porque eles so triangulares, ou ainda, que a triangularidade condio suficiente para que os ngulos internos de qualquer objeto triangular somem dois ngulos retos. Em geral, dizer que um objeto, de uma certa classe, considerado como um representante dessa classe, tem uma determinada propriedade significa que esse objeto tem a propriedade que lhe atribuda, e que, ademais, todos os objetos dessa classe tambm tm essa propriedade, isto , pertencer a essa classe uma propriedade subordinada propriedade em questo. (1) nos diz que todo objeto triangular tem a propriedade de ter seus ngulos internos somando dois retos, ou, em outras palavras, que a triangularidade uma propriedade subordinada propriedade de ter os ngulos internos somando dois retos; (2) diz a mesma coisa acrescentando que os objetos triangulares tm essa propriedade porque so triangulares, isto , que todo objeto triangular tem a mesma propriedade, o que apenas refora o j dito. Ou seja, (1) e (2) so, de fato, asseres equivalentes.

    Agora, como podemos demonstrar esse teorema (conhecido como o teorema angular de Tales)? Eis como: tomamos um objeto triangular qualquer. Por construes verificamos, empiricamente ou na imaginao, no importa, mas, de algum modo, por constatao ad oculos, que os ngulos internos desse objeto somam efetivamente dois retos (considerando que os aspectos matemticos desse e outros objetos envolvidos nas construes - por exemplo, as formas geomtricas e os ngulos - so instncias perfeitas, no apenas aproximadas, das suas categorias, como caracterizadas pelas suas definies). Note que at aqui mostramos apenas que o objeto triangular escolhido tem a propriedade em questo. No entanto, podemos, por anlise das construes levadas a cabo, verificar que as peculiaridades do objeto escolhido, outras que sua triangularidade exclusivamente, no desempenham nenhum papel na demonstrao de que o objeto em questo satisfaz a propriedade dos ngulos internos. Logo, por generalizao, qualquer outro objeto triangular tem essa mesma propriedade, isto , a triangularidade est subordinada a ela. A s

  • 4 8 JAIRO JOS DA SILVA

    sim, a demonstrao do teorema envolve verificao emprica (ou, se usamos apenas a imaginao, o esboo mental de uma verificao emprica, que tambm conta como uma verificao emprica, j que a imaginao, nesse caso, apenas reprodutiva: o objeto triangular imaginado a imagem de um objeto real possvel) para mostrarmos que um particular objeto tem a propriedade requerida, e reflexo ou anlise lgica, isto , a razo para fundamentar a generalizao26.

    Um empirista radical ir dizer que as verdades da matemtica so, como as verdades das cincias empricas, justificadas por generalizao a partir da experincia (induo enumerativa). M as no Aristteles. Ele admitia a validade do mtodo matemtico de sua poca, o de demonstraes, em geral construtivas, que estabelecem seus resultados com universalidade e necessidade; assim, apesar de empirista em questes de ontologia aquelas questes concernentes aos obj etos matemticos , ele parece admitir um misto de racionalismo e empirismo em questes epistemolgicas - as que dizem respeito verdade matemtica.

    O tratamento aristotlico da matemtica tem como ponto forte a explicao da aplicabilidade da matemtica ao mundo emprico, sem a necessidade de apelar, como Plato, para relaes de participao entre Idias e formas e a relao de semelhana entre essas e os objetos empricos27. Para Aristteles a matemtica aplica-se ao mundo sensvel simplesmente na medida em que s uma maneira de falar dele.

    26 Como veremos mais tarde, se substituirmos a verificao emprica pela verificao no espao da intuio pura, teremos a anlise de Kant da demonstrao do teorema angular de Tales.

    27 H ainda um outro aspecto importante, em Plato, na relao entre a matemtica e a realidade. Em muitos pontos Plato herda uma concepo pitagrica do mundo, em que a realidade, toda ela, concebida em termos de estruturas e relaes matemticas. No Timeu, por exemplo, Plato nos fornece uma descrio da estrutura da realidade emprica em termos geomtricos (o Timeu oferece uma teoria geomtrica da estrutura do mundo, em substituio teoria aritmtica dos pitagricos, resolvendo assim a crise gerada pela descoberta da incomensurabi- lidade). Por mais que essa descrio seja apenas uma curiosidade do ponto de vista da cincia moderna, Plato no estava, no esprito, to errado assim; basta lembrar quanto certas propriedades qumicas dependem da estrutura geomtrica das molculas envolvidas. O importante da cosmogonia platnica, porm, a idia de uma ordem geomtrica do cosmo. Essa idia ainda est conosco.

  • FILOSOFIAS DA MATEMTICA 4 9

    H um outro aspecto a ser considerado na relao entre a matemtica e o pensamento aristotlico. Em geral, a filosofia da matemtica no pretende produzir matemtica, no se espera de filsofos que demonstrem teoremas ou inventem teorias matemticas. Mas bvio que idias filosficas podem influenciar o modo como os matemticos desenvolvem a sua cincia, e amide o fazem de fato. Veremos a seguir, por exemplo, que a criao da matemtica intui- cionista foi fortemente influenciada por pressupostos filosficos sobre a natureza do conhecimento. Casos como esse, em que a filosofia de algum modo determina um rumo de desenvolvimento matemtico, so muito comuns ao longo de toda a histria da matemtica, desde Pitgoras. Aristteles em especial exerceu profunda influncia em toda a histria da matemtica.

    Aristteles e a lgica formal

    Aristteles foi o sistematizador pioneiro da lgica formal, apresentando o que lhe parecia ser um elenco exaustivo das formas vlidas de inferncia. Uma forma de inferncia um modo de se obter concluses a partir de pressupostos; uma inferncia (logicamente) vlida se a veracidade das concluses depender apenas da veracidade dos pressupostos; ela ser formal se independer do contedo (do que dito), mas apenas da forma lgica das asseres (de como isso dito). Por exemplo, se assumo como premissas que todo homem mortal e que Scrates um homem, segue que Scrates mortal. A validade dessa inferncia no depende em nada dos conceitos de mortalidade e de humanidade, ou de Scrates em particular, mas apenas da forma das asseres envolvidas. Se nessa inferncia substituirmos os termos por variveis teremos a seguinte forma vlida de inferncia: se todo A B , e se x um A, ento x um B. A silogstica aristotlica um estudo de formas corretas de inferncia de um tipo especial, chamadas silogismos.

    A partir de certo ponto do seu desenvolvimento histrico, por volta de meados do sculo XIX, a lgica formal sofisticou-se. Privilegiando linguagens simblicas e ampliando o seu repertrio de modos vlidos de inferncia, ela foi capaz de fornecer um meio ideal

  • 5 0 JAIRO JOS DA SILVA

    de expresso e articulao para as teorias matemticas, o que a lgica Aristotlica estava longe de poder prover. Quando foi imprescindvel refletir matematicamente sobre teorias matemticas formalizadas, a lgica formal transformou-se, ela prpria, em objeto matemtico, inaugurando um novo domnio da matemtica.

    A concepo aristotlica de cincia dedutiva

    Outro aspecto bastante relevante da influncia do pensamento aristotlico no desenvolvimento da cincia em geral, e da matemtica em particular, foi a sua concepo mesma de cincia dedutiva. Aristteles a entendia como um edifcio logicamente estruturado de verdades encadeadas em relaes de conseqncia lgica a partir de pressupostos fundamentais no demonstrados28. Essa concepo foi exemplarmente realizada em Os elementos de Euclides, em que a partir de um conjunto mnimo de axiomas de natureza geral, e postulados especficos, deriva-se todo um corpo de verdades aritmticas e geomtricas, se bem que nunca, ou quase nunca, segundo as formas de inferncia da silogstica aristotlica. M as isso pouco importa, a organizao de Os elementos ainda responde a um ideal aristotlico de cincia dedutiva. E esse modelo axiomtico-dedutivo viria a ser, aolongo da histria, o paradigma de uma teoria cientfica..no apenasmatemtica acabada29.

    28 "Aquilo que ns chamamos aqui saber conhecer por meio da demonstrao. Por demonstrao eu entendo o silogismo cientfico, e eu chamo de cientfico um silogismo cuja posse constitui para ns a cincia. Se ento o conhecimento cientfico consiste nisso que dissemos, necessrio tambm que a cincia demonstrativa parta de premissas verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas que a concluso, anteriores a ela, e da qual elas sejam as causas. (Aristteles, Segundos Analticos I, 2)

    29 Os Elementos de Euclides talvez no tenham sido o primeiro exemplo de um sistema axiomtico-dedutivo em matemtica; dois sculos antes dele Hipcrates de Chios a quem alguns historiadores atribuem a prioridade no uso da deduo nas demonstraes matemticas - havia j escrito o seu Elementos, hoje perdido e cujo contedo ignoramos. Assim, talvez Euclides no estivesse respondendo a um ideal formulado pela primeira vez por Aristteles; mas, seja como for, com Aristteles que a cincia dedutiva, entendida como um edifcio logicamente estruturado sobre bases evidentes, ganha status de modelo ideal e dignidade filosfica.

  • Fl LOSOFIAS DA MATEMTICA 51

    Aristteles e a matemtica formal

    A idia de uma organizao lgica do edifcio matemtico tomou possvel (quando foi possvel conceber-se sistemas lgicos puramente formais, isto , sistemas simblicos sem interpretao, submetidos apenas a regras sintticas de manipulao de smbolos) a criao de uma matemtica formal, em que se buscam simplesmente as conseqncias lgicas de certos pressupostos formais30. A matemtica formal no importam o significado nem a veracidade das asseres, mas apenas as relaes formais entre elas. Mas isso no quer dizer que ela seja apenas um jogo formal sem nenhuma inteno cognitiva. Se a matemtica formal abre mo de conhecer algo em particular - um domnio especfico de interesse matemtico , apenas para poder conhecer al go em geral, isto, uma estrutura formal. A matemtica formal nos fornece precisamente conhecimento formal31. Os germes dessa idia encontram-se na concepo aristotlica de cincia dedutiva e na possibilidade de uma lgica puramente formal, cujos primeiros esboos foram traados por Aristteles.

    Aristteles e o infinito

    Mas as contribuies de Aristteles matemtica no param por a. Devemos-lhe a distino fundamental entre o infinito atual e o infinito potencial, ou seja, entre a noo de uma totalidade finita em que sempre cabe mais um indefinidamente-- o infinito potenciale uma totalidade infinita acabada. Segundo Aristteles, aos matemticos bastava a noo de infinito potencial. Se bem que essa idia no corresponda realidade da prtica matemtica, uma vez que a noo de infinito atual essencial a muitas teorias matemticas, ela foi, e ainda , aceita por muitos matemticos, que no vem na matemtica do infinito seno uma fonte de absurdos e contradies. Poincar, j no sculo XX, ainda afirmava que

    30 Evidentemente, isso precisou esperar at o sculo XX, quando se firmou a idia de que teorias matemticas no precisam ser teorias de nenhum domnio objetivo em particular, mas de todos que compartilham uma certa estrutura formal. Ou seja, teorias matemticas formais so, na verdade, teorias de formas, no teorias de contedos.

    31 Essas questes sero discutidas mais detalhadamente no captulo 5.

  • 5 2 JAIRO JOS DA SILVA

    o infinito matemtico sempre potencial. O infinito atual recebeu um tratamento matemtico apropriado apenas com a teoria dos conjuntos de Cantor, no sculo XIX, mas essas idias foram criticadas em seu tempo e, ainda hoje, h quem resista a elas, como os matemticos de ndole construtivista, para os quais nada existe que no possa ser de algum modo construdo efetivamente - o que conjuntos atualmente infinitos evidentemente no podem, se, como parece, os conjuntos so construdos a partir de seus elementos.

    Aristteles e as demonstraes por reduo ao absurdo

    Outras contribuies importantes de Aristteles para a cincia matemtica foram as suas anlises de noes metamatemticas fundamentais, como as de axioma, definio, hiptese e demonstrao. Em particular a crtica Aristotlica s demonstraes por absurdo 52, que ele considerava no causais, isto , no explicativas - sabe-se que algo verdadeiro sem saber por que verdadeiro -, desempenhou, segundo alguns intrpretes (cf. Mancosu, 1996), papel seminal na histria da matemtica. Demonstraes por reduo ao absurdo (para se demonstrar uma qualquer assero A, supe-se a falsidade de A e obtm-se como consequncia uma falsidade qualquer ou, equivalentemente uma contradio. O que mostra que A no pode ser falsa, sendo, portanto, verdadeira) ocorrem com freqncia na matemtica grega, em particular no mtodo de exausto de Arquimedes, que envolve uma dupla reduo ao absurdo. A introduo de mtodos infinitrios na matemtica do sculo XVII, em especial com Gavalieri, visava em grande medida substituir demonstraes por exausto por demonstraes diretas, causais, respondendo assim s demandas aristotlicas.

    Alguns autores (Klein, 1968) identificam ainda na crtica de Aristteles s concepes de Plato sobre a natureza dos entes matemticos, nmeros em particular, e suas prprias idias sobre eles, o pano de fundo sobre o qual Euclides apresenta seu tratamento da aritmtica em Os elementos. Em suma, dificilmente poderiamos encontrar melhor exemplo 32

    32 Cf. Segundos analticos 1