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n o 105 R$ 8,90 ISSN 1519-8952 Universidades não precisam de polícia A pior tragédia climática brasileira um ano depois Idelber Avelar e as ocupações que derrubaram os mitos do pensamento político Ladislau Dowbor revela como funciona a rede das corporações, o 1% que afeta a estabilidade mundial Renato Rovai fala sobre as múltiplas formas dos movimentos 2.0 dezembro 2011 105 ano11

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Idelber Avelar e as ocupações que derrubaram os mitos do pensamento político dezembro 2011 1519-8952 1519-8952 issn issn n o 105 R$ 8,90 n o 105 R$ 8,90105R$8,90 2 dezembro de 2011

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Universidades não precisam de polícia

A pior tragédia climática brasileira um ano depois

Idelber Avelar e as ocupações que derrubaram os mitos do pensamento políticoLadislau Dowbor revela como funciona a rede das corporações, o 1% que afeta a estabilidade mundialRenato Rovai fala sobre as múltiplas formas dos movimentos 2.0

dezembro 2011105 ano11

A História não tem fi m

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Idelber Avelar e as ocupações que derrubaram os mitos do pensamento político

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2 dezembro de 2011

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3dezembro de 2011

O poder das corporações em rede

Teses sobre as ocupações de 2011

As formas múltiplas dos movimentos 2.0

Universidades não precisam de polícia

O Brasil e a desigualdade de gênero

Clacso

Um ano da pior tragédia climática do país

A comunidade após a prisão de Nem

O impacto das tecnologias sociais

O que pode mudar no governo Evo Morales

As desigualdades na América Latina

Eles venderam mais que os Beatles

Cartas 4

Espaço Solidário 6

Direito 18

Diversidade 31

Mundo do Trabalho 37

Toques Musicais 48

Penúltimas Palavras 50

Publicação da Editora Publisher Brasil. Editor: Renato Rovai. Editor executivo: Glauco Faria. Edtora de arte: Carmem Machado. Colaboradores desta edição: Adriana Delorenzo, Cynthia Semíramis, Idelber Avelar, Julinho Bittencourt, Ladislau Dowbor, Lídia Amorim, Moriti Neto, Mouzar Benedito, Pedro Alexandre Sanches, Pedro Venceslau, Túlio Vianna, Vange Leonel e Victor Farinelli. Ilustração de capa: Thiago Balbi. Revisão: Denise Gomide e Luis G. Fragoso. Estagiários: Camila Cassino e Carolina Rovai. Administrativo: Ligia Lima e Pâmela dos Santos. Representante comercial em Brasília: Joaquim Barroncas (61) 9972.0741. Publisher Brasil: Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. Contatos com a redação: (11) 3813.1836, e-mail: [email protected]. Para assinar Fórum: [email protected], http://assine.revistaforum.com.br. Portal: www.revistaforum.com.br. Impressão e CtP: Bangraf. Distribuição: Fernando Chinaglia. Fórum Outro Mundo em Debate é uma revista inspirada no Fórum Social Mundial. Não é sua publicação oficial. A divulgação dos artigos publicados é autorizada. Agrade cemos a citação da fonte. Matérias e artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. Circulação desta edição: 10/12/2011 a 9/1/2012

Conselho Editorial: Adalberto Wodianer Marcondes (Agência Envolverde), Alipio Freire (jornalista), Artur Henrique dos Santos (CUT), Beatriz da Silva Cerqueira (Coordenado-ra do Sind-UTE/MG ), Cândido Castro Machado (Sindicato dos Bancários de Santa Cruz), Cândido Grzybowski (Ibase), Carlos Ramiro (Apeoesp), Claiton Mello (FBB), Eduardo Guimarães (Movimento dos Sem Mídia), Gustavo Petta (Conselho Nacional da Juventude), João Felício (CUT), Jorge Nazareno (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Lúcia Stumpf (Coordenação dos Movimentos Sociais), Luiz Antonio Barbagli (Sinpro-SP), Luiz Gonzaga Belluzzo (economista e professor da Unicamp), Marcio Pochmann (economista e professor da Unicamp), Maria Aparecida Perez (educadora), Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire), Paul Singer (economista e professor da USP), Paulo Henrique Santos Fon-seca (Sindicato dos Bancários de BH), Ricardo Patah (Sindicato dos Comerciários de São Paulo), Roberto Franklin de Leão (CNTE/CUT), Rodrigo Savazoni (Intervozes), Sérgio Haddad (Ação Educativa), Sergio Vaz (Cooperifa), Sueli Carneiro (Geledés), Vagner Freitas de Moraes (Contraf/CUT) e Wladimir Pomar (Instituto de Coope ração Internacional).

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Na década de 1990, o filósofo e economista Francis Fukuyama alcançou fama, que foi além dos ambientes acadêmicos, ao decretar o fim da História, que teria como “vence-dores” o neoliberalismo e a democracia burguesa, o regime, em tese, mais perfeito de todos os tempos. Desde então, o mundo tem desmentido a tese, que foi bem-aceita na ocasião, e a tal História, senhora que caminha devagar, nos dizeres de Eduardo Galeano, parece hoje ter pressa.

As insuficiências do regime democrático estão mais do que nunca expostas. E os três textos de capa desta edição mostram isso. A festejada globalização econômica conse-guiu unir interesses de várias partes do mundo, e o poder financeiro, ao mesmo tempo que expandiu suas garras, concentrou-se ainda mais nas mãos de poucos. Bem menos do que 1% da população detém o poder real, e essas pessoas não passam por qualquer tipo de escrutínio popular ou são votadas.

É contra esses e o sistema que os sustenta que muitos começam a se levantar. O mal-estar que afeta a todos vem de longa data, desde a época em que Fukuyama parecia ter razão aos olhos de muitos, e pôde ser visto nas manifestações de Seattle e traduzido na ideia que inspirou o Fórum Social Mundial. Hoje, a indignação que soprou do mundo árabe criou raízes na Europa em crise e chegou à América, e promete não parar por aí.

Se as novas tecnologias serviram para que as finanças penetrassem na alma de cada Estado no planeta, são elas também que hoje servem de fio condutor deste anseio por mudança que brota em quase todo canto, tomando forma em manifestações de rua, acampamentos e protestos. Trata-se de um cenário que nos obriga à reflexão sobre o quanto a democracia é de fato efetiva ou se, hoje, não serve em muitas ocasiões ape-nas como legitimação do poder de uma parcela ínfima da população. Poder, é bom que se diga novamente, que não foi delegado, mas sim usurpado à força pela mão não tão invisível do mercado.

O primeiro passo para a mudança é não aceitar ou se resignar diante de um estado de coisas que está longe de ser “natural”. É isso que todos os que se manifestam querem passar ao mundo. E é com eles que Fórum vai.

Selo FSC

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A mudança passa pela indignação

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4 dezembro de 2011

Você pode:

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Atribuição e Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil

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Que não se roube a Salvador Allende seu último gesto (edição 103)

Prezado Idelber, sempre tive Allen-de como um dos meus ídolos latino-americanos, como um dos maiores políticos socialistas do nosso con-tinente. Mas, recentemente, lendo Zizek, que está acima de qualquer suspeita, a meu ver, sobre seu po-sicionamento político, encontrei em diversos textos dele grandes res-trições a Allende, dizendo que ele estaria limitado ideologicamente e que a esquerda sempre teve cer-teza que, de uma maneira ou de outra, seu projeto não daria certo e ele viria a cair. Isto me deixou re-almente confuso. Zizek é o maior pensador que conheço e eu o res-peito muito. Mas achei suas críticas a Allende um tanto quanto severas e, talvez, até fatalistas. Gostaria de saber sua opinião a respeito. Acha mesmo que Allende estaria “con-denado” a fracassar, fosse Nixon, fosse outro presidente mais liberal como Clinton?

Luiz Droubi

Se comer trufas de licor, não dirija (edição 103)

É o que venho defendendo há mui-to tempo. A lei atual não foi feita pra pegar apenas o motorista embria-gado que coloca em risco a inte-gridade física alheia... isso pra não mencionar a (descarada) fi nalidade arrecadatória. A divulgação de blit-ze nas redes sociais nada mais é que um mecanismo de defesa da coletividade contra uma imposição legal totalmente desproporcional e irrazoável, que pretende tratar igualmente tanto o motorista bêba-do e periculoso quanto o cidadão que saiu pra jantar com a noiva, namorada, amante, fi cante, etc., tomou uma ou duas taças de vinho mas tem totais condições de guiar seu veículo até em casa. Que se puna, exemplarmente, o primeiro, mas não o segundo. A solução adotada é simples: ao

invés de se cortar o galho ruim, se derruba a árvore inteira. Ainda não há condições de segurança sufi -cientes pra esperar uma (escassa) condução coletiva durante a noite/madrugada. Até porque o efetivo policial agora está em boa parte mobilizado nas blitze de trânsito. De outro lado, a tarifa do táxi é bastante cara para a maioria da população. Ou seja, o Poder Público impôs a obrigação negativa, mas não forne-ceu os meios de cumpri-la a con-tento. Enquanto o cenário for este, pode ter certeza, haverá recalcitrân-cia para o cumprimento da lei.

Rubens Augusto

Acampa Sampa completa um mês sob o Viaduto do Chá (página eletrônica)

Ótima matéria. Em relação ao mo-vimento, ele é importante para ten-tarmos alcançar uma sociedade mais justa e igualitária, porém me preocupa a fala da Julia “Ainda não sabemos, mas é difícil conseguir re-percussão da maneira que a gente quer”, afi nal o que querem? real-mente mudar algo na sociedade em que vivemos ou aparecer na televi-são? é complicado, pois já sabemos que estes assuntos não interessam a “grande mídia”, mas se olharmos a mídia alternativa ( que neste caso torna-se principal) há cobertura e atenção ao caso, mas ainda sim pa-recem não estar muito satisfeitos.

Angelina Miranda

A cortina de fumaça na segurança da USP (página eletrônica)

Texto muito bom. O paralelo com Maquiavel me ajudou muito a enten-der os estudantes e seus movimen-tos. Bem diferente de outros textos por aí e da atitude dos estudantes, que já sai chamando todo mundo de fascista, mente-fechada e fanto-che da Veja. Obrigado por aclarar minha visão sem me agredir.

Felipe

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5dezembro de 2011

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6 dezembro de 2011

Conferência do Desenvolvimento debate democratização da economia A 2ª Conferência do Desenvolvimento (Code), do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), ocorrida em Brasília (DF), entre os dias 23 e 25 de novembro, teve como objetivo o debate nacional sobre desenvolvimento. Contando com mais de mil pales-trantes, o evento foi aberto à participação de estudantes, profi ssio-nais, agentes públicos, estudiosos, pesquisadores, especialistas, professores e legisladores.

No dia de abertura, já no Painel I de debates, mediado pelo diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Jorge Abrahão, com o tema “Proteção social, garantia de direitos e geração de oportunidades”, assistido por aproximadamente 600 pessoas, a economia solidária foi assunto em pauta.

O secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, professor Paul Singer, um dos debatedores do painel, destacou as relações entre a economia solidária e as ações de polí-ticas públicas. “O projeto da presidenta Dilma Rousseff, de erradicar a pobreza extrema no Brasil, por meio do programa Brasil Sem Miséria (programa federal consti-tuído por convênios com os estados e municípios), fará com que o país deixe de ser reconhecido pela enorme desigualdade social”, enfatizou.

6 dezembro de 2011

divulgação solidáriaA Fórum dedica este espaço à divulgação de iniciativas ligadas à economia solidária. Se você participa ou promove algum tipo de empreendimento relacionado ao comércio justo e solidário, entre em contato conosco para divulgá-lo.

Campanha contra agrotóxicos: barreiras e possibilidades No II Seminário Nacional da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, que ocorreu entre 7 e 9 de novembro, o tema da produção e utilização desenfreada de substâncias nocivas à saúde e ao meio ambiente na agricultura foi abordado de forma conjuntural – com ênfases política e histórica. No evento, o uso de agrotóxicos se mostrou relacionado ao capitalismo e à luta de classes, já que, como elemento de forte ação mercantil na atividade agrícola, a aplicação de produtos com alto índice de toxicidade visa simplesmen-te ao lucro e não à qualidade dos alimentos que chegam à população.

São muitas as barreiras a serem rompidas pela campanha contra os agrotóxicos: o debate público sobre a lei de iniciativa popular da economia solidária, o acesso às mídias para dialogar com a socie-dade, necessidade de pesquisas de respaldo, trabalho com bases dos movimentos sociais, trabalho junto ao Congresso Nacional e concretização das alternativas no campo da agroecologia e da economia solidária.

Para reforçar essas pautas, durante o seminário, no dia 8 de novem-bro, ocorreu ato político em Brasília (DF) num importante momento para a confi rmação de alianças com parlamentares e movimentos sociais que são solidários e parceiros da campanha.

A deputada federal Luci Choinacki (PT-SC) reforçou a proximidade com as ideias da campanha. “Sempre trabalhei na roça sem vene-no. Porque agrotóxico, se mata bicho, mata gente. As denúncias sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde das pessoas é um grito

de alerta para mudar o padrão de produção, concentração de riqueza e poder”, destacou.

Outro parlamentar, o deputado federal Marcon (PT-RS), que é assentado em Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul, também ressaltou a necessidade de fortalecer alternativas ao atual modelo. “Devemos focar em aspectos como a atuação para a conscienti-zação do consumidor e o avanço da legislação para a criação de barreiras contra o uso dos agrotóxicos”, disse.

Mesmo com obstáculos a superar, há, no Brasil, um amplo espaço para desenvolver a campanha. O número de denúncias dos impac-tos de agrotóxicos nas áreas rurais, a incidência de casos de câncer – refl etindo na saúde humana os males do modelo de produção – e o fato de o país ser o maior consumidor das substâncias no planeta, com registro de mais de 1 milhão de toneladas utilizadas anualmente, são itens que conferem amplitude ao tema.

A integração necessária para que as populações excluídas do ciclo produtivo vivam com dignidade foi destacada por Singer. “Muitos pobres estão em condições de pobreza absoluta por hereditarie-dade, como as populações que vivem em quilombos e indígenas integrados inadequadamente à sociedade capitalista”, argumentou.

Democracia na economia Segundo Paul Singer, o aspecto essencial para que a pobreza extrema seja erradicada é a plenitude democrática. “A essência

da democracia é a igualda-de, que hoje é praticada em muitos meios, mas não na economia. É preciso levar a democracia para a economia, para a educa-ção e todas as atividades coletivas sociais do país, pois só numa sociedade absolutamente democráti-ca a pobreza extrema será fi nalmente intolerada”, salientou.

O secretário também mencionou a urgência da soma de forças en-

tre classes para garantir um desenvolvimento de qualidade, o que passa pela eliminação da pobreza. “Queremos criar condições para que nunca mais tenhamos pobres extremos no Brasil. Precisamos aproveitar a inteligência dessas pessoas e somar ao esforço da par-te não pobre da população para que possamos resolver a questão de forma permanente, por meio da inclusão produtiva”, disse.

de, que hoje é praticada em muitos meios, mas não na economia. É preciso levar a democracia para a economia, para a educa-ção e todas as atividades coletivas sociais do país, pois só numa sociedade absolutamente democráti-ca a pobreza extrema será fi nalmente intolerada”, salientou.

O secretário também mencionou a urgência da soma de forças en-

marceLLo casaL jr. / abr

eLZa fiÚZa / abr

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8 dezembro de 2011

por lAdISlAu doWbor*

“There is a big difference between suspecting the existence of a fact and in

empirically demonstrating it” 1

Todos temos acompanhado, por dé-cadas a fio, as notícias sobre gran-des empresas, comprando umas as outras, formando grupos cada vez maiores para se tornarem mais

competitivas no ambiente cada vez mais agressivo do mercado. Mas o processo, na-turalmente, tem limites. Em geral, nas prin-cipais cadeias produtivas, a corrida termina quando sobram poucas empresas, que, em vez de guerrear, descobrem que é mais con-veniente se articularem e trabalharem juntas, para o bem delas e dos seus acionistas. Não necessariamente, como é óbvio, para o bem da sociedade.

Controlar de forma organizada uma cadeia produtiva gera naturalmente um grande po-der econômico, político e cultural. Econômico, por meio do imenso fluxo de recursos – maior do que o PIB de numerosos países –, político, por intermédio da apropriação de grande par-te dos aparelhos de Estado, e cultural, pelo fato de a mídia de massa mundial criar, por meio de pesadíssimas campanhas publicitárias – financiadas pelas empresas, que incluem os custos nos preços de venda –, uma cultura de consumo e dinâmicas comportamentais que lhes interessam e que geram boa parte do de-sastre planetário que enfrentamos.

1 Há uma grande diferença entre suspeitar da existência de um fato demonstrá-lo empiricamente” – Vitali, Glattfelder e Battis-ton – http://j-node.blogspot.com/2011/10/network-of-global-corporate-control.html.

Uma característica básica do poder cor-porativo é o amplo desconhecimento que se tem ao seu respeito. As Nações Unidas tinham um departamento, United Nations Center for Transnational Corporations (UNCTC), que publicava, nos anos 1990, um excelente rela-tório anual sobre as corporações transnacio-nais. Com a formação da Organização Mun-dial do Comércio, simplesmente fecharam o UNCTC e descontinuaram as publicações. Assim, o que é provavelmente o principal nú-cleo organizado de poder do planeta, deixou simplesmente de ser estudado, à exceção de pesquisas pontuais dispersas pelas institui-ções acadêmicas e fragmentadas por países.

O documento mais significativo que hoje temos sobre as corporações é o excelente documentário A Corporação (The Corpora-tion), estudo científico de primeira linha, que em duas horas e 12 capítulos mostra como funcionam, como se organizam, e que impactos geram. Outro documentário exce-lente, Trabalho Interno (Inside Job), que le-vou o Oscar de 2011, mostra como funciona o segmento financeiro do poder corporati-vo, mas limitado essencialmente a mostrar como a presente crise financeira foi gerada. Temos também o clássico do setor, Quando as Corporações Regem o Mundo (When Cor-porations Rule the World), de David Korten. Trabalhos desse tipo nos permitem enten-der a lógica, geram a base do conhecimento disponível.

Mas nos faz imensa falta a pesquisa sis-temática sobre como as corporações fun-cionam, como se tomam as decisões, quem as toma, com que legitimidade. O fato é que

global

A rede do poder corporativo mundialA estrutura da rede de controle das corporações transnacionais impacta a competição de mercado mundial e a estabilidade fi nanceira. Uma pesquisa mostra, pela primeira vez, sua arquitetura, junto com o controle que possui cada ator global

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ignoramos quase tudo do principal vetor de poder mundial – as corporações.

É natural e saudável que tenhamos todos uma grande preocupação em não inventar-mos conspirações diabólicas, maquinações maldosas. Mas ao vermos como nos prin-cipais setores as atividades se reduziram no topo a poucas empresas extremamente poderosas, começamos a en-tender que se trata, sim, de po-der político. Agindo no espaço planetário, e na ausência de go-verno mundial, manejam gran-de poder sem nenhum controle significativo.

A pesquisa do Instituto Fe-deral Suíço de Pesquisa Tec-

nológica (ETH)2 vem, pela primeira vez nessa escala, iluminar a área com dados concretos. A metodologia é muito interes-sante. Selecionaram 43 mil corporações no banco de dados Orbis 2007, de 30 milhões de empresas, e passaram a estudar como se relacionam: o peso econômico de cada entidade, a sua rede de conexões, os fluxos

financeiros, e quais empresas têm partici-pações que permitem controle indireto. Em termos estatísticos, resulta um sistema em forma de bow-tie, ou “gravata borboleta”, onde temos um grupo de corporações no “nó” e ramificações para um lado que apon-tam para corporações que o “nó” controla, e ramificações para outro que apontam para as empresas que têm participações no “nó”.

A inovação é que a pesquisa aqui apresen-tada realizou esse trabalho para o conjunto das principais corporações do planeta e ex-pandiu a metodologia de forma a ir traçando o mapa de controles do conjunto, incluindo a escada de poder que as corporações menores às vezes detêm, ao controlarem um pequeno grupo de empresas, que, por sua vez, contro-la uma série de outras empresas e assim por diante. O que temos aqui é exatamente o que o título da pesquisa apresenta, “a rede do con-trole corporativo global”.

Em termos ideológicos, o estudo está aci-ma de qualquer suspeita. Antes de tudo, é im-portante mencionar que o ETH [Instituto de Tecnologia e Ciência] de Zurique faz parte da nata da pesquisa tecnológica no planeta, em geral colocado em segundo lugar depois do MIT dos Estados Unidos. Os pesquisadores do ETH detêm 31 prêmios Nobel, a começar por Albert Einstein. A equipe que trabalhou no artigo entende tudo de mapeamento de re-des e da arquitetura de poder que dele resul-ta. Stefano Battiston, um dos autores, assina

2 S. Vitali, J.B Glattfelder e S. Battiston – The Network, of Glo-bal Corporate Control - Chair of Systems Design, ETH Zurich – corresponding author [email protected] – O texto completo foi disponibilizado em arXiv em pré-publicação, e publicado pelo PloS One em 26 de outubro de 2011. http://www.plosone.org/ar-ticle/related/info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pone.0025995;jsessionid=31396C5427EB79733EE5C27DAFBFCD97.ambra02 A ampla discussão internacional gerada, com respostas dos au-tores da pesquisa, pode ser acompanhada em http://j-node.blo-gspot.com/2011/10/network-of-global-corporate-control.html

pesquisas com Joseph Stiglitz, ex-economista chefe do Banco Mundial. O presente artigo, com dez páginas, é curto para uma pesquisa desse porte, mas é acompanhado de 26 pá-ginas de metodologia, de maneira a deixar transparentes todos os procedimentos. E em nenhum momento tiram conclusões políticas apressadas: limitam-se a expor de maneira

muito sistemática o mapa do poder que resulta do trabalho e apontam as implicações.

A pesquisa é de difícil leitura para leigos, pela matemática en-volvida. Por conta da importân-cia que representa para a com-preensão de como se organiza o poder corporativo do planeta, resolvemos expor da maneira

mais clara possível os principais aportes, ao mesmo tempo em que disponibilizamos no fim do texto o link do artigo completo.

O que resulta da pesquisa é claro: “A es-trutura da rede de controle das corporações transnacionais impacta a competição de mercado mundial e a estabilidade financeira. Até agora, apenas pequenas amostras nacio-nais foram estudadas e não havia metodolo-gia apropriada para avaliar globalmente o controle. Apresentamos a primeira pesqui-sa da arquitetura da rede internacional de propriedade, junto com a computação do controle que possui cada ator global. Desco-brimos que as corporações transnacionais formam uma gigantesca estrutura em forma de gravata borboleta (bow-tie) e que uma grande parte do controle flui para um núcleo (core) pequeno e fortemente articulado de instituições financeiras. Esse núcleo pode ser visto como uma “superentidade” (super entity), o que levanta questões importantes tanto para pesquisadores como para os que traçam políticas.”

Para demostrar como esse travamento acontece, os autores analisam a estrutura mundial do controle corporativo. O controle é aqui definido como participação dos ato-res econômicos nas ações, correspondendo “às oportunidades de ver os seus interesses predominarem na estratégia de negócios da empresa”. Ao desenhar o conjunto da teia de participações, chega-se à noção de controle em rede. Esta noção define o montante total de valor econômico sobre o qual um agente tem influência.

O modelo analisa o rendimento opera-cional e o valor econômico das corporações, detalha as tomadas mútuas de participa-ção em ações (mutual cross-shareholdings) identificando as unidades mais fortemente

Os dados não só confi rmam como agravam as afi r-mações dos movimentos de protesto, que se referem ao 1% que brinca com os recursos dos outros 99%. Com efeito, menos de 1% das empresas consegue controlar 40% de toda a rede

Dois documentários fundamentais: A Corporação, que mostra os impactos gerados pelos grandes conglomerados, e...

... Trabalho Interno, que narra como funciona o segmento corporativo no mercado fi nanceiro

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10 dezembro de 2011

conectadas dentro da rede. “Esse tipo de es-truturas, até hoje observado apenas em pe-quenas amostras, tem explicações tais como estratégias de proteção contra tomadas de controle (anti-takeover strategies), redução de custos de transação, compartilhamento de riscos, aumento de confiança e de grupos de interesse. Seja qual for a sua origem, no entanto, ele fragiliza a competição de merca-do[...] Como resultado, cerca de três quartos da propriedade das firmas no núcleo ficam nas mãos de firmas do próprio núcleo. Em outras palavras, trata-se de um grupo for-temente estruturado (tightly-nit) de corpo-rações que cumulativamente detém a maior parte das participações umas nas outras.”

Esse mapeamento leva, por sua vez, à análise da concentração do controle. À pri-meira vista, sendo firmas abertas com ações no mercado, imagina-se um grau relativa-mente distribuído também do poder de con-trole. O estudo procurou identificar “o quão concentrado é esse controle e quem são os que detêm maior controle no topo”. Isso é uma inovação relativa aos numerosos estu-dos anteriores, que mediram a concentração de riqueza e de renda. Segundo os autores, não há estimativas quantitativas anterio-res sobre o controle. O cálculo consistiu em identificar qual a fração de atores no topo

que detém mais de 80% do controle de toda a rede. Os resultados são impactantes: “Des-cobrimos que apenas 737 dos principais atores (top-holders) acumulam 80% do con-trole sobre o valor de todas as ETNs[...] Isso significa que o controle em rede (network control) é distribuído de maneira muito mais desigual do que a riqueza. Em particu-lar, os atores no topo detêm um controle dez vezes maior do que o que poderia se esperar baseado na sua riqueza.”

Combinando o poder de controle dos ato-res no topo (top ranked actors) com as suas interconexões, “descobrimos que, apesar de sua pequena dimensão, o núcleo detém cole-tivamente uma ampla fração do controle total da rede. No detalhe, quase 4/10 do controle sobre o valor econômico das ETNs do mundo, através de uma teia complicada de relações de propriedade, está nas mãos de um grupo de 147 ETNs do núcleo, que detém quase ple-no controle sobre si mesmo. Os atores do topo dentro do núcleo podem assim ser considera-dos como uma “superentidade” na rede global das corporações. Um fato adicional relevante neste ponto é que três quartos do núcleo são intermediários financeiros.”

Isso é um exemplo de apenas algumas conexões financeiras internacionais do grá-fico acima. Em vermelho, grupos europeus;

em azul, norte-americanos; outros países, em verde. A dominância dos dois primeiros é evi-dente, e muito ligada à crise financeira atual. Somente uma pequena parte dos links é aqui mostrada (fonte Vitali, Glattfelder e Fattis-ton, http://j-node.blogspot.com/2011/10/network-of-global-corporate-control.html).

Os números em si são muito impressio-nantes, estão gerando impacto no mundo científico e vão repercutir inevitavelmente no mundo político. Os dados não só confir-mam como agravam as afirmações dos mo-vimentos de protesto, que se referem ao 1% que brinca com os recursos dos outros 99%. O New Scientist reproduz o comentário de um dos pesquisadores, Glattfelder, que resu-me a questão: “Com efeito, menos de 1% das empresas consegue controlar 40% de toda a rede.” E a maioria são instituições financei-ras, entre as quais Barclays Bank, JPMorgan Chase&Co, Goldman Sachs e semelhantes.3

Algumas implicações são bastante evi-dentes. Assim, ainda que na avaliação do New Scientist as empresas comprem umas as outras por razões de negócios, e não para do-

3 New Scientist (em português) http://www.inovacaotecno-logica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=rede-capitalista-domina-mundo&id=010150111022&mid=50 e original inglês http://www.newscientist.com/article/mg21228354.500-revealed--the-capitalist-network-that-runs-the-world.html?DCMP=OTC-rss&nsref=online-news.

No gráfico, as conexões financeiras internacionais.

Em vermelho, grupos europeus; em azul, norte-americanos;

outros países, em verde

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11dezembro de 2011

minar o mundo, não ver a conexão entre esta concentração de poder econômico e o poder político constitui evidente prova de miopia. Quando numerosos países, a partir dos anos Reagan e Thatcher, reduziram os impostos sobre os ricos, lançando as bases da trágica desigualdade planetária atual, não houve dúvidas quanto ao poder político por trás das iniciativas. A lei recentemente aprovada nos Estados Unidos, que libera totalmente o financiamento de campanhas eleitorais por corporações, tem implicações igualmente evidentes. O desmantelamento das leis que obrigavam as instituições financeiras a for-necer informações e que regulavam as suas atividades passa a ter origens claras.

Outra conclusão importante refere-se à fragilidade sistêmica que geramos na econo-mia mundial. Quando há milhões de empre-sas, há concorrência real, ninguém consegue “fazer” o mercado, ditar os preços, e muito menos ditar o uso dos recursos públicos. Es-ses desequilíbrios se ajustam com inúmeras alterações pontuais, assegurando certa re-siliência sistêmica. Com a escalada atual do poder corporativo, as oscilações adquirem outra dimensão. Por exemplo, com os deri-vativos em crise, boa parte dos capitais es-peculativos se reorientou para commodities, levando a fortes aumentos de preços, fre-quentemente atribuídos de maneira simplis-ta ao aumento da demanda da China por ma-térias primas. A evolução recente dos preços de petróleo, em particular, está diretamente conectada a essas estruturas de poder.4

Os autores trazem também implicações para o controle dos trustes, já que essas políticas operam apenas no plano nacional: “Instituições antitruste ao redor do mundo acompanham de perto estruturas complexas de propriedade dentro das suas fronteiras nacionais. O fato de séries de dados inter-nacionais, bem como métodos de estudo de redes amplas, terem se tornado acessíveis apenas recentemente, pode explicar como esta descoberta não tenha sido notada du-rante tanto tempo.” Em termos claros, essas corporações atuam no mundo, enquanto as instâncias reguladoras estão fragmentadas em 194 países, sem contar a colaboração dos paraísos fiscais.

Outra implicação é a instabilidade fi-nanceira sistêmica gerada. Estamos acostu-mados a dizer que os grandes grupos finan-ceiros são grandes demais para quebrar. Ao ver como estão interconectados, a imagem

4 O aumento do risco sistêmico nos grandes sistemas integra-dos é estudado por Stiglitz em Risk and Global Economic Ar-chitecture, 2010, http://www.nber.org/papers/w15718.pdf.

muda, é o sistema que é grande e poderoso demais para que não sejamos todos obriga-dos a manter os seus privilégios. “Trabalhos recentes têm mostrado que quando uma rede financeira é muito densamente conec-tada fica sujeita ao risco sistêmico. Com efei-to, enquanto em bons tempos a rede parece robusta, em tempos ruins as empresas en-tram em desespero simultaneamente. Esta característica de ‘dois gumes’ foi constatada durante o recente caos financeiro.”

Ponto-chave: os autores apontam para o efeito de poder do sistema financeiro sobre as outras áreas corporativas. “De acordo com alguns argumentos teóricos, em geral, as ins-tituições financeiras não investem em par-ticipações acionárias para exercer controle. No entanto, há também evidência empírica do oposto. Os nossos resultados mostram que, globalmente, os atores do topo estão, no mínimo, em posição de exercer conside-rável controle, seja formalmente (por exem-plo, votando em reuniões de acionistas ou de conselhos de administração) ou por meio de negociações informais.”

Finalmente, os autores abordam a ques-tão óbvia do clube dos super-ricos: “Do ponto de vista empírico, uma estrutura em ‘gravata borboleta’ com um núcleo muito pequeno e influente constitui uma nova observação no estudo de redes complexas. Supomos que possa estar presente em outros tipos de re-des onde mecanismos de “ricos-ficam-mais-ricos” (rich-get-richer) funcionam... O fato de o núcleo estar tão densamente conectado poderia ser visto como uma generalização do fenômeno de clube dos ricos (rich-club phenomenon).” A presença esmagadora dos grupos europeus e americanos neste univer-so, sem dúvida, também ajuda nas articula-ções e acentua os desequilíbrios.

Conclusões gerais a serem tiradas? Não faltam na internet comentários de que o fato de serem poucos não significa grande coi-sa. Na minha análise, é óbvio que se trata, sim, de um clube de ricos, e de muito ricos, que se apropriam de recursos produzidos pela sociedade em proporções inteiramen-te desproporcionais relativamente ao que produzem. Trata-se também de pessoas

que controlam a aplicação de gigantescos recursos, muito mais do que a sua capaci-dade de gestão e de aplicação racional. Um efeito mais amplo é a tendência de uma do-minação geral dos sistemas especulativos sobre os sistemas produtivos. As empresas efetivamente produtoras de bens e serviços úteis à sociedade teriam todo interesse em contribuir para um sistema mais inteligen-te de alocação de recursos, pois são, em boa parte, vítimas indiretas do processo. Nesse sentido, a pesquisa do ETH aponta para uma deformação estrutural do sistema, que terá, em algum momento, de ser enfrentada.

E em relação ao que tanto preocupa as pessoas, a conspiração? A grande realidade que sobressai da pesquisa é que nenhuma conspiração é necessária. Ao estarem arti-culados em rede, e com um número tão di-minuto de pessoas no topo, não há nada que não se resolva no campo de golfe no fim de semana. Esta rede de contatos pessoais é de enorme relevância. Mas, sobretudo, os inte-resses são comuns, e não é necessária ne-nhuma conspiração para que os defendam solidariamente, como na batalha já mencio-nada para se reduzir os impostos que pagam os muito ricos ou para se evitar taxação so-bre transações financeiras, ou ainda para evitar o controle dos paraísos fiscais.

O caos financeiro planetário, em última instância, tem uma base muito articulada (tight-nit) de poucos atores. No pânico mun-dial gerado pela crise, debatem-se as polí-ticas de austeridade, as dívidas públicas, a irresponsabilidade dos governos, deixando na sombra o ator principal: as instituições de intermediação financeira. No início do pâni-co da crise financeira, em 2008, a publicação do FMI Finance & Development estampou na capa, em letras garrafais, a pergunta “Who’s in charge?”, insinuando que ninguém está co-ordenando nada. Para o bem ou para o mal, a pergunta está respondida. F

Ladislau Dowbor é professor da PUC-SP nas áreas de economia e administração, e consultor de várias agências das Nações Unidas. Autor de Democracia

Econômica e numerosos estudos disponíveis online em http://dowbor.org ou http://www.dowbor.

org/wp - Contato [email protected]

Link para a resenha do New Scientist traduzida para o português no site Inovação Tecnológica: http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=rede-capitalista-domina-mundo&id=010150111022&mid=50.

Link para a resenha em inglês no site New Scientist: http://www.newscientist.com/article/mg21228354.500-revealed--the-capitalist-network-that-runs-the-world.html?DCMP=OTC-rss&nsref=online-news.

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12 dezembro de 2011

por Idelber AvelAr

Um ano atrás, quem imaginaria que uma multidão insistente e pacífi-ca, sem quaisquer laços com a Ir-mandade Muçulmana, retornaria à Praça Tahrir uma e outra vez,

durante semanas, até derrubar o ditador egípcio Hosni Mubarak? Quem teria previsto que um movimento de ocupação popular, de contornos antineoliberais e, em alguns mo-mentos, anticapitalistas, varreria os EUA de Leste a Oeste, deixando estupefatos e sem rea ção tanto os dois partidos políticos como os comentaristas da mídia corporativa? Quem suporia que a profundidade da crise e a mobilização popular derrubariam primei-ros-ministros europeus, como na Grécia e na Itália? Quem imaginaria 2011?

1. As ocupações de 2011 enterram mais uma vez as teleologias da História. A úl-tima vez que ouvimos falar que a História havia chegado a seu ponto final foi nos anos 1990. Francis Fukuyama tomou a queda do muro de Berlim como comprovação de que a teleologia da História – ou seja, a concepção que a entende como dirigindo-se a um fim preestabelecido – havia se realizado, com a vitória definitiva do capitalismo liberal, que então só necessitaria de ajustes em seu in-terior, sem qualquer outra ameaça externa. Não foi uma revolução socialista, mas um

Sete teses sobre as ocupações de 2011*Os movimentos surgidos em todo o planeta no último ano trazem reflexões e derrubam mitos, nos quais boa parte do pensamento político se apoiou recentemente

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13dezembro de 2011

atentado terrorista em Nova Iorque que se encarregou de pôr a pá de cal nessa cele-bração otimista. A década que se seguiu ao atentado foi marcada pelo conceito de guer-ra sem fim: os EUA tentaram rearticular sua hegemonia em declínio por meio da cons-trução de um inimigo onipresente, virtual e despersonalizado, e nessa toada viveu-se a década 2001-2011. Quando mais parecia que o binômio “imperialismo dos EUA x fun-damentalismo islamista” se manteria como a polarização definidora da política mundial, emergem em todo o mundo árabe ocupações populares sem relação com o islamismo e, no Ocidente, sem qualquer relação com o mor-no antagonismo que opõe liberais ou social--democratas aos conservadores da direita. As ocupações de 2011 reafirmam a condição inacabada da História, sua natureza radical-mente pendente, seu caráter de puro devir.

2. As ocupações de 2011 apontam sinais de falência generalizada dos partidos po-líticos. Talvez não haja fio unificador mais visível em todas as revoltas (Tunísia, Egito, EUA, Grécia, Portugal, Espanha, Itália, Ingla-terra, Bahrein, Iêmen, Síria, Argélia etc.) que seu caráter autônomo em relação às coleti-vidades políticas já sancionadas, nos casos europeu e estadunidense, pelas democracias representativas, ou, no caso do mundo árabe, pelas autocracias militares ou monárquicas. Aqui, a Espanha é emblemática: sob um go-verno social-democrata, liderado por José Luis Zapatero, um primeiro-ministro de con-siderável prestígio no exterior, uma multidão de indignados fez ouvir em claro e bom som a mensagem de que nem PP, o Partido Popular, de direita e franquista, nem o Psoe, o Parti-do Socialista Operário Espanhol de Zapatero, a representava. Não se trata só de que esses movimentos são independentes dos partidos. Trata-se de uma ruptura muito mais profun-da, por meio da qual as multidões (des)orga-nizadas denunciam a perda da capacidade desses partidos de representarem os desejos políticos reais que se articulam na pólis. As ocupações não se levantam apenas contra as ditaduras e o autoritarismo no mundo árabe, e o arrocho salarial e a financeirização da vida, no Ocidente, mas também, em ambos os espaços, contra as estruturas supostamente representativas da política. Nesse contexto, não faz sentido responsabilizar os indigna-dos da Espanha pela vitória do PP nas últi-mas eleições, posto que seria bastante difícil encontrar grande diferença entre a política econômica aplicada por Zapatero e aquela imposta anteriormente por Aznar.

3. As ocupações de 2011 são uma crí-tica da representação e resgatam uma memória dos oprimidos: a democracia direta. A autonomia popular reunida na Plaza del Sol, em Liberty Plaza e em dezenas de outras praças públicas ao redor do Oci-dente, denuncia o caráter não democrático da democracia liberal. A financeirização do mundo também molda os partidos políticos, e nenhum exemplo é mais eloquente que os EUA: 80% dos cidadãos estadunidenses desaprovam o Congresso de seu país, mas não podem renová-lo, porque a legislação eleitoral é construída de tal forma que só os Partidos Democrata e Republicano sobrevi-vem — ambos, o segundo um pouco mais, cativos dos interesses do grande capital e, muito especialmente, do capital financeiro. As ocupações de 2011 mostram que a falên-cia da democracia representativa é filha da financeirização do mundo. A disseminada desilusão com a administração Obama, por exemplo, não deu lugar a um crescimento do Partido Republicano nem à formação de um terceiro partido (há dezenas de “tercei-ros partidos” nos EUA, sem possibilidade de participação no processo político real). Essa desilusão deu lugar ao “Ocupar Wall Street”. A resistência do movimento às regras esta-belecidas no jogo eleitoral e a preferência pela construção da democracia direta lem-bra muito mais a Comuna de Paris ou Maio de 1968 que qualquer outro movimento acoplado à maquinaria de representação política da democracia institucional. Em assembleias, passeatas, nos comoventes microfones humanos do Ocupar Wall Street (saída encontrada para contornar a proi-bição de microfones nas praças), nas ofici-nas solidárias oferecidas pelos ocupantes, encontra-se em gestação outro conceito de democracia, cujo atributo principal, sem dúvida, é este: ele se reinventa permanente-mente. Ninguém sabe no que vai dar.

4. As ocupações de 2011 demonstram que nenhuma luta popular genuína pode se limitar hoje a fronteiras nacionais. A quebra do capitalismo europeu transforma o aparato eleitoral de suas nações em pou-co mais que uma escolha do comissário que irá obedecer às ordens do capital financei-ro. Num contexto de integração monetária continental e integração comercial global, em que a manipulação de títulos de dívida e o fluxo de capitais são capazes de derrubar uma economia europeia em questão de dias, desapareceu a diferença entre governos con-servadores e sociais-democratas, pois prati-

camente desapareceu a margem de manobra destes últimos. Os social-democratas e os so-cialistas podem ainda manter uma retórica mais progressista, alguma memória de sua época de representantes da classe trabalha-dora e a disposição a um “diálogo” (sempre infrutífero) não vistas na direita, mas o re-sultado final, especialmente na política eco-nômica, é o mesmo. Nas ocupações de 2011, por boas razões, têm sido minoritárias as vozes que acreditam numa rearticulação da potência autônoma da multidão com o apa-rato político nacional. Talvez desde a I Inter-nacional Comunista ou, no máximo, a onda de revoluções abortadas na Europa durante o período da III Internacional, não se sentia tão nitidamente a necessidade de um proces-so revolucionário global, que escape do dile-ma entre ceder às limitações impostas pelo capital ao Estado-Nação e abdicar de tomar o poder para permanecer na pura negação. A saída para esse dilema, como todas as outras questões estratégicas que acossam as ocu-pações, continua pendente, com resolução não vislumbrada. Mas é nítida a consciência de que qualquer adequação aos limites do Estado-Nação não satisfará a energia trans-formadora já desatada.

5. As ocupações de 2011 enterram de vez o mito da democracia liberal tolerante com o dissenso. O exemplo definitivo aqui são os EUA, justamente porque o “Ocupar Wall Street”, ao contrário, por exemplo, da revolta de excluídos na Inglaterra, tem sido um movimento pacífico. Mesmo assim, a repressão policial tem se manifestado de forma assombrosa. Em meados de novem-bro, correu o mundo a imagem de um poli-cial de Davis, na Califórnia, lançando spray de pimenta sobre um grupo de estudantes sentados de braços dados na área central do campus. O policial tinha o semblante de

Nas ocupações de 2011, por boas razões, têm sido minori-tárias as vozes que acreditam numa rearticulação da potência autônoma da multidão com o aparato político nacional

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14 dezembro de 2011

quem dedetiza uma nuvem de insetos. Em Seattle, a jovem Jennifer Fox foi espancada por policiais até sofrer um aborto. Ainda em Seattle, uma senhora de 84 anos, Dorli Rainey, recebeu jatos de spray de pimenta na cara até não conseguir se mover sem aju-da de companheiros de ocupação. Em Nova Iorque, a polícia deliberadamente orientou os manifestantes a se dirigirem à Ponte do Brooklyn para ali prendê-los. O acampamen-to da Liberty Plaza foi acossado por faróis da polícia durante semanas, piscando ao longo da noite para impedi-los de dormir. Vetera-nos de guerra foram espancados pela polícia de Boston ao se interporem entre ela e os manifestantes, tentando defendê-los de uma desocupação que violava grosseiramente a Primeira Emenda da Constituição. São cen-tenas de presos em todo o país, todos eles cidadãos pacíficos que exerciam um direito previsto em lei. Só com grande ingenuidade ou má-fé seria possível defender hoje a ideia de que a Primeira Emenda significa algo quando se trata de mobilização popular an-ticapitalista nos EUA.

6. As ocupações de 2011 realçam o papel das novas tecnologias e o caráter insubs-tituível da rebelião presencial. Já se trans-formou em senso comum a ideia de que as novas tecnologias digitais e redes como o Facebook e o Twitter cumprem papel cen-tral nas novas revoltas. Isso é correto, evi-dentemente. Na rebelião de consumidores excluídos na Inglaterra, todo o agendamen-to de levantes se deu pelo comunicador do Blackberry (BBM), enquanto que, nos EUA e no Egito, o Twitter e o Facebook multipli-cavam os canais de circulação do protesto. Não se trata simplesmente de que novas tecnologias se transformam em veículos de comunicação comparáveis ao telefone ou ao

telégrafo, privilegiados em outras eras. Os novos trabalhadores são, eles mesmos, pe-ças de um capitalismo cognitivo, no qual a produção de lucro passa pelo valor imaterial da mercadoria produzida: patentes, proprie-dade intelectual, dívida sem materialidade sob a forma de puros títulos, teologia do copyright. Eis aí os termos decisivos através dos quais se articula a dominação capitalista hoje. Ou seja, o próprio capitalismo financei-ro contra o qual se rebelam as multidões de 2011 tem como atributo a imaterialidade re-produzível das formas de comunicação usa-das pelos manifestantes. É exatamente por isso que nada é mais ingênuo que celebrar as novas tecnologias digitais como instru-mentos emancipatórios em si. Foi a rebelião presencial que desatou, tanto nos EUA como na Inglaterra e no Egito, a repressão aos flu-xos digitais, com cancelamento de contas, bloqueio de circuitos e censura a mensagens subversivas. Justamente porque as ágoras digitais e físicas não estão separadas – ou seja, porque elas compõem a teia do capi-talismo cognitivo – não tem sentido tecer loas ao poder liberador das novas tecnolo-gias, sem reconhecer que o inimigo acusou o golpe precisamente porque o povo revol-toso ocupou a praça. Nenhuma ocupação da praça acontecerá sem fluxo de energia revo-lucionária digital. Nenhum trabalho de rede substituirá a ocupação da praça.

7. As ocupações de 2011 revelam que a luta pelo cancelamento da dívida está para o capitalismo cognitivo assim como a luta pelo salário estava para o capita-lismo industrial. Essa tese do autonomis-ta italiano Gigi Roggero vai, me parece, ao centro da questão. Em todas as revoltas do mundo ocidental, tanto nos EUA como na Europa, as multidões rebeladas vão se dan-

do conta de que nenhum aumento salarial ou mesmo garantia de emprego significará muito num contexto em que a manipulação dos títulos da dívida e a especulação com os capitais migrantes têm o poder de colo-car toda uma economia nacional de joelhos. Passamos do que Michel Foucault chamou de sociedade disciplinar – aquele momento moderno no qual grandes aparatos (igreja, escola, fábrica, exército, hospital, prisão) constituíam um sujeito sob perene vigilân-cia – àquilo que Gilles Deleuze chamaria de sociedade do controle, na qual a dominação já se dá através de formas móveis, imate-riais, virtuais, em constante deslocamento, para as quais o modelo já não é a prisão (embora esta continue a cumprir o seu pa-pel), mas a corporação. O capitalismo da era da sociedade disciplinar se baseou na produção e na propriedade. No capitalismo da sociedade de controle, a produção já foi exportada para alhures (China, Tailândia, Terceiro Mundo), enquanto o capital se de-dica a vender serviços e comprar ações. A sociedade disciplinar era o espaço do sujeito vigiado. A sociedade de controle é o espaço do sujeito endividado. A chamada crise das hipotecas nos EUA não foi o resultado de um erro tangencial ou lateral ao sistema. Foi a expressão da lógica mais profunda, desse sistema, que só pode se reproduzir através da teia da dívida imaterial, impagável. Por isso, as massas autônomas, de Madri a Nova Iorque, do Cairo a Atenas, vão se dando con-ta, no interior da luta, de que se reafirma um princípio revolucionário por excelência: não se pode mudar nada sem, antes, mudar tudo. Esse axioma marxista é, hoje, mais verdadei-ro que na época de Marx. F

* Agradeço a Giuseppe Cocco, Bruno Cava e Alexandre Nodari pelas referências bibliográfi cas

e pela interlocução na preparação deste artigo.

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15dezembro de 2011

por renAto rovAI

Desde janeiro de 1994, quando o Exército Zapatista de Libertação Nacional divulgou sua Primeira Declaração da Selva Lacondona pela rede mundial de computado-

res, começou a se constituir uma outra esfera pública. A internet ainda vivia seus primeiros momentos, e os grupos e listas de debates eram os principais mecanismos de divulgação daquele movimento que nasceu no mesmo dia em que EUA, México e Canadá assinavam um acordo de livre comércio, o Nafta. Mesmo assim, foi tamanha a força da rede para tornar os zapatistas conhecidos em várias partes do mundo que a sua principal liderança, o sub-comandante Marcos, se tornou, para alguns, o primeiro super-herói da internet.

Para que isso acontecesse naqueles pri-meiros momentos, foi fundamental a ação de jornalistas independentes mexicanos e mes-mo de outros países da América Latina. Eram colaboradores do La Jornada, do Página 12 e de outros veículos independentes que posta-vam as mensagens dos zapatistas na rede. E não o próprio subcomandante Marcos, como o folclore político da época fazia crer.

Ainda na década de 1990, mais precisa-mente em novembro de 1999, outro movi-mento também atraiu muita atenção, tanto pela sua força organizativa quanto pela ma-neira como conseguiu romper o cerco da mídia tradicional comercial. Os protestos du-rante a cúpula da OMC na cidade de Seattle, nos EUA, se tornaram um marco das mani-festações que viriam a ser denominadas pe-los veículos tradicionais de comunicação de antiglobalização, mas, na verdade, não ques-tionavam a globalização da sociedade, e sim a globalização econômica pelo viés neoliberal.

poder mundial

Nos movimentos 2.0, as formas são múltiplasOcuppy Wall Street, 15-M, Revolução no Egito, jornalismo e ativismo, crise das representações partidárias. Há algo novo que não começou agora, mas que parece ficar cada vez mais forte

Aquele movimento que viria a ser conhe-cido como a A Batalha de Seattle levou às ruas dessa cidade estadunidense aproximadamen-te cem mil pessoas, desde ativistas de causas ambientais a sindicalistas, e impediu a reali-zação daquela cúpula. Naquele evento surgia o Indymedia (Centro de Mídia Independente), a primeira experiência de construção de co-bertura jornalística colaborativa de um even-to, que viria a se tornar um site com versões em mais de uma centena de países.

O Indymedia nasceu da indignação dos ativistas que consideravam as coberturas dos meios comerciais de comunicação dis-torcidas e contrárias às suas causas. O proje-to original consistia num site para publicação livre, no qual jornalistas e colaboradores de veículos de comunicação alternativos po-deriam publicar seus textos, fotos e vídeos durante os protestos. O acordo é que deve-

riam fazê-lo em copyleft – contraposição ao copyright –, que permite a reprodução de textos desde que citada a fonte. No entanto, durante os protestos, o Indymedia foi utili-zado não só por jornalistas. E os relatos dos que participaram do movimento foram fun-damentais para que o site tivesse sucesso na cobertura da Batalha de Seattle. Segundo di-vulgado no próprio site, a iniciativa teve 1,5 milhão de acessos naquele episódio.

Outro importante movimento para o qual a internet foi fundamental, tanto do ponto de vista organizativo como de difusão de informação, foi o Fórum Social Mundial. Em janeiro de 2001, 20 mil pessoas de 117 países se deslocaram para a cidade de Porto Alegre (RS) para discutir alternativas à glo-balização neoliberal. Ou para debater o “Ou-tro Mundo Possível”, que viria a se tornar o slogan do movimento.

Os indignados espanhóis teriam se inspirado no livro Indignez Vous, best-seller na Europa

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16 dezembro de 2011

O FSM, naquela sua primeira edição, se rea lizou exatamente na mesma data do Fórum Econômico Mundial. A intenção dos seus pro-motores era a de se fazer um contraponto às propostas dos que se reuniam nos Alpes suí-ços, mais especificamente na cidade de Davos. Durante toda a articulação do evento de Porto Alegre, porém, poucos veículos tradicionais deram algum destaque à iniciativa. O único jornal com relevância internacional a tratar do assunto foi o Le Monde Diplomatique. Na imprensa brasileira, apenas notas de rodapé. Quando o evento começou, jornalistas desin-formados chegavam a Porto Alegre sem a me-nor ideia do que aquilo significava. E, mesmo durante o evento, a cobertura da imprensa comercial tradicional brasileira foi caricata. As reportagens abordavam assuntos como a cachaça Che Guevara ou a manifestação de pe-lados no acampamento da juventude.

O curioso é que daquele 1º FSM partici-param 1.870 jornalistas credenciados, quase todos vinculados a veículos independentes e alternativos, que, entre outras iniciativas, criaram a Ciranda da Informação, que permi-tia (e ainda permite) a publicação de fotos, matérias e produções jornalísticas, desde que também associadas à prática do copyleft. Em modelo colaborativo, as reportagens iam sendo traduzidas para outras línguas e repu-blicadas em diversos veículos mundo afora, permitindo não só que informações do Fórum Social Mundial pudessem ser divulgadas com maior visibilidade como também estimulando a constituição de uma rede informal de veícu-los independentes e contra-hegemônicos. E foi naquele primeiro FSM que nasceu a Fórum.

Esses acontecimentos foram fundadores do ativismo jornalístico nas redes digitais.

Mas é bom que se diga que o jornalismo ativis-ta não nasceu na rede. Pascoal Serrano, editor e fundador do site Rebelion, acaba de lançar um livro na Espanha cujo título é Contra la Neutralidad. Serrano retoma os trabalhos de John Reed, Ryszard Kapúscinki, Rodolfo Wal-sh, Edgar Snow e Roberto Capa, para defender sua tese de que o jornalismo não pode ser in-diferente. Que não pode ser um debate sobre formato e formas de apresentação. E que os trabalhos e a história desses jornalistas e do fotógrafo Roberto Capa comprovam o quanto a suposta neutralidade não é algo a ser perse-guido do ponto de vista profissional.

O debate sobre jornalismo e ativismo ganhou novos contornos neste 2011 com os movimentos 2.0. Ou seja, com a entrada em cena de um novo tipo de movimento social, que saiu da rede para invadir as ruas.

Nos últimos anos, houve uma ampliação significativa da circulação de informação contra-hegemômica. E isso levou a mídia tra-dicional comercial a diminuir sua capacidade de pautar a sociedade, ao mesmo tempo em que modificou o fazer jornalístico. Hoje não é necessário participar de empresas verticali-zadas para atuar como produtor de informa-ção. Vive-se um momento de passagem da mídia de massa para um tipo de organização mais horizontal, que permite um jornalismo mais autoral e independente, muito mais transparente e posicionado. O Occupy Wall Street, o 15 M da Espanha e a Revolução no Egito foram três movimentos que certamen-te entrarão para a história desta nova fase em que a circulação de informação indepen-dente e posicionada é parte do movimento. Ela não produz o movimento. Mas contribui para a sua construção e significação.

A ação dos ativistas digitais no Egito, por exemplo, foi articulada pelo Facebook, rede social que, dadas as suas características, permite a participação de ampla camada da sociedade. Diferentemente do Twitter, mais utilizado por aqueles que estão em busca de informação, o Facebook se tornou a platafor-ma de toda a família. É um álbum de fotos, uma agenda de amigos, um lugar de recados e também um espaço para se exercer o voyeu-rismo. E mesmo quando as pessoas só entram no Facebook para saber o que está acontecen-do na vida dos outros, às vezes se deparam com histórias que as levam a uma causa co-mum. Foi o que aconteceu no Egito, quando as fotos de Khalled Said, jovem que foi violen-tamente torturado e assassinado por postar um vídeo de violência policial no Facebook, vieram à tona no mesmo Facebook.

No caso do movimento Occupy Wall Street o que pouca gente sabe é que as manifestações foram impulsionadas pela revista canadense Adbusters, veículo anticonsumista, mantido por leitores e cuja tiragem é de 120 mil exem-plares. Foi uma nota publicada em 13 de julho que lançou o desafio para que ativistas ocu-passem Wall Street no dia 17 de setembro:

“Chegou a hora de agir contra o maior corruptor da nossa democracia: Wall Street, a Gomorra financeira da América.

Em 17 de setembro, nós queremos ver 20 mil pessoas como um tsunami invadindo a baixa de Manhattan, montando tendas, co-zinhas, barricadas pacíficas e ocupando Wall Street por alguns meses. Uma vez lá, vamos repetir incessantemente uma demanda sim-ples em uma pluralidade de vozes. [...]

É hora de democracia, não de corporotu-cracia. Estamos condenados sem ela.” 1

A ação do Ocuppy Wall Street se multipli-cou em diversas partes dos EUA e do mundo. E mesmo no Brasil, cidades como São Paulo e Rio de Janeiro aderiram ao movimento. E em todos os lugares onde barracas ocupam espa-ços públicos, a informação tem sido a arma principal do movimento. Uma Carta Aberta do Occupy Dallas (veja box), publicada no blogue do movimento, é ilustrativa dessa ação pela informação, por um novo modus operandi do que talvez venha a ser a constituição de um novo jornalismo público, sobre o qual preten-do tratar num texto futuro.

A carta de Dallas segue com uma série de recomendações à polícia local e, em vários outros momentos, alerta para o fato de que os manifestantes estavam orientados a pro-duzir informação que seria utilizada contra

1 Íntegra no endereço: http://www.adbusters.org/blogs/adbusters-blog/occupywallstreet.html.

Os protestos durante a cúpula da OMC, em Seattle, se tornaram um marco das manifestações anti-globalização

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a repressão policial e contra a manipulação midiática. As ruas nas redes. As redes como parte das ruas. Nos movimentos de protesto 2.0 não se pensa em ruas sem rede. Ambas são a mesmíssima coisa para os militantes. E suas ações são pensadas como combinação da tomada de todos os espaços produzindo o máximo de informação que contribua para o sucesso da ação.

No 15-M da Espanha, que levou milhares de jovens a diferentes praças do país, em es-pecial à do Sol, em Madri, e a da Cataluña, em Barcelona, o papel do ativismo jornalístico também não foi menor. Os indignados espa-nhóis teriam se inspirado no livro Indignez Vous, de Stéphane Hessel, que vendeu al-guns milhares de exemplares em toda a Eu-ropa. O livro, sem tradução no Brasil, é um manifesto à indignação contra o sistema e se tornou um clássico muito em decorrência da história do seu autor. Hessel, 92 anos, esca-pou duas vezes dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial, contribuiu para a redação da Declaração Universal dos Direi-tos do Homem em 1948, foi embaixador de França e hoje é um mundialista-ecologista. O livro se tornou um best-seller por conta da divulgação que teve nos veículos indepen-dentes e nas redes.

Os protestos se iniciaram em 15 de maio (por isso 15-M), e como a repressão foi gran-de, os manifestantes criaram no dia 18 um link para transmissão ao vivo via Ustream, com o objetivo de constranger a ação poli-cial. Foi daí em diante que a solidariedade ao movimento se espalhou pelo mundo, e os ve-ículos de comunicação tradicional passaram a tratar do assunto com a dimensão aproxi-

mada do que ele merecia. Claro que sempre tratando os manifestantes como um bando de rebeldes sem causa. Aliás, neste sentido da crítica, direita e esquerda tradicional se confundem. Ambos desqualificam os movi-mentos 2.0 pelos mesmos caminhos: a su-posta ausência de propostas.

A questão que se coloca é que tanto o fa-zer político quanto o jornalístico estão em plena transformação nesses primeiros anos de uso da internet. A internet e as suas novas possibilidades de interação, em geral mais horizontais, levam o novo cidadão que atua nas redes a não aceitar a centralidade e a verticalidade como algo natural. Essa nova cultura coloca em xeque o sistema de organi-zação dos partidos políticos e a dinâmica dos veículos de comunicação tradicionais.

Não são os novos movimentos e suas for-mas que não apresentam saídas. São as for-mas tradicionais de fazer política e de querer organizar a agenda pela comunicação que estão em crise. Os movimentos políticos de 2011 não aconteceram para apresentar res-postas a essas questões. Mas para gritar que não se modificará as estruturas de poder da sociedade fazendo o jogo com base na lógica tradicional. Mas reinventando o jogo. Que se joga não apenas na disputa dos espaços tra-dicionais da política partidária e nem só nos veículos comerciais de comunicação.

O ano de 2011 não foi um ano comum. E é muito provável que venha a ser o ano da saída da adolescência de um movimento que mistura política, redes, circulação de infor-mação e outras formas de ativismo, que se iniciou lá em 1994 como zapatistas e foi tes-tando formas até descobrir que suas formas são múltiplas e disformes. F

Occupy Wall Street: as estruturas de poder da sociedade não serão modificadas com base na lógica tradicional

Segunda carta aberta do Occupy Dallas à Polícia 7/11/2011, Occupy Dallas

Ao Departamento de Polícia de Dallas, Texas

Aos cuidados do Tenente Anthony W. Williams

Depois de examinar vídeos e de conversar com membros de sua organização policial, vimos que o senhor era o oficial que comandava a operação policial contra nossa passeata de ontem, que começou na praça Bank of America.

Esperávamos que lá estivesse um comandante de operação policial contra cidadãos desarmados ca-paz de manter o equilíbrio emocional. O que vimos foram vídeos em que o senhor aparece pessoalmen-te algemando manifestantes. Por isso, essa carta aberta dirigida ao Departamento de Polícia de Dallas vai endereçada ao senhor. Primeiro, oferecemos alguns fatos, para seu conhecimento. Não somos uma revolução violenta. Estamos tentando evitar uma revolução violenta. (…)

Ontem, vários policiais comandados pelo senhor escolheram nos atacar com violência. Há vídeos gra-vados em que se veem cidadãos empurrados por policiais, das calçadas públicas onde caminhavam, para o meio da rua. Um policial protegido por escudo antitumultos, com um cassetete elétrico, espancava cidadãos que se manifestavam. Empurrados para o meio da rua e cercados por meia dúzia de policiais, muitos manifestantes foram atacados com sprays de pimenta por uma policial feminina que carregava uma câmera. Essa policial pode ser vista na fotografia que acompanha essa carta, em nossa página na internet: vê-se que ela, escondida atrás de um carro, segura a pistola lança-pimenta e a câmera.

Via-se também bem claramente que vários policiais à paisana andavam pela rua, com câmeras, filmando rostos. Estamos solicitando, nos termos do Freedom of Information Act, que os filmes feitos por esses policiais não identificados como policiais nos sejam entregues, para que integrem o dossiê que está sendo preparado, com outras provas da ação ilegal da polícia em outras cidades dos EUA.

Preocupam-nos, de modo especial, as ações da policial Jay Hollis, crachá de identificação #6896. Em vídeo filmado por manifestantes, essa policial aparece puxando uma pessoa de cima de uma mureta de mais de um metro de altura, e jogando-a ao chão. Questionada mais tarde por manifestantes, sobre por que atacara um manifestante, a policial Jay Hollis respondeu, dando de ombros: “Ele pediu para descer.” Em vários desses vídeos, pode-se ver que o senhor estava próximo da cena, observando-a.

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18 dezembro de 2011

A universidade não precisa de polícia As universidades públicas, ao contrário das ruas e praças,

não são espaços de uso comum do povo e têm seus estatutos e regimentos específi cos. A Polícia Militar, por não estar sujeita às normas universitárias, não é o órgão

competente para fazer a segurança interna dos campiSempre que ocorre um crime grave em uma comunidade, a consequência ime-diata é um pânico social. A reação ins-

tintiva é buscar hipóteses que, caso estives-sem implementadas, poderiam ter evitado o crime. É assim na reunião de condomínio após o arrombamento no prédio e é assim também, com a devida ampliação exponen-cial, nas reportagens da mídia após atenta-dos terroristas. Todos buscam soluções má-gicas para evitar, a todo custo, que a situação se repita.

E é também logo após esses crimes de grande repercussão que todos se tornam mais dispostos a trocar parte de suas liberda-des individuais por um aumento na vigilân-cia que supostamente lhes garantiria maior segurança. Um porteiro para o prédio, nunca antes aventado, passa a ser defendido na as-sembleia de condomínio como panaceia para o problema, ainda que isso implique um au-mento de gastos. E leis que dão maiores po-deres à polícia são facilmente aprovadas nos parlamentos, ainda que direitos fundamen-tais de todos os cidadãos tenham que ser cer-ceados. A velha barganha de se trocar liberda-de por segurança, que tanto tem alimentado o autoritarismo ao longo da história.

Nas universidades, não é diferente. O lamentável episódio do homicídio do es-tudante Felipe Ramos de Paiva no campus da Universidade de São Paulo (USP), em maio deste ano, tornou-se o argumento decisivo dos que defendem a presença da Polícia Militar não só na Cidade Universitá-ria da USP, mas também nos campi de várias outras universidades públicas do país. E, na ânsia de legitimar a presença da polícia nas universidades, esquecem-se de que a Polícia Militar estava no campus em horá-rio próximo ao crime, mas não foi capaz de evitá-lo. Pior: esquecem-se de que não é atribuição da Polícia Militar fazer a segu-rança dos campi universitários.

Desvio de funçãoA USP, assim como grande parte das uni-

versidades públicas brasileiras, é uma autar-

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19dezembro de 2011

própria direção da faculdade e, portanto, não houve um conflito de orientações. Em tese, porém, seria perfeitamente possível imaginar uma situação na qual a polícia de-sejasse proibir a exibição do documentário sobre a legalização das drogas (ou um semi-nário ou qualquer outra atividade acadêmi-ca) e a direção da faculdade autorizasse a atividade. Então, ter-se-ia a absurda situa-ção de servidores públicos armados dentro da universidade, desrespeitando as ordens de quem tem, por determinação constitu-cional, autonomia universitária.

Guarda universitáriaA presença da Polícia Militar nos campi

das universidades públicas brasileiras é uma aberração jurídica que só pode ser supera-da com a criação das guardas universitárias ou do seu fortalecimento onde ela já existe, como é o caso da USP. As guardas universi-tárias são de responsabilidade única e exclu-siva dos órgãos de direção da universidade, e eventuais abusos podem ser muito mais facilmente prevenidos e solucionados inter-namente. Claro que nada impede que, como em qualquer autarquia, a Polícia Militar seja chamada, caso necessário, a comparecer ao local para reprimir um crime que esteja ocorrendo. A segurança cotidiana da au-tarquia, porém, deve ser realizada por uma guarda interna, que deverá ser treinada tal como qualquer segurança de universidades particulares. Se é possível às universidades particulares fazerem a segurança de seus campi sem a necessidade da presença da Polícia Militar, também é perfeitamente pos-sível que as universidades públicas assim o façam. É bem verdade que os campi das universidades públicas, em regra, são bem maiores e mais complexos que os da maioria das particulares, mas seu orçamento tam-bém é maior, e parte dele precisa ser desti-nado à garantia da segurança interna.

Isso não quer dizer também que os uni-versitários terão imunidade para usarem drogas dentro do campus, o que parece ser a preocupação prioritária dos moralistas de plantão. A lei penal vale dentro e fora dos prédios das autarquias, e caso pratiquem qualquer crime, poderão ser responsabiliza-dos por eles. Quem deve decidir, porém, se a prioridade da guarda universitária é preve-nir homicídios e estupros ou combater o uso de drogas é a direção da universidade, por meio de seus órgãos colegiados representati-vos de professores, alunos e funcionários. Ao

quia. E dentre as atribuições constitucionais das Polícias Militares não está a de fazer a segurança de autarquias. A imensa extensão de muitos campi universitários, em especial o da USP, poderia levar à falsa percepção de que se trata de locais públicos como outros quaisquer e, portanto, sujeitos ao policia-mento da PM, mas isso não é verdade.

Nem todo bem público é acessível a qual-quer pessoa. Há os bens públicos de uso co-mum que podem ser usados por qualquer pessoa do povo, como ruas, praças, estradas etc., mas há também os bens públicos de uso especial, que são destinados a uma determi-nada atividade pública específica, como, por exemplo, os prédios das repartições públicas e das universidades. Cabe à Polícia Militar re-alizar o policiamento ostensivo em locais de uso comum, mas os prédios e terrenos das autarquias são propriedades de uso especial e, como tais, estão sujeitos à responsabilida-de dos chefes destas autarquias. É por isso que não se vê PMs fazendo a segurança dos prédios do Banco Central do Brasil, do Incra, do INSS e do Colégio Pedro II.

A segurança dos prédios das autarquias deve ser organizada e paga pela própria au-tarquia com os recursos de seu orçamento. Isso porque as autarquias possuem autono-mia administrativa, e os policiais militares, não sendo funcionários do órgão, ficariam na absurda situação jurídica de serem ser-vidores públicos em serviço no prédio da autarquia sem estarem sujeitos às ordens do chefe da casa.

Os órgãos públicos, sejam eles quais forem, estão concebidos a partir de uma organização hierárquica, que pressupõe um comando úni-co. A presença de policiais militares em ser-viço em uma autarquia pode gerar situações absurdas nas quais as ordens do chefe da au-tarquia são desrespeitadas, já que os policiais não se subordinam ao seu comando.

Um caso paradigmático, ocorrido em abril de 2008 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ilustra bem o pro-blema de se ter uma polícia não sujeita ao estatuto e ao regimento da universidade em serviço no campus. Alunos do Instituto de Geociências (IGC) da UFMG promoviam a exibição do documentário Grass (1999), que trata da descriminalização da maconha, quando foram interrompidos pela Polícia Militar, que proibiu a execução do filme com o surreal argumento de tratar-se de apolo-gia às drogas. No caso em questão, a ação da polícia foi lamentavelmente solicitada pela

abrir as portas do campus para a PM, deixa-se ao arbítrio da própria polícia decidir quais crimes desejam prevenir prioritariamente. Na ausência de recursos para se evitar todos os crimes e na ânsia por combater o uso de drogas, a PM pode acabar deixando de com-bater os crimes em razão dos quais foi convi-dada a entrar no campus, que são justamente aqueles que colocam em risco a vida e a inte-gridade corporal da comunidade acadêmica.

Já a guarda universitária, como qual-quer outro serviço de segurança, deve ser concebida para proteger prioritariamente a integridade física e o patrimônio das pes-soas que frequentam o local. Se eventual-mente flagrarem outro tipo de crime sendo praticado, podem e devem agir, até porque, na maioria das vezes, tais crimes também constituem infrações disciplinares previstas nas normas internas da universidade. Mas quem deve pautar as prioridades da guarda universitária é a própria comunidade acadê-mica, por meio de seus representantes nos órgãos de direção.

Evidentemente, haverá gasto de dinheiro público para organizar e equipar as guardas universitárias. É preciso lembrar, porém, que a presença da Polícia Militar nos campi também custa dinheiro aos cofres públicos e ainda tem o inconveniente de retirar os po-liciais que deveriam estar velando pela se-gurança de pessoas que transitam por bens de uso comum para realizarem serviço típico de seguranças em autarquias, que atendem apenas uma parcela limitada da população.

É preciso que se compreenda que uma coisa é serviço de segurança de instituição de ensino e outra é policiamento de locais de uso comum do povo. Situações distintas precisam de profissionais com treinamentos diversos e, principalmente, subordinados a autoridades diversas, para cumprirem bem seus papéis. Procurar resolver os problemas de segurança nos campi universitários por meio de convênios com a Polícia Militar nada mais é que o famigerado “jeitinho brasilei-ro”, cuja inconstitucionalidade já teria sido alardeada, não fosse o discurso conservador que insiste obsessivamente em levar a Polí-cia Militar para dentro dos campi mais com objetivos moralizantes de combate às drogas de que como solução para os efetivos proble-mas internos de segurança universitária. F

TÚLIO VIANNA, professor da Faculdade de Direito da UFMG.

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20 dezembro de 2011

por CynthIA SemírAmIS

Recentemente, o Fórum Econômi-co Mundial divulgou o relatório e ranking 2011 do Global Gender Gap, que mede o índice mundial de desigualdade de gênero. Dos

134 países estudados, o Brasil ocupa atual-mente o 82º lugar.

Como em 2010 estávamos em 85º lugar, esta melhora no ranking seria um motivo para comemoração. No entanto, não há motivo para isso. Desde 2006, quando foi feito o primeiro estudo, que classificou o Brasil como 67º no ranking dos países mais igualitários, o que se viu foi a queda nessa posição: 74º (2007), 73º (2008), 81º (2009), 85º (2010). Mesmo nos momentos em que houve uma recuperação mínima no índice, nota-se uma grande distân-cia em relação ao resultado de 2006.

É importante ressaltar que o resultado atual (82º lugar) coloca o Brasil em último lugar da América do Sul. Ou seja, por mais que o Brasil seja considerado uma potência econômica e política na região, está pior que os países vizinhos quando se trata de garan-tir a igualdade entre homens e mulheres.

Entendendo o Global Gender GapO Global Gender Gap é uma análise de da-

dos obtidos em outras pesquisas, que procu-ra identificar disparidade de gênero nos paí-ses. No relatório de 2006, foram analisados dados de 115 países. Esse número cresceu com o passar dos anos e desde 2009 são 134 os países estudados.

A pesquisa é feita por meio da análise da participação de homens e mulheres em qua-tro áreas temáticas consideradas fundamen-tais: participação econômica, educação, saú-de e poder político. Cada uma dessas áreas é estudada através de variáveis obtidas por

mulher

Brasil: campeão da América do Sul em desigualdade de gênero

Mesmo sendo considerado uma potência econômica e política na região, o país está pior que vizinhos quando se trata de garantir a igualdade entre homens e mulheres

meio de pesquisas de diversas instituições internacionais. O Global Gender Gap utiliza pesquisas feitas pela Organização Interna-cional do Trabalho, Fórum Econômico Mun-dial, Unesco, CIA, Organização Mundial de Saúde e União Interparlamentar.

Obviamente, não se trata de um sistema perfeito de análise. Muitas outras pesquisas e variáveis poderiam ser utilizadas, envol-vendo questões de raça, classe, juventude e maternidade/paternidade, e que certamen-te trariam um resultado mais matizado em relação à igualdade de gênero. Mas, a partir dos resultados atuais, já é possível, mesmo para um leigo, concluir que falta muito para o Brasil ter igualdade de gênero, e inclusive perceber onde estão alguns problemas gra-ves nessa questão.

SaúdeO Brasil sempre ocupou a primeira co-

locação no ranking do Global Gender Gap quando a área temática é a saúde. Porém, antes de nos alegrarmos com esse resultado, é importante saber que as variáveis para a área de saúde são bem simples: expectativa de vida e proporção de nascimentos entre homens e mulheres. Certamente, se fossem utilizadas outras variáveis como mortalida-de infantil ou expectativa de vida em relação à raça, e até mesmo o impacto de políticas para a redução da pobreza, os resultados se-riam bem diferentes.

É interessante observar que, ao longo dos anos, a expectativa de vida masculina vem se aproximando da feminina. Se antes a

expectativa era de 62 anos para mulheres e 57 para homens, atualmente a expectativa é de 66 anos para mulheres, e 62 para homens. Isso pode ser resultado direto das políticas públicas e do cuidado universal com a saúde feito pelo SUS.

EducaçãoEsta é outra área temática cujos critérios

são bem simples, mas reveladores: compara a alfabetização, escolaridade primária, secundá-ria e em nível superior, de homens e mulheres.

É importante lembrar que mulheres se-rem escolarizadas é uma situação bastante recente. No início do século XX, as mulheres eram em regra analfabetas, pois não se consi-derava necessário que aprendessem mais do que que limpar uma casa, costurar, cozinhar e cuidar das crianças – questões que não eram ensinadas nas escolas. Diversos fatores, in-clusive a pressão das feministas, fizeram com que as mulheres tivessem o direito de serem escolarizadas. O resultado é que as mulheres entraram no século XXI com mais anos de es-tudo e maior escolaridade que os homens. In-clusive isso fica nítido no Global Gender Gap: as mulheres brasileiras ultrapassaram os ho-mens nos estudos de terceiro grau.

Os índices brasileiros são altos, especial-mente em relação ao acesso à educação. No entanto, o Brasil vem caindo no ranking: es-tava em 32º lugar em 2009, e agora está em 66º. O motivo é a desproporção em relação à educação primária e secundária: nos últimos anos a proporção de meninas estudando é menor do que a de meninos.

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21dezembro de 2011

Essa disparidade gera problemas a longo prazo, pois a escolarização primária, além de ser requisito para iniciar a secundária, é fator importante para aumentar oportunida-des e romper o ciclo de pobreza (que atinge majoritariamente mulheres). Se as meninas não estão na escola primária, é importante identificar por que não estão estudando, e políticas públicas precisam ser colocadas em prática imediatamente para evitar que essa falha na formação educacional as impeça de estudar e gere desigualdade na vida adulta.

Participação econômicaOs critérios do Global Gender Gap para

análise econômica são a participação na for-ça de trabalho, a igualdade de salários para trabalho igual, a renda auferida, a proporção de legisladoras, cargos de gerência e de alto escalão, e a proporção de mulheres traba-lhando em cargos técnicos.

Em relação a esse ranking específico, o Brasil já esteve no 59º lugar, caiu para 75º em 2009, e agora encontra-se no 68º. Porém, esses índices variam para cada um dos cri-térios adotados. A igualdade em cargos téc-nicos está em 1º lugar no ranking, enquanto a igualdade de salários vem caindo ano após ano no ranking: em 2008 o Brasil estava em 100º lugar, e em 2011 encontra-se em 124º. Lembrando-se que, dentre os 134 países avaliados pelo relatório, o Brasil está nos úl-timos lugares quando se trata do pagamento de salário igual para trabalho igual.

Cargos de gerência, legisladoras e alto escalão ainda estão restritos a 36% das mu-lheres, enquanto que há igualdade nos cargos técnicos. Fica evidente, assim, o teto de vidro que impede as mulheres de ascender profis-sionalmente. Levando-se em conta que as mu-lheres têm mais escolaridade que os homens, é importante identificar por que há, ainda, essa disparidade no acesso a altos cargos.

A participação das mulheres na força de trabalho ainda é menor que a dos homens, seus rendimentos também são menores que os dos homens, e sua taxa de desemprego é maior do que a dos homens. Essa desigual-dade é bastante complicada quando lembra-mos que pelo menos um terço das famílias brasileiras é mantida economicamente ape-nas por mulheres. Se mulheres não têm aces-so ao mercado de trabalho formal, têm salá-rios 2/3 menores que os dos homens e taxa de desemprego maior, fica nítida a demanda por igualdade de gênero e políticas públicas específicas para modificar essa situação e evitar a perpetuação do ciclo de pobreza.

Apesar de esses dados indicarem que há

muito a ser feito para melhorar a situação econômica das mulheres brasileiras, há ao menos uma boa notícia: a desproporção em relação aos salários anuais de mulheres e ho-mens existe e é bastante acentuada, mas vem diminuindo. Está longe de haver paridade de salários, mas a diferença de mais de R$ 6 mil entre salários de homens e mulheres em 2006 atualmente está em cerca de R$ 5 mil. Nota-se ainda que tem havido o aumento na renda das mulheres, sem diminuição da renda masculina. Pode parecer pouco, mas, a cada vez que essa distância diminui, sem perda de salário para ambos os sexos, é um bom passo em direção à igualdade de gênero e à diminuição da pobreza.

Poder políticoOs critérios do Global Gender Gap para o

poder político são bem simples: percentual de mulheres no Parlamento, percentual de mulheres nos ministérios e número de anos nos quais houve uma mulher como chefe de Estado ou de governo.

Em todos esses critérios o Brasil está entre os piores do mundo, ocupando a 114ª posição no ranking político. Os dados do ranking estão atualizados apenas no que se refere a termos uma presidenta. Em relação a ministérios e poder legislativo os dados se re-ferem a 2010: eram apenas 9% de mulheres no Parlamento, e 7% de mulheres ocupando ministérios no governo Lula. Dilma Rousseff está no poder há um ano, com um ministé-rio composto por cerca de 25% de mulheres. Mas isso não é suficiente para melhorar o

quadro de participação política, pois a pre-sença feminina no Legislativo ainda é ínfima: segundo o Cfemea, as mulheres foram eleitas para 8,77% das cadeiras da Câmara dos De-putados e 13,28% do Senado Federal (eram 14,81% na legislatura anterior). Porém, o número de mulheres senadoras certamente é menor, tendo em vista que Ideli Salvatti e Gleisi Hoffmann, ao se se tornarem minis-tras do governo Dilma Rousseff, abriram es-paço para seus suplentes, que são homens. O alto grau de escolarização das mulheres e a ascensão cada vez maior no mercado de tra-balho não têm se refletido no poder político, que continua predominantemente masculi-no. É importante ampliar essa discussão, de forma a encontrar alternativas para empo-derar as mulheres, possibilitando seu acesso também ao poder político.

Por fim, o Global Gender Gap deixa bas-tante claro que é impossível haver igualdade de gênero sem que haja também igualdade política, para que as próprias mulheres deci-dam como as leis e políticas públicas devem solucionar os problemas de seu cotidiano, ao invés de terem essas situações mediadas por homens, que atualmente são os detentores do poder político.

O Brasil tem um bom índice educacional (com falhas), tem um bom índice de saúde (certamente com falhas). No entanto, o po-der econômico e especialmente o poder polí-tico ainda são inacessíveis para a maioria das mulheres. É necessário mudar isso para que a situação das mulheres melhore, proporcio-nando uma efetiva igualdade de gênero. F

O alto grau de escolarização das mulheres não têm se refletido no poder político

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22 dezembro de 2011

Os avatares do pensamento crítico, hoje por hoje1

Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano

1 O texto do presente Caderno é um fragmento de Grüner, Eduardo “Los avatares del pensamiento crítico, hoy por hoy” em Grüner, E. (Compilador) Nuestra América y el pensar crítico: fragmentos del pensamiento crítico de Latinoamérica y el Caribe. Bue-nos Aires, CLACSO, 2011. Disponível em www.biblioteca.clacso.edu.ar.

por eduArdo Grüner*

O que significa a expressão “pensamento crítico” nos dias de hoje? De que maneiras essa noção – que outrora identificáva-mos facilmente com nomes como o de Sartre, o dos membros da Escola de Frankfurt, o de Fanon ou o de certos pensadores

“comprometidos” da América Latina ou do Terceiro Mundo – transfor-mou-se (e alguns opinam que desapareceu) juntamente com as profun-das transformações (mas serão realmente tão profundas?) que o mun-do sofreu nas últimas décadas, desde a “queda do muro (de Berlim)” até a das Torres Gêmeas (e todas as suas consequências), passando pela reconversão tecnológico-financeira do capitalismo e da chamada “globalização”? E, mais exatamente, o que tudo isso quer dizer hoje e aqui? O que é um pensamento crítico propriamente latino-americano? De que maneira ele se assemelha a – e se diferencia de – outras for-mas “regionais” (europeias e inclusive “eurocêntricas”, por exemplo) do pensamento crítico? Não seremos os primeiros nem os últimos a fazer essas perguntas nem a esclarecer que no restante deste texto não se encontrarão respostas para elas, e sim mais perguntas sobre essas perguntas. E não porque nos agrade alguma ética – ou estética – da in-certeza, mas sim porque fazer uma reconsideração das desventuras do pensamento “crítico” hoje demanda uma disposição, antes de qualquer coisa, interrogativa, sem que isso nos impeça de modo algum de fazer certas afirmações, por vezes duras.

1 Vamos começar identificando o que temos de um lado, o “lado” da-quilo que em outra época teríamos chamado de o fundamento mate-rial. Está o que Istvan Mészàros chamou de processo sociometabólico do capital (e não somente do capitalismo, já que a lógica desse proces-so pode tanto anteceder como sobreviver aos regimes sociopolíticos que se identificam com ela): um processo que incluía os denominados “socialismos realmente existentes”, e que certamente vai muito além da economia, para colonizar a totalidade do “mundo da vida” até seus recônditos mais íntimos, sob a lógica matricial do fetichismo da merca-doria, essa verdadeira metafísica do capital (Mészàros, 2002).

Esse processo sociometabólico entrou em sua fase de crise termi-nal. E, como veremos, essa não é uma afirmação irresponsavelmen-te otimista, muito menos pessimista. É simplesmente a constatação de que aquele processo sociometabólico chegou ao seu limite. E isso ocorreu sem que ainda se tenha conseguido articular – tanto em ter-mos teóricos como de práxis social-histórica e político-cultural – um

modelo contra-hegemônico viável de substituição do laço social ar-ticulado nos últimos 500 anos sobre o fundamento da “religião da mercadoria”. Dessa religião que, embora de maneira “weberiana” se possa pensar que teve sua própria condição de emergência “espiri-tual” em algum (ou em todos, cada qual a sua maneira) dos grandes monoteísmos universais, é a religião que em toda a história teve um impacto mais profundo no funcionamento “objetivo”, inconsciente, de todas e de cada uma das práticas humanas. Esta é a radical diferen-ça específica entre a religião do capital e qualquer outra religião: o fato de que, como diria Foucault sobre o poder (e de que outra coisa estamos falando, senão do poder?) não se limita a impedir, a repri-mir, a enquadrar ou a dominar os sujeitos, mas os produz, de maneira análoga a como Horkheimer e Adorno, nas páginas célebres de A in-dústria cultural – um conceito que para eles tinha um alcance filosó-fico, inclusive ontológico, descomunal, assim como o de mais valia ou fetichismo tinha para Marx – em que teorizam os modos pelos quais a racionalidade instrumental não apenas cria “objetos”, mas sim sujei-tos para esses objetos (Horkheimer e Adorno, 1997).

É uma religião, portanto, para a qual não há (nem pode haver, por-que sua lógica intrínseca nem sequer contempla essa possibilidade) ateísmos, agnosticismos, heresias, debates de seita: todas essas coi-sas estão, por definição, dentro do templo, porque não se trata nela da fé ou da crença – ou da falta delas –, mas disso que agora é cha-mado de biopoder: sucintamente, a própria organização da vida (e da morte) humana sob o sociometabolismo do capital, e para a qual se diz que “não há alternativa” (é possível pedir maior fundamenta-lismo do que este?). E é uma religião que não apela mais sequer à persuasão ou ao consenso ideologicamente construído, porque só lhe interessam as condutas reprodutivas, “proativas”, do sociometabolis-mo – como se tivesse seguido perversamente aquela lição irônica de Pascal, que recomendava nunca tentar persuadir um agnóstico, mas simplesmente obrigá-lo a entrar na igreja, ficar de pé diante do altar e rezar, porque então “logo irá crer” (e, de fato, que outro remédio há para o pobre agnóstico? Se ele já chegou até ali, será impossível ser como antes. Como dissera Borges: “Não abra essa porta, porque você já está dentro”). Uma religião que, portanto, não reclama sequer obediência, já que não contempla outra opção: atuar, viver, dentro do sociometabolismo do capital, já é obedecer.

[…]

2 Do outro lado, a reflexão filosófico-cultural das últimas duas dé-cadas tem abandonado progressivamente o terreno do Político, esse terreno no qual ainda podia se esperar a criação de alguma alternati-va ao capital (que já não era a dos “socialismos reais”, cujo maior mal

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23dezembro de 2011

entendido, por não estarem atentos ou serem impotentes para fazer essa distinção, foi acreditar que sair do capitalismo era suficiente para conseguir escapar da “jaula de ferro” do capital): terreno absoluta-mente imprescindível para a própria sobrevivência da humanidade, se é que se aceita a premissa de que o capital não é “reformável”. Não estamos dizendo simplesmente que Marx tenha sido abandonado: diga-se desde já que esse “abandono” nos parece lamentável, apesar das muitas “correções” que o próprio Marx não somente necessitaria, mas que o mesmo demandaria (outra coisa são nossos “marxismos” mais ou menos oficiais, que acreditam, ainda no fim de suas múltiplas e insistentes crises, estar ainda em plena posse de um conjunto de verdades acabadas: eles são, portanto e por definição, incorrigíveis). Finalmente, ainda não temos – bom seria se tivéssemos – uma teoria crítica do capital que possa pelo menos competir com a de Marx pelo posto do que Sartre chamava de “o horizonte insuperável do nosso tempo”. E isso não é algo do qual devamos nos orgulhar.

[…]E sabe-se que o pensamento, mesmo o mais pretensamente “crí-

tico”, entra em pânico diante da margem do absolutamente real, que não parece mais reconhecer a existência de nenhuma possível media-ção. Como afirma León Rozitchner, quando o mundo não sabe o que fazer, a filosofia não sabe o que pensar. Essa é uma frase que recupe-ra, de modo sucinto e exato, a diferença decisiva introduzida pelos dois únicos pensadores (seria preciso dizer: “pensadores-atores”) da modernidade europeia, Marx e Freud, que – sejam quaisquer que te-nham sido seus “erros” – nunca conceberam sequer a possibilidade, não digamos mais de pertinência, de uma teoria “pura”: toda teoria, para eles, é, saiba ou não seu autor, uma teoria da prática – da prática, para completar, social: como indica claramente Sartre, a filosofia con-tém sempre um “momento” político, no sentido mais amplo e mais estrito de uma tentativa de organização, no plano do discurso e do pensamento, do aparente caos das forças sociais que estruturam o real (Sartre, 1964).

Aqui nos ocuparemos, principalmente, daquilo que se costuma chamar de “pensamento”: de sua especificidade frequentemente irre-dutível de maneira especular a mero “reflexo” da práxis social; inclusi-ve das maneiras pelas quais por vezes o pensamento pode antecipar, ou outras vezes resultar em um excesso ou um “suplemento” com re-lação às práticas sociais. Mas sempre será necessário levar em conta a relação entre ambos, uma relação em muitos momentos desconhecida e ainda incognoscível, essa relação que dá sentido etimológico à ca-nônica expressão de “autonomia relativa” (em outras palavras, auto-nomia em relação a) do pensamento e do discurso: essa relação, nós sabemos, também pode ser de ausência ou de “forclusão”; mas está ali, deslocada, “metonimizada” em algum imaginário por meio do qual, cedo ou tarde, o real “retorna do reprimido”. Para retornar, portanto, a enorme dificuldade do pensamento chamado “crítico”, hoje parece que esse retorno está acontecendo em uma velocidade tão vertiginosa e dramática que, de fato, “o mundo não sabe o que fazer”, e “a filosofia não sabe o que pensar”. Fato que também devemos ao capital, desde o princípio. O regime, a lógica, a “ontologia” própria do capital é por excelência despolitizadora: desde pelo menos Hobbes, o triunfo da “sociedade civil”, ou seja, da “economia política”, é o exílio do políti-co – não dizemos do Estado que, como Marx advertiu perfeitamente, é a funcionalidade autônoma da economia política. A modernidade, essa lógica cultural do capitalismo antecipado, gira sobre a redução do político à política, ou seja, à técnica, ou seja, à economia política.

Em Hobbes, pelo menos essa operação ainda constituía um problema, para o qual deveria se encontrar uma solução. A partir de Locke, fica eliminada a pergunta; a “sociedade” se dá por feita (a astúcia do “du-plo contrato” permite que sua constituição já não seja problemática), e a política é pouco mais do que seu apêndice administrativo.

Naturalmente não temos a pretensão soberba de sermos os úni-cos a terem chamado atenção para essa dificuldade. De fato são mui-tos os que – principalmente e com toda lógica nos círculos intelec-tuais “periféricos” – manifestam sua inquietação, seu desassossego ou sua angústia por essa impotência da teoria crítica. Talvez – é ape-nas uma ocorrência súbita – o problema seja exatamente o inverso: é uma onipotência herdada (“iluminista”, para chamá-la de alguma maneira) do pensamento dos “intelectuais” que agora, por contraste, faz parecer impotência o que talvez seja – e não é que seja pouca coisa – uma (como chamá-la?) deslocação. Nesse sentido, queremos dizer que o sociometabolismo do capital engoliu a própria “máquina de pensar” produtora de teoria crítica. Não estamos nos referindo aos “traidores”, aos “vendidos”, aos “conversos” ou aos “arrependidos” que sonham – e normalmente são frustrados em suas aspirações – em colocar o capital do seu lado (e não é essa a mais irrisória e patéti-ca das soberbas? Como se o capital precisasse deles ou se importasse minimamente com seu pensamento! Já não estamos em tempos dos “ideólogos”, e o capital não mais requer racionalizações nem justifi-cativas que, na situação atual, são completamente inverossímeis: o capital simplesmente segue em frente; e é exatamente por isso que a crítica mais importante hoje é a que possamos fazer entre nós, os que dizemos estar “do mesmo lado”): esses idiotas inúteis sempre existi-rão, e não têm nenhuma importância.

[…]De qualquer modo, o que é esse O Político, que deveria ser re-

pensado? Como sequer começar a defini-lo? Digamos sobre ele pelo menos isto: implica, no mínimo, o duplo esforço de, em primeiro lu-gar, alterar os modos de pensamento do sociometabolismo do capital para fazer des-naturalizáveis suas evidências: “não há alternativa” deve se converter em uma verdade apenas para os personificadores do capital; e em segundo lugar, portanto, é preciso imaginar o fun-cionamento real das possíveis alternativas, dessa retomada do “laço social” sobre outro metabolismo. Essa última é a tarefa mais difícil: para aspirar algum nível de eficácia, tal imaginário requer um diálogo permanente – e nesse diálogo é necessária uma também permanente redefinição – com as forças sociais capazes de colocá-lo em prática; e, como dizíamos, o nível de deleite identificante das massas com o capital (que não é alterado substantivamente pelas muitas e heroicas formas de resistência aos “erros e excessos” da exploração) é estra-nhamente poderoso: nenhum “sistema” anterior havia conseguido se introduzir de maneira tão indelével na gramática libidinal dos sujei-tos sociais, de modo que todos, hoje, falamos e pensamos na língua do capital. E como se sabe, não é um trabalho simples inventar uma nova língua.

Para completar, não temos, por assim dizer, antecedentes sintá-ticos, um “código” sobre o qual podemos minimamente nos apoiar. Acreditamos que uma vez o tivemos – com todas as críticas e a reser-vas correspondentes a uma vontade extradogmática – nisso que se chamava, muito vagamente, de “revolução”. Mas as revoluções real-mente existentes, as que realmente foram feitas (repito, com todo o heroísmo inegável dos casos particulares-históricos), da maneira que foi possível e aquém de nossas ilusões purificadoras, nunca consegui-

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24 dezembro de 2011

Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano

Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-Americano constituem uma iniciativa do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) para a divulgação de alguns dos principais autores do pensamento social crítico da América Latina e do Caribe. São publicados mensalmente nos jornais La Jornada do México e Página 12 da Argentina e nos Le Monde Diplomatique da Bolívia, Chile, Colômbia, Espanha, Peru e Venezuela. No Brasil, os Cadernos do Pensamento Crítico são publicados em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) na Revista Fórum.

CLACSO é uma rede de 300 instituições, que realizam atividades de pesquisa, docência e formação no campo das ciências sociais em 28 países (www.clacso.org).FLACSO é um organismo internacional, intergovernamental, autônomo, fundado em 1957, pela Unesco, que atua hoje 17 Estados Latino-Americanos (www.flacso.org.br).

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ram gerar essa nova língua (com exceção, talvez, como ocorreu sob o stalinismo, sob o regime entre medíocre e sinistro da NeoLíngua orwelliana): porque identificaram o político com a política, porque acreditaram que bastava, por exemplo, mudar o regime jurídico de propriedade privada pelo de propriedade estatal, ficando enredadas no sociometabolismo do capital.

Não perceberam que o “Estado moderno” – que não pode ser con-siderado como mero e “superestrutural” instrumento –, sob qualquer de suas formas múltiplas e maleáveis, é uma parte constitutiva e ín-tima – e não uma “superestrutura” em relação de exterioridade – do capital. Mais além do capitalismo não significa mais além do capital: nos estados burocráticos-autoritários dos “socialismos reais” as “es-truturas de comando” deste último permaneceram inalteradas em sua essência e, pior ainda, como consequência do isolamento, sem opções para seu necessário e explícito autoritarismo, também às vezes, como sabemos, precipitado no Terror de Estado: “Stalin” (as aspas dão a esse nome seu valor emblemático) foi uma função do capital. Como o foi, sem dúvida, “Hitler”. Mas com essa diferença qualitativa – não nos deixaremos encurralar na teoria dos dois demônios do totalitarismo: há um único totalitarismo, e é o do capital; de Marx, não era evidente que se deduzisse “Stalin”; de “Hitler”, só poderia sair Hitler. “Stalin”, portanto, é a máxima astúcia da razão do capital. De qualquer manei-ra, é preciso ser sincero: hoje em dia, ninguém acredita seriamente na “revolução”; pelo menos no sentido “clássico-moderno” que teve esse conceito a partir de sua invenção pela Revolução Francesa. Se a social-democracia a abandonou há um longo século, certa micro-par-tidocracia de esquerda “revolucionária” – que continua chamando a si mesma assim por inércia: na verdade é um tipo de marginalismo luddi-ta que deixou há muito tempo de ler Marx, Lênin ou Trotsky; não que tenha deixado de ler a “realidade”, porque mantém a palavra na ponta da língua, mas a modo de desagrado significante flutuante em busca de seu significado. A classe operária internacional – a que resta – há muito tem justificado a irônica expressão adorniana de um “marxismo sem proletariado”: está ocupada demais em sobreviver de alguma ma-neira, ou sufocada demais pelo peso do que outrora chamávamos de “burocracia sindical”, ou farta demais (e com razão) de ser apenas um monumento de mármore erguido em memória do sujeito histórico. Os “novos sujeitos sociais” (muitos deles nada resplandecentes em seu em si, mas descobertos nas últimas décadas como para si) – as mulhe-res, os sujeitos “étnicos”, os “povos originários”, os “verdes”, os grevis-tas, os desempregados, os “globalofóbicos”, os fórum-social-mundialis-tas, os gays e lésbicas, os transexuais, os “intervencionistas urbanos”, os squatters e até os hackers e os “consumidores” – podem ser, em muitos casos, muito e “bem-vindamente” radicais, decididamente simpáticos e expressivos da diversidade e multiplicidade sociocultu-ral, assim como da crise de uma política (ou políticas) impotente(s) para representá-los ou de multidões inclassificáveis e amorfamente inarticuláveis etc. Inclusive, como os indígenas – é o caso recente da Bolívia e parcialmente do Equador – podem se aproximar da casa de governo. Mas sejamos realistas e vejamos o possível: nenhum deles, nem uma hipotética articulação unificadora entre todos, questiona de maneira decididamente revolucionária o sociometabolismo do capi-tal. Aqui é preciso se render à evidência, mesmo a mais empiricamen-te “científica”: em um sentido estritamente “marxiano”, se a mola fun-damental do capitalismo é a fórmula mais valia/exploração/alienação do trabalho, a “revolução” na qual estivemos pensando será feita pelo proletariado, ou é melhor pensarmos em outra coisa. Logicamente,

essa “revolução” na qual estivemos pensando não tem por que ser a única possível. E não está escrito que esses “novos-velhos” sujeitos – muito em particular indígenas e afro-americanos, que ocupam esse singular lugar sem lugar, que luta hoje para recuperar sua historicida-de diferencial canibalizada pela história dos vencedores – não possam conceber e construir novas formas de articulação com o proletariado. Mas os mecanismos, as formas de práxis, os próprios objetivos e a te-oria dessa outra “revolução” terão de ser reconcebidos.

Portanto, é preciso inventar essa “nova língua” sem código pré-vio (não é tarefa de todo impossível: certas formas da arte o fizeram muitas vezes; o problema é que, desde o Renascimento até hoje, essas formas ficaram sempre ocultas no sociometabolismo do capital: ago-ra é preciso ir buscá-las no Museu). A “revolução”, nos diversos senti-dos nos quais a (mal) entendemos, já não é o significante que poderá nos inspirar. Talvez, e com alguma razão, não queiramos – como havia proposto Freud – renunciar à palavra, sabendo que esse é o primeiro passo em direção à renúncia da coisa. Mas, então, é preciso voltar a pensar a “coisa”. É outra maneira de dizer: voltar a pensar O Político.

Sejamos impertinentes: não é o que está sendo feito. Pelo menos não é o que estamos fazendo aqueles de nós que passamos por “inte-lectuais críticos” (já deveríamos estar cansados de saber: não basta anunciar-se como “crítico” para que a palavra tenha efeito). Os que continuam pensando naquela “revolução”, infelizmente não contam mais: não se trata apenas de não serem mais empecilho algum para o capital, mas de distraírem aqueles que querem sê-lo da verdadeira tarefa; aqueles que queiram pensar à frente sobre esses hipotéticos “empecilhos”. […]

* Sociólogo, ensaísta, crítico cultural. Professor de Antropologia da Arte (Faculdade de Filosofi a e Letras, UBA) e de Teoria Política II (Faculdade de

Ciências Sociais, UBA). Ex-diretor e atual membro do Comitê Acadêmico do Instituto de Estudos de América Latina e do Caribe (UBA).

Como citar este documento: Grüner, Eduardo. “Los avatares del pensa-miento crítico, hoy por hoy” em Cuadernos del Pensamiento Crítico Latino-americano Nº 47. CLACSO, outubro de 2011. Publicado em La Jornada do México, Página 12 da Argentina e Le Monde Diplomatique da Bolívia, do Chile e da Espanha.

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28 dezembro de 2011

texto e fotoS por pedro venCeSlAu

Entre a noite do último dia 11 de janeiro e a manhã do dia seguinte, um temporal de proporções épicas atingiu a região serrana do estado do Rio de Janeiro. Em 24 horas,

choveu o previsto para o mês inteiro. Nos dias seguintes, as imagens da catástrofe e o número de mortos não deixaram dúvidas: aquela foi a maior tragédia climática da his-tória do Brasil. Entre deslizamentos de ter-ra e enchentes, morreram oficialmente 800 pessoas. Outras 400 estão desaparecidas e pelo menos 30 mil sobreviventes ficaram desalojados ou desabrigados. Segundo mo-radores, o número de mortos é muito maior, uma vez que, em meio ao caos, muita gente simplesmente abandonou os corpos de fami-liares e não registrou ocorrência.

Semanas depois, doenças como leptos-pirose tomaram de assalto os moradores. Diante do cenário de terra arrasada, repre-sentantes dos governos federal e estadual se mobilizaram e prometeram investir o que fosse preciso para reerguer as cidades de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, Su-midouro, São José do Vale do Rio Preto, Bom Jardim e Areal. Quase um ano depois, às vés-peras de outro verão chuvoso, Fórum visitou a região para saber o que feito e como estão vivendo os sobreviventes da tragédia.

“Vocês estão medindo minha casa pela metade”

O caminho até o ponto final do Vale do Cuiabá, em Itaipava, distrito de Petrópolis, é longo. São pelo menos 30 minutos de ônibus entre o centro petropolitano e Itaipava, onde fica a fábrica de cerveja de mesmo nome, e outros 40 até a região que foi devastada pe-las chuvas de janeiro. O lugar é famoso por abrigar mansões luxuosas de políticos e ca-pitães da indústria fluminense, haras e pou-sadas chiques.

Moradores contam que, semanas depois

urbano

Os esquecidos da Região Serrana

Moradores se desesperam ao menor sinal de chuva, desabrigados sofrem com desinformação, obras andam em ritmo lento e corrupção draga recursos da reconstrução. Quase um ano depois, Fórum conta histórias desoladoras da região que protagonizou a pior tragédia climática brasileira

da catástrofe, donos de haras ofereceram pol-pudas recompensas para quem encontrasse pedaços dos cavalos perdidos entre os es-combros. Só assim eles poderiam receber os seguros pagos pelos animais. Entre as muitas mortes que ocorreram ali, as que mais como-veram a opinião pública foram oito familiares do economista Erik Conolly de Carvalho, exe-cutivo do Icatu. Ele perdeu três filhos, os pais, a irmã, o cunhado e o sobrinho. A casa em que estava o grupo pertencia a Ângela Gouvêa Vieira, cunhada de Eduardo Gouvêa Vieira,

presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Moradora da região desde que nasceu, há 67 anos, a aposentada Edilma Vieira desenha no ar um mapa imagi-nário do Vale do Cuiabá e mostra onde estava a casa com a família Conolly. “Só sei que era gente importante. Quando os repórteres che-gavam aqui, iam direto para lá”.

Edilma, que escapou da morte por um triz, depois de fugir por uma janela do se-gundo andar, perdeu 22 parentes naquela fatídica noite de janeiro. “As seis casas da

O cenário em muitas cidades da região é pontuado por casas condenadas e terrenos baldios onde antes havia prédios e casas

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nossa família estavam nesse terreno, que foi uma herança”, diz a aposentada, apontando para um descampado coberto de terra. Ela conversa comigo enquanto um grupo de funcionários da Defesa Civil e da secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro ins-peciona casas condenadas e terrenos de mo-radores que pleiteiam indenização. Em um amplo terreno ao lado das terras da família de dona Edilma, o caseiro José Fonseca bate boca com os representantes do governo, que medem com fita métrica o local onde ficava sua casa. “Vocês estão medindo minha casa pela metade. Ela ia até ali, na beira do rio...”. Ele então abre uma bolsa, tira um álbum de fotos e passa a mostrar imagens da constru-ção que demorou vinte anos para terminar. “Se vocês marcarem errado aí, vou receber menos de indenização. Minha casa estava acabada, prontinha”.

José está inconformado porque funcioná-rios do governo demoliram o que sobrou da casa sem avisá-lo. “Tinha um monte de telha, maçanetas e outros materiais que eu podia ter vendido”. Assim como todos os presentes na hora da inspeção, Fonseca não tem ideia de quando, ou mesmo se vai receber uma casa nova ou indenização do governo, como foi prometido com pompa e circunstância pelo governador Sérgio Cabral no calor dos acontecimentos. Apesar de receberam um aluguel social do governo de até R$ 500, os moradores reclamam que nenhuma das casas prometidas há quase um ano foi construída.

A maneira como agem os representantes do governo também é motivo de revolta. As casas que sobreviveram à tragédia, mas são consideradas condenadas por técnicos, são pintadas com um “X” vermelho. Perto dali, no leito do Rio Santo Antônio, uma cena inusita-da causou revolta e gerou polêmica em Petró-polis. Em um terreno que fora devastado pe-las chuvas, uma grande casa com piscina está sendo construída com autorização do Institu-to Estadual do Ambiente (Inea). “Tragédias por causa da chuva sempre aconteceram em Petrópolis, mas nunca chamaram tanta aten-ção da opinião pública como essa. A diferença é que, agora, as casas da classe média e dos ricos foram atingidas”, sustenta o ex-vereador petropolitano Marcos Novaes (PV), que dis-putou a prefeitura da cidade na última eleição.

Solução é sair de casaDez meses depois da tragédia, qualquer

sinal de chuva causa pânico nos moradores de Nova Friburgo. Quando a água começa a cair um pouco mais forte, mães correm para buscar os filhos nas escolas, comerciantes

fecham as portas e o medo se instala no rosto das pessoas. Em Friburgo, os sinais das chuvas de janeiro ainda são visíveis no centro da cidade, que é cortada por um rio. Na Praça do Suspiro, o teleférico, que era a grande atração turística do local, está do mesmo jeito que estava em 12 janeiro. As cadeiras ainda estão lá, como em um trem fantasma abandonado.

Em toda cidade, placas oficiais anunciam obras que nunca foram feitas. Chove muito enquanto caminho pelo bairro de Lagoinha. No trajeto, o cenário é pontuado por casas condenadas e terrenos baldios onde antes havia prédios e casas. Tirando a lama que foi removida do meio da rua, pouca coisa mudou desde a tragédia. Um morador explica que o rio que corta o bairro e passa perigosamente perto de sua casa não existia. “Surgiu depois da chuva. Nunca vieram consertar”.

Mas é em Córrego Dantas que se observa o cenário mais desolador: lama por todo lado, esgoto a céu aberto, entulho, casas condena-das... “Fico muito assustado quando chove porque meu bairro pelo rio Conego. Até hoje não fizeram absolutamente nada no meu bairro. Ne-nhum tijolo foi colocado”, reclama o recepcionista Wellington Serafim, que vive há dez anos na cida-de. “Nos dias depois da tragédia achei que a re-construção seria rápida. Vieram fuzileiros, monta-ram hospitais de campa-nha e tudo mais. Mas até hoje não fizeram nenhu-ma casa popular. Se vier uma chuva parecida, vai acontecer tudo de novo ou pior. A estrutura está toda abalada”, conclui.

De fato, poucas in-tervenções urbanas foram realizadas no pe-ríodo, e o ritmo das obras em andamento é lento. Técnicos são unânimes em dizer que não há mais tempo de fazer nada além de preparar um esquema de retirada das famí-lias de áreas de risco em caso de chuva forte. “As primeiras habitações só ficarão prontas no verão de 2013. Fizemos análises de inves-timentos e concluímos que não foi investido quase nada em Defesa Civil e contenção de encostas”, afirma o deputado estadual Luiz Paulo Correa da Rocha (PSDB), presidente da CPI da Região Serrana. Ele aponta para o caos político da região, onde dois prefeitos, o

de Nova Friburgo e o de Teresópolis, foram cassados, entre outros motivos, por desvios de verbas emergenciais. Mas pontua que falta organização ao governo estadual. “A CPI não achou informações centralizadas sobre o que está sendo feito. As demandas caíram na roti-na das secretárias. O ideal era que a operação toda ficasse em um centro”.

Um secretário municipal da Região Ser-rana que cuida da interface com o governo estadual nos projetos de reconstrução con-versou longamente com a reportagem, mas pediu que seu nome fosse preservado. Ele concorda com a avaliação do presidente da

José Fonseca: inconformado porque funcionários do governo demoliram o que sobrou da casa sem avisá-lo

Dez meses depois da tragédia, qualquer sinal de chuva causa pânico nos moradores de Nova

Friburgo. Quando a água começa a cair um pouco mais forte, mães correm para buscar os filhos nas

escolas, comerciantes fecham as portas e o medo se instala no

rosto das pessoas

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30 dezembro de 2011

CPI e vai além. “Além de o processo estar di-vidido em muitas secretarias, o estado não divide responsabilidades com as prefeituras. O governador não abre mão do poder polí-tico das obras. Ocorre que a máquina do es-tado é paquidérmica”. Ele cita um exemplo. “Colocaram duas dragas e três caminhões para fazer a dragagem em um trecho de rio, mas mandaram despejar a terra a 30 qui-lômetros de distância. Resultado: os cami-nhões são enchidos rapidamente e demo-ram horas para ir, despejar a terra e voltar. As dragas ficam paradas quase o dia inteiro. O cara que tomou essa decisão está no Rio de Janeiro e não conhece a região”. Ele diz, ainda, que ficará feliz se o estado conseguir construir 380 das 1,5 mil casas prometidas na sua cidade até 2013. Detalhe: todos os prefeitos da Região Serrana são aliados do governador Sérgio Cabral.

O governo se defende dizendo que inves-tiu R$ 678 milhões no programa de recupe-ração da Região Serrana em um pacote que inclui a construção de 6.840 residências, 69 pontes e a contenção de 37 encostas. Em en-trevista para o site do Jornal do Brasil, reali-zada em agosto, o subsecretário de Obras do Rio de Janeiro justificou a demora das obras dizendo que “subimos e descemos duas ve-zes o Everest da burocracia”. Já o Instituto Estadual de Meio Ambiente, responsável por obras de barragens e macrodrenagem que somam R$ 220 milhões, alega que a Cai-xa Econômica exigiu um projeto detalhado para liberar o recurso. “O governador Sérgio Cabral sabe que é mais caro responder do que prevenir. Há dez anos, metade dos mu-nicípios do Rio tinha Defesa Civil. Hoje todas as 92 cidades têm”, afirma o coronel Sérgio Simões, secretário de Defesa Civil do Rio Ja-neiro. Ele conta que o governo equipou as ci-dades da Região Serrana com um sistema de alarme sonoro com mensagens de voz pré-gravadas que serão acionadas em caso de chuva forte. “Investimos R$ 4 milhões nes-se equipamento. O governo também está se instrumentalizando. Compramos uma pick up Mitsubishi 4X4 para cada Defesa Civil mu-nicipal, um carro anfíbio e novas aeronaves.”

Pelo raloAlém da lentidão do governo estadual, as

cidades da Região Serrana sofrem com o caos político local. Grande parte dos recursos en-viados pelo governo federal para ajudar na reconstrução das cidades escorreu pelo ralo da mais mesquinha corrupção. Relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Con-troladoria Geral da União apontaram irregu-

laridades em contratos sem licitação assina-dos pelas prefeituras e governo do estado.

Em Nova Friburgo, nada menos que R$ 10 milhões vindos de Brasília evapora-ram. O Ministério Público Federal instaurou dez inquéritos civis públicos na cidade. Em Teresópolis, o MP revelou um esquema entre empreiteiras e autoridades, que cobrava até 50% de propina na execução de obras. Em Nova Friburgo, o TCU mostrou que a presta-ção de contas enviada pela prefeitura estava cheio de buracos. Nenhuma das prefeituras das cidades atingidas conseguiu fazer uma prestação de contas decente. O Ministério da Integração Nacional enviou R$ 30 milhões para serem divididos entre os municípios.

No dia 2 novembro, os vereadores de Teresópolis cassaram o prefeito Jorge Mario Sedlacek, que foi eleito pelo PT, mas acabou

expulso da legenda. Seu vice, Roberto Pinto, morreu de infarte dois dias depois de assu-mir o cargo. Quem está no poder hoje é o presidente da Câmara dos Vereadores, Arlei de Oliveira, do PMDB. Em Friburgo, o prefeito Demerval Barboza Neto, do PTdoB, e seu se-cretário municipal de governo, José Ricardo Carvalho de Lima, foram afastados do cargo por determinação da Justiça Federal. Eles são acusados de desvios de verbas, superfatura-mento e fraudes na contratação de empresas. Assim como em Teresópolis, eles se aprovei-taram do caráter emergencial das obras.

Antes de deixar a Região Serrana, assisti a uma reunião da CPI municipal das chuvas na Câmara dos Vereadores de Nova Friburgo. Apenas sete pessoas, entre elas quatro jorna-listas locais, acompanhavam o depoimento do secretário José Ricardo Carvalho. Senta-do ao lado de seu advogado, ele tentava con-vencer os vereadores da mesa diretora que o dinheiro desapareceu por causa do caos da chuva. “As circunstâncias eram muito precá-rias. Havia dificuldade na oferta de serviço. Não era todo mundo que tinha confiança de receber ou queria arriscar seus equipamen-tos. Não havia internet. Quando a equipe di-zia que a empresa era idônea, eu assinava”.

À medida que as perguntas se torna-ram mais específicas e passaram a citar nominalmente contratos, valores e erros de procedimento, o advogado passou a bater boca com os depoentes. Formou-se então um grande teatro. Enquanto isso, assesso-res observavam pela janela a chuva que caía cada vez mais forte... F

Além da lentidão do governo estadual, as cidades da Região Serrana sofrem com o caos político local

Em Nova Friburgo, nada menos que R$ 10 milhões vindos de

Brasília evaporaram. O Ministé-rio Público Federal instaurou dez inquéritos civis públicos na cida-

de. Em Teresópolis, o MP revelou um esquema entre empreiteiras e autoridades, que cobrava até 50%

de propina na execução de obras

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31dezembro de 2011

Twitter: @vleonelE-mail: [email protected]

–Boa tarde, eu poderia falar com a dona Maria?– É ela. É a respeito de quê?

– Eu sou da Óbvio.com e gostaria de estar oferecendo à senhora um upgrade para 10 mega sem custo algum.– Vocês vão dobrar minha velocidade na in-ternet sem nenhum custo?– Exatamente.– Olha, não preciso de mais velocidade, será que vocês poderiam manter os 5 mega e di-minuir o custo do meu plano?– Olha, dona Maria... Não existe essa possibi-lidade de diminuição de custos. Ou a senhora mantém o plano de 5 mega ou aceita nossa promoção de 10 mega sem custos adicionais.– Isso é completamente ilógico, mas, enfim, autorizo o upgrade.– Pois não, dona Maria. Eu vou estar passan-do a ligação para o setor de agendamento.– Agendamento? O upgrade não é automático?

– Infelizmente não temos como fazer isso. Mas a senhora pode estar ligando direta-mente na Instalcom, que presta serviços de instalação para a Óbvio.com para ver se eles agendam um horário mais específico.– Ok, obrigada, vou tentar lá.

– Alô, é da Instalcom?– Sim, em que posso ajudar?– Eu gostaria de agendar um técnico para instalar meu novo modem da Óbvio.com– A senhora está com problema no aparelho?– Não. Eu preciso trocá-lo para fazer o upgra-de para 10 mega.– Ah! A senhora já tem cabo ótico instalado?– Não, por quê?– É que esse novo modem com velocidade de 10 mega só com fibra ótica, minha senhora.– E vocês não instalam a fibra?– Não, isso tem que ver com o Passa Fio, em-presa que instala a fibra ótica.– E como é que eu falo com o Passa Fio?– No caso a senhora terá que estar ligando de volta para a Obvio.com.

– Alô, é da Óbvio.com?– Sim, em que podemos ajudá-la?– Eu gostaria de solicitar uma instalação da fibra ótica para o novo modem de 10 mega.– Pois não, vou transferir a senhora para o Passa Fio. Um minutinho...(após 5 minutos de música de espera) – Dona Maria?– Sim?– Aqui é do Passa Fio. O conduíte da senhora tem tamanho suficiente para que passemos a fibra ótica?– Como é que eu vou saber?– É só medir o diâmetro do orifício.– O tamanho do orifício... Olha, quer saber? Can-sei disso tudo. Não quero upgrade, fibra ótica, modem novo, passa fio... Não quero mais nada!– Como?– Esquece, você não tem culpa, eu não tenho culpa. Essa privataria, essa burocracia é que acaba com a gente. É muito conduíte para pouco orifício. F

– Não senhora, teremos que estar trocando seu modem. Um técnico irá até sua residência.– Ok.– Só um minutinho...(depois de 3 minutos musicais de espera te-lefônica)– Dona Maria?– Sim, sou eu.– Eu sou da Agendar, empresa que presta serviços de agendamento para a Óbvio.com. Para que dia a senhora quer o técnico?– O mais rápido possível. Amanhã?– Um minutinho, vou estar verificando a disponibilidade... (depois de mais 3 minutos de música de espera)– Dona Maria, para amanhã não temos, pode ser na quarta-feira?– Sim, a que horas?– Entre 9 da manhã e 5 da tarde.– Mas não dá pra marcar uma hora mais específica?

Thiago baLbi

Claro que é Óbvio

autorizo o upgrade.– Pois não, dona Maria. Eu vou estar passan-do a ligação para o setor de agendamento.– Agendamento? O upgrade não é automático?upgrade não é automático?upgrade

– Sim, a que horas?– Entre 9 da manhã e 5 da tarde.– Mas não dá pra marcar uma hora mais específica?

Thiago baLbi

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32 dezembro de 2011

texto e fotoS por pedro venCeSlAu

José Valdir Correia Cavalcanti levou um susto quando voltou para casa no Vidigal um dia depois da ocupa-ção do morro pelas forças de segu-rança do governo do Rio de Janeiro,

em meados de novembro. Quatorze meses depois de ser expulso de lá por soldados do traficante Antonio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, e ir morar em Jacarepaguá, ele encon-trou outra mobília e até uma televisão nova na sala. Localizada no “Arvrão”, o ponto mais alto do morro e de onde se tem uma vista deslumbrante da cidade, a casa serviu de abrigo para “Cabeção”, um dos gerentes do tráfico, no período em que José esteve fora.

“Esse lugar é estratégico. Se o Nem não ti-vesse sido preso, aqui seria o quartel-general contra a polícia”, contou o produtor de uma rede de TV que preparava o lugar para uma gravação. Mas com a notícia da queda do jo-vem “czar” do Vidigal e da Rocinha, a cúpula da organização ADA (Amigos dos Amigos) prefe-riu fugir e o proprietário sentiu-se seguro para

A vida depoisda prisão de Nem

Fórum vai até o Vidigal e mostra um retrato do cenário local, que tenta se

adaptar a uma nova realidade e ainda espera por um futuro melhor

pegar de volta o que era seu. Na comunidade do Vidigal, José Cavalcanti é mais conhecido como “Zé do Rádio”. Ele ficou famoso entre os mora-dores há dez anos depois de ser eleito locutor de uma rádio comunitária que presta serviços à população. Em 2008, tomou coragem e apro-veitou seu prestígio para marcar uma audiência com Nem. “Fui recebido pela mulher dele, que me levou até a sala da casa e me serviu um suco. Fiquei impressionado com o luxo do lugar. O Nem chegou e foi atencioso. Então eu disse que há 20 anos não havia eleições para a Associação dos Moradores da Vila do Vidigal (AMVV) e que eu gostaria de organizar o processo”, conta.

Bem articulado, Zé argumentou que a elei-ção passaria uma mensagem para a opinião pública e a população: existe democracia no Vidigal. Deu certo. Poucos meses depois, Zé do Rádio derrotaria outros nove candidatos e seria eleito o legítimo presidente da Associação dos Moradores do Vidigal. “No começo, o Nem aten-dia muitos pedidos meus. Moradores vinham até a Associação pedir ajuda para evitar a morte de parentes condenados pelo tráfico. Eu levava a demanda e dava certo”.

Outra função de Zé do Rádio era servir como interlocutor entre o poder de fato (o tráfico) e o poder público. Em todas as favelas do Rio dominadas pelo crime or-ganizado, os dirigentes das associações de moradores são os responsáveis pela manutenção do acordo tácito que garan-te a “paz” nos territórios governados pelo poder paralelo. Com o tempo, porém, Nem passou a exigir cada vez mais do presiden-te da associação do Vidigal. Zé do Rádio tentou se equilibrar como pôde entre os dois mundos. Se por um lado não era louco de se rebelar contra Nem, por outro, não queria ser apenas um fantoche. Foi então que o “capo” perdeu a paciência. “Foram na minha casa, colocaram uma arma na minha cabeça e me mandaram assinar documen-tos renunciando à presidência da Associa-ção. Depois, me mandaram sair do Vidigal”.

Cidadania custa caroDecidi ir a pé do bar Jobi, no Leblon, até

a entrada do Vidigal. Depois de 20 minutos costeando o mar a passos largos pela ave-

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33dezembro de 2011

nida Niemeyer, cheguei à entrada do morro recém-pacificado. A primeira imagem foi em-blemática. Um exército de vendedores unifor-mizados de pacotes da Sky circulava nervo-samente entre soldados fortemente armados tentando convencer moradores a comprar o “pacote UPP”, uma promoção criada especial-mente para moradores de áreas “pacificadas”.

Antes da ocupação, era o tráfico que geria o negócio. Por meio de gambiarras, os homens de Nem ofereciam pacotes de 120 canais por R$ 20 mensais. “Agora vou ter que pagar R$ 70 e ainda ficar sem os filmes...”, lamentava uma moradora que, resignada, preenchia a pape-lada de um dos vendedores. Ela e todos os moradores estão pagando um preço alto pela cidadania. Segundo o Sebrae-RJ, nada menos que 5.800 dos 6.500 negócios da favela, de botecos a salões de beleza, estão na informali-dade. Com a ocupação, o Sebrae começou uma campanha para trazer os empreendimentos para a formalidade. Um dia depois da ocupa-ção, boa parte dos moto-taxistas que cobram R$ 2,50 para subir e descer o morro, sumiu da entrada do Vidigal. Motivo: as motos não tinham documentação nenhuma e, não raro, eram roubadas. Os que estavam em dia com a burocracia, porém, comemoravam o fim do imposto pago ao tráfico para operar.

No caminho até o topo do morro, onde está localizado o “Arvrão” e onde conheci Zé do Rádio, cruzei vários turistas estrangeiros fazendo fotos alegremente. Uma argentina contou que seus amigos estavam hospeda-dos em um albergue no próprio Vidigal. “Fica lá no alto, perto do “Arvrão. O dono é um ale-mão”. Na verdade, já existiam dois albergues no morro muito antes da ocupação da polí-cia. O “alemão”, chamado “Alto Vidigal Guest House”, era considerado um ponto “hype” de turistas e cariocas ousados que buscavam o pôr-do-sol perfeito. A vista vinha acompa-nhada de generosos cigarros de maconha comprados em bocas de fumo de Nem nas redondezas. Tudo estranhamente pacífico e seguro. Pouco antes de chegar ao “Arvrão” – onde fica uma óbvia árvore enorme – cruzei com um repórter da Band Rio usando colete à prova de balas e batendo papo com um gru-po de policiais do Bope. O tema era a morte de um colega cinegrafista da emissora no dia da invasão. Uma bala de fuzil atravessou o colete. “O pessoal da Globo está usando cole-te com placa de cerâmica...”, disse um solda-do. Outro questiona a informação. “Ué, mas isso não pode... Colete com placa de cerâmica é de uso exclusivo da polícia”. Segue-se então um debate sobre a eficácia dos coletes e o risco de fazer esse tipo de cobertura.

Foi o repórter da Band, chamado Che Oliveira, quem me apresentou a Zé do Rá-

dio. Mais tarde, fico sabendo pelo colega que além do líder comunitário, outras 11 famílias que viviam em casas consideradas estratégi-cas pelo tráfico em caso de combate foram expulsas. “Dessas, só duas vão ficar no Vidi-gal. As outras voltaram para o Nordeste. “É que muitos soldados do Nem não têm ficha na polícia e continuam morando no morro”, conta ele. O próprio Zé do Rádio conta já es-tar recebendo ameaças.

Na volta para a base do morro, paro na sede Associação dos Moradores para tentar conversar com Wanderley Ferreira, o Deley, atual presidente do órgão. Ele é acusado por Zé do Rádio de ter sido colocado por Nem no cargo depois de sua expulsão. Deley não esta-va. Voltei mais duas vezes e telefonei outras tantas, sem sucesso. Na última tentativa, um diretor da Associação aceitou falar, mas só “informalmente”. Ele negou qualquer relação com Nem, disse que Zé sumiu da comunidade

porque estava “vendendo terrenos que não eram dele” e revelou que ambos – Zé e Delay – têm algo em comum. “São filiados a partidos políticos. O Zé é do PRB e o Delay, do PV”.

Zé do Rádio confirma a informação. “Fui candidato a deputado estadual ano passado e tive 700 votos. Não pude fazer campanha e acabei jogando o material que ganhei do Ro-drigo Bethlem (que concorreu a deputado fe-deral) no lixo...”. Revela-se então outra faceta do poder paralelo. Políticos só recebem votos nas favelas do tráfico se selarem alianças com moradores. Em geral, o acordo tem que passar pelo crivo dos traficantes. Daqui para frente, tudo será diferente. Por trás do discurso triun-falista do governo sobre as UPPs, existe uma multidão de moradores felizes com a liberda-de, mas receosos com o futuro. Por pior que fosse viver sob a gestão do tráfico, havia uma zona de conforto. O livre arbítrio vem acompa-nhado de muitas contas para pagar... F

E as “celebridades” sobem o morroPassa um pouco da hora do almoço quando uma caminhonete preta do Bope com quatro mulheres

“civis” na garupa estaciona no pé da Rocinha. Enquanto o motorista aguarda ordens para subir, o grupo visivelmente constrangido é fotografado por moradores. “É aquela moça da Globo...Como ela chama mesmo...?”, pergunta uma excitada vendedora de pacotes da Sky.

Olhando de perto, reconheço uma delas: a atriz Carla Camurati. Um policial informa, então, que as outras ocupantes são Rita Paes, esposa do secretário de Segurança, Jo�e Beltrame, e duas assessoras. O destino fi nal do grupo é a quadra da Rua 1, onde “até outro dia funcionava uma boca de fumo”. Tudo isso era para dizer que as moças pretendem apresentar ali um balé.

Poucas horas depois é a vez da secretária estadual de Esportes e Lazer, Marcia Lins, subir o morro com o Bope. Seu convidado é o ex-tenista Gustavo Kuerten. Depois de simular um bate bola com crianças, o ídolo se posta ao lado da secretária para outro pomposo anúncio: a construção da primeira quadra pública de tênis do Rio será na Rocinha, mais precisamente no Portão Vermelho.

Poucos dias depois de ser ocupada pelas forças de “pacifi cação”, a Rocinha tornou-se a menina dos olhos da elite política e da opinião pública carioca. Candidato a reeleição, o prefeito Eduardo Paes (PMDB) não perde uma chance de capitalizar a ocupação. No dia 21 de novembro, ele anunciou que a comunidade receberá o cartão postal de sua gestão, o “choque de ordem”. Isso signifi ca que as 150 barracas do Largo Boaideiro serão convidadas a se legalizar.

Em outra frente, a Light começou a bater de casa em casa oferecendo geladeiras novas - e que consomem um quarto da energia - aos moradores. A má notícia é que 50 funcionários da companhia defl agraram operação para acabar com cerca de 6 mil “gatos” de ligação clandestina de eletricidade. A previsão ofi cial é que toda rede elétrica seja substituída até 2013. Para os moradores, isso signifi ca mais uma conta para pagar.

Àquela altura, o tema da conversa

era a morte do cinegrafi sta da Band ocorrida poucos dias

antes

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34 dezembro de 2011

por AdrIAnA delorenzo

As soluções são simples. A vontade de fazê-las dar certo é enorme. Com esse espírito, centenas de iniciativas estão transformando comunidades pelo Brasil afora.

O Prêmio Fundação Banco de Brasil de Tec-nologias Sociais mostra que essa afirmação é real. Somente na edição de 2011, foram 1.116 inscrições de projetos em andamento. Desses, 264 foram certificados e passaram a integrar o Banco de Tecnologias Sociais (BTS) mantido pela entidade. No final de novembro, os 27 finalistas, selecionados por uma comissão julgadora, estiveram em Bra-sília para participar de um seminário, onde se discutiu o potencial do que eles estão fa-zendo. Os representantes dessas experiên-

tecnologias sociais

O reconhecimento de boas práticasPrêmio Fundação Banco do Brasil tem recorde de inscrições de iniciativas de grande impacto local

cias também foram à capital federal para a cerimônia de premiação, quando foram co-nhecidas as nove tecnologias sociais vence-doras desta que foi a sexta edição do concur-so da Fundação.

Numa sala de um hotel em Brasília, no dia anterior à grande festa, a riqueza da di-versidade do território brasileiro se afirma-va como uma grande arma contra a pobreza e a desigualdade. Esse, segundo o presidente da FBB, Jorge Streit, é o sentido de incentivar essas atividades chamadas de tecnologias sociais. “Se existe um tipo de tecnologia que pode contribuir para a superação da pobreza é a social”, disse ele.

Isoladas, essas atividades podem não mudar o mundo, mas são capazes de gerar

transformações importantes para uma es-cola, um bairro, uma cidade, uma região. E, quando dá certo, por que não transformar a experiência em política pública? Esse é o grande objetivo. Reaplicar a tecnologia social para o Brasil e o mundo. E, ainda, articulá-las com outras políticas públicas.

A Fundação elegeu as tecnologias sociais como carro-chefe de suas ações desde 2003. Além de manter o banco, promover o Prêmio a cada dois anos, e o Concurso Aprender e En-sinar – TS em parceria com a revista Fórum, a FBB fornece ajuda financeira a algumas tec-nologias. É o caso da Produção Agroecológica Integrada e Sustentável (PAIS), que junto com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), do governo fe-

deral, pode garantir renda aos produtores e preserva-ção ambiental.

Para Streit, as tecno-logias sociais são as que mais se enquadram aos princípios da economia so-lidária e sustentabilidade. Ao contrário da tecnologia de ponta ou proprietária, a TS é livre e voltada para a promoção de impactos lo-cais. Um dos pré-requisitos para ganhar o prêmio da

Isoladas, as tecnologias sociais são capazes de gerar transformações importantes para uma escola, um bairro, uma cidade, uma região

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fundação é ser de domínio público, sem pa-tentes. Seu objetivo não é ter lucros, é resolver o problema e multiplicar a solução.

Incentivo e pesquisaMultiplicação foi o que aconteceu com

duas tecnologias sociais premiadas pela fundação em edições anteriores. É o caso da técnica de silagem de colostro, desenvolvida pela veterinária e agricultora Mara Saafeld, no interior do Rio Grande do Sul. O procedi-mento é simples e permite um aumento na renda dos pequenos produtores de leite. A partir da fermentação do colostro por sete dias numa garrafa pet, esse primeiro leite pode ser utilizado na alimentação dos be-zerros por um período mais longo, em vez de ser jogado fora. Além de ser um alimento mais nutritivo, o colostro ainda poluía o am-biente. Presente no encontro que reuniu os finalistas deste ano, Mara contou que antes de vencer o prêmio tentou levar a técnica à universidade, mas seu projeto de pesquisa não foi aceito para virar uma tese de douto-rado na área de zootecnia. “Era uma técnica em que ninguém acreditava; depois do prê-mio, ganhamos visibilidade e credibilidade”, afirmou ela, atual doutoranda.

Segundo o professor da Universidade de Brasília, Ricardo Neder, a pesquisa das tec-nologias sociais nas universidades não tem recebido o mesmo incentivo que as tecno-logias “de ponta”. Ele defende que os órgãos educacionais, como a Comissão de Aperfei-çoamento do Pessoal de Nível Superior (Ca-pes), incorporem mais professores e pesqui-sadores que se dediquem ao assunto.

“Os critérios de seleção de projetos de pesquisa para financiamento público e de avaliação de pesquisadores não atendem as necessidades do movimento pela tecnologia social, considerado problema local pouco in-teressante para a ciência e tecnologia univer-sal”, afirmou. O professor ainda destacou que a Lei de Inovação (10.973/04), que trata so-bre incentivos e pesquisa científica e tecno-lógica, prioriza parcerias entre universidades e empresas, deixando de fora as entidades civis, movimentos sociais e terceiro setor.

Estudo realizado entre as 555 tecnolo-gias sociais que compunham o Banco da FBB mostrou que a maior parte delas (65%) era desenvolvida por entidades civis ou coope-rativas; 15% eram mantidas por instituições de ensino público ou privada e o sistema “S” (Sesi, Senai, etc); 15% por órgãos governa-mentais; e apenas 5% por empresas. Após re-visitar todos esses projetos, que integravam o banco desde a primeira edição do Prêmio, foi

constatado que 119 iniciativas não estão mais em andamento. Por isso, Neder defende que o fomento continuado às TS é um ponto-chave para a sua manutenção. Ele ainda acredita que sociedades com fins lucrativos não deve-riam receber recursos públicos e doações.

Apesar das dificuldades enfrentadas no dia a dia, as TS vêm crescendo. Em 2011, o número de inscritos ao Prêmio foi recorde. Como alerta Streit, muitas vezes as tecnolo-gias não são necessariamente um artefato, mas uma metodologia, desenvolvida com a interação da comunidade.

Um bom exemplo de uma metodologia criada com base nos princípios da TS é a técnica de ensino da Matemática para defi-cientes visuais. O professor de Matemática Rubens Ferronato desenvolveu o método,

quando teve um aluno deficiente visual em uma classe de mais de trinta. Sem saber o que fazer, o professor começou a utilizar uma placa de eucatex e elástico. Deu tão cer-to que hoje o método é adotado em mais de cinco mil escolas do Brasil. “A inclusão não é apenas ter um aluno com deficiência na sala de aula, é ele poder participar”, afirmou.

São muitos os exemplos, inclusive, de pes-soas que estão desenvolvendo tecnologia so-cial e desconhecem esse termo e sua filosofia. “Nosso objetivo é reconhecer o trabalho reali-zado por essas pessoas”, definiu o gerente de Parcerias, Articulações e Tecnologia Social da FBB, Jefferson de Oliveira. Cada uma das nove iniciativas vencedoras de 2011 foi contempla-da com R$ 80 mil e recebeu um material de di-vulgação (vídeo institucional e 2 mil folhetos).

Norte – Banco Comunitário Muiraquitã (Santarém/PA)

O projeto é desenvolvido na Grande San-tarém, região que enfrenta dificuldades típi-cas de bairros periféricos brasileiros. Os ide-alizadores acreditam na inclusão digital para a transformação dessa realidade. Cada quilo de resíduo vale um muiraquitã, que pode ser usado para a compra de produtos metarreci-clados e serviços, como oficinas de informá-tica e software livre.

Nordeste – Bancos de Sementes Comunitários (Teixeira/PB)

Os agricultores da região implantaram roçados comunitários, que fornecem as pri-

Conheça as nove iniciativas vencedorasmeiras sementes para o banco. Cada comuni-dade estabelece uma forma de gerir o banco de sementes. A cada colheita, os agricultores devolvem o que foi retirado e acrescem um porcentual. A tecnologia resgata sementes crioulas abandonadas pelos sertanejos e ga-rante a segurança alimentar das famílias.

Centro-Oeste – Construção de Habitação em Assentamentos (Campo Grande/MS)

Toda a comunidade participa do mutirão para a construção de casas. Tudo é decidido coletivamente, do projeto à lista de quem terá prioridade. A casa, de 72 m2, é construída com uma técnica que dispensa o emprego de co-

Jorge Streit, presidente da FBB: muitas vezes as TS não são um artefato, mas uma metodologia desenvolvida com a interação da comunidade

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lunas, com um crédito de R$ 15 mil que cada família recebe do Incra. Com gerenciamento coletivo dos recursos, o dinheiro rende mais.

Sudeste – Ecos do Bem – Educação Ambiental no Território do Bem (Vitória/ES)

Por meio de mutirões, os moradores do bairro transformam terrenos baldios em es-paços de convivência, preservação e cidada-nia. Após mapear as áreas críticas, o Mutirão do Bem executa a intervenção, retirando os resíduos e revitalizando a área. Desse esfor-ço, surgiram hortas comunitárias e jardins, onde antes só havia lixo.

Sul – Visão de Liberdade (Maringá/PR) A experiência une os deficientes visuais,

que enfrentam dificuldades na educação por não terem acesso a diversos conteúdos, e os apenados do sistema prisional. Um grupo de detentos foi qualificado para a produção de material didático em braile, áudio e alto-relevo. Enquanto o material auxilia deficien-tes visuais do Brasil e Portugal a terminar

seus estudos, cada participante qualifica-se profissionalmente e reduz um dia de pena a cada três trabalhados.

Categoria – TS na Construção de Políticas Públicas para a Erradicação da Pobreza – Horta Comunitária (Maringá/PR)

A prefeitura de Maringá transforma a comunidade em parceira na conservação e aproveitamento de terrenos baldios que se tornam depósitos de lixo e entulho. Por meio de hortas comunitárias agroecológicas, ofe-rece segurança alimentar e geração de renda para as famílias.

Categoria – Participação de Mulheres na Gestão de TS – Mulheres da Amazônia (Juruena/MT)

Reunidas em uma associação, 87 mu-lheres do assentamento Vale do Amanhecer descobriram no extrativismo e na produção de alimentos à base de castanha uma forma de gerar renda e conviver de forma harmo-niosa com a natureza. A cooperativa ajudou

a aumentar em quase sete vezes o valor pago ao extrativista por um quilo de castanha.

Categoria – Direitos da Criança e do Adolescente e Protagonismo Juvenil – Fazendo Minha História (São Paulo/SP)

A tecnologia busca, por meio da literatu-ra, interagir com crianças de abrigos e aco-lhimento, para que elas possam se expressar e dialogar com sua história de vida. Cada um monta um álbum colorido, no qual registra um pouco de seu passado, seu presente no abrigo e seus sonhos para o futuro.

Categoria – Gestão de Recursos Hídricos – Cisternas nas Escolas (Irece/BA)

No semi-árido baiano, não falta mais água para o consumo dos alunos e para irrigar as hortas escolares, que produzem alimentos orgânicos. Com a instalação de cisternas nas escolas, pela própria comunidade, são cap-tadas as águas da chuva. O sistema ainda é utilizado como recurso pedagógico. F

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MARCIO POCHMANN é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos

Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

China e o novo centro dinâmicoO sucesso do milagre econômico chinês

apresentou ao mundo uma novidade quase não imaginada frente à incontes-

te hegemonia estadunidense. Seja na evolu-ção do comércio externo ou na presença cres-cente dos investimentos externos, a China se posiciona de forma cada vez mais sólida como eixo integrador da dinâmica mundial.

Antes da crise do capitalismo global, a economia estadunidense apresentava sinais de certa decadência frente ao seu esvazia-mento produtivo e da relativa perda de im-portância do dólar. Mas, a partir de 2008, a perda de influência norte-americana tornou-se cada vez mais evidente, sobretudo quando se considera o sucesso transformista chinês.

Para piorar, os Estados Unidos passam a apresentar sinais crescentes de subde-senvolvimento, como no caso da concentra-ção de renda. Nas últimas três décadas, por exemplo, o segmento constituído pela faixa do 1% mais rico da população teve a sua ren-da aumentada em 256%, enquanto o rendi-mento dos pobres subiu somente 11%. Como resultado disso, os EUA voltaram a deter um padrão de desigualdade de renda somente verificado antes da Depressão de 1929.

Diante do descenso estadunidense e do auge chinês, os governos têm a oportuni-dade de rever estrategicamente o posicio-namento de suas economias. Do contrário, a trajetória das relações comerciais e de in-vestimento com a China tende cada vez mais a aprofundar as características históricas já notabilizadas, especialmente durante a anti-ga ordem internacional estabelecida a partir da Inglaterra. Como a China atual, o Reino

Unido dependia fortemente de produtos pri-mários, enquanto se mantinha como forte produtor e exportador de produtos manufa-turados. Ou seja, dava-se o estabelecimento de uma convergência internacional para a produção e exportação de produtos primá-rios e simultânea dependência da dinâmica local à internacionalização dos seus parques produtivos segundo a lógica inglesa.

Em geral, a China passa a deter não so-mente relações comerciais como presença de investimento superiores às dos EUA. Por meio da globalização financeira, não obstan-te os sinais de certo esvaziamento do seu pa-pel monetário (fim do padrão ouro-dólar nos anos 1970) e de enfraquecimento relativo de sua produção e difusão tecnológica, os Esta-dos Unidos se transformavam praticamente num império unipolar. Tanto assim que pre-valeceu a concepção de pensamento único e visão de fim da História, com predomínio da democracia liberal e do livre mercado.

Nos dias de hoje, com o esgotamento do movimento de globalização financeira, registrado por várias crises de dimensão internacional, o milagre chinês ascendeu ra-pidamente. Assim, a expansão da economia do país possibilitou que em apenas dez anos a sua produção fosse triplicada, contrastan-do com a realidade estadunidense. Somente entre 1999 e 2010, por exemplo, a variação acumulada do Produto Interno Bruto dos Es-tados Unidos foi equivalente a apenas 1/8 da verificada na China.

No mesmo sentido, o país asiático res-ponde cada vez mais por uma maior parcela da produção de manufaturados do mundo;

em 2009, representou 18% do valor agrega-do industrial mundial. A participação chine-sa no valor adicionado mundial na indústria de transformação de alta tecnologia também saltou de 4%, em 2000, para 18%, em 2009. Atualmente, a China assume a condição de segunda nação mais importante na produ-ção de material de escritório e informática do mundo, na produção de material de rádio, TV e comunicação, e a primeira na produção de veículos automotores e nos investimentos na indústria aeroespacial, de supercomputa-dores e de núcleos eletrônicos, entre outras posições estratégicas mundiais.

Por conta disso, a China deve ultrapassar a posição dos EUA durante a segunda década do século XXI, embora isso não signifique neces-sariamente o desaparecimento das centrali-dades dinâmicas das economias pertencentes à União Europeia e aos Estados Unidos, mas o que se destaca é o aparecimento de um mun-do multipolar. Além da Ásia – especialmente a China e Índia – há um espaço regional capaz de gerar uma nova centralidade dinâmica no sul do continente americano, com forte im-portância para a economia brasileira.

Em síntese, o Brasil passa a ter maior re-levância num novo contexto mundial multi-polarizado, bem distinto daquele verificado durante o momento de sua constituição, em que os Estados Unidos exerciam uma centra-lidade unipolar. Mas o seu reposicionamento deve partir de um olhar de mais longo prazo, uma vez que as alternativas estão postas. O deslocamento do centro dinâmico estabele-ce oportunidades inequívocas de reforço da pujança econômica brasileira. Mas isso pode ocorrer tanto pelo lado da Fazenda, Mine-ração e Maquiladora dos Produtos Manufa-turados (FAMA), como pela via do encadea-mento dos sistemas produtivos a partir de maior agregação do Valor Agregado e Conhe-cimento (VACO).

As alternativas estão postas, com a China presente no novo centro dinâmico mundial. Ao Brasil, cabe uma decisão clara e objetiva em torno do papel que deseja desempenhar neste novo contexto internacional. F

Fonte: FMI (elaboração própria) *projeção

(Total em PPP = 100%)

Evolução da participação relativa no Produto Interno Bruto do mundial dos Estados Unidos e China

2422201816141210864

1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010* 2011* 2012* 2013* 2014* 2015* 2016*

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38 dezembro de 2011

Em La Paz, centenas de pessoas saí-ram de suas casas e locais de traba-lho no dia 19 de outubro. Bandeiras na mão, sacolas com comida, garra-fas de água, todos queriam apoiar

de algum jeito os dois mil marchistas que estavam chegando. Foi uma chegada triunfal: quando os manifestantes passavam, esgota-dos, eram recebidos com gritos de felicitação, aplausos, lágrimas de emoção. Até quem era contra o movimento parou para ver. A única coisa impossível era ser indiferente. E mesmo em um país em que marchas e protestos são rotina, esse dia entrou para a história.

Quando a VIII Grande Marcha pela Defesa do Território Indígena Parque Nacional Isibo-ro Sécure, pelos territórios, pela vida, dignida-de e direitos dos povos indígenas saiu da cida-de de Trinidad no dia 15 de agosto, ninguém imaginava que as coisas tomariam uma di-

américa latina

A Bolívia depois da tempestadeQuais foram os custos políticos da marcha que impediu que uma estrada cortasse uma reserva indígena no país e como os movimentos sociais se organizam para pressionar o governo de Evo Morales

mensão tão grande. Os inúmeros diálogos fracassados com o governo, os bloqueios de camponeses que eram contra a marcha e, fi-nalmente, a agressão policial do dia 25 de se-tembro provocaram questionamentos e uma crise de gabinete. No meio de tudo isso, os marchistas conquistaram a simpatia do povo boliviano, mas, mesmo assim, a apoteótica recepção em La Paz foi uma surpresa.

“Pensamos que íamos ser agredidos”, con-ta, emocionado, Fernando Vargas, presidente da subcentral do Parque Isiboro Sécure. Adol-fo Chávez, dirigente da Confederação dos Po-vos Indígenas da Bolívia (Cidob), sorriu alivia-do. Estufando o peito, seguiu caminhando ao lado do companheiro que levava a bandeira com a flor do patujú, símbolo do Oriente bo-liviano. “Nos sentimos, não sei como posso di-zer, com muito orgulho”, conta Walberto Bara-ona, diretor de Meio Ambiente do Conamaq.

Quem mais se emocionou com a chegada foram as 96 crianças que marchavam. Os olhi-nhos curiosos miravam toda a gente que gri-tava, as mãos agarrando pão e saquinhos de leite com chocolate. Ximena Quispe, 12 anos, sentia a emoção de sua primeira marcha. Ela é filha do dirigente indígena de terras altas da Bolívia, Rafael Quispe. E também já é dirigen-te: foi nomeada – pelas outras crianças – vice-presidente das crianças da marcha.

Mas os manifestantes não foram os úni-cos surpreendidos pela reação dos habitan-tes de La Paz. E, graças à pressão popular, o governo decidiu dialogar com os dirigentes, numa reunião tensa, em que a desconfiança pairava no ar como uma névoa. O resultado foi um projeto de lei aprovado às pressas, a Lei 180. Entre outras coisas, o documento cancela a construção da estrada cortando o coração da área protegida e do território in-

Por lídIA AmorIm, de lA pAz. fotoS roS AmIlS

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dígena, além de definir que os cocaleiros e colo-nos que ultrapassaram o limite do parque, conhe-cido co mo linha verme-lha, devem ser retirados imediatamente do local.

Intangibilidade e confl itosLei aprovada, os manifestantes volta-

ram para casa. Tudo parecia solucionado, e a marcha parecia ter resultado em triunfo. Mas um ponto na lei começou a gerar pro-blemas: a intangibilidade. O terceiro artigo da 180 classifica todo o território como zona intangível. Ou seja, não se pode tocar nada, o que inviabilizaria a vida dos indígenas do lu-gar, cuja economia está baseada na floresta. Nada de caça. Nada de pesca. Nada de turis-mo, ainda que se diga sustentável.

Os dirigentes se revoltaram. “Isso pode ter sido colocado de boa-fé por quem escreveu o projeto, mas não estava assim antes. O que nós propusemos no nosso projeto de lei foi a intangibilidade de algumas partes, as áre-as virgens. Isso está no plano de manejo que fizemos junto com o governo, que levamos quatro anos investigando para fazer. O gover-no quer se vingar da nossa vitória tornando nossa vida impossível”, considera Fernando Vargas. “Não sugerimos intangibilidade. Foi proposta dos dirigentes”, respondeu publica-mente o presidente Morales.

No meio da discussão pela regulamen-tação da lei, com a intangibilidade dei xando um gosto amargo na boca dos marchistas, o governo reativou sua campanha pela cons-trução da estrada. Em todos os eventos em que aparecem publicamente, o presidente Evo Morales e o vice-presidente Álvaro García Linera falam da importância da rodovia. Evo também foi ao TIPNIS, visitou comunidades de colonos e de indígenas, e deixou sua men-sagem: “Se querem a estrada, falem com os que marcharam, reclamem para eles. Já não é minha responsabilidade.”

No dia 24 de novembro, um grupo com trinta indígenas da região sul do TIPNIS che-gou ao palácio de governo, para pedir que fosse anulada a Lei 180 e que se construísse a estrada. Rosa Fabricano, líder da comuni-dade de Natividad do Retiro deu a mensagem na porta do palácio. “Queremos que se anule a lei, queremos a estrada.” E admitiu: “O go-verno pagou as passagens para as trinta pes-soas”. No dia seguinte, o presidente deixou esperando uma delegação de indígenas mar-chistas que chegaram a La Paz para trabalhar a regulamentação da lei. “O presidente está fazendo um show. Ele quer que nos enfrente-mos entre bolivianos”, acredita Vargas.

Logo, os indígenas foram recebidos pelo ministro da Presidência, Carlos Romero, e negociaram a regulamentação da lei. Segun-do o acordo, ficam proibidas todas as ativida-des comerciais, como a venda de madeira e

de couro de jacaré, mas os recursos naturais podem ser utilizados em benefício das co-munidades, de acordo com o plano de mane-jo apresentado às autoridades bolivianas na semana anterior à reunião.

Feridas abertasO conflito provocado pela estrada que

cortaria ao meio o parque nacional e o terri-tório indígena é apenas a parte superficial de uma ferida muito mais profunda. A questão de terra, do território e da própria dignidade é uma luta antiga dos povos originários de to-das as partes do mundo, e na Bolívia não é di-ferente. “Se não fosse pela marcha de 1990, até hoje os indígenas, princi-palmente do Oriente boliviano, ainda seriam considerados in-visíveis nesse país”, considera Antonio Aramayo, diretor da fundação UNIR Bolivia.

Para os indígenas originá-rios da região do TIPNIS – mo-jeños, yuracarés e chimanes – essa luta ainda é uma ferida aberta. Isso porque a terra e o território são parte da vida e do corpo de cada um e ao mesmo tempo do coletivo, e dia após dia tudo isso é violado por colonos e cocaleiros. Mesmo ten-do participado do processo que levou Evo Morales ao poder, e tendo muitos dos seus direitos garantidos pela nova Constituição,

limite do parque, conhe-

lha, devem ser retirados

Os colonos ou intercul-turais são grupos que saíram de outras partes do país, como La Paz e a região cocaleira do Chapare de Cochabam-ba, em busca de novas terras para plantar.

À época, a marcha de in-dígenas, após um mês de caminhada, obteve o re-conhecimento de quatro territórios ameaçados por empresas de exploração de recursos naturais.

Os manifestantes não foram os únicos surpreendidos pela

reação dos habitantes de La Paz. E, graças à pressão popular, o

governo decidiu dialogar com os dirigentes

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aprovada em 2009, essas pessoas não se sen-tem incluídas na gestão de governo.

Mas, embora muitas vezes possa parecer que sim, nessa história não existem bons e maus. Os colonos também têm suas próprias feridas não cicatrizadas. Muitos deles são trabalhadores mineiros realocados que che-garam pela primeira vez ao TIPNIS depois de 1985, quando, pelo decreto 21.060, muitas minas do país foram fechadas e outras inú-meras, privatizadas. Ou seja, são trabalhado-res desempregados que foram para o Orien-te boliviano em busca de terras para cultivo. Muitos outros colonos também viviam no Ocidente do país, lugar de terras áridas, e, sem ter onde plantar, migraram das regiões altas buscando terras férteis. O choque com os indígenas do Oriente vem de uma visão cultural e de desenvolvimento distintas. “Eles não entendem porque os indígenas têm centenas de hectares e eles só podem ter um pedacinho de tudo isso”, analisa Aramayo.

Os mineiros deslocados, os agricultores e cocaleiros que chegaram do Ocidente querem expandir suas atividades, plantar e ter todo o conforto e comodidade oferecidos pelo capi-talismo. Nessa perspectiva, precisam de mais terra. E precisam da estrada. Já os indígenas amazônicos do TIPNIS querem garantir o ter-ritório da coletividade e a sustentabilidade de

seu ecossistema, para que seus filhos e netos possam ter direito àquilo que lhes deixaram seus ancestrais. Também precisam da estra-da, para ter acesso mais fácil a saúde e educa-ção. Querem a estrada. Mas não pelo TIPNIS. “Os de terras altas querem avançar, com sua lógica de progresso, de comércio, e os ama-zônicos têm outra visão de natureza, eles são extrativistas, coletores”, explica o analista po-lítico Carlos Cordero. “Para o indígena e para qualquer outra pessoa que viva ali, a floresta é o lugar que lhe permite estar feliz. Você não tem que comprar uma garrafa de água para matar a sede, e, se tem fome, pode pescar e as-sar seu peixe. Não tem que se preocupar com o monóxido de carbono que está respirando. Homem e natureza não podem estar sepa-rados. E se não fossemos nós, tudo já estaria destruído”, acredita Fernando Vargas.

“É necessário entender aos diferentes setores em sua verdadeira dimensão. O pró-prio governo, apesar das mentiras e da forma equivocada como atuou, também precisa ser compreendido no seu quase desespero para se consolidar”, explica Antonio Aramayo. Isso porque todo o processo para que Evo Morales chegasse ao poder foi difícil, doloroso e levou anos, e, em seu esforço para não retroceder, o presidente busca o apoio de suas bases, das quais os colonos fazem parte. “Estamos falan-do do principal grupo de apoio, o movimento social que mais apoia o governo, os cocaleiros. Eles têm que expandir a fronteira agrícola. E devem também ganhar maior território para que se consolidem como um setor social eco-nomicamente forte, que tenha a possibilidade de influenciar nas decisões econômicas. Além disso, o governo pensa nessa relação com o Brasil, em maneiras de fortalecer essa rela-ção”, analisa Aramayo.

ConsequênciasEssa busca por agradar as bases e fortale-

cer uma aliança com o Brasil, que resultou na marcha dos indígenas do TIPNIS, custou caro para o governo boliviano. A imagem interna-cional de Morales como líder de um governo indígena defensor da “Mãe Terra”, crítico do capitalismo, sofreu um abalo tão grande que esse ano o mandatário nem fez questão de aparecer na Conferência sobre o CIima reali-zada em Durban, na África. E, na Bolívia, nem se tocou no tema.

Não foi só a imagem internacional de Evo que sofreu um arranhão profundo. Interna-mente, o governo também sofreu desgastes que resultaram em três renúncias ministe-riais. O ano de 2011 levou muito da popula-ridade que o presidente conquistou, mas não

só por causa da marcha. Anunciando o que seria um ano complicado, em 1º de janeiro, o vice-presidente anunciou, num comunicado à nação, que o governo já não ia subvencio-nar combustíveis, o que fez a gasolina saltar de 3,80 bolivianos para quase 9 bolivianos. Foi o chamado “gazolinaço”. Os preços da cesta básica subiram até o céu, a população boliviana se enfureceu, e o governo voltou atrás em sua decisão.

Mas o gazolinaço deixou outras marcas: uma grande desconfiança na população ur-bana com relação ao governo, principalmente por parte da classe média. E, após a marcha do TIPNIS, essa mesma classe média que um dia simpatizou com Evo Morales se afastou lentamente e se encontra no meio do cami-nho, à espera de um líder que os conquiste. “As classes médias que estavam à esquerda, que votavam no presidente Morales, se afas-taram e se colocaram numa espécie de centro político. Agora, são uma classe eleitoralmente disponível”, analisa Carlos Cordero. O rechaço desse setor e da população boliviana em geral foi evidenciado no dia 16 de outubro, nas elei-ções judiciais. A Bolívia seria o primeiro país no mundo a eleger democraticamente seus

Ruptura no Pacto de Unidade

Outro golpe duro que o governo sofreu com a marcha dos indígenas do TIPNIS foi o rompi-mento do Pacto de Unidade, união de diferentes organizações sociais e indígenas e braço forte do governo de Evo Morales, que tinha o objetivo de ampliar a participação social dos bolivianos e impulsionar as reformas profundas propostas por Morales na estrutura do Estado. Com a mar-cha, se retiraram do Pacto uma parcela de duas das mais fortes instituições do país: a Cidob e o Conamaq.

Em novembro, uma reunião tentou reestrutu-rar o pacto, incluindo membros do Conamaq e indígenas do TIPNIS que são a favor da estrada. Entretanto, essa reestruturação seria feita sem incluir as instituições que se retiraram por conta das divergências provocadas pelas manifesta-ções. “O Pacto de Unidade não era para respaldar somente o que faz o governo. Era para indicar caminhos no processo de mudança. Não é só para levantar a mão para receber visitas do Evo Morales. Temos o direito de sugerir planos es-tratégicos para este governo”, aponta Walberto Baraona, diretor de Meio Ambiente do Conamaq.

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juízes, mas as coisas não saíram conforme o planejado. Ainda que os indígenas do TIPNIS tenham decidido interromper temporaria-mente a marcha no período entre a véspera das eleições e um dia depois do pleito, para não prejudicar o processo democrático, a po-pulação usou as urnas para mostrar toda sua insatisfação com o governo. Resultado: quase 50% de votos nulos e brancos.

Apesar dos resultados, o MAS garante que as eleições foram legitimas e que não de-vem ser anuladas. O presidente, ignorando aparentemente a importância de reconquis-tar a simpatia da classe média, declarou: “O problema é de vocês. Não quiseram votar, e perderam, agora a justiça está nas mãos dos indígenas do país.” Para Antonio Aramayo, “é um desafio que tem custo político, porque a classe média tem influência no país”. Ou seja, esse tipo de provocação pode trazer consequ-ências graves. Na Bolívia, a classe média tem grande influência nos meios de comunica-ção e em vários setores sociais, e perder esse apoio pode resultar em mais fragilidade po-lítica para o governo. “Os grupos mais ativos são os dirigentes, mas os que mudam a balan-ça são as classes médias”, conclui Carlos Cor-

dero, fazendo uma ressalva: nas urnas, quem ganhou foi mesmo Morales. Segundo o analis-ta, os magistrados poderão futuramente dar o aval para que o presidente possa voltar a ser candidato, podendo concorrer em 2014 e ga-nhar mais cinco anos de mandato.

Mas o mais grave de tudo o que está pas-sando nesse momento é a possibilidade de um conflito dentro do TIPNIS, entre os indí-genas marchistas, colonos e cocaleiros. “Nes-se setor, que se chama polígono sete, estão os cocaleiros, colonos que só cultivam coca. E ali perto estão algumas comunidades indígenas que estão sendo absorvidas pelos colonos, cultural e socialmente. Esses são os indígenas que querem estrada e que vieram a La Paz. E o presidente está praticamente dizendo: ‘briguem entre vocês’”, analisa Aramayo. Os colonos, com o apoio de cocaleiros, indígenas da região sul do parque nacional e até do go-vernador do departamento de Cochabamba, já anunciaram que vão realizar uma marcha com mais de 1.500 pessoas para pedir a cons-trução da estrada e a anulação da Lei 180.

Por outro lado, os marchistas também já estão se organizando para tomar decisões. E Adolfo Chávez promete: “se passa essa falta

de respeito, para o ano que vem já temos preparada uma manifestação muito mais forte. O governo que se prepare”. E Fernan-do Vargas confirma: “Tampouco vamos ficar quietos. Alguma coisa nós vamos fazer. Eu não queria que chegássemos a um enfrenta-mento assim, entre irmãos. Depois o governo vai falar que é culpa nossa, dos dirigentes. Eu não queria. Mas se o governo quer as coisas assim, o que se pode fazer?”

A continuidade do processo de mudança

A marcha de agora tem uma forte liga-ção com a primeira grande marcha de 1990, mas a configuração política e os objetivos mudaram muito desde então. Àquela altura, as identidades indígenas do país eram igno-radas, marginalizadas e discriminadas. Essa primeira marcha, assim como as seis que vieram depois dela, tinham a intenção de lu-tar não só por território, como também pelo respeito e reconhecimento das mais de 30 etnias existentes no país.

Desde que Evo Morales subiu ao poder, o cenário tem mudado. A Constituição reco-nhece 36 etnias e lhes garante – pelo menos em teoria – território e dignidade. “Agora já não se está pisando em ovos, há coisas con-cretas que foram conquistadas. É outro tipo de relacionamento, inclusive com o presi-dente. Tem que respeitar as leis que existem no país e que foram conquistadas ombro a ombro. Há uma continuidade, mas a dife-rença é que a primeira tinha um caráter de reinvindicação e essa é a exigência de um posicionamento político mais forte”, explica Antonio Aramayo.

O esforço agora é de recuperar um proces-so que se perdeu no caminho. “Nós, os povos indígenas, estamos nesse desafio de redire-cionar o processo. Queremos uma política de Estado, uma economia de Estado, em que o pluralismo legal seja aplicado sempre. As 36 nacionalidades têm que ser parte da recons-trução desse país”, considera Fernando Vargas.

Enquanto isso, Ximena Quispe, a garota marchista do início da matéria, conta na es-cola o que aprendeu esses quase dois meses de convivência com os indígenas amazôni-cos. E a indígena originária do TIPNIS, Maria Regina Nujo, cuida de seu bebê, que nasceu exatamente no dia 19 de outubro. Dia da che-gada da VIII Marcha em La Paz. F

A marcha de agora tem uma forte ligação com a primeira grande marcha de 1990, mas a configuração política e os objetivos mudaram muito desde então

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42 dezembro de 2011

por vICtor fArInellI

No dia 11 de novembro, aconteceu mais uma rodada das Elimina-tórias para a Copa do Mundo de 2014, com destaque para a parti-da entre Uruguai e Chile. No mí-

tico Estádio Centenário, o primeiro a sediar uma final de Mundial, um dos países menos desiguais do continente recebia um dos que têm a maior taxa de desigualdade. No quesi-to meramente futebolístico, a Celeste Olím-pica goleou o Chile por 4x0.

A seleção chilena de futebol poderia ser-vir de metáfora – não perfeita, mas próxima – da imagem que o país projeta, sobretudo no mundo empresarial. Nunca foi exemplo de futebol vistoso, jamais conseguiu um título e seu passado contém episódios dos mais tene-brosos da história do esporte mundial, como o caso Rojas, mas volta e meia é citada como força emergente. Também é – os incidentes deste ano demonstram, sobretudo a mano-bra para a saída do técnico argentino Marcelo Bielsa, desafeto do presidente Sebastián Piñe-ra – uma das equipes que, atualmente, está mais diretamente atrelada ao poder Executi-vo nacional, com claros fins políticos.

Já a escalação atual do escrete vermelho reflete melhor o que vive boa parte da socie-dade chilena. São raros os jogadores figuran-do entre os mais famosos e bem pagos do mundo, como Alexis Sánchez, contratação estelar do Barcelona; e o palmeirense Valdí-

continente

Uruguai, Chile e as desigualdades latino-americanasModelo econômico chileno, tido como exemplo em tempos idos, produziu um dos países mais desiguais da região. Pesquisador mostra como a condução política fez com que dois vizinhos pudessem ter uma composição social tão distinta

via, um dos maiores salários do fu-tebol brasileiro. A grande maioria joga em times de menor expressão da Europa, incluindo alguns que militam nas segundas divisões es-panhola e italiana, onde seus salá-rios são dez vezes menores que o de um Valdívia e cem vezes meno-res que o de Sánchez.

Mas não foi o futebol o que ins-pirou o economista chileno Andrés Zahler, da Universidad Diego Portales (UDP), a fazer um estudo mais detalhado da situação econômica das famílias chile-nas. “Foi a partir da repercussão, na imprensa daqui, do fato de o PIB chileno ter superado os USD$ [pesos chilenos] 200 bilhões em 2010, o que nos mantém num patamar em que a ren-da per capita é comparável a de países como a Hungria. Logo me perguntei se as famílias chi-lenas possuem renda equivalente à média das famílias húngaras.” Junto a essa inquietação, somaram-se observações a respeito do índice de Gini, que mede a distribuição de renda em cada país, sendo zero mais próximo à equida-de e 100 representando o total desequilíbrio. O Gini chileno é de 53 (superior ao do Brasil, que é de 49). Mas Zahler não se satisfez so-mente com o dado bruto, e resolveu lapidá-lo.

Separou as famílias chilenas em dez ex-tratos socioeconômicos e passou a analisar cada um deles e suas diferenças. O extrato

mais rico da sociedade chilena, que segundo Zahler corresponderia a cerca de 1,5% das fa-mílias do país, conta com uma renda média de aproximadamente USD$ 62 mil, padrão com-parável ao de países como Noruega e Estados Unidos. “Claro que aqui estamos falando de um segmento aprofundado, a média entre os seus habitantes não varia tanto quanto a dos países; nesse caso, seria mais adequado com-parar com a Noruega, cujo índice de Gini é de 25, enquanto nos Estados Unidos é de 45, e tem aumentado significativamente ano após ano”, explicou o economista.

O segundo extrato mais elevado do Chile é o que mais se aproxima à renda média das

Thiago baLbi

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43dezembro de 2011

famílias da Hungria (Gini de 31), por volta de USD$ 21 mil, mas esse segmento cons-titui cerca 2,5% da população do país – so-mado ao primeiro extrato, não configuraria sequer 5% dos chilenos. O terceiro extrato (3% da população), de renda média por vol-ta dos USD$ 14, 5 mil, é o primeiro setor que guarda semelhança com alguns países latino americanos, mais precisamente Argentina e México, cujos respectivos índices de Gini são 46 e 51, não muito melhores que os do Chile. Provavelmente, uma análise mais fragmen-tada da renda média de argentinos e mexi-canos demonstraria o mesmo nível de desi-gualdade que veremos mais adiante.

Entre o quarto e o sétimo extratos esta-belecidos por Zahler, a renda média das fa-mílias varia entre USD$ 11 mil (equivalente ao do Brasil e da Costa Rica, Gini de 50) e USD$ 6 mil (como a de El Salvador, Gini de 47). São os setores cujo patamar está mais próximo ao da maioria dos países latinos, incluindo alguns dos mais pobres, e repre-sentam, juntos, 23% das famílias chilenas – somados aos três anteriores, configuram

menos de um terço da população do país. No oitavo extrato, segundo o estudo de Zahler, a renda média é de USD$ 4,8 mil (como a da Guatemala, de Gini 48) mas este correspon-de a 10% dos chilenos, ou seja, ainda não chegamos aos 50% mais pobres do país.

Somente o penúltimo extrato atravessa a linha imaginária que avança até a metade de baixo. Cerca de 15% dos chilenos formaria parte do segmento que tem renda média de aproximadamente USD$ 3,6 mil, comparável com Índia e Filipinas (Gini 36 e 44, respec-tivamente). Aos demais 45%, quase metade da população, resta o último segmento, o de menores recursos, cuja renda mensal mal alcança os USD$ 2mil, e o que os equipara à média de países como Senegal (Gini 39) e Costa do Marfim (Gini 41).

O crônico Estado ausenteTendo em vista a capacidade de produção

de riquezas do Chile, maior exportador mun-dial de cobre, o economista buscou entre os países vizinhos um parâmetro que pudesse evidenciar a má distribuição dessas riquezas, e encontrou no Uruguai o exemplo ideal. Ne-nhum dos dois países, segundo o economis-ta, escapa à desigualdade que assola todo o continente, mas o panorama uruguaio não lhe parece tão cruel quanto o chileno. “O Uruguai produz quase quatro vezes menos que o Chile, mas a renda média dos dois países é equiva-lente, o que em si já demonstra um desequilí-brio menor, e daí a dedução de que a maioria dos uruguaios tem um padrão de vida melhor que a maioria dos chilenos”, analisa Zahler.

O Chile sempre figurou entre os mais cita-dos em círculos empresariais e nas análises macroeconômicas como um modelo a seguir no continente, ou no mínimo como o menos equivocado dos modelos da região. Em 2011, as ruas do país trataram de desmentir essa falsa impressão, com o movimento estudan-til denunciando a brutal situação de endi-

vidamento vivida pela grande maioria das famílias chilenas, devido a um

sistema educacional no qual não há gratuidade nem na rede pú-

blica, problema que se verifica também no serviço de saúde, além da Previdência Social que, ainda durante a ditadura, foi entregue inteiramente à iniciativa privada.

Zahler vê com bons olhos o movimento estudantil que

tomou o país – “as mensalidades universitárias chilenas são as mais

caras do mundo, quando se faz a compa-ração com a renda per capita”, argumenta o economista, que não considera que o mode-lo de desenvolvimento econômico adotado pelo Chile nos últimos anos seja totalmente equivocado. Para ele, houve avanços impor-tantes durante os governos da Concertación (aliança de centro-esquerda que governou o país entre 1990 e 2010), no sentido de fre-ar o neoliberalismo exacerbado da ditadura de Pinochet, embora lamente que eles po-deriam ter sido mais ousados, sobretudo no que diz respeito à proteção social. “O conflito estudantil também foi alimentado por aque-le indivíduo que, mesmo quando não é afeta-do pelos problemas do modelo educacional, encontrou nas manifestações uma forma de dizer que se sente indefeso diante de um sis-tema que dá muito mais vantagens às empre-sas que aos cidadãos.”

Em forte sintonia com o trabalho de An-drés Zahler estão alguns números divulga-dos este mês pelo instituto Latinobarómetro (sediado no Chile e dedicado a realizar es-tudos a respeito da realidade socioeconô-mica da região latina). A pesquisa anual de medição da opinião pública realizada pelo instituto revela que os chilenos são os mais insatisfeitos do continente com a distribui-ção de renda em seus país: apenas 6% dos pesquisados a consideram justa ou muito justa. O Uruguai, utilizado por Zahler em seu estudo, está entre os países onde há menos insatisfação a esse respeito, embora somen-te 27% dos entrevistados tenham respondi-do positivamente – o país com maior índice de aprovação à distribuição de renda foi o Equador, com 43% de respostas positivas, enquanto o Brasil apontou um grau de satis-fação de 15%.

Outros indicadores do Latinobarómetro que ressaltam a teoria de Zahler: 62% dos chilenos se consideram muito ou minima-mente satisfeitos com sua situação econômi-ca, enquanto ente os uruguaios esse índice foi de 79% (o do Brasil foi de 81%, o mais alto foi o da Costa Rica, com 89%). No Chile, somente 30% consideram que a economia vai melhorar no próximo ano, contra 46% dos uruguaios – os brasileiros, com 64%, fo-ram os latinos que mais demonstraram oti-mismo com o futuro econômico do país, en-tre os uruguaios o índice ficou em 46%. Por fim, 54% dos uruguaios consideram seu go-verno mais próximo dos interesses do povo, em comparação aos interesses das grandes corporações (o melhor índice do continente com respeito a esta pergunta, e o único que supera os 50%), muito mais que os 22% de chilenos que pensam o mesmo a respeito do seu governo e que os 27% de brasileiros.

Logo, a versão socioeconômica do duelo entre Uruguai e Chile continua sendo mui-to mais preocupante que o resultado fute-bolístico. Os uruguaios, que desfrutam de direitos mais garantidos pelo Estado que os chilenos (como educação, saúde e previ-dência em sistemas híbridos, onde o Estado assume grande parte do serviço, entregue de forma gratuita), não tiveram um 2011 tão conturbado socialmente, e menos ainda fu-tebolisticamente – os 4 a 0 sobre a seleção chilena consolidou a liderança cisplatina nas Eliminatórias da Copa, o que, somado ao tí-tulo da Copa América, conquistado em julho, ratificou a Celeste Olímpica como a melhor do continente pelo segundo ano consecutivo. Tanto no futebol quanto na distribuição de renda, os chilenos precisam melhorar. F

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44 dezembro de 2011

por pedro AlexAndre SAnCheS

Era uma vez “a incrível história da banda cujos integrantes (...) vende-ram (e vendem!!) mais discos que os Beatles”. Bombástico assim se apresenta, na contracapa, o livro

Banda de Milhões (ed. Nova Leitura), biogra-fia oficial de uma banda brasileira de rock que caiu no esquecimento no exato instante em que se desmantelou, em 1979.

A história tem um quê de fabulosa ao contrário, pois não havia muito na banda que justificasse tamanho sucesso comercial. Formado em São Paulo no início dos anos 1970, o quinteto começou cantando em in-glês e se passando por norte-americano ou britânico. Quando passou a cantar em portu-guês, ocupou-se mais de covers de Jorge Ben, Chico Buarque, Ivan Lins e Lamartine Babo que de repertório próprio. O palco de glória da banda, como a confirmar a origem paulis-tana tradicional dos integrantes, era o Clube Militar, nas matinês domingueiras pós-jovem guarda, tipicamente americanizadas.

É provável que você nunca tenha ouvido falar do Lee Jackson, ou pense que se trata de um cantor ou grupo gringo. Mas o slogan reproduzido acima diz muito a respeito do que trata essa fábula às avessas. Primeiro, é preciso esclarecer como uma banda brasilei-ra que vendeu mais que os Beatles pode ter caído no esquecimento há décadas, dentro e fora das gravadoras. A malandragem está desvendada no espaço preenchido no pri-meiro parágrafo deste texto pelo sinal “(...)”: os cinco integrantes do Lee Jackson vende-ram milhões de discos não como artistas, mas “como executivos”.

Por ordem alfabética, os músicos Cláudio Condé, Luiz Carlos Maluly, Marco Bissi, Mar-cos Maynard e Sérgio Lopes abandonaram

música

Entre “monstros” e “produtos”Livro Banda de Milhões revela bastidores da indústria fonográfica por meio da história de controversos empresários de artistas do mercado brasileiro

o Lee Jackson aos poucos, enquan-to começavam e galgar cargos nos bastidores de gravadoras multina-cionais como PolyGram, CBS, Sony, EMI e Warner, em países como Bra-sil, México, Chile, Espanha e Estados Unidos. Como presidentes, diretores artísticos, diretores de marketing ou produtores musicais, os cinco fizeram vender a granel discos de Roberto Carlos, Simone, Fagner, Ney Matogrosso, Fábio Jr., Julio Iglesias, A Turma do Balão Mágico, RPM, Ka-oma, Djavan, Ricky Martin, Chitão-zinho & Xororó, Gabriel o Pensador, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Zizi Possi, É o Tchan, Banda Eva e Ivete Sangalo, Cássia Eller, Terrasamba, Rita Lee, Roberta Miranda, Frank Aguiar, Chico Buarque, Daniel, Leonardo, Pau-la Fernandes, RBD, Restart…

Manoel Poladian, o empresário dos rapazes da banda, não conseguiu catapultá-los ao estrelato, mas ficaria conhecido nas décadas seguintes como um dos mais “agres-sivos” e controversos empresários de artistas do mercado brasileiro, pelo toque de Midas de inflar os lucros de gente na qual encostasse o dedo – caso de fases áureas das carreiras de Gal Costa, RPM, Ney Matogrosso, Rita Lee, Jor-ge Ben Jor, Titãs, Daniela Mercury…

Poladian conheceu Maynard ainda nos anos 1960, no Mackenzie, onde foi seu ve-terano na faculdade de Direito – o livro não entra nesse mérito, mas se às vésperas do AI-5, em outubro de 1968, eles tivessem partici-pado da batalha campal entre estudantes da rua Maria Antônia, estariam no front conser-vador, do lado oposto ao da esquerdista Fa-culdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

“Agressivo” é um adjetivo que os ex-Lee Jackson usam frequentemente para se referir a eles próprios como executivos, na biografia escrita pelo jornalista e ex-compositor da Jo-vem Guarda Tom Gomes. Quando falam dos artistas que ajudaram a consagrar, duas de-signações são recorrentes: “monstro” e “pro-duto”. “Monstro sagrado” é um clichê usado à exaustão para caracterizar artistas de grande talento. Os rapazes deixam de lado o “sagra-do”, mas é perturbador o número de vezes que classificam como “monstros” artistas como Bethânia, Caetano, Julio Iglesias etc.

Quando o termo “produto” entra em pau-ta, o jogo fica mais sério. Bissi, Condé, Lopes, Maluly e Maynard representam à imagem e semelhança a última geração de executivos bem-sucedidos da indústria fonográfica mul-tinacional, antes de ela começar a ruir por

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seus próprios braços. Na lógica que advoga-ram e advogam, música e músicos significam menos arte e cultura que objetos comerciais de alta rentabilidade. “Monstro” e “produto” aparecem quase como antípodas, mas signi-ficativamente um artista só tem vez junto a esses ex-artistas se concentrar em si as duas “qualidades” simultâneas.

Banda de Milhões é um livro às vezes confuso de ler (os trechos referentes a cada personagem são grafados em cores específi-cas – Bissi é vermelho, Condé é azul, Lopes é laranja, Maluly é marrom, Maynard é verde), mas muito saboroso. Contém, além de seus depoimentos, os de dezenas de artistas e homens de bastidores da indústria musical brasileira e internacional.

O volume se aventura, em estilo frugal e casual, por searas que quase sempre os “ar-tistas” por trás das engrenagens do showbi-zz preferem manter secretas e intocadas. Diz muito, sem se pronunciar explicitamente, sobre a simbiose entre trabalhadores de ta-lento artístico inquestionável (como Caeta-no, Chico, Bethânia, Roberto, Rita Lee e Ben Jor, para ficar nos mais óbvios) e outros um tanto mais duvidosos (os ex-Lee Jackson). Nem sempre transparente, a simbiose é ge-radora de sucesso, prestígio e fortuna para ambos os lados.

Há passagens às quais o termo “picareta-gem” serve como luva. Poladian conta, diver-tido, de quando levou a banda para se apre-sentar na Argentina, e a trupe foi recebida no aeroporto de Buenos Aires com cartazes es-critos “diretamente da Inglaterra: Lee Jack-son”. Diz que ficaram apreensivos com a ar-mação do contratante argentino, mas, bem, os rapazes se passaram por gringos também no Brasil natal, bem mais de uma vez.

É Condé em pessoa que narra, por exem-plo, suas participações solo no Globo de Ouro, um programa semanal tipo parada de suces-sos que a Rede Globo levou ao ar nas décadas de 1970 e 1980. “Eu era sempre convidado para cantar os sucessos em inglês, já que os artistas internacionais que haviam gravado os discos originais, obviamente, não vinham se apresentar no programa”, ele relata. Ou seja, muitos cantores brasileiros se fingiam de gringos (Fábio Jr., por exemplo, era Mark Davis), inclusive em plena tela da Globo, para abastecer o amor do público brasileiro pela música dos colonizadores.

Se em 2011 uma celeuma cresce no cir-cuito dito “independente” da música brasi-leira, entre jovens artistas que aceitam se apresentar sem cachê e outros que se recu-sam, Banda de Milhões demonstra que a tre-

ta sempre correu solta, inclusive no circuito mainstream. Poladian fez acertos com May-nard, então diretor da CBS, para que o astro espanhol Julio Iglesias tocasse de graça no Brasil, apenas a troco de passagem, hospe-dagem e alimentação. O argumento era que, com a visibilidade alcançada, Iglesias aufe-riria lucro indireto, vendendo muito mais discos no Brasil. Maynard teve de convencer o cantor a trabalhar de graça, e o mercado lo-cal foi inundado por seus discos, que de fato venderam feito água, turbinados pela máqui-na promocional CBS-Poladian.

A mecânica elástica das fábricas de su-cessos musicais é revelada em episódios como o de um disco “ao vivo” da cantora mexicana Ana Gabriel, produzido por Max Pierre, ex-diretor artístico de gravadoras como Universal e Som Livre (o braço fono-gráfico da Globo). “Nós tínhamos desenvol-vido uma técnica de gravar ao vivo que deu certo no Brasil e aí Maynard me chamou pra fazer o mesmo no México. Eles não sabiam fazer gravações ‘ao vivo’ como nós no Brasil (risos)”, conta Max. “Fomos pros estúdios da CBS, colocamos o ‘público’, ou seja, o público falso, as operárias da fábrica da Sony, fazen-do o papel de plateia.”

Um insatisfeito Caetano e a volta de Bethânia

Após virar o mercado mexicano de ponta cabeça, Maynard voltou ao Brasil, em 1993, para presidir a filial local da PolyGram. Cae-tano Veloso era um dos artistas descontentes de então, que ameaçava (segundo Maynard) gravar “um disquinho de voz e violão” apenas para cumprir e encerrar contrato. Você rara-mente fica sabendo disso, mas quando seu ídolo faz um disco ligeiro, tipo “voz e violão”, “ao vivo” ou cheio de músicas repetidas, ele pode estar pensando menos em você que em se desincumbir de um contrato incômodo.

Maynard convenceu Caetano a ficar na PolyGram, seduzindo-o com a ideia (influen-ciada pela experiência mexicana) de um álbum de sucessos latino-americanos ro-mânticos em espanhol, que viria a ser Fina Estampa (1994). Ainda segundo o executivo, Paula Lavigne, esposa e empresária de Cae-tano, adorou a ideia: “Isso vai ser maravilho-

so, Caetano, você vai poder fazer uma carrei-ra internacional”.

Um pouco antes, Maynard tinha conse-guido reaquecer a carreira comercial de Ma-ria Bethânia por intermédio de um disco de sucessos de Roberto Carlos. As canções que você fez pra mim (1993) se fez acompanhar por fatídica estratégia “agressiva” de marke-ting: do milhão de exemplares vendidos, 200 mil unidades foram entregues à Coca-Cola, em troca do uso da gravação de “Emoções” no comercial do refrigerante. De quebra, a marca se fortaleceu junto a seus reven-dedores, já que a Coca-Cola deu Bethânia & Roberto de presente a 150 mil donos de botequins, padarias etc. A inclusão de “Fera Ferida” como tema de abertura e título de uma novela global das oito completou o giro “agressivo” de convencimento do talento in-questionável de Bethânia.

“Agressiva” parece ser, também, a inter-ferência dos grandes mercadores de discos no conteúdo “artístico” que intermedeiam. É tabu pouco visitado, e sempre negado pelo lado de lá do balcão. Mas ao menos num caso Maynard assume com discurso triunfante que há, sim, tal tipo direto de interferência. A banda de axé music É o Tchan havia empla-cado o hit nacional homônimo e preparava um novo CD. Maynard ouviu e não encon-trou um sucesso à altura do “segura o tchan/ amarra o tchan/ segura o tchan, tchan, tchan, tchan, tchan”.

O chefão da gravadora foi questionar o produtor do disco, Max Pierre: “Como, agora, eles vêm com a cordinha?! ‘Passa por cima da cordinha, por baixo da cordinha’, isso é uma besteira”. Maynard comunicou ao grupo que o lançamento estava cancelado enquanto não fosse criada mais uma música para o CD, sob um tema específico escolhido a dedo por ele: “Temos que falar agora da preferência nacio-nal. Eu quero uma música que fale da bundi-nha”. Nascia assim “A dança da bundinha”.

A vaidade dos ex-Lee Jackson é exercita-da em várias passagens e circunstâncias do livro. Sérgio Lopes conta, empolgado, do dia em que a estrela Mariah Carey o chamou à suíte de seu apartamento, onde fez ao exe-cutivo de marketing da Sony “revelações muito íntimas”, “durante umas duas horas”.

“Agressivo” é um adjetivo que os ex-Lee Jackson usam fre-quentemente para se referir a eles próprios como executivos, na biografia escrita pelo jornalista e ex-compositor da Jovem Guarda Tom Gomes

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Ao final, a cantora pediu sigilo absoluto, que Lopes quebra/não quebra no livro. “Repli-quei: ‘Mariah, eu sou um cavalheiro, jamais comentei sobre uma conversa que tive na cama com uma mulher’”, ele diz-não diz.

Jabaculê é outro termo-tabu não pronun-ciado, mas isso não quer dizer que esteja au-sente do livro oficial. Lopes discorre sobre o talento e a “sorte” da estrela pop colombiana Shakira. Não menciona um caso polêmico, mas o autor do livro o traz à tona na sequ-ência, lembrando que em 2006 Tutinha, o poderoso-chefão da Jovem Pan, revelou que a Sony lhe pagou US$ 1 milhão para que em-

placasse Shakira em suas emissoras (e, por consequência, no Brasil inteiro). Dono de rádio a rigor independente de qualquer gra-vadora, ele ganharia US$ 1 para cada cópia vendida pela Sony. E disse que ganhou.

Os momentos de autocrítica são menos frequentes que a recorrência de “monstro”, “agressivo” e “produto”, mas acontecem. Um exemplo é o episódio em que Maynard assu-me o insucesso de sua incursão aos Estados Unidos, em 1992, como presidente da Poly-Gram US Latin e vice-presidente da gravado-ra para o cone norte (México e EUA).

“O sucesso subiu muito à minha cabe-ça, naquela hora”, confessa. “Três vezes isso aconteceu na minha vida. Uma, quando es-tourou o disco do Lee Jackson (…) e eu achei que realmente era uma estrela. E outra, no México. Foi onde meu ego subiu mais. (…) A terceira vez foi quando eu fui pros Estados Unidos. E também foi o pior momento da minha carreira.”

Após a breve confissão, ele relata a hosti-lidade de executivos norte-americanos con-tra um brasileiro em Miami, e se põe a culpar o mercado norte-americano, sob laivos evi-dentes de preconceito. “Pra música latina, é um mercado breguíssimo. É o mercado mais brega da música latina. É o lugar onde vivem as pessoas que não tinham como crescer nos seus próprios países e foram tentar a vida nos Estados Unidos. (…) Mexicanos pobres e com pouca cultura.” Maynard jamais faz ava-liação semelhante sobre a série de artistas e discos que vendeu aos milhões, nem sobre o público que consumiu tais milhões.

A crise do mercado fonográfi co e os “monstros” de fora

Já em seu final, o livro tem de adentrar terrenos mais pantanosos. A partir da disse-minação da pirataria e dos downloads via in-ternet, os ex-Lee Jackson passaram a viver na carne os efeitos de uma até hoje progressiva crise no mercado fonográfico mundial.

Condé conta, casualmente, que teve de enfrentar o encolhimento da norte-america-na Warner dispensando o vasto elenco serta-nejo da gravadora – não parece ter sido uma solução feliz, já que em 2011 é esse o setor mercantil dominante no que resta dos escri-tórios locais das gravadoras multinacionais. Lopes foi atuar como diretor de marketing digital da EMI, desenvolvendo estratégias “agressivas” (embora uma ou duas décadas atrasadas) para a interface disco-celular-computador. “Foi um desafio que Sérgio Lo-pes venceu”, afirma o autor, para dúvida do leitor: qual foi essa vitória?

Maluly, aparentemente o menos “agres-sivo” dos rapazes, fez carreira nas bordas das gravadoras, como produtor de discos pop-rock dos anos 1980, de RPM, Enge-nheiros do Hawaii, Metrô, João Penca e seus Miquinhos Amestrados. Hoje, consegue prolongar uma fase produtiva concebendo discos sertanejos de Paula Fernandes, Da-niel, Leonardo e outros.

O ponto crítico das carreiras de Maynard e Bissi se deu em 2006, quando ambos aca-baram demitidos dos cargos de presidentes dos escritórios brasileiro e latino-americano da EMI, respectivamente, em meio a denún-cias publicadas pela matriz inglesa, de que a filial brasileira teria praticado “fraude con-tábil”. A começar por Maynard, uma série de executivos-chefes da EMI em vários países caiu em efeito dominó, chegando até ao pre-sidente mundial, Alain Levy.

Um processo de Maynard contra a EMI corre em sigilo judicial. Notório por inflar, nem sempre legitimamente, as vendagens astronômicas de discos ao longo de sua car-reira, ele argumenta que agiu dessa maneira na EMI cumprindo ordens dos superiores gringos. Detentora do catálogo dos Beatles originais, a gravadora pretendia se valorizar para adquirir ou ser adquirida por outra ex-gigante, a Warner.

Quem vem explicar a metodologia em-pregada é Manolo Diaz, um dos executivos mentores dos ex-Lee Jackson. “Eu era presi-dente da unidade espanhola (da EMI) e fiz o que me foi solicitado. Insisti com grandes cadeias de lojas para que me comprassem grandes quantidades de produtos. (…) Era uma tentativa desesperada e irracional de mostrar que seguíamos tendo uma partici-pação importante no mercado. Graças a esta estratégia, terminamos muito bem o ano fiscal. Mas, no ano seguinte, pagamos pelo pecado. O inevitável aconteceu: as devolu-ções das lojas foram enormes e um grande prejuízo passou a fazer parte de nossa con-tabilidade”.

É, provavelmente, o único momento do livro em que alguns desses poderosos per-sonagens se colocam em posição subalter-na, de cumpridores de ordens alienígenas. É também um flagrante de sinceridade e retra-to preciso do momento presente para aque-les que foram roteiristas principais da última fase dourada das gravadoras no Brasil e no mundo. Atrás de Bissi, Condé, Lopes, Maluly e Maynard, sempre estiveram à espreita ou-tros “monstros”, estrangeiros e bem mais assustadores que um Caetano Veloso ou um Roberto Carlos. F

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NO ÚLTIMO 16 DE NOVEMBRO, POR INICIATIVA DO DEPUTADO SOCIA-LISTA ARGENTINO RAÚL PUY, foi descerrada uma placa na fachada do Hotel Normandie, em Buenos Aires, em homenagem ao músico brasileiro TENÓRIO JR. O hotel, localizado na Rua Rodriguez Peña, 320, quase no cruzamento entre as mitológicas Avenidas Callao e Corrientes, fi ca na zona boêmia e cultural da cidade. A placa tem os dizeres: “Aqui se hospe-dou este brilhante músico brasileiro, vítima da ditadura militar argentina”.

Quem toma conhecimento do episódio assim, a meia distância de quase 40 anos, pode imaginar que se trata de um passado muito remoto ou fi c-

ção, mas não é. Era a década de 1970, e Tenório Jr., conhecido e renomado pianista brasileiro, estava na capital portenha acompanhando a tempora-da de Toquinho e Vinícius no Teatro Gran Rex. Certa noite, saiu do Hotel Normandie para comprar remédios, e nunca mais apareceu.

Era 18 de março de 1976, seis dias antes do golpe militar que destituiu Isabelita Perón do poder. Daque-la noite em diante foi empreendido um grande esforço dos seus com-panheiros e amigos ilustres como o poeta Ferreira Gullar, que estava

exilado na Argentina. Foram percorridos hospitais e delegacias de Buenos Aires e arredores, solicitada ajuda da embaixada brasileira, e nada. O paradeiro de Tenorinho, como era conhecido, só foi descoberto dez anos depois.

Em 1986, o agente da ditadura argentina e ex-torturador Cláudio Vallejos, que integrava o Serviço de Informação Naval argentino, deu com a língua nos dentes e “vendeu” para a revista Senhor uma entrevista, na qual con-tava o paradeiro de vários brasileiros desaparecidos naquele país, entre eles, Tenorinho. O pianista, que nunca teve a menor atividade política – fato este que não justifi ca o descalabro, mas corrobora com a sandice da história –, fora confundido com um ativista político. De acordo com Val-lejos, o músico apanhou tanto que, quando foi detectado o engano, não havia mais retorno. Estava tão machucado que o jeito que encontraram foi matá-lo com um tiro para ocultar o erro.

Na mesma entrevista, o agente apresenta ainda dois documentos com intervalos de cinco dias. No primeiro deles, de 20 de março de 1976, um certo capitão Acosta – hoje preso na Argentina por liderar o aparato re-pressivo –, por intermédio do contra-almirante Chamorro, solicita ao co-lega brasileiro do SNI informações sobre o pianista brasileiro. No outro, de 25 de março de 1976, comunica ao governo do Brasil o falecimento do cidadão brasileiro Francisco Tenório Júnior, passaporte n° 197803, de 35 anos, músico de profi ssão, residente na cidade do Rio de Janeiro, e disponibiliza o cadáver. Os colegas do governo brasileiro de então, irre-tocáveis na emenda ao soneto, além de não reclamarem o corpo, nunca avisaram à família do músico sobre o seu paradeiro. Seus familiares só souberam de tudo junto com todo o povo brasileiro, por meio da entrevista de Cláudio Vallejos à revista Senhor, dez anos depois.

Tenório Jr. era um brilhante compositor e pianista. Hoje, muito provavel-mente teria o mesmo reconhecimento de Sérgio Mendes, Luiz Eça e congêneres. Havia gravado, em 1964, seu único disco, o lindo Embalo, reeditado recentemente pela Dubas Música.

Que a placa do deputado Puy sirva para, entre outras coisas, nos lembrar sempre de tudo o que foi criado por ele, da sua linda vida interrompida, dos sonhos que não foram vividos, dos discos que não foram gravados, enfi m, do tempo que não foi possível.

E que sirva, principalmente, para que não nos esqueçamos jamais desta e de tantas outras histórias. A memória de Tenório Jr., entre tantos outros desaparecidos na América Latina, estará sempre de guarda, ali na rua Rodriguez Peña, para que um tempo assim nunca mais se repita.

ção, mas não é. Era a década de 1970, e Tenório Jr., conhecido e renomado pianista brasileiro, estava na capital

exilado na Argentina. Foram percorridos hospitais e

HÁ POUCO MAIS DE UM ANO, O CANTOR E COMPOSITOR GERALDO VANDRÉ deu ao jornalista Geneton Moraes Neto uma longa, completa e elucidativa entrevista. Fazia quase 40 anos que ele se mantinha em um intrigante silêncio. Um silêncio que custou, tanto aos apaixonados por sua música quanto aos envolvidos na longa luta contra a última ditadura militar brasileira, um sem fi m de lendas.

Logo depois que, em 1968, cantou em coro com o Maracanãzinho lo-tado a canção “Caminhando”, ele se exilou em Paris, onde gravou um último disco, o estranho e maravilhoso Das terras do Benvirá, e desa-pareceu de vez da cena para virar lenda. Uns diziam que Vandré havia sido torturado e, por conta disso, estaria louco. Outros, que fora vencido pela amargura imposta pelos militares e por aí afora, num sem-fi m de histórias que a sua fi gura serena e impávida jamais poderia suspeitar.

Com respostas curtas e francas, Vandré não foge a nenhuma das per-guntas. Age todo o tempo com uma desfaçatez sem fi m. Diante da dúvida principal de qual seria a razão para toda a ausência, responde, ainda que não explicitamente, com a pergunta: “Qual seria a razão para não estar ausente?”

Quem se dispuser a ouvir as suas premissas com o espírito desarmado poderá ter grandes surpresas. Não faz proselitismo, não fala contra nem a favor de quase nada. A única crítica que quase faz é contra os tropica-listas, através de duas ou três frases sem importância. Diz que fi cou fora dos acontecimentos estudando leis (Vandré já era formado em Direito, na época dos festivais).

Fala que compôs uma obra sobre a FAB, a Força Aérea Brasileira. Dá a entrevista no Hotel de Trânsito da Aeronáutica, no Rio, com a insígnia da corporação no peito, diz que tem paixão por aviões desde a infân-cia. Na canção da FAB, deverá usar helicópteros como percussão. Ao mesmo tempo, diz que quer terminar um poema sinfônico em língua espanhola e que vai lançá-lo fora do Brasil, pois ninguém mais vive no Brasil, apenas se amontoa.

Ao ser perguntado sobre o que viu ou ouviu no nosso País que tenha sido de fato interessante desde o seu regresso, na década de 1970, responde sem pestanejar que foi o Movimento Armorial, encabeçado por Ariano Suassuna, uma coisa de 30 anos atrás. De resto, só cultura de massa, e que os poucos artistas que existem, como Edu Lobo e Chico Buarque, trabalham esporadicamente e têm uma carreira muito segmentada.

Não demonstra rancor por nada. Tudo o que aconteceu, aconteceu e pronto. Diante do imponderável, diz com uma lógica desconcertante que ter sido anistiado (Vandré foi exonerado pelo regime militar da carreira de servidor público e, depois, com a anistia, reintegrado) por gravar can-ções subversivas é um atestado de que teria cometido um crime; do con-trário, não teria porque ser anistiado. Ao mesmo tempo, confessa que nunca teve militância política, apenas compunha e cantava canções.

No fi nal das contas, o repórter insinua o alheamento, dizendo que Van-dré vive num país de um habitante só, ele mesmo. Talvez seja isso. De-pois de quatro meses de insistência, o artista fi nalmente concordou em falar. E se limitou a dizer o óbvio, ou seja, o universo do show business se transformou, para ele, numa pobreza tão grande que a única coisa que

resta é ignorá-lo solenemente. E assim tem sido. Ao ser pergun-tado se o público terá chance de ver Vandré cantando “Dispara-da” e “Caminhando” novamente, responde: “Isso é profecia, não sou profeta.”

Ao fi nal, a única conclusão plausível: Vandré se mante-ve absolutamente sóbrio num mundo de tolos.

resta é ignorá-lo solenemente. E assim tem sido. Ao ser pergun-tado se o público terá chance de ver Vandré cantando “Dispara-

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MOUZAR BENEDITO, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).

D ezembro é um mês difícil pra quem gosta de frequentar bares em São Pau-lo. As comemorações de fim de ano

são infernais. Juntam-se “colegas” de traba-lho que, no dia a dia, às vezes nem se con-versam, às vezes se sacaneiam, e vão a um bar brindar e entregar presentes de amigo secreto (em alguns lugares, o nome é amigo oculto) entre gritinhos estridentes.

Pessoas que não bebem, tomam umas e outras e se tornam o centro do mundo, fa-lando alto, gritando, dando risadas altas por qualquer motivo. E quem é botequeiro nor-malmente fica sem ambiente nesses lugares.

Antes de ser um aposentado, um vagabun-do que suga o dinheiro da nação segundo al-guns por aí (os 35 anos de pagamento de INSS seriam para quê?), eu tentava sair de férias em dezembro não por gostar do calorão desse mês. Era para escapar das festinhas de fim de ano em São Paulo.

Numa dessas, entra o Gutierrez, meio basco meio catalão.

Federico Gutierrez, sogro de um amigo nosso, o Zé Marruais, apesar da diferença de idade, ficou amigo da turma toda, e nós o chamávamos de Don Gutierrez.

Chegou a nos acompanhar num acam-pamento de malucos, onde se tornou nossa salvação, fazendo tortilhas que comíamos aos montes.

Uma vez, estávamos saindo de viagem de férias para o Nordeste e ele disse que também sairia de férias dali uns dez dias, e iria encon-trar conosco onde estivéssemos. Não acredi-tamos, mas foi. Naquele tempo não existiam certas facilidades, como os telefones celula-res, e a gente não tinha dia certo pra chegar a lugar nenhum nem sabíamos em que hotel – geralmente espeluncas – iríamos ficar. Então, calculamos que, na data da sua saída de férias

,estaríamos em Recife, e marcamos um ponto lá. Combinamos que todos os

dias passaríamos pelo Bar Sa-voy e deixaríamos grudado

numa coluna um recado com referências sobre

o nosso paradeiro. No dia em que

saiu de férias, pegou um ôni-bus pra Reci-fe. Deixou as roupas num

hotelzinho e foi direto para o Bar Savoy, na Avenida Guararapes. E coincidiu que está-vamos mesmo na cidade, o Luizinho, o Pre-tinho, Marinho, eu e um bando de meninas que namoravam ora um, ora outro.

Ele chegou lá, não estávamos no bar, pro-curou na coluna bem no meio dele e achou um papelzinho colado com durex. E foi atrás da gente. Entrou no grupo e continuamos a viagem juntos. Fomos para João Pessoa. Logo em seguida, chegaram as meninas que namorávamos em Recife. Resolveram con-tinuar nossos namoros. E continuamos na-morando ora, uma ora outra. E o Gutierrez junto, sem namorar nenhuma (nem tentou), mas achando tudo muito divertido.

Mas havia um problema: ele andava com um bermudão largo, uma camisa cheia de coqueiros, boné, óculos escuros e uma má-quina fotográfica pendurada no pescoço, falando portunhol. A gente fazia tudo pra não parecer turista, e ele era o turista típico, numa época que essa categoria não era tão bem-aceita como é hoje. Onde ele passava, com aquele jeitão, tudo dobrava ou triplicava de preço, e ele chiava com o que cobravam: “Pero, yo non soy turista!”

Tentamos convencê-lo a não ser tão os-tensivo, mas não tinha jeito. Aí, partimos pra sacanagem. Usando a sua máquina, quan-do se distraía, fotografávamos só besteiras. Eram chinelos na praia, mesas de botecos, troncos de coqueiro, os nossos próprios pés, só bobagens mesmo. E, num certo momento, pedimos que duas meninas se revezassem pulando no pescoço dele e o beijando. Ficou completamente atrapalhado, com aquelas meninas bonitas, de biquínis minúsculos se esfregando nele e o lambendo, mais do que beijando. E, pra piorar, nem imaginou que fo-tografamos tudo... com a máquina dele.

Don Gutierrez só mandou revelar as fo-tos quando chegou de volta a São Paulo. E só abriu os envelopes quando chegou em casa, para ir vendo as fotos pela primeira vez junto com a dona Angelina, sua mulher. E aí... sur-presa! Como explicar aquelas gostosinhas quase nuas grudadas nele? Não teve explica-ção. E por pouco não teve divórcio. F

Yo non soy turista!

,estaríamos em Recife, e marcamos um ponto lá. Combinamos que todos os

dias passaríamos pelo Bar Sa-voy e deixaríamos grudado

numa coluna um recado com referências sobre

o nosso paradeiro. No dia em que

saiu de férias, pegou um ôni-bus pra Reci-fe. Deixou as

ano em São Paulo.

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roupas num

mês. Era para escapar das festinhas de fim de

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,estaríamos em Recife, e marcamos um ponto lá. Combinamos que todos os

dias passaríamos pelo Bar Sa-voy e deixaríamos grudado

numa coluna um recado com referências sobre

o nosso paradeiro.

saiu de férias, pegou um ôni-bus pra Reci-

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