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CARTAS DA MANSARDA n. 1 - 16/04/2014 FRANNY AND ZOOEY (J. D. SALINGER) "Franny e Zooey" (1961) é uma retomada existencial e teológica da história da família Glass, apresentada antes nas "Nove Histórias" por J. D. Salinger. O leitor que acreditar na organização suposta pelo livro o considerará a reunião de um conto e uma novela. Isso, no entanto, lhe exigirá uma confiança suspeitosa no narrador que se revela somente no interior da ficção, sem assumir uma identidade clara. Este narrador até mesmo sugerirá a possibilidade de sua existência e de seu interesse no relato. De qualquer forma, é ele que aproxima o leitor da família Glass: madness ru(i)ns in the family pulsa por cada linha, assim como a desolação humana que confronta as mentes profundas destes irmãos com vocação para enfants terribles desiludidos pelo tempo, por um mundo que é somente a criação feia de um Deus oculto. *** Há uma semana, eu começava a leitura de “Franny and Zooey”, de pé, entre as estantes da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. O dia que me vinha carregado de um sentimento de derrota diante da tragédia banal do cotidiano, pela qual, nos dizeres de Bernardo Soares, não podemos sequer nos conceber trágicos, me levou à seção de literatura onde Salinger se encontrava (não faltam teorias acerca dessa relação entre o deprimido e a literatura de desencantamento com o mundo – há uma bastante deprimente exposta por Zooey Glass no livro). As primeiras páginas com a história de Franny Glass me imergiram no mar de esvaziamento que cercava o “Apanhador no Campo de Centeio” e a árvore genealógica inteira dos Glass. Toda repulsa ao terrível, porém, vem acompanhada de um impulso de satisfação contrária, como é natural em uma consciência obedientemente freudiana como a minha. Assim me justifico a decisão de descer a rua Augusta e encontrar uma mesa onde fossem possíveis, simultaneamente, uma cerveja que conduzisse minha atormentada leitura ou um encontro fortuito com algum amigo que me aliviasse do peso do vazio com uma distração qualquer. Neste roteiro previsivelmente pautado pelo conflito psíquico, nenhuma novidade, mas uma pequena descoberta pessoal. Se bem que o destino possa até existir em um sentido místico, em geral não é muito mais do que as possibilidades construídas através das escolhas... paguei o livro e busquei a rua. *** O apego dos Glass à insustentabilidade do propósito humano se torna rapidamente na história um problema do pensamento religioso. “Franny and Zooey” é pontuado por questionamentos teológicos que irrompem da história universal do conhecimento, à maneira da Filosofia Perene e de sua busca pela unidade transcendental das religiões, conceito popularizado por Aldous Huxley no livro de mesmo nome em 1945 – dez anos antes do começo da narrativa empregado por J. D. Salinger. Esse é o provável reflexo de um escritor indisposto à adesão dogmática a um sistema de crenças, ainda que consciente da indivisibilidade e da universalidade da angústia humana que se expressa na incerteza dos caminhos místicos. A jornada pela transcendência deságua na náusea e revela-se como crise existencial, o que sugere uma intromissão do leitor na mente de um Salinger, que, aclamado pela crítica e pelo

Franny e Zooey - Adriano de Castilho Sakashira

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CARTAS DA MANSARDA n. 1 - 16/04/2014 FRANNY AND ZOOEY (J. D. SALINGER) "Franny e Zooey" (1961) é uma retomada existencial e teológica da história da

família Glass, apresentada antes nas "Nove Histórias" por J. D. Salinger. O leitor que acreditar na organização suposta pelo livro o considerará a reunião de um conto e uma novela. Isso, no entanto, lhe exigirá uma confiança suspeitosa no narrador que se revela somente no interior da ficção, sem assumir uma identidade clara. Este narrador até mesmo sugerirá a possibilidade de sua existência e de seu interesse no relato. De qualquer forma, é ele que aproxima o leitor da família Glass: madness ru(i)ns in the family pulsa por cada linha, assim como a desolação humana que confronta as mentes profundas destes irmãos com vocação para enfants terribles desiludidos pelo tempo, por um mundo que é somente a criação feia de um Deus oculto.

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Há uma semana, eu começava a leitura de “Franny and Zooey”, de pé, entre as

estantes da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. O dia que me vinha carregado de um sentimento de derrota diante da tragédia banal do cotidiano, pela qual, nos dizeres de Bernardo Soares, não podemos sequer nos conceber trágicos, me levou à seção de literatura onde Salinger se encontrava (não faltam teorias acerca dessa relação entre o deprimido e a literatura de desencantamento com o mundo – há uma bastante deprimente exposta por Zooey Glass no livro). As primeiras páginas com a história de Franny Glass me imergiram no mar de esvaziamento que cercava o “Apanhador no Campo de Centeio” e a árvore genealógica inteira dos Glass. Toda repulsa ao terrível, porém, vem acompanhada de um impulso de satisfação contrária, como é natural em uma consciência obedientemente freudiana como a minha. Assim me justifico a decisão de descer a rua Augusta e encontrar uma mesa onde fossem possíveis, simultaneamente, uma cerveja que conduzisse minha atormentada leitura ou um encontro fortuito com algum amigo que me aliviasse do peso do vazio com uma distração qualquer. Neste roteiro previsivelmente pautado pelo conflito psíquico, nenhuma novidade, mas uma pequena descoberta pessoal. Se bem que o destino possa até existir em um sentido místico, em geral não é muito mais do que as possibilidades construídas através das escolhas... paguei o livro e busquei a rua.

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O apego dos Glass à insustentabilidade do propósito humano se torna

rapidamente na história um problema do pensamento religioso. “Franny and Zooey” é pontuado por questionamentos teológicos que irrompem da história universal do conhecimento, à maneira da Filosofia Perene e de sua busca pela unidade transcendental das religiões, conceito popularizado por Aldous Huxley no livro de mesmo nome em 1945 – dez anos antes do começo da narrativa empregado por J. D. Salinger. Esse é o provável reflexo de um escritor indisposto à adesão dogmática a um sistema de crenças, ainda que consciente da indivisibilidade e da universalidade da angústia humana que se expressa na incerteza dos caminhos místicos. A jornada pela transcendência deságua na náusea e revela-se como crise existencial, o que sugere uma intromissão do leitor na mente de um Salinger, que, aclamado pela crítica e pelo

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público, retira-se violentamente de cena e se recolhe em isolamento pelo resto de sua vida. O Ego, veículo inevitável da experiência do indivíduo, não encontra saída alguma no mundo que dele se projeta, e resiste até mesmo à tentação de realizar-se naquele máximo desprendimento que sua condição pode oferecer – na sublimação artística e no encontro com o Outro.

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Com meu cigarro queimando esquecido na boca, continuei a leitura enquanto

os passos que me envelheciam página por página também me levavam pela Augusta, direção centro; o que segue é a obscura maquinação do desejo. Sobre a dobra das páginas onde crescia o percurso da rua, vi um rosto familiar que também foi crescendo ao meu encontro até estampar o sorriso de Maria Giulia. Embora viesse desiludida e já partisse, desenhou-me no rosto qualquer expressão de felicidade e me carregou pelas mãos à mesa onde Luiza e Carolina se sentavam entre algumas cervejas e seu contentamento habitual, contagioso. A vida é a arte do encontro, que os esquivos como eu desaprenderam pelo hábito forçado de tanto desencontrar. Como regra geral, um livro, cerveja, um bar com mesas à rua e a atenção afetuosa de duas mulheres bonitas bastam para o exercício mais sincero da alegria. Mas o pressuposto de tudo isso, pressuposto ao prazer de um encontro, ao consolo trazido pelo trago, ao afeto nutriente da beleza, ao sol sem chagas da alegria (pressuposto mesmo ao curso das lágrimas) é o apego sem motivo à Vontade. O querer, me lembrei de Maria Giulia, é bruta flor. A Vontade é uma massa obscura de apelos, uma parede de lamentação onde eu aguardo resignadamente que abram as portas e me deixem passar. A Vontade invoca sua satisfação imediata, sem ideal, e nos precipitamos a alimentá-la com nossas melhores horas de espera. Sinto-me estrangeiro dentro de minhas próprias ações, às vezes pareço estar em um hospital psiquiátrico onde outro paciente vestiu-se de médico e toma-me o pulso, testa-me a insensatez... outras vezes, porém, tenho as mãos cheias, e deito tudo para o chão. Procuro sorrir às moças, despeço-me e me afasto, e volto ao livro de Salinger em um bar do Bixiga.

***

Somos todos estúpidos de nos deixar levar assim pelas distrações. Sempre, sempre, sempre ignorando toda santa coisa que acontece pelas costas do nosso ego ridículo.

“Franny e Zooey” é um modo de vida, um guia espiritual, moral e de conduta.