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Desgraça pouca é bobagem (Folhetim) Berilo Carvalho e Juliana Codevila

(Folhetim) - perse.com.br · ajudaram e confiaram na força de nossa história. São elas: Aldéa Clemente, Ana Paula Moreira Nonato, a primeira pessoa, ... mas na rédea curta. A

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Desgraça pouca é bobagem

(Folhetim)

Berilo Carvalho e Juliana Codevila

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Berilo Carvalho & Juliana Codevila

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Copyright © 2012 by Berilo Carvalho e Juliana Codevila Todos os direitos desta edição reservados à Berilo Carvalho e Juliana Codevila Título Original: Desgraça Pouca é Bobagem Capa e ilustração da capa Ido Emanuel de Lima Ferreira Revisão Berilo Carvalho e Juliana Codevila

____ CARVALHO, Berilo; CODEVILA, Juliana Desgraça Pouca é Bobagem / Berilo Carvalho e Juliana

Codevila; Brasília: Berilo Carvalho, 2012. 532p. ISBN: 978-85-914570-0-7

1. Romance brasileiro. Folhetim.

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Agradecimentos

A todos aqueles que acreditaram em nosso trabalho... que foram bem poucos... mas bem poucos mesmo... quase ninguém.

Brincadeira! Tivemos muitíssimas pessoas que nos ajudaram e confiaram na força de nossa história. São elas: Aldéa Clemente, Ana Paula Moreira Nonato, a primeira pessoa, diga-se de passagem, a ler na íntegra nosso folhetim, Emerson Nogueira Sousa, Julie Caroline Ribeiro dos Santos, a segunda pessoa a ler e revisar nosso folhetim, Rodrigo Vrech, José Barros Sobrinho, pela encorajadora omissão, Hudson Senna Codevila, pelo apoio cego, surdo e silencioso, Bueno Marcos A. dos Santos, Ana Luiza Fraga e aos pais da autora, José Antonio Codevila e Ana Cristina Codevila, que desde que souberam que um livro estava sendo escrito sugeriram e apoiaram sua publicação e, mesmo sem nunca terem lido uma página completa, afirmam publicamente que o livro é maravilhoso.

Além disso, o especial agradecimento do autor a Nelson Rodrigues, seu ídolo e fonte primeira de inspiração e referência, a quem dedicamos este trabalho.

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1ª Temporada

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Episódio 1

Quando o carteiro chegou e seu nome gritou com uma carta na mão,

Ludmárcia nunca imaginaria que seu destino estava prestes a mudar de forma tão drástica e irreversível.

Ludmárcia, ou Marcinha, ou ainda, Massinha, como era conhecida em todo o povoado, numa clara alusão ao seu ofício de quituteira de mão-cheia, era filha de uma viúva adoentada e inválida, que passava os dias delirando, gemendo e se mal-dizendo no fundo de uma rede.

Dona Gertrudes, mãe de Marcinha, passara num concurso do extinto INANPS e lá trabalhara por mais de dez anos. Até que houve um escândalo envolvendo um carregamento de gardenal, e, em decorrência disso, um processo administrativo e judicial que culminaram na demissão de Gertrudes. Depois disso, nunca mais a viúva foi a mesma. Sempre alegando inocência, a pobre da velha foi definhando, se encarquilhando, se entrevando até ficar um caco de gente.

Marcinha, então, uma menininha ainda, sete, oito anos, teve de se virar: estudava e trabalhava vendendo pirulito, tanto no próprio colégio, como, à tarde, no único sinal da cidade de Ovelhópolis, uma pequena, mas próspera aldeia de pastores. Tudo isso para, alimentar a si, à mãe doente e a uma irmã bebê, chamada Lucrécia Cristina, uma peste desde os cueiros. Essa irmã caçula foi, das cruzes, a mais pesada que a bondosa e doce Marcinha carregou. A desgraçada da menina, desde que aprendera a falar já mostrara ao que viera ao mundo: infernizar a vida de todos à sua volta. Esquisita, ingrata, bruta e revoltada, a essa desgraça, a irmã mais velha sacrificou os mais verdes anos de sua adolescência e mocidade.

Mesmo com uma vida assim tão sofrida, isso não impediu Marcinha de sonhar, e o seu sonho mais caro, de toda uma vida, sempre fora o de participar do reality show Big Bode Brasil, “entrar na casa mais famosa e vigiada do país”. Quando soube da última seleção de candidatos para o programa, mandou duas caixas de fitas VHS, onde mostrava seus principais dotes: cantava, dançava, rebolava, interpretava Shakespeare (em inglês), recitava João Cabral de Melo Neto, fazia cambalhota, plantava bananeira, fazia streep

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num pau-de-sebo, e descrevia sua doce personalidade, jurando que sempre seria ela mesma, que nunca iria jogar, que agiria sempre com o coração e só colocaria alguém no paredão por questão de afinidade.

Quando o carteiro gritou: “ô, Massinha, carta pra ti, me’rmã! Anda que não tenho o tempo todo, criatura!”, a coitada estava correndo doida na cozinha, ocupada demais em fazer doces, bolos e croquetes, encomenda para o aniversário da centenária Dona Risoleta, uma velha amiga de sua mãe e dona de uma casa de tolerância, a única do povoado, e que nos momentos de maior aperto sempre lhes valeu. Com as mãos completamente enfarinhadas, pediu a gentileza à irmã:

– Lulu, ô minha irmãzinha, pegue lá pra mim a cartinha, coração! – Lulu é a puta que te pariu, porra. Já não te disse mil vezes pra

não me chamar assim, nojenta! Saco! – foi a resposta carinhosa da ingrata.

Massinha pensou: Que gênio forte essa minha irmãzinha tem! – Pois que seja, mana! Mas pegue lá pra mim, pegue. Lucrécia, ao atender o carteiro resmungando e praguejando, ficou

com a cara no chão quando viu na carta o logotipo da emissora que patrocinava o tal reality show. Por instinto, sem saber o que fazer, ainda com a carta, a desgraçada, do portão, gritou para a irmã uma mentira qualquer: – Né, nada, não, Massinha. O besta se enganou.

A desnaturada, então, correu para o quarto, trancou-se, abriu a carta e viu que sua irmã havia sido selecionada para o programa. O sangue da vilã, se é que a cobra tinha sangue, gelou. Rapidamente, passou pelos seus olhos toda a cena: A irmã ganhando um milhão, papéis importantes em novelas do horário nobre, pousando nua para revistas masculinas, multiplicando o dinheiro do prêmio, ficando riquíssima, sendo desejada por toda a população masculina do Brasil, enquanto que ela, a irmã caçula, continuaria em Ovelhópolis, cuidando do estorvo da mãe, mordendo-se de inveja e despeito. Não deu outra, chorando de ódio e rangendo os dentes, a maluca rasgou com fúria a carta do programa e depois queimou-a, num ritual quase satânico.

– Ô Luluzinha, que cheiro de queimado é esse no seu quarto, mana? – bateu no quarto da desnaturada a ingênua e preocupada Marcinha.

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– Vá se lascar! Ora merda! Me deixa em paz! Agradecida por não ser nada grave, Marcinha candidamente

pensou consigo mesma: “Esses hormônios! Preciso levar essa menina no doutor, pra ver se ele receita um calmante. A bichinha anda tão nervosa.”

Nessa mesma hora, no outro lado da aldeia, num dos seus bairros nobres, Dona Calô ouviu baterem palmas no portão de sua casa e praguejou baixo:

– Quem será uma hora dessa? Ô inferno! E Branca Helena nem para estar aqui e atender essa porta. Fica com essa besteira de estudar. – As palmas soaram mais fortes. – Já vai, inferno! Vai tirar o pai da forca?

Quando a velha abriu a porta da frente e viu a filha pródiga no portão, quase infarta de susto. Com uma voz grossa de surpresa e raiva, já foi logo desancando a coitada:

– Que diabos é que tu anda fazendo aqui? Fugiu da penitenciária? – Ô, mãezinha, assim até ofende. Eu já cumpri minha pena. – Que pena! – a velha cruel fez um trocadilho. Dona Calô era uma dessas bruxas de conto infantil. Viúva e uma

das fortunas mais sólidas de Ovelhópolis, possuía centenas de milhares de ovelhas, várias fazendas e alguns prédios de escritórios no centro do povoado. Uma verdadeira tirana, não aceitando o passado rebelde da única filha, Florípedes Raimunda, mais conhecida na prisão e na cidade como Floribunda, expulsou-a de casa, deserdou-a e ainda lhe arrancou a guarda da filha judicialmente. Branca Helena, sua neta, fora criada pela avó com todos os mimos, mas na rédea curta. A moça pouco vira a mãe em toda sua vida, e só quando criancinha ainda, porque a bruxa velha proibira judicialmente Floribunda de se aproximar a menos de 500 metros de Branca e dela própria. E tudo isso só porque a pobre da Flori havia sido na juventude uma ex-vedete, ex-garçonete, ex-chacrete, ex-periguete, ex-cover-da-grethcen, se “emaconhara”, se embriagara, com um traficante se amigara, se lascara, a bolsinha rodara, ex-presidiária se tornara e nem assim de ser pobre deixara. E como o que mais Calormina prezava era a reputação dela própria e da família, nunca admitiria saber seu nome andando de boca em boca na rua, ligado à

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degradação da filha. – Mamãe, eu vim conhecer minha filha! – Flori foi direto ao

ponto. – O quê? Está maluca? – Mãezinha, eu acho que tenho esse direito... – falou sem muita

convicção. – Mesmo porque isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde, já que eu vou morar aqui... – jogou uma verde.

Só não esperava ouvir a gargalhada sarcástica da velha. – Você aqui? Kiakiakiakia! Essa foi a melhor do dia. – a velha foi

cruel. – Você acha que eu vou abrigar na minha casa uma ex-presidiária? Nunca!

– Mas eu sou sua filha, mamãe! E não tenho pra onde ir. – Azeite! Quando você saiu daqui de casa para se amigar com

aquele traste, eu avisei. Disse que você ia deixar de ser minha filha, não disse?

– Dizer, disse. Mas isso ninguém leva a sério, não! O que passou, passou!

– Passou foi uma pinoia! O que é que o povo da rua vai dizer? “Olha, lá vai a mãe daquela vagabunda!” Jamais! Já fiz muito em criar tua filha. Pode ir dando meia volta. Vai procurar a tua turma.

Flori errara muito, mas agora tudo o que mais queria era purgar seu passado negro, limpar o nome e ser aceita pela mãe conservadora e tradicional e pela filha desconhecida. E para tal, não mediria esforços.

– Pois não vou, não saio desse portão sem ver minha filha. E tem mais, todo mundo que passar por mim aqui nessa calçada vou cumprimentar e me apresentar: “Olá, como vai, sou a filha ex-presidiária e sem teto da senhora dessa casa.”

Flori jogou com o pior medo da mãe, o de ficar falada. – Passa pra dentro. – Dona Calô falou grosso, trêmula de ódio. As duas entraram e a velha foi logo segurando a filha pelo braço

com suas garras afiadas. – Ai, mamãe, não machuca, que eu gamo. – sem querer o

deboche de sua vida pregressa falou mais alto. – Mas é muito ordinária. Escuta aqui sua cretina, você acha que

sua filha vai querer te conhecer? – Ô, mãe, e por que não? – Tu acha que é fácil ter uma mãe com o teu passado? Que foi

rapariga de porta de mercado, que se envolveu até em tráfico de drogas?

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– Mamãe, tudo isso é passado. E na prisão eu me converti, aceitei Jesus no coração. Hoje sou uma serva do Senhor. Uma salva de palmas para Jesus. Amém? – e de fato aplaudiu o Altíssimo.

Dona Calô olhou para a filha de alto a baixo. Era uma quarentona bonita tanto de rosto, como de corpo. Se passasse por uma construção, certamente algum pedreiro mais afoito lhe gritaria: Ê, gostosa. Dona Calô não via como a filha podia ter se regenerado, sendo ainda tão bonita. “Isso nasceu para o que não presta. Está no sangue. Duvido dessa conversão.”

– E daqui não saio sem conhecer minha filha. – continuava Flori. – Quer que eu saia da sua casa, eu saio, mas como não tenho pra onde ir, vou montar acampamento no seu portão.

– Ô inferno! Pois, muito bem, diabo, você vai conhecer sua filha. Mas pelo menos me dá um tempo para eu preparar o espírito da menina. E outra, aqui você não fica. Tenho um barraco lá em Vaz Carneiro...

– Vaz Carneiro? Mas isso é no fim do mundo. – Cavalo dado, não se olha os dentes. Faço um preço justo no

aluguel e tu fica lá por enquanto. Flori aceitou as condições da mãe, feliz e esperançosa de que

pudesse com o tempo amansar o coração da velha.

Era madrugada alta, já quase amanhecia quando uma sombra, pé ante pé, atravessou o hall da mansão Braga de Medeiros, o casarão mais tradicional de Ovelhópolis, principal ponto turístico do povoado.

A sombra já estava alcançando a escadaria que conduzia aos quartos, quando uma luz fluorescente iluminou todo o ambiente. Cego pela claridade inusitada, Ivanir tropeçou e esbarrou num vaso de samambaia. Foi samambaia e estrume para tudo quanto era lado.

– Bonito, xeu Ivanir! – uma voz irônica de velho saudou o rapaz. – Ave Maria, titio! Que susto. Ivanir, recém chegado da capital, era o jovem, bonito e rico

enfermeiro-chefe do hospital da cidade, o HGO, e sobrinho do sócio majoritário do referido hospital, o doutor Epaminondas. A vida inteira morara com o velho tio. Fora dado aos cuidados do Doutor, juntamente com seu irmão mais velho, logo após a morte de seus pais num horrível acidente de automóvel. Sempre soube que o velho era

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linha dura e que exigia comportamento exemplar tanto de seus empregados, quanto, e principalmente, dele, Ivanir, que além de empregado, era seu sobrinho.

Antes de conhecer a liberdade na capital, nem se importava com os rígidos horários da mansão. Mas agora, depois que pintara o sete na cidade grande, ficava difícil se adaptar novamente às lei do tio.

– Ixo xão horaj de chegar em caja, xeu Ivanir! – Maj, titio... – Não tem maj, nem meio maj, direto para xeu quarto. Eshtá de

cashtigo até xegunda ordem! – De castigo? Titio eu xou... digo, eu sou um homem já! – Maj enquanto viver xob meu teto, vai ter que rejar pela minha

cartilha. Aqui, meu filho, é na baje da Lei do Chico de Brito. Chutando o ar e bufando qual touro brabo, Ivanir subiu a

escadaria, já com uma resolução tomada: a de comprar a sua casa própria e poder curtir sua mocidade como bem lhe aprouvesse.

Meses depois de ter perdido a maior chance de sua vida, quando o reality show já estava no ar, Marcinha, passeava no centro de Ovelhópolis, de quando em quando desviando de uma ou outra bolinha de cocô de ovelha, coisa muito comum no lugar. Sentia-se feliz, pois naquele dia tinha poucas coisas para fazer, apenas limpar a casa, dar banho na mãe, fazer um bolo de 50 kg e quatro andares no formato de uma maquete de uma cidade metropolitana poluída e mais 20 centos de docinhos e salgados em formato de agentes poluidores diversos, para uma festa beneficente que aconteceria em Serro Azul, a cidade vizinha, cujo tema, “Diga não à poluição: Vamos salvar os Leões Marinhos da Groelândia!”, particularmente, lhe empolgara. Além disso, tinha também apenas que capinar o jardim e o quintal do vizinho, passar três cestos de roupa, costurar um vestidinho novo para sua irmã, que queria ir à festa e ameaçou pôr fogo no barraco da família, caso ela não o fizesse, e no fim da tarde dar as aulinhas semanais e voluntárias para as criançinhas carentes do orfanato de Ovelhópolis, o Lar do Borreguinho Desmamado, projeto que abraçara há dois anos. Ou seja, era um dos dias mais tranquilos do mês, e, por isso, resolvera aproveitar seus quinze minutos livres para relaxar num ingênuo passeio pela pracinha da matriz e, satisfeita e muito motivada, decidiu que ia fazer até uma extravagância, ia dar um pequeno desfalque nas

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finanças da família para comprar um dindim de cajá. No meio da praça, foi surpreendida por uma voz conhecida: – E aí, Massinha, tudo azul? – era o carteiro Levitraz. – Tudo, Seu Levitraz! Tudo na paz de Deus. – respondeu com

um sorriso radiante. – Que beleza! Mas, Marcinha, faz tempo que eu queria te

perguntar, menina. Por que você não quis participar do BBB, criatura? Fiquei com a cara no chão quando o programa começou e não te vi na telinha.

Lud riu divertida: – Que BBB, Seu Levitraz? Aquilo é peixada, nem me chamaram. – Como não chamaram? Se eu mesmo... – Mas é claro que não chamaram, Seu Levitraz! Você acha? Se

tivessem me chamado, eu estaria lá na casa agora. – um ar sonhador apagou um pouquinho o brilho do olhar da moça. – Aquela última prova de resistência eu teria ganho, fiz um teste em casa, fiquei 48 horas em cima de um pau de sebo sem comer, nem beber, sem ir ao banheiro, sem piscar, sem suar, sem dobrar os joelhos, nem mexer os pés. Eu teria ganho um car...

– Marcinha, acredite em mim, eu sei de tudo o que se passa nessa cidade. Você foi chamada sim para o BBB, menina!

– Ô, Levitrazinho do meu coração, me conte isso direito. Ai, está dando até taquicardia!

E o carteiro fuxiqueiro passou o serviço todo. Ludmárcia ouviu tudo tranquilamente. Quando ele terminou, ela

muito calmamente perguntou: – Acabou? – Acabei, por quê? – Por que agora eu posso ter um derrame de ódio! Automaticamente a boca da moça foi se entortando até chegar a

orelha e ela caiu estrebuchando no chão.

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Episódio 2

No episódio anterior:

Ludmárcia perde a grande chance de sua vida e tem um derrame de ódio;

Floribunda sai da cadeia e procura a mãe;

Ivanir é surpreendido pelo tio.

Enquanto estribuchava no chão, Ludmárcia tentava se lembrar de algum fato que a levasse a identificar quem tinha sumido com a tal carta. Ainda não queria acreditar ter sido a irmã a culpada pela sua desgraça. Sua mente confusa começou então a fazer uma retrospectiva do dia em que o carteiro a chamou: acordara por volta das cinco da manhã; limpara a sujeira do cachorro, depois a sujeira que a mãe havia feito na cama; arrumara toda a casa e saíra sorridente e cantarolando às 6h30 para ir à padaria comprar fiado um pão de sal para ser dividido entre ela, a mãe e a irmã; no caminho tropeçara numa pedra e levara uma cantada de um pedreiro mais à frente; corando até a raiz do cabelo, permitira que o Sr. Malaquias, o português da padaria, lhe passasse a mão nas nádegas em troca de colocar mais um pão na sua continha quilométrica.

Assim, sua mente foi se aproximando do momento crucial em que o carteiro gritou seu nome no portão, e quanto mais próxima ficava, maior sua confusão. Viu-se voltando para casa, fazendo os doces pro aniversário da velha amiga da mãe. E finalmente, o momento crucial surgiu implacável e de uma nitidez terrível: “Lulu, ô minha irmãzinha, pegue lá pra mim a cartinha, maninha!” – chegava a sentir a bolota de brigadeiro rolando entre as palmas de suas mãos. “Né, nada, não, Lud. O besta se enganou.”

E logo, ao fundo, pareceu-lhe ouvir nitidamente um barulho de papel se rasgando, depois queimando. Lembrou até do cheiro de queimado. No momento, achara que se tratava apenas de Lucrécia, mais uma vez, queimando os ursinhos de infância ou a horta que, com dificuldade, ela, Ludmárcia, teimava em cultivar nos fundos da casa. Ao lembrar disso, foi tomada por um ódio mortal, sentiu o sangue ferver em suas veias e grunhiu assustadoramente de puro

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ódio! Gemia o nome da irmã com voz semelhante ao de Darth Vader. E se debatia no chão, os olhos revirados, a boca torta espumando.

Levitraz, pego de surpresa, não soube o que fazer. Desesperado, não sabia se amparava a epilética, se corria doido, se mordia o próprio braço, se estribuchava também, se gritava por socorro. Por fim, aplicou uma bofetada estralada em si próprio, ordenou-se calma, foi sem pressa a um orelhão e ligou para o SAMU.

Marcinha não queria perder a consciência, queria vingança, mas seus nervos fracos não suportaram tamanha emoção, não demorando muito para resvalar no poço escuro e assustador da inconsciência, sem antes grunhir com aquela voz grossa de monstro de filme trash: “Eu ganharia o B... B...B...”

A ambulância não tardou em chegar e resgatar a pobre enferma. Levitraz só esperou embarcarem a infeliz para correr para casa.

Nem as cartas que tinha para entregar ainda naquele dia lhe impediriam de realizar seu hobby mais caro, contar para toda a vizinhança a última do dia. Bem não dobrou a esquina para chegar à sua rua, o carteiro esbarrou em Flori, que, obcecada por limpar seu nome e ser aceita pela mãe conservadora e tradicional, além de se converter e aceitar Jesus, agora vivia fazendo promessas e caridades.

– Ei, Floribun... Digo, Dona Flori, a senhora nem sabe da última! – Escut’aqui, seu fuxi... Quer dizer, Seu Levitraz... – tinha virado

beata, mas de vez em quando não perdia a chance de dar uma alfinetadinha. – Agora não tenho tempo a perder com suas... notícias. O senhor não viu no noticiário, não? Houve um acidente horrível na Marginal Carneiros, envolvendo uma ambulância e um ônibus de turismo do pessoal da melhor idade. Estão precisando de voluntários e vou correndo para lá agora.

– Mas... – o carteiro fuxiqueiro ficou falando só. Para Levitraz não havia humilhação maior do que não saber em primeira mão de algum fato novo da cidade. – Droga!... Esper’aí, me’rmã, eu vou também!

A Marginal Carneiros, que ligava os bairros mais afastados e chiques de Ovelhópolis ao centro da cidade, estava um verdadeiro caos. O engarrafamento era quilométrico. Helicópteros sobrevoavam a região. Bombeiros, médicos, enfermeiros, o pessoal