12
FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO MUNICÍPIO DE FORMOSA/GO. Maxlanio Dias Sousa Mestrando em Geografia - IESA/UFG [email protected] Prof. Dr. Marcelo Rodrigues Mendonça IESA/UFG [email protected] A Folia da Roça em Formosa/GO é uma festa religiosa e popular considerada uma herança cultural e que acontece junto à Festa do Divino Espírito Santo, anualmente, nas vésperas de Pentecostes da Igreja Católica, sendo regionalmente conhecida por seu grande número de foliões e pelo público que visita e aprecia as manifestações do modo de vida e tradição dos camponeses do município. Entendidos como sujeitos da terra que reafirmam sua identidade territorial em seus territórios, também, a partir das festas religiosas, os camponeses dedicam-se na Folia da Roça ao que pronunciam com notável orgulho de “trabalhar para o Divino”, significando isto um sentimento de gratidão e respeito por trabalhar na festa em atividades análogas ao trabalho cotidiano no campo, desde cuidar do preparo de fartas refeições à participação nos ritos sagrados. É importante ressaltar que entre estes que trabalham para o Divino também há pessoas que moram na cidade, deixando-a durante a festa para dedicarem-se integralmente à novena 1 no campo. Ao afirmarem que estão trabalhando para o Divino, os foliões estão se referindo ao Divino Espírito Santo do movimento católico, principal representação do sagrado na Folia, ao qual são direcionados todos os ritos religiosos e dedicado o labor da organização. O Divino é, para os fiéis católicos, a terceira pessoa da Santíssima Trindade” – Pai, Filho e Espírito Santo reverenciado por seus devotos como uma divindade que traz fartura às colheitas, realiza sonhos, traz cura, proteção e felicidade ao povo do campo. 1 Novena refere-se a um período de nove dias antecedentes ao Dia de Pentecostes e são marcados por rezas e missas dos fiéis vinculados ao catolicismo.

FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO

MUNICÍPIO DE FORMOSA/GO.

Maxlanio Dias Sousa

Mestrando em Geografia - IESA/UFG

[email protected]

Prof. Dr. Marcelo Rodrigues Mendonça

IESA/UFG – [email protected]

A Folia da Roça em Formosa/GO é uma festa religiosa e popular considerada

uma herança cultural e que acontece junto à Festa do Divino Espírito Santo,

anualmente, nas vésperas de Pentecostes da Igreja Católica, sendo regionalmente

conhecida por seu grande número de foliões e pelo público que visita e aprecia as

manifestações do modo de vida e tradição dos camponeses do município.

Entendidos como sujeitos da terra que reafirmam sua identidade territorial em

seus territórios, também, a partir das festas religiosas, os camponeses dedicam-se na

Folia da Roça ao que pronunciam – com notável orgulho – de “trabalhar para o Divino”,

significando isto um sentimento de gratidão e respeito por trabalhar na festa em

atividades análogas ao trabalho cotidiano no campo, desde cuidar do preparo de fartas

refeições à participação nos ritos sagrados. É importante ressaltar que entre estes que

trabalham para o Divino também há pessoas que moram na cidade, deixando-a durante a

festa para dedicarem-se integralmente à novena1 no campo.

Ao afirmarem que estão trabalhando para o Divino, os foliões estão se referindo

ao Divino Espírito Santo do movimento católico, principal representação do sagrado na

Folia, ao qual são direcionados todos os ritos religiosos e dedicado o labor da

organização. O Divino é, para os fiéis católicos, a terceira pessoa da “Santíssima

Trindade” – Pai, Filho e Espírito Santo – reverenciado por seus devotos como uma

divindade que traz fartura às colheitas, realiza sonhos, traz cura, proteção e felicidade ao

povo do campo.

1 Novena refere-se a um período de nove dias antecedentes ao Dia de Pentecostes e são marcados por

rezas e missas dos fiéis vinculados ao catolicismo.

Page 2: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

Os foliões fazem promessas ao Divino de trabalharem na festa e acompanhar a

novena, por meio do que denominam de giro da folia, de pouso em pouso2, como forma

de agradecimento por alguma prece atendida pelo sagrado. Na pesquisa foram

realizadas 40 entrevistas estruturadas e semiestruturadas em pousos de Folia da Roça

com foliões, visitantes e outros sujeitos da festa. Constatou-se com tal metodologia que

estas preces, de acordo com os entrevistados, são feitas pedindo curas e bênçãos

diversas e, muitos entrevistados, participavam agradecendo pelos milagres que

receberam. A maioria dos relatos referiam-se às atividades e ao trabalho realizados no

campo, às colheitas e a posse da própria terra para o trabalho camponês.

A concepção de camponês adotada nesta pesquisa está em acordo com a definida

por Fernandes (2016, p.3) que “[...] é compreendido por sua base familiar. Pelo trabalho

da família na sua própria terra ou na terra alheia, por meio do trabalho associativo, na

organização cooperativa, no mutirão, no trabalho coletivo, comunitário ou individual”.

Neste estudo adota-se o entendimento da ITC – Identidade Territorial

Camponesa como vínculo imaterial que o camponês estabelece com seu território, o

campo, configurando-se um sentimento de pertença mediado por sua identidade3. Tal

discussão tem se firmado como importante no debate sobre as relações do camponês, do

processo de luta pela terra, do campesinato e da questão agrária. De acordo com Pereira

(2004, p.219) “[...] vários estudos etnográficos e sociológicos mostram que a terra tem

significado cultural de suma importância para os camponeses”.

Parte-se da compreensão da ITC por meio da cultura, do modo de vida próprios

dos camponeses e das relações construídas no cotidiano e como expressam sua fé com

seus costumes religiosos, reconhecendo seu território; ainda pela conquista e

permanência na terra, constituindo territorialidades em territórios hegemonizados pelo

agronegócio. Assim concorda-se que “[...] na identidade territorial camponesa, o

território não é valorizado apenas pela dimensão econômica, pela capacidade de gerar

2 Girar uma folia significa, para os sujeitos, participar de todos os dias da novena, o giro acontece no

campo, onde se inicia em uma propriedade rural mais distante, passando por outras até que a festa termina

na Catedral da Igreja Católica, no centro da cidade. Cada propriedade rural em que a procissão passa

recebe o nome de pouso, que é a recepção dos foliões e da bandeira do Divino, uma forma de

hospitalidade para com o sagrado e os foliões. 3 As concepções da pesquisa sobre identidade têm aporte referencial em Hall (2011), Saquet (2007),

Souza (2012).

Page 3: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

capital, mas, acima de tudo, por ser espaço de vida marcado por hábitos, costumes e

valores” (SOUZA, 2012, p.31).

Ao reconhecer-se em conjunto a Folia da Roça, o camponês e a ITC

compreende-se que se constituem, cada um em seus devidos aspectos no que se

denomina de elementos da (Re)Existência, conceito que é analisado por Mendonça; Pelá

(2011, p.5) significando “[...] um processo de permanência, modificada por uma ação

política que se firma nos elementos socioculturais. Significa re-enraizar para continuar

enraizado [...] formatando espacialidades como condição para continuar

(Re)Existindo”.

A pesquisa bibliográfica foi essencial para as reflexões aqui apresentadas. Para

atingir os demais objetivos, esta pesquisa serviu-se metodologicamente da entrevista e

da observação direta e indireta em campo na Folia da Roça de Formosa/GO.

A estrutura da pesquisa consta da referência inicial de alguns conceitos já

apresentados, perpassa as características do campesinato no município de Formosa,

propõe compreender os aspectos socioeconômicos e os elementos da Folia da Roça no

processo de (Re)Existência do campesinato.

As análises subsequentes estão inseridas com o objetivo de explicar algumas

características do campesinato em Formosa/GO em seus aspectos socioculturais e

políticos.

CAMPONESES NO MUNICÍPIO DE FORMOSA/ GO.

Com a intensão de compreender a ITC em Formosa/GO a partir de seus aspectos

socioeconômicos e territoriais utiliza-se neste estudo alguns dados que permitem

visualizar a desigual distribuição de terras no município, com base no critério do

módulo fiscal do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

A verificação das formas de obtenção das terras por produtor e proprietário de

Formosa/GO, segundo IMB – Instituto Mauro Borges, permitiu constatar que há um

contingente de 1.057 estabelecimentos rurais adquiridos como ‘compra por particular’ e

Page 4: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

888 adquiridos por reforma agrária, ou por políticas e programas de assentamento4 ou

aguardando titulação definitiva.

O campesinato segundo Paulino (2006, p.34) pode ser entendido como “[...] a

única classe que pode sobreviver por sí, porque dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de

produção e da força de trabalho”. É caracterizado em Formosa por uma perceptível

expressão do acesso a terra via reforma agrária e por políticas de aquisição de terras

como crédito fundiário, estes que, por sua vez, não são reconhecidos como reforma

agrária por submeterem o acesso dos camponeses à terra por meio da compra de tais

propriedades, configurando o que se denomina por Reforma Agrária de Mercado5.

No Quadro 01 pode-se encontrar a definição por parte no INCRA do que

denomina de Pequena, Média e Grande Propriedade para o município, com base na

unidade do módulo fiscal.

Quadro 01 - Imóveis rurais cadastrados no INCRA, segundo os municípios.

Outubro / 2003.

Qtde Área (ha)

Pequena propriedade de 0 a 160 1089 47.511,50

Média propriedade mais de 160 a 600 308 102.074,90

Grande propriedade mais 600 186 284.726,80

Formosa: Módulo

Fiscal = 40 (ha) Área (ha)

Imóveis

Fonte: SEPLAN-GO / SEPIN / Gerência de Estatística Socioeconômica – 2005.

A análise do Quadro 01 demonstra que 11,75% das propriedades (186)

concentram 65,56% da terra, enquanto a pequena propriedade (1.089) é representativa

em frequência relativa (68,79%), mas ocupa apenas 10,94% do território, caracterizando

uma histórica lógica latifundiária, em que muitas terras são apropriadas por poucos

proprietários, enquanto muitos camponeses não têm ao menos uma terra para cultivar,

desterritorializados.

No que concerne aos aspectos produtivos, no Quadro 02 pode-se verificar que os

números relativos à lavoura da soja apresentaram crescimento no triênio 2012 a 2014. É

válido ressaltar que esse modelo de agricultura (monoculturas para a produção e

commodities) é considerado o grande propulsor de efeitos e conflitos socioambientais

4 Banco da Terra e Cédula da Terra. 5 Ver Carvalho (2010) sobre tipos de políticas agrárias no Brasil se seus contextos recentes.

Page 5: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

no Cerrado, sendo seu cultivo tipicamente atribuído aos grandes produtores capitalistas

para a comercialização de commodities com bases na dinâmica de mercado do

agrohidronegócio, conceito definido por Mendonça (2015) e que refere-se à apropriação

capitalista da terra, da agricultura e dos recursos hídricos para atender as necessidades

do capital, assim, “[...] terra e água passam a ser, de forma conjunta, apropriadas para se

transformarem em mercadorias, ao invés de serem consideradas bens públicos,

conforme as necessidades humanas” (p.5, 2015).

2012 2013 2014

Quantidade produzida 25.200 31.680 33.925 toneladas

Área colhida 9.000 11.000 11.500 hectares

Rendimento médio 2.800 2.880 2.950 kg. por ha.

Aspecto

AnoUnidade

Quadro 02 - Lavoura Temporária - Soja em Formosa/GO

Fonte: http:///www.cidades.ibge.gov.br/

Bernstein (2011, p. 66) ao referir-se à questão do regime alimentar no mundo

cita a soja, afirmando que ela é “[...] um exemplo do crescimento acelerado do poder, da

influência e do controle global sobre o fornecimento, processamento e vendas de

alimentos por parte do agronegócio transnacional”.

Tal análise permite vincular com a argumentação de Graziano Neto (1982) de

que no Brasil o pequeno agricultor (camponês) é que ficou responsável pela produção

dos alimentos básicos e que foi chamado tradicional, e o grande produtor que atende o

mercado internacional ficou denominado de moderno o autor afirma que “[...] importa

apenas perceber que, regra geral, a produção de alimentos sempre foi ‘coisa de pobre’

na agricultura brasileira” (p. 59, grifos do autor).

Se há diferenciações em aspectos produtivos e técnicos entre os produtores

capitalistas e os camponeses a partir da adjetivação ideológica do moderno6 e do

tradicional para estes diferentes sujeitos, respectivamente, deve-se também refletir que

as festas populares e religiosas no campo, são tradicionalmente realizadas em grande

parte pelos camponeses. Observações em campo permitiram tecer essa relação, visto

6 Conceitos como modernidade, modernização e modernizações podem ser melhor compreendidos em

Castilho (2014). Sobre a modernização do território e da agricultura no Cerrado ver Mendonça (2004).

Page 6: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

que os pousos e o giro da Folia da Roça visitados, entre os anos de 2011 a 2013, foram

todos tipicamente em propriedades de camponeses.

Na seção seguinte relata-se sobre a concepção de festa popular e festa religiosa

para a pesquisa, inserindo a Folia da Roça no contexto de ambas e, seguidamente,

elencando os elementos que esta festa apresenta para a reafirmação da ITC.

FOLIA DA ROÇA: PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS QUE (RE)EXISTEM E

ASSEGURAM A EXISTÊNCIA DO CAMPESINATO.

Nesta pesquisa apreende-se que a Folia da Roça de Formosa contribui para a

valorização e fortalecimento da ITC a partir de suas atividades, rituais, símbolos e

costumes que a valorizam. Em razão disso, há muitas conexões entre as atividades

desenvolvidas na Folia da Roça com o cotidiano camponês e outros aspectos que

permitem tecer tais afirmações.

Compreende-se aqui a Folia da Roça de Formosa como uma festa popular7 e

como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa.

A caracterização de popular e religiosa não delimita uma denotação, uma adjetivação

fixa da Folia da Roça, pelo contrário, parte-se da compreensão vivenciada na pesquisa

de campo de que a festa contém elementos de ambas as denominações. Neste sentido, a

Folia da Roça é uma festa religiosa por ter em sua centralidade e motivação um santo

católico, o Divino Espírito Santo, uma representação do sagrado.

Muitas festas populares ou religiosas brasileiras, territorializadas no rural e

também no urbano, são referências às tradições e costumes do campesinato. A fim de

esclarecer, demonstra-se a diferenciação de tradição e costume conforme Hobsbawn;

Ranger (1997) no sentido de que as tradições tendem a ser invariáveis nas ditas

sociedades tradicionais:

A ‘tradição’ [...] deve ser nitidamente diferenciada do ‘costume’ vigente nas

sociedades ditas ‘tradicionais’. O objetivo e a característica das ‘tradições’,

inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O ‘costume’ [...] não impede as

inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido

7 Sobre a dificuldade de definição do conceito de Festa Popular ver Caponero; Leite (2010, p.102). Para

Brandão (2007, p. 44) “[...] as nossas festas populares do campo e da cidade são imagens do que mulheres

e homens fazem juntos quando se reúnem, numa quebra do cotidiano”.

Page 7: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente

(p.10).

Assim, enquanto preserva as tradições e os costumes dos camponeses,

valorizando sua identidade territorial, a Folia da Roça é entendida, além de festa

religiosa, como festa popular onde a ITC, religiosidade e tradição, imbricadas,

constroem a riqueza (i)material e multidimensional da folia.

Por sequência, no próximo item apresenta-se alguns elementos da Folia da Roça

de Formosa/GO que atuam na valorização do campesinato a partir de suas

(Re)Existências.

OS ELEMENTOS DA (RE)EXISTÊNCIA NA FOLIA DA ROÇA

A realização da festa acontece com uma divisão das atividades entre os foliões,

que são designadas pelo Imperador8 escolhido por sorteio na Folia do ano anterior,

sendo este sujeito o principal organizador da Folia da Roça.

Estas divisões das atividades são denominadas como Divisas sendo algumas, por

exemplo: Tropeiro (responsável por cuidar dos cavalos utilizados na romaria); Guia de

Folia (responsável pela musicalidade e pelos ritos religiosos); Pouseiros (que oferecem

o pouso para a festa); Mussungueiros(ras) (cuidam da mussunga que é uma instalação

onde são servidos o café ou chá para os foliões e visitantes); Alferes (condutor e guarda

da bandeira do Divino); Caixeiro (toca a caixa, uma espécie de tambor, simboliza então

o convite ao sagrado e aos participantes para os ritos); Guardiãs de Nossa Senhora (são

um grupo de mulheres que cantam as ladainhas nos ritos religiosos, as ladainhas são

feitas em latim popular adaptado pelo catolicismo rural.

Para Sersocima (1995, p.49) “[...] apesar de a religiosidade ser uma

característica marcante da população rural, a Igreja não tinha uma ação incisiva junto a

ela.”, isso fez com que o povo do campo adaptasse suas crenças como pôde,

caracterizando o catolicismo popular e seus ritos próprios.

8 “Ser imperador não é atingir o plano do sagrado Divino, mas o de um poder que é próprio da

compreensão: o escolhido, honrado por Deus. O imperador é apenas um representante da realeza do

Espírito de Deus”. (VEIGA, 2013, s-p).

Page 8: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

Dentre tais ritos, na Folia da Roça, são aqui destacados: A Alvorada da Bandeira

(acontece de madrugada na cidade, no primeiro dia de giro e no fim da tarde, no

primeiro pouso, significando o início do giro); A Saudação ao Altar (rito em que o guia

da folia, com uso da viola e da musicalidade saúda o altar do Divino, os presentes, as

divisas e o pouseiro, o rito associa-se à ITC, também, pela característica de cordialidade

do camponês); O Bendito de Mesa (rito que acontece em volta da mesa onde foram

servidas as fartas refeições da Folia, com a finalidade de agradecê-las ao sagrado e aos

foliões).

Ainda, dentre muitos elementos que contribuem para a (Re)Existência do

campesinato a partir da Folia da Roça, pode-se destacar: a Partilha, a Parceria, o

Mutirão e a Traição.

A Partilha significa a colaboração dos foliões, pouseiros e outras pessoas que

fazem doações para a Folia e que se ajudam mutuamente para oferecer o pouso e para

que tudo na Folia possa acontecer com organização e fraternidade entre todos; outrora,

um fato interessante sobre a Partilha é que os camponeses demonstram que gostam de

ter fartura em seu cotidiano e em suas festas populares e religiosas.

Sersocima (1995) relaciona a realização do Mutirão como característica peculiar,

mas não exclusiva das Comunidades Camponesas, uma vez que, dentre os camponeses

é comum pedir ajuda aos vizinhos ou se organizarem solidariamente para os trabalhos

da lavoura e similares, relacionando a característica do Mutirão às atividades e culturas

sazonais do campo.

Por sua vez, a Traição é uma variação do mutirão sendo que “[...] a diferença é

que o camponês que está necessitando de ajuda é surpreendido pelos companheiros, que

executam, em mutirão, o trabalho que está atrasado” (DUARTE, 2001, p. 130).

As festas populares e religiosas, conforme as proposições de escala de Marques;

Brandão (2015) resistem à modernidade ou podem ter nela mesma sua origem. No

entanto, dialogando com as contribuições destes autores com as de Hobsbawn; Ranger

(1997) e Hall (2011) é preciso compreender que em tais festas o tradicional e o moderno

ora se complementam ora se confrontam. Resta atentar-se sobre os limites e influências

que estes processos provocam nas relações dos sujeitos com a festa, o território e o

espaço de seus integrantes e participantes.

Page 9: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

Conforme descrito por Duarte (2001) percebe-se que a Folia da Roça de

Formosa é uma notável expressão sociocultural do campesinato configurando-se como

um encontro de costumes e tradições e, neste artigo, compreendida como elemento

sociocultural para fortalecer os processos de (Re)Existência dos camponeses na luta

pela permanência na terra.

CONSIDERAÇÕES

A Folia da Roça em Formosa é uma festa popular e religiosa que vem resistindo

na relação tempo e espaço por intermédio da tradição e está enraizada na essência da

identidade territorial dos camponeses no município.

Nas oportunidades de observações diretas em campo foi possível perceber que

os camponeses gostam de se sentir valorizados, de saber que há estudiosos interessados

em investigar e compreender suas referências, seus modos de vida e contextos

socioculturais como relevantes na compreensão do espaço, dos territórios e da vida.

É preciso dialogar sobre a influência certamente negativa de alguns “velhos

paradigmas” que infelizmente ainda vigoram na atualidade sobre o campesinato. Dentre

tais, tem destaque a dicotomia entre o tradicional e o moderno, em que a tradição têm

sido tratada, negativamente, como uma referência exclusiva ao atraso e não à resistência

espaço-temporal e sociocultural que ela contêm. Com cantorias, danças, rezas, partilhas

e parcerias é que a Folia da Roça de Formosa traz à modernidade a luta contra o

preconceito ideologizado de que o camponês é um sujeito social atrasado, quando na

verdade como em outros modos de vida, esses trabalhadores da terra têm cultura e

tradição próprias que contribuem para a (Re)Existência em seus territórios.

A Folia da Roça, por ter presente os elementos acima tratados, por caracterizar-

se como festa popular e como festa religiosa permite aos camponeses e aos demais

sujeitos participantes a vivência de tradições e modos de vida no campo e do

campesinato que ainda persistem no moderno, resistindo e (Re)Existindo. A organização

da Folia da Roça de Formosa/GO é baseada nas relações sociais dos camponeses,

trabalhando e vivenciando a festa tanto no que tange às divisas, ao trabalhar para o

Divino, ao catolicismo rural, à musicalidade e outros elementos.

Page 10: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

Para o Divino Espírito Santo na Folia da Roça e no exercício da fé, é que os

camponeses dedicam-se a reafirmar sua identidade territorial frente à ideologia do

moderno e em confronto às desigualdades que sempre lhes foram impostas histórica e

geograficamente.

Impõe-se como desafio aos estudos da questão agrária a construção e o diálogo

de percepções de que o aspecto tradicional e o sociocultural do camponês refletem-se

como (Re)existências frente aos conflitos socioambientais impostos pelo

agrohidronegócio, na ideologia do capitalismo agrário, que expande suas fronteiras

Cerrado goiano às custas da expropriação dos territórios camponeses e da apropriação e

exploração do trabalho e da natureza.

REFERÊNCIAS

BERNSTEIN, Henry. A dinâmica de classe do desenvolvimento agrário na era da

globalização. Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 27, maio/ago. 2011, p. 52-81.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Festas de trabalho. Salto para o Futuro (Aprender e

Ensinar nas Festas Populares). Boletim 02, Abr. 2007. ISSN: 1518-3157.

BRASIL. IBGE – Cidades (Formosa – GO). Disponível em:

<http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=520800&search=goia

s|formosa>. Acesso em: 10 maio 2016.

CAPONERO, Maria Cristina; LEITE, Edson. Inter-relações entre festas populares,

políticas públicas, patrimônio imaterial e turismo. Patrimônio: Lazer & Turismo,

v.7, n.10, abr.-maio.jun./2010, p. 99-113.

CARVALHO, Lívia Hernandes. A concentração fundiária e as políticas agrárias

governamentais recentes. Revista IDeAS, v.4, n.º 2, p. 395-428, 2010.

CASTILHO, Denis. Modernização territorial e redes técnicas em Goiás. Tese

(Doutorado em Geografia). Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014. p. 31-62.

DUARTE, Élio Garcia. Manifestações camponesas em Goiás: Perspectivas para uma

pesquisa histórico-cultural. História Revista. Goiânia – GO. v. 6. jan./jun. 2001. p. 113 -

114.

FERNANDES, Bernardo Mançano. Teoria e política agrária: subsídios para pensar a

educação do campo. Disponível em: <

Page 11: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

http://web2.ufes.br/educacaodocampo/down/cdrom1/pdf/i_04.pdf >. Acesso em: 19

maio 2016.

GOIÁS – Estado. Instituto Mauro Borges de Estatísticas e Estudos Sócio – Econômicos.

Censo Agropecuário 2006 IBGE. Elaboração dos dados: SEPLAN-GO / SEPIN /

Gerência de Estatística Socioeconômica – 2009. Disponível em:

<http://www.seplan.go.gov.br/sepin/viewnot.asp?id_cad=4502&id_not=1>. Acesso em:

10 maio 2016.

GRAZIANO NETO, Francisco. Questão agrária e ecologia: crítica da moderna

agricultura. São Paulo: Brasiliense, 1982.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro:

DP&A, 2011.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (Orgs.). A Invenção das tradições. 3. ed. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

MENDONÇA, Marcelo Rodrigues. A urdidura espacial do capital e do trabalho no

cerrado do sudeste goiano. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade Estadual

Paulista, 2004.

MENDONÇA, Marcelo Rodrigues; PELÁ, Márcia. O cerrado goiano numa

encruzilhada de tempos: os territórios em disputa e as novas territorialidades do

conflito. Revista Geográfica de América Central, Número Especial EGAL, 2011- Costa

Rica, II Semestre 2011, p. 1-18. ISSN-2115-2563.

PAULINO, Eliane Tomiasi. A diversidade das lutas na luta pela terra. Revista

Eletrônica da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Três Lagoas/MS, v.1 n.º4,

ano 3, Novembro de 2006.

PEREIRA, José Roberto. Terras e reforma agrária. In: WOORTMAN, Ellen F.

(Org.). Significados da Terra. Brasília: UNB, 2004.

SAQUET, Marco Aurélio. Abordagens e concepções sobre território. São Paulo:

Expressão Popular, 2007.

SERSOCIMA, Eliana Aparecida. Laços solidários nas comunidades rurais do

município de Goiás (1900-1994). (Dissertação de Mestrado em História das

Sociedades Agrárias). Goiânia: Universidade Federal de Goiás: 1995.

SOUZA, Francilane Eulália de. As “geografias” das escolas no campo do município

de Goiás: instrumento para a valorização do território camponês. Tese (Doutorado em

Geografia) Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente 2012.

Page 12: FOLIA DA ROÇA E IDENTIDADE TERRITORIAL CAMPONESA NO ...€¦ · como festa religiosa reforçando que ambas as festas fazem parte da tradição camponesa. A caracterização de popular

VEIGA, Guilherme. Festa do Divino Espírito Santo. Disponível em :

<http://www.portaldodivino.com/Brasil/Goias/go.htm> Acesso em: 27 Maio de 2016.