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, o Surgimento do Antivalor Capital, força de trabalho e fundo público" Introdução: A crise do Estado-providência Nas últimas cinco décadas, acelerada e abrangentemente, o que se chama Welfare State, como conseqüência das políticas originalmente anticíclicas de teorização keynesiana, consti- tuiu-se no padrão de financiamento público da economia ca- pitalista. Este pode ser sintetizado na sistematização de uma esfera pública onde, a partir de regras universais e pactadas, o fundo público, em suas diversas formas, passou a ser o pres- suposto do financiamento da acumulação de capital, de um lado, e, de outro, do financiamento da reprodução da força * Publicado em Novos Estudos Cebrap, n? 22, outubro de 1988. Sem a acolhida, quem sabe até entusiasmada demais, e a crítica de Rodrigo Naves, José Arthur Giannotti, Roberto Schwarz, Luiz Felipe de Alencastro, Geraldo Müller, Otacílio Nunes, Carlos Alberto Bello, Elson Luciano Pires e Hélio Correia Lino, este ensaio não apareceria agora, permanecendo, talvez, numa longa ruminação, que vem desde uma bolsa de pós-doutoramento patroci- nada pelo CNPq e CNRS em Paris. Para além dos agradecimentos formais de praxe, meu reconhecimento não pode deixar de ancorar-se nos amigos e instituições, particularmente, neste caso, minha casa - o CEBRAP -, dispostos a patrocinar uma discussão que rema contra a maré montante do Moloch privatista neoliberal, o "ai-jesus" de hoje no Brasil, que uma vez mais mostra como as "idéias podem estar fora do lugar". 19

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, o Surgimento do Antivalor

Capital, força de trabalho e fundo público"

Introdução: A crise do Estado-providência

Nas últimas cinco décadas, acelerada e abrangentemente,o que sechama Welfare State, como conseqüência daspolíticasoriginalmente anticíclicas de teorização keynesiana, consti-tuiu-se no padrão de financiamento público da economia ca-pitalista. Este pode ser sintetizado na sistematização de umaesfera pública onde, a partir de regras universais e pactadas,o fundo público, em suasdiversas formas, passoua ser o pres-suposto do financiamento da acumulação de capital, de umlado, e, de outro, do financiamento da reprodução da força

* Publicado em Novos Estudos Cebrap,n? 22, outubro de 1988. Sem aacolhida, quem sabe até entusiasmada demais, e a crítica de Rodrigo Naves,JoséArthur Giannotti, Roberto Schwarz, Luiz Felipe de Alencastro, GeraldoMüller, Otacílio Nunes, Carlos Alberto Bello, Elson Luciano Pires e HélioCorreia Lino, este ensaio não apareceria agora, permanecendo, talvez, numalonga ruminação, que vem desde uma bolsa de pós-doutoramento patroci-nada pelo CNPq e CNRS em Paris. Para além dos agradecimentos formaisde praxe, meu reconhecimento não pode deixar de ancorar-se nos amigos einstituições, particularmente, neste caso,minha casa- o CEBRAP -, dispostosa patrocinar uma discussão que rema contra a maré montante do Molochprivatista neoliberal, o "ai-jesus" de hoje no Brasil, que uma vez mais mostracomo as "idéias podem estar fora do lugar".

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os l)Jju~rros DO ANTIVALOR

de trabalho, atingindo globalmente toda a população por meiodos gastos sociais.

A medicina socializada, a educação universal gratuita eobrigatória, a previdência social, o seguro-desemprego, ossub-sídios para transporte, os benefícios familiares (quotas paraauxílio-habitação, salário família) e, no extremo desseespec-tro, subsídios para o lazer, favorecendo desdeasclassesmédiasaté o assalariado de nível mais baixo, são seus exemplos. Adescrição dasdiversas formas de financiamento para a acumu-lação decapital seria muito mais longa: inclui desdeosrecursospara ciência e tecnologia, passapelos diversos subsídios paraa produção, sustentando a competitividade das exportações,vai através dos juros subsidiados para setores de ponta, tomaem muitos paísesa forma de vastose poderosos setoresestataisprodutivos, cristaliza-se numa ampla militarização (as indús-trias e os gastos em armamentos), sustenta a agricultura (ofinanciamento dos excedentes agrícolas dos Estados Unidos ea chamada "Europa Verde" da CEE), e o mercado financeiroe de capitais através de bancos e/ou fundos estatais, pela uti-lização deaçõesde empresasestataiscomo blue chips, intervémna circulação monetária de excedentespelo open market, rnan-tém a valorização dos capitais pela via da dívida pública etc.

A descrição anterior pode ser refutada com a afirmaçãode que toda a vasta gama de subsídios e auxílios públicos éconstitutiva do próprio capitalismo, não sendo marca especí-fica do Estado-providência. Mas essaobjeção não capta a di-ferença de natureza entre essesdois momentos. De fato, aformação do sistema capitalista é impensável sem a utilizaçãode recursos públicos, que em certos casosfuncionaram quasecomo uma "acumulação primitiva" desde o casamento dostesouros reais ou imperiais com banqueiros e mercadores naexpansão colonial até a despossessâodasterras dos índios paracedê-Iasàsgrandes ferrovias particulares nos Estados Unidos,a privatização de bense propriedades da Igreja desdeHenriqueVIII até a Revolução Francesa; e, do outro lado, as diversasmedidas de caráter caritativo para populações pobres, de queas "Poors Houses" são bem o exemplo no caso inglês. Contra

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O SURGIMENTO DO ANTIVAL R

.ssccaráter pontual, que dependia ocasionalmente da força ed. pressãodegrupos específicos, o financiamento público con-t .mporâneo tornou-se abrangente, estável e marcado por re-gra assentidas pelos principais grupos sociais e políticos.,ri u-se, como já seassinalou, uma esfera pública ou um mer-

o do institucionalmente regulado.Entretanto, a mudança mais recente das relações do fundo

I úblico com os capitais particulares e com a reprodução daorça de trabalho representa uma "revolução copernicana".

P ra resumir uma teseque sedesdobrará ao longo desteensaio,) fundo público é agora um ex-ante das condições de repro-lu ão de cada capital particular e das condições de vida, em

lu zar de seucaráter ex-post, típico do capitalismo concorren-i I. Ele é a referência pressuposta principal, que no jargão de

h je sinaliza as possibilidades da reprodução. Ele existe "em11strato" antes de existir de fato: essa"revolução copernicana"

i antecipada por Keynes, ainda que a teorização keynesiana. dirigisse à conjuntura. A per-equaçâo da formação da taxa

de lucro passapelo fundo público, o que o torna um cornpo-lI .nte estrutural insubstituível.

Do lado da reprodução da força de trabalho, a ascensãoI financiamento público não foi menos importante. ''As des-

I \ 'as públicas, destinadas à educação, à saúde, pensões e ou-Ir programas de garantia de recurs9s aumentaram, duranteO o vinte últimos anos no conjunto dos paísesda OCDE, quaselua vezes mais rapidamente do que o PIB, e elas foram o·1 mento dominante no crescimento das despesaspúblicas to-

lo i : desde 1960,elaspassaram, no conjunto dos sete maioresI íses da OCDE, de cerca de 14% a mais de 240/0do PIB"(' épensessociales: érosion ou evolution?", r;Observateur deL' CDE, n? 126,janvier 1984,OCDE, Paris, trad. do autor).I~sa média resultou de evoluções, país por país, de 19%para

% na República Federal da Alemanha, de 16% para 25%I, França, de 16% para 23% na Itália, de 16%para 30% naII landa, de 16% para 28% na Bélgica; entre 1969e 1981,1\ J 8% para 27% na Dinamarca e de 15% para 22% na In-

~I terra. Entre 1965e 1981,asdespesassociais públicas, como

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR

O SURGIMENTO DO ANTIVAL R

porcentagem da renda disponível domiciliar, passaramde 28%para 46% na República Federal da Alemanha, de 24% para42% na Holanda, de 25% para 33% na França, de 22% para27% na Itália, de 22% para 33% na Bélgica e, na Inglaterra,entre 1969 e 1981, de 24% para 33%. Quer dizer que em setegrandes paísesindustrializados, nata do Primeiro Mundo com,exceção dos Estados Unidos e do Japão, o salário indireto temuma importância, em relação ao salário direto (assimilando arenda domiciliar a este conceito), que vai de um mínimo de33% ao máximo de 45%, até o último ano para o qual sed~spõede dados (Ch. André, "Les evolutions spécifiques desdiverses composants du salaire indirect à travers de Ia crise"Critiques deLÉconomie Politique, n. 26-27, janvier-juin, 1984'Paris), Aliás, a transferência para o financiamento público deparcelas da reprodução da força de trabalho é uma tendênciahistórica de longo prazo no sistema capitalista; a expulsãodessescustos do "custo interno de produção" e sua transfor-mação em socialização dos custos foi mesmo, em algumas so-ciedades nacionais, uma parte do percurso necessário para aconstituição do trabalho abstrato; nas grandes economias esociedades capitalistas contemporâneas, o Japão parece ser aúnica exceção a esserespeito, no momento de decolagem daindustrialização japonesa, e, pelo menos, até há muito poucotempo: o específico "exército cativo de mão-de-obra" ligadoa cada empresa - pelo menos às grandes empresas - pareceum caso insólito na tradição capitalista.

O crescimento do salário indireto, nas proporções assina-ladas, transformou-se em liberação do salário direto ou darenda domiciliar disponível para alimentar o consumo de mas-

. O crescimento dos mercados, especialmente do de bens deon umo duráveis, teve, portanto, como uma desuasalavancas

imp rtantes, o comportamento já assinalado das despesasso-i, i .públicas ou do salário indireto. Modificações dessamonta

11 ). rapport salariel são, pois, como tem sido repetidamentel'iSIn, lr d pelos autores da corrente teórica da regulação (Mi-h I AV1i tta, Robert Boyer, Alain Lipietz, entre outros), fato-

I' los I i importantes no longo período de expansão, que

vai desde os fins da II Guerra Mundial até hoje. Noutras pa-lavras, para a ascensãodo consumo de massa,combinaram-sede uma forma extraordinária o progresso técnico, a organiza-ção fordista da produção, os enormes ganhos de produtividadee o salário indireto, estes dois últimos fatores compondo orapport salariel. A presença dos fundos públicos, pelo lado,desta vez, da reprodução da força de trabalho e dos gastossociais públicos gerais, é estrutural ao capitalismo contempo-râneo, e, até prova em contrário, insubstituível.

O padrão de financiamento público do Estado-providên-cia éo responsável pelo continuado déficit público nos grandespaíses industrializados. É este padrão que está em crise, e otermo "padrão de financiamento público" é preferível aos ter-mos usualmente utilizados no debate, tais como "estatização"e "intervenção estatal". O primeiro destesúltimos leva a suporque a propriedade é crescentemente estatal, o que está muitolonge do real, e o segundo induz a pensar-senuma intervençãode fora para dentro, escamoteando o lugar estrutural e insubs-tituível dos fundos públicos na articulação dos vetores da ex-pansão econômica. Uma série de 1971 a 1985 (InternationalFinancial Statistics - Yearbook 1987. lnternational MonetaryFund, Washington) mostra que o déficit público nos paísesindustrializados (incluindo EUA, Canadá, Austrália, Japão,Nova Zelândia, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Fran-ça, Alemanha Federal, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda,Noruega, Espanha, Suécia, Suíça e Inglaterra), cresceu, médiadessespaíses, de 2,07% do PIB em 1972 para 4,930/0 do PIBem 1984. Os Estados Unidos situaram-se na média, enquantooutros países,como Canadá, Nova Zelândia, Bélgica, Irlanda,Itália, Holanda e Suécia ultrapassaram a média entre uma etrês vezes.É interessante notar que a média do déficit públicocomo porcentagem do PIB foi geralmente dos mesmos valoresem quase todas as partes do mundo, por grupos de países,oque sugere que as internacionalizações produtiva e financeiraestão obrigando praticamente todos os países a adotarem opadrão de financiamento público do Estado-providência.

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)5 1 lREITOS DO ANTIVALOR o SURGIMENTO DO ANTIVAL R

A crise do Estado-providência - e o termo íreqüentementeé mais associado à produção de bens sociais públicos e menosà presença dos fundos públicos na estruturação da reproduçãodo capital, revelando pois um indisfarçável acento ideológicona crítica à crise - tem levado à "crise fiscal do Estado" nostermos de James O'Connor (The Fiscal Crisisof the State. St.Martin's Press,New York, 1973) devido àdisputa entre fundospúblicos destinados à reprodução do capital e fundos que fi-nanciam a produção de bens e serviços sociais públicos; ou,na versão de Lester Thurow, a um impassericardiano, jogo desoma zero, em que "o que um perde é o que o outro ganha"(The Zero-Sum Society. Basic Books, New York, 1981).

As receitas dos governos centrais como porcentagem doPIB têm se elevado sistematicamente desde níveis de 23% em1971 a 27% em 1984 (International Financial Statistics - Year-book 1987, IMF) para o conjunto dos paísesindustrializados,com os níveis máximos de 45,1 % na Bélgica, 42,23% na Fran-ça, 43,1% na Irlanda, 40,8% na Itália, 52,2% na Holanda,42,8% na Noruega e 41,4% na Suécia. Paradoxalmente, paí-ses mais potentes como os Estados Unidos estão num nívelde 30%, a Alemanha Federal situa-se em 29% e a Inglaterraem 38,1 %, essesúltimos dados referindo-se a 1984. Os gas-tos dos governos centrais situam-se, média do conjunto dospaíses mais industrializados, acima de 1/3 do PIB, de novocom uma grande heterogeneidade, ressaltando-se que os Es-tados Unidos mantêm-se em torno da média. Não há dadospara o Japão, tanto no que serefere àsreceitas governamen-tais quanto às despesas.

Ao lado do déficit público e das receitas e despesasestataisamo proporção do PIB - pelo menos 1/3 dos PlBs mais im-

p rtantes transitam pelos tesouros nacionais -, as proporçõeslugar da dívida pública dos principais paísesconfirmam o

lu 'ar e trutural do fundo público na sociabilidade geral. Nosúlrirn anos, de 1982 a 1986, variando de paísa país,segundo() 111ti 111 dado disponível nasInternational Financial Statistics(I 87, IMF), nos níveis mais baixos da dívida pública interna

r rn mo porcentagem do PIB agrupavam-se países

como Bélgica (10,2%) e Suíça (11,6%); no patamar imediata-mente posterior, paísescomo a Alemanha Federal (20,6%) eFrança (22,7%); no patamar posterior, países como Suécia(56,6%), Holanda (55,5%), EUA (43,4%), Inglaterra (47,8%)e Japão (53,8%); nos níveis máximos, paísescomo Nova Ze-lândia (73,1%) e Itália (81,2%). Há, pois, uma razoável dis-persão, masimporta notar que paísesda talha dos EUA, Japão,Inglaterra, Holanda e Suéciasituaram-se num patamar em quea dívida pública corresponde à metade de seusprodutos inter-nos brutos. Salvo Alemanha Federal, França e Suíça, que sesituam nos segundo e primeiro níveis anteriormente descritos,os paísesem que a dívida é metade do PIB são, indiscutivel-mente, as mais notáveis lideranças industriais, tecnológicas efinanceiras do capitalismo contemporâneo. A Suíçaé reconhe-cidamente uma exceção, pela concentração de recursos finan-ceiros de outros paísesno seu sistema bancário e financeiro.Ainda que não perfeita, há uma indisfarçável relação entre adívida pública dos paísesmais importantes, suas posições nosistema capitalista e suasdinâmicas.

O argumento da direita é que essaestatização dos resulta-dos da produção social levaria a uma espécie de socialismoburocrático e estacionário, diminuindo, de um lado, os recur-sos privados destinados ao investimento e, de outro, pela ele-vação da carga fiscal sobre pessoase famílias, diminuindo apropensão para o consumo; utilizando-se o esquema keyne-siano da depressão da demanda efetiva tanto por parte dasempresas quanto das famílias, a estatização dos resultados daprodução social teria tudo para conduzir o capitalismo a umestado estacionário, congruente com a previsão estagnacionis-ta da maioria dos clássicos da economia, sobretudo Smith,mais resolutamente Ricardo e secundariamente Stuart Mil!.

O coração do impasse ricardiano de Thurow ou da "crisefiscal" de O'Connor - e as versões da direita são menos teo-rizadas, salvo Hayek - não é de nenhum modo uma tendênciaestagnacionista. É apenas e esseapenas é muito forte, a ex-pressão da abrangência da socialização da produção, num sis-tema que continua tendo como pedra angular a apropriação

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· DlREITOS DO ANTIVALOR o SURGIMENTO D ANTIVAL R

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rialidade. Em paísescomo osEstados Unidos, certasatividaddas multinacionais, substituindo suas próprias produções il~-ternas, deixam ao fundo público nacional os encargos de fi-nanciar a reprodução do capital e da, força de trabalho (ycompris o seguro-desemprego), o que gera uma crescente in-com~atibilidade entre o padrão de financiamento público e ainternacionalização produtiva e financeira. Nasceu exatamen-te dos paísesem que essaperformance de suas próprias mul-tinacionais é mais acabada, Estados Unidos e Inglaterra, areação conservadora contra o Estado-providência, pond.o oacento nos gastos estatais para a produção de bens e serviçossociais públicos. A reaçãoThatcher eReagan, que, procurandocortar ou diminuir a carga fiscal e parafiscal (impostos e pre-vidência social), fiou-se num comportamento neovitoriano deempresase famílias, utilizando - presumia-se - o ~lívio .daque-Ias cargas para fazer voltar à tona o impulso de investimentoe o consumo privados.

privada dos resultados da produção social. Mas, de certomodo, ela expressa também a retração da basesocial da ex-ploração, em termos marxistas, questão que será desdobradamais adiante.

O rompimento do círculo perfeito do Estado-providência,em termos keynesianos, é devido, em primeira instância, àinternacionalização produtiva e financeira da economia capi-talista. A regulação keynesiana funcionou enquanto a repro-dução do capital, os aumentos de produtividade, a elevaçãodo salário real, se circunscreveram aos limites - relativos, porcerto -, da territorialidade nacional dos processosde interaçâodaqueles componentes da renda e do produto. Deve-se assi-nalar, desde logo, que aquela circularidade foi possível graçasao padrão de financiamento público do Welfare State, um dosfatores, entre outros aliás, que levaram à crescente internacio-nalizaçâo. Ultrapassados certos limites, a internacionalizaçãoprodutiva e financeira dissolveu relativamente a circularidadenacional dos processos de retro-alimentação. Pois des-territo-rializam-se o investimento, e a renda, mas o padrão de finan-ciamento público do Welfare State não pôde - nem pode, atéagora - des-territorializar-se. Em outras palavras, a circulari-dade anterior pressupunha ganhos fiscais correspondentes aoinvestimento e à renda que o fundo público articulava e finan-ciava; a crescente internacionalização retirou parte dos ganhosfiscais, mas deixou aos fundos públicos nacionais a tarefa decontinuar articulando e financiando a reprodução do capitale da força de trabalho. Daí que, nos limites nacionais de cadauma das principais potências industriais desenvolvidas, a crisefiscal ou "o que um ganha é o que o outro perde;' emergiu nadeterioração das receitas fiscais e parafiscais (previdência so-cial, por exemplo), levando ao déficit público. O anterior ficamuito claro quando sepensa numa multinacional com antenasem vários países: o país-sedeoriginal não é contemplado comretornos fiscais e parafiscais proporcionais ao investimento erenda (inclusive" salários) gerados alhures por filiais das mul-ti nacionais, enquanto o financiamento público que tenta arti-cular a demanda efetiva continua circunscrito a sua territo-

o fundo teórico da crise

O padrão de financiamento público do Welfare Stateoperou uma verdadeira "revolução copernicana" nos fun-damentos da categoria do valor como nervo central tantoda reprodução do capital quanto da força de trabalh~. Nofundo, levado às últimas conseqüências, o padrão do [inan-ciamento público "implodiu" o valor como único pressu-posto da reprodução ampliada do capital, desfazendo-oparcialmente enquanto medida da atividade econômica e dasociabilidade em geral.

Na medida em que o padrão de financiamento públicoconstituiu-se em uma verdadeira esfera pública, as regras dareprodução tornaram-se mais estáveisporque previsíveis, e dacompetição anárquica emergiu uma com.petição seg~e~tada.Por certo, não deixou de haver competição no capltahsm?,masessasedá dentro de regras preestabelecidas e consensuais.Essa universalização tem efeitos paradoxais, segmentando a

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

competição em pelo menos dois níveis; o primeiro, o circuito~os oligo~ólios, e o segundo, o circuito dos capitais competi-tIVOS.A ngor, o fundo público é um Ersatz do capital finan-ceiro, indo além da teorização proposta por Hilferding.

Na forma dos títulos públicos e dos vários tipos de incen-tivos e subsídios, é o fundo público que agiliza a circulaçãodo capital, e em muitos casos cumpre o papel da famosaponte invisível keynesiana entre quem poupa e quem inves-te. Essa função demarca um setor oligopolista e um setorconcorrencial "primitivo" (que não tem acesso ao fundopúblico) na tradição teórica de Labini. Do ponto de vista dateoria marxista, dissolveu-se a tendência à formação de umataxa média de lucro, para dar lugar, no mínimo, a duas taxasmédias: a do setor oligopolista e a do setor concorrencial"primitivo". E o fundo público é decisivo na formação dataxa média de lucro do setor oligopolista, e pelo negativo,pela sua ausência, na manutenção de capitais e capitalistasno circuito do setor concorrencial "primitivo".

Imbricando-se diretamente na determinação da taxa mé-dia de lucro do setor oligopolista, o fundo público influi de-cisivamente, através de outros recortes, sobre a taxa de lucrode setores inteiros e até de ramos especiaisda reprodução nointerior do setor oligopolista. Recortes como "prioridades na-c!o.naisde segurança", "pesquisa de ponta", "programas espe-CIaISde produção", e inúmeros outros, tais como a sustentaçãode produções agrícolas excedentárias, transformaram maisuma vez a competição segmentada. O papel do fundo públicocomo pressuposto especial dessasegmentaçãoretirou o capital

n tante e o variável da função de parâmetro-pressuposto, eI cou em seu lugar a relação de cada capital em particular

orn próprio fundo público. Em outras palavras, a taxa deIII ro de setores de ponta como a aeronáutica, as atividadesind IS ·ri i espaciais, a informática, tem que se referir simul-1111Nl111 nte aos seus próprios capitais e à fração dos fundos11l'd, Ii ( S LI ilizados para sua reprodução; isto tem um efeitoI 11'1 I( ,I, p is enquanto aumenta a taxa de lucro de cada

1\ itol '111 p rticular (pois na equação particular a fração do

fundo público utilizada não tem remuneração ou quando atem é francamente subestimada) diminui a taxa de excedenteglobal da economia.

A rigor, trata-se de uma relação ad hoc entre o fundo pú-blico e cada capital em particular. Essarelação ad hoc leva ofundo público a comportar-se como um anticapital num sen-tido muito importante: essacontradição entre um fundo pú-blico que não é valor e sua função de sustentação do capitaldestrói o caráter auto-reflexivo do valor, central na constitui-ção do sistema capitalista enquanto sistema de valorização dovalor. O valor, não somente enquanto categoria central, maspráxis do sistema, não pode, agora, reportar-se apenas a simesmo: eletem que necessariamentereportar-se a outros com-ponentes; no caso, o fundo público, sem o que ele perde acapacidade de proceder à sua própria valorização, O fato deque, finalmente, a mesma expressão monetária recubra o in-terior dessacontradição, apresentando-a externamente comouma unidade, não deve levar a enganos: trata-se, no caso, da"indiferença da moeda do banco central", que expressaapenasuma relação entre devedores e credores, subsumindo nesta amoeda como expressão do tempo de trabalho médio social-mente necessário.

Do lado da reprodução da força de trabalho, que toma aforma do financiamento público de bens e serviços sociais pú-blicos extensivos na prática à maioria da população, as políti-cas anticíclicas aceleradas e universalizadas - a rigor, asocial-democracia alemã e inglesa, e mesmo o Front Populairefrancês de 1936 e o New Deal rooseveltiano as precederam apartir do fim da II Guerra Mundial foram no sentido da cres-cente participação do salário indireto no salário total. Essesbens e serviços funcionaram, na verdade, como antimercado-rias sociais, pois sua finalidade não é a de gerar lucros, nemmediante suaação dá-sea extração da mais-valia. Dizer, comoa maior parte da crítica marxista tem dito, que contribuempara aumentar a produtividade do trabalho, é quaseum truís-mo, posto que qualquer gasto de bem-estar deve potencial-mente melhorar as condições de vida.

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

A questão teórica que se põe vai mais longe: recuperan-do-se Sraffa (Production of Commodities by Means of Com-modities) é possível dizer que o salário - mercadoria-padrãopara Sraffa - agora data, determina a produção de um sem-número de bens e serviços públicos sociais, e vai mais além,atingindo mesmo a produção de bens e serviços exploradosprivadamente. De fato, indexando os benefícios sociais ao sa-lário, o que se está fazendo é tornar o salário o parâmetrobásico da produção de bens e serviços sociais públicos. Isto éo oposto da extração da mais-valia e, conseqüentemente, emsua derivação, da determinação da taxa de lucro, onde os pa-râmetros não apenas do cálculo mas da razão da mais-valiaresidem na relação capital constante-capital variável. Se to-marmos qualquer dos bens e serviços financiados e/ou produ-zidos pelo fundo público, ver-se-áque seupreço édeterminadocomo uma quota-parte do salário: isto é, a tarifa de um serviçopúblico como o metrô é calculada tendo-se como referênciauma parte do salário destinada a gastos de transporte. E, emmuitos casos,na fixação de preços de bensbásicosproduzidospelo próprio setor privado, o que se tem em vista é que seupreço represente uma certa porcentagem dos gastosdos orça-mentos familiares.

A dialética instaurada pela função do fundo público nareprodução do capital e da força de trabalho levou a inusitadosdesdobramentos. Há, teoricamente, uma tendência à des-mer-cantilização da força de trabalho pelo fato de que os compo-nentes de sua reprodução representados-pelo salário indiretosãoantimercadorias sociais. De ~m lado, isto representou umacerta liomogeneização do mercado e do preço da força detrabalho, levando à autonomização do capital constante, deque já falava Belluzzo (''A transfiguração crítica", in EstudosCEBRAP n. 24), e desatando, por sua vez, a reprodução docapital dasamarras deuma antiga dialética em que asinovaçõestécnicas se davam, sobretudo, como reação aos aumentos dosalário direto real. A brecha para a inovação técnica, despara-metrizada do salário real total, posto que este agora tem nosalário indireto um componente não desprezível- no mínimo

um terço do salário total -, deslanchou um processo de ino-vações tecnológicas sem paralelo.

É simultânea a dupla operação de presença do fundo pú-blico na reprodução da força de trabalho e do capital; não sepode, neste caso, buscar resolver o velho enigma da precedên-cia "da galinha ou do ovo", mas o fato é que houve uma duplades-parametrização; tanto em relação ao valor ou preço daforça de trabalho quanto em relação aos valores dos capitaisoriginais, o capital semove agora numa relação em que o preçoda força de trabalho é indiferente do ponto de vista das ino-vações técnicas e o parâmetro pelo qual semede a valorizaçãodo capital é agora um mix, em que o fundo público não entracomo valor. A contradição, pois, é que seassisteauma elevaçãoda rentabilidade, ou dastaxas de retorno dos capitais, gerandoa enorme solvabilidade e liquidez dos setores privados, en-quanto o próprio fundo público dá visíveis mostras de exaus-tão como padrão privilegiado da forma de expansão capitalistadesde os fins da II Guerra Mundial.

Nesse rastro, inclusive as predições de pauperização, en-tendida absoluta ou relativamente, não seconfirmaram. O quese assisteé uma expansão do consumo de todas asclassesnospaísesmais desenvolvidos, e uma renovada e inusitada expan-são do investimento. É por essarazão que os esquemaskey-nesianos já não são capazes de explicar os fenômenos con-temporâneos, comprimidos entre as tenazes de uma oposiçãoentre propensão para consumir e propensão para poupar (ouinvestir); sem incluir o fundo público em sua autonomia rela-tiva, o esquema keynesiano tende a perder sua capacidadeparadigmática. O que torna o fundo público estrutural e in-substituível no processo de acumulação de capital, atuandonas duas pontas de sua constituição, é que sua mediação éabsolutamente necessária pelo fato de que, tendo desatado ocapital de suas determinações autovalorizáveis, detonou umagigantarnento das forças produtivas de tal forma que o lucrocapitalista é absolutamente insuficiente para dar forma, con-cretizar, as novas possibilidades de progresso técnico abertas.Isto somente setorna possível apropriando parcelascrescentes

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os DIREITOS DO ANTIVALOR o SURGIMENTO DO ANTIVALOR

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da riqueza pública em geral, ou mais especificamente, os re-cursos públicos que tomam a forma estatal nas economias esociedades capitalistas. A massade valor em mãos dos capita-listas, sob a forma de lucro, de cuja abundância a circulaçãomonetária contemporânea é a expressão, não deve iludir: ape-sar da enorme liquidez, essamassade valor é absolutamenteinsuficiente para plasmar as novas possibilidades abertas emacumulação de capital concreta.

O resultado desse longo processo é que o fundo públicopassou a vincular-se a finalidades determinadas aprioristica-mente, e ainda mais, pouco tem a ver com a taxa de lucrooriginal de cada capital. A rigor, é a partir da alocação de umaparcela do fundo público que a taxa de retorno ou seu equi-valente, a taxa de lucro, é calculada. Concebido como instru-mento anticíclico, tornado permanente e insubstituível, essarigidez do fundo público escapaàs regulações nacionalmenteterritorializadas. Ela torna relativamente inócuas as políticaseconômicas em muitos aspectos, dando lugar à soberania daspolíticas monetárias - e neste caso, apenas as de alguns países- posto que a indiferençada moeda (Aglietta e Orléans. Laviolencede Ia monnaie. PUF, Paris) do banco central é, nofundo, a única abrangência que cobre tanto o setor de econo-mia de mercado quanto o setor horsmarché (a economia pú-blica de bens e serviços sociais); e cobre precisamente porque,em não sendo mais a moeda a expressão do tempo de trabalhosocialmente necessário- erodida nessafunção pelo anticapitale pela antimercadoria -, terminou por ser apenasa expressãomonetária - mas não necessariamente de valor - de uma rela-ção entre credores e devedores.

Um desdobramentoteóricoparticular ao campomarxista

I quulquer outra (relevados os problemas da conversão de'11\11I' ·n preços, que aliás com o fundo público tornam-se111HI i " mente intraduzíveis). A equação original de Marx é a

I1 I)·M-D' no que se refere ao circuito do capital-dinheiro.11/11 I público funcionando como pressuposto geral de cada

''I il I em particular transforma essaequação em anti-D-D-I I '(-O), sendo que o último termo volta a repor-se no início

I1 • u çâo como anti-D, isto é, uma quantidade de moeda1111 • não sepõe como valor. O último termo é uma quantidadeII n eda que tem como oposiçãointerna a fração do fundo

11ft! lico presente nos resultados da produção social, que se1ressaem moeda, mas não é dinheiro.

Do ponto de vista do circuito da mercadoria, a equaçãoI 1 j inal de Marx era a de M-D-M, e o fundo público como

.trutura imbricante transforma a equação para anti-M-M-D-M' (-anti-M), na qual os dois primeiros termos significam as\11 imercadorias e asmercadorias propriamente ditas, eosdoisúl imos significam a produção de mercadorias e a produçãoI antimercadorias. No fundo, a segunda equação fica subsu-

mida na primeira. As conseqüências teóricas dessatransfor-mação vão seexpressar na composição do capital e na taxa de

ploração. A composição do produto, na equação C + V + M,fre a seguinte transformação: -C+C+V(-V)+M, na qual a

axa de mais-valia se reduz pela presença, na equação, dasntimercadorias sociais que funcionam como um Ersatz doapital variável. Isto quer dizer que na equação geral do pro-

duto, a taxa de mais-valia cai, enquanto na equação de cadacapital particular ela pode, e geralmente deve, se elevar.

Essatransformação repõe o problema, clássico na teoriamarxista, da tendência declinante da taxa de lucro. De fato,em perspectiva estatística, procurando medir-se o aumento docapital constante e o declínio do capital variável a partir dasoma dos capitais particulares, chega-se a uma incógnita semsolução. Porque de fato já não se pode realizar teoricamenteessasoma. Tanto o capital constante não pode ser uma somados capitais particulares, pois aí existe uma oposição operadapelo fundo público para viabilizar aacumulação decadacapital

Em termos marxistas, a função do fundo público tendeadesfazer os conceitos e realidades do capital e da força detrabalho, esta última enquanto mercadoria, ou nos termos deSraffa, a mercadoria-padrão, que determina o valor e o preço

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR

em particular, quanto não sepode mais medir o capital variávelsem considerar o salário indireto como uma forma oposta aosalário direto (por isso, na equação transformada, o segundoV tem sinal negativo). A diferença desta postulação com a"queima de excedentes" da formulação teórica do capitalismomonopolista de Estado, é que o fundo público não é capital,não podendo, senão nominalmente, senão monetariamente,ser identificado com ele; além disso, o fundo público não operacomo tendência contrarrestante à queda da taxa de lucro: defato, ele é uma expressão dela, e sua necessidade estruturalinsubstituível não se dá porque o capitalismo esgotou as pos-sibilidades de acumulação; ao contrário, o fundo público com-parece como viabilizador da concretização das oportunidadesde expansão, em face da insuficiência do lucro frente ao avas-salador progresso técnico. Em suma, já não sepode falar maisde "capital social total", mas apenas de "capital em geral". Aconseqüência teórica mais profunda é que a lei da tendênciadeclinante da taxa de lucro se afirma pela retração da basesocial global de exploração, enquanto, se tomarmos a velhafórmula em seu sentido original, a basesocial de exploraçãoseampliaria (sesomássemosasantimercadorias com o salárioreal direto), o que tornaria o paradigrna da tendência decli-nante inteiramente inócuo. Nos termos de Kuhn, o poder ex-plicativo do paradigma teria perdido toda sua potência, e porconseqüência ameaçaria o corpo teórico marxista por inteiro(Thomas Kuhn. A estrutura das revoluções científicas. Perspec-tiva, São Paulo).

O caminho percorrido pelo sistema capitalista, e particu-larmente astransformações operadas pelo Welfare State, repõea velha questão dos limites do sistema. A famosa previsão deMarx do fim do sistema foi lida literalmente, e interpretadacomumente como uma catástrofe ao estilo de Sansão derru-bando as colunas do templo. Ora, a história do desenvolvi-mento capitalista tem mostrado, com especial ênfase depoisdo Welfare State, que oslimites do sistemacapitalista sópodemestar na negação de suas categorias reais, o capital e a forçade trabalho. Neste sentido, a função do fundo público no tra-

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O SURGIMENTO DO ANTIVAI.OR

vejamento estrutural do sistema tem muito mais a ver com oslimites do capitalismo, como um desdobramento de suaspró-prias contradições internas. Dizendo em outras palavras, astransformações mais importantes do sistema capitalista sedão no coração, no núcleo duro das mais importantes eco-nomias capitalistas. O fundo público, em resumo, é o anti-valor, menos no sentido de que o sistema não mais produzvalor, e mais no sentido de que os pressupostos da reprodu-ção do valor contêm, em si mesmos, os elementos mais fun-damentais de sua negação. Afinal, o que se vislumbra coma emergência do antivalor é a capacidade de passar-sea outrafase, em que a produção do valor, ou de seu substituto, aprodução do excedente social, toma novas formas. E essasnovas formas, para relembrar a asserção clássica, aparecemnão como desvios do sistema capitalista, mas como necessi-dade de sua lógica interna de expansão.

Permanece, no campo marxista, uma interrogação sobreo fetiche da mercadoria. O percurso teórico até aqui sumari-zado tem, como necessidadeintrínseca de seudesdobramento,a anulação do fetiche da mercadoria, se esta categoria está sedesfazendo no sistema capitalista; principalmente se a forçade trabalho está se desvestindo das determinações da merca-doria. De fato, a des-mercantilização da força de trabalho ope-ra no sentido da anulação do fetiche: cada vez mais, aremuneração da força de trabalho é transparente, no sentidode que seus componentes são não apenas conhecidos, masdeterminados politicamente. Tal éa natureza dos gastossociaisque compõem o salário indireto, e a luta política setrava parafazer corresponder a"cada item do consumo uma partida cor-respondente dos gastossociais. Não há fetiche, neste sentido;sabe-seagora exatamente do que é composta a reproduçãosocial. Ou, em outras palavras, a fração do trabalho não-pago,fonte da mais-valia, se reduz socialmente. Mas, pareceria iro-nia dizer que o mundo contemporâneo é completamente des-fetichizado, pois a sociedade de massasparece a fetichizaçãoelevada à enésima potência. Pode-se, apenas, sugerir que nolugar do fetiche da mercadoria colocou-se um fetiche do Es-

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J

os DIREITOS DO ANTIVALOR

tado, que é finalmente o lugar onde se opera a viabilidade dacontinuação da exploração da força de trabalho, por um lado,e de sua des-mercantilização, por outro, escondendo agora ofato de que o capital é completamente social.

Importa também observar que o Estado de bem-estar esuasinstituições não são, agora, o "horizonte intransponível";para além dele bate, latente, um modo social de produçãosuperior. Restaresolver um problema, intacto, que éo daapro-priação dos resultados desse modo social; por enquanto, acapacidade de reprodução desatada pela atuação do fundopúblico leva água ao moinho dos proprietários de capital,numa situação em que este mesmo capital já é fundamental-mente socializado. Isto posto, a constituição dasclassessociaistambém não atingiu nenhum umbral intransponível; não háuma "eternização" nem das classesnem das relações sociais.Mas, decididamente, o acessoe o manejo do fundo públicosão o nec plus ultra das formas sociais do futuro.

O que de fato se transformou foi a relação social de pro-dução; na literatura marxista, a r~lação social de produção foiganhando cada vez mais uma conotaçâorestritiva, que termi-nou por assumir como essênciaaquilo que para Marx era apa-rência (o salário como ocultação da apropriação peloscapitalistas do valor de uso do trabalho que a força de trabalhotem). Dessa forma, sobretudo após a crítica leninista da so-cial-democracia e da derrocada desta à época do fascismo, oproblema da transformação do capitalismo em socialismo ti-nha como condição prévia a derrocada da relação social deprodução em sentido restrito, quase no sentido de relação defábrica.

Mas a relação social de produção não semede apenasnempela presença do salário nem da propriedade privada; ela in-clui, além disso, todas asesferasnecessáriaspara a reproduçãodo capital, como a circulação, a distribuição e o consumo,além da esfera da produção. A "revolução copernicana" darelação social de produção, antevista pela social-democraciaI mâ de antes do nazismo - o renascimento político da so-

l-democracia não produziu nenhuma nova perspectiva dos

O SURGIMENTO DO ANTIVAL I{

problemas teóricos principais - é a presença do fundo públicona reprodução simultânea do capital e da força de trabalho.O bloqueio leninista, baseado no próprio Marx - ver a CrítícaaoPrograma de Gotha - relegou para um segundo plano quais-quer outras mudanças na relação global-social da produção.Ora, o desenvolvimento do Welfare State é justamente a revo-lução nas condições de distribuição e consumo, do lado daforça de trabalho, e das condições de circulação, do lado docapital. Os gastos sociais públicos mudaram as condições dadistribuição dentro de uma relação social de produção queparecia ter permanecido a mesma; o fundo público como fi-nanciador, articulado r e "capital em geral" mudou as condi-çõesda circulação de capitais. Estastransformações penetramagora a esfera da produção pela via da reposição do capital eda força de trabalho, transformados nas outras esferas.E, noentido de Giannotti (Trabalho ereflexão, sobretudo o capítulo

"Formas da sociabilidade capitalista"), a sociabilidade não seconstrói, apenas,pela projeção sobre os outros setores da vidaocial dos valores do mercado, mas pelo contrário, tem nos

valores antimercado um de seustraços principais. Em outraspalavras, no terreno marcadamente da cultura, da saúde, daeducação, são critérios antirriercado os que fundamentam osdireitos modernos. É verdade que nestes tempos de reaçãoconservadora, em que parece ser o mercado, de novo, o únicocritério válido, tal posição tem tudo para parecer romântica

u fora da realidade.

Isfera pública e democracia

Mais que uma coincidência, a construção de uma esferapública, que é igual à "economia de mercado socialmente re-ulada" (termo cunhado pela social-democracia alemã deantes

da ascensãodo nazismo) identificou-se ou se ergueu sobre asbasesda regulação keynesiana. Estaesfera pública é, nos paísesapitalistas, sinônimo da democracia, simultânea ou concomi-

tante, e ao longo do tempo os avanços sociais que mapeavam

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o acessoe a utilização do fundo público entraram num pro-cessode interação com a consolidação de instituições políticasdemocráticas. Paratodos os efeitos, pode-se considerar a cons-trução da esfera pública e a democracia representativa comoirmãs siamesas.

Muitos críticos do Welfare State têm observado que, nofundo, a resultante foram bastiões corporativistas, com cadauma das classessociais ou grupos específicos defendendo fe-rozmente seusinteresses, que não se espraiam para os outros,confinando a gestão do Estado e dos interessessociais a guetosparticulares, a partir dos quais políticas de caráter geral to~-narn-se impossíveis. A direita vai mais longe, e aponta os di-reitos lato sensutrabalhistas como obstáculos ao investimentoe à acumulação. Trata-se de uma visão conservadora, que re-vela a aspiração de uma des-regulação total, a volta àspráticasde uma acumulação selvagem e o retorno das classessociais,neste caso os assalariados, à mera condição de pura força detrabalho. Interpretações mais ingênuas vêem nas instituiçõesdo Welfare State a harmonia total, a desaparição das classessociais, enquanto as interpretações mais pessimistas, vindasestassobretudo da esquerda comunista, viram nas instituiçõese práticas da esfera pública ~ nas políticas do Welfare Stateapepasa cooptação de largas parcelas do operaria?o e ~ anu-lação de seupotencial revolucionário. Um esquerdismo infan-til impenitente julga que no fundo a educação pública, a saúdepública, a previdência social e outras instituições estrut~rado-ras das relações sociais são apenas uma ilusão e contnbuempara reproduzir o capital.

O Estado de bem-estar não deixou, por isso, de ser umEstado classista, isto é, um instrumento poderoso para a do-minação de classe. Mas está muito longe de repetir apenas oEstado "comitê executivo da burguesia" da concepção originalde Marx, explorada a fundo por Lênin. Trata-se, agora, naverdade, de um Estado que Poulantzas chamou de "conden-sação das lutas de classe". "Utilizando-se uma metáfora entreo jogo de xadrez e o.jogo de damas, pude-se dizer que o Es- .tado-providê~cia é u~ espaçode lutas de classe,onde os ter-

O SURGIMENTO DO ANTIVAL R

ritórios de cada peça - no caso, de cada direito - são previa-mente mapeados e hierarquizados, isto é, não se trata de umcampo isomorfo e isônomo. Os adversários sabem que ao in-vadirem determinada área, onde ahierarquia da dama, da torreou do cavalo é dada, a luta de classesconsiste em buscar al-ternativas que anulem a posição previamente hierarquizada,e o poder de fogo, daspeçasmais importantes. Somente entreneófitos é que o jogo - ou a luta de classes- pode arrasarimpunemente o poder de cada peçapreviamente estabelecido.Nas palavras de Przeworski, trata-se de um jogo de "incertezasprevisíveis". Ao contrário, o jogo de damas, onde a hierarquiadaspeçasécompletamente horizontal- ea obtenção de "peçascoroadas" é o corolário dessahomogeneização - qualquer peçado mesmo valor pode varrer completamente toda a formaçãodejogo do adversário. A metáfora do xadrez servepara colocarem pé o que é característico da construção da esfera pública:a construção e o reconhecimento da alteridade, do outro, doterreno indevassável de seusdireitos, a partir dos quais se es-truturam as relações sociais. Enquanto em sociedades sem es-fera pública o jogo de damas é a metáfora mais pertinente: nosEstadosdemal-estar, com uma penada, o governo pode reduziralários, aumentar impostos a seu bel-prazer, confiscar bens -

mesmo os da burguesia.A estruturação da esfera pública, mesmo nos limites do

stado classista, nega à burguesia a propriedade do Estado eua dominação exclusiva. Ela permite, dentro dos limites das

"incertezas previsíveis", avanços sobre terrenos antes santuá-rios sagradosde outras classesou interesses,à condição de quei to se passeatravés de uma re-estruturaçâo da própria esferapública, nunca de sua destruição. Representa, de um ponto devista mais alto e mais abstrato, o fato de que agora "os homensf zern a história e sabem por que a fazem". É uma negaçãolos automatismos do mercado e de sua perversa tendência à

ncentração e à exclusão. E, apesar da descrença teórica nasiências sociais da existência de sujeitos - o que é, na verdade,

lima pobre confusão nascida da multiplicidade de sujeitos que, própria estruturação da esfera pública permite e requer -, o

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR

resultado surpreendente é que a esfera pública e a democraciacontemporânea afirmam, de forma mais peremptória que emqualquer outra época da história, a existência dos sujeitos po-líticos e a prevalência de seusinteressessobre a pura lógica domercado e do capital.

A construção de uma esfera pública confunde-se com aplenitude da democracia representativa nas sociedades maisdesenvolvidas, não só porque ela mapeia todas as áreas con-flitivas da reprodução social; isto equivaleria apenasa estenderou projetar asregras dasrelaçõesprivadas auma áreasoi-disantpública. O que é fundamental na constituição da esferapúblicae na consolidação democrática que lhe é simultânea, é que essemapeamento decorre do imbricamento do fundo público nareprodução social em todos os sentidos, massobretudo crian-do medidas que medem o próprio imbricamento acima dasrelações privadas. A tarefa da esfera pública é, pois, a de criarmedidas, tendo como pressupostos asdiversasnecessidadesdareprodução social, em todos os sentidos. Não é mais a valori-zação do valor per se: é a necessidade,por exemplo, da repro-dução do capital em setores que,por suaprópria lógica, talveznão tivessem capacidade de reproduzir-se. Necessidades quepodem ser de vários tipos, como já foi citado anteriormente:desenvolvimento científico e tecnológico, defesanacional, sãodas mais comuns, ou, tal como nos oferece hoje o exemplo daluta contra a Aids, necessidadessociais em escalamais amplaque não podem depender unicamente da autocapacidade denenhum capital especial. Na área da reprodução da força detrabalho, tais necessidades também se impõem: não se trataagora de prover educação apenas para transformar a popula-ção em força de trabalho; são necessidadesque são definidasaprioristicamente como relevantes em si mesmas; que elas ter-minem servindo, direta ou indiretamente, para o aumento daprodutividade não dissolve o fato principal, que é o de que,

ra, aquele aumento da produtividade que podeser seu re-sulcado não é mais seu pressuposto.

ual éa relação dessaesferapública assimconstituída comO cl m cracia representativa? Existe nessa constituição uma

O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

transformação das relações entre as classessociais; não é queagora as classessociais se subsumam no Estado, anulando avelha irredutibilidade entre Estado e sociedade civil, que, des-de Hegel, é a grande revolução burguesa. O ponto essencialéque as relações entre as classessociais não são mais relaçõesque buscam a anulação da alteridade, massomente seperfazemnuma perequação - mediada pelo fundo público -, em que apossibilidade da defesa de interesses privados requer desde oinício o reconhecimento de que osoutros interessesnão apenassão legítimos, mas necessários para a reprodução social emescalaampla. A democracia representativa é o espaço institu-cional no qual, além das classese grupos diretamente interes-sados, intervêm outras classese grupos, constituindo o terrenodo públíco, do que estáacima do privado. São,pois, condiçõesnecessáriase suficientes. Neste sentido, longe da desapariçãodas classessociais, tanto a esfera pública como seu corolário,a democracia representativa, afirmam as classessociais comoexpressõescoletivas e sujeitos da história. Para tomar um casoconcreto, quando alguma necessidade mais alta se coloca,como no caso de desativar certos setores industriais, as em-presas não podem simplesmente despedir seus trabalhadorese empregados: essaoperação é necessariamente precedida denegociações que visam a responder à pergunta de como salva-guardar os empregos e a renda daqueles que estão nos setoresa ser.emdesativados. O exemplo recente da Itália, onde fortescentrais sindicais consentiram em desindexar a curva dos sa-lários da curva da inflação, mostra bem essecaso.

Assim redefinidas asrelações entre asclasses,a capacidadede representação elevou-se notavelmente, e como seqüência,o papel e afunção dos partidos políticos. Não émais necessárioque os partidos seidentifiquem, pelassuasorigens sociais, comcertas classessociais: o que é absolutamente necessário é queelesseidentifiquem com tais ou quais modos de processar essarelação social de preservação da alteridade. Por este processo,é possível pois falar tanto de partidos de esquerda quanto dedireita, sem que isso remeta apenas a uma basesocial marca-damente c1assista;mesmo assim, na história ocidental, os par-

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osDIREITOS DO ANTIVALORO SURGIMENTO DO ANTIVALOR

Ip zes'de traçar a trajetória do resultado a ser obtido. E ~slnsses médias se constituem num dessespontos, ou em .m~alsI. um sem o que o resultado a ser obtido não tem condições

ti • ser' projetado. Daí sua enorme importância nos partidospolr icos modernos. Essasclassesméd.iasmodernas supe~am,

11 lusive, o antigo lugar da burocracia. Esta sempre fOI um'1 nte técnico da razão de Estado; as condições da regulaçãooutemporânea, fundamentalmente perpassada e estruturada

p 10 fundo público, diluem uma única r~zão de Estado"su?S-ti uindo-a pelas razões particulares que ligam o fundo p~blIco

cada movimento ou a cada capital, ou a cada condição es-I ecífica da reprodução social, incluindo-se aí a reprodução daf rça de trabalho easociabilidade geral. A b~r~craCla contm~a

existir, por certo, mas ela não mais consntui um agent? t.ec-nico à parte, senão que seinclui por inteiro nasclassesmedias.

tidos que melhor processam a gestão dessarelação são noto-riamente partidos cuja origem foi marcadamente classista.

Tanto na organização da esfera pública quanto na da de-mocracia representativa, a função intermediadora do fundopúblico alterou as relações entre as classese deu lugar à am-pliação e fixação dasfunções das classesmédias. É notável queestas, contemporaneamente, são radicalmente novas, tendoapenas um longínquo parentesco com a pequeno-burguesia,sua matriz original. Como classesocial, sua inserção geral namatriz das relações sociais de produção do sistema capitalistaabrange uma série infindável de posições, que seria fastidiosoenumerar. Mas sua natureza de classese demarca em relaçãoàs outras, o operariado e a burguesia, pela fundação de suairredutibilidade na relação social de produção; isto é, ela nãopode ser substituída nem técnica nem socialmente por nenhu-ma outra; ela não é intercambiável, o que é característico,também, das outras classessociais. Emergindo ao longo de umimenso pano de fundo histórico, tendo como matriz originala clássicaseparaçãoentre produtores e meios de produção, elase especificou no decorrer dos processos do Welfare Statecomo a classecuja "propriedade" reside na gestão da articula-ção entre o público e o privado; seus interessesnão têm cor-respondência com os das outras classessociais, mas nem porisso deixam de ser reais. O processo de constituição da esferapública especificou essasfunções de forma ainda mais radical:para operar a articulação entre o público e o privado, foi ne-cessária a constituição de um grupo social especial, que seconverte em classe exatamente sem interessesdos tipos quecaracterizam asclassessociais clássicas,o proletariado e a bur-guesia. Isto não as torna "classes bonapartistas", pois a cons-tituição da esfera pública exatamente demarca também seucampo de atuação.

Esse longo processo instaurou novos modos de repre-entação. Agora não setrata deuma representação que searmapartir apenasde interessescomo pressupostos,massobretudomo resultados. Em termos rousseaunianos, não éda vontade

, ral que se trata, mas da articulação de pontos específicos

A crise da crise

A formalização dasnovas relações sociais de produção n:sinstituições do Welfare State politizou a relaç~o do fundo pu-blico com cada segmento da reprodução social. Trata-se, emconcreto, de uma relação ad hoc, cujo único pressuposto geralé o fundo público em "abstrato". Transportado para a esferapública, essead hoc parece-secom um supe,r-~stadoo~ ?stadomáximo; a rigor, bem observado, o que ha e uma miríade dearenas de confronto e negociação, onde o aparente Estadomáximo seconverte num Estado mínimo, emaranhado no ~ró-prio tecido das novas relações; sebem que, para a determma-ção abstrata do resultado geral, o fundo público seja.aquelepressuposto unificador, a obtenção dos resultados particularestem no mesmo fundo público apenas uma dentre ou~ras de-terminações. Num terreno assim mapeado e esqu~dnnha~o,a autonomia do Estado relativiza-se cada vez mais, e e~ta aléguas de, distância do suposto Estado Moloch, denunCIado

pela direita.

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OS DIREITOS DO ANTIVALORO SURGIMENTO DO ANTIVAI.Olt

A crítica da direita e a passagemà ação, na linha das po-líticas thatcheristas e reaganianas, dirige-se aparentemente aoEstado Moloch, mas seu objetivo é dissolver as arenas especí-ficas de confronto e negociação, para deixar o espaço abertoa um Estado mínimo, livre de todas as peias estabelecidas anível de cada arena específica da reprodução social. Trata-sede uma verdadeira regressão, pois o que é tentado é a manu-tenção do fundo público como pressuposto apenas para o ca-pital: não se trata, como o discurso da direita pretendedifundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenasnaquelas onde a institucionalização da alteridade se opõe auma progressão do tipo "mal infinito" do capital. É típico dareação thatcherista e reaganiana o ataque aos gastos sociaispúblicos que intervêm na nova determinação das relações so-ciais de produção, enquanto o fundo público aprofunda seulugar como pressuposto do capital; veja-se a irredutibilidadeda dívida pública nos grandes paísescapitalistas, financiandoas frentes de ponta da terceira revolução industrial.

A nova dinâmica da economia parte dessanova situação.Sem controles institucionais, a nova dinâmica pode exacerbaro que é uma das características do oligopólio: a ereção debarreiras à competição, entre as quais se inclui a não-difusãocomo "mancha-de-óleo" do progresso técnico (Sylos Labini.Oligopólio e progresso técnico. Forense - José Arthur Gian-notti. Trabalho ereflexão. Brasiliense). Essasbarreiras não ape-nas impedirão a regulação da concorrência entre os capitais,mas em última análise podem seccionar o mercado de forçade trabalho em duas áreas irremediavelmente separadas,cru-zando-se como navios em silêncio. O efeito mais perverso sedará, finalmente, na estrutura de rendas e salários, restabele-cendo uma dualidade que o próprio sistemacapitalista há mui-to dissolveu.

O dramático é que essapossibilidade está inscrita na pró-pria forma mediante a qual o fundo público modificou o mer-cado de força de trabalho. Pois, pela relação salários dire-t s/salários indiretos, a ação do fundo público homogeneizoua estrutura do próprio salário direto num leque muito estreito.

Esta é a baseque permitirá, por exemplo, a unificação quasetotal do Mercado Comum Europeu, pois, tanto em nível dosalário indireto (gastossociais públicos como porcentagem doPIB e gastos sociais públicos como porcentagem da renda fa-miliar disponível) quanto em nível do próprio salário direto,a estrutura de rendas e salários é mais homogênea do que emqualquer dos outros grandes blocos econômico-sociais mun-diais. Isto não deve levar a pensar que o desenvolvimento ca-pitalista realizou a promessa igualitária. É inegável que ~ lequede rendas e salários estreitou-se, mas assim mesmo as diferen-ças permanecem enormes: os dados disponíveis no Compen-dium of Incoming Distribution Statistics, ONU, 1985, mostramque em 1979 a distância entre os 20% mais pobres da popu-lação e os 20% mais ricos, na Inglaterra, era de 5,67 vezes;para a Bélgica, em 1979, era de 4,56 vezes; para a Itália, em1977, de 7,08 vezes; para a Suíça, em 1978, de 5,76 vezes;para a Holanda, em 1981, de 4,36 vezes; para a Suécia, em1981, de 5,64 vezes; para o Japão, em 1979, de 4,31 vezes;para os EUA, em 1980, de 7,53 vezes; para o Canadá, em1981, de 7,55 vezes; e, finalmente, para a França, em 1985,de 7,67 vezes (Denis Clerc. "Prerniêre des injustices: Lesdisparités de revenus", Le Monde Diplomatique, ju~llet1988, Paris). Resta considerar ainda que a complexa articu-lacão entre salários diretos e salários indiretos, tendo emconta especialmente aqui o seguro-desemprego, tornou in-compressível para baixo, ou inelástico à oferta de emprego,o próprio salário direto. A nova dinâmica pode tomar essanova estrutura como um dado, um patamar a partir do qualtenta estabelecer novas diferenciações.

A baixa generalizada da taxa de sindicalização nos EUA ena Europa parece que, entre os países mais importantes, aSuéciaé uma importante exceção -, um efeito não previsto danova estrutura de renda e salários pode desguarnecer os frontsonde se trava, permanentemente, o conflito pela regulaçãoinstitucional do fundo público. A desestruturação dos grandessindicatos de trabalhadores é um dado tomado em conta pelaofensiva da direita thatcherista e reaganiana. Isto pode levar

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osDIREITOS DO ANTIVALOR

à desarticulação da alteridade, que é a condição primordialpara aquela regulação.

O ataque da direita aos gastos sociais públicos propõe,outra vez, em lugar do Welfare State, o Estado caritativo ouassistencialista. Tentando destruir a relação do fundo públicocom a estrutura de salários, a correção dasdesigualdades e dosbolsõesde pobreza - que nos EUA já sãoimensos- serádeixadaà caridade pública ou a uma ação estatal evasiva e eventual.Isto é o melhor dos panoramas, pois convém não deixar depensar no pior, que seria uma mescla altamente perigosa deassistencialismo e repressão.

Na crise atual, que ré-define a própria crise do WelfareState, a direita não propõe o desmantelamentototal da funçãodo fundo público como antivalor. O que ela propõe é a des-truição da regulação institucional com a supressão das alteri-dades entre os sujeitos sócio-econômico-políticos. Aprivatizáçâo que ocorre na Inglaterra e a reprivatização ocor-rida na França durante o predomínio da direita, nãosãoequi-valentes à desmontagem do suporte do fundo público àacumulação de capital; pois essarelação estrutural não podeser desfeita, à condição de completa anulação da possibilidadede reprodução ampliada do capital. Não se retirou o fundopúblico como fundo geral para pesquisa e desenvolvimentotecnológico; não se retirou o Estado como comprador quaseoligopsônico da indústria armamentista; sequer se retiraramos andaimes da relação do fundo público com a estrutura derendas e salários. Apesar de toda a retórica, as políticas that-cherista e reaganiana continuam a seguir os passos,de formatatibitate, deuma política keynesiana em sentido amplo. Quasetoda a política fiscal, e mais ainda, a política monetária, nãose libertou daquela ampla moldagem. Que o digam a persis-tência dos enormes déficits da economia norte-americana.

Dois pontos estão em xeque nessaampla conjuntura. Ateseneoliberal éque, nessepasso,a ultrafiscalidade do Estado,mantidos os controles institucionais do Welfare State, podeter chegado a limites que ameacem a acumulação de capital,tolhendo aspossibilidades de crescimento. O que estáemjogo,

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O SURGIMENTO DO ANTIVALOK

naaparênciada ultrafiscalidade,é que o capitalismo pós-Wel-fare State, por meio do fundo público, desatou uma capacidadede inovações que não podem ser postas a serviço da produçãofinanciadasapenaspelo lucro; exigem e puncionam parcelascrescentes do fundo público. Neste sentido, se reatualiza olimite previsto por Marx para o sistema capitalista: o limite docapital é o próprio capital. Mas essavoracidade não pode serdeixada entregue a si mesma, sem controles públicos, sob penade transformar-se numa tormenta selvagem na qual sucumbi-riam juntos a democracia e o sentido de igualdade nela inscritodesde os tempos modernos. Não deve escapar à observaçãoque, em paísescomo os EUA, o tamanho crescente da pobrezajá é um risco real nessesentido.

A crise abala os fundamentos da democracia moderna. Osistema representativo corre o risco de ser transformado numademocracia de interesses, com mandato imperativo. Em mui-tas condições, a democracia de interesses já atua no interiordo sistema representativo mais amplo. A profusão de lobbiesé sua expressão. Levado à sua expressão ultramontana, o Es-tado pode seconverter, realmente, num Estado completamen-te subordinado ao capital, o que seria uma homenagem aMarx, vinda de seus mais ferrenhos adversários e detratores.Por essecaminho, as relações se inverteriam: em lugar do Es-tado como organizador da incerteza da base,da infra-estruturaem linguagem marxista, haveria uma baseorganizando o Es-tado, que setransformaria na mais brutal imagem-espelho dobanquete dos ricos e do despojo de todos os não-proprietários.

Não existe fórmula feita nem acabada para solucionar acrise. Não setrata de uma mera crise conjuntural. Trata-se, naverdade, de levar às últimas conseqüências a verdadeira "re-volução copernicana" operada nas relações sociais de produ-ção neste século, sobretudo depois da 11Grande Guerra. Aocontrário das tesesda direita, o pós-Welfare State consiste emdemarcar, de maneira cada vez mais clara e pertinente, os lu-gares de utilização e distribuição da riqueza pública, tornadapossível pelo próprio desenvolvimento do capitalismo sobcondições de uma forma transformada de luta de classes.

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Quando todas as formas de utilização do fundo público esti-v~re~ dem~rcadasesubmetidasacontroles institucionais, quenao eo equivalente ao superior-Estado ou ao Estadomáximoentão o Estado realmente setransformará no Estadomínimo:~rata-seda estrutura de um novo modo de produção em sen-tido amplo, de uma forma de produção do excedenteque nãotem mais o valor como estruturante. Mas os valores de cadagrupo social, dialogando soberanamente.Na tradição clássicaé a porta para o socialismo. '

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A Economia Política da social-democracia"

o fundo público é um conceito construído para a investi-gaçãodos processospelos quais o capitalismo perdeu suaca-pacidade auto-regulatória; ao mesmo tempo, ele tem apretensãodesintetizar o complexo que tomou o lugar da auto-regulação.No período mais recente da história dastentativasde explicar essaperda, nasmãose pela ótica liberal e neolibe-ral, eladecorreria deuma "intervenção" estatal,quegeralmen-te não ultrapassao estágiodescritivo, e não sealça, pois, a umestatuto teórico-conceitual. A esquerda, mais precisamente amarxista, deu muito mais importância à questão,procurandoteorizar num nível mais alto; o que não quer dizer que osresultados tenham sido satisfatórios. O termo composto "in-tervenção estatal" é um pseudoconceito, que funciona comopanacéia.À suasimples enunciação, tudo parecerevelar-se,eum processodos mais complexos é acometido de reducionis-

*Artigo publicado na Revista USP, n. 17, mar-maio 1993, p. 136-143. Estetexto corresponde à aula preparada como prova de erudição no Concursopara Professor-titular da cadeira de Sociologia, do Departamento de Socio-logia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidadede São Paulo, prestado pelo autor em 19 de outubro de 1992. Ele sebeneficiadas críticas e observações dos eminentes professores membros da banca,Manoel Corrêa de Andrade, Roberto Schwarz, Fernando Henrique Cardoso,Paul Singer eJosé Reginaldo Prandi, aos quais este artigo é dedicado. Nuncaserá demais agradecer suas presenças.

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