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Gabriel Muniz Improta França Sambajazz em movimento: o percurso dos músicos no Rio de Janeiro, entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960” Tese de Doutorado Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Orientadora: Prof ª. Sonia Maria Giacomini Co-orientador: Prof. José Alberto Salgado e Silva Volume I Rio de Janeiro Setembro de 2015

Gabriel Muniz Improta França Sambajazz em movimento: o ... · A metodologia que me trouxe até aqui. Por que este percurso? 38 1. O percurso inicial 53 1.1. Tornar-se músico 53

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Gabriel Muniz Improta França

“Sambajazz em movimento: o percurso dos músicos no Rio de Janeiro,

entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960”

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof ª. Sonia Maria Giacomini

Co-orientador: Prof. José Alberto Salgado e Silva

Volume I

Rio de Janeiro Setembro de 2015

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Gabriel Muniz Improta França

“Sambajazz em movimento: o percurso dos músicos no Rio de Janeiro,

entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960”

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Sonia Maria Giacomini Orientadora

Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio

Prof. Vassili Rivron

EHESS

Prof. Helio Raymundo Santos Silva Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio

Prof. Roberto Augusto DaMatta Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio

Prof. Valter Sinder Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio

Profa. Mônica Herz Coordenadora Setorial do Centro

de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 08 de setembro de 2015

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Todos os direitos reservados. É proibida a

reprodução total ou parcial do trabalho sem

autorização da universidade, do autor e do

orientador.

Gabriel Muniz Improta França

Bacharel e mestre em Composição Musical pela

Universidade do Rio de Janeiro - UNI-RIO (2001,

2007). Formado no programa Professional

Musician do Musicians Institute, Los Angeles,

EUA, através de uma bolsa da CAPES (2003).

Durante o doutorado que resultou nesta tese,

realizou estágio no exterior em 2014 no programa

de Pós-Graduação em Ciências Sociais da École

des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris,

França. Desenvolve pesquisas nos campos da

antropologia, etnomusicologia e musicologia,

concentrando-se no estudo da música popular

brasileira e afro-brasileira.

Ficha Catalográfica

CDD: 300

França, Gabriel Muniz Improta Sambajazz em movimento : o percurso dos músicos no Rio de Janeiro, entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960 / Gabriel Muniz Improta França ; orientadora: Sonia Maria Giacomini ; co-orientador: José Alberto Salgado e Silva. – 2015. 353 f. 2v: il. (color.) ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Sociais, 2015. Inclui bibliografia 1. Ciências Sociais – Teses. 2. Música popular brasileira. 3. Samba-jazz. 4. Sambajazz. 5. Música negra. 6. Gêneros musicais. I. Giacomini, Sonia. II. Silva, José Alberto Salgado e. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Ciências Sociais. IV. Título.

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Para os saudosos Ion Muniz e Barrosinho.

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Agradecimentos

À saudosa Santuza Cambraia Naves pelo convite e orientação primeira neste

doutorado.

À Sonia Giacomini e José Alberto Salgado pela muito valorosa orientação.

À Denis Laborde pela orientação no período da bolsa sanduíche.

À Maria Isabel Mendes de Almeida, Frederico Machado de Barros e Luisa Elvira

Belaunde pelos conselhos e apoio nas traduções.

À Roberto da Matta, Valter Sinder, Eduardo Raposo, Vassili Rivron, Hélio Silva,

Eduardo Viveiros de Castro, Samuel Araújo, Luiz Werneck Vianna e a todos os

professores e colegas que compartilharam com este aprendiz o seu amor pelo

estudo.

À CAPES pelas bolsas de doutorado e do Programa Institucional de Bolsas de

Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), bem como à PUC-Rio pela bolsa

PROSUP e por todo o apoio que me foi dado pela instituição durante o meu

doutorado.

Ao Programa de Pós-Graduação, ao Departamento de Ciências Sociais da PUC-

Rio.

À João Donato, Raul de Souza, Pedro Paulo, Alfredo Cardim, Tomás Improta,

Maurício Einhorn, Mauro Jerônimo, Edson e Tita Lobo, Sérgio Barrozo, Wagner

Tiso, Marcelo Costa, Jorge Helder, Rodrigo Villa, Thiago Queiroz e a todos os

músicos que contribuíram direta ou indiretamente para esta pesquisa.

À Tarik de Souza pela esclarecedora entrevista.

À Jonas Soares Lana, Ivone Belem, Roberto de Moura, Pedro Larrubia e Cristina

Nascimento pelo apoio nas entrevistas e pelas fotografias.

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Resumo

França, Gabriel Muniz Improta; Giacomini, Sonia Maria. Sambajazz em

movimento: o percurso dos músicos no Rio de Janeiro, entre fins dos

anos 1950 e início dos anos 1960. Rio de Janeiro, 2015. 353p. Tese de

Doutorado. Departamento de Ciências Sociais. Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro.

O sambajazz foi um movimento de modernização da música brasileira que

se deu entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960. Esta pesquisa realiza uma

etnografia dos músicos praticantes do sambajazz no Rio de Janeiro, com foco em

questões ligadas à uma sociologia dos instrumentos musicais, bem como nas

oposições entre a seção rítmica e os solistas, assim como entre as bipartições

correlatas entre corpo e mente, ou mão e cabeça. É também levantada a questão

do uso musical da palavra no sambajazz e na Música Popular Brasileira. Para

tanto foram realizadas entrevistas com músicos que viveram o sambajazz, assim

como com músicos atuais. A tese aborda também o tema da música negra, que

perpassa o sambajazz na obra de criadores como Moacir Santos e Paulo Moura,

assim como a construção das categorias sambajazz e bossa nova através da análise

de periódicos da época. São discutidas ainda questões relativas à indústria cultural

brasileira e a profissão de músico hoje, no Rio de Janeiro.

Palavras-chave

Música popular brasileira; samba-jazz; sambajazz; música negra; gênero

musical; seção rítmica.

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Abstract

França, Gabriel Muniz Improta; Giacomini, Sonia Maria. (Advisor)

Sambajazz on the move: the pathways of musicians in Rio de Janeiro,

between the late 1950s and the early 1960s. Rio de Janeiro, 2015. 353p.

PhD's Thesis. Department of Social Sciences. Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro.

Sambajazz was a modernization movement of Brazilian music which took

place between the late 1950s and the early 1960s. This research provides an

ethnography of musicians practitioners of sambajazz in Rio de Janeiro, focusing

on issues related to a sociology of musical instruments and the oppositions

between rhythm section and soloists, as well as between the associatated

bipartition of body and mind, and hand and head. It also raises the question of the

musical use of words in sambajazz and Brazilian Popular Music. To this end,

interviews with musicians who played sambajazz in the mid XX´s century, as well

as with current musicians, were carried out. The thesis also deals with the topic of

black music which runs through sambajazz in the work of creators such as Moacir

Santos and Paulo Moura, and with the study of the construction of the categories

of sambajazz and bossa nova through the archival analysis of journals and

magazins of the period. Issues related to Brazilian cultural industry and the current

musical profession in Rio de Janeiro are also discussed.

Keywords

Brazilian popular music; samba-jazz; sambajazz; black music; musical

genre; rhythm section.

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Sumário

Introdução 14 1. O sambajazz como o movimento de uma onda sonora 14 2. O percurso entre a música e as ciências sociais 23 3. Situando-me 24 4. A metodologia que me trouxe até aqui. Por que este percurso? 38 1. O percurso inicial 53

1.1. Tornar-se músico 53 1.2. Édison Machado e o mimetismo corporal entre músicos 58 1.3. Sérgio Barrozo e uma sociologia dos instrumentos aplicada ao sambajazz 67 1.4. Antropologia do corpo e o jazz como espetáculo 72 1.5. Piano universal, violão local 78 1.6. Paulo Moura: o solista e o trabalho braçal/intelectual 84

2. A cozinha afro-brasileira 90

2.1. É samba novo: a “cozinha” toma a frente do samba moderno 90 2.2. Moacir Santos e a erudição negra: invertendo os polos para avançar mais 95 2.3. A “cozinha” afro-brasileira: da culinária rítmica às altas melodias 106 2.4. Johnny Alf e as contradições do samba moderno 119 2.5. A racionalização das músicas negras 123 2.6. O Atlântico negro 126

3. Os locais do sambajazz 133

3.1. O sambajazz com um pé na gafieira 133 3.2. Raul de Souza desce aos graves: o baile e a improvisação 140 3.3. O Beco das garrafas: o local da experimentação 143 3.4. O jazz no Brasil e a impossibilidade de se “ensacar o som” 153

4. O som das palavras no sambajazz 159

4.1. O vôo dos “canários” no sambajazz 159 4.2. A “diáspora” e o fim anunciado em palavras 170 4.3. As músicas sem voz 179 4.4. João Donato: a palavra ou a coisa 184

5. A crítica e as categorias do som: como enquadrar o movimento das ondas sonoras? 196

5.1. Apresentação e breve histórico 196 5.2. A purificação das categorias sambajazz e bossa nova 201 5.3. As diversas bossas ou o genérico samba moderno 204 5.4. Estabilizando o sambajazz: Robert Celerier e a crítica jornalística 218 5.5. O Clube de Jazz e Bossa 226 5.6. O jazz e o sambajazz enquanto músicas negras 232 5.7. O problema das categorias ou gêneros musicais 236

6. O fim do samba moderno 239

6.1. Nara Leão e o fim da bossa nova 239

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6.2. O divórcio entre o social e o musical 249 6.3. A construção da categoria bossa nova 252 6.4. A conjunção entre a mão e a cabeça 261

7. A indústria cultural e a profissão de músico hoje 264

7.1. Principais questões relativas à indústria cultural 264 7.2. O sambajazz entre a era do rádio e a era da televisão 266 7.3. A Indústria Cultural no “ritmo do aço” 268 7.4. O músico profissional no contexto da indústria cultural 275 7.5. A segmentação de mercado 276 7.6. A profissão de músico no Rio de Janeiro atual em comparação

com o período do sambajazz 279 Conclusão 295 Referências bibliográficas 304 Referências fonográficas e audiovisuais 315 Apêndice - Digressão literária: a morte da personagem e o início da sua vida em palavras 319 Anexo I - Roteiro das entrevistas 325 Anexo II - Figuras: capas, contracapas e fotografias 326 Anexo III - Periódicos 336 Anexo IV - DVD de áudio anexo 353

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Lista de figuras

Figura 1: Turma da Gafieira (1956) – capa 326 Figura 2: Turma da Gafieira (1956) – contracapa 326 Figura 3: Turma da Gafieira: Samba em Hi-Fi (1957) – capa 326 Figura 4: Turma da Gafieira: Samba em Hi-Fi (1957) – contracapa 326 Figura 5: Édison Machado: É samba novo(1963) – capa 327 Figura 6: Édison Machado: É samba novo(1963) – contracapa 327 Figura 7: João Donato e seu trio – A bossa muito moderna (1963) - capa 327 Figura 8: Raul de Souza – À vontade mesmo (1965) – capa 327 Figura 9: João Donato e seu trio – Muito à vontade (1963) – capa 328 Figura 10: João Donato e seu trio – Muito à vontade (1963) – contracapa 328 Figura 11: Tenório Jr. – Embalo (1964) – capa 328 Figura 12: Tenório Jr. – Embalo (1964) – contracapa 328 Figura 13: Sérgio Mendes e Bossa Rio. – Você ainda não ouviu nada! (1964) – capa 329 Figura 14: Sérgio Mendes e Bossa Rio – Você ainda não ouviu nada! (1964) – contracapa 329 Figura 15: Compacto Zambi (1965), de Elis Regina e Zimbo Trio - capa 329 Figura 16: Texto de Vinícius de Moraes na contracapa de Rio (1964), Paul Winter 329 Figura 17: A primeira formação do Bossa Rio, no Bottle´s, Beco das Garrafas 330 Figura 18: A primeira formação do Sexteto Bossa Rio, na histórica apresentação do Carnegie Hall 331 Figura 19: fotografia da jazz band de Pixinguinha 331 Figura 20: O pianista Tenório Jr., com barba e cabelos grandes, em 1976 332 Figura 21: Édison Machado no longa-metragem Terra em transe (1967), de Glauber Rocha 332

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Figura 22: Concerto de Bossa Nova na PUC-RJ, em 1960 333 Figura 23: Entrevista com Raul de Souza 333 Figura 24: No palco do show AfroBossaNova, em 2008, Bahia, com Armandinho Macedo e o mestre Paulo Moura 334 Figura 25: Com Moacir Santos, em 2006, no Rio de Janeiro 334 Figura 26: Com João Donato, ouvindo “as melhores músicas do mundo” segundo ele, após a entrevista em sua casa, em 2013 334 Figura 27: Com o trompetista Pedro Paulo, durante a entrevista 335

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Lista de periódicos reproduzidos no Anexo III

ALBUQUERQUE, João Luis & SANTOS, Hélio. A dança da bossa nova. Jornal do Brasil. 09/01/1963 336 CELERIER, Robert. Jazz, uma música de sentido social. Correio da Manhã, 03/06/1962 337 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz. Correio da Manhã, 25/10/1964 338 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz II. Correio da Manhã, 08/11/1964 339 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz III. Correio da Manhã, 15/11/1964 340 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz IV. Correio da Manhã, 6/12/1964 341 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz V. Correio da Manhã, 27/12/1964 342 CORREIO DA MANHÃ. Os dez discos mais vendidos da semana. 24/03/1957 343 FUKS, Moysés. Sambajazz. Ultima Hora. 10/06/1961 344 FUKS, Moysés. Nota. Ultima Hora. 06/06/1961 345 IVAN, Mauro & PORTELLA, Juvenal. Povo é música de Moacir a caminho de sua obra erudita. Jornal do Brasil. 18/12/1964 346 JORNAL DO BRASIL. Bossa nova não e só nossa. Caderno B - “especial BN”, em 09/01/63 346 JORNAL DO BRASIL. Música moderna só tem um nome: bossa nova. 31/01/1960 347 MORAES, Vinícius. Vinícius de Morais explica o que significa bossa nova Correio da Manhã em 31/03/1960 348 O GLOBO. Discos mais vendidos no Rio. 19/10/1965 349 O GLOBO. Morre no Rio Édison Machado, o criador do ‘samba no prato’ 16/09/1990 349 PORTO, Sérgio. Discoteca Lalau. Última Hora, em 16/03/1964 350

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PORTO, Sérgio. Monsueto agora é mais humorista que sambista. Última Hora em 03/09/1964 350 PORTO, Sérgio. Três desconhecidos fazem sucesso na base do samba. Última Hora em 28/05/1964 351 ÚLTIMA HORA. Samba Hi-Fi para Miss U. 19/10/57 352

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Introdução

1. O sambajazz como o movimento de uma onda sonora

Como uma onda sonora, o movimento do sambajazz1 descreveu um

percurso, se propagou pelo ar e fez vibrar os corpos. Onda complexa e plural, ele

soou em muitas frequências, mais ou menos harmônicas entre si, foi vivido e

escutado de muitas formas. Mas ainda assim pode ser entendido como um

movimento que se propagou a partir de um corpo de músicos e práticas em um

certo tempo e lugar, o Rio de Janeiro da passagem dos anos 1950 aos 19602. O

sambajazz foi uma música de transformação rumo à modernidade representada

pelo jazz, embora sem o abandono da raiz/risoma do samba e da tradição da

música dançante latino-americana.

O acreano João Donato disse certa vez em entrevista que toda sua música

deriva de uma melodia que ele ouviu ainda na infância, assobiada por um índio

que passava, em uma canoa, por um rio de sua terra natal3. Nada melhor que uma

metáfora primeira como esta para descrever um movimento. O sambajazz é como

um rio, com muitos afluentes e desagues, que corre mais forte entre suas duas

margens: a do samba e do jazz, do nacional e do estrangeiro, do tradicional e do

moderno, do branco e do negro, do popular e do erudito, do sucesso e do fracasso

de vendas na indústria cultural. Não há, porém, dualismos nesta entre-navegação

que é una, e não uma oscilação entre contrários. No sambajazz não se vai do

samba de “raiz” à “influência” do jazz, mas se está entre ambos, em uma trajetória

impulsionada pluralmente, sem contradições. Pensando com Deleuze e Guattari,

“o meio não é uma média; ao contrário é o lugar onde as coisas adquirem

velocidade.” (2009, p.35). É justamente entre as duas margens, no meio do rio

onde ambas se fazem sentir, que o movimento ganha mais velocidade. Sem partir

de uma margem para chegar à outra, mas realizando um “movimento transversal”

1 Optou-se nesta tese por grafar sambajazz como uma só palavra, sem hífen, em acordo com a mais

recente reforma ortográfica da língua portuguesa. Considerou-se que sambajazz, enquanto termo

que designa este movimento musical, perdeu a noção de composição. 2 Apesar de São Paulo também ter vivido o sambajazz ativamente, esta tese tem seu recorte no

movimento carioca. 3 Ainda segundo Donato, esta melodia é a base da sua música Índio Perdido, posteriormente

chamada de Lugar Comum, com letra de Gilberto Gil, presente na versão original no DVD de

áudio em anexo.

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(idem) entre o samba e o jazz, o sambajazz navega no ponto mais forte da

correnteza.

Sendo eu um músico e um pesquisador apaixonado pela música brasileira

e com um interesse especial por este período entre fins dos anos 1950 e início dos

anos 1960, quando floresceram a bossa nova e também o sambajazz, eu quis trazer

à cena este que me pareceu ser o lado B do genérico samba moderno que se

buscava então. Se o lado A de um LP é aquele onde se encontram os maiores

sucessos do momento, aquelas músicas que “tocam no rádio”, mas que logo são

esquecidas pelo ouvinte ligado na música da moda, o lado B é onde se concentram

as músicas mais densas e trabalhadas, situadas em uma esfera de circulação

restrita; e que na opinião dos “entendidos”, sejam eles músicos, estudiosos ou fãs

mais assíduos, são as que permitem um mergulho mais profundo. Possivelmente

serão estas as músicas que, quando a poeira momentânea do sucesso baixar,

ficarão na História como a grande realização contida neste LP. Ou talvez não. Mas

não importa, a motivação desta tese não é fixar em elevado altar um sambajazz

ideal. Quero antes me juntar ao movimento sonoro lançado por estes jovens

músicos em fins dos anos 1950 e que hoje continua reverberando, mas que

também se converteu em pesquisa traduzida em palavras de jornalistas,

pesquisadores, e músicos que fazem parte deste universo. Muitos instrumentistas

hoje anunciam suas práticas como sendo sambajazz4. Desde o relançamento de

seus álbuns nos anos 1990, o movimento parece ter renascido, tanto para músicos

como para pesquisadores e jornalistas5.

4 Para citar apenas um exemplo entre muitos, o pianista Kiko Continentino e seu Sambajazz Trio

tem se apresentado regularmente no Rio de Janeiro, na última década. 5 Cito, como exemplo de jornalismo neste sentido, um trecho da matéria de Arthur Dapieve,

publicada em O Globo em 03/07/2015, sob a manchete Samba-jazz no dúplex - A bossa nova, o

samba e o jazz se encontram numa cobertura da Lagoa. Conforme Dapieve: “A bossa nova e o

samba-jazz são gêmeos, mas não univitelinos. A primeira destaca a voz, que estiliza os

sentimentos em prol da elegância e da concisão. Até o sofrimento é suave. Quem canta “Ah, por

que estou tão sozinho? / Ah, por que tudo é tão triste? ” Não está a se rasgar, e sim a contemplar a

própria dor de uma distância segura. A bossa nova tem como expoentes as parcerias de Tom e

Vinicius, o banquinho e o violão de João Gilberto, o piano de Johnny Alf, as harmonias dos

Cariocas.... Venceu na vida a ponto de, num movimento fascinante, ter influenciado uma de suas

influências, o jazz.

Já o samba-jazz foi ser gauche na vida, sobretudo por dispensar a voz. O canto contido da bossa

obriga os músicos a tirarem o pé. Sem os “canários” por perto, eles podem sentar a mão. Se a má

bossa nova sofre de anemia, o bom samba-jazz esbanja vigor. São seus eternos expoentes, entre

outros, o baterista Edison Machado (falecido em 1990), o maestro Moacir Santos (falecido em

2006), os saxofonistas J.T. Meirelles (falecido em 2008) e Hector Costita (nascido na Argentina,

há 80 anos). Espetaculares LPs dos anos 1960, como “Edison Machado é samba novo”, “Coisas”,

de Moacir, e “Impacto”, do sexteto de Costita, foram relançados em CD no início do século XXI.

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O sambajazz foi mais que somente “música para entendidos” e seria

injusto classificá-lo como impopular à época de seu surgimento. Pelo contrário, os

músicos que o praticavam, como Sérgio Mendes e Milton Banana frequentemente

foram sucessos de vendagem de LPs, e suas músicas eram facilmente ouvidas nos

meios de comunicação da época. Eles também participaram de diversos festivais e

shows de música que tinham visibilidade na imprensa, onde se apresentavam ao

lado de nomes conhecidos da bossa nova, conforme se há de ver nos capítulos 5 e

6. Foi também esta condição incomum do sambajazz, cuja prática é anterior à

bipartição, que teve seu auge nos anos 1970, entre “cantores de sucesso” na MPB

versus instrumentistas isolados em seus guetos musicais, que me motivou a lançar

luz sobre o movimento nesta pesquisa. Uma questão cara a esta tese, que será

abordada no capítulo 7, voltada ao contexto da indústria cultural é: como o

sambajazz, uma música por vezes dita “instrumental”, com foco na improvisação,

características reconhecidamente “anti-comerciais”, pôde emergir em esquemas

comerciais neste entre período que fecha a era do rádio e inicia a era da televisão

no Brasil?

O sambajazz foi também a música feita por jovens trabalhadores da noite,

instrumentistas e cantores, que se profissionalizavam pioneiramente em uma

indústria cultural instável. Se seu movimento partiu das gafieiras, estes bailes

tradicionais onde os músicos frequentemente iniciavam suas carreiras, ele foi mais

intenso na cena noturna de Copacabana, bairro emergente, símbolo do Rio de

Janeiro moderno de então. Sua música animou o Beco das Garrafas, local por

excelência do sambajazz, que foi o palco onde surgiram músicos tão diversos

como Baden Powell, Elis Regina, Jorge Ben, Édison Machado, Sérgio Mendes,

Tamba Trio, Raul de Souza, Pedro Paulo, entre muitos outros. Eles viveram um

momento tão especial quanto fugidio da indústria cultural brasileira, na passagem

da década de 1950 para a de 1960, entre o ocaso da era do rádio com sua rica

Desde então os escuto e me pergunto por que o samba-jazz não tem a mesma visibilidade — ou

audibilidade — que a bossa nova. Decerto uma das razões é exatamente ser um gênero de música

instrumental, sempre menos comercial que a cantada, pois puxa pela capacidade de abstração do

ouvinte. Outra razão é a dificuldade de praticá-lo. Não há enganação possível. Os músicos acima

citados, além dos membros dos trios Zimbo, Tamba, Salvador e Jorge Autuori, apenas para

expandir os exemplos, eram todos cobras. (Os Cobras, aliás, foi o nome de uma banda que reuniu

Milton Banana, Tenório Jr., Raulzinho, Zezinho e Hamilton Cruz, com participações de J.T.

Meirelles e de Paulo Moura.) Uma terceira razão pode ser que, em especial a partir dos anos 1970,

a música instrumental brasileira sofreu enorme influência dos ensinamentos — que em mãos e

pulmões menos criativos logo se cristalizaram em clichês — do Berklee College of Music, de

Boston. O samba-jazz perdeu massa crítica e, logo, energia. ”

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cultura de grandes orquestras e o nascimento da era da televisão, esta mídia que

se tornaria hegemônica no país a partir dos anos 1970 (ORTIZ, 1999). Neste curto

entre tempo, eles puderam expressar suas músicas como solistas e lançar álbuns

de alcance público por gravadoras importantes. Esta posição que amealharam

contrasta com o lugar subalterno de instrumentistas acompanhadores que a

indústria fonográfica e televisiva lhes reservaria como função principal na década

seguinte (CASTRO, 1990, BAHIANA, 1980).

Uma característica central ao sambajazz, e que me motivou a tematizá-lo

aqui, foi sua forte elaboração sobre o fator musical do ritmo, que se liga à dança e

se traduz em corporalidade. Pode-se dizer mesmo que este foco rítmico

excepcional no interior de uma música que nem sempre foi destinada a dançar –

pois se trata de um gênero considerado apenas “para ouvir” - é uma característica

importante do sambajazz. O álbum Turma da gafieira (1956) foi considerado

fundador deste movimento pelo jornalista Robert Celerier, conforme se

acompanhará no capítulo 5. Deste álbum participaram diversos músicos do

sambajazz como Édison Machado e Raul de Souza, entre outros. Esta gravação

evidencia a importância do baile de gafieira ao movimento, que traz no seu cerne

a dança. A invenção do sambajazz se dá, pois, sobre o ritmo, sobre o foco na

construção de levadas6 originais, sobre a valorização da seção rítmica

7 enfim,

sobre a dança e as relações rítmicas que se estabelecem entre sons e pessoas. Esta

característica foi fundamental para o surgimento do samba moderno de então,

cujos frutos - as racionalizações em categorias musicais - geraram o sambajazz, a

bossa nova e também o afrosamba. Estes movimentos são, no fundo, movimentos

de reinvenção, ou de modernização do samba. Estas são categorias sempre

imbricadas, e o pesquisador Marcelo Silva Gomes (2007) atribui a origem da

bossa nova à invenção rítmica no sambajazz:

6 As “levadas” se constituem em pequenas células rítmico-harmonicas continuamente repetidas

com pequenas variações, e que tem a função de “embasar” as melodias. Elas desempenham um

papel fundamental na música “popular” ocidental porque se constituem nas estruturas rítmicas e

harmônicas que fundam a prática destas músicas, permitindo não apenas a execução do grupo de

músicos sobre uma métrica comum continuamente reiterada e variada, mas também fazendo com

que os ouvintes identifiquem os gêneros. Estes são significados através das levadas, como bossa

nova, baião ou bolero, para citar exemplos comuns. Outros sinônimos muito usados de levada são

“batida” ou “groove”. 7 Seção composta por instrumentos como bateria, baixo, percussão e violão ou piano, e

encarregada da manutenção da levada.

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Esta mudança na concepção do ritmo é uma das principais características deste

universo sonoro, aqui reunido sob o nome de Samba-Jazz. Sua contribuição

musical tem sido a de abrir um novo campo de possibilidades de

acompanhamento, seja realizando-o de forma mais assimétrica, mais aberta e

mais interativa, empregando “colocações cruzadas”, seja contribuindo para a

criação de novos estilos, como, por exemplo, a Bossa Nova. Esta, se aproveitando

das novas possibilidades de acompanhamento rítmico, elege alguns para

cristalizar, o que aparentemente deságua então num novo estilo. E, neste trabalho,

tal mudança de concepção no acompanhamento serve como ferramenta de

diferenciação entre conteúdos musicais que, tendo em seu âmago a matriz do

samba, empregam procedimentos distintos a ponto de utilizarem concepções do

ritmo do acompanhamento harmônico inteiramente diversas. Isso promove a

lembrança, não obstante a dimensão histórica alcançada, de que havia muito mais

do que Bossa Nova no período que cerca sua inauguração.” (GOMES, 2007, p.

12).

Os músicos de sambajazz reinventaram o ritmo do samba a partir das bases

da música brasileira e de todo o continente americano: a batucada e o baile,

intrinsecamente ligados à dança e aos movimentos do corpo. Eles promoveram um

desdobramento da tradição do samba, aliada à liberdade de invenção e à

modernidade negra “primitiva” que exalava do jazz internacional. Inicialmente

chamado de samba moderno, o sambajazz, bem como sua irmã siamesa, a bossa

nova, mais fina e concisa, levaram uma tradição musical brasileira adiante,

desdobrando-a.

É samba novo, é o primeiro álbum de Édison Machado, de 1965, cujo

título anuncia esta renovação, e onde ele aparece ao lado dos mais importantes

instrumentistas e arranjadores da época, percutindo orgulhoso à bateria o vibrante

“samba no prato” que caracterizava sua performance. Você ainda não ouviu

nada!, exclama o pianista de futuro sucesso internacional, Sérgio Mendes, no

título de seu LP (1964) com arranjos e composições dos dois grandes maestros do

samba moderno, Tom Jobim e Moacir Santos, um retrato em branco e preto da

mais depurada e mais moderna música da época.

Os músicos do sambajazz não foram apenas os tradicionais cantores ou

solistas de destaque da indústria cultural da época. Eles foram também bateristas,

como o carismático líder Édison Machado, nascido em Engenho Novo, RJ, ou

como Milton Banana, cujos LPs se tornaram um sucesso de vendas, além dos

importantes músicos Airto Moreira, Dom Um Romão, Wilson das Neves e Victor

Manga. Eles foram criadores eruditos especializados na invenção de levadas afro-

brasileiras, como o “maestro” pernambucano Moacir Santos, pianistas capazes de

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conjugar harmonias avançadas a levadas incrivelmente suingadas de mão

esquerda, como o acreano João Donato e seu inconfundível toque latino de samba,

ou trombonistas capazes de ganhar o respeito máximo dos mais importantes

solistas internacionais do jazz, como o carioca de Campo Grande, Raul de Souza.

Todos tinham em comum a forte ligação com o baile de gafieira, com a rítmica do

samba, com a espontaneidade do jazz, enfim, estavam comprometidos com uma

música que remetia à corporalidade e à performance.

Mas eles foram também profissionais musicalmente ambiciosos, de alto

nível artístico e técnico, requisitados em gravações pelos mais importantes artistas

da época, brasileiros e internacionais. Muito frequentemente investiram parte de

sua formação no estudo de música erudita, virtuoses circulando com destreza

entre as fluidas fronteiras que dividem o popular do erudito, como Paulo Moura,

que, além de improvisador de jazz e instrumentista de choro, também foi

clarinetista solista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio, a partir de

1959. Ou como o pianista Tenório Júnior, que lançou apenas um álbum, o

excepcional Embalo (1964), pleno de sonoridades impressionistas e harmonias e

composições sofisticadas e cuja vida foi colhida tragicamente pela ditadura

argentina quando em turnê com Vinícius de Moraes e Toquinho por aquele país,

em 1976 (OLIVEIRA, 1986).

Eles foram, por fim, músicos criadores como o compositor, pianista e

cantor Johnny Alf, precursor tanto da bossa nova quanto do sambajazz, estes

gêneros que não se separam sem dificuldade, e em cuja base está o pioneiro

samba moderno de Alf. Este músico jamais se deixou fechar nestes rótulos,

estranhos a quem vive a criação de forma orgânica: foi, a um tempo, erudito e

popular, compondo canções e improvisando com rigor e conhecimentos da “alta”

cultura, proporcionados pela sua formação erudita precoce ao piano. Ultrapassou

as alegadas fronteiras entre canção e música instrumental, sendo compositor e

cantor de canções sobre as quais improvisava com grande fluência instrumental ao

piano ao à voz. Ele foi, simultaneamente, branco e negro, burguês e popular,

celebridade e anônimo, conforme será apresentado no capítulo 2. Mas, assim

como o movimento do sambajazz, esteve longe de encarnar contradições, pois se

situa em um lugar anterior a elas, ao qual estes rótulos binários são externos. O

sambajazz é um local da poeisis, de invenção ativa, onde muitos recursos cabem

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ao músico criador. Este não se fecha nestas fronteiras analíticas posteriores ao ato

da criação, mas se guia por questões sonoras que lhe são anteriores, primeiras. Em

Alf e no sambajazz não há contradição, portanto, entre samba e jazz, entre a

vigiada identidade nacional e a desejada modernidade internacional, enfim, entre

ser brasileiro e ser estrangeiro.

Não foi necessária, portanto, uma idealizada antropofagia nacional de

bases modernistas para justificar o projeto do sambajazz uma vez que ali não se

parte da condição de brasileiro fecundado em grau maior ou menor por

“influência” alienígena, mas se é, a um tempo, brasileiro e internacional, sem

contradições a priori. A improvisação jazzística não se afigura estrangeira, “de

fora”, mas é justamente o elemento que aprofunda a espontaneidade da fluência

no samba, que proporciona a condição de se estar “à vontade” entre pandeiros e

saxofones, de ser samba e jazz por inteiro, sem oposições entre os termos. A

imposição do projeto nacionalista, seja “de raiz”, seja “antropofágico”, não

encontra força aqui porque o sambajazz nem mesmo é um projeto intelectual, mas

música espontânea nascida da prática de lazer/profissional destes músicos e de seu

público. Ocupados em fazer música a partir de suas vivências múltiplas, que vão

do samba à musica erudita contemporânea, passando pelo jazz e pela salsa e

empenhados na combinação dos sons de forma complexa e original, estes músicos

deram pouca atenção em sua música a questões simplistas sobre a suposta origem

nacional ou estrangeira das práticas musicais, sempre duvidosas e pouco ligadas

às práticas em si. O sambajazz, portanto, não foi sequer assim nomeado por seus

inventores, sendo esta denominação fruto posterior de jornalistas como Robert

Celerier. Este crítico, sendo também um músico amador, escreveu importantes e

pioneiros artigos sobre o movimento no jornal Correio da Manhã, entre eles a já

citada Pequena História do sambajazz publicadas em cinco partes entre 1964 e

1965 neste periódico8. A denominação sambajazz foi posteriormente reforçada

pelos relançamentos em CD de álbuns importantes do movimento nos anos 1990 e

2000 (SARAIVA, 2007).

Como o jazz, o sambajazz foi uma prática de valorização da improvisação

do músico no palco, de liberdade de criação do instrumentista frente ao

compositor, de afirmação do que é recriado “ao vivo” sobre a obra previamente

8 Ver estes periódicos no Anexo III.

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composta, que se profana (AGAMBEN, 2007), e de uso da tática da invenção

musical no instante da performance sobre a estratégia (DE CERTEAU, 1994) da

obra previamente estabelecida. Esta foi também uma música de subversão de um

certo “padrão”9 musical e social, pois ela afirmou a cultura negra e a seção rítmica

composta por percussões e baterias que destacam os baixos corporais sobre as

altas melodias (BAKHTIN, 1999), colocadas à frente na tradição ocidental. Ela

valorizou, acima de tudo, o ritmo e a corporalidade, e reservou um espaço mais

musical que intelectual às letras de música, articulando também a palavra cantada,

mas enquanto parte do corpo do som, e nunca enquanto voo literário descolado

sobre a base sonora. Pois o sambajazz foi também a música de diversos cantores-

músicos como Leny Andrade e Elis Regina.

Embora o sambajazz tenha sido muitas vezes entendido como música

instrumental, definido negativamente como uma “não-canção”, e em oposição à

canção como prática da bossa nova, eu pretendo mostrar o movimento de uma

forma diversa, que se aproxima mais do olhar dos músicos à época do do seu

florescimento10

. Nos capítulos 5 e 6 se acompanhará a saga da construção do

sambajazz por jornalistas como o crítico do Correio da Manha, Robert Celerier,

que associava a categoria música instrumental ao movimento. Longe de querer

polemizar com os que pensam um sambajazz exclusivamente “instrumental” –

palavra que considero, aliás, de conotação dúbia e feia sonoridade - entendo que a

riqueza e a força de um gênero se dão também na diversidade de leituras que ele é

capaz de gerar. A grande abertura de significados, por exemplo, de termos tão

polissêmicos como “jazz”, “rock” ou “samba” não diminuíram em nada a prática

destes gêneros musicais, nem tampouco seu uso enquanto categorias, pelo

contrário, eles são evocados por um número crescente de pessoas. Assim, mais do

que fechar o sambajazz em uma classificação negativa de “música sem voz”, que

o encerraria no gueto da “música instrumental”, gostaria de apresentá-lo a partir

9 Conforme o termo de Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese.

10 Por exemplo, PIEDADE (2005): “Certa concepção de canção toma sua dimensão narrativa

como preponderante na significação (Tatit, 1996), enquanto outros autores afirmam que a análise

da canção não pode se limitar à letra (Frith, 1988; Bastos, 1996), e que, portanto, a sua

“instrumentalidade” é igualmente fértil de significado. Deixarei de lado o debate no campo da

análise da canção e na dialética entre letra e música para enfocar um gênero cuja identidade

principal, inscrito na sua designação ambígua de “música instrumental”, entende-se

primordialmente enquanto não-canção. ” (p.1063).

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de categorias que, acredito, são mais profundamente enraizadas em sua prática e

mais significativas musicalmente.

O sambajazz se caracteriza principalmente pelo foco no ritmo, que se

traduz, dentre outras maneiras, na elaboração da atividade da seção rítmica, das

levadas de samba tecidas pelo baixo, pela bateria, pelo violão, enfim, pelos

instrumentos que compões esta seção, mas que sobem à voz e aos sopros – sendo

um gênero onde os solistas “sambam” com a base. Se quisermos manter a visão

binária entre sambajazz e bossa nova, então o sambajazz poderia ser descrito

como a outra bossa nova, aquela que investiu mais energia no ritmo, na

corporalidade, na elaboração da atividade da seção rítmica e na performance da

improvisação, enquanto esta procurou conjugar estas invenções rítmicas (que

também caracterizam a música de João Gilberto, por certo) às exigências poéticas

da palavra informada pela literatura, algo introduzido por Vinícius de Moraes na

música popular brasileira - e que talvez tenha se tornada menos “popular” e mais

“erudita” a partir de então. Não que o uso da palavra cantada não faça parte do

sambajazz, nem da tradição brasileira – pelo contrário - mas trata-se, nestes casos,

de uma palavra musical, que não busca a elaboração nos moldes da alta literatura

nem se descola da música pra ganhar autonomia enquanto “letra” poética, mas é

uma palavra sonora, musical11

. Pois não é, a meu ver, a ausência da palavra que

caracteriza o sambajazz, mas a forma de se usá-la12

.

11

Ver o excelente artigo de Ana Maria Bahiana sobre o assunto, Os poetas da música, onde ela

atribui a Vinícius de Moraes a criação da profissão de letrista no Brasil: “Tudo começou com

Vinícius de Moraes. Depois virou profissão” (1980, p.183). 12

Penso que seria impossível excluir a voz e a canção deste movimento formado por grupos como

o Tamba Trio, onde todos os instrumentistas cantavam como em um grupo vocal, ou pelo maestro

e cantor de voz especial, Moacir Santos, de quem podemos ouvir a voz tanto em gravações de seus

LPs norte-americanos como no álbum do musical Pobre Menina Rica (1964), de Carlos Lyra e

Vinícius de Moraes ou cantando Nana (Santos e Telles), no LP Nara (1964), de Nara Leão.

Tampouco a prática de cantores como Elis Regina (ver O fino do fino de Elis Regina e Zimbo Trio

– 1965) ou de Jorge Ben sob direção musical e arranjos do sambajazzista J. T. Meireles em seus

três primeiros álbuns, podem ser facilmente excluídos do sambajazz sem que se crie um problema

musicológico à categoria. Pois estas gravações possuem características musicais típicas do

movimento, que podem ser encontradas em álbuns instrumentais como os do próprio Zimbo Trio,

como a levada de “samba no prato” à bateria em andamentos rápidos, o clima jazzístico e as

improvisações instrumentais.

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2. O percurso entre a música e as ciências sociais

O estudo das diversas “músicas populares” tem crescido muito no Brasil

nas últimas décadas. Publicações sobre o campo, muitas vezes de origem

acadêmica, são comuns nas livrarias e sebos de qualquer grande capital do Brasil

de hoje. Áreas como etnomusicologia, literatura, história, filosofia e ciências

sociais se voltam para o tema, com diferentes abordagens. Diversos pesquisadores

provindos destas áreas se destacam no debate sobre a música feita no Brasil como

Hermano Vianna (2002), José Miguel Wisnik (1989), Santuza Cambraia Naves

(2001), Elizabeth Travassos (2000) e Marcos Napolitano (2001). No campo do

jornalismo e das biografias, alguns autores têm sido extremamente bem sucedidos

em lançar luz sobre a história da MPB e em se comunicar com o público, como

Ruy Castro (1990) e Paulo Cesar de Araújo (2013, 2014), entre tantos outros13

.

Muitos desses estudos versam sobre a canção no Brasil, um campo

riquíssimo, mas que parece fonte inesgotável, tamanho tem sido o trabalho de

pesquisa e escrita realizado sobre ele. O foco na letra de música e na voz tem sido

inversamente proporcional a pouca atenção dada à diversidade de práticas ditas

“instrumentais”, ou que ao menos não são exclusivamente voltadas para a voz,

mesmo quando estas práticas se dão no interior da canção.

Esta tese não parte, no entanto, da bipartição entre canção e música

instrumental, mas compreende a música como performance (GILROY, 2001,

SEEGER 2015). Este gênero está muito ligado à improvisação, à dança e a

corporalidade. Mesmo nos álbuns gravados, que tem grande importância no

movimento, as execuções destes músicos são feitas “ao vivo”, em performance no

estúdio, de forma semelhante a que ocorre no palco, sem overdubing14

.

No sambajazz se confundem a canção e a música instrumental, a cultura

erudita e a cultura popular, o estudo musicológico e a prática improvisada. Muito

13

Ruy Castro se firmou como o principal historiador da bossa nova, com o já clássico Chega de

Saudade (1990). Araujo se destaca por pertencer a uma nova geração de pesquisadores que

questiona as antigas ideias sobre a MPB no Brasil e sua popularidade, trazendo uma instigante

contribuição para novas histórias da musica brasileira em livros como “Eu não sou cachorro não”

(2013). 14

Gravar com uso de overdubing significa sobrepor canais de som registrados em diferentes

momentos, procedimento que se diferencia da gravação ao vivo, onde todos gravam

simultaneamente.

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se falou sobre a voz do cantor, e muitas loas se teceram à palavra poética do

cancionista universitário de MPB, com grande proveito para todos que se

interessam pelo assunto. Esta pesquisa busca, no entanto, dar voz aos músicos do

samba moderno da passagem da década de 1950 à de 1960 que foram mais

raramente estudados, na intenção de contribuir com outros entendimentos para o

debate sobre a música brasileira que é, afinal de contas, também um debate sobre

o Brasil.

Não se trata, no entanto, de inverter a relação entre canção e música

instrumental, priorizando a segunda desta vez, mas de recuar a um ponto anterior,

em que tal distinção se mostra menos importante. Este ponto recuado é o olhar do

Artífice (SENNETT, 2009) que pratica as músicas, de quem “põe a mão na

massa” da matéria bruta sonora. Dela pode sair tanto uma canção-pérola

radiofônica de 3 minutos como um profano jazz brasileiro “instrumental”, rebelde

e improvisado, a partir de um mesmo tema musical, anterior a estas roupagens. Ao

contrário do olhar estudioso, posterior, que vai procurar categorias para descrever

e fixar o som, a abordagem primeira de quem faz a música vislumbra muitos

desdobramentos possíveis para a massa sonora15

. Este é o ponto de partida desta

pesquisa que se volta para músicos criadores, o da poética musical.

3. Situando-me

Enquanto músico profissional no Rio de Janeiro, eu tenho uma relação

com a música a partir do ponto de vista de quem a produz, embora eu também seja

um pesquisador e um ouvinte, é claro. Nos últimos 20 anos tenho tocado violão e

guitarra profissionalmente, atuado como compositor, arranjador e professor de

música, além de ter sido por um longo período estudante de composição e de

violão e piano, sempre entre as áreas popular e erudita. Minhas atividades

musicais compreendem um certo leque de práticas disponíveis para um músico da

15

Assim João Donato, como Moacir Santos e tantos outros músicos criadores do samba moderno,

criaram e registraram suas canções primeiramente no formato “instrumental”. Estas depois

ganharam palavras de letristas como Vinícius de Moraes (no caso de Santos), Caetano Veloso (no

caso de Donato) ou de Gilberto Gil (no caso de ambos), sem que isto tenha sido sentido como um

prejuízo da versão instrumental ou da cantada. Em resumo, as diferenças colocadas entre canção e

música instrumental, que por vezes embasam teses complexas sobre o tema, mostra-se contingente

e pouco relevante para a prática musical, que é o foco desta tese.

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minha geração e posição social no Rio de Janeiro, que passou pela universidade

de música16

.

Envolver-me no universo das ciências sociais e fazer uma pesquisa sobre

músicos com seus métodos foi um movimento que realizei no sentido de ver meus

pares e a mim mesmo a partir de um ponto de vista renovado. Espero que esta

experiência enriquecedora para mim também o seja para meus colegas músicos,

que possivelmente encontrarão nesta tese uma compreensão diversa das que os

músicos normalmente têm sobre o sambajazz.

Uma pesquisa que me serve como um exemplo foi aquela realizada por

Howard Becker em 1948 entre músicos de jazz em Chicago, grupo do qual o autor

fez parte como pianista, e que está presente no livro Outsiders (2008). A

proximidade do universo estudado por Becker com o dos músicos do sambajazz,

ainda que em contextos diferentes, bem como sua metodologia, tornam aquela

pesquisa relevante para o presente trabalho. Conforme Becker escreveu sobre os

seus colegas músicos, com quem se apresentava regularmente, paralelamente ao

seu estudo acadêmico: “Embora suas atividades estejam formalmente dentro da

lei, sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e não-

convencionais para eles sejam rotulados de outsiders pelos membros mais

convencio’nais da comunidade”. (2008, p.68) Os músicos de sambajazz, da

mesma forma, também são suficientemente entendidos “outsiders” para

caracterizarem um grupo social.

Quando comecei a estudar harmonia clássica, ainda adolescente, no final

dos anos 1980, e contraponto, já nos anos 1990, na graduação, me sentia ansioso

por penetrar na essência da música, com o auxílio dos ensinamentos da

musicologia. Se considero válido e enriquecedor este mergulho no saber

musicológico, certamente não tenho mais a ilusão de que exista um corpus de

conhecimento que possa dar conta da Música em sua totalidade. Considero-o

importante como parte integrante da prática de uma certa cultura musical, especial

e profunda, mas localizada no tempo e no espaço e nem de longe “universal”, ou

seja, capaz de abarcar todas as práticas musicais.

16

Eu estudei até o mestrado em composição musical pela UNI-RIO e também concluí o curso

Professional Program, do Musicians Institute, CA, EUA, onde estudei com uma bolsa da CAPES

entre 2002 e 2003.

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Se fosse possível pensar em algo como a essência de todas as músicas do

mundo, creio que isto seria o movimento: uma essência sem essência, que consiste

justamente em transformar-se em algo diverso do que se é, tecer uma nova

relação entre objetos (musicais, sociais) quaisquers. A música é tanto o

movimento do ar em ondas sonoras quanto o movimento que seu desenho sonoro

no tempo sugere às pessoas, que então balançam a cabeça, as mãos ou a dançam

quando a vivenciam, sempre através de seus corpos, necessariamente. A vivência

do sujeito é sempre corporalmente situada no espaço onde ele está se

movimentando. Assim, a relação entre o som grave baixo e o som alto agudo,

remete à topografia musical do alto e do baixo (BAKHTIN, 1999) e expressa

também a relação entre músicos, pessoas que tocam instrumentos ou notas graves

e outras que tocam o agudo, mas que podem trocar de posição eventualmente, e

que fazem um movimento simultaneamente musical e espacial. Portanto a música

traz em si o movimento, que remete à performance do corpo no espaço. Longe de

ser apenas sobreposição de notas e motivos musicais, entendidos como pequenos

tijolos de informação musical que se acumulam, a música é apresentada nesta tese

como “um movimento itinerante ao longo de um modo (percurso) de vida,

entendido como um caminho a ser percorrido”, em concordância com a

compreensão de Ingold (2013) sobre a transmissão de conhecimento:

O conceito de transmissão está relacionado a um modelo genealógico que separa

a aquisição de conhecimento-como-informação de sua aplicação prática e por

esse motivo ele não é adequado para descrever as formas em que as pessoas

normalmente vêm a saber o que elas fazem. (...) Prática especializada

(qualificada), assim concebida, é um movimento itinerante ao longo de um modo

(percurso) de vida, entendido como um caminho a ser percorrido ao invés de um

corpus de regras e princípios transmitidos por ancestrais. (2013, p.301) 17

Dois álbuns de sambajazz focados nesta tese trazem no título o termo

“muito à vontade” que denota a atitude de quem está serenamente em atividade,

como se estivesse “em casa”. A “antropologia em casa” que realizo aqui, também

tem esta característica de me deixar, por um lado, “muito à vontade”, como no

título do álbum de Donato, pela familiaridade com o universo abordado. Estar

muito à vontade pode trazer o risco do excesso contido no advérbio de

17

“The concept of transmission is linked to a genealogical model that separates the acquisition of

knowledge-as-information from its practical enactment, and is not for that reason appropriate to

describe the ways in which people ordinarily come to know what they do. (...) Skilled practice,

thus conceived, is an itinerant movement along a way of life, understood as a path to be followed

rather than a corpus of rules and principles transmitted from ancestors” (2013, p. 301)

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intensidade. É justamente esta condição que conduz a uma grande “reflexividade”,

condição para a antropologia em casa, segundo Marilyn Strathern:

O pressuposto é o de que nos tornamos mais conscientes de nós mesmos quando

nos transformamos em objetos de estudo, aprendendo sobre nossa sociedade, e

ao mesmo tempo, sobre nós mesmo enquanto fazemos a pesquisa, ao nos

tornarmos mais conscientes de métodos e ferramentas de análise. A perspectiva

da antropologia em casa sugere assim a contribuição a uma crescente

reflexividade (...)18

(1987, p.17).

Mais do que uma antropologia em casa, conceito onde se poderia graduar

diferentes patamares de familiaridade entre pesquisador e pesquisado, realizo algo

que se aproxima de uma “auto-antropologia”, que se dá “quando o processo

antropológico de ‘conhecimento’ se serve de conceitos que também pertencem à

sociedade e cultura em estudo”19

(STRATHERN, 1987, p. 18). Embora o próprio

conceito de sambajazz não tenha sido sustentado inicialmente pelos músicos do

movimento, ele nasce do interior deste “mundo da arte” (BECKER, 1977), em

parte através dos artigos do jornalista e músico francês Robert Celerier para o

jornal O Correio da Manhã, na primeira metade da década de 1960.

No entanto, a condição de músico hoje que estuda seus pares de meio

século atrás, ainda que na mesma cidade, não garante nem a proximidade absoluta

que colaria totalmente meus “conceitos” aos deles, nem tampouco uma distância

“antropológica” segura, que tem de ser conquistada. O movimento de

aproximação e distanciamento dos informantes teve que ser realizado como em

qualquer pesquisa antropológica urbana. A familiaridade com o meio estudado, se

por um lado facilita a “aquisição de dados”, por outro apresenta o risco do olhar

banalizado sobre o que não se estranha. Daí a necessidade de uma constante

reflexividade, de um “auto-estranhamento”. Por isso os conceitos de

transformação, percurso e movimento, inter-relacionados entre si, são

fundamentais nesta pesquisa. A aproximação entre o músico e o cientista social

nesta auto-antropologia é um percurso com muitas idas e vindas, que busca um

ponto de equilíbrio sempre instável entre a familiaridade e o estranhamento, entre

18

“The assumption is that we become more aware, both of ourselves when turned into objects of

study, in thus learning about our society, and at the same time, of ourselves as doing the study, in

becoming sensitive to methods and tools of analysis. The prospect of anthropology at home thus

suggests a contribution to the increasing reflexivity (...). (1987, p.17) 19

“(...) where the anthropological processing of ‘knowledge’ draws on concepts which also belong

to the society and cultura under study.” (1987, p.18)

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o perto e o longe. É um movimento de transformação que se dá na relação entre os

campos e seus olhares diversos, agora unidos por este percurso.

É este percurso que me permite buscar, mais do que uma antropologia da

música, uma “antropologia musical” que possibilite enxergar a música no homem,

e não fora dele, isolada em esquemas musicológicos aos quais as culturas se

conformariam (SEEGER, 2015). Este percurso de transformação deve, conforme

Roberto da Matta, “transformar o familiar em exótico” (1978, p.4).

A transformação é, portanto, palavra chave nesta tese de um músico que

se reinventa como cientista social para transformar seu olhar sobre a música,

realizando um “movimento drástico” sobre si mesmo, e fundamental ao ofício de

etnólogo:

Essas duas transformações fundamentais do ofício de etnólogo parecem guardar

entre si uma estreita relação. A primeira transformação leva ao encontro daquilo

que a cultura do pesquisador reveste inicialmente no invólucro do bizarro, de tal

maneira que a viagem do etnólogo é como a viagem do herói clássico (...). Na

segunda transformação, a viagem é como a do xamã: um movimento drástico em

que, paradoxalmente, não se sai do lugar (...) todos aqueles que realizam tais

viagens para dentro e para cima são xamãs, curadores, profetas, santos e loucos;

ou seja, os que de algum modo se dispuseram a chegar no fundo do poço de sua

própria cultura (DA MATTA, 2000, p. 158)

Esta tese também retrata, como uma fotografia congela um momento sem

que se perca o sentido da ação de seus atores no tempo, o movimento de ascensão

do sambajazz e de seus músicos. Sua profissionalização se inscreve dentro de um

movimento maior, o da indústria cultural brasileira, que por sua vez se insere

dentro de deslocamentos cada vez maiores, do país que se moderniza e quer

percorrer “50 anos em 5” com o jovem Presidente da República Juscelino

Kubitschek, do Atlântico negro e seus inter fluxos incessantes (GILROY, 2001),

do mundo crescentemente globalizado em um relativamente próspero pós-guerra.

Este percurso liga ainda duas linguagens, que na verdade nunca estiveram

isoladas, mas compartilham um histórico e uma prática comuns: a música e a

literatura, ou a sua escrita (INGOLD, 2007). O contínuo entre organizar sons e

organizar palavras é algo que surge neste percurso de transformação do músico

em cientista social. Por muitas vezes observei que os problemas relativos à forma

que surgem na lida com os textos desta tese não diferem essencialmente de

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problemas semelhantes na composição musical. Grandes e pequenas seções têm

de ser arranjadas segundo as prioridades e as relações entre elas. No entanto,

escrever um texto, ainda que acadêmico, exige do músico pesquisador um

movimento no sentido de tornar-se também escritor: ele deve poder sintetizar em

palavras as vivências de seu percurso, construir uma narrativa que recrie em texto

o movimento musical do sambajazz, neste caso. Segundo José Alberto Salgado e

Silva:

Considera-se também que a dimensão estética de um relato etnográfico – sua

organização formal, as muitas decisões de composição – não se exclui da

dimensão metodológica, balizando-se igualmente por preocupações com a

validade de um conhecimento construído e com a sua comunicação. (2011, p.9)

Andar, ver, de Hélio Silva (2009), remete à uma antropologia que

extravasa o campo científico e busca suas interfaces com a literatura, sem opô-la à

ciência social. Ciência e arte podem caminhar juntas, não há oposição, mas

conjunção. O antropólogo revela que a etnografia se liga ao livro de andar e ver,

uma tradição árabe retomada modernamente pelo poeta português Luiz Veiga

Leitão, onde relata suas viagens. Através da simplicidade do nome composto por

palavras elementares, livro, andar, ver, surge a matéria incomum, “visão do

paraíso”, no texto do viajante:

A viagem e o contato com o outro era o passaporte para o insólito e o

maravilhoso. (...) A mentira e à imaginação cabiam preencher a lacuna quando o

trânsito não trouxesse novidades impactantes.

O extraordinário comanda a escrita. Os livros dos velhos monastérios registravam

os graves acontecimentos da vida humana: nascimento, batizado, casamento,

óbito.

Na simplicidade das três palavras ordenadas, livro de andar e ver, mal se contêm

e, portanto, se tensionam impulsivas – essa a graça do título – tarefas complexas,

empreendimentos humanos arriscados, porque ao mesmo tempo férteis e

enganadores. Escrever e ver. Escre(ver). (2009, p. 175).

Aqui a antropologia se aproxima da arte, não apenas pelas referências à

literatura e pela linguagem poética, mas também pela convergência com uma

atitude estética frente ao mundo, mobilizada em favor da ciência social: não se

trata de buscar verdades positivistas que estariam dadas no campo e transcrevê-las

no texto científico, mas em chegar ao particular, de onde emergirá, através do

pensamento e da percepção intersubjetiva, o geral, o objetivo, o científico.

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A relação com a objetividade e com a teoria antropológica se faz então a

partir da subjetividade do antropólogo. Sua tarefa é relacionar o campo estudado

ao da antropologia a partir de sua subjetividade “participante”, de seu relato. Pois

“o que está em causa é uma desestabilização do observador, o que é mais do que a

subjetividade (que compartilha com seus colegas das ciências exatas e naturais) e

mais do que a interferência sobre o objeto (que comunga com botânicos e

zoólogos)” (SILVA, 2009, p.178).

Como um pintor com suas tintas “descreve” uma paisagem que observa

desde um ponto de vista oculto na tela, porém inequívoco a quem olha, porque de

onde deriva a perspectiva da pintura, a posição do cientista social no campo

também é importante.

Situar-me é, pois, tarefa importante nesta pesquisa de um “nativo” que

observa “nativos”, pois esta relação é por demais significativa nesta tese para ser

deixada de fora. O etnógrafo deve situar-se (SILVA, 2009), ou seja, dar sua

localização no espaço social que estuda.

Se olhado analiticamente, este campo pode parecer por demais complexo,

múltiplo em todos os seus detalhes, a ponto de se tornar inapreensível ao intelecto.

Mas, no entanto, o fenômeno da paisagem, ou do campo, é apreendido de forma

total pelo cientista social, assim como um pintor “vê” a paisagem inteira em sua

mente sem se perder a complexidade dos detalhes, conforme Ingold:

Ao olhar do artista, a paisagem se apresenta não como uma multiplicidade de

particularidades, mas como um campo fenomênico variado, ao mesmo tempo

contínuo e coerente. Dentro deste campo, a singularidade de cada fenômeno

reside no seu desdobramento - no seu posicionamento e implicações, e no

equilíbrio de um movimento momentaneamente fixado - das histórias de relações

entrelaçadas pelas quais ele veio a estar lá, naquela posição e naquele

momento.20

. (2007, p.232)

Segundo Lévi-Strauss (1993), a antropologia social se caracteriza por um

método lógico, dedutivo, próprio do cientista social, que ela alterna e atualiza com

a empiria do trabalho de campo. No entanto a síntese entre estes procedimentos só

20

“To the artist’s gaze, the landscape presents itself not as a multitude of particulars but as a

variegated phenomenal field, at once continuous and coherent. Within this field, the singularity of

every phenomenon lies in its enfolding – in its positioning and bearing, and in the poise of a

momentarily arrested movement – of the entangled histories of relations by which it came to be

there, at that position and in that moment” (INGOLD, 2007, p.232)

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pode vir da “subjetividade mais íntima”, a única forma possível de “uma

demonstração objetiva” (1993, p.23):

Esta alternância de ritmo entre dois métodos: o dedutivo e o empírico – e a

intransigência que colocamos ao praticá-los um e outro sob uma forma extrema e

como que purificada, dão à antropologia social seu distintivo dentre todos os

outros ramos do conhecimento: de todas as ciências, ela é a única,

provavelmente, a fazer da subjetividade mais íntima um meio de

demonstração objetiva. Com efeito trata-se realmente de um fato objetivo: o

mesmo espírito que se abandonou à experiência e deixou-se modelar por ela se

torna o teatro de operações mentais que não abolem as precedentes e, entretanto,

transformam a experiência em modelo, possibilitando outras operações mentais.

No fim das contas, a coerência lógica destas últimas se baseia na sinceridade

e na honestidade daquele que pode dizer, como o passarinho explorador da

fábula: 'Lá estava eu, algo me ocorreu – Vocês acreditarão estar lá, vocês

mesmos', e que consegue, de fato, comunicar esta convicção (1993, p. 23, grifos

meus)

Em uma entrevista de 1998, Lévi-Strauss utiliza como metáfora a música

serial – uma técnica de composição musical desenvolvida pelo compositor

austríaco A. Schoenberg no princípio do século XX a fim de renovar a harmonia e

a música européias - para descrever um futuro cada vez mais presente na

antropologia. Na música ocidental, que é tonal, uma das doze notas do sistema

tonal é privilegiada como o tom da música, estabelecendo-se como o centro tonal

à qual todas as outras notas remetem. Na música serial, que é atonal e, portanto,

não está baseada em uma tonalidade, não existe hierarquia entre as notas, e todo o

trabalho de composição remete à relação entre estas, e não apenas destas com

relação ao tom principal. Nesta metáfora de Lévi-Strauss, o centro tonal

corresponde ao antropólogo tradicional europeu, que estuda os “nativos”, que

seriam correspondentes às notas da escala, nesta metáfora musical. Quando se

estabelece o atonalismo e deixa de haver um centro tonal, a relação entre as notas

– ou entre as pessoas envolvidas na pesquisa de campo – ganha maior

importância:

Se você me permite uma comparação musical, eu diria que a antropologia tal

como a concebo, como a conheci, como nossos mestres a praticaram, era tonal, e

agora ela se tornou serial. Isto quer dizer que as sociedades humanas nao

significam mais nada fora de suas relacoes reciprocas. Porque a nossa se

enfraqueceu, porque ela mostrou seus vícios, porque as outras começaram a

trilhar o mesmo caminho que a nossa – isso é como as notas em um sistema

dodecafônico, elas nao tem mais um fundamento absoluto, elas existem

apenas umas em relacao as outras. Enfim, é assim que as coisas são, teremos

uma outra antropologia, como a música serial é uma outra música. Uma

antropologia que sera tao diferente da antropologia classica como a musica

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serial e diferente da musica tonal. (…) Esses povos mesmos (indigenas) vao

em breve dar origem a eruditos, a historiadores de suas proprias culturas, e

assim aquilo que foi nossa antropologia vai ser apropriado por eles, e ela

sera algo interessante, e importante. (VIVEIROS DE CASTRO, 1998).

Trazendo a fala de Lévi-Strauss para este contexto urbano, posso me situar

ainda, dentro desta visão do futuro da disciplina, como um “nativo” que vem do

seio de uma “tribo” de músicos do Rio de Janeiro a fim de rever estes próprios

músicos em sua relação entre si. Trata-se de uma antropologia relacional - como o

serialismo de Schoenberg - onde o que importa é mais a relação, sempre política,

entre pesquisados e pesquisador. Se Lévi-Strauss via a música serial (LÉVI-

STRAUSS, 2010) e talvez o futuro da antropologia, sob uma perspectiva não tão

otimista, esta tese não compartilha deste possível pessimismo.

No entanto, possuir esta familiaridade “nativa” com os músicos e seus

valores não implica necessariamente ter consciência dos mesmos, e nem conseguir

trazê-los à tona nesta pesquisa. Se busquei o estudo antropológico e sociológico

dos músicos e da música, foi porque quis distanciar-me de sua lógica própria,

“musical”, e entendê-los a partir de uma outra perspectiva, informada pelo estudo

das ciências sociais. É esta atitude de pesquisador que me permite o afastamento

necessário à construção do objeto de estudo que necessariamente se faz em uma

tese como esta.

Por outro lado a comparação do momento presente com o passado me

torna um viajante como os antropólogos que deram origem à disciplina em busca

de relatos etnográficos, mas um viajante do tempo. A diferença de cinqüenta anos

é emblemática: mas de meio século se passou desde que Édison Machado reuniu

um time de músicos considerados alguns dos melhores instrumentistas do

mercado musical carioca para gravar o LP É samba novo em 1963. É um tempo

passado que, no entanto, é ainda contemporâneo, na medida em que diversos

músicos profissionais daquela época ainda estão presentes, muitas vezes ativos

como Raul de Souza, João Donato e Sérgio Mendes. Outros, com quem trabalhei

pessoalmente como instrumentista, já se foram, como Paulo Moura e Moacir

Santos. Nesta condição de argonauta de um tempo passado que ainda se faz

presente, busco matéria para construir esta tese. Conforme Valter Sinder:

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A estrutura da narrativa tal qual elaborada por Malinowski nos remete à estratégia

garantidora da verdade que encontramos quando nos voltamos para os

aventureiros e suas aventuras (reais ou imaginárias). Nessas viagens, a verdade

não se encontra nem exclusivamente no objeto, nem na linguagem, mas tem seu

ponto seguro no sujeito que narra (...) Tal parece ser a situação que se encontra o

etnógrafo, e o recurso utilizado para que acreditemos nele: sua ficção persuasiva,

sua magia, sua autoridade, além do bom senso e dos métodos científicos (já que

sua magia reside, também, na sinceridade metodológica). (SINDER, 1997, p.

295)

Nasci em uma família de músicos, e meu contato inicial com o sambajazz

se deu ainda na primeira infância. Meus avós paternos, o crítico de música Eurico

Nogueira França e a pianista de concerto Ivy Improta eram muito ligados ao

compositor Heitor Villa-Lobos, com quem meu avô fundou a Academia

Brasileira de Música. Em sua casa, ainda na infância, aprendi a gostar não apenas

de música erudita – que ele gostava de chamar “música de concerto” - mas

também de livros sobre música, que preenchiam as estantes nas paredes de

praticamente todos os cômodos da casa.

Meu pai, Tomás Improta, é também um pianista profissional, como o foi

minha avó, embora mais ligado à música popular. Atua como solista e

acompanhou longamente cantores de sucesso como Caetano Veloso e Gal Costa,

principalmente nos anos 1970 e 1980. Pertencendo a uma geração imediatamente

posterior ao movimento, ele conheceu pessoalmente muitos músicos do sambajazz

em situações profissionais, podendo ser considerado um herdeiro direto do

movimento. Foi aluno do saudoso pianista de sambajazz, Tenório Jr, que lançou

um único, porém significativo, álbum, o Embalo (1964).

Ainda mais ligado ao sambajazz foi meu tio materno, o saxofonista e

flautista Ion Muniz, falecido em 2009. Nascido em 1948, como o meu pai, ele

pertence a uma geração imediatamente posterior a este movimento, que a viveu

apenas como ouvinte, jovem demais para fazer parte dele enquanto músico.

Ambos me ensinaram a ouvir a música de sambajazzistas como Édison Machado,

João Donato e Raul de Souza. Ion Muniz começou a tocar com Machado ainda no

início da década de 1970, e gravou dois álbuns solo dele21

. Radicado nos EUA

desde a minha primeira infância, tendo vivido ainda por um período na Finlândia,

onde foi professor da prestigiada Academia Sibelius de música, Ion retornou ao

21

Obras (1970) e Obras 2 – O pulo do gato (2004).

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Brasil em 1992, quando eu estava me tornando músico profissional, ainda na

adolescência. Ele havia escrito um livro chamado Functional improvisation

technique (1991), que usava para me dar aulas de improvisação. Amigo pessoal de

João Gilberto, cuja música conseguia simular com perfeição ao violão e voz, ele

me ensinou também a tão falada “batida da bossa nova” ao instrumento, com

ensinamentos vindos diretos da fonte22

. Ion exigia nada menos do que a perfeição

do violonista que tocasse com ele, na micro rítmica exata que o suingue exige do

músico que faz uma levada, seja de samba ou de jazz.

Sendo um solista especialmente dotado e fluente, Muniz dava aulas de

improvisação a alguns dos mais destacados saxofonistas do Rio de Janeiro, como

Idriss Boudrioua e Fernando Trocado. Até mesmo o sambajazzista mais velho que

ele, o lendário Paulo Moura, aparecia regularmente em seu apartamento, em

Laranjeiras, RJ, a fim de “pegar umas dicas”, conforme ele me dizia, sobre

improvisação. Extremamente exigente e rigoroso com músicas e músicos, Muniz

amava profundamente um álbum de sambajazz, que me fez escutar dezenas de

vezes, talvez por puro prazer de passar aquele maravilhamento adiante: o É samba

novo (1963), de Édison Machado, que havia sido relançado em CD recentemente.

Conforme escreveu em suas Crônicas não publicadas - texto que foi muito útil a

esta pesquisa - Édison Machado era uma “força da natureza” e fizera um dos

álbuns mais importantes da música brasileira de todos os tempos. “Não adianta

querer tapar o sol com a peneira”, escreveu Ion Muniz sobre este assunto.

Ion Muniz faleceu em 2009 e, embora não fosse esta minha intenção

inicial, hoje percebo que esta tese é também uma homenagem a ele, que me

ensinou a ouvir o sambajazz e a amar profundamente os seus sons musicais e

músicos. Foi este amor que motivou em mim a vontade de fixar e ampliar em

palavras o movimento do sambajazz. Um amor eterno (2003) foi o título que Ion

Muniz deu ao seu único e excelente CD, um álbum tardio de sambajazz e bossa

nova. Um aluno seu, o saxofonista e pesquisador Pedro Larrubia, me relatou que,

22

As “meninas” (que é como João Gilberto chama os dedos indicador, médio e anelar da mão

direita) fazem a mesma célula rítmica de um tamborim de samba e o “garoto” (o dedo polegar) faz

o bumbo, sempre regular, me dizia ele. Sobre a batida da bossa nova de João Gilberto, ver

FRANÇA, 2008.

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após uma aula complexa sobre modos e escalas musicais, Ion lhe disse: “quando

você estiver tocando esqueça tudo isso, e pense apenas em quem você ama”.

Tive também a sorte de poder conviver profissionalmente com alguns dos

músicos focados, o que também transparece nesta pesquisa. Participei como

violonista de diversos shows com Paulo Moura entre 2005 e 2009. Em 2008

fizemos uma longa turnê pelo Brasil, quando tocamos em 27 capitais do país, a

que se somaram outras tantas apresentações avulsas. Tive então a oportunidade de

conviver com o velho mestre, em hotéis e aeroportos, na maior parte do tempo. O

concerto se chamava AfroBossaNova (2009) e era uma homenagem a Tom Jobim,

em comemoração dos 50 anos da bossa nova23

. O show contava com a

participação do bandolinista Armandinho Macedo, além deste pesquisador ao

violão e três excepcionais percussionistas de Salvador, BA, dentre os quais se

destaca o Mestre Gabi Guedes iniciado ainda criança na percussão afro religiosa

que conhece profundamente24

.

Diz-se entre músicos que esta profissão consiste principalmente em

esperar. De fato, se um show dura um pouco mais de uma hora, a preparação para

ele pode durar mais de um dia inteiro - isto se excetuarmos os ensaios. Ela

frequentemente inclui uma viagem até o local do show, com esperas intermináveis

em aeroportos, aviões, ônibus e vans de transporte. Segue-se o tempo ocioso em

saguões de hotel, camarins de teatro, onde se aguarda por horas o fim da

montagem do palco pelos técnicos de som, iluminadores e roadies e o início da

passagem de som, quando finalmente subimos ao palco. Então temos que

enfrentar mais uma espera, a checagem do som de cada instrumento

individualmente, enquanto os demais aguardam sua vez. Quando finalmente tudo

está pronto, após a passagem geral do som, espera-se no camarim pelo início do

show, uma vez tudo é feito com certa antecedência para se evitar imprevistos no

horário sagrado do espetáculo.

Esses muitos momentos de espera se tornam conversas, por vezes

coletivas, entre músicos. Anedotas e causos são contados nestas ocasiões, e

23

Este concerto foi gravado ao vivo e lançado em CD pela gravadora Biscoito Fino (2009). O

álbum foi indicado ao Grammy Latino de 2010. Ver fotografia do show no Anexo II. 24

Os outros dois percussionistas são Giba Conceição e Nei Sacramento.

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assuntos os mais diversos emergem. Muitas das conversas travadas com colegas

músicos nesses contextos foram importantes não somente para me despertar o

interesse pelas reflexões propostas, como para que, numa fase posterior, eu

desenvolvesse a pesquisa propriamente dita. Para o antropólogo entre músicos,

estas são ocasiões valiosas.

Paulo Moura tinha a “cabeça aberta”, como se diz. Apesar da proximidade

dos 80 anos, Paulo sempre buscava novos sons, mantinha a curiosidade por

músicos e músicas novas, e seus olhos brilhavam em muitas ocasiões. O VJ

Gabiru era um rapaz de Salvador na casa dos vinte anos, que projetava imagens

animadas em um telão durante o nosso show. Moura demonstrava também grande

interesse pela música eletrônica dançante que o VJ Gabiru nos mostrava nas horas

vagas no hotel.

Antenado na composição contemporânea, foi ele quem me apresentou as

importantes obras para quinteto de madeiras do compositor húngaro Györgi

Ligeti, em uma série de ensaios em minha casa para um show dele, em 2006. O

fato de o compositor pertencer ao universo “erudito” não impedia que Paulo o

trouxesse para o nosso quadro informal de referências musicais ainda que

fizéssemos um espetáculo “popular” naquela ocasião.

Ele dirigiu este espetáculo de maneira muito original, recriando as

composições de Jobim, o que nos tomou uma semana de ensaios diários

intermináveis. Moura o intitulou “Afrobossanova”, em referência à leitura de

características negras que deu à música de Jobim. Se a bossa nova era fechada aos

negros, conforme disse certa vez a jornalistas25

, ele quis trazê-la negra. Sob este

olhar, o sambajazz pôde ser entendido como uma “afro bossanova”

contemporânea à mesma.

A percussão abria o show com uma longa introdução para O morro não

tem vez (Jobim e Vinícius) baseada em belíssimos toques de candomblé26

. Tive

nesta ocasião a experiência, ainda que meio século tardia, de vivenciar a criação

25

Ver COELHO & CAETANO, p.156, 2011. 26

Parte desta música pode ser vista ao vivo nesta gravação amadora de um show nosso no Parque

Aclimação, em SP, em 08/06/2008.

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7F4JJ_aliWo. Acesso em 04/07/2015.

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com um músico do sambajazz, em sua valorização sofisticada das percussões

afro-brasileiras apresentadas em primeiro plano sobre a música de Jobim.

Meditação (Jobim e Mendonça) foi transformada em uma batucada de signo

africano, em compasso 6/8. As percussões tomavam conta das músicas de Jobim

às quais eu acompanhava, com meu violão encarregado também dos baixos, como

na tradição do choro, na ausência de um contrabaixista.

O que pode parecer ao analista como uma grande mistura de gêneros

diversos, ali se fazia uma prática naturalmente conjunta entre músicos, que

trabalham consonâncias e dissonâncias, em polifonia musical e social.

Obviamente a diferença entre um violonista carioca e três percussionistas baianos

negros está colocada nesta convivência harmônica, assim como entre Paulo

Moura, um maestro paulista radicado no Rio de Janeiro, diretor musical do show e

acostumado ao trabalho musical com partituras e Armandinho, um bandolinista

solista virtuose de Salvador que não aprendeu a ler música nem jamais estudou

teoria musical, e trabalha guiado apenas pelo “ouvido”, mas que é capaz de

levantar multidões com seu Trio Elétrico durante o carnaval. O resultado sonoro é

também resultado destes contrastes e afinidades entre diferentes. A tensão entre as

diversas vozes em contraponto que ora aumenta, ora diminui, é o que gera o

interesse musical de uma peça.

Como um fractal, cada músico de sambajazz traz em si o movimento

inteiro, como se cada parte reproduzisse em si o todo, mas de um ponto de vista

único, singular. Paulo Moura foi muito bem definido por um amigo como um

“malandro erudito”. Trazia consigo a erudição musical, falava português

corretíssimo, em fala calma e ponderada. Ao mesmo tempo, porém, agia com

certo humor e “jogo de cintura” e, quando o conheci, trazia sempre na cabeça um

chapéu “panamá” branco, que caracteriza o malandro. Como o sambajazz, Paulo

juntava em si, e na sua música, a cultura negra e a branca (ou “erudita”), o samba

e o jazz, a prolixidade do choro e a concisão da bossa nova, a tradição e a

modernidade. Tudo isso de forma integrada e natural, sem que os fatores

ameacem desestabilizar o produto, pelo contrário. Ele foi um fractal ou uma

síntese do sambajazz, sendo muito mais do que apenas um músico de sambajazz:

Paulo Moura era também músico de concerto e foi um dos mais importantes

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solistas do choro no Brasil. Ele foi ainda um dos responsáveis pelo renascimento

da Gafieira no Rio de Janeiro com a Domingueira Voadora que Moura liderou

como solista junto a Severino Araujo, no Circo Voador, no bairro da Lapa, RJ, a

partir da passagem dos anos 1970 aos anos 1980 (VEIGA, 2011, p.240).

4. A metodologia que me trouxe até aqui. Porque este percurso?

Esta é uma pesquisa qualitativa sobre o movimento do sambajazz no Rio

de Janeiro, que floresceu entre fins da década de 1950 e o início da de 1960. Para

tanto realizei entrevistas com quinze músicos, sendo onze deles ligados ao

sambajazz e quatro instrumentistas “atuais”, nascidos a partir dos anos 1960 e

que, portanto, não viveram o período estudado como instrumentistas. Listarei os

entrevistados adiante. Também me vali de minha experiência como músico

inserido em esquemas profissionais semelhantes aos vividos pelos músicos de

sambajazz, ainda que com meio século de diferença. Muito de minha atividade

profissional nos últimos 20 anos, seja em bailes no centro do Rio de Janeiro

tocando para fazer a “pista” dançar, seja em casas noturnas improvisando sobre

“temas” como Desafinado (Jobim e Mendonça) e Nanã (Moacir Santos), ou

acompanhando cantores de sucesso como Maria Bethânia e Carlinhos Brown, se

assemelha às atividades destes músicos que me antecederam na indústria cultural

brasileira. Minha profissão hoje no Rio de janeiro é de certa forma um

desdobramento do que foi a deles.

Parte desta pesquisa se fundamenta, portanto, nas minhas memórias,

principalmente nas que dizem respeito aos músicos de sambajazz. Convivi com

alguns desses músicos em situações profissionais de concertos ou gravações,

como Paulo Moura, João Palma, Roberto Menescal, Francis Hime, João Donato,

Dom Um Romão, Wagner Tiso, Barrosinho, Robertinho Silva entre outros, tanto

em trabalhos autorais deles como “acompanhando” outros artistas de sucesso na

indústria cultural.

As memórias aqui aproximam o autor do leitor, uma vez que elas

funcionam de forma a explicitar o ponto de vista do pesquisador, através do relato

das experiências mais significativas pelas quais ele passou que se relacionam às

dos atores estudados. Pois é também a partir de sua vivência que o pesquisador

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constrói o seu objeto. Neste caso, onde realizo uma antropologia de meus pares

profissionais, o relato de algumas experiências se faz obrigatório em virtude de

sua relevância para o pesquisador e pertinência à pesquisa.

O sambajazz é um universo amplo, no qual se poderia contabilizar

centenas de pessoas. Selecionei oito músicos que atuavam no Rio de Janeiro como

foco da etnografia a fim de obter um olhar mais aprofundado sobre o movimento

através deles. Eles foram escolhidos por motivos diversos, seja por sua projeção

popular e importância no universo estudado, seja por fatores que poderiam ser

chamados de subjetivos, como o conhecimento pessoal prévio (caso de Paulo

Moura e João Donato) ou mesmo a minha preferência estética/política pela sua

música. Assim, não se deve ver nesta lista uma espécie de “seleção brasileira” do

sambajazz, onde se escolheria “os melhores”, mas uma opção contingente

determinada principalmente pelo percurso da pesquisa, que certamente seria muito

diversa se o pesquisador fosse outro. Os músicos selecionados são:

1. Paulo Moura (São José do Rio Preto, SP, 1932 - Rio de Janeiro, RJ, 2010)

2. Édison Machado (Rio de Janeiro, RJ, 1934 - Rio de Janeiro, RJ, 1990)

3. João Donato (Rio Branco, AC, 1934)

4. Raul de Souza (Rio de Janeiro, RJ, 1934)

5. Johnny Alf (Rio de Janeiro, RJ, 1929 - Santo André, SP, 2010)

6. Moacir Santos (Flores, PE, 1926 — Pasadena, CA, EUA, 2006)

7. Sérgio Barrozo (Rio de Janeiro, RJ, 1942)

8. Pedro Paulo (Juiz de Fora, MG, 1939)

Um critério de escolha dos músicos foi a possibilidade de realização de

entrevistas com eles. Já falecidos quando iniciei a pesquisa, não pude entrevistar

pessoalmente Édison Machado, Johnny Alf e Paulo Moura. Moacir Santos

também se enquadra neste caso, mas eu havia realizado uma entrevista com ele

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em 2006, por ocasião de minha dissertação de mestrado (2007) que também foi de

grande valia a esta tese.

Paulo Moura havia falecido em 2008, e usei como fonte principal para a

etnografia a longa entrevista feita por sua esposa, Halina Grynberg e publicada em

2011 sob o título Paulo Moura: um solo brasileiro, além de outras que ele

realizou ao longo de sua carreira. Também foi importante para esta pesquisa a

dissertação de mestrado da saxofonista Daniela Spielman, Tarde de Chuva: A

Contribuição Interpretativa de Paulo Moura para o saxofone no samba-choro e

na gafieira, a partir da década de 70 (2008).

Utilizei como fonte principal para etnografar Johnny Alf a sua biografia

escrita por João Carlos Rodrigues (2012) e plena de citações a partir das

entrevistas que o autor realizou com o músico. Destaco ainda a tese de doutorado

de Marcelo Silva Gomes, Samba-Jazz aquém e além da Bossa Nova: três arranjos

para Céu e Mar de Johnny Alf. (2010).

Apesar de Édison Machado ser considerado por muitos o baterista mais

importante da história do samba moderno, existe escassa referência bibliográfica a

seu respeito. Não pude encontrar nenhuma entrevista publicada com ele em livro,

apenas em dois periódicos da primeira metade de 1970, logo antes dele imigrar

para os EUA. Baseei-me, para a etnografia, na entrevista concedida em 1974 a

Luis Carlos Maciel e publicada na Revista Sombras e, principalmente, em uma

entrevista de 1990, realizada para o programa O assunto é jazz, de Luis Carlos

Antunes, na Rádio Fluminense, logo após seu retorno ao país, no mesmo ano em

que faleceria vítima de um infarto. Esta entrevista tem interesse especial por

contar com a participação dos músicos Tião Neto, Teomar Ferreira, Mauro

Jerônimo, além dos radialistas Luis Carlos Antunes e Eduardo Troia. Graças a

Mauro Jerônimo, um baterista amante do sambajazz que participou da entrevista,

tive acesso a este documento que ele registrou em uma fita cassete.

Apesar das dificuldades da transcrição da gravação precária, esta

entrevista, provavelmente desconhecida por outros pesquisadores, se tornou peça

importante para esta tese. Ela traz Machado “à vontade” entre músicos e

jornalistas que o admiram e respeitam e que, especialmente no caso do destacado

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baixista de sambajazz, Tião Neto, viveram este movimento intensamente junto a

ele. Machado se mostra espirituoso, e senhor da situação como quem está “em

casa” entre os seus, após retornar ao Brasil. Ouvir o tom de voz de Édison

Machado foi algo de grande valia para este pesquisador, que pôde entender um

pouco mais dele através de sua fala completa, entoada: som e sentido caminham

juntos, e não se separam facilmente.

Dentre os trabalhos acadêmicos relacionados a esta pesquisa, destaco ainda

a relevante dissertação de mestrado de Mestrado de Joana Saraiva, A invencao do

sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de

1950 e inicio dos anos de 1960 (2007), que aborda o movimento sob uma

perspectiva diversa desta, dentro do departamento de história da PUC-RIO. Sua

análise dos relançamentos em CD dos álbuns do movimento, e sua visão do

movimento do sambajazz como uma construção posterior efetuada não apenas por

músicos, mas também por jornalistas e produtores, foi muito importante,

sobretudo, para os capítulos finais desta tese.

Destaco ainda a dissertação de João Marcelo Zanoni Gomes (2009), sobre

o mesmo tema de meu mestrado (2007), o álbum “Coisas” (1965) de Moacir

Santos, além da tese de doutorado de Andrea Ernest Dias que foi recentemente

publicada em um livro intitulado Moacir Santos, ou os caminhos de um músico

brasileiro (2014).

O relato do pianista Cesar Camargo Mariano, em Solo: memórias (2011),

até o presente momento foi a única autobiografia que encontrei escrita por algum

músico relacionado ao movimento e é relevante para esta pesquisa dada a

importância de Camargo Mariano para o sambajazz.

Parte desta pesquisa foi feita em meio a uma turnê musical da qual

participei com uma conhecida cantora de MPB, onde percorri diversas cidades do

Brasil, como São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Aracajú,

Salvador, Goiania e Brasília, entre outras, no ano de 2013. Em todas estas cidades

busquei os sebos locais e adquiri livros relacionados a esta pesquisa, o que me

valeu certa fama de excentricidade no grupo de músicos, dada a regularidade desta

minha empresa durante a turnê. Dentre as dezenas de livros que trouxe ao Rio de

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Janeiro comigo, destaco a seguir dois livros que foram muito importantes a esta

pesquisa.

As entrevistas coletadas por Zuza Homem de Mello, reunidas no livro

Música Popular Brasileira (1976) foram valiosas para esta tese pela grande

variedade de músicos entrevistados entre 1967 e 1971 - logo após o período

estudado - bem como pela arrumação dos depoimentos por tópicos, favorecendo a

comparação entre as falas. Além disso, as entrevistas não se restringem apenas às

personalidades sempre destacadas neste tipo de publicação, em geral cantores

famosos, dificultando a pesquisa sobre instrumentistas, menos abordados. Dentre

os músicos entrevistados encontram-se Johnny Alf, Eumir Deodato, Marcos

Valle, Milton Banana, Roberto Menescal, Tom Jobim, Baden Powell, Elis Regina,

Carlos Lyra e outros relevantes para esta tese. Também tive acesso por meio dos

sebos à excelente coletânea de artigos de jornais de Ana Maria Bahiana, Nada

será como antes – MPB nos anos 70 (1980), que traz uma visão instigante da

música no Brasil, com artigos dos anos 1970 sobre diversos temas relevantes a

esta pesquisa.

A escolha da entrevista como uma das opções metodológicas deve muito à

primeira orientadora desta tese, a saudosa antropóloga Santuza Cambraia Naves.

Em um texto norteador para pesquisadores voltados à antropologia da música

brasileira, intitulado A entrevista como recurso etnográfico (2007), Naves parte

do princípio de que “fazer antropologia, como reza a tradição desta disciplina pelo

menos desde Malinowski e Franz Boas, significa acima de tudo realizar um

trabalho etnográfico” (2007, p.1). Ela reitera, no entanto, que a disciplina, apesar

de sua origem ligada ao estudo das chamadas “sociedades primitivas” não é

“refém” desta tradição, e pode se desenvolver com grande proveito também sobre

o campo urbano. Em um trecho iluminador sobre o lugar da entrevista na prática

etnográfica, Santuza escreveu:

Em que pesem as diferenças mencionadas entre a prática etnográfica e a da

entrevista, podemos localizar pontos em comum entre uma e outra. Um deles, e

talvez o mais importante, é o do zelo antropológico no sentido de não separar

empiria e teoria. Isso significa que parto do pressuposto de que a entrevista é

uma obra em si, e não um subsídio empírico para uma teorização posterior.

(2007, p.2)

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Assim as entrevistas não são tratadas nesta tese como dados inertes em seu

isolamento, a serem organizados e interpretados por uma leitura posterior

informada teoricamente, mas são parte do percurso antropológico, ainda que não

transcritas por inteiro aqui. Conforme Ingold (2007) aponta na anteriormente

citada metáfora do pintor, entendo que o método científico não consiste em

analisar dados a posteriori, colhidos na etnografia da forma o mais “objetiva”

possível, mas sim em ganhar uma compreensão em que estes dados sejam

realmente entendidos a partir de sua relação com o campo de forma ampla,

antropológica. Como o pintor, que primeiro apreende uma imagem total da

paisagem, que só depois será pintada em elementos discerníveis na tela, mas que

ainda assim permanece uma paisagem “por inteiro”, entendo que o antropólogo

deve relacionar, a cada momento da pesquisa, a parte ao todo (INGOLD, 2007).

Assim entendo o “zelo antropológico”, conforme Naves, em não separar os dados

do entendimento antropológico, nem a entrevista pontual do entendimento total da

pesquisa, em benefício da mesma.

Entrevistei quinze músicos para esta pesquisa, que podem ser divididos em

dois grupos: músicos ligados ao sambajazz e músicos “atuais”. Realizei entre

2012 e 2014 um trabalho de campo entre meus pares músicos em situações de

trabalho “atuais” e nesta ocasião fiz algumas entrevistas com eles. A maior parte

desta pesquisa sobre o grupo de músicos atuais não aparece de maneira explicita

nesta tese, exceto ao fim do capítulo 7. No entanto eles podem ser considerados

como uma espécie de “grupo de controle” com relação aos outros entrevistados.

Estes músicos foram fundamentais para que eu tivesse um entendimento também

histórico dos desdobramentos da profissão de músico no Brasil. O crítico musical

Tárik de Souza também concedeu uma valiosa entrevista por email para esta tese.

Não apenas em entrevistas, mas também em muitas conversas informais de

camarim (das quais anotei o mais que pude em um diário de campo), músicos

mais experientes que eu debateram longamente os problemas da profissão em uma

perspectiva comparativa com décadas passadas. Este tipo de conversa entre

músicos profissionais de longa vivência no trato com o mercado musical me

permitiram “tomar o pé” da situação, ou seja, entender como era a profissão de

músico na passagem da década de 1950 a 1960 em comparação com a mesma

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carreira hoje. Os músicos entrevistados para esta pesquisa se dividem então em

dois grupos:

I. Músicos ligados ao sambajazz:

1. Maurício Einhorn (Rio de Janeiro, 1932)

2. Edson Lobo (Rio de Janeiro, 1947)

3. Tita Lobo (Manhuaçú, MG, 1951)

4. Alfredo Cardim (Rio de Janeiro, 1949)

5. Sergio Barrozo (Rio de Janeiro, 1942)

6. Wagner Tiso (Três Pontas, MG, 1945)

7. João Donato (Rio Branco, AC, 1934)

8. Raul de Souza (Rio de Janeiro, 1934)

10 Pedro Paulo (Juiz de Fora, MG, 1939)

11 Mauro Jerônimo (Rio de Janeiro, 1947)

II. Musicos atuais (referidos por pseudônimos27

):

12 João (Fortaleza, CE, 1962)

13 Roberto (Rio de Janeiro, 1978)

14 Ricardo (Rio de Janeiro, 1959)

15 Luiz (Paris, FR, 1975)

Conforme se pode observar, nem todos os entrevistados ligados diretamente

ao sambajazz são o foco da etnografia. Parti, nestas entrevistas, de um

questionário semi-estruturado que me proporcionou localizar recorrências entre as

falas, especialmente no caso dos músicos atuais28

. No decorrer das entrevistas,

realizadas entre 2013 e 2015, o questionário sofreu algumas modificações, ou

melhorias, mantendo-se essencialmente o mesmo. No entanto este roteiro serviu

principalmente como um apoio para entrevistas, em que procurei, mais do que

enquadrar o falante nas minhas questões, deixá-lo falar “à vontade”. Menos

27

Optou-se por usar pseudônimos para estes entrevistados a fim de preservar sua privacidade. 28

Ver questões da entrevista no Anexo I.

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preocupado em ter o retorno sobre minhas próprias categorias de pensamento,

quis que o entrevistado colocasse as dele. E muitas vezes as perguntas do

questionário, propositalmente básicas a fim de não “direcionar” por demais a

entrevista, foram respondidas “espontaneamente” pelos músicos. Ao fim o roteiro

das entrevistas teve serventia como uma forma de manter algum controle sobre a

abordagem da entrevista, como um lembrete ao entrevistador sobre as questões

levantadas anteriormente, e jamais como uma prescrição rígida do encontro.

Fiz ainda uma lista de álbuns importantes do sambajazz como uma estratégia

metodológica a fim de definir melhor o escopo da pesquisa. A escolha destes

álbuns foi de grade valia na seleção do universo de músicos focados na etnografia.

O sambajazz pode ser satisfatoriamente situado no tempo a partir do

lançamento do primeiro álbum da Turma da gafieira, em 1956, considerado pelo

jornalista Robert Celerier como o primeiro do gênero. A escolha deste ponto de

partida me pareceu especialmente apropriada, seja pela data recuada no tempo que

marca um bom começo cronológico, em um álbum que tem um elenco de músicos

do sambajazz - com uma prática que em tudo já anuncia o estilo, com improvisos

e levadas de samba moderno à bateria -, seja pela ligação com o baile de gafieira

que o álbum traz no título, e que revela muito sobre o sambajazz. Aos dois álbuns

da Turma da gafieira (1956, 1957) que são o marco zero deste percurso,

acrescentei outros sete, que formam um corpus fonográfico da pesquisa.

Parte desta pesquisa consistiu ainda na consulta de periódicos cariocas

como o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil, o Última Hora e O Globo, entre

outros, principalmente através da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional,

onde transparece a discussão pública sobre o samba moderno que surgia no final

da década de 1950 e sua posterior racionalização em categorias como sambajazz e

bossa nova. Neste sentido, os artigos de Robert Celerier, assim como os de outros

jornalistas como Sérgio Porto e Sylvio Túlio Cardoso e Luiz Orlando Carneiro são

utilizados a fim de situar melhor o sambajazz em seu contexto social e apreender

os discursos que o constituíram enquanto gênero musical. Esta parte da pesquisa

se concentra nos capítulos 5 e 6.

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Os álbuns focados nesta pesquisa são29

:

0. Turma da gafieira – vários30

(1956/1957)

1. É Samba novo – Édison Machado (1963)

2. Você ainda não ouviu nada! – Sérgio Mendes (1964)

3. Coisas – Moacir Santos (1965)

4. Muito à vontade/ A Bossa muito moderna – João Donato (1962/63)

5. À vontade mesmo – Raul de Souza (1965)

6. Diagonal - Johnny Alf (1964)

7. Embalo – Tenório Júnior (1964)

O processo de escolha destes álbuns segue um percurso que só pode ter

alguma objetividade na medida em que se assume o que há de subjetivo nele. A

princípio, dois álbuns se impõem como centrais ao movimento, seja pelo seu

alcance junto ao público, seja pelo prestígio amealhado junto a músicos e

especialistas, seja pela importância de seus solistas para o movimento do

sambajazz, ou ainda, pelo seu alto patamar artístico. São eles: É samba novo

(1963), de Édison Machado e Você ainda não ouviu nada! (1964), de Sérgio

Mendes. Os dois são álbuns de personalidades importantes no sambajazz, uma

que ascenderia a um grande sucesso internacional que perdura até hoje via EUA, o

pianista Sérgio Mendes e outra que teria um destino descendente rumo ao

esquecimento nos anos 1980, fado sempre lembrado como uma injustiça com este

que foi um dos grandes bateristas da música brasileira, Édison Machado.

A estes se soma um terceiro álbum, que vem a formar uma trindade do

sambajazz, o Coisas (1965). Este último álbum da cronologia é também um fecho

do movimento que, assim, pôde ser circunscrito em uma década: de 1956 a 1965.

Se partirmos do fundador Turma da Gafieira (1956) ao Coisas (1965), faremos

um percurso que descreve um arco, por onde os álbuns fazem um movimento de

29

Ver as capas e contracapas destes ábuns no Anexo II. 30

Os músicos que gravaram estes álbuns foram: Édison Machado (bateria), Raul de Souza

(trombone), Altamiro Carrilho (flauta e direção musical do primeiro álbum), Cipó (saxofone),

Sivuca (acordeão), Zé Bodega (saxofone), Nestor Campos (guitarra), Baden Powell (violão) Luiz

Marinho (baixo), Zequinha Marinho (baixo), e Maurílio Santos (Trompete), Paulinho e Britinho

(piano).

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inversão. Se o primeiro LP - Turma da Gafieira - era fruto de um coletivo de

músicos e expressamente voltado para a dança, o álbum de Moacir Santos é

autoral, partindo da dança para se chegar a um resultado artístico “para ouvir”. Se

o primeiro álbum é leve e descompromissado, este último não cessa de afirmar a

importância do negro na música e na sociedade brasileiras, não apenas enquanto

indivíduos dotados de uma corporalidade criadora, mas também de

intelectualidade espontânea, buscando um percurso afro-brasileiro na

música/política.

Escrevi uma dissertação de mestrado sobre o álbum Coisas (1965), do

maestro Moacir Santos, a quem conheci pessoalmente, primeiro em sua casa em

Pasadena, CA, EUA, em 2002, quando estudava no Musicians Institute através de

uma bolsa da CAPES. Posteriormente vim a gravar com ele no álbum As canções

de Moacir Santos (2007). Tive também a oportunidade de realizar uma entrevista

com o compositor, em anexo na dissertação (FRANÇA, 2007), e que também

serve de fonte para esta tese.

Descrito pela crítica especializada como “obra-prima” ou como “marco”31

na música brasileira, este primeiro álbum de Moacir Santos, o Coisas (1965) foi

assim descrito por Ruy Castro:

Foi o último e o melhor disco de “samba-jazz” feito no Brasil daquela época: uma

obra-prima de música instrumental, com raízes ardentemente brasileiras e uma

certa tintura jungle, ellingtoniana, que parece brotar dessas mesmas raízes. Seria

fácil dizer que, em tais raízes, está a música ancestral negra. E deve estar mesmo

– mas não só: Moacir era e é um músico completo, que se abeberou de toda a

tradição clássica européia, apenas fazendo-a curvar-se à sua orgulhosa negritude.

(Foi o primeiro maestro negro da Rádio Nacional, furando a hegemonia – benigna

– dos mestres Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli.)32

Os álbuns seguintes focados, Muito à vontade (1962) e A bossa muito

moderna (1963), de João Donato, e À vontade mesmo (1965), de Raul de Souza,

ao contrário dos anteriores, não são LPs com naipes de sopros, mas de quartetos

liderados por solistas carismáticos e em busca de uma sonoridade “à vontade”. Os

dois álbuns de Donato estão agrupados por terem sidos gravados na mesma

31

“O contexto em que surgiu a obra-prima ‘Coisas’, o primeiro disco autoral de Moacir Santos, de

1965, diz muito sobre ele (...)” (Hugo Sukman em “O Globo”, 10-08-2004, grifo meu); “Trata-se

de um marco na música instrumental brasileira” (Tarik de Souza, JB Online, acesso em: 21-10-

2005, grifo meu). 32

Rui Castro em O Estado de São Paulo, 24/08/2004.

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semana do ano de 1962, conforme me relatou seu autor em entrevista para esta

tese, sendo considerados como uma unidade aqui. Donato residia nos EUA e

estava no Rio de Janeiro de passagem, quando gravou as faixas que foram depois

agrupadas em dois álbuns.

A escolha destes dois álbuns, confesso, tem muito de pessoal. Eu os

selecionei especialmente pela sua qualidade artística, algo sempre subjetivo, mas

que poderia ser embasado musicologicamente se tal digressão não fugisse ao

escopo desta tese. Por outro lado tanto Donato quanto Souza são músicos

internacionalmente reconhecidos e meu gosto pela sua música certamente não é

apenas pessoal, mas tem grande respaldo público. João Donato se afigura como

um dos músicos mais importantes deste período abordado, estando sua música

tanto na base da bossa nova, quanto do sambajazz. Sua precisão micro-rítmica à

mão esquerda, chamada de suingue entre “nativos” do sambajazz, no meu

entendimento fazem dele um dos melhores pianistas do movimento, a despeito da

concorrência ser espantosa: Donato tinha como pares Luizinho Eça, Dom

Salvador e Sérgio Mendes, além de Luis Carlos Vinhas e Tenório Jr., para citar

apenas cinco pianistas excepcionais do sambajazz.

Tive a sorte de poder entrevistar tanto João Donato quanto Raul de Souza

para esta tese, pois embora ambos já estejam na casa dos 80 anos, eles estão ativos

física e profissionalmente. Eu já havia gravado e feito apresentações ao vivo com

João Donato em algumas ocasiões, o que me facilitou a aproximação33

. A

entrevista com o músico acreano teve lugar em sua casa na Urca, Rio de Janeiro e

dela tomou parte meu colega de doutorado e pesquisador da música brasileira,

Jonas Soares Lana. O encontro começou no fim de uma tarde de abril, e se

estendeu por mais de cinco horas, das quais as duas finais foram reservadas à

audição do que Donato chamou de “as músicas mais bonitas do mundo”.

Escrevendo uma sinfonia e pesquisando a orquestração de Debussy e Ravel,

Donato nos mostrou com brilho nos olhos as gravações que ele considerava as

melhores da tradição orquestral do jazz, nas músicas de compositores e

arranjadores como Count Basie e Stan Kenton.

33

Devo agradecer também à sua mulher, Ivone Belém, por isso.

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Raul de Souza reside em São Paulo e eu somente havia tido um contato

pontual com ele uma vez, ainda na minha adolescência. Como paralelamente a

esta pesquisa eu registrava um CD solo, convidei os dois músicos a gravar

comigo. Ambos aceitaram, após a devida intermediação de suas esposas. Assim

tive a oportunidade de reencontrar João Donato em ensaios e na gravação de uma

música inédita sua composta em 1962, chamada Férias no Acre, que registramos

neste CD ainda a ser lançado. Com Raul de Souza pude realizar a gravação

seguida de uma entrevista, que havia tentado anteriormente para esta tese, embora

sem sucesso. A entrevista, afinal, me veio nos momentos finais desta pesquisa, e

serviu para confirmar certas ideias e desfazer dúvidas.

Por fim, Diagonal (1964), de Johnny Alf, e Embalo (1964), de Tenório

Júnior, foram álbuns escolhidos principalmente pela importância destes músicos

no movimento, além de sua qualidade artística notável. Alf é um fundador do

samba moderno que está na base tanto do sambajazz como da bossa nova. Este

álbum, cantado, mas com orquestra de sopros em um estilo jazzístico que poderia

ser descrito como de tendência “instrumental”, é um exemplo de sambajazz que

não exclui a voz. O LP Embalo, além da sua excelência musical, foi escolhido

pela importância simbólica do pianista Tenório Jr no movimento. Outro músico, o

guitarrista Frederico de Oliveira, o Fredera, escreveu um livro sobre ele, o

inquietante O crime contra Tenório (OLIVEIRA, 1986).

As ausências obviamente são muitas. Citaria aqui dois álbuns que quase

incluí nesta pesquisa pela importância de seus músicos e pela densidade musical

dos registros, Tamba (1962), do Tamba Trio de Luis Eça, e Os Cobras34

(1964),

um conjunto que trazia o importante saxofonista do sambajazz, J. T Meireles,

além de um time de craques composto por Tenorio Jr. (piano), José Carlos

“Zezinho” (bass), Milton Banana (drums), Raul de Souza (trombone), Hamilton

(piston) e Paulo Moura (sax alto).

O capítulo 1 - o percurso inicial – aborda o processo de tornar-se músico,

com foco nos praticantes do sambajazz, especialmente em Édison Machado,

Sergio Barroso e Paulo Moura. Tornar-se musico profissional é algo que demanda

34

O álbum tem como convidados especiais: Jorginho (flute), Aurino (sax baritono), Cipó (sax

tenor), Roberto Menescal (guitar), Ugo (vibes).

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o aprendizado de um ethos a um tempo corporal e intelectual, que começa em casa

com a família e inclui a mimesis de músicos mais experientes. O sambajazz é

entendido como espetáculo (CALADO, 1990) e é discutida a importância do

corpo e da performance no movimento (MAUSS, 2003, LE BRETON, 2009).

Este capítulo apresenta ainda uma sociologia dos instrumentos, com base em

LEHMANN, (1998, 2003) e PERRENOUD (2007), e a bipartição das praticas

instrumentais em tradição artística (espiritual) e militar (corporal).

O capítulo 2 - A cozinha afro-brasileira - é dedicado à esta inversão

realizada pelo sambajazz, onde a seção rítmica, ou a “cozinha” no jargão dos

músicos, toma a frente dos “solistas”. O fundo se torna figura e, nesse movimento,

“o negro pode avançar mais”, nas palavras de Moacir Santos, apresentado como

um erudito empenhado na construção da música negra no Brasil. A reinvenção

rítmica da cozinha, operada por Santos, é entendida a partir da topografia em

Bakhtin (1999) como a valorização do que está em baixo, e que, ao se “degradar”

fertiliza, gerando o “alto”. Relaciono ainda o referencial teórico presente em

Seeger (2015) e sua “antropologia musical” e Gilroy (2001), cujo conceito de

Atlântico negro entende a música negra como uma rede transnacional.

Os locais do sambajazz são abordados no capítulo 3. Parte-se do álbum

que foi considerado o “marco zero” deste percurso, o Turma da gafieira (1956),

destacando a importância da música para dançar neste movimento. Os locais do

sambajazz são apresentados como “paisagens sonoras” (SCHAFER, 1991, FELD

1982), ou como um percurso para se chegar à improvisação. A experimentação se

dava, portanto, em vários níveis, no musical, mas também na invenção de uma

nova tática comercial que surgia na noite de Copacabana e no Beco das garrafas,

após o fechamento dos cassinos, em 1946.

O capítulo 4 é dedicado ao som das palavras no sambajazz. Prosseguindo

a sociologia dos instrumentos desenvolvida nos capítulos anteriores, é apresentada

a oposição entre cantores (chamados de “canários” pelos músicos) que “voam”

alto, próximos da literatura e possuidores de voz e “cozinha” (ou seção rítmica)

que se aproxima do baixo corporal e da sexualidade. Apresenta-se ainda a ideia da

“diáspora” do samba moderno, quando grande parte de seus músicos deixaram o

país, na segunda metade dos anos 1960. O fim do sambajazz e da bossa nova é

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marcado pela ascensão da palavra, do ponto de vista dos músicos, quando “a letra

passou a ser mais importante que a música”, segundo Roberto Menescal

(MELLO, 1976, p.162). Reforça-se então a bipartição entre letra e música, que

atingiria seu auge na década posterior. Traça-se ainda um histórico do conceito de

“musica absoluta”, que está na base da bipartição das músicas entre canção e

musica instrumental, esta última entendida como música sem voz. Emerge desta

discussão o caso de João Donato e o problema da nomeação dos sons musicais.

Os capítulos seguintes, 5 e 6, são dedicados à discussão pública sobre as

categorias sambajazz e bossa nova acompanhada através da imprensa. O capítulo

5 - A crítica e as categorias do som: como enquadrar o movimento das ondas

sonoras? – observa este processo de purificação, ou construção das categorias de

sambajazz e bossa nova a partir do genérico samba moderno. O capítulo tem foco

especial no jornalista e músico francês Robert Celerier, que através de sua coluna

semanal no jornal O Correio da Manhã, entre 1961 e 1965 foi um promotor e

divulgador do sambajazz, promovendo a estabilização desta categoria.

O fim do samba moderno é abordado no capítulo 6. Vê-se neste capítulo

Nara Leão ocupada com a negação da bossa nova da qual fora “musa” e com a

valorização da “cultura popular” no cenário politico do golpe militar de 1964 no

Brasil, bem como sua opinião de mulher independente. Aborda-se a separação

entre o conteúdo político, expresso em letra e a forma popular, dita musical, na

canção do período pós 1964, entendida como um divórcio entre a esfera social e a

sonora. Por fim, chega-se à construção de uma bossa nova purificada pela ação de

atores ligados à literatura nacional, que conduz à discussão teórica em Sennett

sobre a separação ocidental entre a mão e a cabeça.

No capítulo 7 apresento a posição liminar do sambajazz com relação à

indústria cultural brasileira, que floresce entre dois grandes períodos, a era do

rádio e a era da televisão. Discuto a gênese do conceito pela Escola de Frankfurt,

em Adorno (2002) e as críticas posteriores de Berio (1981), Puterman (1994) e

Middleton (2006). Realiza-se ainda, ao final deste capítulo, um breve estudo

comparativo entre a profissão de músico no Rio de Janeiro nos dias de hoje com o

do período estudado, a partir das entrevistas realizadas com músicos atuais.

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Por fim, no apêndice, pode-se ler uma “digressão literária” em que se

tematiza “a morte da personagem e o início da sua vida em palavras” através do

romance Memórias póstumas de Brás Cubas (2001), de Machado de Assis.

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1. O percurso inicial

1.1. Tornar-se músico

Tornar-se músico, isto é, aprender a tocar um instrumento ou a cantar, é

fazer um percurso. Embora já trilhado anteriormente por muitos outros músicos,

um novo percurso é feito por aquele que começa a caminhada por seus próprios

passos. O ponto de partida para os praticantes do sambajazz foi a convivência

ainda na infância com familiares e amigos, muitas vezes músicos amadores, com

quem se fez e se estudou música, e com quem se “aprendeu” também a ouvir e a

gostar de música.

Ainda criança o músico começa a formar seu gosto, o que contribui para

que ele compreenda e direcione seu percurso de acordo com a cartografia das

diversas redes musicais acessíveis. O futuro músico escolhe, ou um familiar

escolhe por ele, conforme o gosto e a conveniência (que inclui o custo, a

portabilidade, o status social), um instrumento que provavelmente o acompanhará

ao longo da carreira. Obviamente existe a possibilidade de ele mudar de

instrumento, mas isso acarreta em uma perda de habilidade que tem de ser

recuperada à custa de árduo estudo no novo.

Tornar-se músico profissional é, portanto, um processo estendido no

tempo, e que acontece através da relação com outros músicos e amantes da

música. Esta é uma construção corporal e intelectual a um só tempo, onde se

aprende a performar o saber musical, mais do que onde se adquire um

conhecimento estanque transmitido por outras gerações. O filósofo Richard

Sennett, ao qual voltarei adiante, frisa que “cerca de 10 mil horas de experiência

são necessárias para produzir um mestre carpinteiro ou músico” (2009, p.30). Este

processo em geral envolve o aprendizado musicológico específico, mas é muito

mais do que isso, pois implica em anos de socialização sob um ethos musical que

cada indivíduo reinventa para si, na relação com os outros, à sua maneira.

Conforme afirmei, muito comumente os músicos profissionais praticantes

do sambajazz foram introduzidos à música ainda crianças, por familiares. Assim

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como crianças aprendem muito mais facilmente a falar uma língua nova com

fluência que adultos, o mesmo ocorre com a prática de um instrumento, ou da voz

afinada. Por isso é comum que músicos profissionais de alto nível técnico tenham

sido iniciados à musica ainda na infância, embora isto obviamente não seja uma

regra sem exceções. Muito frequentemente são esses filhos de músicos que se

tornam músicos profissionais.

Segundo José Alberto Salgado e Silva: “Nascer e crescer com música e

músicos em casa tem efeitos sutis sobre a formação da pessoa, incluindo aspectos

de cognição musical e outros, como a naturalidade das relações com artistas

profissionais.” (2005b, p.18). Em um mercado de trabalho competitivo como o do

Rio de Janeiro, em que a música deve estar internalizada a ponto de se converter

em uma prática fluente, é mais fácil para o indivíduo tornar-se um profissional de

êxito se ele tiver sido socializado na música desde a infância.

De acordo com o sociólogo Bernard Lehmann (1998, 2003), que

investigou instrumentistas em formações sinfônicas, este é um fator distintivo

muito importante no meio das orquestras da tradição erudita. Segundo Lehmann,

filhos de músicos chegariam a estas instituições com uma visão mais pragmática

da carreira, menos sujeitos às fantasias comuns entre jovens iniciantes que não

acompanharam em família a trajetória de profissionais mais velhos. Um certo

pragmatismo com relação à profissão lhes daria uma vantagem na competição

profissional com os filhos de não músicos, além da fluência musical

proporcionada pela precocidade. Trata-se, segundo Lehmann, da transmissão do

“capital educacional e cultural”:

Esta dicotomia filhos de músicos/filhos de não-músicos também levanta o

problema da transmissão, da convertibilidade do capital educacional e cultural.

(...) Um filho de músico sabe de antemão onde pôs os pés35

. (LEHMANN, 2003,

p.253)

“Saber de antemão onde pôs os pés”, ou seja, saber sobre que solo estão

assentadas as expectativas sobre a carreira de músico, da qual existem muitos

modelos possíveis, torna-se assim um fator distintivo para jovens iniciantes. Pois,

35

“Cette dichotomie enfants de musiciens/enfants de non-musiciens souleve également le

probleme de la transmission, de la convertibilité du capital scolaire et culturel. (…) Un enfant de

musicien savait an avance où il mettait les pieds.” (LEHMANN, p.253)

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se no meio clássico a posição mais elevada é a de solista, filhos de violinistas

sabem que atingir a chamada primeira estante e se tornar o spalla não é

normalmente dado aos músicos tuttistas, ou seja, das estantes inferiores na

hierarquia da orquestra. Estes, muitas vezes, não chegam jamais a ser solistas. A

posição está reservada aos poucos músicos que se destacam – e que muitas vezes

foram ou são “crianças prodígio” - em um universo bem maior de candidatos.

Marc Perrenoud é um contrabaixista e antropólogo que realizou uma

pesquisa entre os “músicos comuns” (“musiciens ordinaires”)36

com quem tocava

em bares, festas e festivais, em fins dos anos 1990 e início dos anos 2000, também

na França. Sua pesquisa está no livro Les Musicos – enquete sur des musiciens

ordinaire. A gíria francesa musicos, cuja grafia por acaso coincide com a desta

palavra em português, sem o acento, designa estes músicos comuns. Sendo ele

próprio um “musico ordinaire”, Perreneud investigou o caso de seus colegas que

“se dedicam à prática de um instrumento e se encontram regularmente em

situação de se apresentarem diante de um público mediante remuneração, mas são

relegados aos degraus inferiores da pirâmide profissional”37

(PERRENOUD,

2007, p.8). Os “músicos comuns” abordados por Perreneud - que nem sempre

puderam viver exclusivamente de música - são bastante diversos dos músicos

eruditos profissionais inseridos em estáveis instituições sinfônicas, investigados

por Lehmann. Estes “musicos” - conforme a gíria francesa que os define -

enfrentam uma carreira bem mais difícil, pela grande instabilidade das fontes de

renda e pela baixa valorização social de seu trabalho, ocupando as posições

inferiores da hierarquia musical.

Os músicos praticantes de sambajazz, embora mais próximos dos

“músicos” de Perrenoud quanto à instabilidade das atividades profissionais que os

músicos de orquestra de Lehmann, se situam em algum lugar entre ambos quanto

ao grau de sua profissionalização e status social. Embora frequentemente de

origem familiar modesta, os músicos do sambajazz são considerados, e também o

36

Como a palavra “ordinário”, tem conotação pejorativa em português significando “de baixa

qualidade”, optei por traduzir “ordinaire” por “comum”, que se aproxima mais do original em

francês, conforme o Dictionaire Portugais Larousse, Paris, Fr, 2012. 37

“(...) se consacre à la pratique d’un instrument et sont régulièrement em situation de se produire

devant um public contre rémunération mais sont relégués aux degrés inférieuers de la pyramide

profissionnelle” (PERRENOUD, 2007, p. 8)

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foram no passado, a “nata” dos músicos do Rio de Janeiro em fins dos anos 1950

e início dos anos 1960. Quem eram estes músicos que praticavam o sambajazz,

objeto desta pesquisa38

?

O movimento musical chamado de sambajazz floresceu na cena noturna do

bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro de final dos anos 1950 e início dos

196039

. Foi a prática de músicos de diversas origens que para lá convergiram. Eles

eram, em muitos casos, provenientes dos subúrbios ou migrantes de cidades

menores. Isto se aplica especialmente aos numerosos bateristas e instrumentistas

de sopro deste movimento. O baterista Édison Machado e o trombonista Raul de

Souza, por exemplo, nasceram, respectivamente, nos bairros do Engenho Novo e

de Bangú, RJ. No entanto, a profunda desigualdade social que caracteriza a

sociedade brasileira também se reproduz no interior do sambajazz, embora talvez

com menos contrastes. Pianistas, como Sérgio Mendes, cujo pai era um médico,

profissional liberal de classe média, foi criado em Niterói, uma localidade mais

próspera e próxima do grande centro do Rio de Janeiro, e ocupa a outra ponta, na

escala social do sambajazz. De maneira geral, pianistas e contrabaixistas tendiam

a ter origem familiar de classe social mais elevada que bateristas e instrumentistas

de sopro, conforme será visto adiante.

Os músicos de sambajazz frequentemente tiveram sua musicalização

inicial ainda em família, em geral formada por músicos amadores, à qual se seguia

por vezes o ingresso em bandas de música de instituições como a escola, a Igreja

ou o Exército40

. E em muitos casos eles tocavam profissionalmente em gafieiras –

38

Conforme mencionado na introdução, esta pesquisa tem foco em oito músicos que, por diversos

motivos, se destacam no universo do movimento musical que foi posteriormente denominado

sambajazz. Obviamente qualquer conhecedor do assunto há de notar muitas faltas, mas seria

impossível fazer esta pesquisa sem um foco mais cuidadoso em alguns músicos representativos do

movimento, o que não significa que os demais estejam excluídos da pesquisa. São eles Paulo

Moura, Édison Machado, João Donato, Raul de Souza, Johnny Alf, Moacir Santos, Pedro Paulo e

Sérgio Barroso. 39

O sambajazz também se deu em São Paulo, e mesmo em todo o Brasil. O foco desta tese, no

entanto, é no movimento do Rio de Janeiro, inclusive porque podemos considerar esta cidade

como polo irradiador do sambajazz, graças a centralidade que ocupava na cena cultural brasileira,

naquele momento. 40

Segundo o trombonista Raul de Souza: “Bom, eu tocava na banda (da corporação). E aí surgiu o

convite para organizarmos um quinteto ou um sexteto para tocar na hora do almoço dos oficiais

nos outros quartéis. E eles nos pagavam. O 1° Sargento tocava saxofone alto... Era o Liberalino,

um nome assim, e ele foi quem conseguiu um cachê pra gente. Almoçávamos lá e pegávamos

aquele dinheirinho. Não havia baterista, como também não havia bateria. Assim, eu tocava bumbo,

ou caixa, ou prato. Eu tinha noção de ritmo e... „Vou ganhar esse dinheiro!‟ Botei outro cara com

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bailes populares cujas orquestras traziam um repertório eclético que os

aproximava das músicas populares do restante do continente americano, no

período do pós-guerra. O sambajazz foi, portanto, a atividade profissional destes

músicos, que animavam as noites de Copacabana.

O que é notável no caso dos músicos de sambajazz foi que eles não

ficaram restritos a um gueto, como tantas vezes aconteceu no Brasil a músicos

cuja produção recebeu o rótulo de “música instrumental”, mas ganharam projeção

nacional e internacional como solistas criadores, em seus álbuns lançados à época.

Tal nível de valorização dos músicos profissionais dificilmente voltou a

ocorrer posteriormente no Brasil. Os músicos de sambajazz lançavam LPs na

condição de solistas e chegavam a ocupar os primeiros lugares na lista dos mais

vendidos41

. Além disso, estes álbuns mereciam críticas atentas de jornalistas

especializados dos mais importantes periódicos da época, no Rio de Janeiro. A

intensa participação da imprensa no sambajazz será abordada nos capítulos 5 e 6.

Eles viveram um momento de transição ou um “entre tempo” especial da indústria

cultural brasileira, situado entre uma primeira fase mais amadora deste mercado

de música – a era do rádio – e uma fase posterior onde essa indústria, agora

centrada na televisão e em grandes gravadoras multinacionais, sofreu enorme

expansão, e se tornou muito mais lucrativa e profissionalizada (ORTIZ, 1999).

Entre estas duas grandes eras pôde emergir o sambajazz, um movimento especial

também por esta particularidade, conforme será analisado no capítulo 7, dedicado

à indústria cultural.

trombone no meu lugar e toquei „bateria‟. E o Machado dando tiro de canhão, porque havia feito

um curso pra cabo. Eu falei pra ele: „Mas você não toca bateria? Não quer tocar na banda?‟. „Que

banda que nada! Banda de dobradinho ruim!‟ „Dobradinho ruim?‟ A sala dele ficava embaixo da

banda. E ele não subia, não queria ouvir o dobrado. E eu gostava: „Você tem que se interessar

bicho. Tem coisa linda ali. As partes de contrabaixo, de saxofone, de clarinete, de oboé, de fagote,

de tudo. E uma banda com 40 pessoas.” Entrevista publicada no site

http://www.gafieiras.com.br/Display.php?Area=Entrevistas&SubArea=EntrevistasPartes&ID=34

&Pa rteNo=23&IDArtista=33. Acesso em 25/08/06. 41

Por exemplo, no quadro “Discos mais vendidos do Rio”, publicado em O Globo em 19/10/1965,

podemos ver o Jongo Trio, um grupo de sambajazz de São Paulo, no primeiro lugar de vendas

entre os LPs nacionais, à frente de Vinícius e Caymmi e de Wilson Simonal.

Também o primeiro álbum da Turma da Gafieira foi citado na coluna “dez mais vendidos da

semana” e, quinto lugar. Entende-se porque houve um segundo álbum da Turma da Gafieira,

graças ao sucesso de vendas do primeiro. Publicado no Correio da Manhã em 24/03/1957.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_06&pasta=ano%20195&pesq=turm

a%20da%20gafieira# Acesso em 04/04 2014. Ver estes periódicos no Anexo III.

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1.2. Édison Machado e o mimetismo corporal entre músicos

Ao buscar as profissões dos pais dos músicos de sambajazz foi possível

encontrar raros músicos profissionais, sendo quase todos amadores, embora não

seja incomum que pianistas – ou até mesmo bateristas, como Édison Machado -

sejam filhos de professoras de piano, instrumento que ocupa um lugar especial

neste movimento e que será abordado adiante. Em uma entrevista dada à Rádio

Fluminense FM, em 199042

, Machado traça um retrato de sua convivência musical

familiar ao responder a uma pergunta sobre o seu interesse inicial por música

ainda na infância. Vê-se a presença de um tio importante, músico amador que o

ensinou a ouvir música no rádio:

Ah, eu posso explicar. Eu morava em Madureira, bem no centro de Madureira. E

meu tio, era diretor do Lloyd brasileiro, irmão da minha vó, mãe do meu pai,

chamava-se Hermógenes (inaudível), alemão. E todo os irmãos da minha mãe

tocavam piano também. E naquela época o rádio terminava as 11 da noite, não é?

Acho que até antes. E o meu tio gostava muito de tocar violão, tocar piano,

todo mundo tinha que estudar um instrumento, eram muitos filhos né. E

fazia sempre, todo aniversário de cada filho ele pagava uns músicos, que ele

morava numa casa muito grande, tinha na sala um piano muito bom,

alemão, por sinal. (...) Tinha o Radar Broadway, das seis às sete. E meu tio

falava assim: escuta isso aqui, rapaz, escuta isso aqui, garoto, escuta isso

aqui. E minha vó gostava também de um filme em que o (baterista de jazz) Gene

Krupa aparece.

Não espanta que o primeiro contato de Machado com o famoso baterista

de jazz Gene Krupa, que lhe ficou na memória, tenha sido através de uma mídia

audiovisual, e não apenas aural. A performance do baterista é normalmente a mais

visual, ou teatral, dentre as dos instrumentistas. A característica modular da

bateria - um instrumento composto de vários outros instrumentos marciais de

percussão de grande variedade de timbres, sempre percutidos de forma espetacular

com baquetas - confere à performance do baterista um caráter teatral e evidencia

seu corpo em movimento entre os tambores.

42

Esta entrevista com Édison Machado se deu no programa O assunto é jazz, de Eduardo Troia, na

Rádio Fluminense FM. Os entrevistadores são Mauro Jerônimo, Tião Neto, Teomar Ferreira, Luis

Carlos Antunes e Eduardo Troia. Ela foi transcrita por mim a partir de uma fita cassete gravada do

rádio por um dos entrevistadores, o baterista Mauro Jerônimo, que também foi entrevistado para

esta pesquisa. Jerônimo, um músico amante do sambajazz e conhecedor da música de Édison

Machado, ganhou a oportunidade de participar da entrevista após responder corretamente, pelo

telefone, uma questão feita no programa anterior.

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Edison Machado foi um dos mais destacados músicos do sambajazz, e seu

primeiro álbum, É samba novo, de 1963, ocupa uma posição especial no

movimento, relembrado como um marco na produção daquela geração. Sempre

citado como “o criador do samba do prato”43

, Machado elaborou um jeito de tocar

bateria que trazia para o “samba moderno” a performance exuberante de certos

bateristas de jazz ao percutir o prato de condução com o braço direito esticado, ou

“aberto”, ao invés de deixá-lo “fechado” sobre o contratempo, como na condução

mais tradicional de samba à bateria.

Não é possível deixar de assinalar, ainda que brevemente, que o

expressionismo exacerbado contido na performance de importantes bateristas de

jazz que eram exemplos para Édison Machado, como Art Blakey ou Elvin Jones,

trazia também um componente político de afirmação da expressão da cultura

negra e de minorias raciais, em um período em que estas questões começaram a

ganhar mais força nos EUA e no mundo. Embora seja um exagero afirmar uma

intencionalidade inequívoca neste sentido por parte de Édison Machado (que

poderia ser descrito racialmente – “à brasileira” - como um mulato) por outro lado

seria um erro de omissão não assinalar este componente de revolta social que

parece estar presente mais na sua performance contundente - à qual não se podia

ficar indiferente pelo alto volume e pela dramaticidade dos seus trejeitos corporais

- do que no sentido semântico direto de suas palavras que restaram em poucas

entrevistas.

Édison Machado imprimia grande vitalidade à sua performance, conforme

podemos constatar no longa metragem Terra em Transe, de Glauber Rocha

(1967)44

: tocava com forte volume, demonstrando orgulho pelo que fazia.

Mantinha a coluna ereta e, neste audiovisual, traz um cigarro na boca que

manuseia durante a performance, calmamente. Tinha um ar de quem está “à

vontade” ao tocar, conforme a expressão sempre citada entre músicos do

sambajazz. Estar “à vontade”, ou seja, ser “senhor da situação” estando

43

O falecimento de Édison Machado foi noticiado no jonal O GLOBO, de 16/09/1990, sob a

seguinte manchete: “Morre no Rio Edison machado, o criador do samba no prato”. Ver matéria no

Anexo III. 44

Este trecho do longa metragem está disponível no endereço virtual:

https://www.youtube.com/watch?v=dA_Wz0GgHvA. Acesso em 14/07/2015. Ver fotografia no

Anexo II.

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ativamente sereno durante a performance musical, é uma característica valorizada

no ethos musical do sambajazz. Não por acaso dois álbuns importantes de

sambajazz trazem a expressão no título: Muito à vontade (1962), de João Donato e

À vontade mesmo (1964) de Raul de Souza. Os nomes dos álbuns de sambajazz

serão focados no capítulo 4. A performance é sempre um teste para os músicos,

que podem receber a aprovação ou desaprovação do público e de seus pares,

situação que exerce uma certa pressão emocional sobre os mesmos. Estar à

vontade, então significa estar apto a desempenhar com tranquilidade o papel que

lhes cabe, o que se torna uma característica necessária para a fluência artística, em

um tipo de música onde a improvisação é muito importante, como no sambajazz.

De fato, é preciso estar à vontade para se improvisar com fluência..

Machado foi o formulador mais destacado da renovadora idéia musical de

tocar as células rítmicas de samba - como as percutidas em um tamborim de

batucada - nos pratos da bateria, conforme é a prática do jazz do tipo bebop. Esta

reformulação do modo de se tocar a bateria brasileira caracterizou o novo samba

de então e se popularizou largamente na MPB como o samba no prato. A

performance musical de Machado tinha grande dramaticidade e causava uma

impressão de forte intensidade emocional, como se o samba ganhasse um tom

jazzístico hard bop.

A bateria é um instrumento de percussão, rítmico, sendo a prática da

percussão de samba muitas vezes reputada como intuitiva, e relegada aos

afrodescendentes e aos mais desfavorecidos, conforme atesta a conhecida

repressão aos sambistas cariocas até o início do século XX, a poucas décadas do

surgimento do sambajazz. Se o samba foi positivado na década de 1930 por

orientação dos intelectuais modernistas em busca da construção da nação,

conforme Hermano Vianna (2002), fazê-lo à bateria, um instrumento de origem

jazzística, percutido no prato de condução conforme esta tradição, não se

encaixava definitivamente na recomendação nacionalista da batucada de origem

popular. Tocá-la da forma exuberante e orgulhosa e ao mesmo tempo,

agressivamente barulhenta e espafalhafatosa como Édison Machado fazia, não era

simplesmente um ato musical ou estético, mas trazia também muito de político, da

vontade da inversão social, de dar voz forte ao que está por baixo: ao ritmo e à

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percussão tradicionalmente associados aos estratos sociais inferiores da sociedade.

E Machado o fazia também desafiando as críticas nacionalistas, que viam na

batucada de samba “autêntica” a força popular brasileira, mas no “samba

moderno”, a sombra da americanização. Este nacionalismo que condenava o

sambajazz por sua inautenticidade será abordado mais atentamente nos capítulos 5

e 6, dedicados à imprensa, onde terá voz, entre outros, o jornalista Sérgio Porto e

suas críticas aos álbuns do movimento. O baterista de samba moderno, se sofria o

preconceito arraigado na sociedade contra percussionistas e sambistas, por outro

lado amargava a restrição nacionalista, mais tolerante desde os anos 1930 com a

batucada de samba (VIANNA, 2002).

Machado, sempre descrito com uma personagem muito carismática, foi um

líder entre músicos. O saxofonista Ion Muniz, fez parte do Quarteto Édison

Machado, já nos anos 1970, tanto no Rio de Janeiro, quanto em Nova Iorque, para

onde ambos imigraram na segunda metade desta década. Muniz deixou um

documento não finalizado, suas “Crônicas” (s.d.) não publicadas, a que tive acesso

para esta pesquisa, onde comenta sobre diversos músicos do movimento do

sambajazz, além de outros com quem conviveu. O seu relato é revelador por ter

ele sido um dos músicos mais próximos à Machado nos anos 197045

:

Sei que não é sábio esse costume de comparar artistas, mas no caso de Edison

Machado não há como fugir disso. Edison foi, de longe, o melhor baterista

brasileiro. Era uma força da natureza. Ele sabia disso e não era modesto. Os

discos que ele gravou estão aí, não adianta querer tapar o sol com a peneira. Seu

próprio LP “Edison Machado é Samba Novo”, que foi relançado como CD, foi,

talvez, o melhor disco instrumental feito no Brasil. Edison estimulava os

outros músicos a darem o máximo de si. Depois do baixista Ricardo Santos, fui o

músico que mais tocou com Edison. (...)

Edison me ensinou a tocar como se cada solo fosse o último solo de minha

vida. Nada mais na vida interessava, só a música. Uma apresentação do

quarteto era de meter medo. Éramos quatro “Van Goghs” do samba jazz. Não

queríamos agradar ninguém, nosso compromisso era com o absoluto. Gravamos

dois discos nos estúdios Bill Horne, sendo que o primeiro, “Obras” (1970), foi

lançado, e é hoje um item de colecionadores...

O pianista Alfredo Cardim também fez parte do Quarteto Édison Machado

junto a Ion Muniz, já nos anos 1970, no Rio de Janeiro e em Nova Iorque, e me

45

O trecho citado é parte de um texto autobiográfico de Ion Muniz, não publicado, intitulado por

ele “Crônicas” (s.d.), onde ele relata seu relacionamento com diversos músicos de destaque. Este

documento me foi cedido por seu pai, Ramiro de Porto Alegre Muniz, após o seu falecimento, em

2009, no Rio de Janeiro, e será citado ao longo desta tese.

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concedeu este depoimento sobre Machado, onde atesta a força deste entre seus

pares46

:

Edison Machado aprendeu música no tranco, não tinha educação formal feito o

(pianista) Luizinho Eça. O pianista tem que ter piano em casa, precisa de mais

estrutura, tem que estudar harmonia. O baterista intuitivamente toca, não tem que

aprender teoria, harmonia. Mas o Édison, mesmo sem ter estudado harmonia,

ouvia tudo, sabia o que era. Quando alguém dava um acorde errado ele ouvia,

reclamava, parava a música até aparecer o acorde certo. Ele impulsionou muito

o Ion (Muniz), botou no padrão. Exigia sempre mais, pedia melodias em certas

regiões do saxofone e quando ele achava que já estava bom, dizia: - agora você

vai fazer oitava acima. Mas sempre que dava esporro não era pra humilhar, era

pra crescer. – Estuda mais a mão esquerda. Foi um grande mestre, estava

sempre puxando pra cima. (Alfredo Cardim)

Em sua performance corporal, Édison Machado mostrava esta atitude

descrita por Cardim como estar “puxando pra cima”. Foi caracterizado como uma

“força da natureza” por Muniz, impressão que parece ser comum a muitos

músicos que trabalharam diretamente com ele.

É possível vislumbrar, a partir das falas de Muniz e Cardim, a importância

de uma liderança, nesta fase já profissional que viviam em suas ainda jovens

carreiras. Este exemplo de um ethos de músico, no caso, do sambajazz, que

Machado representou para eles, é ainda mais importante na fase inicial de

aprendizagem.

Nesta fase, os músicos iniciantes mimetizam inclusive a performance

corporal de seus ídolos, o jeito como tocam, seus gestos, sua expressão, pois isso

lhes ensina como se posicionar em relação ao instrumento e como transmitir a si e

aos outros o sentido do que se faz, de modo a criar o ambiente musical necessário.

A técnica corporal associada ao instrumento engloba todas essas ações, reunindo

desde as ideias ou emoções, que se tem sobre a música executada até a melhor

técnica para se atingir agilidade maior no instrumento. Tudo isto é matéria do

aprendizado do músico estudante que simula o profissional, mimetiza seus gestos,

suas expressões, sua técnica contida em sua ética.

Le Breton, ao analisar as interações entre linguagem falada e expressão

corporal chama atenção para o aspecto complementar destas ações, uma vez que o

46

Depoimento que me foi concedido em entrevista por telefone, no Rio de Janeiro, em

10/03/2015.

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falante é dotado de um corpo e uma gestualidade que, por mais discreta que seja,

agem de forma conjunta ao se expressar. Segundo Le Breton “Todo discurso

mobiliza corpo e linguagem de forma mutuamente necessária, implicando um

vínculo poderoso e convencional entre as ocorrências dos dois.” (2009, p.43). Da

mesma forma, a expressão musical está inevitavelmente acompanhada do corpo

dos músicos, nas performances “ao vivo”. Dá-se, como no caso da linguagem

falada, uma expressão corporal que é inseparável da expressão musical. Os

movimentos do corpo de um músico não são, portanto, nem inocentes nem

naturais, mas acrescentam significado musical intrínseco aos sons: “Os

movimentos significantes do corpo não estão evidentemente enraizados numa

matéria natural. Em sua globalidade, no seio do mesmo grupo, trata-se de

marcadores sociais que assinalam a pertença cultural ou uma vontade de

integração” (LE BRETON, 2009, p. 54).

No entanto, a corporalidade do músico se dá muito na relação com o

instrumento, que se torna uma extensão deste corpo. Ao entender “O jazz como

espetáculo” (1990), Carlos Callado enfatiza que, nesta tradição que penetra o

sambajazz, os gestos dos músicos estão condicionados à sua relação física com o

instrumento. Segundo ele: “seu corpo e seu instrumento praticamente se fundem,

formando um todo único” (1990, p.53). Mesmo cantores, como Billie Holliday,

buscam usar a voz como se esta fosse um instrumento, por vezes fazendo gestos

que sugerem esta ideia. Calado tece ainda uma interessante comparação entre o

jazzista e o ator, que se desenvolve durante um espetáculo:

Tocar o instrumento é de certa forma vestir a primeira máscara. É unir o seu

corpo ao instrumento, que passa a fazer parte dele, numa atitude muito próxima a

do ator que incorpora adereços (uma peruca, óculos, ou uma bengala, por

exemplo), que acabam se integrando à constituição física e visual da personagem.

Vestida esta primeira máscara, a partir da relação com o instrumento, essa ‘fusão’

assume tal grau que a platéia tem a impressão de assistir a um ser único, formado

a partir dessa junção. Uma característica toda especial do espetáculo jazzístico

é justamente possibilitar que se acompanhe esse processo de passagem de um

nível mais simples de teatralidade a um outro mais complexo. O estático

papel social de jazzman é ativado pela relação dinâmica com o instrumento,

revelando sua potencialidade de alcançar um nível semelhante ao teatral.

(1990, p.53)

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Perreneud (2007), no subcapítulo “Mimetismo direto47

”, entende a

aprendizagem musical entre os músicos comuns como algo que se inicia com a

imitação do corpo dos ídolos, em geral músicos mais velhos. Ele se refere à

recepção musical na infância como também o início da produção musical, o que

diminui a dicotomia entre recepção e produção, ocorrendo o que poderia ser

chamado de uma “recepção ativa”, neste entendimento. Os músicos infantes

parodiam a sonoridade do canto em inglês em sua língua natal (a que chamam

yaourt), ou mimetizam a expressão corporal dos guitarristas de rock ao tocar

(guitar hero). Do mesmo modo, não é difícil imaginar Machado, ainda na

infância, imitando os trejeitos do baterista Gene Krupa a quem viu no cinema

graças a sua avó.

De fato, as práticas musicais contemporâneas exigem frequentemente do músico

um engajamento corporal necessariamente ostensivo, a fim de que se obtenha um

resultado sonoro, uma expressão. Musical, e não apenas visual. (...) esses gestos

específicos determinam consideravelmente o ‘som’. (PERRENOUD, 2007,

p.32)48

Não apenas a expressão corporal, mas também o vestuário é objeto de

mimetismo entre músicos. Sérgio Barrozo, contrabaixista a quem voltarei adiante,

comenta que Édison Machado adquiriu o hábito de se vestir à moda dos jazzistas

norte-americanos, algo que se integrava ao “tipo” de “doidão”, atribuído a ele.

Outro músico do sambajazz próximo a Machado, também tinha o apelido de

“maluco”, o trombonista Maciel “maluco”. Ser “maluco” era ser diferente, estar

fora do padrão, conforme a expressão citada pelo pianista Alfredo Cardim. Se

vestir de forma diversa, como um jazzista negro norte-americano, dar umas

“risadas” diferentes, era algo que marcava uma personalidade original, construída

nesse sentido. Algo que o músico vestia como um ator põe uma máscara

47

Mimétisme direct, (PERRENOUD, 2007, p.32) 48

“On a envisagé comme um acte de réception active le fait qu’avant de toucher une guitarre, on

mime le jeu du guitar hero, on chante em ‘yaourt’. Mais ce type de pratique est aussi une

reproduction: mettant em jeu les corps musiqué sur un modèle possessionel, il permet

insensiblement de commencer à s’aproprier, à incorporer des gestes, des postures et autres

techniques du corps encore rudimentaires. Cette ‘réception’ est donc déjà un exercice de

production.

De fait, les pratiques musicales contemporaines demandent suivant au musicien un engajement

corporel nécessairement ostensible, y compris pour obtenir un résultat sonore, une expression.

Musicale et pas uniquement visuelle. (...) ces gestes particuliers déterminent considérablement le

‘son’.” (PERRENOUD, 2007, p. 32)

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(CALADO, 1990). Era também algo que se incorporava a sua personalidade,

provavelmente “de propósito”:

Chamavam ele de Édison Maluco, porque ele era um personagem. Eu não sei se

ele fazia aquilo de propósito, mas ele tinha uns tiques, uns negócios assim, e

umas risadas. Era meio tipo, mas ele era doidão. E era engraçado que ele foi a

primeira vez ao Estados Unidos com aquela turma que tocou lá bossa nova e

depois ele foi mais algumas vezes, aí ele começou a ver como é que o jazzmann

se vestiam e ele andava igual. Se lembra disso, Mário (Negrão, baterista)49

? Ele

botava aquele terninho, a gravata fininha e a bota, a calça meio pescando siri e

aquela botinha de cano longo. Ele não tirava aquela roupa, qualquer lugar que ele

fosse tava ele vestido daquele jeito. O chapeuzinho, né, tinha o negócio do

chapéu. Na década de 60 os americanos usavam um chapeuzinho (Sérgio

Barrozo)50

.

Acrescento aqui, a partir de minha memória, um relato do trompetista

Barrozinho, já falecido, com quem toquei muitas vezes e convivi largamente em

situações informais, familiares. Fundador da conhecida Banda Black Rio, nos anos

1970, e também um praticante de jazz e sambajazz, Barrozinho me relatou que

quando era um estudante de trompete, na adolescência em Campos dos

Goytacazes, RJ, queimou seus lábios para que estes ficassem com uma marca

semelhante a que vira em um trompetista mais velho a quem admirava. Este, na

verdade, havia adquirido tal marca nos lábios pela prática continuada do

instrumento por décadas. Barrozinho me narrava esta anedota sobre quando era

um garoto inexperiente, em tom de troça de si mesmo. Ele queria mimetizar

qualquer aspecto de seu ídolo trompetista, até a marca nos lábios que era fruto de

uma experiência que Barrosinho ainda não tinha naquela época. Mas que já havia

adquirido quando me contou esta anedota pessoal, sendo um músico experiente na

casa dos 60 anos.

Barrosinho (1943 - 2009), que foi fundador da importante Banda Black

Rio, tinha uma forte noção da música enquanto performance corporal/intelectual.

Sua atividade criativa em música, desde os anos 1970 quando fundou a referida

banda, até seus trabalhos posteriores aos quais denominou Maracatamba (fusão

de maracatu com samba – ritmos notadamente afrobrasileiros) eram fundados na

reinvenção rítmica das levadas de base, em linha com as recriações rítmicas

pioneiras de Pixinguinha junto a Orquestra RCA Victor na passagem dos anos

49

O baterista e pesquisador Mario Negrão, amigo de Barrozo, participou de parte desta entrevista. 50

Depoimento de Sérgio Barrozo, em entrevista para esta tese.

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1920 aos 1930, e de Moacir Santos, posteriormente. Este foco intelectual na

criação rítmica, que também se desdobrava em pesquisa harmônica original e

avançada, no entanto não se colocava em oposição à valorização da dança e da

corporalidade em sua música. Pelo contrário: Barrosinho ao palco, enquanto

vigiava o baterista para que este fizesse a levada do maracatamba criada por ele

com o maior rigor possível (ele demonstrava pessoalmente à bateria como queria

que ela fosse tocada), dançava e tocava instrumentos de percussão – quando não

estava solando ao trompete, em uma performance plena de trajeitos corporais que

acompanhavam o movimento sinuoso das suas frases musicais.

Barrosinho tinha longas tranças, ou dreads, e não apenas se vestia de

forma original, colorida, com roupas que traziam uma ambiência talvez africana,

mas também tinha um trompete decorado com as cores mais diversas. O

apresentador de televisão Jô Soares, que também toca trompete, lhe perguntou em

seu programa de entrevistas qual a origem de seu instrumento multicolorido, que

tinha uma aparência infantil, lúdica, muito diversa do visual que o metal nú e

monocrômico lhe traz normalmente. Barrosinho lhe respondeu, para o espanto do

apresentador, que havia dado o trompete para “as crianças” de seu bairro, e estas o

haviam pintado daquela forma. Este raro desprendimento de um músico

profissional com seu instrumento denota o clima de jogo sério, ou divertimento,

que caracteriza a música de Barrozinho. O apresentador se assustou ainda mais ao

ser informado que este instrumento de aparência circence era um caro Conn

connstellation, uma marca valorizada entre trompetistas51

.

Tocar um instrumento ou cantar, portanto, exige toda uma ética, na qual a

corporalidade não é um aspecto marginal ou secundário à “música em si” (se essa

formulação for possível), mas é tão determinante quanto a técnica instrumental e

conhecimentos musicológicos. E mesmo a aparência física do instrumento pode

ser trabalhada em proveito da música. Técnica e emoção, aparência e essência,

corpo e pensamento estão integrados na prática do músico, é o que se observa

aqui.

51

A entrevista pode ser vista no endereço eletrônico:

https://www.youtube.com/watch?v=uTdUEX-SLTs. Acesso em 16/07/2015.

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1.3. Sergio Barrozo e uma sociologia dos instrumentos aplicada ao sambajazz

O músico iniciante aprende aos poucos as hierarquias e percursos possíveis

na carreira, que incluem a diferença entre ser um músico solista que lidera um

grupo ou trabalhar como acompanhador; entre ser arranjador e dirigir um trabalho

ou ser um instrumentista e seguir as partituras escritas pelo primeiro; entre ser

cantor de sucesso ou instrumentista contratado; entre ser percussionista

desvalorizado pela condição de lidar especificamente com ritmos ou ser um

músico “completo”, e prover também harmonias e melodias, e estudar teoria

musical. Todas estas posições no interior das hierarquias das carreiras musicais

são sempre confrontadas, em sua rigidez ideal, pela percurso empírico em suas

próprias particularidades, sujeita a movimentos singulares que transformam as

relações. Ainda assim algumas posições recorrentes se revelam importantes nos

depoimentos dos músicos. É o processo de interiorização deste ethos em

transformação constante que vai permitir aos músicos, inclusive cantores, interagir

com seus pares e com o público, inserido na indústria cultural que proporciona

estas relações.

Se quisermos esboçar uma sociologia dos instrumentos musicais no

sambajazz a exemplo do que Lehmann fez nas formações sinfônicas, uma

distinção fundamental também apontada por ele, mas com consequências diversas

neste caso, seria a diferença entre a prática de instrumentos da tradição “artística”

e instrumentos da tradição “militar”. Estas duas tradições de educação musical se

ligam a tipos de instituições diversas. Instrumentos de cordas, como violinos,

violas, violoncelos e contrabaixos, eram cultivados em conservatórios de tradição

“artística” enquanto que instrumentos do naipe dos metais, como trompete ou

trombone, ou da percussão, como a caixa clara, são ligados à pratica em bandas de

música de instituições militares.

Entrevistei o contrabaixista Sérgio Barrozo em seu apartamento no bairro

da Lagoa, na Zona Sul do Rio de Janeiro, em uma bela tarde de sol de um dia de

semana. Barrozo prestou diversos serviços ao sambajazz, tendo integrado o

histórico Rio 65 Trio, ao lado de Dom Salvador (piano) e Édison Machado

(bateria). Nascido em 1942, Barrozo viveu o sambajazz muito jovem e conta que

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teve que ser “emancipado” legalmente por seu pai para que pudesse tocar, aos 17

anos, nas boates de Copacabana, bairro onde foi criado.

Estando ativo ainda hoje como baixista profissional, e perfeitamente bem

fisicamente, não foi difícil encontrar Barrozo para esta entrevista, uma vez que

seus contatos circulam no meio profissional que habito Ainda que nunca

tivéssemos tocado juntos, nos já nos conhecíamos. De tom de voz calmo e

conversa fácil, a gravação da entrevista começou com um “papo” informal sobre

LPs e CDs. Ele me relatou que possui em casa alguns LPs de sambajazz nos quais

tocou. Eu repliquei que o cantor Ed Motta, que é também um colecionador de

LPs, havia recentemente se vangloriado na rede social de possuir o álbum original

do Rio 65 Trio, que hoje deve ser um valioso ítem de colecionadores, assim como

muitos outros álbuns do movimento. A conversa enveredou pelo relançamento de

alguns daqueles LPs em CDs. Barrozo comentou: “Se você for ver, depois os

caras relançam, né? Se você for ver tem até no Itunes. Quem fez a gente não fica

nem sabendo, né” Perguntei a ele: você não recebe nada por isso? Ele me

responedeu: “Porra nenhuma”...

Barrozo relatou sua iniciação à música em família, ligada à tradição

artística do piano, da qual o contrabaixo também faz parte:

Quando eu era pequeno minhas tias eram professoras de piano, então eu tive aula

de piano, a base teórica eu tinha. Conhecia um pouquinho de harmonia. Aí

comecei, fazendo baile e tocando tônica e dominante. Nasci no Rio Comprido,

mas nessa época eu já estava morando em Copacabana. Eu vim pra Copacabana

com 13 anos. (...) Meu avô era maestro e meu bisavô também era professor de

piano. Naquele tempo tinha muita aula de piano, então minhas tias também

viviam disso. Eram três irmãs e meu pai. Meu pai não fazia música, trabalhou

com cinema, fazia filme, depois ele abriu um estúdio para sonorizar52

.

Esta diferença levantada por LEHMANN (2003) entre instrumentos da

tradição artística como o piano e o contrabaixo, os da tradição militar, como os

metais (sopros) e a bateria, reflete uma oposição muito comum que se desdobra

como base conceitual em muitos campos: a oposição entre corpo e intelecto, ou

entre os instrumentos “mais altos” e os “mais baixos”:

52

Sérgio Barrozo, em entrevista para esta tese.

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Assim, a visibilidade aumenta à medida que passamos dos instrumentos mais

‘corporais’ aos instrumentos mais ‘espirituais’, dos mais graves (mais baixos) aos

mais agudos (mais altos), dos metais para as cordas, dos recém-chegados aos

mais antigos, dos mais militares aos mais artísticos” (LEHMANN, 2003,

p.250)53

.

Essa dualidade entre corpo e espírito (ou intelecto), porém, se reproduz

também no interior destas tradições instrumentais. Assim, dentro da tradição

artística, temos um novo desdobramento desta oposição, onde o piano e o violino

são mais artísticos que o contrabaixo. Este instrumento, apesar de pertencer à

família das cordas, se aproxima da seção rítmica, das levadas de bateria e

percussão, enfim, da corporalidade.

Assim, a posição do contrabaixo nesta sociologia dos instrumentos de

sambajazz é ambígua. Pois, apesar de ser tributário da tradição artística, junto às

demais cordas, o contrabaixo pertence também à seção rítmica. Ele está sempre

ao lado da bateria, apoiando suas levadas, “colado no bumbo” deste instrumento,

como se diz no meio musical. Sua função é então a de prover a base rítmica dos

conjuntos. Este procedimento demanda, acima de tudo, a sustentação do suingue,

ou da levada, ao longo da música, uma atividade física que pode ser extenuante

para amadores, e que requer mais precisão rítmica do que qualquer outra área.

Não raro, baixistas e bateristas formam duplas que vão além do trabalho,

se tornam amigos, proximidade que está relacionada à sua atividade musical

conjunta. Presenciei muitas vezes esta parceria entre os músicos da seção rítmica -

baixistas e bateristas - que se unem também na vida pessoal. O baterista

Robertinho Silva, por exemplo, tem uma amizade duradoura com o contrabaixista

Luiz Alves, que teve início ainda nos anos 1970, quando ambos acompanhavam o

pianista Egberto Gismonti, entre outros artistas. Nas últimas duas décadas ambos

tem feito parte da banda de João Donato, e continuam formando esta dupla de

“baixo e bateria” em diversos outros trabalhos. Robertinho Silva me relatou

informalmente – em tom humorístico, como é de seu gosto - que certa vez havia

53

“Ainsi la visibilité croît à mesure que l'on passe des instruments les plus « corporels » aux

instruments les plus « spirituels », des plus graves (les plus bas) aux plus aigus (les plus hauts),

des cuivres aux cordes, des nouveaux venus aux plus anciens, des plus militaires aux plus

artistique.” (LEHMANN, 2003, p.250)

No capítulo 3 abordo Richard Sennett, em O artífice e sua negação da separação entre “a mão e a

cabeça” ou ainda entre “trabalho intelectual” e “trabalho braçal” que em última análise, remetem a

oposição corpo e intelecto.

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chegado à casa muito tarde sem avisar a família, o que provocou a ira de sua ex-

mulher. Seguiu-se uma discussão quente e esta, irritada, lhe bateu no rosto,

encharcando-lhe a camisa de sangue. Nesta condição, em meio à alta madrugada,

ele atravessou a cidade, pois morava no Recreio dos Bandeirantes, RJ, para se

refugiar na casa do amigo contrabaixista Luiz Alvez, no Bairro Peixoto, na zona

sul do Rio de Janeiro. O pedido de ajuda ao colega naquela situação crítica, que se

deu em horário avançado da noite, é um índice eloquente da aliança duradoura

entre esta dupla, que permanece por décadas até os dias de hoje.

No entanto, o contrabaixo, ao contrário da bateria, ocupa também uma

função harmônica (no sentido musicológico e não do senso comum) no interior do

grupo. Ele tem uma importância fundamental na economia musical, pois é ele

quem toca as notas mais graves que definem “a linha de baixo”, sem a qual a

harmonia perde o sentido original, ou fica enfraquecida. Diz-se que ele “dá o

chão”, pois ele toca as notas que fundamentam as alturas sonoras das músicas.

Os contrabaixistas se ligam também fortemente ao piano, este instrumento

também central da tradição artística, e que se caracteriza pelo domínio do campo

harmônico. O contrabaixo ocupa uma posição importante neste aspecto das

músicas. Justamente por executar as notas mais graves, que fundamentam a

harmonia, sua atividade é reputada também como intelectual, que se opõe à

atividade rítmica, tida como corporal. Um baixista que execute

insatisfatoriamente seu instrumento neste sentido, escolhendo baixos ruins que

não “conduzem” bem a harmonia, pode provocar o descontentamento dos demais

músicos, mesmo que o ritmo esteja bem tocado.

Se o contrabaixo é o menos solista e o mais “limitado” instrumento desta

tradição – uma decorrência de sua condição física que o torna pouco ágil e de

difícil execução – o piano é seu oposto, trazendo ao músico que o toca as maiores

possibilidades harmônicas e melódicas, inclusive as de tocar os baixos

simultaneamente às harmonias e melodias, como se fosse uma orquestra completa

em um único instrumento. Como consequência, muito comumente os

contrabaixistas tem o piano como seu instrumento secundário que lhes permite

estudar e compreender por inteiro harmonias das quais fazem apenas o baixo.

Lembro aqui o contrabaixista do sambajazz Zé Bicão, que era também um exímio

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pianista, conforme o relato de muitos músicos que o conheceram pessoalmente,

como Ion Muniz, o que não é incomum entre baixistas.

Assim o contrabaixo é um instrumento situado no limiar, pois pertence à

seção rítmica junto à bateria, mas por outro lado, se une ao piano na tradição

artística. Noto que esta formação chamada por “trio de sambajazz” - piano,

contrabaixo e bateria - é muito comum no movimento, e resume esta posição

dicotômica do contrabaixo, situado entre ritmos e harmonias. De fato os

contrabaixistas trazem este espírito brincalhão, descompromissado, dado à auto-

ironia e podem ser vistos comos os tricksters do sambajazz, mediadores entre

estes dois mundos. Eles são mais frequentemente músicos contratados,

acompanhadores, que solistas ou líderes do conjunto. Dentre os álbuns mais

conhecidos de sambajazz não se encontra nenhum liderado por contrabaixistas –

conformei será visto adiante.

A tradição familiar do contrabaixista Sérgio Barrozo o posiciona mais

próximo da tradição artística, portanto. Nela encontra-se a prática do piano em

família, a presença do avô maestro, a profissão do pai, ligado ao cinema e a vida

em Copacabana, bairro de classes mais abastadas à época. Portanto a escolha do

contrabaixo para Sérgio Barrozo, por um lado significaria sua filiação à tradição

artística. Por outro lado ele não abraçou o piano, central nesta corrente, mas

escolheu o seu instrumento mais ambíguo - o contrabaixo - porque próximo

demais da atividade rítmica corporal, conforme afirmei, e raramente habilitado a

assumir a posição solista (ainda mais se tocado em pizzicato, sem o arco,

conforme é a prática deste instrumento no jazz e na música popular urbana de

forma geral). O contrabaixo, também no sambajazz, é quase sempre um

instrumento acompanhador, portanto menos valorizado que os instrumentos

solistas nas hierarquias musicais. Assim, Barrozo faz este movimento que vai da

tradição artística à militar, do intelecto ao corpo, ao eleger o contrabaixo como

instrumento principal, no seio de uma família de classe média ligada ao piano e à

tradição erudita. Este movimento pode ser entendido como central no ethos do

sambajazz.

É preciso deixar claro, no entanto, que não se pretende que estas

observações esgotem tudo que se pode dizer do contrabaixo e suas relações com

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os outros instrumentos em todos os grupos de música, mas apenas ressaltar alguns

pontos importantes para esta pesquisa sobre o sambajazz.

1.4. Antropologia do corpo e o jazz como espetáculo

Esta tese baseia muito de sua pesquisa na análise do discurso dos músicos,

transcrito e analisado em texto. Mas não apenas, pois também as técnicas do corpo

são relevantes aqui, no sentido que lhes dá Marcel Mauss em um texto fundador

da antropologia do corpo (MAUSS 2003), uma vez que a expressividade corporal

do músico é característica do jazz e do sambajazz (CALADO, 1991).

Embora Mauss advirta que é um erro “só considerar que há técnica quando

há instrumento” (p.407, 2003) podemos entender, por outro lado, que as técnicas

corporais a que ele se refere também contemplam o uso de instrumentos, como no

caso do uso diverso das pás por soldados ingleses e franceses, segundo o seu

relato:

Mas essa especificidade é o caráter de todas as técnicas. Um exemplo: durante a

guerra pude fazer numerosas observações sobre essa especificidade das técnicas.

Como a de cavar. As tropas inglesas com as quais eu estava não sabiam servir-se

de pás francesas, o que obrigava a substituir 8 mil pás por divisão quando

rendíamos uma divisão francesa, e vice-versa. Eis aí, de forma evidente, como

uma habilidade manual só se aprende lentamente. Toda técnica

propriamente dita tem sua forma. (MAUSS, 2003, p.403, grifo meu)

Mauss assinala o caráter gradual do aprendizado de qualquer habilidade

manual. Nas técnicas usadas em instrumentos musicais, o corpo, e mesmo a

dança, ou a expressão corporal dos músicos têm uma importância especial, e não

apenas como expressão visual ou de dança, mas como parte integrante da própria

técnica de execução do instrumento. Este fato evidencia-se especialmente entre

bateristas e percussionistas, mas também entre todos os outros instrumentistas,

incluindo cantores, é claro. Para estes últimos, assim como para todos os

instrumentistas de sopro, as técnicas corporais respiratórias – estudadas de forma

metódica ou não - são evidentemente muito importantes. Todas estas técnicas

demandam um aprendizado, conforme assinala Sennett quando se refere ao tempo

necessário para a formação de um bom “artífice” (2009).

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Tiago de Oliveira Pinto assinala a importância da interação entre o corpo

humano e a morfologia do instrumento sobre a estrutura musical:

A pesquisa etnomusicológica também considera os movimentos que geram o som

no instrumento, pois estes se mostram essenciais, refletindo não apenas

virtuosismo e técnicas apuradas, como também determinadas concepções

mentais. Por questões de sua ergonomia, um instrumento musical impõe certas

maneiras de se executar movimentos. A interação do corpo humano – com suas

possibilidades fisiológicas de movimento – e a morfologia do instrumento

exercem grande influência sobre a estrutura musical, canalizando a criatividade

humana por vias previsíveis e musicais. Detalhada por uma análise interna, a

técnica de execução de um instrumento vai levar às regras específicas dos

padrões de movimento que, por sua vez, constituem uma importante base do fazer

musical. (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.235)

O etnomusicólogo John Blacking (2006) assinala que entre os Venda, da

África do Sul, por exemplo, as técnicas corporais de dança se misturam à dos

instrumentos, no caso, tambores. E reproduz uma imagem onde a legenda diz:

“Duas meninas Venda tocam tambores contralto (mirumba durante uma iniciação

domba). Balançam o corpo de um lado para outro, mantendo um ritmo constante

de modo que as batidas são parte de um movimento total do corpo” (2006, p.88)54

.

Blacking escreveu um livro chamado How musical is man que causou

grande repercussão quando foi lançado, no início dos anos 1970, por suas críticas

ao etnocentrismo da musicologia e da música autoproclamada erudita. Segundo

ele as histórias da música estariam impregnadas de um sistema auto referenciado

de valores e critérios duvidosos, como o de sua maior complexidade ou

superioridade intelectual, que não resistem a um olhar livre de eurocentrismos

sobre certas músicas africanas. Ele critica ainda a separação, na cultura ocidental,

entre músicos e não músicos, estando a tarefa musical reservada a uma elite

musical e se pergunta porque a maior parte da sociedade deve silenciar-se para

que uns poucos se exprimam musicalmente. Na sociedade Venda não há, segundo

ele, esta separação rígida, todos os membros são considerados capazes de fazer

música em rituais, eventualmente.

54

“Dos muchachas venda tocan tambores contralto (mirumba) durante uma iniación domba.

Balanceam el cuerpo de lado a lado, manteniendo um ritmo constante de manera que los golpes

de tambor formen parte de um movimento total del cuerpo” (BLACKING, 2006, p.88)

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O etnomusicólogo, que havia sido também um compositor erudito, estava

interessado menos em uma visão evolutiva da história da música ocidental que nas

capacidades musicais humanas do “Homem Fazedor de Música”:

Mais importante que alguma divisão arbitrária, etnocêntrica, entre música e

música étnica, ou entre música erudita e música popular, são as distinções que as

culturas e grupos sociais diversos estabelecem entre música e não música. Em

última análise, mais que os logros musicais particulares do homem ocidental, são

as atividades do Homem Fazedor de Música as que se revestem de maior

interesse e consequências para a humanidade55

. (BLACKING, 2006, p.30)

Pesquisadores observam nas execuções de instrumentos musicais de

muitos povos não ocidentais, incluindo africanos, técnicas que se aproximam

muito da dança, o que contrasta com a supressão do corpo dos músicos na

orquestra tradicional europeia, onde apenas ao maestro e ao solista principal,

ainda que uniformizados em preto, cabe alguma expressão corporal explícita. Este

ponto favorece ao argumento de que a origem da expressão corporal cara aos

músicos de jazz tem matriz africana (CALADO, 1991).

A música erudita ocidental, que têm parte de sua origem no cantochão

litúrgico medieval, procurou desenvolver a música “pura”, em acordo com o seu

pensamento religioso metafísico onde qualquer inclinação à esfera sexual ou

corporal deveria ser evitada. Por séculos os instrumentos de percussão,

intimamente ligados à dança e à corporalidade, inexistiram ou ocuparam um lugar

lateral nesta tradição, tendo sido reintroduzidos apenas no século XX. Segundo

José Miguel Wisnik:

A liturgia medieval se esforça por recalcar os demônios da música que moram,

antes de mais nada, nos ritmos dançantes e nos timbres múltiplos, concebidos

aqui como ruído (...) A música sinfônica ou camerística evita a percussão. (1989,

p. 42)

Assim considera-se válida aqui a ideia de que a tradição erudita europeia

operou um recalque sobre os instrumentos de percussão e sobre o corpo em suas

músicas frequentemente ligadas a práticas religiosas e que as músicas africanas

foram responsáveis por boa parte do crescimento em importância da dança e da

55

“Más importantes que cualquier división arbitraria, etnocéntrica, entre música y música étnica,

o entre música culta y música popular, son las distinciones que establecen diferentes culturas y

grupos sociales entre música y no música. En último término, más que los logros musicales

particulares del Hombre Hacedor de Música las que revisten mayor interés y consequências para

la humanidade.” (BLACKING, 2006, p.30).

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corporalidade nas músicas populares das Américas no século XX. Mas não se

quer incorrer no entendimento inocente da música enquanto um campo de

“libertação do corpo” que se tornou moda em fins dos anos 1960, conforme Le

Breton. Pois seria mais preciso dizer que determinadas práticas musicais se ligam

a usos não menos determinados do corpo na música, que não se resumem a uma

simples “libertação” idealizada, mas são o produto de uma racionalização destas

práticas musicais/corporais. Estes usos podem, isso sim, transmitir um sentido de

liberdade ao espectador e ao próprio músico, mas são fruto de uma ação

construída nesse sentido, ainda que de forma não consciente.

Frequentemente indiscreta, a crítica apodera-se de uma noção de senso comum:

‘o corpo’. Sem discussão prévia, faz dele símbolo de união, cavalo de batalha

contra um sistema de valores considerado repressivo, ultrapassado, e que é

preciso transformar para favorecer o desabrochar individual. As práticas e os

discursos que surgem propõem ou exigem uma transformação radical das antigas

representações sociais. Uma literatura abundante e inconscientemente surrealista

convida à "libertação do corpo", proposta que, quando muito, é angelical (...). A

apologia ao corpo é, sem que tenha consciência, profundamente dualista, opõe o

indivíduo ao corpo e, de maneira abstrata, supõe uma existência para corpo que

poderia ser analisada fora do homem concreto. Denunciando frequentemente o

"parolismo" da psicanálise, esse discurso de liberação, pela abundância e pelos

inúmeros campos de aplicação, alimentou o imaginário dualista da modernidade:

essa facilidade de linguagem que leva a falar do corpo, sem titubear e a todo

momento, como se fosse outra coisa que o corpo de atores em carne. (LE

BRETON, 2012, p.10)

Como Le Breton, quero evitar o erro que seria, ao fugir do “parolismo” -

comum não apenas na psicanálise mas também em muitas análises da “canção de

MPB” onde reduz-se a música à letra - cair em um dualismo repisado e estéril

entre o intelecto e o corpo. Ou entre saber (intelecto) e fazer (corpo), nos termos

de Sennett (2009). Ou ainda, entre letra e música.

Pode se dizer que uma das características que distingue de forma

inequívoca as orquestras tradicionais “eruditas” das orquestras de jazz, reside na

explicitação dos corpos dos músicos nestas últimas, o que não significa que o

intelecto esteja menos presente, é claro. Na orquestra erudita os músicos são

uniformizados, seus corpos escondidos, em favor da esfera puramente sonora, dita

“musical”. Busca-se isolar a audição da música do “mundo exterior” que se

manifesta também no corpo. Nas orquestras de jazz, diferentemente, os músicos e

o maestro eventualmente dançam e executam coreografias, os solistas de cada

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música se levantam e vão à frente do palco onde movimentam seus corpos ao som

da música. O tocar dos músicos de jazz pode se aproximar muito de uma dança.

Isto não significa, no entanto, que as orquestras jazzísticas sejam

“corporais”, enquanto as orquestras eruditas seriam “intelectuais”. Na verdade

pode-se dizer que as orquestras de jazz também são mais “intelectuais” que as

clássicas no sentido de que seus músicos são mais empoderados intelectualmente.

Deles não se exige apenas que toquem o que está indicado na partitura pelo

compositor, que é um autor intelectual que reserva aos músicos a execução

manual. Na orquestra de jazz os músicos improvisam e tem um grau muito maior

de participação “intelectual” na criação da música, portanto.

Carlos Calado em O jazz como espetáculo, apresenta a ideia de que a

música erudita se desenvolveu sobre um certo “padrão” estético responsável por

esta uniformização que se dá em vários níveis. No jazz, a individualização dos

músicos, de sua sonoridade parece prevalecer sobre esta uniformização.

Na virada do século XX, época da formação do jazz, uma outra atitude é

encontrada. Ainda que utilizassem os mesmos instrumentos de tradição européia,

os jazzmen não copiaram esse padrão de sonoridade. Praticamente cada um

deles criou o próprio som, de acordo com sua personalidade experiência de vida.

É esse aspecto que explica como em apenas um século aparecem tantos tipos de

sonoridade e estilos pessoais na história do jazz. Por outro lado, o que geralmente

se verifica no campo da música erudita é que o instrumentista não tem essa

liberdade. Um integrante de uma sinfônica, por exemplo, ao lado de mais de

cem músicos, acaba por ver sua individualidade uniformizada. Obrigado a

repetir frequentemente um repertório-padrão – e se preocupando apenas com

pequenos problemas técnicos individuais, como respiração ou dedilhado -, esse

músico, em geral, acaba se assemelhando aos colegas. No jazz essa atitude é bem

mais rara, pois um engajamento muito maior e pessoal é constantemente exigido

do músico. (grifo meu, CALADO, 1991)

Embora me pareça simplista resumir toda a música erudita a um único

padrão estético, devo concordar com a ideia geral de que o jazz, do qual o

sambajazz é tributário neste sentido, estimula a expressão individual do músico,

que se revela em última análise através de sua presença física e corporal.

Devo ressaltar que a dimensão coletiva não se perde aí: como na ideologia

ocidental individualista, da qual o jazz é parte, a promoção do indivíduo moderno

é coletiva, ou seja, está socialmente dada. O indivíduo no mundo (que se origina

das práticas cristãs primitivas de comunicação direta com Deus pelo seu

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antecessor, o indivíduo fora do mundo, conforme Louis Dumont56

), é portanto

uma instância que reforça - coletivamente e de acordo com uma ideologia de

ampla aceitação na sociedade - a dimensão do indivíduo. Este mecanismo de

coletivização da dimensão individual, onde o indivíduo se estabelece como

paradigma social, ocorre também no jazz, esta arte típica do século XX.

Segundo Dumont, as sociedades podem variar, em termos de valor

atribuído ao indivíduo. Sociedades individualistas o têm como valor supremo.

Sociedades holistas, por oposição, têm a própria sociedade como valor supremo

(1983, p.37). A força do indivíduo no jazz - esta música típica do século XX – é

notória e o gênero exprime bem o individualismo moderno enquanto ideologia

coletiva, onde todos tem sua vez de solar individualmente, mas atuando para a

construção musical em grupo. A música erudita, de raízes religiosas medievais,

por oposição, manteve características holísticas, de supressão do indivíduo em

favor do coletivo, especialmente daqueles indivíduos situados na parte inferior da

hierarquia musical. Na música erudita, portanto, a instituição representada pela

orquestra, ou, no campo simbólico, pelo binômio autor/obra, está investida de

mais valor que os indivíduos músicos. Mesmo solistas e maestros, que compõem

o primeiro escalão da orquestra clássica, estão abaixo do compositor. Assim, nesta

tradição, o regente Herbert von Karajan está abaixo do compositor L. Beethoven,

nesta hierarquia na qual o público ocupa o último lugar, e ao qual resta apenas

calar-se e aplaudir nos momentos certos, além de comprar o ingresso. No jazz,

ainda que eles existam, não há necessidade de maestros, (graças ao seu tempo

racionalizado, metronômico), e o compositor ocupa muitas vezes um lugar

secundário com relação aos solistas. Estes, indivíduos modernos dedicados em

tempo integral à prática diária de um instrumento ou da voz, inseridos no mundo

da competição e das demandas de uma indústria cultural exigente e concorrida,

vivem uma ética individualista de afirmação de sua expressão pessoal.

No jazz, e também no sambajazz, ocorre, portanto, a presença positivada

dos corpos dos músicos também como estratégia para sua individualização. Os

músicos de jazz, mesmo que estejam lendo uma partitura, tocam-na do seu jeito,

enfatizando sua expressão pessoal. Conforme Le Breton:

56

Ver Essais sur l'individualisme no capítulo Genese, 1: De l'individu-hors-du-monde à l'individu-

dans-le-monde (p.35, 1983).

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De fato, o corpo quando encarna o homem é a marca do indivíduo, a fronteira, o

limite que, de alguma forma, o distingue dos outros. Na medida em que se

ampliam os laços sociais e a teia simbólica, provedora de significações e valores,

o corpo é o traço mais visível do ator (2012, p.10).

Assim, compositores de orquestras de jazz, como Duke Ellington, ao

contrário do que ocorre normalmente na prática erudita, não escreviam concertos

para um instrumento solista específico, de forma padronizada e passível de

execução por qualquer bom trompetista, mas escreviam para um trompetista em

especial, valendo-se de seus trejeitos e técnicas pessoais, remetendo

especificamente ao seu modo de tocar. Por isso Ellington não escreveu um

genérico “concerto para trompete”, como o faria um compositor clássico europeu,

mas sim o Concerto for Cootie, uma vez que Cootie Williams era o trompetista

solista de sua orquestra. Existe, portanto, uma maior individualização do músico

no jazz e no sambajazz, fenômeno que se liga ao destaque dado ao corpo dos

solistas nestes estilos, em acordo com esta ligação apontada por LE BRETON

(2009).

1.5. Piano universal, violão local

Havia no Brasil e no Rio de Janeiro, desde o século XIX, uma intensa

cultura musical dedicada ao piano. A grande importância deste instrumento na

tradição ocidental gerou no Brasil esta linhagem de compositores (por vezes

considerados “populares”, por outra “semi-eruditos”, não importa) como Ernestho

Nazareth e Chiquinha Gonzaga – e teve muita importância nos meios musicais do

Rio de Janeiro no período abordado. Era muito comum, entre as famílias

burguesas de até a primeira metade do século XX, a aquisição de um piano,

muitas vezes destinado ao estudo das moças. Essa prática tão difundida é

assinalada por Mario de Andrade:

Em Pernambuco, havia uma oficina de pianos... Principiava a detestável moda de

tocar piano, que já em 1856 fazia Manuel de Araújo Porto Alegre chamar o Rio

de Janeiro de ‘cidade dos pianos’. Dão João quando regente mandava vir para o

palácio de São Cristovão, uns pianos ingleses que foram os primeiros do Brasil.

Meio século não se passara e a praga era tão geral no país, que Wetherel se

espanta de encontrar pianos a cém léguas, interior a dentro, transportado a ombro

de negro. (ANDRADE, 1987, p. 158).

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O pessimismo de Andrade quanto à popularidade do piano no Brasil se

liga ao seu menosprezo pela “música popularesca” urbana, em detrimento ao

elogio da “música folclórica”, conforme a expressão atual, ou “música popular”

conforme ele a chamava nas primeiras décadas do século XX. Embora essa

cultura já estivesse talvez em franca decadência nos anos 1950, seus reflexos

foram importantes para a formação dos músicos de sambajazz, não por acaso

pleno de “trios de piano” (piano, contrabaixo acústico e bateria), como o Tamba

Trio, o Rio 65 Trio, o Zimbo Trio e tantos outros. É claro que isto também se

ligava à valorização do piano no jazz, que por sua vez a havia herdado da tradição

erudita. De fato, uma confluência de fatores manteve o piano como instrumento

de grande importância para o sambajazz. Isto provavelmente se liga a transmissão

de um ethos familiar neste sentido, pois o piano já era àquela altura uma tradição

entre as classes médias urbanas do Rio de Janeiro e São Paulo.

É importante ressaltar a centralidade do piano (ou dos instrumentos de

teclado) na tradição “artística” ocidental. Este foi o instrumento principal dos

grandes criadores da música erudita, caracteristicamente liderada por tecladistas

compositores, como Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, e tantos outros. Na

divisão do trabalho deste mundo, o compositor – que é, em geral, também um

pianista - ocupa o lugar de criador intelectual das obras fixadas em partituras,

enquanto aos instrumentistas cabe a reprodução o mais fiel possível deste

repertório, estando estes mais próximos do que pode ser entendido como trabalho

manual ou braçal.57

A posição central dos pianistas compositores na história da

música ocidental deve-se ao fato de serem eles os criadores intelectuais do

repertório principal da chamada musica erudita, sendo hoje considerado um

aspecto secundário o fato de que muitos deles eram também exímios

instrumentistas.

No entanto o piano de sambajazz difere do piano clássico da tradição

europeia. Se o fator musicológico da harmonia é o que caracteriza esta tradição,

conforme WEBER (1995), o piano é o seu guardião dentre os instrumentos

57

É claro que esta posição deve ser relativizada devido ao fato de que a performance em música

erudita exige também um preparo “intelectual” que na prática não se distingue de um preparo

técnico que seria puramente mecânico, manual ou braçal. No entanto esta posição do

instrumentista a que me refiro se trata de uma visão recorrente no meio, conforme atesta o primado

do compositor e o lugar secundário do instrumentista, mesmo quando solista, nesta tradição.

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musicais. Historicamente a harmonia se caracteriza por ser uma espécie de

resumo, ou suma, das melodias individuais que caracterizavam a polifonia

renascentista (GROUT & PALISKA, 1988). Os instrumentos de teclado - dos

quais o piano é um modelo avançado do cravo e do órgão que lhe deram origem –

se caracterizam pela “alta tecnologia” empregada em sua construção, que permite

a um único músico executar complexas polifonias de até quatro, ou mesmo seis

vozes simultâneas, mais raramente.

A capacidade de resumir em si todas estas vozes individuais, que é dada ao

tecladista e a nenhum outro instrumentista tão plenamente, se converte também na

capacidade do pianista de resumir diversas linhas melódicas no conceito abstrato

de harmonia. Assim, se a harmonia caracteriza a música ocidental, regida por

suas racionalizações (o sistema de afinação temperada, o sistema tonal harmônico

- ver WEBER, 1995), seu instrumento ideal é o piano. No seu uso, central na

tradição clássica, está subsumida a mais avançada tecnologia de sua época, que o

construiu como uma máquina complexa, dotada de numerosos botões (as teclas) e

mecanismos. Ela foi concebida como um avanço do intelecto e da racionalização

sobre uma matéria natural tão fugidia quanto as ondas sonoras que compõem a

música. Assim o piano está do lado da harmonia, intelectual, que se opõe ao ritmo

e às percussões, alocados ao corporal, dentro destes dualismos simbólicos que

embasam a prática musical.

No entanto, se o piano de sambajazz não deixou de lado as trabalhadas

harmonias que caracterizam o movimento, ele tende a ser principalmente rítmico.

Este movimento no sentido de transformar o piano - um instrumento harmônico

de cordas percurtidas – em um instrumento rítmico onde se percute cordas

ativamente, teve início em compositores modernos, como Bela Bartók, na Hungria

e Villa-Lobos, no Brasil, e penetrou o jazz, na prática de pianistas negros como

Duke Ellington e Thelonious Monk.

Também no sambajazz o piano muito frequentemente vai ao extremo deste

movimento, sendo executado como um instrumento de percussão dotado de teclas

e harmonias. Os exemplos são fartos, e essa prática perpassa todos os trios

característicos do movimento, mas dois pianistas cuja atividade é exemplar neste

sentido são João Donato e Dom Salvador. Na execução destes músicos, observa-

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se a marcação rítmica acentuada e precisa, que se sobressai à sua mão esquerda.

Esta mão do pianista corresponderia à seção rítmica se fizermos uma analogia

deste instrumento com um conjunto musical completo, e é encarregada dos baixos

e da manutenção das levadas.

A atividade rítmica desta mão, com suas fases e defasagens com relação à

mão direita (que executa principalmente a melodia, também nos trios de

sambajazz), são matéria de gozo e interesse para os amantes do samba moderno

da época. O virtuosismo dos pianistas do movimento como Luiz Eça, César

Camargo Mariano e Luis Carlos Vinhas, é mais uma decorrência dessa exuberante

exploração da percussão que existe no instrumento do que simplesmente um

pianismo decaído da tradição erudita ocidental.

Também as levadas (ou “batidas”) de samba ao violão onde, da mesma

forma, o instrumento é transformado em percussão, e que caracterizam em muitos

momentos a música de violonistas como Garoto, Luis Bonfá ou Baden Powell,

foram influentes sobre os pianistas de sambajazz que, como Jobim escreveu em

uma canção sua, desejam “subir o piano pra Magueira, estação primeira”, e cair

no samba58

.

O pianista de sambajazz, portanto, realiza este mesmo movimento que

caracteriza os contrabaixistas, que consiste em, partindo da tradição artística, atuar

rumo à corporalidade, se aproximando das percussões, sem que, no entanto, se

perca o aspecto harmônico do instrumento. A manutenção do piano enquanto

instrumento, senão central, ao menos muito importante no sambajazz, não se

traduz, pois, em conservadorismo musical, mas tem também algo de subversão da

intenção inicial do instrumento - apolínea e raciona - que se desdobra em ritmos

corporais e dionisíacos.

A despeito dos diferentes posicionamentos no interior das formações,

como solista nos trios ou como acompanhador nas formações maiores com metais,

a importância dos pianistas provinda da música erudita europeia permanece,

embora um pouco diminuída, no sambajazz e na bossa nova, conforme se afirmou.

58

Na música Piano na Mangueira (Jobim).

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82

Se contarmos os dez álbuns focados por esta pesquisa59

, temos quatro liderados

por pianistas, dois por instrumentistas de sopro, três coletivos (sendo um deles um

trio formado por piano, baixo e bateria onde o pianista era o arranjador e dois por

grupos de sopros) e um por baterista. Nenhum deles é liderado por um

contrabaixista ou violonista, e a maior parte deles tem um pianista como líder.

Noto ainda que dois destes pianistas, Johnny Alf e Luiz Eça, do Tamba Trio,

também se apresentam como cantores. Temos, portanto, dois cantores pianistas

líderes, dentre os álbuns destacados de sambajazz.

Pianistas como Tom Jobim, Sérgio Mendes e João Donato ocupam um

lugar especial no samba moderno, sendo talvez os mais respeitados aí enquanto

compositores e arranjadores, em suma, enquanto criadores intelectuais deste

repertório. Eles sofrem, no entanto, a concorrência de muitos violonistas neste

campo da composição, como Baden Powell, Durval Ferreira, além de Luis Bonfá.

Alguns músicos tocavam ainda ambos os instrumentos, como Tom Jobim e Oscar

Castro Neves.

A presença menor do violão nesta pequena amostragem deve ser

relativizada. Violonistas como Durval Ferreira, Baden Powell e Rosinha de

Valença são de grande importância para o sambajazz. Durval Ferreira foi

integrante da formação original do Bossa Rio, que se apresentou no famoso

concerto de bossa nova no teatro Carnegie Hall, em NY, em 1962, com Sérgio

Mendes, Paulo Moura, Pedro Paulo Jr e Dom Um Romão. Mas seu maior mérito

talvez resida em suas importantes contribuições ao repertório do sambajazz, como

as composições Estamos aí, e Batida Diferente, clássicos do movimento que

ganharam projeção internacional, compostas em parceria com o gaitista Maurício

Einhorn (entrevistado para esta pesquisa), além de Regina Werneck, na primeira

delas.

A importância de Baden Powell como compositor de clássicos do

movimento é enorme. Músicas como Só por amor (gravada magistralmente por

Édison Machado, com arranjo de Paulo Moura, em É samba novo, de 1963),

Consolação e Berimbau, todas letradas por Vinícius de Moraes foram muitas

59

Ver lista de álbuns focados na pesquisa na Introdução.

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vezes gravadas em álbuns de sambajazz. Mas a escrita da história do samba

moderno, que era um nome genérico muito usado à época para designar aquele

caldeirão cultural, preferiu reservar-lhe o rótulo de Afrosamba, criado por

Vinícius de Moraes quando do lançamento do álbum homônimo (1965).

Rosinha de Valença, uma exímia violonista, também ocupa um lugar

especial no movimento do sambajazz. Ela se apresentou regularmente no Beco

dos Garrafas, na boate Bottle´s, muito importante enquanto um local

característico do movimento, e em 1963 lançou o álbum Apresentando Rosinha de

Valença, que tem características de sambajazz60

. No entanto o fato de Rosinha ser

uma mulher instrumentista, algo raro no sambajazz, a destaca no movimento, a

despeito do fato de que ela também cantava, eventualmente. Se as cantoras como

Leny Andrade e Elis Regina podem ser entendidas como praticantes do

sambajazz, uma mulher violonista neste ambiente predominantemente masculino

é notável. Seria ainda mais raro, no entanto, se ela tocasse algum dos instrumentos

mais típicos do movimento, como contrabaixo, bateria, ou sopros, onde eram

escassas as instrumentistas do sexo feminino. Mesmo a presença um pouco mais

constante de mulheres pianistas na tradição brasileira, como Chiquinha Gonzaga,

pioneiramente, e Carolina Cardoso de Menezes, posteriormente, parece não ter

penetrado o movimento. A posição especial do violão nesta sociologia dos

instrumentos converge à posição única de Rosinha de Valença no sambajazz.

O violão, que tem grande importância na tradição musical brasileira,

passou de marginal a central ao longo do século XX (TABORDA, 2011). Ele

pode ser entendido como um instrumento substituto do piano nas formações

musicais. Isto porque o violão exerce as mesmas funções que o piano nos grupos,

seja a de prover acompanhamento rítmico-harmônico, seja como solista. Se Jobim

sonhou em levar o piano ao morro da Mangueira – com todo o peso, no sentido

literal, que isto acarretaria a lhe dificultar a tarefa – o violão é um instrumento

portátil e barato, presente nos morros cariocas e onde mais se quiser levá-lo.

Exercendo mais ou menos as mesmas funções musicais que o piano, o

violão se torna uma espécie de instrumento “genérico” deste. Onde o piano é

60

No DVD de áudio em anexo é possível escutar uma faixa deste álbum, Minha Saudade (Donato/

João Gilberto).

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universal e erudito, central na tradição, o violão é popular, ligado a localismos

laterais, remetendo à tradição musical árabe e a exotismos de todo tipo61

. Onde o

piano é avançado tecnológicamente, racional, e capaz de resumir todas as

harmonias e extensões de uma orquestra, o violão se aproxima da harpa primitiva,

com suas escalas irracionais, ligadas a aspectos contigentes de sua construção

física, e sempre pouco dado a executar harmonias e contrapontos complexos, que

frequentemente pode apenas sugerir. Onde o piano evita o contato direto das mãos

dos instrumentistas com as cordas, intermediado por teclas e martelos a fim de

atingir uma uniformidade máxima de timbres e uma agilidade maior das mãos

independentes, o violão exibe grande heterogeneidade de timbres no contato

direto dos dedos (e unhas) dos violonistas sobre as cordas, além de uma atividade

complexa das duas mãos que, para fazerem soar uma única nota, devem

simultaneamente pinçar (à mão direita) e pisar (à mão esquerda) a corda do

instrumento.

São justamente nestas idiossincrasias do instrumento - pouco racionalizado

com relação ao piano e de grande heterogeneidade de timbres e práticas, além de

portável e de custo relativamente baixo - onde reside o charme misterioroso do

violão. Nele, cada músico desenvolve suas próprias levadas, em uma prática de

difícil racionalização e que favorece, portanto, às técnicas pessoais de quem o

toca, em detrimento a uma padronização de sua execução.

1.6. Paulo Moura: o solista e o trabalho braçal/intelectual

Paulo Moura é original de São José do Rio Preto, interior de São Paulo.

Em entrevista para sua mulher, Halina Grynberg, ele conta sobre seu pai, Pedro

Moura, um carpinteiro de Pirapora, Minas Gerais, que imigrou como para SP

como boiadeiro: “Era carpinteiro. Ainda trabalhou muito tempo como carpinteiro,

depois, em Rio Preto. Mas, pelo que eu sei, veio numa boiada, veio como

boiadeiro” (GRYNBERG, 2011, p. 18). Aficionado por música, sendo ele mesmo

um instrumentista amador, Pedro Moura ensinou música a todos os filhos homens,

61

Somente em português este instrumento se chama violão, que significa uma viola grande. Por

toda a parte ele é chamado de “guitarra” ou de termos aparentados, que derivam do árabe qitara,

que por sua vez provém do grego kithara (TABORDA, 2011, p.23)

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a quem levava para tocar com ele no baile da cidade. Seu Pedro era severo na

educação musical de seus filhos.

Segundo o relato de Paulo Moura, ele costumava dizer aos seus colegas

músicos de São José: “Ah, deixa os meus filhos crescerem que eu vou mostrar a

vocês o que é músico!” (GRYNBERG, 2011, p.12) Os dois irmãos mais velhos de

Paulo Moura, Waldemar e Zeca, tocavam trombone e trompete, respectivamente,

e imigraram para o Rio de Janeiro onde trabalhariam em orquestras da Rádio

Nacional e de cassinos, caminho que Paulo seguiria posteriormente, acompanhado

do restante da família.

As irmãs de Paulo, no entanto, não foram iniciadas na música, então

considerada “coisa de homem”, a exceção de Nena que tocava piano - o

instrumento típico para mulheres à época. Este instrumento, que conforme se viu,

é central na tradição erudita europeia, trazia uma aura de respeitabilidade que o

restante dos instrumentos da música “popular” de maneira geral não possuiam.

Estes eram usualmente vedados à mulheres, sob pena de serem consideradas

inferiores do ponto de vista moral se o praticassem. À época, e isto é notório,

profissões ligadas ao entretenimento, como a de músico ou de ator, eram

consideradas indignas, especialmente para mulheres: “Podiam jogar futebol, mas

fazer música era coisa de homem. A não ser minha irmã Filomena, a Nena, que

chegou a tocar piano numa orquestra de Rio Preto.” (GRYNBERG, 2011, p.13)

Precoce, graças à escolha paterna, Paulo Moura se imaginava como

músico desde a infância:

Comecei a ouvir música em casa. Meu pai tocava, meus irmãos tocavam, e achei

que ia ser a mesma coisa comigo, porque aos 9 anos eu já tocava. Bem que eu

quis começar antes, mas papai me segurou um pouquinho e foi só a partir dessa

idade que eu comecei a estudar com ele.

Escolha, não foi. Mas foi um caminho, talvez o único que eu, no fundo, talvez

acabaria escolhendo. Na verdade, eu até tive vontade de trabalhar com mecânica,

eu achava interessante. O Aristides, meu cunhado, casado com minha irmã mais

velha, Filhinha (Dalila), era mecânico e vivia falando que ganhava muita gorjeta,

e eu pensava que com essa história de gorjetas eu me daria bem. Mas meu pai

achou que eu não devia trabalhar com coisas que sujassem as mãos. Então

eu cismei em escolher uma profissão para mim que fosse o ideal para ele. (...)

que fosse mais digna” (GRYNBERG, 2011, p.11, grifos meus).

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Vê-se ainda neste trecho o horizonte profissional na família de Moura.

Surge através do cunhado – a contra exemplo de Sérgio Barroso, a quem o

cunhado introduziu no meio musical - a perspectiva da profissão braçal pouco

valorizada de mecânico - que “suja as mãos”, mas que oferecia atrativos pois

“ganhava muita gorjeta”. Esta profissão estava em concorrência, no campo das

escolhas profissionais do jovem Paulo, com a carreira de músico, dita “mais

digna” pelo pai, um trabalhador braçal que cultivava a música como uma forma de

elevação social para sua família. Não é surpreendente que a família de Paulo

Moura, constituída por negros – ou por mulatos, se preferir – se preocupasse em

conseguir um trabalho mais intelectual, menos braçal, vislumbrado na música,

para o filho caçula. Pois é de se esperar que os herdeiros diretos de um sistema

escravista como o brasileiro, demasiado extenso tanto no tempo quanto na

quantidade de indivíduos submetidos, e a pouco mais de meio século da abolição

da mesma, optassem por um trabalho considerado “mais digno”, ou seja, mais

afastado do labor braçal imposto aos escravos e seus descendentes.

Esta oposição entre trabalho braçal e intelectual, se pode ser atribuída

como característica à tradição ocidental, era ainda mais forte no Brasil. De fato, o

trabalho braçal sempre foi extremamente desvalorizado neste país, como

consequência mesmo desta terrível herança escravista, entre outras causas

(HOLANDA, 1995). Para as classes brasileiras mais altas a profissão de

“instrumentista” está inserida em um contexto de divisão do trabalho musical em

que está alocada do lado braçal, ou manual, em oposição à figura do músico

“compositor”, que assume o lugar intelectual. É, portanto, menos valorizada, o

que tem reflexos na indústria cultural nacional, sempre mais voltada para

cantores/compositores do que para instrumentistas, diferentemente do que ocorre

na cultura norte-americana, por exemplo. Mas para uma família de negros de

classe média baixa do interior de São Paulo – como era família de Paulo – a

carreira de instrumentista era uma opção menos braçal, ou manual, que outras à

disposição, como a mecânica ou mesmo a alfaitaria. Sim, porque também a

alfaiataria foi uma profissão que a família de Paulo Moura cultivou já no Rio de

Janeiro, e Paulo chegou a pensar em se tornar profissional em um momento difícil

de sua carreira de músico, quando ainda iniciante.

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Paulo Moura relata neste trecho sua aproximação com a alfaitaria,

praticada por sua mãe e pelo irmão Lico, que também era trompetista. No Rio de

Janeiro, para onde a família se mudou, Lico passou a trabalhar como alfaiate,

ganhou alguma habilidade neste sentido e sua mãe abriu uma alfaitaria em casa.

Para Paulo, esta era uma segunda profissão, já que a carreira de músico era

considerada limitada até os trinta anos de idade, conforme o depoimento dele:

Precisei trabalhar mais perto dela (de sua mãe), e daí a solução foi ajudar na

alfaitaria de casa. De toda maneira, fica esse fato de que a família sempre se

preocupava com que os filhos tivessem outra profissão além da música. E mesmo

as pessoas de fora me aconselhavam: ‘Olha, tem de ter outra profissão, porque a

música vai até os 30 anos, e, depois disso, não se consegue mais...’

(GRYNBERG, 2011, p.25)

Halina, mulher de Paulo que colheu estes seus depoimentos, escreve um

trecho onde revela o cuidado de Moura com as roupas:

Até hoje usar paletó e gravata é um deleite para Paulo. Quantas caminhadas

fizemos entre vitrines, ao redor do mundo, para observar o corte dos paletós,

comentar os detalhes das ombreiras, dos botões e das lapelas. A largura do corte

das calças, a qualidade dos tecidos. (GRYNBERG, 2011, p.35)

O interesse de Paulo Moura e sua família por alfaitaria não é apenas um

mero subterfúgio para aumentar a renda familiar, mas se inscreve em um contexto

de elevação social de uma família de negros, e se conjuga à sua busca por se

distinguir do estereótipo do negro inferior, sujo e mal vestido, excutante de

trabalho braçal, visão herdeira da escravidão brasileira. Segundo Roberto Da

Matta:

Aliás, isso não é novidade, caso tenhamos em mente a resposta brasileira ao

problema infernal do igualitarismo jurídico de negros e brancos, senhores e

escravos, apresentado pela Abolição. Sabemos que essa resposta foi

especialmente fundada numa ênfase nos hábitos pessoais como os banhos, o

asseio, o apuro da higiene, o modo de vestir e de calçar. (1997, p.199)

Outra tática de elevação criada pelos negros brasileiros foi a constituição

de clubes sociais para eles, uma vez que frequentemente não eram admitidos nos

clubes regulares de brancos, conforme a pesquisa de Sonia Giacomini (2006),

sobre o Clube Renascença, no Rio de Janeiro. O depoimento de Paulo mostra o

envolvimento de sua família em um “clube de negros”, em São José do Rio Preto,

onde viviam:

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A orquestra de meu pai tocava num clube de negros. Como era mesmo o

nome? Clube Marcílio Dias. A formação era simples: um trombone, um trompete,

um sax alto, que era o meu pai, e eu tocava clarineta, numa parte que não era para

clarineta, mas para sax-tenor, porqueo resultado era uma oitava acima; mas o

importante era estar ali tocando (GRYNBERG, 2011, p.19)

Referindo-se a questão da vestimenta e da aprência física como estratégia

de distinção social entre os negros da fase inicial do clube Renascença, Giacomini

escreve:

Se a aparência constitui, como vimos, uma arena, um campo no qual se exerce

uma intervenção, senão diretamente sobre a própria posição social, ao menos

sobre elementos que incidem em sua avaliação, entende-se que ela tenha efetiva

centralidade em um contexto como o do estudado de negros, em que as posições

econômicas e educacionais alcançadas não constituem elementos suficientes para

sua aceitação/integração na posição hirarquica a que aspiram e a que julgam,

legitimamente, ter direito. (GIACOMINI, 2006, p. 38)

A observação acima se encaixa perfeitamente na situação de Moura, onde

o gosto pela alfaiataria e pela boa apresentação pessoal, os cálculos a fim se

afastar de profissões que “sujam as mãos”, e o esforço no sentido de ocupar

posições superiores no meio musical como as de solista e arranjador convergem

neste esforço de elevação a uma condição que é frequentemente negada aos

indivíduos afrodescendentes no Brasil, especialmente àqueles de sua geração.

Insere-se neste contexto o gosto de Paulo Moura e seus familiares pelo

jazz. Este foi um campo em que os negros não apenas alcançaram um enorme

sucesso internacional no século XX, mas também foi um dos únicos onde eles

eram considerados normalmente melhores que os brancos (HOBSBAWM, 1990).

Portanto a música era uma profissão que certamente podia conferir talvez o mais

alto grau de “dignidade” para alguém de ascendência negra no Brasil como Paulo

e sua família. Posteriormente, conforme foi se tornando um músico “solista” de

sucesso cada vez maior, Paulo – que também chegou ao posto de clarinetista

solista da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro - foi desenvolvendo

uma carreira cada vez mais “intelectual” no campo da música, isto é, passou a

escrever composições e arranjos, e a dirigir orquestras populares como maestro.

Sem jamais abandonar, no entanto, o instrumento nem o status de solista.

Estas hierarquias e valorações constituem um ethos do meio musical que é

adquirido muitas vezes em família, entre músicos, e que se liga a questões

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sociológicas de grande alcance, como a inserção dos negros descendentes da

escravidão no mercado de trabalho e a importância das chamadas “músicas

negras”, como o jazz, neste contexto típico americano do século XX, no qual

Paulo Moura se insere.

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2. A cozinha afro-brasileira

2.1. É samba novo: a “cozinha” toma a frente do samba moderno

Destinada a prover o ritmo “de base” junto aos demais instrumentos da

seção rítmica, como contrabaixo e outras percussões, a bateria era

tradicionalmente circunscrita ao acompanhamento na música brasileira, salvo

exceções pontuais. A importância central que o líder baterista Édison Machado e

seu primeiro álbum É samba novo (1963) assumem no sambajazz é indicativa de

uma notável inversão que se realiza neste movimento. Esta subversão da ordem

hierárquica na produção musical, longe de ser uma exceção no sambajazz, se

apresenta como sua característica central.

Na chamada era do rádio, alguns bateristas se destacaram, dentre os quais

o mais importante foi talvez Luciano Perrone, cujo álbum Batucada Fantástica

(1963) obteve considerável sucesso junto ao público62

(BARSALINI, 2012). No

sambajazz, no entanto, proliferam bateristas líderes de conjunto, que lançaram

álbuns com seu trabalho “solo”, como Milton Banana, Dom Um Romão, Wilson

Das Neves e Airto Moreira, além do próprio Édison Machado. Estes álbuns se

tornaram conhecidos junto a um certo público nacional e estrangeiro, e muitos

deles foram digitalizados e relançados em CD, a partir dos anos 1990. O primeiro

álbum de Édison Machado, É samba novo (1963), pode ser considerado, junto a

Você ainda não ouviu nada!, de Sérgio Mendes (1964), um dos dois LPs mais

62

Sobre Luciano Perrone e a história da bateria no Brasil, BARSALINI (2012), escreve: “A partir

de 1927, o instrumento passou a integrar o corpo de orquestras dirigidas por maestros como Simon

Boutman, Pixinguinha e Radamés Gnattali, a exemplo da Pan American, da Victor Brasileira, da

Típica Victor, da Diabos do Céu e da Guarda Velha, que gravaram centenas de discos e contaram

com os bateristas Valfrido Silva, Benedito Pinto e Luciano Perrone, entre outros. A figura de

Luciano Perrone se destaca, sendo cultuada como o “pai da bateria brasileira”. (...) Ele ainda

integrou o elenco da Rádio Nacional durante 25 anos e aposentou-se como timpanista da Orquestra

Sinfônica Nacional. Luciano Perrone teve uma formação musical que o habilitava a ler partituras,

algo muito raro entre os percussionistas populares da época no Brasil. Devido à qualidade de suas

execuções e à sua ampla inserção no mercado de trabalho, foi eleito pelo público brasileiro o

melhor baterista do ano em 1950, 51 e 52, tendo sido o maior responsável pela adaptação de

diversos ritmos brasileiros para a bateria. Seu trabalho nesse sentido pode ser conferido no LP

Batucada fantástica, de 1963, o primeiro disco solo de bateria e percussão brasileira, premiado

internacionalmente. Aliando seu talento e formação musical erudita a um ambiente de trabalho

privilegiado no contexto da música popular, pode ser considerado um mediador entre os dois

universos do samba: sempre próximo de maestros e arranjadores como Radamés Gnattali e

cercado de “bambas” como Bide, Marçal e João da Baiana, Perrone soube sintetizar, na bateria,

elementos rítmicos outrora expressos por intermédio de vários instrumentos de percussão.

(BARSALINI, 2012, p.42 e 43). Em ArtCultura, Uberlândia, v. 14, n. 24, p. 33-46, jan.-jun. 2012

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conhecidos e paradigmáticos do movimento. Contando com uma seleção dentre os

músicos mais prestigiados no meio profissional carioca63

, o álbum traz

composições e arranjos como de Só por amor, de Baden Powell e Vinícius de

Moraes, arranjado por Paulo Moura, que também faz um improviso notável ao sax

alto, nesta faixa, ou as duas Coisas, de Moacir Santos, arranjadas pelo próprio,

além de Quitenssência, arranjo e composição de J. T. Meireles64

. O álbum é uma

síntese do que havia de melhor no sambajazz, sob o comando do baterista.

O trompetista Pedro Paulo, que participou da gravação deste álbum de

Machado, relata como foi este processo, onde cada arranjador era encarregado de

dirigir a gravação de seus arranjos. No entanto, apesar da autoridade destes

“maestros” do sambajazz, sendo os arranjadores considerados os “autores

intelectuais”, Machado não se dobrava totalmente à sua autoridade, e “sempre foi

muito irreverente e fazia a coisa que ele achava que era.”. Pedro Paulo conta como

o baterista lidava com a autoridade do “maestro” Moacir Santos, arranjador

convidado por ele para seu LP de estréia:

Gabriel França: Você tocava sempre com o Edison Machado?

Pedro Paulo: No Beco (das Garrafas), quando ele ia. Conhecia das paradas, tinha

muito trio, baixo, piano e bateria. (...) Aí ele resolveu fazer o disco. Chamou os

arranjadores, Waltel (sic), Meireles, Moacir Santos, Paulo Moura e não sei quem

arregimentou, acho que foi o Clóvis (Mello – produtor do álbum). Nós gravamos

com dificuldades de horário do grupo. Eu trabalhava aqui, trabalhava ali. As

gravações acho que foram feitas sábados e domingos, uma coisa assim. Eu

trabalhava na boate à noite, segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Sábado eu

levantava e ia lá pra gravação, domingo também e o negócio foi mais ou menos

assim. Aí os arranjos foram feitos, Moacir Santos conduzindo a coisa muito

bem. (...) Cada arranjador dirigia o seu (arranjo). Com o Moacir Santos teve

uma passagem muito interessante: o Édison sempre foi muito irreverente e

fazia a coisa que ele achava que era. Aí gostava de tocar no pratão, o samba do

prato, ele foi um dos precursores. Aí Nanã (Coisa n.5), arranjo do Moacir. Tinha

um solo, se não me engano de uns 9 compassos, pra bateria, que entram dois

trombones (cantarola a parte A de Nanã), o trompete lá em cima, com surdina –

era um trompete só – e no meio da coisa tinha solo de batera. Sete, nove e ele se

empolgava, tum tum... e passava. Volta, volta. Édison, nove compassos e deixa

que tem a turma que vai entrar, não sei o quê das quantas... Ele sempre passava

do lugar. Aí eu falei pro Moacir: ó, eu não aguento mais. Não vai dar. Eu já

tinha repetido n vezes (canta a parte B nos agudos para demonstrar). Falei: olha

63

São eles: Edison Machado (bateria), Tenório Jr. (piano),Sebastião Neto (contrabaixo), Paulo

Moura (sax alto), Pedro Paulo (trompete) Edson Maciel (trombone) Raul de Souza (trombone) e J.

T. Meirelles (sax tenor). 64

Meireles foi um importante saxofonista e arranjador do sambajazz que, pouco contemplado

nesta tese, mereceria uma pesquisa de fôlego sobre a sua atividade musical e personalidade.

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não dá não. Vamos fazer a última? Então vamos fazer a última, fazer ‘a boa’ e

tal. Fez os nove compassos, ele passou e a trombonada entrou, na boa, como se

estivesse tudo bem, o Raulzinho entrou (canta novamente a linha dos trombones

seguida da do trompete, no mesmo tom da gravação, revivendo a música ali). Aí

ficou aquela, errada, digamos assim, ‘com um erro’, entre aspas, mas que

ninguém percebeu. Beleza65

.

Nesta fala de Pedro Paulo podemos entrever três diferentes posições na

divisão do trabalho dos músicos: a de arranjador, a de solista e a de músico

contratado. Moacir Santos, além de compositor é o arranjador, este prestigiado

mentor intelectual que planejou previamente sua obra (a famosa Nanã, ou Coisa

n.5, que abre o LP66

), e transmite-a aos músicos através de partituras escritas bem

como de sua orientação pessoal no estúdio de gravação. Seu trabalho consiste em

promover a execução do arranjo da forma mais fiel possível à sua concepção, ao

dirigir o registro da faixa.

Édison Machado, por outro lado, é o solista, cujo nome estará à frente do

grupo na capa do LP, mas que, na condição de baterista, se vê submetido ao

arranjo de Moacir Santos, bem como à sua direção. Ele enfrenta uma dificuldade

ao ter que enquadrar o seu momento de solo – onde todos silenciam e o músico se

expressa individualmente, mostrando sua capacidade artística individual – ao

arranjo pré-concebido por Santos, e que lhe reserva um número restrito de

compassos. Machado deve solar “livremente”, mas nem tanto, porque deve contar

mentalmente este tempo que lhe é cabido para o solo, ao fim do qual será

interrompido pela “trombonada”, prevista no arranjo. Édison Machado, por

“irreverência” ou dificuldade em contar compassos durante o solo, ultrapassa o

tempo que lhe é devido. Seu “erro” ocasiona a interrupção da gravação por Santos

para que se faça um novo take da faixa, desta vez correto. Isto provoca o

descontentamento dos demais músicos, porque lhes demanda mais uma repetição,

em um processo longo e cansativo como o da gravação de um LP.

Por fim, Pedro Paulo, na condição de simples músico contratado, nem

autor, nem solista, relata o seu esforço físico em tocar as notas muito agudas no

trompete, previstas no arranjo de Santos. Após algumas repetições, ele reivindica

seus direitos, conforme seu relato: “Aí eu falei pro Moacir: ó, eu não aguento

65

Pedro Paulo, em entrevista para esta tese. 66

Esta gravação pode ser ouvida no áudio em anexo.

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mais. Não vai dar. Eu já tinha repetido n vezes (canta a parte B nos agudos para

demonstrar). Falei: olha não dá não. Vamos fazer a última?”

A gravação referida acima abre este álbum histórico de Machado. Nela se

pode ouvir a pequena hesitação do baterista ao fim de seu solo e a entrada dos

trombones, conforme prevista no arranjo de Moacir Santos. O episódio, bastante

comum, mostra o conflito entre o autor intelectual, a posição de Santos, que quer

ver sua obra executada da melhor forma possível e o músico encarregado de tocá-

la. O autor insiste, ainda que isto demande muitas repetições do take, e isto

exaspera o trompetista que na expressão de instrumentistas de sopro, já está “com

o bico cansado” devido ao esforço físico de executar uma passagem difícil

repetidas vezes. Até aí nada de incomum. Trata-se do conflito de interesses entre o

autor e o instrumentista contratado, que se dá continuamente no interior da

indústria cultural. Uma oposição que pode ser entendida como um desdobramento

do dualismo intelecto versus corpo. O que torna este episódio diferente de tantos

outros que acontecem em esquemas tradicionais desta indústria é que o solista,

neste caso, não é um instrumentista de sopros nem tampouco um cantor de

sucesso, mas um baterista – este músico alocado para o lado corporal, em

oposição ao solista intelectual, nestes dualismos que penetram o trabalho musical

e se desdobram de variadas formas. O solo de bateria – uma criação individual do

solista, onde se pode dizer que ele exerce uma criação intelectual, é o pivô deste

conflito incomum, mas que foi resolvido musicalmente, conforme podemos

escutar no álbum.

Machado foi também o baterista de importantes álbuns da época, atuando

como músico acompanhador. Dentre eles, destaco o primeiro álbum de Tom

Jobim, The composer of Desafinado plays (1963). Como este álbum teve grande

repercussão no exterior, suas levadas (ou “batidas”) à bateria se tornaram

paradigmáticas da execução desse instrumento na bossa nova em todo o mundo.

Hoje as levadas de bateria de bossa nova criadas por Machado fazem parte de

programações de baterias eletrônicas de teclados e outros instrumentos digitais –

um índice eloquente de seu extraordinário alcance internacional67

. Machado tem

67

Sobre os padrões rítmicos desenvolvidos por Édison Machado, fundadores das batidas da Bossa

Nova à bateria, internacionalmente difundidas, ver a tese de Barsalini, Leandro. As sínteses de

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apenas um concorrente à altura quando se fala de bateria de samba moderno:

Milton Banana, um baterista excepcional que é abordado apenas lateralmente

aqui, na impossibilidade de um aprofundamento maior em cada músico de

destaque no sambajazz. Banana mereceria uma tese inteira sobre ele.

Milton Banana lançou 20 álbuns solo, entre 1963 a 1984, uma média de

quase um álbum por ano, e foi um sucesso comercial inédito entre bateristas

brasileiros. Ele foi também o baterista das gravações mais importantes de João

Gilberto, como a de Chega de Saudade e do álbum que projetou este cantor

internacionalmente, o Getz/Gilberto, com Stan Getz e Astrud Gilberto, em 1963.

Segundo o baterista Mauro Jerônimo, em entrevista para esta pesquisa: “Eu ouvi

muito os LPs do Banana quando era novo. E eram muito populares, fáceis de

encontrar, tinha sempre um LP do Banana exposto na vitrine das lojas”. Conforme

Ion Muniz68

, o baterista “Formou o Milton Banana Trio, gravou um monte de

LP’s, que venderam como pão quente. Não sei o que Milton fez com o dinheiro,

se é que recebeu algum.”

No entanto esta inversão indicada pela posição privilegiada do baterista

como líder no movimento se apresenta de muitas formas no sambajazz, sempre

como uma valorização do que está em baixo, ou seja, a base rítmica da bateria e

das percussões, que remetem à corporalidade, sobre o que esteve quase sempre em

cima: a melodia enunciada pelo solista, seja ele um instrumento de sopro como

trompete ou flauta, seja um cantor – o caso mais comum69

.

Edison Machado: um estudo sobre o desenvolvimento de padrões de samba na bateria. –

Campinas, SP: [s.n.], 2009. 68

Trecho das “Crônicas” (s.d.) não publicadas de Ion Muniz. 69

Talvez por isto, esta inversão característica do sambajazz tenha sido entendida, erroneamente,

como um predomínio da chamada música instrumental sobre a canção, neste movimento, que por

isso foi chamado às vezes de “a bossa nova instrumental”. No entanto, exemplos numerosos do

sambajazz cantado, como a de Leny Andrade, do Tamba Trio ou mesmo de Elis Regina com o

Zimbo Trio desautorizam esta definição restrita do sambajazz como música instrumental.

Acresce o fato de que a presença de canções no repertório do sambajzz como as de Tom Jobim ou

de Baden Powell é mais uma regra que uma exceção, tornando a definição por oposição entre

música instrumental e canção extremamente problemática. Além disso, a voz no sambajazz,

mesmo quando “instrumental”, tem uma presença fundamental, e se dá através dos instrumentos

como trombones ou saxofones, ou mesmo pianos, que “cantam” as melodias das canções, ou

quando improvisam de forma muito vocal, como no jazz. Neste estilo, onde abundam

instrumentistas cantores como Louis Armstrong e Chet Baker, podemos dizer que a voz entra

pelos instrumentos, que a imitam. E de forma inversa, os cantores improvisam e entoam as notas

como quem toca um instrumento. Este assunto será abordado no capítulo 4.

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Outro exemplo desta valorização da seção rítmica no sambajazz é a

importância atribuída ao instrumento de percussão tamba, que nomeia o Tamba

Trio. Criado pelo baterista Élcio Milito, ela consiste em uma bateria adaptada para

a performance em pé do baterista – e não sentado, conforme a técnica tradicional

do instrumento. Este conjunto era formado ainda por mais dois instrumentistas-

cantores, o pianista virtuose, Luis Eça, que também era o arranjador e compositor

do grupo e o Bebeto, que tocava contrabaixo e flauta no Tamba Trio, além de

cantar fazendo a voz principal. O grupo era, portanto, também um trio vocal, com

arranjos notadamente sofisticados; e estreou em 1962, no Beco das Garrafas, no

mesmo ano em que lançou o seu LP de estréia, se tornando um dos grupos mais

conhecidos do sambajazz.

2.2. Moacir Santos e a erudição negra: invertendo os polos para avançar mais

Gostaria de levantar mais um exemplo significativo desta inversão

realizada pelo sambajazz: o importante álbum Coisas, de 1965, de Moacir Santos,

sobre o qual escrevi minha dissertação de mestrado (FRANÇA, 2007). Órfão de

mãe aos três anos de idade, tendo o pai ausente, Moacir foi criado no município de

Flores, no interior de Pernambuco por uma família local que o adotou.

Interessando-se pela prática em bandas de música ainda na infância, tornou-se um

exímio instrumentista e arranjador destas formações. Tocava saxofone por

partituras com fluência. Imigrou para o Rio de Janeiro e empregou-se na mais

importante emissora do país, a Rádio Nacional, inicialmente como instrumentista,

e logo como arranjador, e prosseguiu seus estudos de música, ao quais se dedicou

intensamente. Foi aluno destacado do compositor erudito alemão H. J.

Koellreuter, de C. Guerra-Peixe, e chegou a estudar música dodecafônica com E.

Krenek e contraponto com Paulo Silva. Logo se tornou professor de uma série de

músicos do samba moderno, dentre os quais se destacam Baden Powell, Nara

Leão, Roberto Menescal, Paulo Moura, Sergio Mendes, Nelson Gonçalves, Pery

Ribeiro, Nara leão, Dori Caymmi, Darcy da Cruz, Carlos Lyra, Maurício Einhorn,

Oscar Castro Neves, Geraldo Vespar, Chiquito Braga, Marçal, Bola Sete, Dom

Um Romão, João Donato, Airto Moreira, Flora Purim e Chico Batera, entre

muitos outros.

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Sem descuidar da formação e do ensino de musica erudita, Moacir

mostrou-se principalmente interessado na composição do que ele chamava de

“música negra”, desde seu primeiro álbum, o emblemático Coisas, de 1965. Ele se

aprofundou em técnicas de composição modal que estão na base deste estilo, tanto

no Brasil quanto internacionalmente. Em entrevista concedida para minha

dissertação de mestrado (FRANÇA, 2007), Moacir Santos discorre sobre suas

diferenças com relação a Tom Jobim, que enxerga como uma oposição entre

música branca e música negra. Ele, no entanto, faz questão de frisar que

“avançou mais” que Jobim não apenas de forma intuitiva, por ser negro, mas

principalmente por haver estudado musicologia a fundo, o que lhe permitiu

desenvolver plenamente as características negras de sua música70

.

Longe de corroborar o senso comum tradicional no Brasil, que reservaria

ao negro apenas uma musicalidade intuitiva e corporal, em oposição ao estudo

intelectual do branco, Moacir entende que é justamente o seu estudo aprofundado

musicológico combinado à sua condição “negróide” que o permitiu “avançar

mais” e fazer “música negra” de alto nível artístico, como as Coisas (1965).

Eu conheci Jobim no Programa César de Alencar da Rádio Nacional. Eu fui juiz

de calouros neste programa. Acontece que eu vivia com Vinicius (de Moraes) e

Baden (Powell) na casa deles, na minha casa e assim por diante. Nós éramos

muito íntimos, mesmo nos Estados Unidos, éramos muito amigos. Eu admiro a

música de Tom só que eu penso que, primeiramente, eu sou negro e Tom

Jobim é branco, a música dele é branca. (...) eu gosto muito da música de

Jobim só que eu penso que eu avancei mais por causa do negroide, do negro.

Então eu misturo a erudição também, porque eu estudei muito, com

Koellreutter, Nilton Pádua, Guerra-Peixe. Eu tenho certeza que Tom não

pesquisou da maneira que eu pesquisei: é da natureza da pessoa (FRANÇA,

2007 p.148).

Eu conheci Moacir Santos pessoalmente em 2002, quando estudava no

Musicians Institute, em Los Angeles, CA, EUA, graças a uma bolsa da CAPES. Já

havia ouvido com muito interesse alguns de seus álbuns e tinha grande admiração

70

Para termos apenas um exemplo da recepção da crítica à obra de Moacir Santos e, em especial,

ao seu primeiro álbum, Coisas, cito a crítica de Ruy Castro no periódico O Estado de São Paulo,

24-8-2004: “Foi o último e o melhor disco de “samba-jazz” feito no Brasil daquela época: uma

obra-prima de música instrumental, com raízes ardentemente brasileiras e uma certa tintura jungle,

ellingtoniana, que parece brotar dessas mesmas raízes. Seria fácil dizer que, em tais raízes, está a

música ancestral negra. E deve estar mesmo – mas não só: Moacir era e é um músico completo,

que se abeberou de toda a tradição clássica européia, apenas fazendo-a curvar-se à sua orgulhosa

negritude. (Foi o primeiro maestro negro da Rádio Nacional, furando a hegemonia – benigna – dos

mestres Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli.)”

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pelo maestro, sempre adjetivado como “negro”, e cuja criação de levadas em seu

celebrado álbum Coisas estava na base de muitas músicas afro-brasileiras

posteriores. Fui levado à sua casa para um almoço por um ex-aluno seu, onde

pude ouvi-lo falar de seu prazer em ouvir outro músico importante para o

sambajazz, o pianista João Donato. Ao comentar a excelente construção de um

solo de Donato sobre uma composição sua, ele chegou às lágrimas, o que me

emocionou também.

Moacir demonstrava grande humildade ao conversar comigo, se colocando

como um “pesquisador” em busca de aprender mais (apesar da sua longa e

vitoriosa carreira como professor de música) e sempre elogiando seus pares.

Porém, quando lhe perguntei sobre Jobim, nesta entrevista citada, apesar de

manter o tom elogioso, ele ressaltou que “avançou mais” que o maestro “branco”

da bossa nova. Essa afirmação me chamou a atenção. Teria o maestro negro

perdido sua humildade ao comentar sobre o maestro “branco”? Não creio. O que

Moacir Santos falou, longe de ser um deslize egocêntrico, reflete sua busca pela

expressão negra que o fez “avançar mais” em seu percurso. O caráter afro de sua

música se realiza através dos modalismos e dos ritmos reinventados pelo

compositor que, munido das ferramentas musicológicas mais sofisticadas, a

conduz para o terreno desconhecido da invenção, desterritorializando-a.

Ocorre que a música de Moacir Santos, principalmente voltada para a

seção rítmica (ou cozinha) e para a construção e levadas rítmicas não é apenas

intuitiva, natural, corporal conforme adjetivos que acompanham frequentemente a

ideia de música negra, mas é fruto de intensa pesquisa e estudo da musicologia

“erudita”. E isto, por outro lado, não é apenas resultado de sua ambição pessoal,

de seu amor ao trabalho, mas é da sua “natureza”, conforme ele afirmou.

Está dada a combinação entre pólos invertidos que faz a música de Moacir

Santos “avançar mais” em seu caminho. Se pensarmos na oposição natureza e

cultura, teremos aqui uma dupla inversão: sua musicalidade negra, por vezes

entendida como natural ao indivíduo negro, foi adquirida pela via cultural do

estudo. Por outro lado Moacir Santos atribui esta sua tendência à “pesquisa” à

“sua natureza”. A música negra, construída culturalmente, é impulsionada por

uma tendência ao estudo, que lhe é natural. É esta combinação entre pólos

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invertidos que faz a sua música composta ir mais longe que a simples “música

branca” de Jobim, segundo Santos.

Não que Jobim possa ser considerado um intuitivo, pelo contrário. Como

Santos, Jobim também foi aluno de Koellreuter, dentre os diversos professores

que teve, e avançou bastante em seus estudos como compositor erudito, chegando

a escrever música sinfônica. No entanto Jobim parece buscar algo diverso de

Santos: a sua música do período estudado se movia no sentido de soar natural

como o caminhar de uma garota que passa pela praia de Ipanema. A erudição de

Jobim lhe serve também como técnica composicional a fim de atingir a concisão

melódica por meio do trabalho composicional motívico, ou na escolha dos acordes

certos, depurados até soarem perfeitamente coerentes estilisticamente. A cultura

musical erudita de Jobim deu à sua música uma fluência natural, mas lapidada

com labor para atingir este patamar.

Se Santos também é conciso e se utiliza de sua erudição na composição

musical, ele não busca essa naturalidade em sua música. Pelo contrário, há algo

nela de estranhamente exótico, que evoca lugares desconhecidos. Os modalismos

“locais” combinados às invenções rítmicas de Santos, o impulsionam para mais

longe, nesta busca da matriz africana em sua música.

Em entrevista concedida em 2007 para minha dissertação de mestrado,

Moacir Santos falou sobre o negro como alguém “que anda diferente” do branco,

trazido ao Brasil de terras africanas distantes:

O negro foi espalhado pelo mundo inteiro. Então, naturalmente, o negro

americano veio da África. Ele é diferente, anda diferente, você sabe. Então eu

inventei uma coisa diferente também, como um negro brasileiro, semi-

americano.(...) A África é a matriz do negro. A história, nós conhecemos, tem os

navios negreiros, que exportavam negros dizendo... um branco como você, por

exemplo: olha este elemento é um animal. Mas ele entende a fala. Entende? Ah,

então eu vou comprar esse animal africano que fala. Os brancos vendiam os

negros pelo mundo, especialmente na América. O branco brasileiro comprou

negros como um animal que fala e entende. É a história do negro no Brasil

(FRANÇA, 2007, p.144 e 145, grifo meu).

Os modalismos caracterizam um percurso rumo a terras distantes, são

procedimentos que possibilitam aos compositores evocarem paisagens étnicas em

suas músicas; e se opõem ao tonalismo sobre o qual se baseia a música erudita e

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grande parte da música popular, no ocidente. O tonalismo seria ocidental, ou seja,

entendido como universal pelos ocidentais, em oposição ao modalismo, que

remete à uma ambiência local. Esta caminhada rumo ao desconhecido que se

traduz harmonicamente na composição modal, remete ao impressionismo de

Debussy, na passagem para o século XX que, em seu fascínio por musicalidades

orientais, buscou algo diverso do tonalismo europeu. Os compositores norte-

americanos da primeira metade do século, como George Gershwin, em Rapsódia

em Blues, e Duke Ellington, em Caravan (Ellington e Tisol), também procuraram

recriar em harmonias orquestrais uma musicalidade afro-americana através de

técnicas modais de composição, descrevendo um percurso musical rumo às

musicalidades africanas.

A harmonia modal remete a uma paisagem distante, possivelmente

africana, e foi um meio que compositores como Moacir Santos encontraram para

expandir a harmonia de origem europeia a fim de expressar musicalidades não-

européias, ou que se definem pela diferença com relação a ela, como é o caso da

cultura negra. Moacir Santos procurou “avançar mais”, rumo à uma paisagem

distante, plena de musicalidades negras, brasileiras, americanas, africanas. E o fez

também com o apoio das ferramentas da musicologia de origem européia.

Para além da harmonia e melodias modais, Santos reinventou também os

ritmos, as levadas, estendeu sua erudição à cozinha (que significa seção rítmica,

no jargão dos músicos), de importância diminuída na composição clássica.

Levada é um termo muito comum entre músicos cariocas, e significa uma

breve fórmula ritmo-harmônica, continuamente repetida com pequenas variações

ao longo da música com função de acompanhamento, e que desempenha um papel

central não apenas na música brasileira. Batida71

é um sinônimo muito usado de

levada. Segundo o etnomusicólogo Carlos Sandroni:

71

Considera-se frequentemente que a inovação de João Gilberto, que o permitiria estar em linha

com a tradição do samba, é a formulação de sua “batida de bossa nova” ao violão, cujas figuras

rítmicas executadas no baixo e nas três vozes agudas correspondem, respectivamente, a uma

estilização da atividade do surdo e dos tamborins na batucada. (FRANÇA, 2008)

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A batida não é simples fundo neutro sobre o qual a canção viria passear com

indiferença. Ao contrário, a primeira nos diz muito sobre o conteúdo da segunda.

A batida é de fato, na música popular brasileira, um dos principais elementos

pelos quais os ouvintes reconhecem os gêneros. Neste país, e certamente em

outros, quando escutamos uma canção, a melodia, a letra ou o estilo do cantor,

permitem classifica-la num gênero dado, mas antes mesmo que tudo chegue aos

nossos ouvidos, tal classificação já terá sido feita graças à batida que, precedendo

o canto, nos fez mergulhar no sentido da canção e a ela literalmente deu o tom.

(SANDRONI, 2001 p. 14).

Moacir Santos opera uma inversão, que consiste em explicitar a

importância da seção rítmica, que era normalmente secundária e encarregada do

“acompanhamento”, e cujos músicos, os “ritmistas”, tendiam a vir de classes

sociais mais baixas entre os colegas. Ao conceder à atividade desta seção rítmica a

prioridade no fornecimento do material melódico da melodia, tradicionalmente

enunciada em vozes mais agudas, se torna clara a metáfora de inversão social: o

que está em baixo, o ritmo, os instrumentos de percussão, ditos “intuitivos” pelo

senso comum, “naturais” ao brasileiro popular, corporal, tem aqui a primazia

também intelectual ao determinar a melodia e a orquestração da peça musical.

Na música de Santos vê-se empiricamente como uma prática que poderia

ser considerada exclusivamente musical traz também em si o meio social na qual

se inscreve e na qual se constitui e é constituída, a um só tempo.

Em entrevista concedida a mim em 2006, Moacir Santos declarou que o

compositor erudito e pesquisador César Guerra-Peixe lhe ensinara em aula que “o

negro nunca alcançou” a terça maior da escala musical, e que esta seria a origem

da utilização desta blue note – a terça menor sobre tonalidade maior – rompendo a

pureza da dualidade do sistema maior/menor na chamada música negra norte-

americana. Ao afirmar um traço da musicalidade negra como uma característica

física “negra”, uma falta em “não alcançar”, Moacir Santos apresenta um

entendimento integrado entre característica músicais (contida na blue note, por

exemplo) e sociais (a cultura negra e sua relação com a sociedade americana)

(FRANÇA, 2007).

Escrevi acima que É samba novo (1963) é um dos dois álbuns que podem

ser caracterizados como os mais representativos do sambajazz, sem causar

grandes controvérsias a respeito, embora eu saiba também que nenhuma escolha

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deste tipo seria unânime. O outro álbum mais importante, que talvez seja também

o mais conhecido do sambajazz, é Você ainda não ouviu nada! (1964), de Sérgio

Mendes, que traz arranjos e composições dos dois “maestros soberanos” deste

samba moderno em branco e preto: Tom Jobim e Moacir Santos.

Jobim escreveu o saboroso texto abaixo para a contracapa deste álbum

Sérgio Mendes, onde antecipava o enorme sucesso que este músico faria

posteriormente, especialmente nos EUA:

Certo dia, lá vinha eu da cidade, naquela hora impossível. Anda, para, anda mais

um pouquinho e, aí, para um tempão. Por impaciência, liguei o rádio: o que veio

foi um piano, lindo, tocado com gosto de menino que descobriu um pé de

jaboticaba. E, lá do alto da árvore, ele ri um riso inexplicável. Meu Deus, a

música existe, Deus existe, quem é este cara? Para onde vão essas vozes todas?

Não sei, mas sei que vão lindas. De repente, acabou a música. Catei os meus

pedaços e fui, anda, para, anda – fui pra casa. Mas aquele som ficou e, mais tarde,

vim a conhecer quem estava tocando. SERGIO MENDES é um tremendo músico.

Já tocou piano pra todo o Brasil e também na Europa e nos Estados Unidos. Onde

quer que este moço se sente, num piano, todo mundo fica sabendo que está diante

de um músico extraordinário. Sua carreira está se iniciando e sei que vai muito

longe. Além de ser um intuitivo, é um estudioso. Coisa rara, pois geralmente

os intuitivo ficam só intuitivos e os estudiosos seguem estudiosos. Agora tive o

prazer (o sofrimento) de colaborar com ele neste disco. E foram mil noites sem

dormir e café e cigarros. Depois, eu ia levar Serginho até a Praça XV.

Comprávamos os jornais do dia, enquanto vinha chegando a barca que o levava

de volta à sua Niterói. Não sou profeta, mas creio que este disco, produto de

muito trabalho e amor, abra novos caminhos no panorama de nossa música.

Antônio Carlos Jobim.

PS: Hoje, pela manhã, recebi uma carta do Aurino que termina assim: ‘por tudo

isto e mais que nada, considere-se de mariscada, Brahma morna e calção largo na

província de Niterói, aqui na Ukrania, à guisa de Sambamor, relativo de

Rosamor. (SÉRGIO MENDES E BOSSA RIO, 1964)

Podemos entrever no texto de Tom Jobim o processo de pré-produção do

álbum Você ainda não ouviu nada! (1964) junto a Sérgio Mendes, quando eles

fizeram os arranjos de oito, das dez faixas do LP. Destas oito faixas arranjadas em

dupla, cinco são composições de Jobim, duas de Mendes e uma de J. T. Meireles.

Jobim não menciona, no entanto, as duas Coisas, n.2 e n.5 (Nanã), que foram

compostas e arranjadas por Moacir Santos. Assinalo que, como Santos o faz,

Jobim enfatiza a conjunção entre “intuição” e “estudo”, presentes em Sérgio

Mendes, segundo ele.

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Certamente não se trata de coincidência que a instrumentação do álbum,

composta apenas por instrumentos graves, é típica das orquestrações de Moacir

Santos, e incomum em Jobim: ela foi, muito provavelmente, uma sugestão do

maestro negro. O conjunto é formado, além da seção rítmica com Édison

Machado a bateria e Tião Neto ao contrabaixo, por dois trombones (um de pisto e

outro de vara) e um sax tenor, tocados respectivamente por Raul de Souza, Edson

Maciel, Hector “Costita” Besinani, além de contar com outro tenorista, substituto

em duas faixas, Aurino Ferreira, citado por Jobim acima.

Se Jobim tem a palavra na contracapa do LP, além de ser o arranjador e

compositor da maior parte de músicas deste álbum central para o sambajazz (o

que, inclusive, autoriza a incluí-lo neste movimento, apesar de sua posição sempre

destacada, de maestro) sua liderança é contrabalançada pela presença do maestro

negro, Moacir Santos, ainda que apenas em duas faixas. O que esta oposição,

assimétrica, entre o maestro “branco” e o maestro “negro”, nos termos de Santos,

nos mostra sobre o sambajazz?

Ao desdobrar a oposição colocada por Santos entre sua música e a de

Jobim, obtém-se uma série de características, em oposição imperfeita, que podem

ser úteis para penetrar no sambajazz. Não pretendo que esta série de dualismos

que listarei abaixo se constituam em uma estrutura totalizante, mas apenas que

ajudem no entendimento dos valores ali presentes, por comparação. Enfatizo que,

desde a distribuição desigual dos arranjos e composição entre Jobim e Santos, não

há simetria aqui, mas, pelo contrário, uma grande desigualdade capaz de gerar o

movimento complexo, barroco, que caracteriza o sambajazz.

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Moacir Santos Tom Jobim

Maestro “negro” Maestro “branco”

Percussão, ritmos Literatura, letras de música

Seção rítmica Melodia

Graves Agudos

Saxofone barítono e clarone Piano e flauta

Órfão de mãe, pai ausente Dois pais, mãe presente

De Flores, interior de PE Do Rio de Janeiro, capital

Também educador Apenas músico

Ficou nos EUA Retornou ao Brasil

A partir da oposição descrita por Santos entre ele e Jobim e da

contraposição deles no álbum de Mendes, temos o quadro acima.

O foco nos estudos rítmicos que caracteriza a música de Santos está

contraposto ao interesse na literatura por Jobim, que escreveu letras de música de

grande horizonte poético, como Águas de Março. Se o interesse pelo ritmo remete

à percussão e à corporalidade, o interesse pela literatura conduz à voz (que canta

textos, ou “letras”) e à intelectualidade. Os textos de Jobim em LPs, sempre bem

escritos, também mereceram o elogio de escritores como Ruy Castro: “o texto de

contracapa que Tom Jobim escreveu em Chega de saudade (de João Gilberto,

1958) é talvez o melhor que já se produziu no Brasil”. Filho do poeta e diplomata

gaúcho Jorge Jobim, Tom Jobim foi criado pelo seu padastro, Celso Frota Pessoa,

a quem ele considerava como um pai72

(CASTRO, 1999, p.26 e 27). Isto explica a

dupla paternidade que lhe atribuí acima, em oposição a Moacir Santos, que cedo

ficou órfão de mãe, com um pai ausente. Moacir Santos, por oposição, não era um

72

O pai biológico de Jobim faleceu quando ele tinha oito anos de idade.

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letrista, nem esteve tão próximo da literatura como Jobim, embora tenha sido

parceiro do poeta Vinícius de Moraes, com quem teve uma longa colaboração no

início dos anos 196073

. Posteriormente suas músicas foram letradas por nomes de

peso, como Ney Lopes e Gilberto Gil. Mas Santos estava mais voltado para a

prática e o magistério da música. Ao contrário de Jobim, que teve uma criação de

classe média inicialmente no bairro da Tijuca e depois em Ipanema, na urbana

capital Federal do Rio de Janeiro, e cuja mãe era fundadora do colégio Brasileiro

de Almeida, Moacir Santos nasceu na área rural de Pernambuco, próximo aos

municípios de Bom Nome e de Flores74

.

Com uma produção voltada para os ritmos afro-brasileiros, que

reinventava através de ferramentas musicológicas da tradição erudita, Santos dava

grande importância à atividade da seção rítmica, composta por percussões,

contrabaixo e bateria, além de violão e piano, eventualmente. Santos criou os

Ritmos MS, uma racionalização rítmica que embasa parte de sua produção e de

sua didática. Jobim, por oposição, estava mais ligado à composição melódica e

harmônica e, conforme se dá a prática na tradição européia. Ele relegava os ritmos

de acompanhamento um espaço secundário, onde se utilizava de levadas

padronizadas de samba ou baião, ou mesmo da bossa nova, esta estilização do

samba que estava sendo inventada então.

Além do piano, instrumento central na tradição europeia que era também

seu principal, Jobim tocava violão e flauta, um sopro agudo. Moacir Santos,

apesar de tocar piano como instrumento secundário, tinha como principais os

sopros graves do sax barítono e do clarone75

. Sua instrumentação, conforme

escrevi, tendia a descer aos graves, e muitas vezes suas melodias se confundiam

73

Destaco o LP Elizeth interpreta Vinícius, de 1963, no qual Moacir Santos escreveu os arranjos,

além de compor quatro, das onze faixas do álbum. Baden Powel é o violonista e compositor de

outras quatro músicas do LP, em parceria com Vinícius de Moraes que é o autor de todas as letras.

Pela similaridade com o álbum fundador da bossa nova, o Canção de Amor Demais, de 1958, com

os mesmos Vinícius de Moraes e Elizeth Cardoso, mas tendo Jobim como arranjador e compositor

e João Gilberto como violonista, pode-se dizer que Elizeth interpreta Vinícius antecipa este em

cinco anos, mas como que invertido, ou seja trazendo o lado “negro” do samba moderno, com

Baden Powell e Santos, ao invés de Jobim e João Gilberto. 74

Ver ERNEST DIAS, 2014 p. 66 – 72. 75

Lehmann relaciona, no interior de uma orquestra sinfônica francesa, a oposição entre

instrumentos graves e agudos e a posição social dos músicos executantes: “A oposição agudo-

grave e a riqueza do repertorio estruturam também as outras famílias de instrumentos. Assim, mais

da metade dos flautistas são filhos de executivos, enquanto o fagote vem bem atrás. Nos metais

encontramos a mesma oposição entre a trompa e o trompete” (2003, p. 87).

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aos baixos, por oposição à tradição europeia, onde as melodias são tecidas

predominantemente na região aguda, como na música de Jobim. As melodias no

alto se diferenciam dos baixos, que conduzem a harmonia de forma menos ativa

em Jobim do que em Moacir Santos.

Outra referência, levantada por LEHMANN (2003) e já citada

anteriormente, opõe instrumentos de sopros, ligados à tradição de ensino militar e

mais “corporais” aos instrumentos de cordas, ligados a tradição de ensino

artístico, em conservatórios e consideradas mais espirituais. Em Santos raramente

encontramos instrumentos da família das cordas (tradição artística) europeia, sua

atividade está voltada para seus arranjos de sopros (tradição militar), ligada às

orquestras de dança da qual fez ele parte, como a Orquestra Tabajara, entre

outras. Jobim, por outro lado, utilizava regularmente instrumentos de cordas em

seus álbuns, mais ligados às orquestra de música erudita, da tradição artística. A

obra de Jobim comprova amplamente seu gosto por instrumentos da família das

cordas em sua música, mas seus dois álbuns com nomes de pássaros, Matita Perê

(1973) e Urubú (1976), arranjados por Claus Ogerman, são álbuns sinfônicos

primorosos que exemplificam plenamente meu argumento.

Por fim, ambos os maestros trocaram o Brasil pelos EUA como residência

nos anos 1960, quando o mercado de trabalho para os músicos do samba moderno

encolheu drasticamente e aquele país lhes fereceu um ambiente onde a bossa nova

fazia sucesso. Mas Jobim voltou ao Brasil, enquanto Santos residiu até o fim de

sua vida, aos 80 anos em 2006, em Pasadena, CA, onde atuava como educador e

arranjador, além de lançar seus álbuns como solista e compositor.

O violonista e compositor Baden Powell relatou ter composto os famosos

afro-sambas, que se tornaram paradigmas da música afro-brasileira, em aulas de

composição modal com Moacir Santos76

. Moacir também trabalhou extensamente

76

Segundo Baden Powell em depoimento ao jornal O Globo, (publicado no Segundo caderno, de

24 de março de 2000): “Moacir (Santos) me passava os exercícios de composição em cima dos

sete modos gregos, os modos litúrgicos do canto gregoriano. Foram esses exercícios que viriam a

se tornar, mais tarde, os afro-sambas.”. ERNEST DIAS (p.70, 2014) chega a afirmar que os Ritmos

MS (material didático desenvolvido pelo compositor) estariam presentes em diversas composições

de alunos de Moacir Santos, como Roberto Menescal, em Rio e O barquinho (Menescal e Boscoli)

a despeito do caráter muito básico destes ritmos, que podem ser encontrados em muitas músicas da

MPB. No caso de Baden Powell, no entanto, a entrevista do compositor confirma a influência

direta da didática de Moacir Santos sobre suas composições.

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em música para cinema, sendo de sua autoria a trilha sonora do primeiro longa-

metragem de Caca Diegues, Ganga Zumba (1964), de temática negra, bem como

de Os Fuzis (1963), também o filme de estreia de Rui Guerra que ganhou o Urso

de Prata no Festival de cinema de Berlim, de 1964. Mais tarde, com a crise do

mercado musical brasileiro na segunda metade dos anos 1960, ele imigrou para os

EUA onde se tornou gosthwriter de importantes compositores de cinema de

Hollywood, como Lalo Schifrin e Henry Mancini77

.

2.3. A “cozinha” afro-brasileira: da culinária rítmica às altas melodias

Para se compreender como Santos realiza esta inversão referida, é preciso

ter em mente uma distinção fundamental para toda a música popular do século

XX: a subdivisão da atividade musical entre o grupo da seção rítmica - ou

cozinha, conforme o jargão no meio – e o dos solistas. A função da cozinha é a de

coadjuvante, a de prover o “acompanhamento” para os protagonistas, os solistas.

Não apenas no sambajazz, mas em quase todos os estilos musicais da indústria

cultural encontramos esta partição: de um lado os instrumentos da seção rítmica,

como a bateria, a percussão, e o contrabaixo, que são encarregados principalmente

de prover a levada, ou a batida78

e, de outro, instrumentos melódicos dedicados ao

solo, ou a contrapontos ativos, como os sopros e as cordas mais “altas” e a voz. Se

os solistas são a figura, a cozinha é o fundo. São os solistas que lideram o grupo,

que têm a palavra junto ao público e à imprensa, que ocupam os espaços centrais

no palco e cujo nome, frequentemente, está à frente do trabalho musical como um

todo. Os músicos que compõem a cozinha, por outro lado, muitas vezes sequer

são creditados nos álbuns, especialmente naqueles até os anos 1960 no Brasil.

O piano e o violão podem ser alocados a ambos os lados, dependendo de

sua função - como instrumento acompanhador, quando se juntam à seção rítmica,

ou como instrumento solista, quando se individualizam à frente do grupo se

destacando do mesmo e enunciando melodias. São instrumentos ambivalentes que

77

Sobre a música para cinema de Moacir Santos, ver BONETTI, Lucas Zangirolami. A trilha

musical como gênese do processo criativo em Moacr Santos. 2014. Dissertação (Mestrado em

Música). UNICAMP. 78

Isto é, uma base rítmico-harmônica que “sustenta” a música e se dá de forma mais ou menos

cíclica, próxima do ostinato, embora também com alguma liberdade de tecer micro-improvisações

rítmicas.

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podem acompanhar um solista, mas podem também acompanhar a si mesmos,

tocando solo, ou ainda, exercer exclusivamente a função solista, sendo

acompanhados por uma seção rítmica.

Esta oposição complementar no seio da atividade musical pode ser descrita

em termos topográficos de em cima e em baixo (BAKHTIN, 1999): os solistas são

a cabeça ou intelecto, dir-se-ia mais elevados, que expressam melodias, enquanto

que a cozinha remeta ao corpo, ào balanço da cintura que se move ao som dos

ritmos de base, como uma batucada de samba que “acompanha” uma melodia

elevada pela voz.

Esta ideia perpassa também a representação musical na partitura. Nesta

representação gráfica da música que permeia toda a música ocidental e tem grande

uso no sambajazz, os instrumentos solistas, que são normalmente os mais agudos,

situam-se na parte superior da “grade” (uma espécie de partitura-guia elaborada

pelo arranjador e que contém todos os instrumentos), enquanto que os

instrumentos da seção rítmica, mais graves como o contrabaixo, ou os de “altura

indeterminada” como a bateria e percussões em geral, situam-se na região inferior

desta representação79

. A disposição espacial no palco também reflete esta

topografia: os solistas em geral são dispostos em evidencia, à frente do palco. Já a

seção rítmica ocupa uma posição menos destacada, ao fundo.

Uma referência fundamental quando se trata da presente distinção

topográfica entre o alto e o baixo é o trabalho do pensador Mikhail Bakhtin, que

79

Note-se ainda que a definição clássica de certas percussões como instrumentos de “altura

indeterminada” traz o problema que consiste em definir um grupo de instrumentos não pelo que o

caracteriza positivamente, mas pelas suas características negativas, ou seja, justamente pela

“alturas” que lhe faltam se comparados aos instrumentos melódicos (sopros, cordas) ou melódico-

harmônicos (piano, violão), de “altura determinada”. Podemos relacionar esta diminuição do valor

das percussões quando caracterizadas negativamente como instrumentos de altura indeterminada à

distinção Levistraussiana, presente em O crú e o cozido (2010) entre o contínuo, associado à

natureza e ao discreto, associado à cultura. Conforme o antropólogo, as culturas humanas,

incluindo a ocidental, partem do contínuo de todos os sons cromáticos e ruídos possíveis na

natureza, e, ao passar ao estado de cultura, selecionam um número restrito de alturas sonoras – as

notas musicais - que se apresentam de forma individualizada, ou discreta, no interior do sistema

musical. Por isto os chamados instrumentos de altura indefinida representariam uma ameaça a este

sistema porque remeteriam ao contínuo natural dos sons, capaz de desumanizar, ou de remeter

novamente a um estado de indistinção com relação à natureza, de animalidade sem cultura – em

um transe percussivo, carente de um sistema de alturas humano.

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estudou o “realismo grotesco”80

de Rabelais presente na cultura medieval, e

voltado pra formas baixas de literatura humorística, com muitas referências a

sexualidade e às excreções corporais. Sua definição clássica destes vetores

simbólicos de grande alcance se adequam a este caso, uma vez que se trata da

distinção musical entre os instrumentos de cima, ou seja, os solistas, em oposição

aos de baixo, a seção rítmica.

No realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter formal ou

relativo. O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente

topográfico. O “alto” é o céu; e o “baixo” é a terra; a terra é o princípio de

absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e ressurreição

(o seio materno). Este é o valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto

cósmico. No seu aspecto corporal, que não está nunca separado com rigor do seu

aspecto cósmico, o alto é representado pelo rosto (a cabeça), e o baixo pelos

órgãos genitais, o ventre e o traseiro. (...). (BAKHTIN, 1999, ps. 18 e 19)

Nota-se em primeiro lugar a coincidência entre o baixo topográfico

referido por Bakhtin, e as frequências baixas, ou graves, uma região sonora

ocupada pela seção rítmica. São estas frequências baixas justamente aquelas que

fazem vibrar acusticamente o chão, em oposição às mais agudas, ou altas, que

tendem a viajar principalmente pelo ar.

Bakhtin assinala que esta descida ao baixo representa uma “degradação”,

mas também a possibilidade de um novo nascimento, como as plantas que, ao

degradarem-se, caem no solo fertilizando-o para o nascimento de outras. O baixo

também remete à sexualidade, com todas as suas conotações de degradação moral

e “baixeza”, mas que também se liga à fertilidade e à geração de uma nova vida.

Trata-se, portanto, de uma degradação que traz em si a regeneração. É deste

movimento cíclico que se nutrem Moacir Santos, o Tamba Trio, Édison Machado

e o sambajazz, de maneira geral, ao promover a fertilidade do que está em baixo,

dos instrumentos graves, da seção rítmica, da expressão musical negra, capaz de

jogá-lo novamente para cima:

Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a

do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a

gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades

corporais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo

nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas

80

Segundo o autor: “Denominamos convencionalmente ‘realismo grotesco’ ao tipo específico de

imagens da cultura cômica popular em todas as suas manifestações.” (BAKHTIN, 1999, p. 27)

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também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e

afirmação. Precipita-se não apenas para o baixo, para o nada, a destruição

absoluta, mas também para o baixo produtivo, no qual se realizam a concepção e

o renascimento, e onde tudo cresce profusamente. O realismo grotesco não

conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá vida, e o seio corporal; o baixo é

sempre o começo. Por isso a paródia medieval não se parece em nada com a

paródia literária puramente formal da nossa época. (1999, p. 19, grifo meu).

Moacir Santos expressa musicalmente a ideia de que “o baixo é sempre o

começo”. Ao erigir sua composição a partir das células musicais que nascem da

atividade da seção rítmica, mas que sobem aos solistas, e ao privilegiar os

instrumentos graves nesta atividade, o compositor procura esta fertilidade que

vem do baixo, criando este movimento para cima, em direção às melodias e

harmonias mais modernas de seu tempo, e produz os voos mais altos do

sambajazz. A combinação entre primitivismo e modernidade, assim como entre

intuição e estudo, simplicidade e sofisticação, corpo e alma por fim, atingem a

plenitude graças a este começo humilde, vindo de baixo, de Moacir Santos.

Quando os instrumentos são reunidos em um conjunto estabelece-se uma

hierarquia topográfica em um contínuo que vai dos instrumentos mais altos (ou

mais agudos) como violinos e vozes solistas aos mais baixos (ou mais graves),

normalmente contrabaixos e percussões, perigosamente próximas da natureza e da

animalidade. Neste cromatismo instrumental, metais (sopros), pianos e violões

transitam em geral na área intermediária.

Conta uma anedota bastante comum entre músicos cariocas que um

pianista, ocupante da posição superior de arranjador, em um grupo popular que

acompanhava um cantor – situado no topo da hierarquia – está dando as

indicações para o grupo sobre a próxima música a ser tocada durante uma

apresentação musical “na noite”. Ele se dirige ao seu subalterno imediato, o

violonista, e lhe dá as indicações necessárias para a execução da próxima música:

“É um samba lento, na tonalidade de dó maior. Modularemos para a tonalidade de

lá menor na segunda parte. Ao final, faremos uma coda na tonalidade inicial”, diz

ele, com a autoridade de arranjador, e pede ao violonista que repasse a informação

aos outros músicos, como em um “telefone sem fio”.

O violonista então repassa a informação ao seu inferior imediato, o

contrabaixista. Agora a informação já está deixando o domínio mais alto,

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representado nas figuras do solista cantor e do arranjador pianista, e descendo à

seção rítmica, da qual o violão faz parte neste tipo de conjunto. Por isto, o

violonista diminui também a precisão das informações ao repassá-las ao baixista

que supõe-se, poderá “acompanhar” mais satisfatoriamente de forma “intuitiva”,

sem necessidades de tantos intelectualismos musicais. Ele então diz

simplesmente: “É um samba lento em dó maior”. O baixista por sua vez, repassa

às informações ao baterista ainda mais diminuídas, omitindo qualquer informação

relativa à forma ou à tonalidade, até porque a bateria é entendida como um

instrumento “de alturas indefinidas”, e portanto toca independente da tonalidade e

suas modulações harmônicas: “É um samba lento”, diz o baixista, laconicamente,

ao colega baterista. O baterista por sua vez se volta ao último degrau da hierarquia

e diz ao percussionista, simplesmente: “Toca aí”.

Esta anedota demonstra de forma exemplar a hierarquia que conduz do

alto ao baixo, do pianista arranjador ao “acompanhador” mais desprestigiado, o

percussionista. Um índice desta desvalorização que atingia ainda mais fortemente

os chamados “ritmistas” no período estudado – categoria que engloba bateristas e

percussionistas – foi a prática, comum em muitos trabalhos, de remunerá-los com

um cachê menor com relação aos dos demais músicos. Isto se deve, em parte, à

ideia de que a atividade dos percussionistas exigiria uma formação menos

aprofundada, por não terem, em tese, que se ocupar de alturas musicais, mas

apenas de ritmo. No entanto, a prática de percussões e bateria, pelo contrário,

exige grande esforço de aprendizado dos músicos devido à precisão rítmica

exigida prioritariamente destes instrumentistas, bem como à grande

heterogeneidade e quantidade de instrumentos que são obrigados a praticar

regularmente, como exigência do mercado de trabalho.

Édison Machado é provocado em entrevista pelo também baterista de

sambajazz, Teomar Ferreira. Este lhe questiona sobre a desvalorização do

baterista no Brasil, em comparação aos colegas norte-americanos. Bateristas de

jazz tocam usando o prato, de som forte, na condução da música, chamando a

atenção sobre sua performance, enquanto que bateristas brasileiros o utilizavam

apenas para ataques esporádicos, complementares à orquestra, refletindo a posição

mais tímida e subalterna deste instrumentista no meio. Machado responde

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referindo-se ao fato de que os músicos da seção rítmica (bateristas, pandeiristas e

baixistas) eram chamados a fazer trabalhos profissionais, por um cachê menor que

o dos demais81

:

Teomar Ferreira: Eu queria que o Machado falasse aí da não conformação, das

bandas americanas usando prato o tempo todo e aqui, no samba, o prato só era

usado pra ataque.

Édison Machado: você lembrou muito bem. Porque o baterista brasileiro,

chamavam de boi morto. (risos) Era uma loucura. Chama o boi morto! E

ganhava, olha: pro trompete é 30 mil réis. Agora, pro boi morto, e pro

contrabaixo e pro pandeiro, é 20. Aceitam? O baile é lá no ponto do João Caetano

(...)82

Quero fugir à dicotomia música e sociedade e entender esta inversão

como, a um só tempo, musical e social. Música e sociedade se interpenetram

formando um contínuo que só com muito esforço poderia ser purificado a ponto

de se dividir, mas não sem um prejuízo sério para o entendimento do fenômeno

vivido. As organizações sonoras nascem das organizações sociais, venham elas de

uma instituição de ensino, de uma orquestra, ou da convivência “informal” entre

tribos indígenas ou jovens urbanos, e são continuamente por elas transformadas,

além de transformadoras destas mesmas organizações sociais. A música,

performática, efêmera, depende de ser sempre levantada a cada momento.

Isto não quer dizer que a música seja um microcosmo da sociedade, o que

também a deixaria, no fundo, em uma posição isolada, como um mapa que

descreve um território em pequena escala, mas sem fazer parte dele, realmente.

Mas por outro lado é impossível separar a música da atividade humana, ou social.

Pois os sons só se manifestam no mundo, entre pessoas.

Como Anthony Seeger, gostaria de me aproximar mais de uma

“antropologia musical” que de uma “antropologia da música”, entendendo a

81

Em minha experiência pessoal como músico também vivenciei situações profissionais em que

percussionistas ganhavam menos. Em uma ocasião ocorrida recentemente, em uma série de shows

com um grupo que fazia uma turnê longa pelo país, os percussionistas receberam exatamente a

metade do cachê que eu recebi como violonista contratado. Esta desvalorização dos

percussionistas, no entanto, tem diminuído drasticamente nas últimas décadas, em parte como

consequência de inversões semelhantes que ocorrem por vezes em outras músicas negras das

Américas, em que percussionistas e bateristas são chamados a ocupar um lugar à frente, mais

valorizados que todos os outros instrumentistas. 82

Entrevista concedida por Édison Machado à Radio Fluminense FM, em 1990, com a

participação de diversos músicos, entre eles o baterista Teomar Ferreira.

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musica como performance, e não como algo que se dá sobre um fundo social, na

cultura que lhe determinaria. Conforme Seeger:

Em vez de pressupor uma matriz social e cultural preexistente e logicamente

antecedente, dentro do qual a música acontece, (a antropologia musical) examina

a maneira como a música faz parte da própria construção e interpretação das

relações e dos processos sociais e conceituais. Ao enfatizar a performance e a

atualização dos processos sociais, e não leis sociais, essa antropologia musical

enfatiza o processo e a performatividade, tal como ocorre em muitos estudos de

antropologia contemporâneos à escrita deste livro (...). Todavia, em virtude da

natureza da música, ela apresenta uma perspectiva ligeiramente diferente a

respeito dos processos sociais que, sem substituir as demais, as complementa.

(2015, p.14 e 15, grifo meu)

Ao compor, Moacir Santos realizava esta inversão simultaneamente

musical e social, em que as esferas se interpenetram e se modificam mutuamente.

A música é fruto da sociedade, por suposto, mas também transforma o social e

tem agência sobre o mundo. Por isto Santos jamais hesitou em qualificar sua

música de “negra”, conforme foi exemplificado, negando a autossuficiência da

esfera musical (ou musicológica), ou mesmo este suposto descolamento do

universo dos significantes que lhe foi atribuída tantas vezes. Esta tese reivindica

para a música de Santos a capacidade de agência sobre o “social” através da

inversão que consiste em dar atenção primeira e fundamental à atividade da seção

rítmica, valorizando a cultura negra que trazia em seus ritmos escritos por notação

erudita europeia, deslocando os músicos da seção rítmica para o centro da cena

musicológica via um campo musical simbólico de efetivas consequências na vida

social.

Na dissertação de mestrado referida anteriormente (2007) analisei algumas

peças deste álbum central para a música negra brasileira, o Coisas (1965) expondo

a poderosa inversão ali realizada. Foi possível demonstrar nesta pesquisa, através

de ferramentas musicológicas de análise, mas também com o apoio de uma

entrevista realizada com o autor e dos depoimentos de músicos que trabalharam

com ele, bem como da experiência de ter, eu próprio, gravado um álbum sob sua

supervisão83

, que Moacir Santos compunha em primeiro lugar a parte da seção

rítmica e, a partir desta, ele derivava o restante da composição rítmica.

83

As canções de Moacir Santos (MUIZA ADNET, 2007)

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Seu procedimento pode ser descrito como uma inversão do procedimento

tradicional de composição e arranjo que a anedota acima reflete, e que deriva da

prática erudita. O procedimento tradicional consiste em descer progressivamente

da melodia (executada pelos instrumentos solistas) à harmonia e desta ao

acompanhamento rítmico-harmônico (seção rítmica), chegando por último à

bateria e as percussões. A levada destes últimos instrumentos é, muito comumente

nas práticas musicais da indústria cultural, racionalizada sob uma simples

indicação genérica ritmo, como “samba” ou “baião”, que os percussionistas

podem tocar “intuitivamente” a partir da simples evocação do gênero. Santos, ao

contrário, não se prendia a estes gêneros cristalizados, recriando-os em novos

ritmos de acompanhamento a partir de sua pesquisa pessoal tanto sobre a tradição

da percussão afro-brasileira, que conhecia e praticava regularmente, bem como de

sua pesquisa rítmica ligada à tradição erudita. Partindo destas recriações da base –

de baixo - ele “subia” a composição. Era desta criação sólida da base rítmica que

Moacir Santos retirava as células que iam constituir tanto os contracantos

melódicos quanto a melodia principal.

A valorização das percussões se liga, dentro do universo dos instrumentos

musicais, à valorização do mundo ou da vida. Pois os instrumentos musicais de

altura determinada – que são todos os outros, excetuando-se a percussão

(categoria que engloba a bateria) – estão inscritos no sistema tonal ocidental, com

suas harmonias e intervalos “musicais”, com suas doze notas “bem temperadas”,

isto é, afinadas de acordo com este sistema. As percussões e a bateria, justamente

por estarem excluídos daí, se aproximam da natureza e seu contínuo de sons, e se

afastam da cultura, com suas doze notas discretas, se introduzirmos aqui a já

citada distinção de LÉVI-STRAUSS (1993).

Além disso, as percussões tem uma grande abertura: incorporam qualquer

objeto do mundo como instrumento musical, da caixinha de fósforos à frigideira,

passando pela lista telefônica tocada com vassourinha, tipicamente usada na bossa

nova. Virtualmente tudo pode fazer parte da gama de instrumentos do

percussionista e do baterista. Estes iniciam sua carreira em geral na infância,

batucando em panelas e móveis, ou na rua, percutindo até mesmo em carros,

garrafas, ou qualquer objeto que se preste e esta atividade, incluindo o próprio

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corpo. Esta sua liberdade de interação musical com o mundo penetra sua prática e,

como resultado, os sets de instrumentação destes músicos costumam ser

extremamente pessoais, ligados à história de vida destes músicos.

O percussionista e baterista Robertinho Silva, que conheceu o Beco das

Garrafas e o sambajazz ainda muito jovem, mantem em seu apartamento uma

enorme coleção de instrumentos de percussão recolhidos ao redor do globo, nas

inúmeras viagens internacionais que fez como músico84

. Silva tocou por três

décadas com Milton Nascimento, além de ter participado de muitos outros

trabalhos de músicos no Brasil e no exterior, como o do jazzista Wayne Shorter.

Diversos tipos de tambores, baquetas, apitos de caça com os mais variados sons e

até mesmo uma pequena frigideira são habitualmente usados por ele em shows e

gravações.

Cada um destes instrumentos tem um histórico ligado às experiências

pessoais do músico, provindo um deles de uma eventual turnê a África, aquele

outro de uma viagem ao Oriente Médio, e assim por diante. As técnicas aplicadas

ao instrumento também podem ser extremamente pessoais: escolhe-se esta

baqueta, depois se experimenta outra para em seguida percutí-lo com as mãos.

Dir-se-ia que as variações de possíveis técnicas de execução são tão grandes como

a vida, quando se fala de percussões. E são também muito pessoais,

frequentemente, ligadas à experiência pessoal do músico, conforme já foi

afirmado.

O “samba no prato”, atribuído a Édison Machado, tornou-se uma técnica

conhecida, quase um padrão de execução do samba moderno. Mas, curiosamente,

ela nasceu de um incidente pessoal quando o baterista tocava em um baile,

possivelmente uma gafieira, conforme o relato de Machado, quando a pele da

caixa furou e ele passou a percurtir o ritmo de samba no prato de condução.

Édison Machado relata o surgimento da técnica: “foi meio sem querer, eu estava

84

Este pesquisador tocou profissionalmente muitas vezes com Robertinho Silva ao longo dos

últimos 15 anos, memória de onde deriva esta observação.

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tocando num baile e furei o couro da caixa, e como o baile não podia parar,

comecei a tocar no prato ‘adoidadamente’ e todo mundo gostou” 85

.

Os instrumentos que deram origem à batucada de samba na tradição

carioca foram muito comumente a faca e o prato, usados em festas como as da

casa da Tia Ciata, onde se tocava o maxixe não com pandeiros e tamborins, mas

com talheres e louças, além das palmas da mão (SANDRONI, 2001). Podemos

ver, no documentário Saravah (2005), João da Baiana percutindo prato e faca, de

forma muito tradicional, junto a Pixinguinha ao sax tenor e Baden Powell ao

violão. Nesta cena, o sambista fundador, com seu notável suingue e precisão

rítmica, evidencia grande intimidade com a prática destes verdadeiros

instrumentos de percussão. Não espanta, portanto que, no meio musical brasileiro,

a seção rítmica seja chamada muito comumente de cozinha, inclusive pelos

músicos do sambajazz.

Neste sentido, diz a letra de batuque na cozinha, de João da Bahiana, que

se tornou um sucesso na gravação de Martinho da Villa:

Batuque na cozinha

Sinhá não quer

Por causa do batuque

Eu queimei meu pé

Não moro em casa de cômodo

Não é por ter medo não

Na cozinha muita gente sempre dá em alteração

Batuque na cozinha (...)

Então não bula na cumbuca

Não me espante o rato

Se o branco tem ciúme

Que dirá o mulato

85

Entrevista para a revista O Combate (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 1971).

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Eu fui na cozinha

Pra ver uma cebola

E o branco com ciúme

De uma tal crioula

Deixei a cebola, peguei na batata

E o branco com ciúme de uma tal mulata

Peguei no balaio pra medir a farinha

E o branco com ciúme de uma tal branquinha

Então não bula na cumbuca

Não me espante o rato

Se o branco tem ciúme

Que dirá o mulato

Mas o batuque na cozinha (...)

Eu fui na cozinha pra tomar um café

E o malandro tá de olho na minha mulher

Mas, comigo eu apelei pra desarmonia

E fomos direto pra delegacia

Seu comissário foi dizendo com altivez

É da casa de cômodos da tal Inês

Revistem os dois, botem no xadrez

Malandro comigo não tem vez

Mas o batuque na cozinha ...

Mas seu comissário

Eu estou com a razão

Eu não moro na casa de arrumação

Eu fui apanhar meu violão

Que estava empenhado com Salomão

Eu pago a fiança com satisfação

Mas não me bota no xadrez

Com esse malandrão

Que faltou com respeito a um cidadão

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Que é Paraíba do Norte, Maranhão

Batuque na cozinha ...

Note-se a dubiedade do termo comer no Brasil, que se liga também a

sexualidade e, portanto, aos órgãos genitais; e que se opõe à cabeça como o baixo

se opõe ao alto. O sexo está presente neste samba na questão relativa à disputa por

uma mulher, que se dá na cozinha e gera “desarmonia”, conforme relatado no

samba acima. “Na cozinha muita gente sempre dá alteração”. Como o elemento

musical da harmonia pode ser considerado mais alto que o ritmo, porque

caracteriza a musica ocidental e ocupa uma posição intelectual neste campo

(WEBER, 1995), a desarmonia - sua negação - se dá tanto como afirmação da

atividade da seção rítmica, quando da atividade humana do “mulato” sobre o

“branco”. (Então não bula na cumbuca/Não me espante o rato/Se o branco tem

ciúme/Que dirá o mulato).

Neste trecho, ainda, a mulher é associada a “cumbuca”, onde se come.

Assim temos a atividade seção rítmica (batuque) associada à comida (cozinha) e

esta por sua vez ligada à sexualidade e à questões raciais (ciúmes entre brancos e

mulatos), pois a batucada, como a cozinha é atividade de descendentes de

escravos, os “mulatos”, no Brasil. Conforme Rafael de Menezes Bastos:

A apontar ainda para a abrangência e fundamentalidade do conceito de ritmo no

universo aqui em toque, note-se como a expressão nativa, seção rítmica, engloba

não somente a percussão e a bateria mas também o baixo, o piano e a guitarra

base (ou seja, a harmonia) dos grupos musicais populares do país. Fechando o

raciocínio, observe-se como esta seção rítmica (também chamada de base) é

também dita a cozinha, epíteto que se sem dúvida recorda a construção como

negro do ritmo no Brasil de maneira discriminatória (Menezes Bastos, 1992a;

1992c; e 1993), não deixa de apontar a absoluta infra-estruturalidade musical -

sob a metáfora culinária - do parâmetro aqui em toque. (BASTOS, 1996)

Observa-se na letra deste samba de João da Bahiana que a batucada (a

seção rítmica), a cozinha (comida) e o sexo se fundem em uma simbologia

englobante do baixo. Todas estas questões estão entrelaçadas, não sendo possível

isolar as questões musicológicas sobre a atividade da seção rítmica e sua relação

com melodias e harmonias das questões tanto alimentares, quanto sexuais ou

raciais.

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Por isto as questões dos músicos de sambajazz relativas às levadas de

samba, (a serem “modernizadas” sem perderem sua característica de samba), e a

posição da bateria e das percussões na música se ligam umbilicalmente às estas

festas populares, onde se supõe comida farta e boa música, para que seja bem

sucedida. Pois estes músicos também tocavam regularmente em festas, gafieiras,

casas noturnas onde se consumia bebidas e comidas, e onde a sexualidade era, no

mínimo, presente.

A fim de melhor compreender esta dicotomia básica entre o alto e o baixo

que se desdobra de tantas formas, voltemos a Bakhtin, que assinala na obra de

Rabelais a presença constante de imagens que remetem à abundância e à ‘boa

mesa”, em festas com fartos banquetes, e sua ligação com o mundo do trabalho:

O comer e o beber são uma das manifestações mais importantes da vida do corpo

grotesco. As características especiais desse corpo são que ele é aberto, inacabado,

em interação com o mundo. É no comer que essas particularidades se manifestam

da maneira mais tangível e mais concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele

engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si, enriquece-se e

cresce às suas custas. O encontro do homem com o mundo que se opera na

grande boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais antigos e

marcantes do pensamento humano. O homem degusta o mundo, sente o gosto do

mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si. (...) Esse encontro com

o mundo na absorção de alimento era alegre e triunfante. O homem triunfava do

mundo, engolia-o em vez de ser engolido por ele; a fronteira entre o homem e o

mundo apagava-se num sentido que lhe era favorável coroamento do trabalho e

da luta. O trabalho triunfava no comer. O encontro do homem com o mundo no

trabalho, sua luta com ele terminava coma absorção do alimento, isto é, de uma

parte do mundo a ele arrancada. (...) A luta do homem com o mundo que

terminava com a vitória do primeiro (1999, p.245).

A ideia do comer como um ato complementar ao trabalho, uma vez que

ambos se dão coletivamente, converge no Brasil, um país de escravidão extensa e

relativamente recente, à atividade dos negros escravos e seus descendentes, que

exerciam o trabalho, na lavoura, mas também na cozinha, onde se prepara a

comida. A cozinha é, portanto, o local de festa, ainda que reprimida (“batuque na

cozinha sinhá não quer”, diz João da Bahiana). E também é o lugar do trabalho

dos cozinheiros afrodescendentes. É na cozinha que se prepara a comida farta da

boa festa, assim como é na cozinha (ou seção rítmica), que as percussões de base

afrobrasileira preparam as levadas, este alimento rítmico sem o qual as melodias e

harmonias ficariam sem corpo, fantamasgóricas. Daí a grande valorização da

cozinha no sambajazz.

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Esta complementariedade entre comer e trabalhar remete, por sua vez, à

dupla condição do músico de sambajazz entre o lazer e o trabalho, pois seu labor

em casas noturnas era, por um lado, o lazer de todos, público e músicos, sem

deixar de ser também o sustento financeiro, com hora e dia marcado, e

recompensa em dinheiro, ainda que pequena. E era ainda um meio de fazer

contatos profissionais com outros músicos e contratantes, ou seja, uma “vitrine”

para seu trabalho. Esta dubiedade entre lazer e trabalho certamente não era vivida

somente pelos músicos de sambajazz, mas é intrínseca à profissão.

Acresce o fato de que hoje o músico “popular” está inserido em uma

indústria cultural de grande alcance, capaz de representar uma parcela

considerável do Produto Interno Bruto nacional (MORELLI, 1991). A despeito do

enorme crescimento da indústria cultural brasileira desde os anos 1970,

movimentado por empresas multinacionais de grande porte e plenamente inseridas

no capitalismo moderno, ainda hoje músicos relatam ouvir a seguinte pergunta,

quando dizem serem músicos: “mas você trabalha com o quê?”. A frase,

constantemente ouvida por estes profissionais, demonstra que a música está

muitas vezes associada ao lazer no imaginário contemporâneo, e em oposição ao

trabalho.

2.4. Johnny Alf e as contradições do samba moderno

Alf é normalmente posicionado em um lugar fundador quando referido nas

histórias da música brasileira do período abordado. É tido por muitos como o “pai

da bossa nova” (atribuição que disputa com João Gilberto nas mitologias de

origem do samba moderno), ou como o precursor mais importante do sambajazz.

Baden Powell, por exemplo, assim como muitos músicos que viveram o período

inicial do movimento no Rio de Janeiro, afirmam o pioneirismo de Alf na

formulação do samba “moderno” de então, bem como seu caráter reservado,

“escondido”: “Conheci Johnny Alf tocando muito bem piano, tinha umas músicas

bem avançadas, com estilo já moderno e querendo modificar as coisas e ninguém

fazia isso. Quem fazia era Johnny Alf, nos bares, escondido. ” (Baden Powell.

MELLO, 1976, p.83, grifo meu)

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O músico Ion Muniz comenta, em suas Crônicas (s.d.), a misteriosa

trajetória de Alf:

Para mim é um mistério que Johnny não tenha um destaque proporcional a seu

talento. Ele já compunha bossa nova na década de 40. Estava anos na frente.

Johnny não tem outras ambições além de tocar sua música. É, como disse

(Gilberto) Gil, “um músico simples dos bares da vida”.

Revendo a escrita da história da bossa nova, na qual ele é sempre citado,

Alf enfatiza o percurso da criação, em oposição à idéia de “insight” artístico

instantâneo. Ele se posiciona contra a versão que entende a bossa nova como um

salto modernizador para o futuro. Note-se ainda a ênfase nos “compositores pouco

comerciais”, o que denota a oposição entre “arte” e “comércio” como definidora

de valor musical, nesta fala de Johnny Alf que consta de sua biografia:

Toda essa época, anos 1940, é muito mal estudada. Quase não é mencionada,

e é a que marcou a transição do que é tradicional para o que foi a bossa, em

que as duas coisas se engatam. As músicas do Custódio Mesquita, por

exemplo, embora escritas do modo tradicional, já eram avançadas

harmônica e melodicamente. Você sente isso em Noturno, feita nos moldes

atuais, em Rosa de Maio. (...) Foi numa música do Custódio, Velho Realejo, que

eu tomei conhecimento pela primeira vez de um acorde dissonante. Na hora,

achei esquisito. Eu acho que antes da Bossa Nova já tinha muita gente

fazendo bossa nova. Quando eu estudei piano eu me liguei muito nos

compositores pouco comerciais da música brasileira. O Valzinho, autor de Doce

Veneno; o José Maria de Abreu; o Bonfá; o Lírio Panicalli; o Radamés Gnatalli,

que fez Amargura. Eu sou da opinião que ninguém inventa, todo mundo tem

uma fonte. (RODRIGUES, 2012, p.16, grifos meus)

Johnny Alf nasceu no Rio de Janeiro, em 1929, filho de um pai militar

(“cabo ou soldado, uma coisa assim”, segundo ele) que pereceu durante a

Revolução Constitucionalista em São Paulo, em 1932. Sua mãe era empregada

doméstica de uma família na Tijuca, RJ, que teve parte importante em sua criação.

Segundo Alf, já na adolescência ele havia “estudado piano clássico, feito o ginásio

e científico, curso de inglês, francês, desenho, um pouco de pintura”, levando uma

vida de classe média, algo incomum no Brasil para um rapaz de ascendência negra

como ele.

Esse pessoal que me criou cada um tocava um instrumento, mas não como

profissional. Minha madrinha estudou piano e violão; meu padrinho tocava

cavaquinho muito bem, tentou tocar pistom; outro padrinho não tocava

instrumento, mas gostava muito de música; minha tia tocava piano; outra tia

tocava violino. Era um pessoal que curtia música para sarau, não por

profissionalismo. O fato de eles gostarem de música, fazerem aquelas festas

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em casa, aniversários, tudo isso ajudou muito a minha percepção musical

desde bem cedo. Quando eu era criança de sete, oito anos, eu já gostava de

tocar com dois dedos. Uma pessoa amiga da família, prima do rapaz que casou

com a minha madrinha, a professora Geni Borges, sentiu que eu tinha ouvido e

recomendou ao pessoal que eu estudasse. Aí minha madrinha falou: “Se você

passar pro Pedro II, eu ponho você estudando piano.” Eu era bom estudante, não

ótimo, mas quando ela falou isso, eu engrenei para passar nesse concurso, que era

muito puxado, e passei em 13º lugar. Já comecei a aprender por pauta. Só

toquei de ouvido quando tinha seis pra sete anos, mas com nove já estava

tendo aula. Eu estudei uns cinco ou seis anos. Teoria estudei uns quatro meses,

sem piano. Minha professora, vendo que eu tinha inclinação, me ensinou de um

modo bem rigoroso, com ditados musicais. Quando eu resolvi ser profissional,

isso me valeu bastante na formação de um trio, para escrever arranjo, essas

coisas.” (RODRIGUES, 2012, p.13)

Alf estava longe de preencher o estereótipo do músico negro brasileiro

como alguém que, apesar da origem humilde e da ausência de educação formal,

supera sua condição desfavorecida com o “balanço”, a “alegria” e o talento

“naturais” para música nestes indivíduos, entendidos como depositários de uma

“musicalidade” nacional ou racial. Pelo contrário. Alf era um negro de formação

artística erudita. Esta condição incomum – de negro e erudito a um só tempo – era

infelizmente entendida no Brasil, e talvez o continue sendo, como uma

contradição, em um país baseado na extensa escravidão que cultivou até fins do

século XIX, e que teve como consequência um abismo social entre descendentes

de escravos e da população de origem europeia. Em uma sociedade assim dividida

- e a pouco mais de meio século da extinção do sistema escravista, no período da

infância de Alf, que nasceu em 1929 - parece claro que qualquer pretensão à

erudição, mesmo no campo das artes, está naturalmente alocada à porção

minoritária superior de ascendência europeia da população. Cabia pois, ao “povo”,

aos descendentes de escravos, de índios, ou de europeus de origem humilde, essa

musicalidade entendida como “natural” ao brasileiro, que estaria inscrita no

“inconsciente” da nação (ANDRADADE, 2006).

A “superação” de Alf, portanto, consiste menos em sua ascensão social

como artista negro de sucesso e mais em sua recusa em preencher papéis sociais

normalmente designados a indivíduos como ele. Pois Alf poderia ter se tornado

um “negro de alma branca”, um músico erudito talvez, ou alguém com uma

carreira formal de médico ou engenheiro, como desejava a família que o criou. Ou

poderia ter trilhado o caminho reservado a músicos negros, ou “populares” que

faziam o “samba de morro” autêntico, seguindo a trilha do negro humilde que

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transcende sua condição material através do samba, o talento e a sabedoria

“popular”. Mas Johnny Alf escolheu o caminho mais complexo: quis ser ele

mesmo, negro e intelectualizado, enfrentando o preconceito contra a sua condição.

Abraçou o jazz negro e viu através dele a música brasileira.

Terminei o científico com 17 anos. Aí a família me pôs trabalhando nos

escritórios da Leopoldina Railways. Essa coisa de contabilidade. Mas fiquei

pouco tempo. Eu queria ser músico profissional, queria tocar, e a família que

me criou não queria. Também não queriam me deixar largar o emprego e

servir o Exército, mas insisti e acabei indo pra Escola de Sargentos de

Armas, em Realengo. Eu quis como abertura de vida e realmente me valeu

bastante. Eu já tinha o científico, então os oficiais sentiram que eu tinha certa

estrutura, e eu fiquei como secretário deles, datilógrafo. Me deram certa liberdade

de disciplina, era tratado quase como igual. O que aprendi de mais importante

no quartel foi a independência e quando saí, com outra cabeça, decidi morar

sozinho e arranjar um emprego de pianista. (RODRIGUES, 2012, p.17)

Na infância, junto aos estudos de música erudita, Alf ouvia rádio e também

abraçou a “música popular brasileira” de então, que lhe chegava por este veículo.

Por fim, decidiu ser um jazzista completo, de alto nível técnico e artístico. A

escolha do jazz por um músico negro brasileiro não deve ser subestimada, de

forma simplista, como mera “americanização”. Pois, antes de ser entendida como

a música nacional dos EUA, esta foi ouvida também como a música de minorias,

de uma parte desfavorecida do país, em que os que se destacavam eram

frequentemente negros.

O fator principal de diferença do jazz com relação à música erudita do

século XIX era justamente o que havia de herança popular negra ou africana nela,

os blues, os spirituals. No jazz, os negros não eram simplesmente entendidos

como “intuitivos” ou, na melhor das hipóteses, dotados de uma sabedoria popular

anônima, conforme é comum se pensar sobre “músicos populares” no Brasil. Nem

eram, como na divisão do trabalho da música erudita, apenas instrumentistas

encarregados de uma reprodução o mais fiel possível das intenções do compositor,

este autor intelectual onipotente no meio.

No jazz, negros internacionalmente famosos como Duke Ellington ou

Count Basie eram autores de obras extensas escritas em partituras, com espaços

grandes reservados para a improvisação e a interação do solista improvisador com

a orquestra, como é comum neste gênero. Estas foram consideradas tão complexas

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e avançadas intelectualmente quanto as sinfonias da música erudita européia,

constituindo também uma grande contribuição para esta tradição ocidental no

século XX.

2.5. A racionalização das músicas negras

A peça de temática negra de Vinícius de Moraes, o Orfeu da Conceição,

de 1956, pode ser considerada o marco inicial do movimento da bossa nova por

trazer as primeiras parcerias entre Tom Jobim e o poeta e, portanto, é também

pertinente ao sambajazz, dada a proximidade dos movimentos. O contexto em que

foram compostas as músicas da peça Orfeu da Conceição fornece um certo campo

de questões bastante significativas que se apresentavam com relação à identidade

e a prática profissional dos músicos no Rio de Janeiro nessa época.

O problema que se apresentou para Jobim e Moraes quando da

composição das músicas do Orfeu da Conceição é o da introdução do elemento

“negro” em música racionalizada por padrões europeus clássicos. A música do

Orfeu foi escrita e pensada para a performance por uma orquestra sinfônica no

Theatro Municipal do Rio de Janeiro, acrescida de cantores e instrumentos

“populares” embora não ausentes da tradição européia como percussões e violão.

E foi fixada pelos autores em uma partitura a ser executada por instrumentos

europeus afinados conforme o sistema musical temperado, ou seja, racionalizados,

no sentido que Max Weber lhe dá em Fundamentos racionais e sociológicos da

música (1995), texto fundador da sociologia da arte.

O sistema temperado com sua “harmonia de acordes” (WEBER, 1995), a

partir do qual se constrói também a música negra, foi desenvolvido por músicos,

fabricantes de instrumentos e intelectuais da Europa ao longo dos séculos. Este

sistema se tornou hegemônico desde o século XIX em todo o ocidente, com

escassas exceções. Esta hegemonia se dá também na música popular urbana das

Américas, mesmo naquelas nas quais os instrumentos tradicionais da orquestra

sinfônica não estão presentes, uma vez que todos os demais instrumentos

ocidentais também são construídos e afinados de acordo com o sistema

temperado. A música erudita e o sistema temperado se apresentam então como a

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base material e cultural sobre a qual vão se construir as diferentes músicas negras

ao longo do século XX, em processo incessante e que continua se dando hoje.

Um aspecto da racionalização musical menos abordado por Weber é o do

ritmo, que será considerado central no campo da música e das artes no século XX.

A música pode ser dividida basicamente, para efeitos de análise e notação, em

dois vetores: o das alturas (que se divide em harmonia e melodia) e o do ritmo,

que se refere ao pulso, e que implicam na dança e na corporalidade.

A música erudita européia, que remete à música medieval litúrgica, foi

uma prática que sempre favoreceu o desenvolvimento das alturas, melódicas e

harmônicas sobre o desenvolvimento rítmico - um campo mais intelectual e

menos corporal, neste sentido. No século XX, no entanto, ocorreu uma inversão

desta tendência, com a valorização do ritmo. Esta mudança está ligada ao olhar

europeu sobre as culturas ditas “primitivas”, especialmente a africana, cujos

indivíduos se tornaram parte da cultura do Novo Mundo como consequência da

instituição da escravidão. E também a um esgotamento do campo das alturas,

conforme muito se afirmou em fins do século XIX. De acordo com Griffiths

(1989), após o extremo desenvolvimento da capacidade descritiva e dramática da

harmonia em fins do século XIX - ocasionada pelo sistema tonal - em dramas

como Tristão e Isolda, de Richard Wagner, a música ocidental se viu em uma

crise, e pareceu a muitos que as possibilidades da harmonia haviam se esgotado

após um século de romantismo.

A resposta mais satisfatória e popular à esta crise veio em 1913, com o

escandaloso balé A Sagração da primavera, de Igor Strawinsky, onde o

compositor abriu mão do desenvolvimento harmônico, concentrando-se em um

vigoroso ritmo complexificado por polirritmias e superposições formais. A

interrupção do discurso harmônico, que ligava a música a uma temporalidade

mais literária, discursiva, com introdução, desenvolvimento e fim, dá lugar a um

tempo “primitivo”, tribal e circular, onde o ritmo e a reiteração estruturam a

música e a dança, neste balé coreografado por Nijinski, que descreve um ritual

“pagão” onde ocorre sacrifício de uma jovem. Stravinsky, compositor erudito de

origem russa, será o propositor desta questão musical maior do século XX: o

desenvolvimento rítmico, característica de muitas músicas africanas e asiáticas

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pelas quais o músico ocidental começa a se interessar, e que converge com o

tempo acelerado do mundo urbano, passa a ocupar o centro da cena.

Antecipado por Strawinski, o tempo metronômico das vitoriosas danças

populares do século XX - jazz, bolero, samba, salsa e etc - ganharia o mundo via

indústrias culturais, em oposição ao tempo mais maleável, já fora de moda, da

música erudita romântica, com suas “interpretações” e seus “rubatos”, embora

esta traga o germe do ritmo racionalizado que tomará a música ocidental. Pois,

paradoxalmente, é justamente esta racionalização do tempo que promoverá o

corpo e a dança, antes recalcados pela tradição ocidental enraizada no cantochão

medieval.

Por este motivo o jazz foi muitas vezes apresentado no início do século

XX como um “ritmo maquinal”, cosmopolita e surgido da acelerada vida moderna

nas grandes cidades. Se a música erudita uniformiza os músicos de suas

orquestras, em seus corpos treinados para a performance em naipes de

instrumentos, em suas roupas padronizadas, e na interpretação musical, e exige

silêncio de sua audiência, a orquestra de jazz promoverá brilhantes solos

individualizados dos seus músicos e a dança na plateia, exaltando a corporalidade.

Este foco no ritmo que caracteriza o jazz em seu surgimento suscita questões

relacionadas à incorporação do negro na música e, portanto, nas jovens sociedades

americanas. Segundo José Miguel Wisnik:

A música européia se juntou com a africana no território das Américas. Esse

evento é produtor de uma extraordinária força multiplicadora: ele contribui para

criar experiências de tempo musical de uma grande complexidade e sutileza. O

ímã da música puxa agora de novo para o questionamento e a criação sobre o

pulso, o tempo, o ritmo. Essas músicas devem ser lidas ou escutadas em nova

situação. Elas fazem parte do processo de codificação entre som, ruído e silêncio

como modos de admitir fases e defasagens, de trabalhar sobre o caráter

simultaneamente rítmico e arrítmico do mundo (WISNIK, p.55, 1989)

A construção das músicas negras americanas é, portanto, um processo que

se dará fortemente a partir do início do século XX e que se situa em uma

problemática maior que é a da incorporação do negro nas sociedades de passado

escravista – um histórico problemático cuja resolução passa necessariamente pela

invenção social da cultura negra, com suas músicas que tomaram o mundo no

século XX.

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2.6. O Atlântico negro

Um referencial importante para esta pesquisa é o trabalho do sociólogo

Paul Gilroy, que cunhou o conceito de Atlântico negro (2001) para abordar, de

forma alternativa ao entendimento nacionalista clássico, as complexas relações

que se dão nas culturas negras interligadas pelo Oceano Atlântico ao longo dos

últimos séculos. Gilroy apresenta a produção negra neste âmbito como uma

“contracultura da modernidade” (mais do que um “contradiscurso”, meramente

intelectual) e apresenta a música, entendida também como “arte performática”,

como o mais forte meio de expressão desta cultura, em detrimento ao foco na

“textualidade”.

O sociólogo atribui importância, portanto, à análise não apenas do discurso

falado, ou textual, mas principalmente da performance musical, que seria

particularmente desenvolvida nestas culturas negras atlânticas. Isto porque,

conforme o autor:

O poder e o significado da música no âmbito do Atlântico negro têm crescido

em proporção inversa ao limitado poder expressivo da língua. É importante

lembrar que o acesso dos escravos à alfabetização era freqüentemente negado sob

pena de morte e apenas poucas oportunidades culturais eram oferecidas como

sucedâneo para outras formas de autonomia individual negadas pela vida nas

fazendas e nas senzalas. A música se torna vital no momento em que a

indeterminação/polifonia lingüística e semântica surgem em meio à

prolongada batalha entre senhores e escravos. Esse conflito decididamente

moderno foi resultado de circunstâncias em que a língua perdeu parte de seu

referencial e de sua relação privilegiada com os conceitos. (2001, pág. 160,

grifos meus).

A música se mostra, portanto, mais capaz de dar conta do “terror racial”

vivido pelos escravos e seus descendentes no Atlântico Negro, isto é, no entorno

do Oceano Atlântico que o “limitado poder expressivo da língua”. Neste âmbito, a

linguagem e a “escrita da história” se ligam mais fortemente à construção da

nacionalidade. Segundo Valter Sinder:

(...) diversos autores já analisaram a ideia de nacionalidade enquanto resultado de

todo um processo de formação e de construção que se fez, e continua a se fazer,

através dos mais variados instrumentos socioculturais. Entre esses instrumentos,

pode-se apontar como sendo de fundamental importância a escrita em geral e a

escrita da história em particular (2000, p. 254).

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A entrada do negro, primeiro escravizado e depois, liberto, representa um

acontecimento fundamental para as sociedades americanas. Os escravos e seus

descendentes sempre se mostraram propensos a se expressar musicalmente. Assim

as práticas negras foram incorporadas aos discursos nacionais (que privilegiam a

figura do “mulato”, no caso brasileiro sob a ideologia da “mistura”) e ganharam

expressão em todo o continente americano desde as primeiras décadas do século

XX, no jazz, no samba, na cumbia, na salsa e nos diversos “ritmos” que a política

cultural dos governos ou das elites intelectuais quis significar como ritmos

nacionais.

No entanto, a prática destes “ritmos” nunca coincide exatamente com as

fronteiras políticas e linguísticas das nações. Pois os gêneros musicais tendem a

viajar muito livremente através do rádio, do cinema, da televisão, da internet, de

partituras, dos turistas e dos próprios músicos que levam suas práticas a outras

regiões do continente. Estes gêneros sofrem pouco a barreira linguística pois,

mesmo quando cantado em línguas ininteligíveis - como soa o inglês, por

exemplo, para muitos brasileiros não bilíngues ouvintes de canções americanas ou

inglesas, como as dos Beatles, - estas músicas são fruídas por seu aspecto total e

ultrapassam a questão idiomática sem maiores contratempos.

Se é verdade que a palavra, quando presente, não pode ser excluída da

expressão musical, por outro lado ela não se mostra essencial na fruição musical,

conforme pode parecer a pessoas envolvidas frequentemente com a linguagem

escrita, como intelectuais e escritores (INGOLD, 2007). Se é inegável que as

pessoas gostam de cantar as canções em suas línguas, tanto no Brasil quanto em

outros países, não é menos verdade que elas também apreciam largamente

canções em línguas estrangeiras que não compreendem, e que nem por isto

despertam menor atração sobre as mesmas. O fato de que as canções em língua

inglesa tiveram enorme aceitação ao longo do século XX nos mais diversos países

não anglofônicos ao redor do mundo é uma prova ampla e eloquente deste fato86

.

Gilroy entende esta rede da expressão intelectual que se forma no entorno

do Atlântico Negro como um rizoma, conforme Deleuze e Guattari (2009), e

86

“O som das palavras no sambajazz” será discutido no capítulo 4 desta tese.

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critica a “suposição irrefletida de que as culturas sempre fluem em padrões

correspondentes às fronteiras de estados nações essencialmente homogêneos”. Da

mesma forma, entendo que, para além da unidade cultural nacional - que não

quero menosprezar de forma alguma, mas que pretendo relativizar - existem

outras grandes redes que também incluem o sambajazz e que não coincidem

necessariamente com as fronteiras da nação. Uma das vantagens do modelo

rizomático de Deleuze e Guattari com relação ao modelo “arborescente”

tradicional mais estável, é que o rizoma contempla a constante mutação que se

observa empiricamente nas cartografias das práticas musicais.

Não se trata, portanto, de igualar todas as expressões regionais ou

nacionais do Atlântico Negro, ou de negar o fluxo norte-sul de “influência”, mas

pelo contrário, de compreendê-las melhor a partir de suas relações que se dão de

forma complexa, com diversas “realimentações” (ou “feed backs”) e caminhos

inesperados e que não se revelam à luz de um modelo nacionalista clássico.

A acusação simplista feita ao músico praticante de sambajazz no Brasil, ou

de rock ou de hip-hop, como alguém alienado de sua própria realidade ao abraçar

a música do suposto invasor estrangeiro, se afigura em verdade como uma forma

de elitismo, em muitos casos. Pois estas reprimendas nacionalistas aos músicos do

sambajazz partiam frequentemente de jornalistas de voz amplificada pela grande

imprensa a que tinham acesso privilegiado, a exemplo de Sergio Porto, conforme

veremos nos capítulos 5 e 6. Estes intelectuais pretendem regrar, pela via da

palavra escrita em periódicos, uma produção musical que simplesmente não se

guia exclusivamente pelas ideologias nacionais, sem que lhes descarte totalmente,

por outro lado. Assim, no sambajazz procura-se justamente praticar o jazz

internacional, mas sem que se perca a música nacional, o samba. Esta aparente

“contradição” lógica ao olhar do nacionalista, é solucionada facilmente de forma

musical, onde se apresenta uma “conjunção” entre o samba e o jazz, entre a

batucada e a improvisação melódico-harmônica jazzística, algo muito diverso da

ideia de dominação cultural estrangeira. A categoria sambajazz, portanto, parte de

uma cisão, ou racionalização nacionalista, entre os gêneros samba e jazz, que a

prática do “samba moderno” procura reunir novamente, como se jamais tivessem

sido partidos.

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O entendimento nacionalista dos gêneros musicais é devedor à noção de

“árvore”, conforme colocada por Deleuze e Guattari (2009). Os gêneros samba e

jazz teriam cada qual o seu “tronco” nacional do qual derivariam todas as suas

variantes. Assim como indivíduos de tipos sanguíneos ou etnias diversas

(qualquer semelhança com teorias raciais não é coincidência), a ‘síntese’

americana correria o risco da má mistura.

No entanto, ao observamos mais atentamente as supostas origens distintas

destes gêneros surge um quadro complexo, que transborda a nação. As práticas

estão repletas de linhas de “influências” múltiplas, “sincretismos” os mais

variados, e carentes de qualquer “pureza” ou “raiz”. Estas, quando são

encontradas, se mostram ao pesquisador mais atento como uma reapresentação de

algum “hibridismo” anterior, de forma que o próprio conceito de hibridação torna-

se fraco por se tornar o chão comum das culturas, incapaz de diferenciá-las.

Assim, na raiz do samba encontram-se mil hibridismos que remetem à conjunção

de origens as mais diversas. De fato toda a cultura é resultado de uma “mistura”

anterior, e não apenas a brasileira.

Assim, Gilroy nos traz uma perspectiva valiosa da música ocidental

contemporânea, pois nos permite pensá-la de forma condizente à realidade de

fluxos transnacionais que vivemos intensamente hoje, e que remetem à

globalização enquanto um processo que vem se dando nos últimos séculos, com

foco na cultura negra no entorno do Oceano Atlântico. Este processo se dá para

além das áreas demarcadas pela ideologia nacionalista que se supõe essencial, mas

que é pouco determinante na prática das pessoas comuns. Estas, como a maior

parte dos negros e seus descendentes, jamais tiveram a possibilidade de ditar os

rumos culturais de uma nação, conforme o podem fazer as elites intelectuais

americanas.

Ao olhar para as práticas do Atlântico Negro, Gilroy clama pelo foco na

música, e não no corpo do negro, uma visão que é fruto da dicotomia ocidental

entre corpo e mente, que entende tanto a música quanto a cultura negra como

formas de expressão rebaixadas, porque meramente corporais, nunca intelectuais:

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Considerando a importância atribuída à música no habitus dos negros da

diáspora, é irônico que nenhum dos pólos neste tenso diálogo leve a música muito

a sério. O narcisismo que une ambos os pontos de vista é revelado pelo modo

com que ambos abandonam a discussão da música e a dramaturgia, a

performance, o ritual e os gestos que a acompanham em favor de um fascínio

obsessivo com os corpos dos próprios artistas. (GILROY, 2011, p.206)

A chamada música negra foi muitas vezes entendida como “espontânea”,

ou “natural”, algo como um talento inato dado por concepções totalizantes de raça

ou de nação. Essa naturalização de uma musicalidade densamente trabalhada

como foi a “música negra”, ignora a rica genealogia de todo um processo de

racionalização (nos termos de WEBER, 1967) desta música, operada por músicos

de diversas origens e períodos históricos. Pois este processo complexo de

construção de uma música do Atlântico Negro remete a personagens tão diversos

como o compositor e pianista norte-americano Duke Ellington, ou o trombonista

brasileiro do sambajazz, Raul de Souza, citado na introdução à edição brasileira

por Gilroy como alguém cuja música tomou parte afetiva na sua juventude. Ou

ainda ao pop star brasileiro Jorge Benjor, cujos modalismos “espontâneos” de hits

como Mas que nada, muito próximos do sambajazz, tem muito comum com

também com o blues e, por que não, com o modalismo do influente álbum de jazz

Kind of blue (1959), de Miles Davis.

O autor afirma a “expressão artística” negra diferenciando-a do

entendimento marxista clássico, com o foco no trabalho:

(...) onde a crise vivida e a crise sistêmica se juntam, o marxismo atribui

prioridade à última, ao passo que a memória da escravidão insiste na prioridade

da primeira. Sua convergência também é solapada pelo simples fato de que, no

pensamento crítico dos negros no Ocidente, a autocriação social por meio do

trabalho não é a peça central das esperanças de emancipação. Para os

descendentes de escravos, o trabalho significa apenas servidão, miséria e

subordinação. A expressão artística, expandida para além do reconhecimento

oriundo dos rancorosos presentes oferecidos pelos senhores como substituto

simbólico para a liberdade da sujeição torna-se, dessa forma, o meio tanto para a

automodelagem individual como para a libertacão comunal. Poiésis e poética

começam a coexistir em formas inéditas - literatura autobiográfica, maneiras

criativas especiais e exclusivas de manipular a linguagem falada e, acima de

tudo, a musica. As três transbordaram os vasilhames que o estado-nacão

moderno forneceu a elas. (GILROY, 2011, p.100, grifo meu)

De percepção similar a de Gilroy, o musicólogo norte-americano

Christopher Small constrói a música negra como uma fusão entre culturas de

músicas européias e africanas:

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(...) esses tipos de música aparentemente díspares como, por exemplo, country,

western, reggae, jazz, punck, rock, músicas populares da Broadway e calypso de

fato são todos eles aspectos de uma tradição brilhante, que resultou do choque nas

Américas, durante e depois do período da escravidão, entre duas grandes culturas

musicais (talvez alguém prefira dizer grupos de culturas), a da Europa e a da

África, uma tradição que partilha da natureza de ambos, mas não reduz a um ou

outro (SMALL, 1989, p.3)

Small, portanto, também compartilha da visão desta “cultura negra” de

Gilroy não em um sentido “monolítico”, mas aberto:

Não é preciso assumir a partir disto que a cultura 'negra' (“black culture”) é

monolítica - longe disso. Uma das características distintivas da cultura dos povos

da diáspora Africana sempre foi uma abertura e uma capacidade de adaptação que

são parte da herança cultural (SMALL, 1989, p.10).

Ressoando o etnomusicólogo John Blacking, pioneiro nas críticas ao

etnocentrismo da “música erudita” e no elogio às formas de organização musical

coletivas do grupo que ele estudou na África do Sul, Small é um crítico

contundente das formas de organização musicais hierárquicas da tradição

europeia. Referindo-se às vanguardas musicais, Small escreve que elas estariam:

(...) aprisionadas em suas salas de concerto de luxo e, possivelmente, anunciando

o fim da tradição em um estado de isolamento, solipsismo e anorexia espiritual.

Parece haver uma espécie de regra nestes assuntos, que sempre que uma política

de exclusão é praticada, são os que excluem que se tornam os perdedores ao final

(SMALL, 1989, p.11).

Nesta crítica ao isolamento das vanguardas o autor mostra um

entendimento que converge, a despeito da diversidade dos temas, com a exposição

de Lévi-Strauss em Raça e história (1993), onde ele se refere à aparente

superioridade tecnológica européia sobre outros povos nos últimos cinco séculos

como fruto de uma posição geopolítica privilegiada da Europa que favoreceu a

troca e o aprendizado com culturas de outros continentes, como o africano e o

asiático. Desta forma, o isolamento é entendido como um fator de

empobrecimento cultural e tecnológico.

A possibilidade que tem uma cultura de totalizar este conjunto complexo de

invenções de todas as ordens que chamamos civilização é função do número e da

diversidade das culturas com que ela participa na elaboração – na maioria das

vezes involuntária – de uma estratégia comum. (LÉVI-STRAUSS, 1993, p.262)

No mesmo sentido, Bohlman escreve que “a música define um lugar não

por isolamento, mas antes abrindo suas fronteiras para que diferentes gêneros,

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estilos e repertórios (...) as atravessem e se entre-fertilizem uns aos outros.87

(BOHLMAN, p.124, 2002)

Outro aspecto da música negra, conforme Small, é a sua tendência à

performance. Esta se dá enquanto um “processo” de fazer música que se aproxima

da festa ou do ritual, em que virtualmente todos os membros de um grupo fazem

música, e que, portanto, não exclui os não-músicos, como ocorre na prática

musical europeia. No mesmo sentido, Sonia Giacomini descreve a roda de samba,

em A alma da festa (2006):

As rodas de samba ou rodas de pagode com sua característica configuração de

círculos concêntricos que, da mesma forma que a távola redonda, não exclui

ninguém nem produz arestas, congregaria todos em volta da mesa em que se

sentam cantores, improvisadores de versos, partideiros e tocadores de violão –

com 6 e 7 cordas - cavaquinho, banjo, repique, pandeiro e tantã. A roda de samba,

essencialmente inclusiva, é vista como expressão simbólica e espacial de um

ambiente como “carnavalizado” ou “comunitário”, isto é, como um espaço em

que se inverte a “estrutura” representada pela autoridade, permanência, posição

definida, não-espontaneidade, pelo status, pela riqueza, pela hierarquia.

(GIACOMINI, 2006, p. 156).

87

“Music defines a place not by isolating it, but rather by opening its borders so that different

genres, styles, and repertoires (…) cross the borders and cross-fertilize one another.”

(BOHLMAN, p.124, 2002)

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3. Os locais do sambajazz

3.1. O sambajazz com um pé na gafieira

Ruy Castro escreveu sobre os músicos do sambajazz que “quase todos

tinham um pé na gafieira.”88

Para se entender como foi o processo de gênese do

sambajazz e da profissionalização de seus músicos, um excelente início é o artigo

“Pequena historia do samba-jazz” do crítico francês do jornal Correio da Manhã,

Robert Celerier:

O primeiro disco de samba-jazz foi um modesto ‘10 polegadas’ chamado ‘A

Turma da Gafieira’. (...) Mas, para nos, avidos de tudo que se aproximasse do

espírito do jazz, era uma revelacao. Nesta mesma época, o pianista Donato, os

irmaos Castro Neves faziam, de vez em quando, umas brincadeiras ‘jazzo-

brasileiras’. Ainda nao se sabia, ao certo, se o caminho a seguir consistia em tocar

samba em ritmo de jazz ou jazz em ritmo de samba! Era a fase ‘tonta’ da

moderna música brasileira. Lembrem-se! Nao existia esta falange de jovens

músicos que trouxeram, um sopro novo a nossa música popular. Estas

‘brincadeiras’ nao encontravam nenhuma receptividade e eram confinadas ao

campo do estrito amadorismo. Os músicos profissionais viviam, muito mal, de

bailes ‘quadrados’ ou de fundo musical em discos ou radio. Exigia-se ler a

partitura e nao dar trabalho ao maestro. Solo? Improviso? Nunca! Quem tinha

mais musicalidade so podia desabafar num dos poucos concertos de jazz (se se

podia chamar assim as desorganizadas jam session da pré-historia!) ou numa

‘canja’ de gafieira evoluída. Mas os músicos amadores e alguns profissionais

cansados do trabalho de estante, se reuniam, de vez em quando, para tocar

realmente ‘a vontade’. Em casas particulares, Aurino, Cipo, Bauru, Baden

Powell, enfrentavam o entusiasmo e a falta de técnica de secoes rítmicas

amadoras.89

O artigo remonta a um passado anterior ao sambajazz, quando os

instrumentistas do movimento, esta “falange de jovens músicos que trouxeram um

novo sopro a música popular”, puderam exercer sua “musicalidade”, fazer

“brincadeiras” sonoras, solos, improvisos, onde antes só era possível em uma

“canja de gafieira evoluída”. A expressao “dar uma canja” significa fazer uma

participação espontânea, improvisada, em uma apresentação de outros músicos,

88

Ruy Castro em Tempestade de ritmos, sobre Moacir Santos, p.366/367. 89

Publicado em O Correio da Manhã, em 25/10/1964. Disponível em

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&pesq=rober

t%20celerier Acesso em 06/10/2013. Ver no Anexo III.

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algo que acontecia eventualmente nas tradicionais gafieiras e nos dancings

modernos, onde trabalhavam muitos dos músicos de sambajazz.

Celerier refere-se a “pré-historia” dos “concertos de jazz” em

contraposicao a uma era “moderna” que surge com o sambajazz nos anos 1950.

No entanto, a continuidade com as práticas do passado também é importante. A

começar pela referência ao álbum Turma da Gafieira (1956) como o “primeiro

disco de samba-jazz”. As gafieiras sao, portanto, locais de baile que estao na base

deste movimento.

Foram gravados dois álbuns da Turma da Gafieira, respectivamente de

1956 e 1957, e ainda não relançados em CD. O primeiro, um “10 polegadas” a

que Celerier se refere acima, trazia o subtítulo músicas de Altamiro Carrilho

(1956) e foi dirigido por este destacado flautista de choro. O crítico francês se

recorda apenas de dois músicos, que são personagens principais desta tese: o

baterista Édison Machado e o trombonista Raul de Souza. O álbum trazia ainda,

além de Altamiro Carrilho, o “maestro” Cipo, saxofonista e arranjador de grande

prestígio, o excepcional acordeonista e cantor Sivuca, de fama internacional, e um

dos mais importantes músicos brasileiros; e Zé Bodega (saxofone), Nestor

Campos (guitarra), Luiz Marinho (baixo), Zequinha Marinho (baixo), e Maurílio

Santos (Trompete), Paulinho e Britinho (piano)90

.

No texto da contracapa deste primeiro álbum tem-se uma valorização do

improviso jazzístico à brasileira, do sambajazz e da gafieira:

Eis aqui um disco da genuína música brasileira. Da autêntica, da legítima, da

típica ou que outros adjetivos existam para qualificá-la. (...) Natural, simples, sem

se escravizar a partitura, que como o nosso futebol, é cheia de improvisacoes e de

imprevistos. Subitamente, todos os instrumentos recolhem-se a insignificancia de

um modesto background, enquanto um deles, como um demonio que saltasse para

o centro da roda, pede a palavra e executa um solo endiabrado dentro de um tema

melodico – bordando-o de variacoes inesperadas, retorcendo-o em espirais

alucinantes, colorindo-o de matizes novos, imprimindo-lhe enfim uma outra vida

e um gostoso sabor de ineditismo. E tudo ali, feito na hora, nascendo no

momento, brotando de repente, chiando na frigideira do improviso. (TURMA DA

GAFIEIRA, 1956)

90

Ver DREYFUSS, Dominique (1999).

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A improvisação aqui é descrita não como uma prática importada,

estrangeira, mas como própria da nossa “verdadeira música”, espontanea como o

futebol, com os seus “dribles” entendidos como típicos do brasileiro.

A Turma da gafieira – samba em hi-fi, de 195791

, assim como o álbum

anterior de 1956, também deixa ver como o sambajazz traz muito da prática de

gafieira. Diferentemente do álbum anterior, este tem apenas uma música de

Altamiro Carrilho, Por hoje é só. Mas traz sucessos populares como Rosa

Morena, de Dorival Caymmi, faixa que tem um solo de saxofone sobre o tema de

Caymmi que lembra em muito a gravação posterior da mesma música no famoso

LP Getz/Gilberto (1964). Foi a noite, de Jobim, relaxada nesta interpretação,

também antecipa o clima contido da bossa nova, com os sopros em uníssono sobre

a bateria com escovinha.

As gafieiras são bailes populares que remontam a meados do século XIX

no Rio de Janeiro. Diz-se que a origem do nome se deve as “gafes”, ou aos

deslizes na etiqueta que seus freqüentadores, normalmente pessoas de classes

sociais mais baixas, cometeriam em um baile92

. A partir dos anos 1920 a gafieira

se modernizou ao se aproximar das orquestras de jazz do tipo swing, de sucesso

internacional, que surgiram no Rio de Janeiro a partir da década de 1920. Nos

anos 1950 algumas gafieiras mais conhecidas do Rio de Janeiro se encontravam

na Praça Tiradentes, como a Gafieira Estudantina93

.

Tradicionalmente plástica e de tendência híbrida, nas gafieiras da primeira

metade do século XX se executava diversos estilos de música popular

91

O álbum contém doze faixas, pois já se tratava de um LP (long playing) convencional. O

repertório traz, no lado A: Vai com jeito (João de Barro); Não diga não (Tito Madi/Georges

Henry); Jarro da saudade (Daniel Barbosa/Mirabeau/Geraldo Blota); Por hoje é só (Altamiro

Carrilho); Vagabundo (Wilson Baptista/Jorge Castro); Rosa morena (Caymmi). E no lado B:

Saudades da Bahia (Caymmi); Conceição (Dunga/Jair Amorim); Tumba le le (Francisco

Netto/Nilton Neves/Jarbas Reis); Foi a noite (Jobim/Mendonça); Intenção (Alcides

Mendonça/Tufic Laur/Nelson de Moraes) e Maracangalha (Caymmi). 92

Ver SPIELMAN, 2008. 93

Sobre o baile de gafieira a partir dos anos 50, quando surge o sambajazz, escreve Felipe Berocan

Veiga, em O Ambiente Exige Respeito: Etnografia Urbana e Memoria Social da Gafieira

Estudantina (2011): “em meio ao sucesso do teatro de revista, firmou-se sua relacao cultural com

o movimento negro incipiente dos anos de 1950 e, na década seguinte, com a militancia política de

esquerda. Em pouco tempo, a gafieira viveu seu esplendor, com o sucesso contagiante do famoso

Bar Zicartola, e o posterior abandono, levando ao fechamento dessa e de outras tantas gafieiras do

passado.” (2011, p.14).

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internacional, como foxes94

, boleros, ou sambas. As músicas costumavam ser

agrupadas por andamentos e tocadas sem interrupção, de forma a não interromper

a dança. Executava-se um grande número de músicas, por muitas horas seguidas,

o que conduz a um ecletismo nas escolhas dos gêneros musicais executados.

Preencher horas de música mantendo o interesse do público certamente exige

grande variação no repertório.

Em algumas gafieiras, quando o baterista se cansa fisicamente do trabalho

extenso, existe um músico reserva para substituí-lo. Isto por vezes se dá em uma

manobra corporal curiosa, em que um músico deixa o instrumento ao mesmo

tempo em que o outro o assume, sem que se interrompa a atividade da bateria95

.

Muitas vezes a gafieira também comporta dois ou mais cantores, a fim de que se

revezem evitando o desgaste da voz.

A orquestra de gafieira é formada normalmente por seção rítmica (baixo,

bateria, piano, guitarra, percussões) mais sopros (trompetes, trombones, saxofones

e clarinetes e flautas, evetualmente) e vozes solistas. Por conta desta formação

orquestral, a gafieira é um gênero que cultiva o arranjo escrito em partitura e que,

portanto, traz também uma continuidade com a prática da composição erudita

européia, que se une à dança. Nela, como na dançante valsa vienense de J. Strauss,

não há oposição entre orquestração, harmonia e dança, que formam uma unidade

musical. Se os arranjadores de gafieira querem, sobretudo, “fazer a pista dancar”,

eles freqüentemente cultivam também o estudo da harmonia e da orquestração.

Apesar da proeminência da atividade dos arranjadores, a gafieira também

comporta, a exemplo das bandas de swing, improvisos de músicos solistas, mais

ou menos jazzísticos, que tanto pode se dar sobre um fox como sobre um choro

por exemplo, este estilo musical por vezes entendido como estratégico para a

defesa da nacionalidade em música.

A importância do baile de gafieira foi determinante para a formação dos

músicos de sambajazz. Segundo o contrabaixista Edson Lobo, de 62 anos, em

entrevista para esta tese:

94

Do inglês, fox-trot, significando o passo da raposa. 95

Presenciei esta curiosa coreografia da troca de bateristas em bailes da Orquestra Tabajara no

Circo Voador, RJ, no início da década de 1990.

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A experiência do baile, também, eu acho que deu muita 'cancha' pra esses

músicos da geração dos anos 50, que pegaram esse movimento, da bossa nova e

do sambajazz. Então eles tinham muito essa 'cancha'. Quando eles ouviram o

jazz, né, essa música boa, eles já tinham mostrado. Alguns continuaram até um

pouco, talvez, de uma maneira um pouco 'quadrada', com uma certa 'cancha', mas

não se aprimoraram muito. Mas os que começaram a ouvir o jazz, aí foi aquela

coisa que a música brasileira recebeu, né Gabriel? Realmente esse

aperfeiçoamento que chegou ao ponto que a gente até ouve hoje.

Percebe-se na fala do músico a valorização tanto do baile quanto do jazz

enquanto formacao para o músico. Este adquire experiência, ou “cancha”, ao

passar pela música de dança profissionalmente. O trombonista Raul de Souza

também destaca sua filiação enquanto músico às gafieiras, em entrevista96

:

Raul - É, gafieira é a mãe, né? A primeira vez que eu conheci a gafieira foi no Largo do

Machado, substituindo um amigo meu do Exército, sei lá, da polícia.

Tacioli – Você lembra o nome dele?

Raul - Manoel. E eu, rapazinho, 18 anos. Gafieira com dois andares. Quando eu

entrava, ele sempre fazia assim. [ risos ] Balançava tudo, porque aqueles prédios

super antigos, de mil e setecentos, sei la de quando… Aí fiquei nessa coisa. Havia

outra lá na Praça Onze. Como era o nome? Cheira Vinagre! Isso porque havia

uma fábrica de vinagre embaixo. [ risos ]

Os músicos do sambajzz, de maneira geral, atribuem ao “baile” uma

importância muito grande na sua formação. Diz-se que um músico “nao tem

baile” pejorativamente, quando se quer apontar sua inexperiência. Pois a pratica

de tocar muitas horas seguidas nas gafieiras e dancings, freqüentemente tendo que

improvisar ou ler as partituras dos arranjos “a primeira vista” confere ao músico a

“cancha”, ou a experiência necessária para se tornar um bom músico. O baile de

gafieira acontece muitas vezes sem ensaios musicais, pois se trata de uma “gig”97

não muito bem paga e que torna-se principalmente um local de estudo prático,

uma “escola” para o músico.

Fiz parte de um grupo de gafieira chamado Garrafieira, que durante mais

de uma década, a partir de 1997, se apresentou regularmente nas noites do bairro

da Lapa, no Rio de Janeiro, em bares e locais de dança, como o Semente ou o

Rioscenarium. O grupo foi pesquisado por José Alberto Salgado e Silva, em sua

96 Entrevista concedida ao site Gafieiras, em São Paulo/SP a 16/09/2005. Disponível em

http://gafieiras.com.br/entrevistas/raul-de-souza/1, acesso em 14/07/2014. 97

“Fazer uma gig” significa trabalhar em um evento musical, no jargão de músicos cariocas.

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tese de doutorado Construindo a profissao musical – uma etnografia entre

estudantes universitarios de musica (2005). O autor, referindo-se ao estudo de

improvisação por parte de alguns membros do grupo, chama a atenção para esta

tendência cosmopolita que é comum à prática do baile de gafieira, de diversos

períodos.

Ora, esse traco cosmopolita do transito e incorporacao de técnicas e valores

estéticos nao é, como vimos, novidade na gafieira – e tampouco no ambito mais

geral de músicas feitas em metropoles brasileiras. Mas é interessante notar como

as influências sao sintetizadas e refluem para o reforco de uma identidade local,

unificadora de tempos – a 'antropofagia' artística produzindo, afinal, um samba

refinado e de certa forma revigorado, a maneira de um guerreiro engrandecido

pela incorporacao das virtudes do adversario que deglutiu (SILVA, 2005, p.21).

Portanto, na gafieira como no sambajazz, o cosmopolitismo (também

entendido pejorativamente como americanização às vezes, dada a forte presença

do jazz no estilo) não está oposto à constituição de uma identidade local, mas a

reforça. Isto porque comunica a música nacional com práticas que circulam

globalmente, ligando-a a uma comunidade transnacional que a fortalece por

contraste ou referência. Esse “contagio” recria a identidade local, dando-lhe força

e atualizando-a.

Paulo Moura foi um saxofonista de destaque no sambajazz, mas

posteriormente se tornou também um grande “chorao” (músico de choro). Ele

relata que se formou tocando nas orquestras de baile e de gafieira. Moura conta

que presenciou uma “canja”98

do ícone do choro Pixinguinha, saxofonista que

pode ser visto aqui como um precursor do sambajazz:

Eu tocava nestas orquestras, em bailes, sabado e domingo. Assim, você chegava,

sentava la na cadeira, o primeiro ou terceiro saxofone alto, e lia o que tinha ali.

Na verdade era um repertorio que, com o tempo, era parecido, entao você

chegava e acabava lendo. Fox, mambo, arranjos de samba, um músico ou outro

tocava choro, mas nao era muito comum nao. As vezes tocavam choro na hora

que a orquestra ia fazer um lanche. Alguns músicos que queriam fazer solos

ficavam ali. Numa destas toquei choro com o Pixinguinha, foi no baile, foi a

única vez que nos tocamos juntos. Porque nesta orquestra o diretor era amigo do

Pixinguinha e entao o convidou pra tocar” (SPIELMANN, 2008, p.10).

Segundo Spielmann, que escreveu uma dissertacao de mestrado sobre o

músico, “Moura comecou com seu ecletismo no início de sua carreira, pois

98

“Canja” significa uma participacao pontual e improvisada no espetaculo, no jargao de músicos

cariocas.

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estudava música classica, tocava nos bailes e gafieiras, e participava de grupos de

jazz.” (2008, p.10). Este ecletismo de Moura e de outros músicos cria uma ligacao

nem tão inesperada do jazz com o choro - combinação audível também em certas

músicas do sambajazz e da bossa nova.

O baterista Édison Machado também teve sua formação ligada aos bailes e

a gafieira. Barsalini se baseia no relato do baterista Chauim:

A profissionalizacao do baterista deve ter ocorrido no ambiente de gafieiras

suburbanas, como nos confirmou o baterista Chuim. Segundo seu relato, por volta

de 1955, Edison atuava em dancings de Copacabana, os “inferninhos” em que

mulheres (as “taxi dancers”) recebiam pelo tempo em que se disponibilizavam a

dancar com parceiros pagantes. Nesses ambientes, segundo Chuim “tocava-se

como num baile de gafieira da época, muita música brasileira, samba, samba-

cancao, boleros e fox, por muito tempo sem parar”. (BARSALINI, 2009, p.79)

Em entrevista para esta tese, Machado relata o início de sua vida

profissional quando, aos quatorze anos de idade, começou a tocar em gafieiras.

Machado faz referência às brigas constantes que aconteciam nestes bailes. Como

na música Piston de Gafieira99

, de Billy Blanco, onde a orquestra tocava “alto pra

polícia nao manjar”. Machado, da mesma forma, relata em entrevista à Rádio

Fluminense (1990) que tinha que de tocar em forte volume “porque a delegacia

era do lado”, disfarcando o som das brigas “pros caras nao ouvir”.

Édison Machado: No meu caso eu queria era tocar (risos). Aí comecei a fazer. E

eu tocava numa gafieira no Engenho Novo. (...) E começava às 11 da manhã e

terminava uma da madrugada! E o palanque era no alto. (...)

Eduardo Troia: Você tinha quantos anos aí, Édison?

Édison: Eu tinha quatorze... Quatorze, é. Até aí então o suor, né, curava. Mas se

você parasse, porque quando havia um cabra Bruce Lee, (inaudível), esse pessoal

num baile...! (rindo) (inaudível) Porque a delegacia era do lado. Então pros

cara não ouvir, bateria tinha que tocar, tudo rápido tududunduntududan (reproduz o som da bateria com a boca), no prato (tscscs), aí mais alto ficou.

A marginalidade familiar ao mundo do samba carioca, onde uma roda ou

gafieira pode a qualquer momento se transformar em “caso de polícia”, foi

assinalada por Rivron (2007):

99

Diz a letra de Piston de gafieira (Billy Blanco): “Mas a orquestra/Sempre toma

providência/Tocando alto/Pra polícia não manjar/E nessa altura/Como parte da rotina/O Piston tira

surdina/E poe as coisas no lugar”.

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As letras dos sambas do início do século XX e os bem conhecidos depoimentos

da ‘velha guarda’ do samba carioca mostram como os encontros musicais

chamados de ‘roda de samba’ poderiam se transformar, a qualquer momento, em

"caso de polícia" (cf. série ‘Depoimentos’ Museu da Imagem e do Som)100

. (2007,

p.3)

Raul de Souza, em entrevista ao SESC SP101

, expõe a tensão entre tocar

pra dancar, típico da gafieira, e “improvisar”, pratica característica do sambajazz,

mas que não era muito apreciada pelos “donos da casa” noturna que o

contratavam. Ele fala ainda sobre origem deste álbum que foi considerado por

críticos, como Celerier, como o primeiro álbum de sambajazz, Turma da Gafieira.

Havia muitas delas espalhadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Era nas

boatezinhas que os músicos e cantores tinham a chance de mostrar algo. Por isso,

toda noite tentava um espaço nos palcos para tocar. Quando eu improvisava, os

donos da casa interrompiam meu show. O som precisava ser linear. As pessoas

tocavam e misturavam música com apresentações de comédia.

Mas, numa noite dessas, o Altamiro Carrilho [flautista e compositor] me chamou.

Disse que eu sempre falava de improvisações, do Miles Davis [trompetista norte-

americano, 1926-1991], do J. J. Johnson [trombonista norte-americano, 1924-

2001]. Ele queria me convidar a gravar algumas músicas improvisadas. Assim,

fizemos dois discos em 1955 com a Turma da Gafieira, na qual tocavam o Edson

Machado [baterista], o Baden Powell [violonista], o Zé Bodega [sax tenor].

3.2. Raul de Souza desce aos graves: o baile e a improvisação

Ainda na infância Raul de Souza começou a tocar na Igreja Assembleia de

Deus que os pais frequentavam e que abandonou aos 14 anos, quando integrou a

banda da fábrica de Tecidos Bangu, onde também trabalhava. Raul de Souza,

criado em Campo Grande – RJ - relata em entrevista102

, o seu processo inicial de

musicalização. A escolha do trombone – um instrumento tenor, na região grave –

foi precedida pela preferência mais geral por “instrumentos mais graves” – uma

opção que tem implicações não apenas musicais, mas sociológicas, conforme se

viu. Trombonistas como Raul de Souza são solistas que escolhem a região grave,

“escura” dos sons - representadas graficamente na parte inferior das partituras,

100

“Les paroles de sambas du début du XXe siècle et les témoignages bien connus de la “vieille

garde” de la samba carioca montrent comment les réunions musicales dites “rodas de samba”

pouvaient se transformer, à chaque instant, en “affaire de police” (cf. série “depoimentos” du

Museu da Imagem e do Som).” 101

Entrevista dísponível em:

http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?edicao_id=375&Artigo_ID=5754&IDCat

egoria=6622&reftype=2. Acesso em 4/8/2013. 102

Idem.

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normalmente reservada ao “acompanhamento” e a secao rítmica. Existe aí uma

inversão da prática musical, pois a melodia está na região grave reservada ao

acompanhamento.103

Raul, cuja mãe foi cartomante, e o pai fazia formação para ser pastor,

assinala ainda a presença de um músico mais velho, iniciador, uma figura

constante nos relatos de músicos sobre sua iniciação:

Passou um senhor, o Farias, a primeira flauta da Sinfônica Brasileira, no Teatro

Municipal. Ia lá (à Igreja), levava uns arranjos, composição, não-sei-o-quê. Ele

ensaiava a banda e eu ficava ouvindo; queria sempre ir para a igreja, mas a minha

mãe não podia me levar todo dia. Então eu ia sozinho. Era perto, morava perto.

Aí ele passou e falou assim: “Põe o menino pra estudar música!”. Eu me

lembro dessa voz, passando. Ele sacou que eu tinha o dom musical, talento,

sei lá. E aí começou essa coisa. E aí começou essa coisa. Mais um ano, doze

anos, eu comecei a tocar pandeiro. Não tinha outro instrumento pra eu poder

tocar, não havia vaga. Eu sempre me ligava nos instrumentos mais graves.

Saxofone-barítono, tuba, trombone. Um instrumento médio, mas é grave. Não é como, por exemplo, um contrabaixo-saxofone. Toca na estante. É um som

terrível [ ri ], eu gosto mais da tuba. Cheguei a tocar tuba. Isso na banda da

Fábrica Bangu. Com 14 anos eu me expulsei da igreja, eu mesmo. Eu não

queria mais ser membro, havia acabado. Era muita proibicao; “nao pode fazer

isso, nao pode fazer aquilo”. Nao podia nada104

.

“Tocar pra dancar” regularmente em um período da carreira, às vezes

ainda na adolescência, é uma espécie de rito de passagem entre músicos, que

atesta que o indivíduo ganhou a experiência necessária para se tornar um músico

profissional.

Caso contrario, se diz que “falta baile” ao músico, ou seja, capacidade de

improvisação frente aos imprevistos que podem surgir durante uma apresentação

ao vivo - como um erro musical ou um esquecimento de um trecho, exigindo uma

saída honrosa improvisada sem que a música cesse ou o público perceba o

engano.

103

Em minha dissertação de mestrado (2007) sobre o músico de sambajazz Moacir Santos, tive a

oportunidade de demonstrar através de análises musicais que o compositor opera uma inversão de

práticas musicais que não estão isoladas na música, mas que revelam um ethos específico ligado à

“música negra”, sempre afirmada nestes termos por Santos. 104

Entrevista dísponível em:

http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?edicao_id=375&Artigo_ID=5754&IDCat

egoria=6622&reftype=2. Acesso em 4/8/2013.

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O baixista Sergio Barrozo relata sua experiência em bailes, lembrando o

curioso “ponto dos músicos”, um lugar de arregimentacao de profissionais para

bailes na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro:

Eu comecei a tocar baixo com 17, 18 anos mais ou menos. Fiz muito baile,

naquela época tinha bastante. Existia até o ponto dos músicos, na praça

Tiradentes, que era um negócio muito engraçado. Uma vez o Wilson das

Neves, baterista, foi lá que ele tinha que falar com um cara e eu fui junto. E era

uma sexta-feira, justamente os caras já vinham com o terno azul marinho e

ficavam com o instrumento ali na calçada esperando passar um pra chamar. Era assim o ponto dos músicos, ali naquela esquina do lado do Teatro Carlos

Gomes. Era muito engraçado porque tinha trabalho assim, desse tipo. O cara

juntava sax, trompete, trombone, e vamos lá. Pra fazer baile. Dizia: samba, lá

maior. E saia tocando. Era um ear training bom, né. Você ia fazer baile e não

sabia o que ia rolar. Isso te dava um treinamento errado mas era um

treinamento, né. Tinha que tocar, ficar antenado: não tinha part, não tinha

nada105

.

Paulo Moura também relatou ter vivido desde cedo a experiência de tocar

em bailes associados ao ponto dos músicos:

Comecei tocando em bailes do subúrbio... Com 17 anos, eu tocava com uma

categoria de músicos do segundo time. Frequentava o ponto dos músicos na Praça

Tiradentes, em frente ao João Caetano. Todos em pé por ali. Eu estava

começando a tocar nos bailes com diretores de orquestras. Esses diretores

passavam lá, arregimentavam por ali também, e, quando tinha baile em algum

lugar, por exemplo, no Automóvel Clube, chegava um e perguntava ao

saxofonista: “Você tem baile no sabado? (...) (GRYNBERG, 2011, p. 33)

O músico aprende no baile, portanto, a “ficar antenado”, isto é, atento,

para que consiga executar “de ouvido” um repertorio extenso capaz de cobrir no

mínimo 4 ou 5 horas de baile – sem o auxílio partituras para os instrumentos da

seção rítmica, como contrabaixo e bateria. Melodias, harmonias, formas, tudo tem

que ser tocado com o auxílio unicamente da memória e da improvisação,

necessárias frente a um esquecimento ou um erro. Tal capacidade de improvisação

do músico profissional frente a um imprevisto é o que o distingue do amador, e

não a execução desprovida de erros, pois estes enganos ocorrem frequentemente

entre músicos experientes.

Portanto, o baile converge ao sambajazz em muitos aspectos, inclusive no

de promover a improvisação, o que explica o fato da prática em orquestras de

gafieira ser uma constante na biografia de músicos desse movimento. Pode-se

105

Sérgio Barrozo, em entrevista para esta tese.

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mesmo afirmar que no jazz e no sambajazz, dada sua característica central de

música para a improvisação, esta capacidade talvez seja ainda mais importante

que em outros gêneros, uma vez que os músicos arriscam-se mais ao improvisar

não apenas como um recurso contra o engano, mas como o motor da expressão

musical. De fato, jazzistas improvisadores experientes podem se aproveitar de um

erro que cometeram enfatizando-o, desdobrando-o em motivos musicais afins, e

valendo-se dele para prosseguir no desenvolvimento de seu solo.

3.3. Beco das garrafas: o local da experimentação

De acordo com o compositor canadense Murray Schafer, devemos

expandir nossa percepcao do que é a música, uma vez que “qualquer coisa que se

mova vibra o ar.” Schaefer faz um apelo: “O mundo está cheio de sons. Ouca”

(1991, p.124) A música se expandiu a ponto de absorver os sons do mundo - que a

penetraram primeiro via percussões, e depois o invadiram por completo através

das técnicas de gravação. Faz-se, portanto, necessária uma nova musicologia que

dê conta desta “paisagem sonora” (1991), um conceito central deste compositor.

Para Schafer, todos os sons estão interligados – sejam eles ruídos ou notas

“temperadas” – e constituem uma ecologia musical, seja na cidade grande, entre

sons de carros e TVs, seja em uma floresta, entre sons da natureza. Os sons não

existiriam descolados do mundo como sistema musical, mas estariam sempre

ligados ao lugar onde soam, formando, junto a outros sons ao redor, esta paisagem

sonora, que é também política e social.

O etnomusicologo Steven Feld se baseou neste conceito de “paisagem

sonora”, de Schafer, para entender os Kaluli, da Nova Zelândia (1982). Para ele,

as relações entre as alturas sonoras e as questões formais, que são o foco da

musicologia europeia, não dão conta do fazer musical Kaluli, que vivem em uma

floresta tropical. Como Schafer, Feld entende que os sons estão ligados aos

lugares onde eles se dão e, por isso, não seria possível entender sua música sem

recorrer à sua “paisagem sonora”:

Eu aprendi como a ecologia dos sons naturais é central para uma ecologia musical

local, e como esta ecologia musical mapeia o meio ambiente da floresta tropical.

Porque o canto e o choro não apenas trazem de volta e anunciam os espíritos,

seus textos, cantados numa poesia chamada “palavras dos sons dos passaros”,

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mas também nomeiam sequencialmente os lugares e as figuras que acontecem

conjuntamente na vegetação, na luz e nos sons. Os cantos são o que os Kaluli

chamam de “caminhos”, isto é, series de lugares-nomes que unem a cartografia

da floresta ao movimento de seus habitantes passados e presentes. Estes caminhos

cantados também estão ligados ao mundo de espíritos dos pássaros, cujos padrões

de vôo tecem-se pelos caminhos e pelos canais das águas, conectando a

cosmologia dos espíritos de cima às historias locais acontecidas na terra106

.

O sambajazz também teve seus lugares e percursos. O “caminho” para o

sambajazz conduz necessariamente ao Beco das Garrafas na Copacabana de fins

dos anos 1950 ou início dos 1960. Quem estrasse no beco passaria, inicialmente,

pela boate Ma Griffe, depois pelo Bottle’s bar, em seguida pelo Baccara e por

fim, pela casa menor, mais escondida, porém a mais prolífica musicalmente, o

Little Club.

O jornalista e produtor musical Nelson Motta percorreu este caminho aos

16 anos, ou antes, segundo o seu relato. O Beco das Garrafas era um lugar

frequentado por jovens, público e músicos, às vezes menores de idade e

preocupados com o juizado de menores. Exceto aos domingos, quando havia jam-

sessions no Little Club, no fim da tarde, e não havia a restrição de idade:

Com dezesseis anos, me aventurei pela primeira vez no Beco do Joga-a-chave-

meu amor, uma ruazinha cheia de bares e inferninhos que ia da Rua Rodolfo

Dantas à Rua Duvivier, assim chamada porque, diz a lenda, alguém uma noite

gritou “Joga a chave meu amor!” - e morreu soterrado por toneladas de chaves.

Era o lugar certo para ouvir a melhor música da cidade em 1960, se o porteiro e o

Juizado de Menores deixassem.

Antes, já era habituê das jam-sessions dos fins-de-tarde de domingo, no Little

Club, no Beco das Garrafas, onde podiam entrar menores, que bebiam à vontade,

para ouvir os maiores talentos do jovem jazz carioca, como os pianistas Tenório

Junior e Sérgio Mendes, o trumpetista Claudio Roditi, o trombonista Raul de

Souza, o baixista Otávio Bailly e o baterista Victor Manga.

Mas à noite era diferente. Graças à boa vontade do garçon Alberico, um italiano

simpatico que ficou meu amigo, entrei pela primeira vez no “Manhattan”, um

barzinho escuro com um pequeno balcão, alguns tamboretes, meia-dúzia de

mesas, muita fumaça e um espetacular jazz trio com uma cantora sensacional

fazendo scats vertiginosos em “Old Devil Moon”, “But Not For Me” e outros

106

“I learned how the ecology of natural sounds is central to a local musical ecology, and how

this musical ecology maps onto the rainforest environment. For songs and weeping not only recall

and announce spirits, their texts, sung in a poetry called "bird sound words", sequentially name

places and co-occurring environmental features of vegetation, light and sound. Songs become

what Kaluli call a "path", namely a series of place-names that link the cartography of the

rainforest to the movement of its past and present inhabitants. These song paths are also linked to

the spirit world of birds, whose flight patterns weave through trails and water courses, connecting

a spirit cosmology above to local histories on the ground.” Disponível em

http://www.acousticecology.org/writings/echomuseecology.html. Acesso em 01/05/2015.

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standards americanos. Encolhido num canto, extasiado, vi pela primeira vez Leny

Andrade cantando, acompanhada por Luiz Eça, Otávio Bailly e Helcio Milito, a

base do futuro Tamba Trio. (MOTTA, 2000 p.10)

O contrabaixista Edson Lobo, nascido em 1947, também frequentou estas

jam sessions permitida a menores como ele aos domingos, no Little Club. Ele

relata que teve de ser “emancipado” por seu pai junto ao juizado de menores para

que pudesse trabalhar com a cantora Leny Andrade, na boate Drink, uma das

pioneiras da cena noturna de Copacabana:

Comecei acompanhando a Leny (Andrade), eu tinha 17 anos e tive que ser

'emancipado' para tocar no Drink, a boate que o Caubi Peixoto tocava, na

Princesa Isabel. (…) O show era o Estamos aí, com o (contrabaixista) Manuel

Gusmão, aquele que gravou o primeiro disco do Jorge Ben, muito bom, com

arranjos do J.T. Meireles (...)107

.

Os músicos e frequentadores do Beco das Garrafas eram frequentemente

muito jovens, conforme se observa no relato de Nelson Mota e Edson Lobo. Na

matéria “Rio quatrocentao sem música” publicada no jornal Correio da Manhã de

01/11/1964, o crítico Robert Celerier se volta contra o Juizado de Menores que

havia realizado uma “batida” no Beco das Garrafas em busca de menores de 21

anos que deixou a boate Little Club sem músicos. O jornalista, em defesa dos

jovens músicos, descreve esta casa como um ambiente “seleto e bem educado”,

diferenciando-a de outras boates próximas onde se dava a prostituição, os

chamados “inferninhos”. Sao dois tipos diversos de “casas noturnas”, ele alega. E

em seu ativismo em favor do samba moderno, escreve algo que provavelmente

estava na cabeça de muitos daquele mundo da arte: ele entende a Bossa Nova

destes jovens músicos como algo mais importante para a boa imagem do país no

exterior que “os monumentos de Brasília” ou que as “notícias contraditórias da

Revolucao” (este último termo era uma expressão usual à época para referir-se ao

golpe militar de 1964 no Brasil).

Nos seus seis anos de atividade o 'Little Club, pelas suas 'sessions' dominicais,

foi, sem dúvida o ponto de partida, o terreno de prova para a maioria dos músicos

que deram fama internacional à nova música brasileira. A 'bossa-nova',

certamente, trouxe mais simpatia para o país do que os monumentos de

Brasília ou as notícias contraditórias da Revolução. Porém a música, arte

evolutiva por excelência, precisa sempre de sangue novo. (…) Mas a música

corrompe a juventude! É o que se deve deduzir da 'batida' do Juizado de Menores

que resolveu interditar o local para menores de 21 anos. Resultado: pianista,

107

Depoimento dado por Edson Lobo, em entrevista para esta tese.

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baixista, baterista, sax-tenor e pistonista, alguns dos nossos mais promissores

jovens talentos, faziam parte desta idade crítica, dos 18 aos 21 anos. Tiveram que

deixar o local. A sessão acabou por falta de músicos. (...)

Como já dissemos os 'ensaios', os treinos do 'Little Club' tiveram parte

preponderante na formação da nossa música popular moderna. Além disso, estas

sessões dominicais ainda são a única possibilidade que temos de ouvir Jazz

tocado por músicos brasileiros. O lugar já é tão conhecido no estrangeiro que

qualquer músico de passagem vem automaticamente dar suas visitinhas, as vezes

de instrumento na mao”

Neste ambiente, com músicos tão jovens, se estabelece uma rede em torno

do estudo de música no Beco das Garrafas, evidenciada pela ligação de Lobo com

o contrabaixista mais velho, Manoel Gusmão. O contato, apesar de feito em um

ambiente de “música da noite”, permitiu a Edson Lobo ter contato com um

material didático voltado para o estudo do contrabaixo que lhe foi útil, mas que

datava “quase do tempo de Beethoven”, segundo o seu relato:

Eu e o Manuel Gusmão, baixista, fizemos uma amizade. Ele me deu um método

de baixo quase do tempo de Beethoven, mas que até hoje ainda é valido, se fizer

uma atualização é a mesma coisa, porque o instrumento não mudou na verdade,

né? Então ele me deu aquele método e um arco e assim eu comecei estudando (...)

Aí tinha aqueles músicos que já eram expoentes, eram os nossos ídolos. Então eu

comecei a ouvir a música instrumental brasileira e ficava encantado: ouvia o

pessoal do Copa 5 e essa turma toda, o Meireles, o Edison Machado. Eu ficava

doido, porque eu ia no 'Beco', ali no Little Club, que de noite eu não entrava, ia

na domingueira, os bateristas eram uns dez pra tocar e todo mundo queria tocar

jazz, mas quando ele (Édison) sentava eu sabia que ele ia tocar um samba e aí era

uma festa.

Trata-se de um método para o estudo de contrabaixo erudito, com o arco

do instrumento, uma vez que o contrabaixo “popular” é tocado comumente sem

arco, em pizzicato. Portanto, o Beco das Garrafas, longe de representar uma rua

sem saída, fechada no ambiente noturno e “alienada” de outras realidades, abriu

um novo caminho para Edson Lobo que, futuramente, lhe proveria o sustento

financeiro. Quando a crise do samba moderno deixou os músicos cariocas sem

trabalho, na segunda dos anos 1960, Edson Lobo se tornaria contrabaixista da

Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB):

Quando eu comecei, vamos dizer 66, eu ainda via muita coisa de música

instrumental, de gravação. Mas quando eu viajei para passar um ano lá em Paris,

trabalhando e voltei em 68, quando voltei era como se a música instrumental

tivesse acabado. Tamba trio, não tinha ninguém. Todo mundo viajando em algum

lugar, fazendo alguma coisa fora porque aqui não tinha. Foi assim, e eu fiquei aos

trancos e barrancos, né, nos casamos (com Tita Lobo) e não tinha quase nada, era

sustentado pela família, até que uma hora, em 72, fui pra sinfônica (OSB) e fiquei

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treze anos. E nesse tempo, de música popular eu fazia muito pouca coisa, porque

era outro horário, né, com a sinfônica, e me acomodei um pouco.

Note-se aqui a questão do horário, ou do tempo, sempre mencionada pelos

músicos. Enquanto no Beco das Garrafas o ambiente era noturno, na orquestra

sinfonica era diurno. Esse “outro horario” diurno impediu Lobo de fazer “música

popular”, noturna. Assim cada música tem o seu lugar, conforme Feld (1982), mas

também o seu horário.

Joana Saraiva escreveu a dissertação de mestrado A invencao do

sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de

1950 e inicio dos anos de 1960 (2007). No trecho abaixo ela analisa alguns

relançamentos em CD dos álbuns de sambajazz que caracterizaram o movimento

como o “som de Copacabana”. Ela também chama a atenção para os termos

usados para se referir ao sambajazz, como “música da noite”, que se da em uma

“cena noturna”. Temos entao o sambajazz situado no tempo e no espaço como a

música noturna de Copacabana, e que se caracteriza pela “experimentação”.

A ênfase no sambajazz como “som de copacabana” e nao de um ou outro

compositor ou grupo de músicos, chama a atenção para uma certa propriedade

atribuída de “criacao musical” a determinada configuracao da “cena noturna” do

bairro naquela época, a um circuito de producao e consumo da chamada “música

da noite” ou “música de boite”. E em específico, no caso do Beco das Garrafas, a

vinculacao é feita principalmente a partir das “jam sessions” que ocorriam na

boate “Little Club”, e nas regulares apresentacoes de diferentes conjuntos que

contavam com a participação de vários daqueles instrumentistas como

participantes. Este espaço, apesar de fazer parte do circuito de entretenimento

noturno, é evocado como lugar de experimentação, onde os músicos estariam

livres para tocar o que queriam – no caso sambajazz - sem precisar se restringir

aos samba-canções, mambos, boleros, sambas, tangos e afins, o repertório

eclético que caracterizava os “pequenos conjuntos de boite. (SARAIVA, 2007,

p.16)

Retendo este conceito do sambajazz como experimentação, utilizado por

Saraiva, pode-se ainda expandi-lo para além dos músicos, compreendendo o Beco

das Garrafas, e mesmo a cena noturna de Copacabana como um mundo da arte

(BECKER, 1977) onde o público, donos de restaurantes, produtores musicais e

outros inventavam uma experiência noturna nova na cidade. Conforme Becker:

Defina-se um mundo como a totalidade de pessoas e organizações cuja ação é

necessária à produção do tipo de acontecimento e objetos característicamente

produzidos por aquele mundo. Assim, um mundo artístico será constituído do

conjunto de pessoas e organizações que produzem os acontecimentos e objetos

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definidos por esse mesmo mundo como arte108

. (BECKER, 1977, p.9)

Copacabana era então uma nova frente de expansão urbana no Rio de

Janeiro. Desde o início do século XX que esforços de urbanização do bairro

vinham sendo feitos, com a abertura do Túnel Novo (ou Túnel do Leme) e da

Avenida Atlântica, pelo prefeito Pereira Passos, seguido da criação das linhas de

bonde e de empreendimentos como o Hotel Copacabana Palace, fundado em

1923 (WAGNER, 2014). Mas nos anos 1940 a vida “moderna” e saudavel a beira-

mar tornou-se moda, ocasionando uma explosão imobiliária:

A população foi se adensando rapidamente. As pessoas se acomodavam em

pequenos apartamentos, chegando aos famosos JK (janela e kitchenette), também

conhecidos como ‘ja vi tudo’, levando a saturacao ja na década de 1950(...). A

vida noturna do Rio foi se transferindo definitivamente para Copacabana,

dividida entre seus dois cassinos, o Copacabana, no hotel Copacabana Palace, e o

Atlântico, na Avenida Atlântica, esquina com a rua Francisco Otaviano. (KAZ,

2014, p.33)

A noite então se deslocou gradativamente do bairro da Lapa, onde se dava

mais fortemente até então e transferiu-se em parte para a nova Copacabana. O

fechamento dos Cassinos em 1946 representaria um golpe para a classe musical e

para os empregados da cena noturna de maneira geral, mas ocasionaria também

um aumento no número de casas com música ao vivo no bairro e a necessidade de

experimentar para renovar. Donos de casas noturnas experimentam então novos

modelos de negócio, sem o subsídio do jogo:

Com a proibição do jogo, milhares de empregados ligados à diversão ficaram

ociosos. De uma hora pra outra, cantores, bailarinas, crupiês, técnicos, leões de

chácara perderam seus locais de trabalho. A era dos cassinos deixou um vácuo na

vida noturna da cidade. O império do jogo havia abafado o surgimento de outros

gêneros de casas noturnas, O sistema criado por Rolla, de ingresso barato com

jantar e cacife inicial de cortesia, era todo subsidiado pelo jogo. Esse modelo

financeiro aniquilava qualquer forma de concorrência e tornava insustentável a

cobrança de consumação mínima como na época do café-concerto. Com o fim do

jogo as grandes casas foram sendo substituídas por clubes fechados com uma

clientela mais selecionada, que absorveriam parte da mão de obra deixada ociosa.

A noite carioca sofreria uma mutação comportamental, estética e geográfica

(WAGNER, 2014, p.56)

108

O conceito de Mundos artísticos (BECKER, 1977) é útil para definir conceitualmente os grupos

como o que estou estudando. Um álbum ou apresentação de sambajazz, por exemplo, é portanto o

“resultado de acao coordenada” (idem, p.10), envolvendo nao apenas músicos, mas também

técnicos de som, programadores de casas noturnas ou executivos de gravadoras, letristas,

compositores, público e assim por diante.

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149

Surgem então estas casas noturnas com música ao vivo, dentre elas a

Vogue, Sacha’s, Au Bon Gourmet, Drink, Plaza, Arpège, Jirau, Farolito e Posto

5, além das quatro referidas no Beco das Garrafas. O “samba moderno” de entao,

hoje chamado de bossa nova ou de sambajazz, é algo que se experimentava, em

parte, junto a esta invenção da noite de Copacabana, com seus novos modelos de

negocio. Este “samba moderno” estava para o samba tradicional assim como o

bairro de Copacabana estava para a Lapa. Surgia também uma nova boemia

literária, com a consolidação de um novo estilo intimamente ligado ao bairro: a

crônica de jornal, frequentemente assinada por moradores do bairro como Antonio

Maria e Rubem Braga e depois, Sérgio Porto, Fernando Sabino e Paulo Mendes

Campos, entre outros (WAGNER, 2014).

A noite de Copacabana era entao um “mundo da arte”, conforme Becker

(1977), com diversos profissionais envolvidos nesta experimentação coletiva.

Dois proprietários de casas noturnas no Beco da Garrafas, dentre outros,

desempenharam um papel importante nesta reinvenção: os irmãos italianos

Alberico e Giovanni Campana, que após investirem no Litlle Club, transformaram

um boteco do tipo “pé-sujo”, chamado Escondidinho, no Botlle’s Bar, inaugurado

em 1961. Eles foram inicialmente garçons de casas noturnas em Copacabana,

tornando-se empresários posteriormente.

A questão do pagamento dos profissionais que trabalhavam nestas casas

era uma fonte de conflitos entre estes e os donos. Tom Jobim, em 1952, era

pianista da boate Michel, na rua Fernando Mendes, cuja a proprietária era a

“madame Fifi”. Ruy Castro relata em tom humorístico um caso desta tensão real

entre músicos e empregadores:

“Ivon, você acha que sou bom?”, ele perguntou ao entao estrelíssimo Ivon Curi na boate

Michel, onde tocava.

“Ora, mas é claro, Tom. Acho você otimo”, respondeu Ivon.

“Mas acha mesmo, no duro?”

“Claro, qual é a dúvida?”

“Entao diga isto a madame Fifi, pra ver se ela me da um aumento” (1990, p.94)

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150

As boates do Beco das Garrafas eram muito pequenas, e podiam suportar

no máximo 60 pessoas, gerando pouca renda, portanto. Por isso a dupla Luis

Carlos Miele e Ronaldo Boscoli, encarregados da programação musical do Little

Club, criaram os pocket-shows (shows de bolso) que eram adequados ao tamanho

diminuto das casas. A música que veio do Beco das Garrafas estava relacionada à

arquitetura de Copacabana, com suas boates em tamanho reduzido, e consequente

baixos cachês, mas grande ambição em termos de espetáculo.

Muitos artistas importantes surgiram nestes shows comandados pela dupla,

como Elis Regina, Sérgio Mendes, Pery Ribeiro, Leny Andrade, Taiguara,

Claudete Soares, Tamba Trio, Antonio Adolfo e Luis Carlos Vinhas. Até mesmo a

cantora norte-americana, Sarah Vaughan se apresentou sob a direção da dupla, ao

lado de Wilson Simonal. Ela teria dito a Boscoli, nesta ocasiao: “Mulher preta,

feia e pobre so tem dois caminhos. O segundo foi o que eu segui: ser cantora.”

(BOSCOLI, 1994, p.120 a 122).

Ronaldo Boscoli e Luis Carlos Miéli inicialmente não eram pagos para

produzir os Pocket Shows no Litlle Club dos irmãos Campana, mas trabalhavam

“por amor a arte e ao alcool” (BOSCOLI, 1994, p.119).

Boscoli relata ainda, em sua autobiografia, um episódio em que fica

patente o conflito com o proprietário em torno do cachê pago aos profissionais -

um problema recorrente nesta relação: quando as casas estão começando, pede-se

aos profissionais do entretenimento que trabalhem por baixos valores, ou mesmo

gratuitamente, a título de “investimento”, como fizeram Boscoli e Miéle no Litlle

Club. Muitas vezes estes sao remunerados com uma percentagem do “couvert

artístico”, pago pelo público ainda pequeno.

Mas quando os empreendimentos obtêm sucesso e atraem um público

maior apos este “investimento” inicial por partes de todos, o couvert artístico

passa a gerar um valor que é considerado excessivo pelos donos das casas

enquanto cachê pago aos profissionais do entretenimento. Os proprietários então

modificam unilateralmente o sistema de pagamento, a fim de reduzi-lo aos baixos

padrões do mercado de música noturna. Segundo Boscoli:

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151

Alberico Campana abriu um restaurante chiquérrimo para concorrer com o Le

Bec Fin e ser o mais sofisticado do Rio. Colocou-nos ao Miéle e a mim, como

diretores artísticos da casa. Alberico era meio pão-duro. No final, achou que

estávamos ganhando muito – estávamos mesmo, mas não era essa a idéia? -, a

sociedade acabou e a casa fechou um tempo depois. Chamava-se Monsieur Pujol

e ficava em Ipanema. (BOSCOLI, 1994, p.139)

O trompetista Pedro Paulo, quando perguntado sobre o sistema de cachês

nos shows do Sexteto Bossa Rio, com Sérgio Mendes, se referiu à prática do

couvert artístico, que a casa cobra do público a fim de remunerar os artistas.

Quem produziu o nosso show foi o Boscoli e o Miéli. Eles foram os reis do

Pocket show. Pra esse tipo de coisa eles eram brilhantes. E nós ganhávamos no

couvert. Tinha sempre uma lista de convidados que não paga couvert. Então

no fim o dinheiro era pouco. (...) Vai ver o couvert, quanto deu? Merreca.109

As referidas jam sessions de domingo no Little Club foram muito

importantes para a consolidação do Beco das Garrafas enquanto local principal de

experimentação do nascente samba moderno de então. Havia um clima semi-

amador, onde as “canjas” de músicos eram fartas, e onde frequentemente não se

recebia cachê, ou se recebia muito pouco. Quase tudo era “de graca”, exceto o

consumo de bebidas.

O pianista Sérgio Mendes desempenhou um importante papel nestas jam

sessions, que comandava, segundo Ruy Castro:

Por volta de 1960, ele (Sérgio Mendes) começou a comandar as canjas de jazz e

bossa nova nas tardes de domingo no Little Club, que serviram de iniciação para

centenas de adolescentes cariocas e muitos músicos amadores. As canjas eram

um bom negócio para todo mundo. Os garotos entravam de graça e apinhavam o

lugar, mas pagavam pelos cuba-libres que consumiam. Os músicos

profissionais também tocavam de graça, mas a bebida, nesse caso, era mais

ou menos liberada e eles podiam tocar o que realmente gostavam (...)

(CASTRO, 1990, p.286)

O Litlle Club era, portanto, um espaço de liberdade criativa para os

músicos de sambajazz, onde eles podiam estar a vontade e “tocar o que realmente

gostavam”. Podemos ter um índice da importancia do Beco das Garrafas para os

jovens músicos de entao a partir das “Cronicas” (s.d.) de Ion Muniz, nascido em

1948, que estudava música clássica e praticava sambajazz: “Fui, aos poucos me

dando conta de que não queria ser um músico clássico, mas sim um músico como

109

Pedro Paulo de Siqueira, em entrevista para esta tese.

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o pessoal do Beco das Garrafas.” Ser “um músico do Beco das garrafas” se tornou

uma opção de vida, mesmo para jovens de classe média como Muniz, a partir de

então, algo novo no Brasil. O sambajazz podia oferecer a eles esta liberdade do

músico de improvisar e de tocar a vida musical com indepedência tanto do

maestro, na música erudita, quanto dos esquemas comerciais da canção de rádio.

O músico popular de classe média surgia então mais fortemente no país, motivado

pela liberdade criativa do músico de sambajazz, que conseguia canalizar sua

expressão no Beco das Garrafas.

O Sexteto Bossa Rio, que depois veio a celebrizar Sérgio Mendes

internacionalmente, surgiu a partir do Beco das Garrafas. Sua formação inicial era

diversa do grupo que depois veio a gravar o importante álbum Você ainda não

ouviu nada! (1964), então liderado por Mendes, com arranjo de Tom Jobim e

Moacir Santos. Paulo Moura fez parte da formação original do Bossa Rio, esta que

não chegou a gravar o álbum referido, mas que se apresentou no importante

concerto de Bossa Nova em 1962, no Carnegie Hall, em Nova York, EUA. Este

concerto promoveu o início da carreira internacional de diversos músicos, entre

eles a de Sérgio Mendes e de João Gilberto. No trecho abaixo Paulo Moura fala

desta formação inicial do Bossa Rio:

Apesar de gostar tanto de estar nas grandes orquestras, envolvido por aquela

energia toda, pela força daquela massa sonora, eu também frequentava o Beco

das Garrafas a noite. Era minha vertente ‘combo’ do jazz, digamos. Ali me tornei

muito amigo de Sérgio Mendes e Otávio Bailly (baixista), que estavam com a

ideia de formar um grupo instrumental. Aí, resolvi entrar nessa também, e

começamos a ensaiar. E me lembro do seguinte: pediram que eu fizesse alguns

arranjos para o grupo, já que eu tinha experiência com orquestra. Era eu no sax-

alto, Pedro Paulo no trompete, Doum na bateria, Bailly no baixo e Sérgio Mendes

no piano. Uma formação jazzística, um combo. Depois, em 1962, quando fomos

convidados para fazer um show de bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York,

entrou Durval Ferreira também. (GRYNBERG, 2011, p.106).

No trecho a seguir, Paulo Moura relata o choque de estilos entre os

arranjos que fez inicialmente para o grupo, que estariam próximos demais do que

ele chamou de “era das big bands” e sua adaptacao como arranjador a esta “nova

concepcao”, representada pelo estilo do jazzista Horace Silver, que lhe foi

indicado como modelo:

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Engraçado.... Os primeiros arranjos que fiz para nosso grupo foram muito bem

aceitos, tudo direitinho, caprichadinho. Mas, um dia, chego lá, passamos os

arranjos e não vejo nenhum entusiasmo no Sérgio nem no Otavio Bailly. Então,

perguntei: ‘Mas o que houve? Qual é o problema?’ Aí, o Otavio disse: ‘Você esta

meio Severino Araújo.’ Ou seja, vinha eu com o outro estilo, essa outra coisa, da

era das big bands. Tive de me superar, mergulhar em uma nova concepção. Então

o que aconteceu? Chegaram-me às mãos alguns discos de Horace Silver, que

fiquei ouvindo, e transcrevi algumas músicas de um dos LPs para a gente tocar.

Depois fiz uns arranjos para... Acho que foi para ‘Passarinho’, do Chico Feitosa.

E aí, acertei a mão. Só tive de me readaptar um pouquinho, deu trabalho.”

(GRYNBERG, 2011, p.107)

Pedro Paulo, trompetista, também participou da formação inicial do Bossa

Rio. Sérgio Mendes, segundo ele, ainda não era o líder do grupo nesta época. O

conjunto, que chegou a participar de um álbum do saxofonista norte-americano

Cannonball Adderley, registrado em Nova York, se desfez por ocasião da

gravação do que seria o primeiro álbum do grupo, já de volta ao Rio de Janeiro.

Quando perguntado sobre se o Bossa Rio já existia anteriormente à sua entrada no

grupo, ele me respondeu, em entrevista para esta tese:

Não, foi criado conosco. Ele era, Samba Rio, se não me engano. Aí disseram,

mano, com o movimento da Bossa Nova muda pra Bossa Rio. Aí mudou, pra

nossa viagem (aos EUA, em 1962). Ensaiamos quinze dias no apartamento do

Dom Um (Romão, baterista), ele era casado com a Flora Purim, em Copacabana.

(...) A primeira formação do Bossa Rio não se entendeu bem. O Durval Ferreira

lá em Nova Iorque quis sair do grupo, só gravou o disco com o Cannonball

Adderley e de lá mesmo ele saiu. Então o grupo chegou aqui sem o Durval.

Fomos pra estúdio. Não houve clima para a gravação. Tentamos, tentamos e

desistimos. Aí foi saindo um, Paulo Moura saiu eu saí... Detalhe: o grupo não era

do Sérgio. Era nosso. Todos éramos donos. Como o Sérgio é que melhor falava

inglês nas entrevistas, dos Estados Unidos, my comb, my comb, meu conjunto. Aí

saia no jornal no outro dia: conjunto do Sérgio Mendes. Aí todo mundo: que

conjunto do Sergio Mendes é esse, cara? O conjunto é nosso. Mas ele ficou sendo

o mais conhecido, digamos assim. Quando todos nós praticamente, saímos ele

montou um outro grupo, foi o segundo, com Hector Costita, Aurino e os dois

trombonistas, Raulzinho Maciel, e não sei quem tava de batera. Gravaram aquele

(e cantarola o refrão de Ela é Carioca no arranjo característico do álbum do

Sergio Mendes). Aí não tinha trompete. Dois trombones e dois saxes (Pedro

Paulo).

3.4. O jazz no Brasil e a impossibilidade de se “ensacar o som”

Em Elogio da profanação, Agamben (2007) pensa a modernidade a partir

de um texto póstumo de Walter Benjamin intitulado O capitalismo como religião.

O capitalismo seria não uma secularização do protestantismo, como em Max

Weber (1967), mas um desenvolvimento “parasitario” a partir do cristianismo. Se

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a religião sacraliza, ou seja, retira “coisas, lugares, pessoas ou animais” do

convívio humano e remete a uma esfera separada dos homens, o capitalismo

operaria uma extremação deste processo. Pois a modernidade capitalista

subdividiu as vivências humanas por campos: da arte, da religião, da política, e

assim por diante; e dividiu as pessoas e suas práticas culturais por nacionalidades.

Hoje vivemos uma fase “extrema” do sistema capitalista, em que tudo é

incessantemente separado, dividido, rotulado e distribuído por estantes para o

consumo, como em uma loja virtual de mp3, em que se disponibilizam diversos

tipos de rock (indie, grunge, glam, psychadelic e etc.) para diversos tipos de

pessoas divididas por idade, classe e hábitos, rastreadas pelo seu uso da internet.

Esta incessante separação, que pode ser lida como o processo de

racionalização em Weber (1967), corresponde a uma sacralizacao da “religiao

capitalista”. Agamben apresenta como saída para este impasse a profanação.

Profanar, para ele, é restituir o uso aos homens do que lhes foi suprimido pela

sacralizacao. Abolir divisoes, mas nao apenas: para o filosofo, “profanar nao

significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas

um novo uso, a brincar com elas.” (Agamben, 2007, p.75). Assim a prática do jazz

no Brasil, ou da música instrumental de linguagem jazzística, tenderia a ser

profanatória, porque constantemente transcriada nas mais diversas formas, como

no sambajazz Ou como no jazz “universal” de Hermeto Paschoal, que toca piano

mas também usa chaleira de cozinha e balde como instrumentos musicais.

O jazz foi também uma prática profanatória, pois frequentemente utilizou-

se de canções comerciais famosas difundidas largamente pelo rádio, repetidas

incansavelmente pelas emissoras para seus ouvintes. No jazz, no entanto, estas

canções são transformadas pelos músicos que a executam de forma ativa. Estas

sao apresentadas como um “tema” sobre o qual se improvisa, sem demasiado

respeito ao autor e à melodia “original”. Esta improvisação, que

preferencialemente ocorre em um ambiente de grande liberdade criativa, pode

profanar, com sua expressão inequivocamente negra, na música de Miles Davis,

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por exemplo, uma doce canção comercial como Someday my prince will come,

popularizada em uma animação infantil de Walt Disney110

.

Michel De Certau (1994) diferencia a tática da estratégia. Ele conceitua a

tática, de tendências profanatórias, como uma agência improvisada sobre o que

foi pré-concebido pela estratégia. Nesta última funda-se o nacionalismo em

música, que “postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e

portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma

exterioridade distinta. A nacionalidade política, econômica ou científica foi

construída segundo esse modelo estratégico.” (DE CERTAU, 1994, p.46). A

tática dos músicos de jazz, que se apropriam das canções comerciais da indústria

cultural com suas estratégias de venda, se desenvolve nos interstícios, minando

sua função original, improvisando livremente sobre o que foi pré-concebido pelo

autor e pelo produtor. Segundo De Certau:

Denomino, ao contrario, ‘tatica’ um calculo que nao pode contar com um proprio,

nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A

tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem

apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base

onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma

independência em face das circunstancias. O ‘proprio’ é uma vitoria do lugar

sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não-lugar, a tática depende do

tempo, vigiando para ‘captar no voo’ possibilidades de ganho. O que ela ganha,

não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para os

transformar em ‘ocasioes’. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forcas que

lhe são estranhas. Ele o consegue em momentos oportunos onde combina

elementos heterogêneos (assim, no supermercado, a dona-de-casa, em face de

dados heterogêneos e móveis, como as provisões no freezer, os gostos, apetites e

disposições de ânimo de seus familiares, os produtos mais baratos e suas

possíveis combinações com o que ela já tem em sua casa etc.), mas a própria

decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasiao’. (DE CERTEAU, 1994, ps.46 e

47)

Os músicos estão no front desta batalha que se dá no interior da indústria

cultural, e se utilizam de táticas improvisatórias contra esta engrenagem

estratégica, que segmenta o mercado a fim de maximizar as vendas, limita o

tempo das músicas aos três minutos da canção radiofônica, e submete os músicos

a tantos clichês comerciais que estes sentem que não lhes é possível fazer música

livremente neste ambiente. Os músicos brasileiros amantes do jazz internacional

110

A referência aqui é a gravação de Miles Davis sobre o tema, presente no LP Someday my prince

will come (Columbia Records,1961).

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são coagidos por estratégias nacionalistas – vigiados e punidos na esfera pública

por desobedecer a restrição moral nacionalista e tocar jazz. Como reação, estes

músicos lançam mão da tática do sambajazz, fazendo novo uso dos velhos samba

e jazz, fazendo nova música artística a partir das estratégias nacionalistas e

comerciais. Uma profanação, nos termos de Agamben.

Édison Machado faz uso da força da bateria jazzística que lhe chega pelos

álbuns e pelo cinema norte-americanos para tocar samba novo do seu jeito,

percutindo as células rítmicas típicas do tamborim de samba nos pratos de

conducao da bateria de jazz. Nisto consiste a profanacao do “samba do prato” de

Machado, um espetáculo impressionante, de tom político evidente. Pixinguinha,

apesar das críticas nacionalistas de jornalistas como Cruz Cordeiro, não hesitou

em criar sua jazz-band e usar de toda a “influência do jazz” que desejou em sua

música.

Neste sentido, praticar o jazz no Brasil, longe de representar alienação ou

americanização, era uma declaração tática de independência, da liberdade contida

no ato de improvisar sem se prender aos formatos comercias da canção de rádio

ou às restrições nacionalistas.

Paulo Moura descreve seu gosto pelo jazz, quando ainda na juventude

excursionava pelo México na orquestra de Ary Barroso. Ele havia sido indagado

por outro músico a respeito do seu estilo jazzístico, em tom de censura. Segundo o

relato de Moura: “Que que há com você Paulo, qual é o seu problema? Eu nem

sabia o que eu queria, na verdade eu disse assim: Olha, quer saber? Eu gosto é de

jazz (risos)”111

(ALVIM, 2011). O “jazz” representava a liberdade musical para

Moura, contida em uma busca pelo que se deseja musicalmente, ainda que não se

saiba aonde esta busca que se dá pela via do jazz vai levar. João Donato, em

entrevista de 07 de julho de 2008, escolhe o mesmo tema: “Pergunta - Neste ano

111

ALVIM, Lia Machado. Paulo Moura: a liberdade de tocar. Disponível em:

http://www.culturabrasil.com.br/generos/choro/paulo-moura-a-liberdade-de-tocar-7. Acesso em

5/12/2011. Acesso em: 01/12/2011.

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só se fala em bossa nova, não? João Donato - Só se fala nisso. Eu não agüento

mais falar de bossa nova. Eu gosto é de jazz!”112

(JUNIOR, 2011).

O fato que realmente se mostra mais significativo sobre o pensamento

destes músicos é que a opção pelo jazz é entendida por eles como a afirmação da

diferença, do que foge a regra do nacional. Pois se o sambajazz traz no seu

próprio nome o jazz estrangeiro em um dos campos mais sensíveis para o

nacionalismo brasileiro que é o do samba, então a opção pelo jazz no samba é a

opção pelo internacional, pelo moderno, que destoa e recria o nacional. Quando

Paulo Moura deu esta declaração sobre o seu gosto pelo jazz, ele excursionava

com a orquestra de Ary Barroso, o compositor da Aquarela do Brasil, um samba

de exaltação da pátria.

Também Donato quis fugir à regra bossa nova, naquela ocasião, pois lhe

pareceu excessiva a ênfase no movimento quando da comemoração dos seus 50

anos, em 2008113

. Pontualmente foi isto que ocorreu a Donato, embora em outros

momentos ele possa também eventualmente afirmar a bossa nova, não importa

tanto aqui. O que interessa é o fato de que nestes casos o jazz significa a

liberdade de escolher outro estilo, de optar por um fazer musical diverso da

hegemonia nacional que a bossa nova hoje representa para estes músicos.

O gaitista Mauricio Einhorn, que participou do movimento do sambajazz,

fala sobre Paulo Moura, quando da ocasiao de seu falecimento: “o que nos uniu

foi esta linguagem mais pertencente a todos, mais ao negro, chamada jazz que

tem sua tradução própria da idéia de liberdade, dentro da qualidade e da

112

JUNIOR, José Flávio: Entrevista com João Donato. Disponível em:

http://www.sojazz.org.br/2008/07/joo-donato-entrevista-eu-gosto-de-jazz.html. Acesso em:

01/12/2011. 113

Na mesma entrevista podemos ler ainda: “DONATO: Com esse advento do cinqüentenário da

bossa nova, não param de me ligar. Fico sem saber para onde ir. Venho para São Paulo, falo um

pouquinho sobre o assunto e volto para o Rio no mesmo dia. Como se eu fosse o Ministro da

Cultura, o embaixador da bossa nova, acompanhado de uma comitiva. É desagradável. Pergunta -

Se tivessem dado valor, talvez você tivesse ficado mais preso à bossa nova? DONATO - O quê?

Eu tive uma liberdade total de escolher o rumo. Em vez de dizer que faço parte dessa equipe, tem

horas que me nego a dizer que sou da bossa nova. Me tira desse movimento aí, rapaz! É pouco, eu

quero é mais” (JUNIOR, 2011).

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disciplina a que a gente se submete durante décadas” (ALVIM, 2011, grifo

meu)114

.

O texto abaixo do crítico e produtor Nelson Motta, ligado ao sambajazz, é

revelador sobre como se entende o jazz no meio musical estudado:

O jazz nasceu e cresceu como a música da liberdade. De arte e de vida.

Valorizou a improvisação, o individualismo criativo, a intuição e o momento,

os ritmos e pulsações. Aberto por definição ao experimentalismo e à

miscigenação musical, o jazz tocou Ravel e Satie e serviu de inspiração e

estímulo às melhores cabeças de diversas artes, há várias gerações, e assim segue

fino, chic, elegante. (...) O jazz é meio como a existência de Deus: é mais difícil

provar o que não é do que o que é. Como uma mão negra dos deuses, dádiva de

orixás, a sensualidade espiritual do jazz, sua emocionada lógica criativa,

derramaram-se como um rio no mar de racionalismo do ocidente pré-moderno.

(...) Quando vejo os bailões black de sábado à noite na periferia do Rio, quando

Jorge Ben toca e canta, quando existe Tim Maia, quando o couro come nos

morros e James Brown explode nas rádios dos conjuntos habitacionais, penso nos

preto véio de New Orleans, na generosa fonte africana geradora de tudo isso.

Então acho que se equivocam os que localizam indistintamente na “musica

estrangeira” o eterno opressor e dominador cultural e econômico, o grande

inimigo da música brasileira em geral e do samba em particular. (1990, ps.62

a 64, grifos meus).

Por fim, relacionando as categorias mencionadas de jazz, liberdade e

modernidade, é interessante citar Hermeto Paschoal, alagoano, líder entre os

músicos e criador de atividade intensa, e que também participou do movimento do

sambajazz. Hermeto Paschoal fala através de citação do pesquisador Luis Costa-

lima Neto:

Quando eu dava um acorde bem moderno, as pessoas falavam criticando: acorde

de jazz não pode. Mas não era acorde de jazz, era a minha cabeça que estava

querendo. A música é do mundo. Querer que a música do Brasil seja só do

Brasil é como ensacar o vento e ninguém consegue ensacar o som. (2008,

p.13, grifo meu).

Para Hermeto Paschoal o acorde “bem moderno”, dito “de jazz”,

representa antes a liberdade artística de escolha do músico: “minha cabeca é que

estava querendo”, diz ele. E prossegue, sobre as intenções nacionalistas de pureza:

“ninguém consegue ensacar o som”.

114

ALVIM, Lia Machado. Paulo Moura: a liberdade de tocar. Disponível em:

http://www.culturabrasil.com.br/generos/choro/paulo-moura-a-liberdade-de-tocar-7. Acesso em

5/12/2011. Acesso em: 01/12/2011.

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4. O som das palavras no sambajazz

4.1. O vôo dos “canários” no sambajazz

Se as percussões estão em um lugar especial dentre os instrumentos do

samba moderno pelo seu uso regular dos “ruídos” (ou “sons de altura

indeterminada”, excluídos do sistema tonal ocidental) a voz também ocupa uma

posição especial, porque ela remete à fala e às palavras. Se as percussões descem

ao baixo, à cozinha e aos ritmos, conforme se afirmou anteriormente, com

referência à Bakhtin (1999), a voz, em sua ligação com a literatura remete ao

“alto”, às palavras elevadas pela arte literária e pela linguística115

. Esta oposição

entre a atividade mais alta dos cantores com relação aos demais músicos está

explícita na gíria “canário”, usada pelos instrumentistas do sambajazz para

designá-los. A topografia retorna aqui, opondo o vôo dos “canários” cantores à

batucada da “cozinha”, que designa a atividade da seção rítmica, associada aos

baixos corporais da deglutição e do sexo.

Robertinho Silva, baterista de uma geração um pouco posterior à dos

músicos focados, mas que conheceu o Beco das Garrafas muito novo, ainda no

período do sambajazz, costuma se referir a esta topografia associada ao vôo dos

“canários”. Silva distingue entre os “canários que voam alto”, ou seja, os artistas

que fazem muito sucesso na indústria cultural, como Milton Nascimento, a quem

Silva “acompanhou” por três décadas, e aqueles que “voam baixo”, ou seja, a

grande maioria dos cantores, menos conhecidos. O cantor e compositor Caetano

Veloso, citando o baterista Édison Machado, faz um relato sobre o período em que

se deu conta de que os instrumentistas contratados se referiam aos cantores,

“sempre em tom pejorativo”, como “canários”:

O mais importante baterista da história do samba moderno, Edson Machado,

estava tocando com Bethânia, assim como o pianista Osmar Milihto, entre

outros músicos, todos muito bons, todos jazzísticos e todos oriundos do Beco

das Garrafas. (...) No entanto, foi por essa época que aprendi que os

115

Certas correntes desta ciência repousam sobre a ideia saussuriana de que os sons na linguagem

são “arbitrários”, sendo incapazes de “significar” por si. (MARCONDES, 2009, INGOLD, 2007).

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instrumentistas se referem aos cantores (jazzísticos ou não) como "canários" ou

"sinos"116

, sempre em tom pejorativo. (VELOSO, 2002, p.79).

As letras de “música popular” cantadas pelos “canários” formam uma

interface com o mundo alto da literatura, onde poetas muitas vezes viram um

escape para sua produção literária, normalmente restrita aos pequenos círculos

intelectuais. Os músicos de sambajazz que acompanhavam os “canários” tinham

frequentemente uma origem social modesta, e talvez por isto raramente se

interessavam ativamente por poesia ou literatura. A literatura era então no Brasil

(e talvez ainda o seja) uma arte para poucos, em um país onde uma grande parcela

da população era analfabeta. Por outro lado a música se apresentou para

intelectuais e poetas como Vinícius de Moraes como um meio de se fazer

literatura “popular”, isto é, sem o fechamento no campo erudito, e com a

possibilidade de ver sua poesia/letra de música sendo largamente difundida pelos

meios de comunicação. Para Vinícius de Moraes, a letra da “canção” era uma

forma de se levar literatura, ou “poesia séria”, ao povo, ainda que este meio

contasse com um “fôlego” menos largo:

Nunca separei bem a poesia séria da poesia de canção. É que apenas em uma há

um casamento com a música e ela naturalmente exprime os sentimentos mais

íntimos de saudade, amor, tristeza, ausência, alegria. O poema já parte para um

fôlego mais largo e nem sempre pode ser musicado. (MELLO, 1976, p. 157)

Para Moraes, através da música popular, a “poesia séria” poderia atingir os

“sentimentos maís íntimos” do brasileiro comum ouvinte de rádio. É neste

movimento de cima pra baixo, dos poetas eruditos à música “popular”, que deve

ser entendida esta valorização das letras de música e dos poetas cantores

“universitários”. O Orfeu da Conceição, concebido por Vinicius de Moraes em

1956, é um marco neste movimento de aproximação da cultura literária erudita

como a música atribuída aos negros e ao povo.

O Orfeu da Conceição foi uma recriação do drama grego Orfeu e Eurídice

no cenário dos morros cariocas – com atores negros no Theatro Municipal do Rio

de Janeiro – um local de alta cultura e pouco visitado por não brancos. Vinícius

de Moraes, diplomata e um dos mais prestigiados poetas do país, se voltou para os

“de baixo”, os moradores das favelas cariocas, em um país de grandes constrastes

116

O termo “sino”, ao contrário de “canário”, não parece ter sido usado correntemente pelos

músicos de sambajazz para desiganar os cantores.

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sociais, e de recente escravidão, mal e tardiamente abolida. Tratava-se de juntar

as pontas do Brasil: a elite literata, em um país de analfabetos, sobe o morro

(descendo aos pobres e negros), e traduz a cultura popular em um espetáculo da

mais esplendorosa beleza, com composições de Antônio Carlos Jobim e Luís

Bonfá e regência de Leo Peracchi, e também cenográfica, com cenários de Oscar

Niemeyer e figurinos de Lila de Moraes. A peça teve grande repercussão e se

tornou um filme de fama internacional, o Orfeu Negro (Orphée Noir, de Marcel

Camus, 1959) que conquistou a Palma de Ouro em 1959 no Festival de Cinema

de Cannes na França. Sob este signo nasce a moderna MPB: em um bem sucedido

movimento de aproximação da elite literária representada por Vinícius de Moraes,

com os negros “do morro” representando o povo brasileiro.

Vassili Rivron, no artigo Branco na produção, negro na percussão: os

destinos sociais do samba na rádio brasileira (anos 1920 – 50)117

(2007) mostra

como a produção que caracteriza a era do rádio no Brasil reproduz em seu interior

“uma hierarquia fundada sobre um imaginário fortemente racializado”118

. O título

do artigo se refere à letra de Vinícius de Moraes para o Samba da Benção, com

Baden Powell: “Porque o samba nasceu lá na Bahia /E se hoje ele é branco na

poesia. /Se hoje ele é branco na poesia. /Ele é negro demais no coração.”. Rivron

nota que Moraes opõe a poesia, contida na letra e associada ao branco racial, ao

“coração”, negro, por oposição.

Nesta canção, ele mobiliza o vivido - suas colaborações reais com Moacir Santos

ou virtuais com Pixinguinha - e se inscreve ao mesmo tempo em representações

bem conhecidas, até mesmo no exterior. O samba é simultaneamente de essência

negra e autenticamente nacional, fazendo parte da experiência íntima de cada

brasileiro. O bom samba seria de ritmo negro, mas se tornaria ainda melhor

com as letras brancas. (...) Vinicius de Moraes opõe assim o corpo negro e o

espírito branco119

. (RIVRON, 2007, p.2)

117

Blancs à la production et noirs à la percussion: les destinées sociales de la samba dans la

radio brésilienne (années 1920-50) (RIVRON, 2007). 118

“En analysant l’accès, différencié en fonction de la couleur de peau et du capital culturel, à des

positions dans l’industrie musicale nous pourrons alors mettre en avant comment la production

radiophonique a reproduit, dans ses structures et dans ses programmes, une hiérarchie fondée sur

imaginaire fortement racialisé.” (RIVRON, 2007, p.1) 119

“Dans cette chanson, il mobilise du vécu — ses collaborations réelles avec Moacyr Santos ou

virtuelles avec Pixinguinha — et s’inscrit en même temps dans des représentations bien connues,

jusqu’à l’étranger. La samba est simultanément d’essence noire et authentiquement nationale,

faisant partie de l’expérience intime de tout Brésilien. La bonne samba serait de rythme noir, mais

deviendrait encore meilleure avec des paroles blanches. (...) Vinícius de Moraes oppose ainsi le

corps noir et l’esprit blanc” (RIVRON, 2007, p.2)

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162

A geração pós-bossa nova, que fez a chamada MPB, surge junto à nascente

televisão e aos “festivais da canção” da segunda metade dos anos 1960. Seus

principais compositores, como Chico Buarque e Caetano Veloso, se caracterizam

por expandir este movimento inicial da canção de Vinícius de Moraes em que a

literatura ocupa um lugar central. Assim estes “cantautores” se disseram mais

poetas do que músicos, em diversas declarações ao longo de suas carreiras.120

Sua

alegada modéstia enquanto músicos - algo contestável, em minha opinião -

contrasta com sua ambição na área de literatura: são autores intelectualizados, de

letras sofisticadas e grandes pretensões literárias.

Se o samba carioca até então havia sido caracterizado majoritariamente

pela herança africana, pleno de batucadas, danças e práticas coletivas (as rodas de

samba), e com foco nos ritmos dos instrumentos da percussão, a partir de então se

fortalecerá uma versão da música popular em que a letra de música de qualidades

literárias ganha o lugar principal, com foco quase exclusivo na voz do “artista”. É

claro que este movimento por vezes já se desenhava na canção radiofônica que

surge com este meio de comunicação a partir dos anos 1930. Mas com Vinícius de

Moraes abre-se um vão no interior da canção entre letra e música e surge a

profissão de letrista no Brasil. Conforme Bahiana, no artigo Os poetas da música:

É exatamente um poeta em seu sentido mais tradicional quem inaugura

definitivamente a figura do letrista. Vinícius de Moraes, poeta, diplomata, a

princípio trabalha com música e letra. Mas já nos primeiros anos da década de

1950, assume seu posto de letrista (...) (1980, p.184).

Se instaura, portanto, uma divisão do trabalho musical que surge com o

fortalecimento da profissão de letrista no Brasil. Esta música brasileira não seria

mais, a partir de então, plenamente “música”, mas sim uma “canção” bipartida em

letra e música.

120

Segundo Caetano Veloso: “Mas eu sou mais um não-músico que me dediquei a trabalhar com

música, e o Gil é um supermúsico, que se dedicou a escapar dela para poder olha-la de diversos

ângulos” (CHEDIAK,1989, p.29, grifo meu). “Interesso-me muito mais por cantores de jazz, é o

que gosto realmente, tenho mesmo a impressão que não sou um músico, não me interesso muito

por toda a música” (Caetano Veoloso em MELLO, 1976, p.191). Chico Buarque declarou, em

entrevista à Folha de São Paulo, Caderno Mais!, em 09/011994: “Em relação à música eu sou um

autor muito mais passivo do que na literatura. É evidente que eu sou um músico intuitivo e não sou

um escritor intruitivo. Eu tenho noção perfeita do que estou escrevendo.”

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163

Um ponto sensível para os músicos do sambajazz foi, portanto, sua relação

com os cantores, ou “canários”. No início dos anos 1960, neste período anterior

aos Festivais da Canção televisivos, a relação entre músicos e cantores se dava de

forma menos hierárquica e mais horizontal do que se daria na MPB dos anos

1970. Orgulhosos de seu próprio sucesso enquanto instrumentistas de destaque

advindo da música instrumental brasileira do início dos anos 1960, estes músicos

desempenhavam muitas vezes com rebeldia a relação de trabalho que dele se

exigia para “acompanhar” um cantor. Esta relação freqüentemente incluía uma

posição de relativa submissão e passividade, sendo a música muitas vezes regida

por uma lógica mais literária e intelectual promovida por esta “MPB

universitária”, e que relegava os músicos a um lugar menor, reservado ao

“acompanhamento” estritamente “musical”.

Este tipo de relação que surgia então se acirraria com o grande crescimento

da indústria fonográfica brasileira a taxas de 15% anuais, nos anos 1970

(MORELLI, 1991), que provocaria também uma ascenção proporcional de alguns

cantores, alçados ao estrelato nacional. Mas já estavam lançadas na bossa nova as

sementes desta relação assimétrica entre cantores (ou “artistas”) e, do outro lado,

músicos “acompanhantes”. Em breve ela seria caracterizada pelo pouco destaque

dado a estes músicos na divulgação dos espetáculos e gravações, onde sua

participação era omitida e o nome do cantor vinha desacompanhado, em destaque

principal. Outro ponto de conflito era a grande discrepância de cachês, que ainda

era pequena e que tendeu a aumentar posteriormente, abrindo também um abismo

social entre músicos profissionais sob grande instabilidade financeira e “canários”

enriquecidos e famosos.

Assim, a partir da segunda metade dos anos 1960, a oposição entre a

canção, definida como música com “letra” cantada por uma voz solista, e a

música instrumental, sem a presença de voz e normalmente associada à tradição

do jazz no Brasil, começa a ganhar uma força maior que nunca. Comparando as

falas de duas importantes cantoras deste período, temos um retrato dual da

centralidade que esta bipartição ganhou mesmo entre este tipo de músicos, os

cantores, que lidam mais de perto com a “palavra cantada”.

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Nara Leão: “Procuro falar de maneira clara e pensar no que estou dizendo para

que as pessoas saibam a intenção que existe naquela letra. Procuro pensar mais

no texto do que dar entonação. Mas quando vou gravar um disco, pego todas as

letras e leio muitas vezes como se fosse recitar um texto. E vou dando

interpretação as vezes exagerada, pensando em tudo que há por detrás de cada

frase. E faço isso com todas as frases em todas as músicas antes de gravar o

disco. E daí, quando vou gravar já estou tão impregnada do sentido daquele texto,

que ele passa para quem ouve. É uma técnica que se usa em teatro. Aprendi com

Augusto Boal do Teatro de Arena. Preocupo-me mais com a letra do que com a

música.

Elis Regina: “Preocupo-me com o som, ouvindo as frases dos instrumentos. Elas

são importantes para que eu diga minha frase. Quando canto, fico muito mais

integrada na música que em qualquer outra coisa” (1976, HOMEM DE

MELLO, p. 173)

A oposição entre as duas grandes cantoras da época, (e que se opunham

inclusive publicamente em discussões através de periódicos - ver VELOSO,

2002), tendo por um lado Nara Leão que, preocupava-se “mais com a letra do que

com a música” e, por outro, Elis Regina que se sentia mais “integrada” à música

“do que a qualquer outra coisa”, é um claro sintoma de que a oposição entre

canção e música instrumental é, no fundo, correlata à bipartição entre música e

letra.

Não espanta que Nara nomeie claramente a oposição entre letra e música

em sua fala, enquanto Elis Regina oponha um vago “qualquer outra coisa” à

música com a qual se “integra”. No caso de Elis a música engloba tudo mais,

inclusive a não nomeada “letra”. É, portanto, o empoderamento da letra, em

detrimento à música (agora incapaz de englobar as palavras) que faz surgir esta

cisão no interior da canção, bipartida, que observamos no entendimento de Nara,

germe da visão bipartida da canção emepebista.

É neste contexto que se insere o entusiasmo do pianista Cesar Camargo

Mariano, que foi casado com Elis Regina, com a casa noturna Baiuca em São

Paulo, que segundo ele “não contratava cantores”, ou “canários”, conforme a gíria

dos músicos à época:

Só a nata dos músicos da cidade tocava ali. Não era apenas um lugar da moda –

na verdade a Baiuca sobreviveu a várias modas -, mas uma casa à qual as pessoas

iam para beber, comer bem e, em silêncio, escutar boa música instrumental. A

Baiuca não contratava cantores, seguindo a tradição jazzística radical, os músicos

se recusavam a acompanhar os cantores, que apelidavam pejorativamente de

canários. (MARIANO, 2011, p.96)

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Nesta fala de Cesar Camargo, extraída de sua autobiografia (2011), é

possível entrever os termos que marcam essa divisão que tomaria a música

brasileira a partir de então: a bipartição radical entre a canção, entendida como

um estilo musical comercial onde somente a voz do cantor e a “letra” teriam

interesse, contraposta à “boa” música instrumental, uma música de músicos,

considerada impopular e anti-comercial. Se esta divisão bipartite foi naturalizada

por muitos estudiosos da música brasileira, nos anos 1960 ela ainda não era tão

forte. Pode-se acompanhar seu crescimento justamente neste período e sua

posterior consolidação nos anos 1970. A atribuição desta atitude da casa Baiúca

de não contratar cantores como sendo “jazzística radical” também não deve ser

naturalizada, mas entendida como um fruto desta bipartição, que se reflete na fala

de César Camargo.

É certo que o sambajazz foi muitas vezes qualificado como “música

instrumental”, isto é, música sem a presença de voz, conforme a tradição do jazz

foi muitas vezes entendida no Brasil. No entanto, este gênero nunca foi

exclusivamente instrumental, sendo grandes jazzistas como Ella Fitzgerald ou

Billie Holliday, cantoras. Mesmo quando “instrumental”, o jazz é muito ligado à

voz, pois os músicos “cantam” a melodia em seus instrumentos, usando diversos

recursos que aproximam o som dos sopros ao da voz121

. Eric Hobsbawn escreveu

o trecho abaixo em sua História Social do Jazz em 1958:

A maneira mais simples de explicar o tom jazzístico é dizer que,

automaticamente, o jazz tomou o rumo oposto (à musica erudita). Sua voz é a voz

comum, não educada, e seus instrumentos tocados - até onde isso é possível -

como se fossem essas vozes. (Diz-se que o grande King Oliver, quando em

termos pouco amigáveis para os integrantes de sua banda, só falava com eles por

meio de sua corneta. Ou que 'oitenta e cinco por cento do que Lester Young diz

no sax pode ser entendido') (...) Basicamente, porém, o jazz tem usado

instrumentos como vozes durante a maior parte de sua história (HOBSBAWN, 1990, p.44, grifos meus).

Por outro lado, quando o jazz é cantado a voz parece imitar os

instrumentos, conforme se observa, por exemplo, na música de Louis Armstrong,

121 Alguns jazzistas pensam na letra da música enquanto tocam, quando esta tem uma letra

conhecida, como uma forma de se expressar melhor, conforme me informou o jazzista Ion Muniz,

em comunicação pessoal. Um exemplo eloqüente dessa ligação do instrumento com a voz é a

poesia presente em A love supreme, álbum central do jazz, em que John Coltrane “declama” o

texto ao saxofone, traduzindo as palavras por música instrumental, em uma prece à Deus. Em

outro momento do mesmo álbum, Coltrane canta diversas vezes: “a love supreme” (“um amor

supremo”).

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cantor e trompetista tido como fundador do jazz, ou na arte da cantora central para

esta tradição, Billie Holliday. Segundo ela:

Eu não penso que estou cantando. Eu sinto como se estivesse tocando um

instrumento de sopro. Eu tento improvisar como Les (Lester) Young, como Louis

Armstrong, ou alguém mais que eu admire. O que sai é o que eu sinto. Eu odeio

cantar direito. Tenho que mudar uma música para meu próprio modo de fazê-lo.

Isso é tudo o que eu sei (CALADO, p. 53, 1990)

Portanto observa-se na tradição do jazz, à qual o sambajazz se liga

fortemente, uma continuidade entre vozes e instrumentos, e não uma oposição.

Hoje esta tendência de opor à música instrumental à canção parece estar em

decréscimo nas práticas musicais, e instrumentistas e compositores circulam com

maior liberdade entre os dois meios sem se importar tanto com estas fronteiras.

Roberto, um baixista profissional carioca de trinta e seis anos, praticante de jazz e

de MPB, quando questionado sobre o assunto em entrevista para esta pesquisa,

respondeu:

Jazz é mais amplo, não tem a ver com instrumental ou não. Pode ser cantado. A

Alma Thomas e a Indiana, estas cantoras americanas que estão aqui no Rio, por

exemplo. Elas cantam jazz. Por outro lado tem música instrumental que não é

jazz, né. Choro. Pode ter influência de jazz mas não é jazz.

Em entrevista a Luis Carlos Maciel, publicada na Revista Sombras

(1974)122

Machado, quando confrontado com esta situação às vezes subalterna do

músico, relativiza a oposição músico/cantor citando grandes cantores de jazz, e

mostrando sua divergência com esta mentalidade bipartida da música. E explicita

sua posição de músico dentro da sociedade brasileira como de marginalidade,

enfatizando seu prestígio entre “outros povos”:

Luiz Carlos Maciel: Aqui (no Brasil), prevalece uma concepção de que a música

se resume apenas no compositor e no cantor, chamado intérprete. Mas o músico,

o instrumentista, é pensado como uma máquina, uma espécie de maquininha onde

você enfia uma moeda e sai então um som. O contrário do que acontece no jazz

em que o instrumentista é o criador da música.

Machado: Mas quem não vai dizer que o Mel Tormé, por exemplo, não é um

grande músico, é um cantor jazzístico. Mel Tormé? Fantástico. Cantor, toca

bateria, toca piano... Só canta jazz. Todo mundo apóia. E Sarah Vaugan, Billie

Holiday... Mas o negócio é o seguinte: não quero me fazer de vítima. Talvez

haja quem me faça de vítima, mas é só por eu saber essas coisas, e eu falo, sabe?

(…) Eu sou músico, mas sou olhado como marginal pela sociedade, ainda. É

122

Em INSTITUTO MOREIRA SALLES. Acervos e pesquisas. Maciel, Luis Carlos. Edison

Machado vendeu a bateria. Revista Sombras (Sociedade de Música Brasileira), 1974.

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verdade, Maciel. É verdade. Já toquei bateria pelo mundo todo, até no Scala de

Milão, com a Rhodia e o Simonal. As pessoas lá, sentadas, escutando. E Historil,

Hilton Hotel, muitos lugares. Tocando pras pessoas ouvindo. Mas aqui, aqui eu

entro pela cozinha. Sou olhado como marginal. Então, eu quero dizer que

não é nada disso. Agora, nos outros povos, é diferente. (Édison Machado,

grifos meus)

Nesta entrevista, de 1974, publicada sob o título dramático Édison

Machado vendeu a bateria, Machado nega o discurso de vitimização do músico

brasileiro, posição que algo que se espera de um músico bem sudedido e

orgulhoso de sua arte como ele. Mas de fato, o mercado brasileiro fonográfico e

audiovisual neste período parecia ser francamente desfavorável à profissão no

país, tal qual ela se apresentava para os músicos da samba moderno. Foi esta

situação que levou Édison Machado a vender sua bateria a fim de comprar uma

passagem aérea para residir nos EUA, a exemplo de tantos outros músicos do

samba moderno, e de onde retornaria 14 anos depois.

A queixa de Machado é, portanto, voltada especificamente para a indústria

cultural brasileira, concentrada em poucas gravadoras e seus executivos

(MORELLI, 1991), que decidiam o destino de um grande grupo de músicos

profissionais a partir desta mentalidade “nova”, que os excluía do processo

criativo, tornando-os, nos termos do entrevistador Maciel, “uma maquininha onde

você enfia uma moeda e sai som”. Machado, no entanto, ciente do sucesso dos

músicos do samba moderno no exterior, que contrastava com a situação nacional,

procura relativizar a criticada oposição entre músicos e cantores como algo que

não se dá internacionalmente, mas que é fruto de uma (má) configuração da

produção musical no Brasil.

A divisão entre músicos e “canários”, que se acirrou no fim dos anos 1960,

não deve ser entendida, portanto, como natural no sambajazz. Diversos cantores

integraram o movimento, seja pela sua intensa participação na música que se fazia

no Beco das Garrafas, seja pela afinidade estilística entre eles e as músicas que

ficaram conhecidas como parte do sambajazz. Leny Andrade, Elis Regina, Jorge

Ben e Wilson Simonal podem ser considerados cantores de sambajazz.

No entanto, conforme afirmei, esta bipartição entre música instrumental e

canção ainda não era tão acirrada à época como se tornaria em breve, e estes

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cantores se apresentavam regularmente em conjunto com os músicos do

sambajazz, em uma relação menos hierarquizada do que se tornaria futuramente.

Assim Elis Regina, por exemplo, se apresentou ao lado do Zimbo Trio em um

show que ficou registrado no compacto Zambi, lançado em 1965 pela Philips. A

capa do compacto era partida em duas metades iguais e a cantora divide a posição

de destaque com o trio de instrumentistas123

. Nara Leão, sua concorrente, também

se apresentava dividindo o lugar central no palco e o nome principal na

divulgação com outros músicos, como Sérgio Mendes, e essa prática mais

horizontal entre cantores e instrumentistas era comum à época.

Também por parte das gravadoras comerciais havia uma maior valorização

dos músicos. Conforme o contrabaixista Sérgio Barroso, o produtor da gravadora

Philips, Armando Pitigliani, os deixava “à vontade” para gravar sua “música

instrumental”. Embora o tempo de gravação em estúdios não fosse barata, isso

não lhe pareceu antagônico ao empreendimento comercial que promovia:

Eu me lembro do Rio 65 Trio, porque é engraçado, se você comparar com os

dias de hoje, e você imaginar que naquela época o cara pegou um trio

instrumental entrou numa gravadora, era a Philips que virou Polygram,

botar um trio pra gravar aquilo!? O pessoal hoje em dia não entende... Mas

quem fez isso foi o, porque o presidente da Philips era um Pitigliani que eu não

me lembro o primeiro nome, tio do Armando Pitigliani, que era produtor lá. E ele

assistiu um show da gente, não sei se foi no Beco das Garrafas, e aí ele veio falar

com o Salvador e propôs da gente gravar um disco. Foi assim. A gente nem

ensaiou direito porque a gente ensaiava no estúdio. O estúdio corria assim

frouxo, não tinha negócio de gravar correndo, não. E foi assim que

aconteceu. O Armando era o produtor, mas deixou a gente à vontade. O segundo

disco já não foi gravado na Philips, mas no Musidisc, na Joaquim Silva. Eu

lembro por causa da foto da capa, nós três em pé e eu identifiquei o estúdio. O

Salvador Trio eu não me lembro onde foi gravado.

O pianista Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese, assinala que esta

centralidade absoluta do cantor na MPB posterior não era a regra no período do

sambajazz, e cantores muito conhecidos, como Wilson Simonal, dividiam o nome

principal do show com conjuntos de músicos, como o Bossa Três:

Eu estou falando o seguinte: naquela época os músicos eram considerados.

Hoje você não vê Gal Costa com um quarteto X instrumental, você não vê

isso. Você vê só Gal Costa, Maria Bethânia mas o nome do músico sai

pequenininho, quando sai. Você vê a ficha técnica, tem todo mundo iluminador,

técnico de som e o músico nem sai as vezes. Mas naquela época o músico era

123

Ver festa capa no Anexo II

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também considerado: Wilson Simonal e Bossa Três, Edu Lobo e Tamba

Trio...

Muitos cantores, como Jorge Ben124

, surgiram na cena musical do Beco

das Garrafas a partir desta associação mais horizontal com os instrumentistas.

Jorge Ben se apresentou inicialmente como pandeirista no Beco das Garrafas, ao

lado do Copa Trio, no Little Club, e somente depois como cantor e violonista. Em

1963 foi contratado pela gravadora Philips, através do produtor Armando

Pitigliani. Ele também levou para a Philips outros conjuntos, na mesma época, e

sem fazer distinção entre “canção” e “música instrumental” como estratégia de

negócios. Entre os artistas produzidos por Pitigliani estavam Os Cariocas, o

Tamba Trio, Sérgio Mendes e o Bossa Rio, Walter Wanderley, e os Gatos (de

Eumir Deodato e Durval Ferreira), além de Jorge Ben. Ou seja, havia cantores e

instrumentistas.

Jorge Ben inicialmente lançou um álbum compacto contendo uma

gravação bastante sambajazzística de Mas que nada, com J.T. Meireles e os Copa

5125

. O primeiro LP de Jorge Ben, Samba esquema novo foi lançado em 1963 e

atingiu a marca extraordinária para a época de 100 mil cópias vendidas, nos dois

primeiros meses a partir do lançamento. (CASTRO, 1990, p. 343). Este álbum,

bem como os dois seguintes do cantor, foram arranjados e tocados de forma

típicamente sambajazzística, com Dom Um Romão conduzindo o samba do prato,

à bateria, e os arranjos de sopro tecidos pelo saxofonista J. T Meireles e seu

conjunto Copa 5126

. Estes álbuns iniciais do cantor podem, portanto, ser

entendidos como álbuns de sambajazz, em uma concepção mais alargada sobre o

movimento.

O álbum Sacudin Ben Samba (1964), de Jorge Ben, foi alvo de um

divertido artigo de Sérgio Porto, que também era um crítico ferrenho do

sambajazz, acusado por ele de fugir à tradição do samba. Sob o pseudônimo de

Stanislaw Ponte Preta, Porto ironiza as brincadeiras vocais do cantor, voltadas

para o público jovem, e que remetem a estrangeirismos na língua portuguesa:

124

Hoje Jorge Benjor. 125

Esta gravação se encontra no DVD em anexo. 126

Os Copa 5 eram: J.T. Meirelles (arranjos, flauta e saxofone), Luís Carlos Vinhas (Piano), Pedro

Paulo (Trompete), Manuel Gusmão (Baixo) e Dom Um Romão (Bateria).

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Sacudin Ben Samba é o novo LP de Jorge Ben-da-bliá-binbem... No qual todos os

sambadins – chichique – binchiquechiqueben são sempre iguaizinhos aos outros

sambadins – xinbim – tiquetiqueblum – que ele já gravou. É impressionante como

um cantor faz sucesso com uma música só, dabliá – bibó. Mas se a gente olhar

para o público de Jorge Ben – sacundin – blen, terá a explicação. Os rapazes são

todos debilóides da pátria. E as mocinhas são todas aeromoças de disco voador.

Assim, firinfinfin, está explicado, dabliábliado.127

Se o caráter “comercial” de Sacudin Ben Samba, direcionado ao “público

jovem” - algo que é assinalado na crítica de Sérgio Porto - seria algo que o

retiraria da categoria sambajazz, uma análise musical destas gravações, com suas

típicas levadas e arranjos, permite também entendê-lo como parte integrante deste

movimento, conforme foi afirmado. Cabe frisar que o Beco das Garrafas, este

local do sambajazz, foi também o canal de ascenção profissional para Jorge Ben.

Assinale-se ainda que Jorge Ben atingiu a fama internacional com a

canção Mas que nada a partir de sua inserção como cantor do grupo do pianista de

sambajazz Sérgio Mendes, em turnês internacionais. Jorge Ben surge então como

um cantor-músico que “acompanha” o pianista de sambajazz, Sérgio Mendes,

uma situação que soaria incongruente na década posterior no Brasil.

4.2. A “diáspora” e o fim anunciado em palavras

O mais destacado cronista da bossa nova, Ruy Castro, chamou de

“diáspora” o fim da bossa nova e do sambajazz, tamanha foi a fuga de músicos

para o exterior em fins dos anos 1960. Neste trecho ele lista os músicos brasileiros

que decidiram residir fora do Brasil, no ano de 1967:

Quase toda a Bossa Nova se mudara do Brasil. Em Nova York estavam Tom

Jobim, João Gilberto, Eumir Deodato, Luiz Bonfá, Maria Helena Toledo, Astrud

Gilberto, Hélcio Milito. Na Califórnia, Sérgio Mendes, João Donato, Tião Neto,

Dom Um Romão, Luizinho Eça, Oscar Castro Neves, Walter Wanderley, O

Quarteto em Cy, Aloysio de Oliveira, Moacyr (sic) Santos, Raulzinho (Raul de

Souza), Rosinha de Valença. No México, Pery Ribeiro, Leny Andrade, o Bossa

Três, Carlinhos Lyra. Em Paris, Baden Powell. Já de malas prontas, Francis Hime

e Edu Lobo. Sem saber se ia ou ficava, Marcos Valle. Em permanente trânsito

pelo mundo, Vinícius de Moraes.

127

Publicado no jornal Última Hora, em 16/03/1964. Dísponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=98108. Acesso em

04/04/2014.

Ver este periódico no Anexo III.

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Os Cariocas tinham acabado de se dissolver. Sylvinha Telles havia morrido. O

Beco das Garrafas deixara de existir, quando Alberico Campana vendera suas

boates, em 1966. Aloysio de Oliveira praticamente dera a Elenco para a Philips.

(...) O que sobrara da Bossa Nova? Um bando de jovens mais interessados em

discutir política ou ganhar festivais do que em fazer música – enquanto rádios e

gravadoras eram ocupadas, minuto a minuto, pelo ie-ie-iê. Era o fim daquele

longo feriado. (CASTRO, 1990, p. 406)128

Eis uma questão cara a esta tese: o que ocasionou esta fuga em massa de

músicos do “samba moderno” para o exterior? Ruy Castro aponta o fato de que o

famoso concerto de bossa nova no Carneggie Hall, seguido do sucesso

internacional do “samba moderno” nos EUA e no mundo teria sido um motivador

desta “diáspora”. Mas isto não explica tudo, conforme ele sugere na citação

acima.129

O ambiente no Brasil, estes músicos concordam em afirmar, estava

insustentável para quem queria fazer “música instrumental” ou mesmo “canção”

de forma mais elaborada – para usar os termos da bipartição a que a música da

época foi submetida.

Tomando como referência a lista de oito músicos do sambajazz em que

esta pesquisa se foca130

, observa-se que quatro deles deixaram o país até a

primeira metade dos anos 1970. João Donato, migrou precocemente para os EUA

em 1959, quando já sentia, segundo declarações suas, que sua música era

entendida aqui no Brasil, e ao contrário dos EUA, como “anti-comercial”131

. Raul

de Souza foi para o México em 1969 e, posteriormente para os EUA, onde lançou

128

Embora Castro use o termo bossa nova, podemos incluir aqui o sambajazz, uma vez que tal

bipartição do “samba moderno” nestas duas categorias ainda não era corrente entre os músicos à

época, e mesmo o autor também não parece fazer esta distinção aqui. Dentre os músicos citados

por Castro, muitos provavelmente estariam alocados ao sambajazz, e não à bossa nova, se aquela

categoria estivesse sendo utilizada, como Raul de Souza, Hélcio Milito, Sérgio Mendes, João

Donato, Tião Neto, Dom Um Romão, Luizinho Eça, Oscar Castro Neves, Eumir Deodato, Luiz

Bonfá, Moacir Santos, e Rosinha de Valença, Leny Andrade, e o Bossa Três. 129

No capítulo 7 será abordada esta cisão estrutural que se dá na indústria cultural de massas do

período, onde ocorre a passagem de uma era do rádio semi-profissional a uma era da TV

profissionalizada, caracterizada também pelas poucas grandes gravadoras majors que dominam

este mercado que cresce exponencialmente ao embalo de um grande aumento do consumo

alavancado por setores mais humildes até então excluídos desta indústria, a partir do início dos

anos 1970. 130

Ver lista à Introdução. 131

Segundo João Donato: “Eu estava com problemas de adaptação aqui no Brasil, minha música

era considerada muito moderna para a época, e eu tinha problemas para encontrar lugares para

trabalhar. E eu sabia que nos Estados Unidos eles estavam acostumados mais à modernidade.

Então eu fui para lá, morei lá 12 anos para desenvolver minha música e aprender mais.”

(GUSMÃO, 2011). Ele declarou ainda “Eu sempre gostei de música mais dissonante, mais exótica,

sofisticada, sei lá como se qualifica. Aqui eu estava travado. Teve um momento em que eu não

conseguia mais nem dar canja em boate. Os gerentes diziam que minha música era anti-

comercial.” (BARBOSA, 2011).

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vários álbuns de sucesso no mercado fonográfico norte-americano, a exemplo de

Moacir Santos que foi viver nos EUA em 1967. Santos chegou a ser indicado ao

Grammy Awards, o mais importante prêmio fonográfico do país, por seu álbum

The Maestro (1972). Édison Machado, conforme se viu, migrou para Nova York,

EUA, em 1974, onde viveu até o ano de seu falecimento, quando voltou ao Brasil,

em 1990. Dentre os que ficaram, por outro lado, apenas um permaneceu ativo

como músico profissional todo o tempo, o saxofonista Paulo Moura. Johnny Alf

atravessou um longo período sem gravar e fazendo raras apresentações. Pedro

Paulo foi se dedicar à medicina em 1967, sua segunda profissão, e voltou a ser

músico profissional apenas nos anos 1980 e Sérgio Barroso largou a música

durante os anos 1980 e 1990 e foi trabalhar junto a seu pai na indústria de

publicidade. Posteriormente ele voltou a ser contrabaixista profissional. Em

entrevista para esta tese Sérgio Barroso fala sobre os motivos de sua interrupção

na carreira:

Gabriel: Porque que você parou?

Barrozo: O mercado de música já não estava aquela coisa não. Não se gravava

todo dia mais não. E eu tinha me separado, casei de novo, tava pagando pensão

pra dois filhos. Aí nasceu mais um. Aí meu pai perguntou se eu queria fazer

alguma coisa, aí eu fui. Pra defender um troco. Na época ele fazia publicidade,

produção de vídeo. Ele tava começando a fazer produção de vídeo, aí eu fui.

O trompetista Pedro Paulo também relata, em entrevista para esta tese, a

decadência da profissão neste período, que atribui à chegada dos conjuntos

amadores de rock. Estes faziam bailes a preços baixos substituindo os músicos

profissionais das orquestras. Neste caso, trata-se de um problema que atingiu

principalmente os instrumentistas de sopro, ligados às orquestras profissionais da

era do rádio no Brasil:

E eu fiz temporada de baile com orquestra que os músicos ficavam esperando

outubro, novembro, dezembro e recebiam dos maestros das orquestras uma

relação de bailes: 20 bailes por mês. Com o advento desses conjuntinhos de

rock as orquestras foram sendo recusadas porque esses conjuntos não eram

profissionais, o diretor social do clube dava qualquer mariola pra eles e eles

aceitavam. E as orquestras eram constituídas de profissionais, então eles

deixavam as orquestras pra lá. Faziam um baile por mês com uma orquestra

dessas e fazia vinte bailes por mês com os conjuntinhos. Aquilo “pim!”: esse

negócio não vai dar certo. Quando eu tiver me formando já não vai ter lugar pra

músico tocar não. Como músico eu não vou continuar mais. Me formei, fiz

pós-graduação, pediatria aqui. E fui pra Barra do Piraí. Isso foi em 67, se não me

engano. Falei: músico profissional não vai ganhar mais dinheiro. Dito e feito:

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as orquestras acabaram. Com o tempo as televisões também não tinham

mais orquestra132

.

A conhecida frase “a saída para o músico brasileiro é o aeroporto”133

, foi

muitas vezes atribuída a Jobim. No entanto o gaitista Maurício Einhorn declarou,

em entrevista para esta tese, que a sentença foi criada por ele, reivindicação que

diz muito sobre a importância desta frase para os músicos do sambajazz:

Eu estava fazendo Alcione, Tom, Sivuca e Eu. Alerta Geral o nome do programa.

Eu estou no camarim há 15 minutos do programa começar, o Tom me pergunta e

ai Maurício como viver nesse país de dúvidas musicais e culturas diversas,

contrariedades? Eu disse: acho que tem que sair do país, assim como você fez. Eu

dei uma entrevista a menos de um mês para um jornaleco de pouca expressão em

que eu fecho dizendo que a saída do músico brasileiro é o Aeroporto do Galeão.

Mas não disse no sentido de “o último a sair apague a luz”, não fui filho da mãe,

disse no sentido de que Carmem Miranda (que era portuguesa naturalizada

brasileira) fez muito sucesso na América, assim como você. Isso acho que em

1966 ele já estava no caminho com Sinatra.

Mas ai a Alcione pergunta: Sivuca qual a saída do músico brasileiro afinal? E o

Sivuca tocou “Brasileirinho”. Depois ela fez a mesma pergunta a mim, e eu

respondi tocando “Estamos aí”, então ela fez a mesma pergunta ao Tom, que

respondeu: A saída do músico brasileiro é o Aeroporto do Galeão, foi o que me

disse um amigo meu no camarim ainda pouco, mas não é assim não... dá pra tocar

com os amplificadores, com as descargas elétricas, com isso... com aquilo, da pra

todo mundo conviver na boa. (...) Dois anos depois o Tom disse isso no jornal:

Atribuem a mim essa frase, mas quem disse essa frase foi um amigo do Mauricio

Einhorn, que me contou.

A frase deixa ver o horizonte pessimista dos músicos que não estavam

interessados em ie-ie-iê ou em festivais de televisão e canções de protesto, àquela

altura, mas em música que não estivesse a reboque nem de um comercialismo

exacerbado, nem de letras de mensagem “política” para o “povo”.

Vivia-se em um clima de acirramentos ideológicos, a partir do golpe

militar de 1964 onde a dicotomia entre a posição política contra o regime militar,

por um lado, e por outro a posição “comercial” e “alienada” contida na atitude de

abraçar alegremente o rock e a indústria de massas internacional, tomou a frente

das músicas. As oposições por demais acirradas entre “direita” e “esquerda”, ou

entre o rock ie-ie-iê e a canção de protesto desestimulavam qualquer posição

menos contrastada que não se encaixasse nesta dicotomia. Conforme Castro, cujo

132

Pedro Paulo de Siqueira, em entrevista para esta tese. 133

Em entrevista, Jobim declarou: “Muitas vezes essas frases que dizem que é do Jobim, eu jamais

disse, como essa de que a saída para o músico brasileiro é o Galeão. Eu jamais disse isso.”

(COELHO e CAETANO, 2011, P.183).

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ponto de vista coincide com o de muitos músicos praticantes do sambajazz, o

ambiente musical da época foi tomado por “um bando de jovens mais interessados

em discutir política ou ganhar festivais do que em fazer música – enquanto rádios

e gravadoras eram ocupadas, minuto a minuto, pelo ie-ie-iê.” (CASTRO, 1990,

p.406).

Alfredo Cardim, nascido em 1949, portanto um pouco mais jovem que a

geração enfocada aqui, foi pianista no álbum Obras (1970), de Édison Machado e

também imigrou para os EUA em 1972134

. Embora ainda muito jovem, Cardim

traça um retrato claro da situação vivida por estes músicos à época, vindos da

prática do samba moderno em que sua atividade era investida de grande valor, e

que se vêem tendo que seguir um certo padrão de fazer musical que lhes pareceu

como uma imposição externa. Conforme seu relato, o interesse musical foi

soterrado pelo imperativo da “letra” de música de teor político, contendo palavra

inequívoca de repúdio ao golpe militar de 1964.

Naquela época aconteceu uma coisa assim na música brasileira, que não teve

mais saída, pelo seguinte: quando veio a ditadura tudo o que era fora do padrão,

por exemplo, Tenório (Jr., pianista) usava barba, então já era suspeito. Então,

quem não estava no padrão era comunista. Então não podiam se agrupar na rua

mais de três pessoas que os caras paravam pra pegar o documento, era uma coisa

horrorosa. Então, tocar jazz já era uma coisa assim meio comunista, porque

era uma coisa assim fora do padrão. E os letristas começaram a fazer aquelas

músicas de protesto “na boiada já fui boi”, o Geraldo Vandré, o Caetano e vários

outros compositores começaram a fazer música de protesto assim com uma letra

inteligente e os caras (da censura) não entendiam o que queria dizer, era tudo

figurativo. Mas a música em si - a parte musical - caiu muito, com os dois

acordes, ficava um nheco-nheco, e só a letra era inteligente politicamente.

Aquilo neguinho achava legal, não importava harmonia, melodia nem nada. A letra falando do que estava acontecendo de maneira inteligente, era o que

estava na moda. Aí os músicos ficaram assim: pô vou acompanhar esse cara? Pô,

vindo da Bossa Nova, aquelas composições, arranjos, Tom Jobim, Sérgio

Mendes... depois ficou muito banal musicalmente. (...) Então a música

instrumental deixou de existir, de uma hora pra outra. E não tinha um tema

novo pra tocar. Vamos tocar o quê?135

Cardim, portanto, como muitos músicos do sambajazz, entendia a

repressão política do regime militar não como especificamente estatal e ligada às

questões de controle do poder institucional, mas como um “clima” desfavorável

de negação de tudo o que era “fora do padrão”, nos termos de Cardim. Deste

134

Alfredo Cardim voltou ao Rio de Janeiro em 2009, após algumas idas e vindas, segundo ele. 135

Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese.

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ponto de vista, a própria canção universitária “de protesto” era entendida como

padronizada, em termos musicais. Estas se focavam nas letras politizadas “ditas”

por cantores capazes de guiar os consumidores de rádio e TV, reservando um

lugar secundário à “música em si”, entendida como atividade de músicos

alienados da questão politica. Assim, os músicos se viram gradativamente

excluídos do centro da cena musical que tinham por vezes conseguido ocupar até

então, e lhes restava apenas “acompanhar” cantores celebridades.

Em um artigo de jornal de 1976, Ana Maria Bahiana cita o letrista Aldir

Blanc, destacando que “suas preocupações são igualmente abrangentes e não se

limitam ao papel da letra e do letrista, mas envolvem toda a situação da palavra na

vida brasileira, hoje”:

Analisando do ponto de vista do criador, a perspectiva para o texto é muito

ampla. Somos um povo que necessita muito dizer seus problemas. Precisamos

aprender nossas queixas reais, o porquê delas e de que forma fazê-las

objetivamente. Não podemos prescindir da palavra (Aldir Blanc em

BAHIANA, 1980, p.191, grifos meus)

Os músicos do sambajazz, que vinham de uma prática que consideravam

grandiosa tanto em termos de música (harmonias, ritmos) como de letra, agora se

viam submetidos aos que lhes pareceu uma ditadura da palavra, dependendo

financeiramente de esquemas comerciais que lhes negava qualquer protagonismo,

e que por outro lado não lhes garantiu estabilidade financeira enquanto

profissionais.

É importante retomar a ideia de que tudo isto se deu dentro de um contexto

que favoreceu o entendimento bipartido da canção em palavra e som, ou letra e

música. O bossanovista Roberto Menescal, comentando sobre este período, reitera

a ideia da canção como uma música cindida em som e sentido, ou letra e música, e

a consequente reação dos músicos de deixar o país: “Mas aí surgiu a confusão

toda na música: a letra passou a ser mais importante que a música. No Rio,

todo bom músico se mandou. Do Arrastão em diante, vi que muita gente sem

valor algum teve sucesso porque fez música social.” (MELLO, 1976, p.162, grifo

meu).

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O guitarrista Frederico Mendonça de Oliveira, o Fredera, nascido em 1945

no Rio de Janeiro, cursou Letras na PUC-RIO, e se tornou músico profissional

durante o período da ditadura militar brasileira. Realizou trabalhos solo e “tocou

acompanhando estrelas da MPB de 70 a 84”. Escreveu o livro O crime contra

Tenório (1986), onde ele aborda o desaparecimento do pianista do sambajazz,

Tenório Júnior, raptado e assasinado em 1976 em circunstâncias misteriosas por

agentes da ditadura argentina durante uma turnê em Buenos Aires, em que

acompanhava Vinícius de Moraes e Toquinho. O mistério é agravado pelo fato de

que, segundo relatos de familiares e amigos, Tenório nunca assumiu posições

políticas contrárias às ditaduras militares brasileiras ou argentinas, então coligadas

sob a Operação Condor, que pudessem explicar o vil ato. Normalmente atribui-se

o fato a um engano por parte da polícia argentina frente a um músico de aparência

rebelde.

Assinalo que a censura, utilizada pelo regime militar como forma de

repressão à palavra cantada, acabou por se tornar um estímulo ao uso da canção

como forma de protesto. No entanto, a verdadeira vítima da censura acabou por

ser o samba moderno que, pela ausência de palavras de tom político contidas nas

letras das canções, passou então a ser desconsiderado em sua força política. A

maior vítima do regime militar brasileiro na classe musical foi justamente o

pianista Tenório Júnior, que jamais havia escrito uma palavra contra o Estado

militar, mas era “fora do padrão”, para usar a expressão de Cardim: quando ele

“desapareceu”, tinha aparência física considerada rebelde, pois usava cabelos e

barbas grandes136

. E era praticante de uma marginalizada “música instrumental”.

Tenório foi um músico de destaque, tendo gravado seu único disco Embalo

(1964), um LP importante para o sambajazz, aos 21 anos de idade apenas. O

álbum traz composições dele próprio e de Jobim, entre outros, além de contar com

a participação de músicos como Édison Machado e Raul de Souza.

Em seu livro, Fredera procura relacionar o assassinato de Tenório Júnior à

uma conjuntura política e econômica, caracterizada pela ditadura militar e pelo

surgimento de uma nova fase da indústria cultural internacional muito fortalecida

136

No Anexo II se pode ver uma fotografia do pianista Tenório Jr., com barba e cabelos grandes,

de 1976, ano de seu desaparecimento.

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a partir de fins dos anos 1960. Esta foi, segundo Fredera, prejudicial aos

“instrumentistas criadores brasileiros”, que ele opõe ao “mercado” e à “nova

canção”. Ele acusa o que foi já foi referido anteriormente como uma

“diáspora”137

, esta crise do meio musical em fins dos anos 1960, que levou muitos

músicos do sambajazz e da bossa nova a imigrar para o exterior em busca do

trabalho que escasseara aqui.

O texto abaixo, em forte tom crítico, tem a qualidade de dizer com todas as

palavras uma queixa que é frequente entre músicos desta geração, mas que

raramente é trazida à luz nos estudos sobre música brasileira. Fredera relaciona o

trágico desaparecimento de Tenório à desvalorização do instrumentista no Brasil

que se acirra neste período imediatamente posterior ao sambajazz:

Tenório Jr., fidalgo musical, integrava a verdadeira casta dos instrumentistas

criadores brasileiros, e orçava pelos 21 anos quando gravou seu disco e decolou

como compositor, arranjador e solista. Por curiosa ironia, a partir daquele

momento fatal os instrumentistas criadores seriam progressivamente

confinados num gueto de onde só sairiam para o exercício do papel de meros

coadjuvantes em trabalhos de cancionistas já então empossados no topo de

um edifício de inflexível índole mercantilista que deslocava a ênfase musical

e a compartimentalizava, minimizando sua essencialidade em benefício de

outros valores extra, sub ou paramusicais. (…) Tenório, como todos os

instrumentistas verdadeiros – ou quase todos: não esqueçamos dos que 'se

adaptam' -, padeceu a degradação resistindo, suportando, na esperança da

conversão daquele quadro pelo esgotamento do ciclo da 'nova canção' e pela

retomada do espaço para a qualidade instrumental. Foi assim que ele se agüentou

durante mais de dez anos: submetido a dificuldades de toda sorte, acompanhado

ao piano coisas para ele completamente vãs mas obrigatórias como atividades

para pagar as contas; nunca, porém, deixando de cumprir seu compromisso com a

música elevada. Foi assim também que, se esforçando em acompanhar intérpretes

cantores aqui e ali, um belo dia de 76 ele saiu para a Argentina no bojo de um

trampo para ele adverso e desinteressante em termos musicais, mas

inevitavelmente necessário para sua sobrevivência e de sua família. Não voltou

jamais. (OLIVEIRA, 1986, ps. 20 e 21, grifos meus).

Aqui está colocada claramente a oposição entre a música dita “de

qualidade” e um mercado dominado pelos “trabalhos de cancionistas já então

empossados no topo de um edifício de inflexível índole mercantilista”. Este

mercado, segundo Fredera, relega os “instrumentistas criadores” ao “papel de

meros coadjuvantes”, ou seja, de músicos contratados para shows de sucesso

dentro de uma lógica comercial e não cultural ou artística.

137 Ver Castro, 1990.

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Esta oposição é ressaltada em um livro sobre um músico de sambajazz não

por acaso. Para os integrantes do movimento que viveram um crescimento da

chamada “música instrumental” a partir de finais dos anos 1950, mas que

assistiram sua derrocada e sua substituição pela MPB universitária e

intelectualizada da “era dos festivais”, esta visão que opõe arte e mercado não era

incomum. O sambajazz é colocado aqui como “música elevada” em contraposição

a uma decaída canção que teria perdido seu caráter artístico nesta nova fase da

indústria fonográfica.

Ana Maria Bahiana, no artigo Música instrumental, o caminho do

improviso à brasileira (1980) expõe a problemática profissional do jazzista

brasileiro em um entendimento sobre os anos 1970 em que a oposição entre

música instrumental e vocal é qualificada. Segundo ela o termo música

instrumental não engloba o choro e a música erudita não vocal, mas refere-se

somente: “às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração dos

seus praticantes, os instrumentistas dispersos com o esvaziamento da bossa nova e

o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica.” (BAHIANA, 1980, p.77).

Ela entende que esta oposição entre música instrumental e canção, que

cresce no período pós bossa nova, é cíclica na música brasileira. “Mas além da

mera sobrevivência, o que se discutiu foi a efetiva participação do músico no

processo criador, a retomada da velha disputa cantor versus instrumentista, música

cantada e música improvisada” (Bahiana, 1980, p.79).

Em seguida Bahiana fornece um histórico da questão, com foco na geração

imediatamente posterior ao sambajazz:

O último grande momento instrumental do Brasil tinha sido a bossa-nova. Após

quase uma década de refinamento harmônico e depuração da síntese

jazz/samba – operada, em sua maior parte, por uma geração coesa de

instrumentistas, contemporânea em idade, cabeça, formação - a palavra

recuperou espaço com o racha da música de participação, ou protesto, de

meados dos anos 60. O predomínio do texto atingiu seu pique máximo com os

festivais, nos derradeiros anos 60 e primeiros 70 – e quando a censura

empenhou esforços para emudecer a música brasileira, os primeiros

murmúrios da música instrumental – sem texto, portanto, teoricamente,

incensurável e livre – se fizeram ouvir.

Eram músicos – quase todos compositores – da derradeira geração formada em

jazz e bossa, que iam começar a entrar em cena com força quando a palavra

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instaurou seu reinado. Em doses menores, havia sobreviventes da própria bossa,

exilados no posto de acompanhantes de cantores ou no exterior (...). (1980,

p.79, grifos meus).

Ambos os textos, de Ana Maria Bahiana e de Fredera, se fundam sobre a

oposição música instrumental artística versus canção comercial que foi mais forte

que nunca durante os anos 1970 e 1980, período em que foram escritos. Nessa

bipartição das músicas e dos músicos, restou aos chamados instrumentistas o

“exílio”, conforme escreve Bahiana, seja como “acompanhadores de cantores” no

qual se dá o exílio do músico na “palavra” e na canção comercial ou o exílio no

exterior.

4.3. As músicas sem voz

A difusão deste entendimento que separa a música instrumental da canção

não poderia ser circunscrita ao Brasil, embora ela tenha sido especialmente forte

aqui, entre os anos 1970 e 1980. No entanto ela remete ao século XVIII, sob o

conceito de música absoluta em oposição à música com palavras, que fundam a

tradição romântica alemã. De acordo com Carl Dauhaus, a expressão “música

absoluta”138

não é simplesmente um sinônimo “fora do tempo” para música sem

palavras, uma vez que o termo denota um conceito ligado a uma época histórica

específica com suas idéias sobre a natureza da música.

A idéia de música absoluta foi sintetizada pioneiramente pelo escritor

alemão E.T.A. Hoffmann (1736-1797), que falou enfaticamente de música como

estrutura. Para ele a música instrumental seria a verdadeira música.

(DAHLHAUS, 1989)

Este novo conceito sobre música que surgiu no romantismo alemão teve

que se confrontar, no entanto, com o antigo, expresso por Platão em A República,

segundo o qual a música consiste em harmonia, ritmo e logos. Assim, não bastava

a relação entre as alturas, ou notas, contida na harmonia ou o sistema de tempo

musical relacionado à dança e ao movimento, contido no ritmo, mas a música

138

Segundo Dahlhaus, a expressão música absoluta: “consists of the conviction that instrumental

music purely and clearly expresses the true nature of music by its very lack of concept, object, and

purpose. (…). Instrumental music as pure “structure”, represents itself . Detached from the

affections and feelings of the real world, it forms a “separate world for itself'” (1989, p.7).

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também deveria trazer logos ou significados. As palavras, portanto, não estavam

excluídas da música, nem a tornavam menos música mas, em sua sonoridade,

eram parte integrante dela. Conforme Carl Dahlhaus:

O que pode parecer óbvio hoje, como se estivesse indicado na natureza da coisa -

que a música é um fenômeno sonoro e nada mais, e que um texto é, portanto,

considerado um ímpeto 'extramusical' - prova ser um teorema historicamente

construído há não mais de dois séculos.139

(1989, p.8)

Se por um lado, com a ideia de uma purificada música absoluta os músicos

excluíram os poetas de sua música mais valorizada e os relegaram às palavras, por

outro lado linguistas, como Sausurre, viram no som uma “arbitrariedade” que lhes

negava a capacidade produzir signo, ou sentido, sem a junção com um significado.

O som por si só foi considerado incapaz de expressar sentido, desempoderado

entre palavras significantes. Segundo Saussure “O som (...) não passa de

instrumento do pensamento e não existe por si mesmo” (MARCONDES, 2009,

p.90). O antropólogo Tim Ingold explicita a divisão sausurriana que embasará o

conceito da linguagem como algo essencialmente diferente da música. Embora

ambas se valham de sons, estes seriam incapazes de formar signo sem a

intermediação dos sons-imagens (que são associados a sentidos), negando

implicitamente aos sons e à música a capacidade de significar por si só.

Mas, em olhar mais atento, verifica-se que as palavras, para Saussure, não

existem em sua sonoridade. Afinal de contas, ele observa, podemos falar com nós

mesmos ou recitar versos sem fazer qualquer som, mesmo sem mover a língua ou

lábios. Entendido em sentido puramente físico ou material, portanto, o som pode

não pertencer à linguagem. (...) Na linguagem, então, não há sons como tal; há

apenas o que Saussure chama imagens sonoras. Considerando que o som é físico,

a imagem-som é um fenômeno da psicologia – ele existe como uma 'marca' do

som na superfície da mente. (INGOLD, 2007, p.20)140

.

139

“What may seem obvious today, as though indicated in the nature of the thing – that music is a

sounding phenomenon and nothing more, that a text is therefore considered an 'extramusical'

impetus – proves to be historically molded theorem no more than two centuries old.” (1989, p.8) 140

But on closer inspection it turns out that words, for Saussure, do not exist in their sounding.

After all, he remarks, we can talk to ourselves or recite verse without making any sound, and even

without moving the tongue or lips. Understood in a purely physical or material sense, therefore,

sound cannot belong to language. (...) In language, then, there are no sounds as such; there are

only what Saussure calls images of sound. Whereas sound is physical, the sound-image is a

phenomenon of psychology – itexists as an ‘imprint’ of the sound on the surface of the mind”

(INGOLD, 2007 p.20).

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Ingold então, pergunta: “como se explica que a musicalidade essencial da

canção foi transferida dos seus componentes verbais aos não-verbais da melodia,

harmonia e ritmo? E, inversamente, como o som foi retirado da linguagem?”141

.

Esta oposição entre uma música despida de significados e uma linguagem

despida de sons (que são desdobramentos da oposição corpo e mente) vai se

reproduzir socialmente na bipartição entre e música instrumental e canção, onde a

suposta incapacidade dos sons de produzir signos por si mesmos vai ser usada em

favor da música com letra. Este entendimento terá consequências em certas

análises de canção de MPB, conforme Tiago de Oliveira Pinto:

Um mal-entendido comum entre pesquisadores não familiarizados com a

documentação musical é que pensam estar analisando e falando de música,

quando na verdade discorrem sobre a letra. Isso acontece muitas vezes em

trabalhos que versam sobre a MPB. (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.222)

Muitas das atuais análises de canção, especialmente no campo da

literatura, mas também em outras áreas acadêmicas, acabam por reproduzir essa

ideia da música como algo que não significa - música muda - e acabam por

141

“how did it come about that the essential musicality of song was transferred from its verbal to

its non-verbal components of melody, harmony and rhythm? And conversely, how was the sound

taken out of language?” Ingold recorre então a Walter Ong (2002) neste ponto: “One possible

answer has been persuasively argued by Walter Ong (1982:91). It lies, he claims, in our

familiarity with the written word. Apprehending words as they are seen on paper, both motionless

and open to prolonged inspection, we readily perceive them as objects with an existence and

meaning quite apart from their sounding in acts of speech. It is as though listening to speech were

a species of vision – a kind of seeing with the ear, or ‘earsight’ – in which to hear spoken words is

akin to looking at them. Take the example of Saussure. As a scholar, immersed in a world of

books, it was only natural that he should have modelled the apprehension of spoken words upon

his experience of inspecting their written counterparts. Could he, however, possibly have come up

with his idea of the sound-image, as a ‘psychological imprint’, had he never encountered the

printed page?

Ong thinks not, and it is on precisely this point that he takes issue with Saussure. In common with

a host of other linguists in his wake, Saussure regarded writing as merely an alternative medium

to speech for the outward expression of sound-images. What he failed to recognize, Ong thinks,

was that the sight of the written word is necessary for the formation of the image in the first place

(Ong 1982: 17; Saussure 1959: 119–20). The effects of our familiarity with writing do indeed run

so deep that it is quite difficult for us to imagine how speech would be experienced by people

among whomwriting is completely unknown. Such people, inhabiting a world of what Ong calls

‘primary orality’, would have no conception whatever of words as existing separately from their

actual sounding. For them, words are their sounds, not things conveyed by sounds. Instead of

using their ears to see, in the fashion of people in literate societies, they use them to hear.

Listening to words as we would listen to music and song, they concentrate on the sounds

themselves rather than on meanings that are supposed to lie behind the sounds. And for precisely

this reason, the distinction that we – literate people – make between speech and song, and which

seems obvious enough to us, would mean nothing to them. In both speech and song, for people at a

stage of primary orality, it is the sound that counts.” (INGOLD, p.22, 2007)

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empobrecer o entendimento da canção, focando a análise principalmente na

“letra”. Segundo Rafael de Menezes Bastos:

(...) muito comumente, se acaba reduzindo a análise do conteúdo da canção

exatamente à abordagem da letra, sendo que a música, mesmo que dissecada da

maneira mais atômica possível em sua realidade fonológico-gramatical, quase

nada acrescenta à análise enquanto elemento de detecção do conteúdo da canção.

Esse jogo espelhaste reproduz aquilo mesmo que se passa no território das

normas (mas não das regras) nativas, tipicamente no Ocidente: se a língua falada

aqui é vista como o campo por excelência de significação de conteúdo, a

música não, ela é construída como algo que somente “envia a si mesma”, no

máximo sendo ali qualificada como linguagem “expressiva” (que, no caso da

canção, daria ênfase à letra), eufemismo de sua demissão semântica no

pensamento ocidental. (BASTOS, 1996, grifo meu).

O dualismo intelecto e corpo, portanto, se instaura na música através de

outros dualismos correspondentes como letra e música. Neste entendimento

bipartido, a primeira é a “palavra” dotada de “sentido”, do lado do intelecto, e a

música é reduzida ao “som” despido de significado – pensado do lado do corpo.

Esta visão dual de mundo, que na prática termina por opor cantores a

instrumentistas, e letristas a compositores, será revindicada por muitos atores

destacados na cena do “samba moderno”, músicos ou letristas. A bipartição das

músicas, que se fortalece à época, entre canção e música instrumental vem

atender portanto a estas duas demandas complementares, de poetas interessados

quase que exclusivamente em “letras” de canção e de instrumentistas interessados

apenas em “música instrumental”, entendida como “pura” ou seja, sem voz.

Por outro lado, muitos músicos se opunham abertamente a esta bipartição,

incluindo voz e textos em práticas de sambajazz. E muitos cantores também

estavam interessados no que a música podia lhes oferecer de maneira mais ampla,

e não apenas na letra. Moacir Santos, além de arranjador, compositor e professor

de música, também cantava e compunha canções. Não poderia ser facilmente

enquadrado em produtor apenas de música instrumental nem somente de canção,

sendo ambos. Longe de ser um músico desinteressados por letras de música,

consta que Moacir Santos, pelo contrário, rejeitou uma letra do parceiro Vinícius

de Moraes para sua canção mais famosa Nanã, porque esta se referia a uma

amante sensual, enquanto Santos ao compor a música, ainda sem letra, a pensara

como homenagem a uma divindade do candomblé, Nanã. Neste caso, por

exemplo, Santos não se mostrou descuidado com relação à letra, mas, pelo

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contrário, foi seu zelo com o significado da mesma que o levou a rejeitá-la.

Posteriormente Mario Teles letrou novamente Nanã, a contento de Moacir Santos.

Trata-se de um caso de um cuidado excessivo com as palavras por parte do

músico. Santos era também um bom cantor e sua voz grave pode ser ouvida no LP

do musical Pobre Menina Rica, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes142

.

Assim, a grande dicotomia que pretendo mostrar aqui como central para

este período estudado, não se encontra na oposição entre letristas e músicos, nem

entre cantores e instrumentistas, mas antes entre os que viam a música brasileira

dividida entre letra e música e, por outro lado, os que não remetiam a esta

dicotomia em suas práticas musicais. Estes em geral não eram propensos a usar

de palavras para defender esta oposição. Faziam-no em suas músicas, tendo como

tática (DE CERTAU, 1994) o desrespeito a esta bipartição rígida das músicas que

se tornou uma imposição da indústria cultural brasileira. Esta tática consistia em

transformar “música instrumental” em “canção”, ao acrescentar letras ao que

havia sido concebido independente de palavras, ou, ao contrário, executar canções

de forma “instrumental”, omitindo-lhes as palavras.

As fronteiras rigidamente colocadas pelas estratégias da indústria e das

elites literárias emepebistas de opor rigidamente e de forma hierarquizante

músicos e cantores, assim como música instrumental e canção eram, portanto,

profanadas143

nas táticas de instrumentistas e cantores que “não se adaptaram”,

nas palavras de Fredera144

, à esta ideologia bipartite da MPB. Pois, conforme se

viu, as canções de Donato e Santos, como Nanã (Santos e Telles) ou Bananeira

(Donato e Gilberto Gil)145

, nasceram como música instrumental, e foram

posteriormente transformadas em canções, procedimento que profana esta rígida

cisão entre os gêneros, classificação cara à indústria cultural de então. Estes

músicos (cantores incluídos) se aproximavam do que poderíamos chamar do

contínuum que se estabelece entre som (música) e sentido (palavra, letra),

142

É possível ouvir Moacir Santos cantando o Samba do Carioca (Lyra e Moraes), no DVD de

áudio em anexo. 143

(AGAMBEN, 2007) 144

(OLIVEIRA, 1986) 145

Bananeira foi inicialmente gravada por Donato, ainda instrumental, sob o título Villa Grazia.

Esta versão pode ser ouvida no DVD em anexo, assim como as duas versões, instrumental (por

Édison Machado) e cantada (por Wilson Simonal), de Nanã, originalmente Coisa n.5, de Moacir

Santos com letra posterior de Mario Telles.

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trabalhando com vozes e letras; e usando destas táticas musicais contra as

estratégias comerciais da indústria cultural da época, que lhes excluía enquanto

criadores.

4.4. João Donato: a palavra ou a coisa

O pianista João Donato, acreano, filho de um aviador militar, tentou a

profissão do pai, mas foi reprovado aos dezoito anos no exame de vista para

piloto. Como tocava o acordeão com fluência - um presente dos pais quando

criança - decidiu se tornar músico, a despeito da aura de “vagabundagem” que

cercava a profissão. Por isto no seu primeiro álbum Chá Dançante (1956), Donato

toca não apenas piano, que foi seu instrumento principal ao longo da carreira, mas

também acordeão. Em entrevista que concedeu para esta pesquisa Donato disse

que este álbum traz Jobim ao piano nas faixas em que ele, Donato, toca acordeão.

Jobim, na condição de produtor musical do álbum, lhe ofereceu uma lista de

músicas das quais ele selecionou o repertório “dançante”, conforme o título.

Apesar da ligação explicita com a música de dança - ou justamente por ela

– este álbum é um dos germes do samba moderno de então, que veio a ser

rotulado e subdividido em bossa nova ou sambajazz. Mesmo os que têm uma

visão mais essencialista da bossa nova, remetendo-a exclusivamente à batida de

violão de João Gilberto e à sua interpretação concisa tendente ao cool jazz, podem

encontrar suas características neste álbum pioneiro, especialmente nos sambas do

lado A do LP, como Comigo é assim, ou Se acaso você chegasse, sendo o lado B

dedicado à música nordestina, então muito em voga no Rio de Janeiro.

É difícil diferenciar inequivocamente o sambajazz da bossa nova sem que

se reduza por demais o escopo destes movimentos. Os dois álbuns centrais tanto

para o sambajazz que Donato lançou em 1963, Muito à vontade e A bossa muito

moderna, apesar de instrumentais são extremamente concisos e próximos de uma

simplicidade atribuída à canção, que seriam características bossanovistas. Muitas

músicas destes álbuns, de fato, se tornaram posteriormente canções, com letras de

Gilberto Gil ou Martinho da Vila, dentre outros.

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185

Sergio Porto, em crítica de 28/05/1964 para o jornal Última Hora,

identifica o LP Muito à Vontade como sambajazz, no entanto. Apesar de ter sido

crítico ao movimento em outras ocasiões, e ter achado ao acordeão de Donato da

época de O chá dançante “meio chato”, ele parece ter gostado do que ouviu no

novo LP, e profetiza acertadamente que o álbum se tornaria um ítem de

colecionador. Ele já assinalava nesta crítica o ecletismo de Donato, característica

que o acompanhou ao longo da carreira posterior.

MUITO À VONTADE - Quem está (realmente) muito à vontade a dedilhar o

teclado de um piano é Donato, perfeitamente sustentado por dois expoentes do

'samba-jazz': Milton Banana (bateria) e Tião Neto (baixo). Donato, no fim da

década de 40, surgiu no Rio tocando um acordeão meio chato, em conjuntos de

buate. Firmou-se como bom instrumentista, quando com seu inegável ecletismo,

passou a tocar trombone e piano. Quando saiu do Brasil e foi residir nos Estados

Unidos, onde é respeitado pelos músicos de 'afrojazz', já era muito bom.

Interpretando o 'samba-jazz' tão em voga hoje tanto no Brasil como nos Estados

Unidos, Donato está, portanto, como diz o título do disco, à vontade. Este LP

será um dia uma raridade e os colecionadores devem guardá-lo com carinho.

Donato hoje está radicado nos estados Unidos e gravou as doze faixas ora

editadas, numa rápida estada no Rio, onde esteve para matar saudades e voltar

logo aos seus contratos na Califórnia, onde reside. - (POLYDOR).146

(grifos

meus)

Donato normalmente prefere ser associado ao sambajazz que à bossa nova.

Neste trecho da entrevista que concedeu para esta tese ele fala da gravação dos

álbuns citados acima e sobre sua dificuldade em enquadrar sua música nestas

categorias.

Gabriel: Os álbuns Muito a Vontade e A bossa Muito Moderna você gravou na

mesmo semana...

Donato: Na mesma semana, foi segunda, terça, quarta e quinta e tínhamos

aprontado dois discos.

G: E a banda desses dois discos é a mesma banda que viajou com você João

Gilberto à Europa, certo?

D: Sim, Amaury, Tião Neto e Milton Banana.

G: Você diria que esses discos são de bossa nova, ou seriam de sambajazz, ou

ainda, nenhum dos dois ou os dois ao mesmo tempo?

D: É dificil pra mim classificar... eu acho que faz parte do sambajazz porque

eu sempre tive uma dificuldade em me chamar de bossa nova, assim. Eu

sempre passei por cima da onda da bossa nova, eu fui passar pelo outro lado.

(...) Eu sou mais um sambajazz do que uma bossa nova, mas é aceitável na

bossa nova a minha colaboração.

146

Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=99864.

Acesso em 17/07/ 2014.

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186

Uma forma de separar a bossa nova do sambajazz é associando a primeira

à João Gilberto e a segundo a João Donato, sendo ambos formuladores do samba

moderno de então. Minha Saudade, uma parceria entre ambos, seria então uma

música pioneira tanto do sambajazz, quanto da bossa nova147

. Ela foi composta e

gravada inicialmente de forma “instrumental” por Donato, e posteriormente

letrada por João Gilberto, em uma letra minimalista e bossanovista.

Como a bossa nova e o sambajazz, os dois músicos tinham muito comum,

além do nome e da aparência física. Segundo Ruy Castro:

(João Gilberto e João Donato) Descobriram também que eram parecidos em

outros sentidos, até mais importantes. Musicalmente, os dois exigiam tudo dos

outros e um pouco mais de si mesmos, o que tornava difícil sua convivência em

grupo – ninguém parecia bom o suficiente para tocar com eles. Mas, deste rol de

exigências não constava um enorme apego à disciplina, e isto nem sempre era

muito bem compreendido pelos seus empregadores. Com tantas afinidades, era

normal que se ligassem como carne e unha naqueles primeiros e incertos anos 50

– e que, diante dos outros, se comunicassem num incômodo código, composto

mais de silêncios que de palavras, ligeiramente inacessível aos mortais. Isto

valeu a ambos a fama de excêntricos, da qual nunca se livraram (1990, p.77, grifo

meu).

O saxofonista Ion Muniz, que foi amigo pessoal de ambos, também

descreve João Donato ressaltando a semelhança deste com João Gilberto, em suas

Crônicas (s.d.). Muniz levanta a possibilidade de a famosa “batida da bossa nova”

ao violão de João Gilberto ter sido inspirada nas levadas de mão esquerda de João

Donato ao piano. Ele não entende a criação batida da bossa nova de forma autoral,

como é comum em certa construção da categoria bossa nova que a atribui

exclusivamente a João Gilberto, mas coletiva, como algo que “brota como os

cogumelos, em vários lugares”, simultaneamente.

Donato é uma espécie de alma gêmea do João Gilberto. Há quem diga que foi

Donato que inspirou as batidas modernas que João trouxe ao mundo. Donato é

canhoto, e usa muito a mão esquerda. Pessoalmente eu acho que quando algo está

para surgir (no caso a batida da Bossa Nova), ela brota como os cogumelos, em

vários lugares. (Ion Muniz, Crônicas, s.d.)

João Donato sempre resistiu em ser nomeado como um bossanovista,

assim como Tom Jobim. O problema não residiria apenas no rótulo, mas no

perigo de se nomear qualquer coisa, em prejuízo da compreensão sobre a mesma.

147

Esta música pode ser ouvido no DVD em anexo.

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187

Em entrevista para Zuza Homem de Melo, de 1976, Jobim fala: “O dar nome as

coisas prejudica a compreensão: quer dizer eu chamo Maria de Maria, e penso

que conheço Maria, quando Maria não é nada disso” (1976, p.109, grifo meu). Em

outras ocasiões Jobim deu declarações neste mesmo sentido a entrevistadores.

Pela ocasião do lançamento de seu primeiro álbum cantado, Quem é

Quem, João Donato comentou com o jornalista Tarik de Souza sobre a letra

original de O Sapo (posteriormente renomeada como A rã, na letra de Caetano

Veloso) que compôs com a ajuda de João Gilberto e Tom Jobim. A curiosa “letra”

inventada pelos três músicos fundadores do samba moderno, não “dava nome” à

coisa, nem se utilizava de palavras, mas imitava diferentes coaxares de sapos. É

como se o coaxar dos sapos, justamente por que “não quer dizer nada”,

significasse bem mais do que palavras. Abaixo, João Donato fala sobre a criação

da “letra” de O Sapo:

Mas, na verdade, ela deveria ser uma parceria minha com o João Gilberto e o

Tom Jobim. Imaginamos cada um uma espécie diferente de sapo coaxando, o

corongodó, o casaingué e o quiringuindin, que repetidos formam a letra da

música, que por fim não quer dizer nada. (TARIK, 1979, p.145, grifo meu)

Na mesma crítica de Quem é quem, publicada no Jornal do Comércio em

26/08/73, fica evidente a resistência de Donato em fechar os sentidos múltiplos

dos sons em palavras, escolhendo-as então por sua sonoridade.

Donato ficou a vontade a ponto de mandar um exotérico recado a seus amigos da

Paracambi, na faixa Ayê, que por um mistério inexplicável foi o nome sonoro

que ele encontrou para descrever a cidade. Em resumo, como diz a letra ‘Ayê é o

que você quer dizer’”. (TARIK, 1979, p.145, grifo meu)

Lévi-Strauss discute o interdito do nome, a partir da análise de um mito

indígena sobre a origem da raridade do mel, que reproduzo abaixo:

M233 ARAWAK: POR QUE O MEL É TÃO RARO NOS DIAS ATUAIS

Outrora, os ninhos de abelhas e o mel eram abundantes no mato e um homem

ficou famoso por seu talento em encontrá-lo. Certo dia, enquanto ele escavava um

tronco a machadadas para tirar mel, ouviu uma voz que dizia: “Cuidado! Você

está me machucando!”. Ele prosseguiu com cuidado e descobriu dentro da árvore

uma mulher encantadora que disse chamar-se Maba,“mel” e que era a mãe ou

Espírito do mel. Como ela estava inteiramente nua, o homem juntou um pouco de

algodão, com o qual ela fez uma roupa, e ele a pediu em casamento. Ela

consentiu, sob a condição de que seu nome jamais fosse pronunciado. Eles

foram muito felizes durante vários anos. Assim como ele era considerado por

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todos como o melhor buscador de mel, ela ficou famosa pela maneira

maravilhosa como preparava o /cassiri/ e o /paiwarri/. Qualquer que fosse o

número de convidados, bastava-lhe preparar uma jarra de bebida, e esta única

jarra punha todos no estado de embriaguez desejado. Ela era realmente uma

esposa ideal.

Porém, certo dia, depois de beberem tudo, o marido, sem dúvida um pouco

alterado, achou que precisava desculpar-se perante seus inúmeros convidados.

“Da próxima vez”, disse ele, “Maba preparará mais”. O erro fora cometido e o

nome pronunciado. Imediatamente, a mulher se transformou em abelha e voou,

apesar dos esforços de seu marido. A partir de então, sua boa sorte desapareceu. É

desde essa época que o mel tornou-se raro e difícil de ser encontrado. (Roth 1915:

204-05)” (2010, p.142, grifos meus)148

O mel, para estes indígenas americanos, é o que perturba a ordem

estabelecida, pela sedução de sua doçura. Ele renega o princípio do “esperar a

hora” para se satisfazer, provocando gulas suicidas nas personagens míticas. Mas

o que interessa aqui é o interdito da nomeação. O herói dispunha de mel em

fartura até encontrar uma mulher encantadora de mesmo nome, Mel, que

personificava a doce iguaria. Sedutora, ela o provê de delícias, mas o proíbe de

pronunciar seu nome. Quando, por descuido, ele o fez, embriagado de bebidas

fermentadas por ela preparadas, Mel transformou-se em abelha e se foi para

sempre. O mel, uma vez nomeado, escapou-lhe, tornando-se raro. Foi a palavra,

portanto que, ao nomear a coisa, fez com que ela se desvanecesse no ar. É como

se o nome tomasse o lugar da coisa, impedindo-lhe a existência.

O nome do som, substantivado em gênero musical, desvia o ouvinte do

fenômeno sonoro. Donato e Jobim evitam ver nomeada a bossa nova, sob pena de

escapar-lhes a música em troca dos clichês que vêm à mente de quem ouve o

148

Ainda segundo Lévi-Strauss: “Abordemos o mito por este viés. Todo o grupo do qual ele faz

parte evoca alternativa ou concomitantemente dois tipos de condutas: uma conduta verbal, relativa

a um nome que não se deve pronunciar ou um segredo que não deve ser traído; e uma conduta

física em relação a corpos que não devem ser aproximados. M²³³, M²³⁴, M²³⁸, M²³⁹ (primeira parte)

ilustram o primeiro caso: não se deve pronunciar o nome de Abelha ou censurar sua natureza, trair

o segredo de Wau-uta, dizer o nome do Jaguar. M²³⁵, M²³⁶, M²³⁷, M²³⁹ (segunda parte) ilustram o

segundo caso: não se deve molhar o corpo da abelha ou da rã com a água que os humanos utilizam

para lavar-se. Trata-se sempre de uma aproximação maléfica entre os dois termos. Um destes

termos é um ser vivo e, de acordo com o caráter verbal ou físico da conduta evocada, o outro

termo é ou uma coisa ou uma palavra. Pode-se então afirmar que a noção de aproximação é

tomada no sentido próprio, no primeiro caso, e no sentido figurado, no segundo.

O termo ativamente aproximado do outro pode, por sua vez, se apresentar sob dois aspectos. Como

palavra (o nome próprio) ou como proposição (o segredo), ele é compatível com o ser individual

ao qual é aplicado. “Abelha” é, com efeito, o nome da abelha, “Jaguar” é o nome do jaguar e é

igualmente verdadeiro que Maba e Wau-uta são responsáveis pelos benefícios que proporcionam.

Mas quando se trata de uma coisa (neste caso, a água), ela é incompatível com o ser do qual a

aproximam: a água dos humanos não é compatível nem com a abelha nem com a rã.” (2010,

p.160).

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nome, ou o rótulo. Quem pensa em bossa nova pode, por exemplo, associar os

sons da música a um apartamento burguês de Copacabana dos anos 1960 e,

dominado por este clichê inicial, perder a riqueza de tudo o mais que esta música

pode significar. A palavra, longe de ser desprezada por estes músicos têm,

portanto, um grande peso para eles. Evita-se a palavra rotulante, que encerra a

música em um gênero, para que outros sons e palavras possam emergir da

experiência musical.

O problema do nome se torna especialmente interessante em João Donato,

que resistiu não apenas a ser nomeado como bossanovista, mas gravou apenas

músicas instrumentais em seus primeiros álbuns, isto é, sem palavras que

nomeassem os seus sons. Pois nomear é, de certa forma, aprisionar o sentido,

fechá-lo em palavras. Para um músico, mais interessado em fazer música que em

classificá-la – esta atividade posterior mais apropriada a jornalistas e executivos

de gravadoras – pouco interessa que sua música seja nomeada e apreendida

enquanto “gênero musical”. A música para ele se apresenta como performance

inapreensível em um rótulo, porque muito mais rica em desdobramentos e

significados do que o rotulo que pretende dar conta dela em uma palavra.

A questão do nome/rótulo que aprisona o movimento musical em palavras,

também se desdobra em outro nível: no da letra de música. Mas aqui ocorre uma

solução diversa. Se nas músicas “politizadas” apresentadas nos Festivais da

Canção, como em Arrastão (de 1965, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes) era na

letra que consistia a tão falada Opinião149

, os músicos de sambajazz tinham outra

relação com a palavra. Esta era entendida por eles como parte integrante da

música, e não como literatura sobre sons musicais ou “conteúdo” significativo

superposto à passiva “forma” musical. Neste entendimento sambajazzista, a letra

de canção, a palavra, é antes de tudo musical, porque flui junto à ela, como parte

dos seus movimentos sonoros. Pois as palavras se apresentam, antes de tudo,

sonoras, afirmação com que concordariam também muitos poetas. A letra, então,

não é exterior ao som, mas é parte dele. A música engloba a palavra de tal forma

que, mesmo antes de ser letrada a música já contêm em si a canção. Como disse

149

Samba de Zé Keti que nomeou peça homônima com Nara Leão, Zé ketie João do Vale, em

protesto contra a remoção de favelas no Rio de Janeiro, em 1964 (MELLO, 2003, p. 86).

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com simplicidade João Donato, em entrevista para esta tese, “a música com letra,

é claro, vira uma canção”.

Donato, que até o LP Quem é Quem (1973) havia gravado apenas canções

instrumentais em álbuns seus, ou seja, sem voz, mostra como o uso de letras foi

despertado de forma mais ou menos ocasional por um pedido do cantor Agostinho

dos Santos:

Gabriel: Como é sua relação com os letristas? Até o Quem é quem, de 73, você

fazia álbuns instrumentais. Você conta em uma entrevista que o Agostinho dos

Santos falou pra você...

Donato: (Imitando Augustinho dos Santos) “vai gravar, vai gravar de novo

tocando piano? Mas rapaz, você já deixou um disco aí explicando como é que

toca piano, vai gravar outro? Se eu fosse você botava umas letras. Pra nós

cantores seria indispensável. Nós não cantamos suas músicas, não tem letra!” Aí

me deu aquele negócio assim, será? Ai tocamos à toque de caixa. Precisava de

dez letras pra semana seguinte, a gravação já estava marcada, e era com letra. E

eu não tinha escolhido as tonalidades de acordo150

.

Não há, portanto, uma diferença essencial entre a música instrumental -

sem letra - e a canção, mas apenas contingencial, para Donato. As músicas

instrumentais se tornaram canções, bastando para tanto letrá-las. É possível pensar

então, se quisermos reunir os termos da bipartição abordada, no conceito de

canção instrumental, isto é, de uma música ainda sem voz, mas que a qualquer

momento pode se tornar canção com uma letra, caso se queira cantá-la. Foi essa

presença vocal na música instrumental de Donato que permitiu que suas músicas

fossem letradas tão rapidamente para o hoje festejado álbum Quem é quem (1973).

A palavra, sonora, é então incorporada pela música que, afinal de contas,

já tinha desde sempre a vocação para ser cantada. E o processo reverso continua

sempre disponível: é possível tocá-la instrumental novamente, ainda que agora o

instrumentista possa pensar na letra da música e flexionar a melodia ao

instrumento de acordo com ela, enquanto toca. Este entendimento difere de certa

concepção emepebista que entende que a canção sem a letra tende a soar

incompleta, e perde estatura. Esta concepção certamente se liga também à uma

reação à censura militar de letras de canções, comum nos anos 1970. As canções

150

Em entrevista para esta tese.

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seram então por vezes executadas “sem letra” em shows, apenas como forma de

protesto por sua “mutilação”151

.

Donato diferencia, portanto, a tendência à vocalidade da tendência à

instrumentalidade na música. Estas tendências não estão essencializadas na

oposição rígida canção versus música instrumental, mas convivem no interior de

uma mesma música. Uma melodia de tendência vocal, neste sentido, se

movimenta menos que uma de tendência instrumental, evitando grandes saltos

melódicos, que são mais apropriados aos instrumentos musicais, percorrendo as

notas preferencialmente em notas próximas, ou “por grau conjunto”, para usar um

termo musicológico.

Para que se tenha uma ideia mais clara sobre esta distinção, cito um

exemplo de uma canção - o Samba de uma nota só (Jobim e Mendonça) - que traz

em si as duas tendências, muito claramente colocadas e propositalmente

contrastadas, algo que é evidenciado também pela letra. Na parte A da música

temos uma vocalidade exagerada, na repetição de uma só nota: “Eis aqui este

sambinha, feito de uma nota só, outras notas vão entrar, mas a base é uma só”.

Na parte B, por contraste, prolifera a tendência à instrumentalidade, em uma

melodia rápida com uma grande extensão e, portanto, de mais fácil execução em

um instrumento como a flauta do que pela voz: “Tanta gente existe por aí que

fala tanto e não diz nada, ou quase nada...”. A letra da música - que transcrevi

para remeter à melodia da música, uma vez que elas estão associadas na mente do

ouvinte - comenta este contraste entre a nota só (tendência vocal) e a prolixidade

das muitas notas (tendência instrumental). Portanto estas tendências não servem

para dividir as músicas do mundo em categorias estanques mas, pelo contrário,

são instrumentos de variedade no interior de uma mesma música, como prática

musical corrente.

Nessa história contada por Donato sobre a transformação do seu álbum

“instrumental” em um Quem é quem (1973) “letrado”, o cantor Agostinho dos

Santos representa a figura do cantor com seu apelo mercadológico neste contexto

151

Cito como exemplo a tentativa de performance “sem letra” de Chico Buarque e Milton

Nascimento em protesto à censura da canção "Cálice" no show Phono 73, organizado pela

gravadora Phonogram (atual Universal) no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo,

em maio de 1973.

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da indústria fonográfica brasileira de então. Este lhe pede a letra para que possa

cantar. Em outro trecho da entrevista, Donato remete a Menescal ao invocar esta

questão. Neste período pós bossanovista, era preciso ser gravado por um cantor de

sucesso para se ganhar dinheiro com a música.

Gabriel: Você falando dessa oposição entre canção e música rápida me lembrou

daquela sua música que era originalmente rápida, Índio Perdido, e que depois

ficou lenta quando recebeu a letra do Gil e se tornou a canção Lugar Comum. Isso

foi ideia sua, gravar a música mais lenta?

Donato: Foi um conselho do Menescal. Na época em que eu resolvi gravar

cantando o Quem é quem, o Menescal me falou: não fica fazendo música nova

pra botar as letras, bota letra naquelas que você já tem, é só diminuir a velocidade

(e cantarola, em andamento bem mais rápido, a música que se tornou Gaiolas

Abertas, com Martinho da Villa, mais lenta). Diminui o ritmo e bota letra!152

Também ao nomear suas composições os músicos do sambajazz são

cuidadosos com a palavra. Os títulos dos álbuns e das músicas de sambajazz

traduzem a forma como músicos imaginavam o “significado” do seu “som”. Dois

títulos de LPs, um deles já citado, contribuem para entender este ethos do

sambajazz: Muito à Vontade (1963) de João Donato e À vontade Mesmo (1965),

de Raul de Souza. Estar à vontade (“muito”, para Donato ou “mesmo” para Raul)

parece ser a pré-condição não apenas para uma boa música, como para uma boa

existência, em um sentido mais amplo. Como a música, que se espalha pelo

ambiente, tomando com suas ondas sonoras cada reentrância, fazendo vibrar cada

parte do local e do corpo das pessoas, o músico deve estar à vontade para que sua

arte se instaure entre todos.

Os músicos do sambajazz partem deste ponto anterior à bipartição música

e palavra (e que não a exclui), e procuram instalar um clima “musical”, assim

como os frequentadores negros do clube Renascença, nos anos 1950, etnografado

por Giacomini (2006), buscavam estar entre os seus, em um ambiente

acolhedor153

. Para se realizar uma tarefa qualquer, e não apenas a música, deve-se

152

João Donato, em entrevista para esta tese. 153

Sonia Giacomini também assinala a importância da expressão “estar à vontade” entre os

frequentadores do Clube Renascença, no Rio de Janeiro, fundado em 1951 por uma elite de negros

preocupados com a construção de um espaço social para eles. Segundo ela:

Como o clube era o ponto de partida e de encontro desse variado leque de recreações, todos

tinham, por assim dizer, certa garantia de que encontrariam pessoas iguais, isto é, da mesma cor,

de mesmo “nível”, com os mesmo hábitos e preferências, respeitadoras das mesmas regras de

comportamento. Esse estar entre os seus fazia do Clube um ambiente acolhedor, verdadeira

extensão do espaço familiar, o que conferia a cada um dos participantes dos eventos a confortável

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estar relaxado o suficiente para se atingir a concentração necessária. Assim, um

escritor deve estar “à vontade”, ou seja, tranquilamente concentrado, para escrever

(muitas vezes escritores profissionais preferem o silêncio e a reclusão para tanto),

assim como um jogador de futebol tenso, demasiado nervoso antes de uma partida

importante pode “amarelar” isto é, perder sua força vital e desconcentrar-se com

os gritos da torcida e as câmeras da mídia, caso não esteja “à vontade mesmo”.

Os ambientes musicais como jam sessions, ou mesmo apresentações em

casa noturnas onde diversos músicos profissionais se encontram, costumam trazer

um componente competitivo entre eles, em maior ou menor grau, dependendo do

caso. Pois trata-se de uma profissão instável, onde empregos regulares são raros, o

que acirra esta competição pelo próximo trabalho, fato que gera certa tesão no

ambiente musical. Como todo artista que depende de uma performance à qual o

seu valor está inevitavelmente atrelado, ele corre sempre o risco de se deixar

contaminar pelo nervosismo a ponto de se desconcentrar. Talvez ele não tenha

praticado música o suficiente aquela semana e esteja “enferrujado”, o que o levará

a uma situação de angústia que pode prejudicar sua performance. Assim, estar

“muito a vontade” é o pré-requisito deste percurso que, seguindo pelas palavras

escolhidas como títulos dos álbuns, conduz a muitos verbos e menos substantivos.

Os dois álbuns mais significativos do sambajazz, como já foi afirmado

anteriormente, são É Samba Novo (1963), de Édison Machado e Você ainda não

ouviu nada! (1964) de Sérgio Mendes. Se observarmos os títulos dados a estes

álbuns podemos ter uma ideia da relação dos músicos de sambajazz com a

palavra.

No álbum de Édison Machado, o verbo ser no presente do indicativo, “É”,

lança à frente o “samba novo”. Trata-se de um samba moderno e em movimento,

catapultado pelo verbo que o precede. Como em uma célula rítmica de samba,

breve e coesa, o nome É samba Novo (1963) contém um ritmo de três acentos que

iniciam um trajeto sonoro com grande energia. Como na levada de bateria de

Édison Machado, que percurtia com forte intensidade as breves células rítmicas

sensação, quase sempre verbalizada através da expressão ‘estar a vontade’ (GIACOMINI, p.33,

2006).

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do tamborim de samba no prato de condução da bateria, o nome em movimento

verbal acentua o samba moderno de então.

“Ouvir” a novidade, por outro lado, é o verbo mais importante para Sérgio

Mendes. Toda a energia daquele jovem pianista sedento por ser moderno, e que

em breve iria se tornar um dos maiores sucessos populares de um brasileiro nos

EUA em todos os tempos, estava contida naquele título: Você ainda não ouviu

nada! (1964). Com quem diz: “ouçam-me, eu sou o futuro da música brasileira”, o

título parecia prever essa trajetória vencedora de Sérgio Mendes e do seu

sambajazz.

A importância dos verbos nos títulos dos LPs de sambajazz se liga à

valorização da performance musical, que é algo central a todos estes álbuns,

sempre gravados ao vivo, ainda que no estúdio. Isto se deve, por um lado, às

contigências das técnicas de gravação à época, mas se liga também ao fato de que

a improvisação no sambajazz, assim como no jazz, é algo que só atinge a

plenitude na performance ao vivo.

Outros nomes de álbuns do sambajazz também são reveladores do lugar da

palavra neste movimento. Moacir Santos chamou de Coisas suas composições,

que foram registradas pela primeira vez no álbum em que foi arranjador, Baden

Powell swings with Jimmy Pratt (1962)154

. Segundo Moacir Santos, ao ser

perguntado pelo nome de suas duas músicas que estavam sendo gravadas, ele

respondeu que eram simplesmente coisas, número um e número dois, numeradas

como no sistema classificatório de opus, na música erudita155

. “Coisa” é uma

154

A gravação de Coisa n.1 presente em Baden Powell swings with Jimmy Pratt (1962) pode ser

ouvida no DVD em anexo. 155

Segundo Moacir Santos, em entrevista concedida a este pesquisador: “Muito bem. Certa vez na

casa de Vinícius (de Moraes) no Parque Guinle, parece, o Baden me convidou para participar do

disco dele, com um americano, não me lembro bem o nome dele...

Gabriel: Seria o LP Baden Powell Swings with Jimmy Pratt?

M: É isso aí, Jimmy Pratt. Então o Jimmy Pratt convidou o Baden a gravar um disco, o estúdio

ficava na avenida Rio Branco.

Eu me lembro disto... mas é interessante o que eu vou lhe responder: eu, quando na minha vida de

estudos, fiquei muito entusiasmado com a erudição, o clássico... eu fiquei agarrado com a palavra

opus. Quando eu cheguei na gravação, a convite do Baden, no estúdio, o moço desceu da ...

técnica e disse: maestro, qual é o nome dessa... aí eu disse: isso é uma coisa. Porque? Porque eu

gostaria de dizer opus 5, number tal, mas é uma coisa muito elevada para mim. Pelo menos

naquela ocasião, naquela época...mas eu sei que eu estou muito mais maduro, em vez de opus

qualquer, no popular, jazz. Mas eu ainda não posso dizer opus, não, porque eu sempre fui

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palavra que designa a quase tudo, e que, portanto termina por não designar nada

em particular. A palavra “coisa” é, neste sentido, um anti-nome. A preocupação

de Santos foi, portanto, a de nomear não nomeando, dando às suas músicas o

status ontológico de coisa indefinida e aberta ao mundo das percussões e ritmos

afro-brasileiros.

admirador do clássico também, a música erudita, quer dizer, desenvolvimento e etc... então é uma

coisa: Coisa nº 1, Coisa nº 2...” (FRANÇA, 2007)

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5. A crítica e as categorias do som: como enquadrar o movimento das ondas sonoras?

5.1. Apresentação e breve histórico

O álbum Rio (1964), do saxofonista norte-americano Paul Winter, um dos

experimentadores da “mistura” de sucesso internacional entre samba e jazz, teve a

participação de músicos brasileiros como Roberto Menescal, Luis Bonfá e Luiz

Eça. O poeta e diplomata Vinícius de Moraes escreveu sobre as categorias

musicais bossa nova e sambajazz na contracapa deste LP, em janeiro de 1965,

mostrando a necessidade de se diferenciar os dois termos. Era preciso “pôr as

coisas em seus devidos lugares”:

Perdoe o leitor americano eu ter de personalizar assim. É que muita fantasia tem

sido escrita sobre a bossa nova, no Brasil como nos Estados Unidos, e já é mais

que tempo de pôr as coisas em seus devidos lugares. Ninguém quer a glória de

tê-la inventado. A bossa nova vem de uma série de conjunturas históricas,

econômicas e artísticas no Brasil, fruto do grande surto desenvolvimentista que o

país teve sob a presidência de Juscelino Kubitschek: o homem que, com dois

arquitetos, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, construiu em quatro anos a mais

moderna cidade do mundo: Brasília. Ela é uma filha moderna do samba

tradicional, que teve o seu namoro com o jazz, sobretudo o chamado "West

Coast", mas que, tal como a praticam seus melhores homens: Jobim, João

Gilberto, Lyra, Menescal, Donato, Castro Neves e Baden Powell, não sofreu

nenhuma descaracterização, nem perda de nacionalidade. O que se

convencionou chamar de "samba-jazz" nada tem a ver com a bossa nova;

nem, para ir mais longe, com samba ou com jazz. É um híbrido espúrio. A

verdadeira e orgânica influência do jazz no moderno samba brasileiro está na

liberdade de improvisação que criou para os instrumentos e também na orientação

do uso do tecido harmônico, que veste a melodia com uma graça e leveza

desconhecidas no samba antigo, mais escorado no ritmo e na percussão.

Tanto assim que, nos melhores bateristas da bossa nova, como Milton

Banana, por exemplo, a percussão funciona freqüentemente com um sentido

harmônico, se é possível dizer assim. (MORAES, 1981, p.117, grifos meus).

Vinícius de Moraes foi um dos pais da bossa nova. Ele havia feito, em

1956, o musical Orfeu da Conceição em parceria com o músico Antônio Carlos

Jobim, um marco para o “samba moderno” que estava sendo formulado no Rio de

Janeiro de então, conforme foi abordado no capítulo 4. Por que o poeta, quase

uma década depois deste marco inicial, sentiu necessidade de diferenciar dois

estilos de samba moderno para o público norte-americano, - a bossa nova e o

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sambajazz - falando em “verdadeira influência do jazz” em oposição ao “híbrido

espúrio”?

A passagem dos anos 1950 para os 1960 foi um período de otimismo do

país com o seu futuro. Após uma primeira fase de grande industrialização ou

“modernização” a partir dos anos 1930, sob o comando de Getúlio Vargas,

Juscelino Kubitschek, um jovem político carismático, foi eleito democraticamente

e tomou posse em janeiro de 1956 como o primeiro presidente do Brasil nascido

no século XX. Ele se apresentou como um cruzado modernizador contra o

“atraso” nacional, comandando a ambiciosa construção de Brasília, a nova capital

de arquitetura modernista, e estabelecendo seu “plano de metas” destinado a fazer

a industrialização do país avançar “50 anos em 5”, conforme seu slogan político.

O Brasil, país periférico como outras jovens repúblicas latino-americanas,

passou por grandes fases de assimilação de influências culturais de países centrais

do primeiro mundo. O modernismo brasileiro de 1922 corresponde à decadência

de Portugal e Espanha enquanto meta simbólica de referência nacional156

, e a

ascensão da França enquanto nova meta principal157

. Não por acaso Pixinguinha e

Villa-Lobos, compositores centrais na música brasileira da primeira metade do

século XX, passaram temporadas em Paris custeados pela alta burguesia e pelo

Estado brasileiros, a fim de fortalecer esta rede legitimadora de intercâmbio

musical com a França (VIANNA, 2002).

156

Ver MICELI, Vanguardas em retrocesso (2012). 157

Segundo Renato Ortiz “Não se pode esquecer que os anos 40 marcam uma mudança na

orientação dos modelos estrangeiros entre nós. Os padrões europeus vão ceder lugar aos valores

americanos, transmitidos pela publicidade, pelo cinema e pelos livros em língua inglesa que

começam a superar em número as publicações de origem francesa. Publicações como a Revista da

semana, que se pautava por uma ligação tradicional com o mundo lusíada e europeu, vão aos

poucos substituir o interesse pela família real austríaca, a princesa Guise, o casamento de Anne na

Inglaterra, pelas estrelas de Hollywood. Os padrões de orientação vigentes são, portanto, os do

mundo do star system e do american broadcasting. Nas rádios, este é o período em que a música

americana se expande, e se consolida uma forma de tocar ‘boa música’, orquestral, que se constitui

tendo por modelo os conjuntos americanos, dos quais Glenn Miller foi talvez a expressão mais

bem acabada” (ORTIZ, 1999, p. 71).

Cabe lembrar que a idéia de que a “boa musica” é a música orquestral tem origem europeia, tendo

sido especialmente forte entre os românticos alemães do século XIX (ver Dalhaus, The idea of

absolute music), assim como a tradição orquestral é central para música erudita européia. Também

os conjuntos americanos a que se Ortiz se refere, as Big bands de metais como a de Glenn Miller

têm origem europeia muito próxima, embora sejam características do jazz norte-americano e

internacional. No Brasil as big bands tem notável importância na gênese das orquestras de frevo e

de gafieira em sua forma moderna.

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Mas agora, a partir da Segunda Guerra Mundial, o eixo da relação com os

países centrais “desenvolvidos” se deslocava de uma enfraquecida Europa, para

um pujante EUA. Com sua sólida classe média, seus carros produzidos em massa

a preços acessíveis à população e seu cinema e música popular moderna, o grande

irmão do norte, cujo sucesso econômico contrastava com o nosso “atraso”, era

então a nova meta simbólica no período JK. Além disso, a cultura norte-americana

entrava no país também a partir de programas de incentivo ao intercâmbio cultural

entre os dois países, promovidos pelo governo norte-americano.

A música brasileira, longe de estar a reboque deste processo, era tão

importante para que o país se pensasse moderno que Juscelino Kubitschek chegou

a ser conhecido como o “Presidente bossa nova”158

. O sucesso do samba moderno

no exterior que, exportado para os EUA, invertia o fluxo de “influência” norte-sul,

se tornou um motivo de orgulho para o país, conforme se verá neste capítulo. Ser

“bossa nova” significava então ser moderno, ou “avançado”.

Embora a palavra “bossa” designe originalmente uma “protuberância em

superfície plana” ou mais comumente, em linguagem coloquial, “habilidade, jeito

ou lábia”159

para se fazer virtualmente qualquer coisa, em fins dos anos 1950 o

nome bossa nova já aparecia como uma das definições possíveis para este

genérico samba moderno, que estava sendo inventado por jovens músicos do Rio

de Janeiro. Eles procuravam renovar a música brasileira, atentos às novidades da

indústria fonográfica internacional, principalmente a norte-americana, mas

também italianas ou francesas. Assim, paralelamente às tradicionais gafieiras,

locais populares de dança que remetem ao século XIX no Rio de Janeiro160

,

surgiram os dancings, onde os homens podiam contratar uma taxi girl para dançar

em par os sucessos mais modernos161

. O jazz, que era praticado desde pelo menos

os anos 1920 no Rio de Janeiro, ressurge ainda mais forte como prática desta

juventude modernizadora.

158

Conforme a canção homônima do cantor e compositor Juca Chaves. 159

Segundo o Dicionário online de português. Disponível em http://www.dicio.com.br/bossa/.

Acesso em 4/9/2014 160

Ver VEIGA, 2011. 161

Ver Elizeth Cardoso, uma vida, de Sérgio Cabral (2000). Elizeth Cardoso, por exemplo, antes

de se tornar uma cantora conhecida, trabalhou como taxi girl em um dancing no centro do Rio de

Janeiro.

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A difusão internacional do jazz no século XX foi um processo que ocorreu

em grande parte do mundo ocidental, e este gênero logo se tornou internacional,

embora com muitas nuances regionais. Ela ocorreu não apenas enquanto recepção

passiva, mas foi também uma prática ativa de músicos e dançarinos ao redor do

globo. Na Europa, onde o jazz era largamente praticado, surgiu aquele que foi um

dos mais importantes guitarristas deste gênero em todos os tempos, o músico

cigano, Django Reinhardt, praticante do estilo jazz manouche. No Brasil, país de

forte nacionalismo, promovido com paixão radical e atitude de patrulha por

setores de grande poder no meio cultural, foi preciso inventar o rótulo sincrético

do sambajazz, nome que supõe uma “mistura”, conforme recomendava a

ideologia modernista, entre o samba - ritmo nacional por excelência - e o jazz,

cosmopolita e moderno. Foi preciso “abrasileirar” o jazz para torná-lo aceitável

neste cenário de forte nacionalismo musical. E ainda assim, enfrentou-se forte

resistência, conforme se verá.

O termo “sambajazz”, no entanto, é quase posterior ao movimento – se

firmou apenas no seu ocaso - e foi criado para designar esse grupo de músicos

profissionais que promoveu esta modernização do samba, em fins dos anos 1950 e

início dos 1960.

As experimentações entre o samba e o jazz, ou entre a tradição da música

brasileira e as formas musicais “estrangeiras”, geralmente norte-americanas, não

eram novidade na música brasileira dos anos 1950. Desde os anos 1920 que as

“jazz-band” - orquestras de jazz para dançar – eram prática regular no Rio de

Janeiro. Elas tinham um repertório bastante eclético, embora o jazz estivesse na

base como jeito de fazer música, mais do que como um ritmo. O poeta Manuel

Bandeira, por exemplo, no poema Não sei dançar, de 1924, descreve um “salão de

sangues misturados” que é “tão Brasil!”, e que dança ao som de uma “jazz band” -

que também toca maxixe! Escreve ainda sobre o baile: “o ganzá do jazz-band

batuca”, sem colocar qualquer oposição entre a instrumentação jazzística e a

batucada brasileira.

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Mesmo Pixinguinha, considerado “o pai do choro” e da música brasileira,

também dirigiu uma jazz band162

. Após retornar de Paris, onde esteve em 1922

por seis meses em contato com o jazz local, ele passou a tocar regularmente o

saxofone tenor e a utilizar uma bateria - um instrumento típico do jazz, e que

nasce de sua prática163

. Por esta época, Pixinguinha gravou dois “fox-trots”:

Dançando e Ipiranga164

. O jazz dos anos 1920, no entanto, era bastante diverso do

que atualmente entendemos por este estilo, o que torna mais difícil perceber hoje

essa penetração direta do jazz no choro da época. No entanto Cruz Cordeiro, um

importante crítico da primeira metade do século XX, escreveu um artigo acusando

o choro Carinhoso de ser influenciado pelo jazz da época. Segundo o Cruz

Cordeiro, em 30 de novembro de 1930:

No complemento, vamos encontrar um choro de Pixinguinha, “Carinhoso”. Parece que o

nosso popular compositor anda muito influenciado pelo ritmo e pela melodia da música

de jazz. É o que temos notado desde algum tempo, mais de uma vez. Nesse seu choro,

cuja introdução é um verdadeiro fox-trot, apresenta em seu decorrer combinações da

música popular yankee.165

162

Conforme testemunha uma famosa fotografia de Pixinguinha e os batutas vestidos a caráter

como em uma jazz band, ao lado de uma bateria, que ilustra a capa das primeira edições do livro O

mistério do samba (2002), de Hermano Vianna. Pode-se ver uma outra fotografia desta Jazz Band

no Anexo III. Nela Pixinguinha está de pé com um saxofone, ao centro da foto. No bumbo da

bateria lê-se “jazz”. 163

BATERIA. In: SADIE, Stanley (Ed.) Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar ed., 1994, p.82). 164

Segundo o verbete “Pixinguinha” do Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira:

“Em 28 de janeiro de 1922, Os Oito Batutas embarcaram para Paris, custeados por Arnaldo

Guinle, por sugestão do dançarino Duque, divulgador do maxixe no exterior. Embarcaram apenas

sete batutas, razão pela qual foram anunciados como Os batutas, ou melhor, Les batutas. Eram

eles: Pixinguinha, Donga, China, Nelson Alves, José Alves de Lima, José Monteiro, voz e ritmo, e

Sizenando Santos, o Feniano, no pandeiro. Os dois últimos, faziam substituição a Raul e Jacó

Palmieri. J. Thomaz, que não embarcou por motivo de doença, não teve substituto. Estrearam em

meados de fevereiro no Dancing Sherazade. A temporada prevista para apenas um mês,

prolongou-se até o final do mês de julho. Retornam ao país em meados de agosto para participar

das comemorações do centenário da Independência do Brasil. Em agosto, foram contratados por

Mme. Rasimi, empresária da Companhia Ba-ta-clan, para atuar na peça "V'la Paris", revista em

dois atos e 31 quadros. A revista ficou em cartaz por oito dias, seguindo para São Paulo. O grupo

porém não seguiu com a companhia francesa. O primeiro emprego do conjunto após a volta ao

Brasil, foi no Assírio, onde já haviam atuado. Nas apresentações, por vezes trocava a flauta pelo

sax tenor, presente que lhe foi dado por Arnaldo Guinle quando ainda estavam em Paris.

Ainda em 1922, gravou com seu grupo os fox-trot "Ipiranga" e "Dançando", de autores

desconhecidos.” Grifo meu. Acesso em 02/05/2014. Disponível em

http://www.dicionariompb.com.br/pixinguinha/dados-artisticos. Ver também PLAISANCE, 2013,

sobre este assunto. 165

Citação da Revista Phono-arte, disponível online em

http://www.revistaphonoarte.com/pagina13.htm. Acesso em 08/06/2014.

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Apesar do rico e tradicional histórico de “misturas” entre o samba e o jazz,

esta geração que viveu sua juventude no Rio de Janeiro do pós-guerra se pensou

musicalmente como “nova”. Eles criaram o samba moderno, que aos poucos foi

decantado em duas categorias complementares: o sambajazz e a bossa nova.

Embora estas categorias frequentemente se confundam, elas foram racionalizadas

enquanto unidades diversas, processo em que se buscou as diferenças entre elas,

no qual este capítulo e o próximo se focam.

5.2. A purificação das categorias sambajazz e bossa nova

Nos anos 1960 surgiu um amplo debate sobre o “samba moderno”,

racionalizado nas categorias bossa nova e sambajazz. Esta discussão não ficou

restrita somente ao mundo da música, mas se estendeu à esfera pública, através

dos meios de comunicação. Surgiram então diversos entendimentos sobre o que

era aquela renovação da música brasileira, tradição na qual o samba ocupava uma

posição entendida como estratégica para a identidade nacional (VIANNA, 2002).

Este foi um debate sobre música que, pela primeira vez na história

brasileira, se deu de forma tão ampla através da imprensa166

. Nela tomaram parte

diversos atores deste universo artístico e intelectual que tinham acesso aos meios

de comunicação, criticando músicas e tecendo discursos e opiniões divergentes.

Diversas categorias como “samba novo”, “bossa nova” ou “sambajazz” entre

outras, todas mais ou menos intercambiáveis e ainda de significado pouco

definido, foram usadas para definir estas músicas na imprensa, a fim de destacar a

novidade como sua característica principal.

Ao invés de penetrar neste debate sobre o samba moderno partindo de

definições fechadas destas categorias, neste capítulo e no próximo vai se observá-

las a fim de seguir seus desdobramentos, entender suas relações e ganhar assim

um entendimento do que está em jogo quando são arroladas. As perspectivas

166

Conforme Liliana Harb Bollos no artigo “A música no jornal: a recepção crítica do fenômeno

bossa nova e suas implicações na cultura brasileira”: “a crítica de música popular no Brasil teve

início efetivamente com o advento da bossa nova, alvo da primeira grande manifestação nos

jornais brasileiros. Influenciado pela indústria cultural e pelo poder dos meios de comunicação,

esse formato de jornalismo impôs novos padrões a crítica musical, sendo o escritor substituído

pelo “cronista”, pelo jornalista não-especialista, que aborda do texto um caráter mais ideológico e

menos estético.” (Comunicação e Sociedade 46, p.112.) Disponível em:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/CSO/article/view/3869/3383

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descritas não têm, portanto, um sentido totalizante. Elas revelam tendências na

música brasileira nas quais os discursos nem sempre se encaixam a rigor, mas que

funcionam como paradigmas com a finalidade de organizar conceitos, marcos de

pensamento na selva das diversas falas sobre sambajazz e bossa nova.

Já na primeira metade da década de 1960 duas correntes dentre outras

possivelmente mapeáveis, mais ativas e internamente afinadas, e com capacidade

de amplificar seu discurso através da mídia, livros editados ou eventos sociais,

começaram a definir uma certa bossa nova e um certo sambajazz, que se

diferenciavam da visão anterior do genérico samba moderno, de escopo mais

aberto. Ocorreu então um refinamento destes conceitos, que se tornaram menos

abrangentes e mais definidos. Estas categorias purificadas de bossa nova e

sambajazz, conforme foram entedidas e explicitadas por estas correntes, tenderam

a ganhar hegemonia posteriormente, conforme se verá.

Surgiu então uma definição mais específica de bossa nova, conforme foi

construída em grande parte pela agência de intelectuais de São Paulo, dentre os

quais se destaca Augusto de Campos, associados ao tropicalista Caetano Veloso,

entre outros. Esta bossa nova foi apresentada como sendo menos jazzística e mais

cancionista que outras manifestações do samba moderno da época, com grande

foco na letra de música. Colocou-se aí uma oposição entre jazz - entendido

frequentemente como “música instrumental” - e canção. Esta bipartição foi muitas

vezes naturalizada no Brasil, a despeito da grande tradição da canção no jazz,

conforme se viu. Por outro lado, observa-se o apagamento da oposição cara a

muitos sambajazzistas, do tipo arte versus comércio, e que era comum nas

discussões sobre o tema. Nesta bossa nova, conforme foi idealizada por este

grupo, era possível ser “comercial” sem fazer arte menor por isso.

Esta corrente viu em João Gilberto e na canção Desafinado, de Jobim e

Mendonça, o paradigma da bossa nova. Este paradigma traria certos ideais

artísticos presentes na poesia concreta e na arquitetura modernista, como a

concisão, o equilíbrio, a elegância e a racionalidade (NAVES, 2001). O primeiro

artigo desta corrente foi escrito em 1960 pelo musicólogo Rocha Brito (com

citações de Augusto de Campos) ganhando pouca repercussão na época de sua

edição, mas este ideário se cristalizaria no livro Balanço da bossa (1974), uma

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compilação de textos afins por Augusto de Campos, de 1968, onde foi

amplamente divulgado. Trata-se de uma corrente que viu a música pelo viés da

alta literatura, focando-se na letra de música e na atividade do cantor.

Por outro lado, uma corrente diversa construiu a categoria sambajazz,

principalmente através de artigos em jornais e uma intensa militância pela prática

do jazz e do samba moderno no Brasil, que encontrou ressonância em muitos

músicos brasileiros. Um importante representante deste grupo é o saxofonista

amador e crítico de música do Correio da Manhã, o francês Robert Celerier. Ele

se associou a músicos profissionais e a outros jornalistas a fim de promover

festivais e jam sessions onde se praticava este samba jazzístico. Esta corrente fez

emergir, de uma grande diversidade de práticas da época, um certo sambajazz,

entendido como moderno e pouco dado a “concessões comerciais”, com

improvisações “a vontade”, e no qual os músicos se sentiram livre dos maestros e

autoridades da música erudita, por um lado, e da imposições mercadológicas da

canção comercial, por outro.

Estas são duas correntes não se deixam fechar tão facilmente, pois estão

dentro de uma complexa realidade em constante mutação. Ainda assim elas foram

capazes de estabilizar com relativo sucesso as categorias sambajazz e bossa nova.

Estas correntes evidenciam-se através de livros publicados ou de artigos em

periódicos da época, como o Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Última Hora

ou O Globo, entre outros, que foram objeto desta pesquisa.

Este capítulo e o seguinte se dedicam a acompanhar através da imprensa a

rica discussão que se deu sobre estas categorias musicais “novas” e sua relação

com os gêneros nacionais que foram construídos no início do século XX,

inclusive como centro de questões identitárias nacionais, o samba e o jazz. O

significado da formula composta “sambajazz”, evocado pela corrente referida, não

se dá tanto a partir da combinação do que seria a essência de dois gêneros

musicais inequivocamente identificáveis - samba e jazz - mas principalmente

através de um posicionamento no campo musical brasileiro em que esta expressão

ganha um certo significado em relação às categorias tradicionais citadas, e das

quais se pretendia diferenciar as novas práticas. A discussão sobre estes gêneros

musicais, na imprensa e esfera pública de maneira geral, são objeto de

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controvérsia e posicionamento para os diversos atores em jogo neste mundo da

arte (BECKER, 1977), como instrumentistas, compositores, arranjadores, letristas,

empresários, produtores, técnicos de som, artistas gráficos e executivos de

gravadoras, com foco especial aqui em jornalistas, intelectuais e comentaristas em

geral na imprensa.

5.3. As diversas bossas ou o genérico samba moderno

O otimismo brasileiro do período JK, com seu clamor pelo “moderno”,

tinha como ponto importante a relação do país com o exterior, tanto no campo da

política e da economia como no da cultura. Havia o orgulho de sermos “o país do

futuro”167

, uma promessa frente a um invejado “estrangeiro”, que começava a

despontar internacionalmente não apenas através da monumental construção de

Brasília, de arquitetura modernista, mas também através do futebol, com as

vitórias inéditas da equipe brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962.

Também o cinema foi motivo de orgulho, com o reconhecimento

internacional que se deu primeiro através da premiação no Festival de Cannes do

filme Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus sobre a peça de Vinícius de Moraes,

de 1959, que ajudou a popularizar internacionalmente a bossa nova, a que se

seguiu a conquista da Palma de Ouro, premiação do mesmo festival, para O

Pagador de Promessas, de Alcelmo Duarte, em 1963.168

A popularidade da bossa

167

Termo popularizado a partir do livro de Stephan Zweig, “Brasil, país do futuro”, de 1941. 168

Vassili Rivron escreve sobre este período no Brasil: “Cette phase de serenite — si ce n’est

d’euphorie — economique avait cree une confiance nouvelle dans un avenir suppose rayonnant du

Bresil, un “Bresil nouveau” que l’on se permettait desormais de penser en termes de

“civilisation” (comme l’indique le nom Civilizacao Brasileira attribue a une maison d’edition et a

une revue tres actives sur cette periode). Cet etat d’esprit se ressentit fortement dans les

mouvements culturels et artistiques surgis ou consolides dans le courant de cette periode: le

“novo” (nouveau) du “cinema novo” ou de la “bossa nova” n’etait pas en effet un qualificatif

anodin. C’est en tout cas ce que montrent certaines analogies entre ces mouvements artistiques

(ainsi que le concretisme et l’architecture moderniste) et le developpementisme de la periode JK

(de Juscelino Kubischek), qui voient le Bresil evoluer vers la formation d’une societe industrielle

et a propos de laquelle il incombait aux artistes et aux intellectuels de formuler des projets de

construction du futur. L’enthousiasme etait d’autant plus grand que les propositions innovatrices

trouvaient un echo tres favorable au niveau international, dans les secteurs specialises. Orfeu do

carnaval, film de Marcel Camus fonde sur la piece de Vinicius de Moraes, qui consacrait la bossa

nova comme musique authentiquement nationale, remporta les palmes d’or a Cannes en 1959, de

meme que O pagador de promessas (Anselmo Duarte), en 1963. Enfin, pour donner une vision

plus large de cet optimisme nationaliste, nous ne devons pas oublier que c’est en 1958 que le

Bresil gagna pour la premiere fois la coupe du monde de football, en Suede; exploit qui fut

renouvele en 1962.” (RIVRON, 2055, p.298 e 299)

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nova no exterior acompanha, portanto, o prestígio internacional crescente da

cultura brasileira no período.

O termo bossa nova podia então se referir a diversas músicas, significando

a fusão de qualquer samba com qualquer jazz, sendo muito diversos os

entendimentos do que isto significa. Um sinônimo abrangente muito usado na

época foi o termo samba moderno. Esta super categoria foi aos poucos sendo

decantada em sambajazz e bossa nova.

A origem do termo bossa nova dificilmente poderia ser atribuída a um ator

individual, sendo “bossa” uma expressão tradicional no Brasil. Ruy Castro traça

um breve histórico do termo “bossa”:

A palavra ‘bossa’, pelo menos, estava longe de ser nova: era usada pelos músicos

desde tempos perdidos, para definir alguém que cantasse ou tocasse diferente -

Cyro Monteiro, por exemplo, tinha "bossa". Noel Rosa a usara em 1932 num

samba ("Coisas nossas"), em que dizia "O samba, a prontidão e outras bossas /

São nossas coisas, são coisas nossas". Nos anos 40, o violonista Garoto liderou

um conjunto chamado Clube da Bossa, que incluía o seu amigo Valzinho. Depois

que a expressão Bossa Nova já estava consagrada e quase habitando dicionários,

Sérgio Porto (durante um bom tempo, feroz adversário da nova música) se

atribuiria casualmente a sua paternidade adotiva, alegando tê-la ouvido de um

engraxate a respeito de seus sapatos sem cadarços: "Bossa nova, hem, doutor ?" -

e passado a usá-la. A origem da expressão nunca ficou esclarecida de todo e

gastou-se mais papel e tinta com este assunto do que ele merecia.” (CASTRO,

1991, p. 201)

O movimento musical do samba moderno, no qual se incluem a bossa

nova e o sambajazz, foi uma construção coletiva, conforme se observa aqui; e

dificilmente poderia ser atribuída, com um mínimo de rigor histórico, a um “pai”

ou “papa”. De fato as mitologias de atribuição de origem da bossa nova se

mostram mais como afirmações estético-políticas no interior de um campo em

disputa que em verdades históricas indiscutíveis. No entanto, se não se pode

atribuir uma paternidade a um movimento tão amplo como a bossa nova, que

envolveu muitas pessoas, de meios muito diversos, observar esta discussão entre

as correntes que reivindicaram sua paternidade torna-se proveitoso na medida em

que estas revelam seus valores neste processo.

Castro se refere, na citação acima, ao jornalista Sérgio Porto (cujo

pseudônimo era Stanislaw Ponte-Preta), um crítico do samba moderno, mas que

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atribuiu a si a popularização do termo “bossa nova”. Defensor do nacional-

popular em música, para este jornalista a expressão bossa nova “nasceu na rua”, e

teria ganho os jornais graças a ele. Sob a manchete “Para Stanislaw, a bossa é obra

do bom crioulo”, pode-se ler no Jornal do Brasil, de 09/01/1963:

Um dia, aí por volta de 1950, eu cheguei para engraxar o sapato e, como o

calçado não tivesse cadarço, o crioulinho gostou da novidade e exclamou: - Bossa

nova, hein chefe? Achei a expressão engraçada e passei a usá-la para definir tudo

que fosse novidade169

A matéria acima referida, publicada no início do ano de 1963, reveste-se

de especial interesse para esta tese porque promove uma discussão sobre o

significado da categoria em questão. Por esta janela temporal, que dá para o

período de florescimento do samba moderno, podemos obeservar que cabiam

muitas personagens e práticas na bossa nova de 1963. Esta concepção do

movimento hoje soa extremamente plural e aberta.

Os jornalistas João Luis de Albuquerque e Hélio Santos listam, nesta

matéria, “os principais cantores e conjuntos de bossa nova”. Eles apresentam Nara

Leão como “a maior revelação da bossa”. Mas surpreendem por não mencionar

aquele que foi muitas vezes afirmado como o “pai” do movimento170

, João

Gilberto, citado apenas como compositor nesta matéria. Abaixo, a lista plural de

bossanovistas, em 1963:

Lúcio Alves, Silvinha Teles, Norma Bengell, Sérgio Ricardo, Johnny Alf,

Claudete Soares, Alaíde Costa, Leni Andrade, Normando, Nara Leão (a maior

revelação da bossa), Chico Feitosa, Calos Lyra, Rosana Toledo, Agostinho dos

Santos, Luis Bonfá, Maysa, Ana Lúcia, Roberto Menescal, Trio Tamba, Os

Cariocas, Luis Carlos Vinhas, Sergio Mendes, Oscar Castro neves, Pedrinho

Matar (São Paulo), Baden Powell (idem).

A manchete principal desta matéria - “A dança da bossa nova” - mostra a

grande abertura semântica do termo à época, revelando uma bossa nova que se

dança! Ela referia-se ao espetáculo do dançarino e cantor norte-americano Lennie

Dale, no Beco das Garrafas, que chegou ao país trazido pelo produtor Carlos

Machado. Lennie Dale atou regularmente no Beco das Garrafas, com músicos e

músicas característicos do sambajazz, e neste sentido poderia ser considerado

169

JORNAL DO BRASIL. A dança da bossa nova. João Luis de Albuquerque e Hélio Santos.

09/01/1963. Este periódico está disponível no Anexo III. 170

Ver por exemplo, VELOSO, 2002.

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também um dançarino do movimento. Ele era acompanhado pelo grupo Bossa

Três, formado pelos sambajazzistas Luis Carlos Vinhas, Tião Neto e Édison

Machado. Ainda nesta matéria, Dale, que havia vivido também na Europa e era

um apreciador do jazz internacional, se espanta ao descobrir que havia “bom jazz”

no Rio de Janeiro. Mas reservaria a surpresa maior para a sua primeira audição da

seção rítmica do sambajazz carioca:

Lennie conhecia pouca gente no Rio. Uma noite Irina Greco pergunta: ‘Lennie,

vamos ouvir jazz?’ Ele se espantou: ‘Existe bom jazz aqui no Rio?’. Foram ao

Bottle’s, no Beco das Garrafas. Lennie não só descobriu o bom jazz: sentiu uma

coisa esquisita quando Serginho Mendes e Luís Carlos Vinhas tiravam algo de

novo dos seus pianos. ‘É a seção rítmica’, comenta hoje Lennie Dale. ‘Aqueles

meninos estavam loucos’. (idem)

Lennie Dale, bailarino estrangeiro que cantava em inglês e português no

seu espetáculo no Botlle’s, logo sofreu a reprimenda dos setores conservadores

nacionalistas, como era comum à época171

. Ainda segundo a referida matéria: “Já

existem até uns poucos não esclarecidos que não gostam do show, porque ‘é um

americano que inventou a dança. E americano não sabe o que é samba.’” (Idem).

Por fim, ainda nesta mesma matéria, vemos Johnny Alf reivindicando

paternidade da bossa nova, que foi também muitas vezes atribuída a ele pelo

pioneirismo e alto nível de invenção do samba moderno que praticava na boate

Plaza, ainda na primeira metade dos anos 1950.

Para Johnny Alf, a bossa nova nasceu entre 1954 e 55 na Boate Plaza, criada por

ele e por um grupo de mocas e rapazes do Leme, que cantavam as músicas que

ele compunha com dissonâncias estranhas para muitos, mas bem apreciadas pelo

grupo.

O capítulo seguinte vai abordar esta corrente que lutou com sucesso para

significar a música de João Gilberto como o paradigma da bossa nova. No

entanto, será mostrada aqui uma declaração de um representante desta, o cantor

Caetano Veloso, a fim de revelar mais claramente as linhas de força desta

discussão.

171

Posteriormente Dale fundaria o grupo andrógino Dzi Croquettes, que unia a dança ao teatro em

um humor extremamente crítico e irreverente. Formado em 1973, durante a ditadura militar no

Brasil, o grupo se tornaria um símbolo da contracultura do período.

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Veloso, em seu livro de memórias, Verdade Tropical (2002), ao defender a

primazia de João Gilberto enquanto o único “pai da bossa nova” em detrimento a

outros músicos fundadores, como Johnny Alf, trata este último, e também a Dick

Farney e Lucio Alves por “americanizados” e “pre-bossanovistas”, e negando-lhes

qualquer parcela de criação no movimento:

Não foram sequer aqueles modernizadores americanizados dos fins dos anos

40 e início dos 50 - os ja citados pre-bossanovistas Farney, Alves e Alf – que

iniciaram a transformação do samba em genero pop elaborado. Primeiro o

teatro e depois o rádio e o disco fizeram nascer sucessivas gerações de

arranjadores, cantores, compositores e instrumentistas que criaram um samba

domado e refinado, sobretudo a partir dos anos 30. Quando João Gilberto

inventou a batida que foi o núcleo do que veio a se chamar de bossa nova, a

forma samba-canção dominava. (VELOSO, 2002, p.37, grifo meu)

Entende-se que Alf, enquanto um forte candidato à paternidade da bossa

nova em detrimento a João Gilberto, seja alvejado por Veloso. Por certo, neste

entendimento, não há lugar para dois criadores centrais, ou “pais”.

A escrita da história do samba moderno não deve ser entendida de forma

inocente como uma simples discussão estética ou mercadológica isolada do

mundo, mas é em verdade uma continuada luta política que se dá no campo

musical em conjunção com outras disputas maiores na sociedade. Esta é uma

discussão complexa, que dificilmente poderia ser resumida a contento aqui. Pode-

se, no entanto, apontar algumas linhas de força que se destacam. Além da óbvia

divergência sobre o grau e a natureza da abertura do Brasil ao mundo e à

modernidade representados pela prática jazzística local, está em questão também

os diversos entendimentos sobre o lugar do negro no Brasil, bem como sobre o

lugar da música negra na bossa nova e no samba moderno.

A desqualificação do músico jazzista brasileiro enquanto “americanizado”

foi muito comum no Brasil, e partiu tanto dos nacionalistas mais radicais, como

por exemplo, do historiador José Ramos Tinhorão, quanto de alguns

“cancionistas” da MPB, supostamente mais “abertos” às influências estrangeiras.

Na “mistura” nacional de ideal modernista, o elemento negro não é

individualizado, mas entra apenas como parte da totalidade nacional. Neste caso

específico de Veloso a acusação de “americanização” revela uma leitura da

“antropofagia” oswaldiana modernista, que pressupõe um limite para a absorção

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da influência do jazz sobre a cultura nacional. A partir de certa medida,

subentende-se aqui, a magia da antropafagia desapareceria para dar lugar à mera

imitação da cultura do centro colonizador. O jazz então, antes de ser entendido

pela chave da “música negra”, será mais uma vez tratado por música norte-

americana, que pode entrar no país (ou ser “deglutida”), mas com parcimônia,

porque ofereceria o risco da “americanização”. Alf, ao invés de negro jazzista

brasileiro, será apresentado como um jazzista “americanizado” que, nesta

condição, não poderia ganhar a paternidade de uma bossa nova construída

enquanto momento máximo de renovação intelectual nacional. Segundo um texto

de Veloso, escrito em 1966:

Os menos ingênuos não esqueceram que há muito os elementos jazzísticos

habitam os nossos gostos e os nossos ouvidos: o cinema falado é o grande

culpado da deformação de excelentes vocações musicais; isto é, do

desenvolvimento técnico malbaratado de artistas como Johnny Alf, Dick

Farney: a produção desses rapazes corresponde a uma alienação da classe

média subdesenvolvida cuja meta é assemelhar-se à sua correspondente no país

desenvolvido dominante, tal como lhe é apresentada pelas cores de sonho do

cinema que é produzido para isso. (...) Sem dúvida, a imitação grosseira da pior

música americana e a busca de igualar-se tecnicamente aos melhores jazzmen não

são senão dois aspectos do mesmo processo de alienação." (Veloso, 2005, p. 144-

145. Grifos meus)

Interessante notar que, assim como Hermano Vianna observa sobre as

fortes críticas do modernista Gilberto Freyre à prática nacional do jazz dos anos

1920 (VIANNA, 2002), Veloso em nenhum momento cita o gênero como música

negra, mas sempre, como cultura norte-americana “alienante”. Perde-se, nesta

visão da música centrada por nacionalidades, toda a carga que o jazz traz também

enquanto música de protesto e de afirmação das minorias desfavorecidas,

especialmente dos negros, que o gênero potencializou não apenas nos EUA, mas

por todo o mundo, conforme se lê em Eric J. Hobsbawn (2006).

Neste período inicial do samba moderno, ainda na passagem dos anos

1950 aos 1960, o termo bossa nova foi apropriado também por muitos músicos

estrangeiros, como os jazzistas norte-americanos Paul Winter e Stan Getz ou o

compositor da Guiana Francesa, Henry Salvador. Ou ainda por brasileiros

residentes no exterior como o violonista Laurindo Almeida, que reivindicaram a

paternidade da bossa nova pelo seu pioneirismo na fusão entendida por eles como

o simples cruzamento do samba com o jazz de tendência “cool” que praticavam.

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Assim, em uma curiosa matéria do Jornal do Brasil de 1963, apresentada

sob a manchete de “Bossa Nova não é só nossa”, podemos ler que este gênero

teria sido criado não no Rio de Janeiro, mas em Hollywood, EUA:

Em artigo na revista norte-americana Down Beat, John Tynan afirma que a bossa

nova 'nem é nova nem inteiramente brasileira', pois 'suas raízes datam de dez

anos', mais precisamente de 1953, numa sala de fundo da Drum City (…)

Ali se reuniram o dono da loja, Roy Harte (bateria), Harry Babasin (baixo), que

era um veterano da Boyd Raeburn Band – Bud shank (saxofone alto) e o

brasileiro Laurindo Almeida (guitarra) para tentar realizar uma nova experiência

de jazz, cujo modelo os músicos brasileiros fixaram posteriormente. Assim teria

surgido a bossa nova.172

Pode-se nesta matéria ver como a ideia da fusão dos gêneros samba e jazz

ocorreu não apenas no Brasil, mas também em outros países. Diversas bossas

novas estavam no mercado internacional naquele período. A partir daí

compreende-se a preocupação de Vinícius de Moraes ou de Caetano Veoloso em

definir o que é a “verdadeira” bossa nova de forma negativa, ou seja,

especificando o que não é bossa nova. O sambajazz foi então considerado por

Moraes, Veloso e outros como demasiadamente jazzístico, aproximando-se mais

de uma imitação do gênero norte-americano. Se o samba moderno foi acusado de

ser uma americanização do samba “autêntico”, esta acusação se reproduziu no

interior deste mundo, e o criador da bossa nova, Vinícius de Moraes, por sua vez,

entendia o sambajazz como um “híbrido espúrio” que ele diferenciava de uma

bossa nova entendida como mais próxima do samba “de morro” 173

.

Este ponto era importante na discussão com os representantes do nacional-

popular em música, jornalistas como Sérgio Porto ou Lúcio Rangel cuja

percepção sobre o sambajazz enquanto um samba inautêntico convergia à do

poeta.

Em um artigo de 03/09/1964 para o jornal Última Hora, Sergio Porto tece

uma crítica negativa ao grupo de sambajazz Os Cobras. Embora o jornalista

172

Jornal do Brasil, Caderno B - “especial BN” 09/01/63. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=35667. Acesso em

04/04/2014. Ver fotografia deste periódico no ANEXO III. 173

Conforme citado, Moraes se refere ao sambajazz como “híbrido espúrio”: “A verdadeira e

orgânica influência do jazz no moderno samba brasileiro está na liberdade de improvisação

que criou para os instrumentos e também na orientação do uso do tecido harmônico, que veste a

melodia com uma graça e leveza desconhecidas no samba antigo, mais escorado no ritmo e na

percussão” (MORAES, 1981, p.117, grifos meus).

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demonstre algum respeito pela “pujança da música que estão criando”, os músicos

são apresentados como “cobras que envenenam o verdadeiro samba”. Porto

reserva o qualificativo de “exímios” aos músicos que compõem Os Cobras, como

Milton Banana, Tenório Jr, Raul de Souza, Paulo Moura, J. T. Meireles e Aurino,

entre outros, deixando claro que sua crítica é ideológica:

OS COBRAS – Um grupo de músicos deturpando o verdadeiro samba, que é

uma dança em ritmo de 2/4 e que, em não sendo em 2/4, não é samba. A

classificacão de 'samba-jazz', para este tipo de música executada por músicos

brasileiros impregnados de 'jazz', é válida apenas para designar esta música

híbrida que do samba tem apenas a temática e o 'jazz' leva os cacoetes. São

todos executantes exímios, os que se exibem nos doze números aqui inseridos e

são realmente 'cobras', mas 'cobras' que envenenam o verdadeiro samba. Isto,

eles vão desculpar o cronista, é assunto indiscutível. Negar, porém, a arte de um

Cipó, quer como orquestrador, quer como executante do sax tenor; negar a

técnica de um Raulzinho e seu trombone de válvula, os superagudos de Hamilton,

no pistom, os exímios Paulo Moura, Meireles, Tenório Júnior, Aurino e vários

outros, aqui reunidos, é coisa a que não se exporia o cronista, diante da pujança

dessa nova música que eles estão criando. (...)174

Note-se que, ao contrário do que o crítico sugere, o samba moderno de

maneira geral, assim como o d’Os Cobras (1964), mantiveram o compasso

característico do samba, em 2/4. Esta abordagem inicial “musicológica”, que lhe

emprestaria autoridade à crítica, resulta por denunciar seu desconhecimento do

assunto.

Na parte seguinte deste artigo, que transcrevo abaixo, Sérgio Porto dialoga

com Robert Celerier, o jovem francês crítico do Correio da Manhã, e entusiasta

do sambajazz. Celerier, que fazia militância pelo movimento, assina o texto da

contracapa do LP criticado. Esta comunicação entre ambos, em que as posições

tradição versus modernidade estão claramente assumidas, flagra de forma

exemplar esta linha de força central no interior das discussões sobre o samba

moderno.

Um ponto importante da crítica se refere a categoria “música

instrumental”, levantada por Celerier. Porto não parece dar demasiada importância

à ela, mais preocupado com a valorização da tradição musical brasileira. Mas se o

jovem crítico insiste na chamada música instrumental enquanto meio de expressão

174

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=102053. Acesso em;

18/07/2015.

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do sambajazz, então que ele saiba que ela não é um fenômeno novo no Brasil. E

tampouco é exclusividade do sambajazz, estando mesmo na essência da nossa

música representada pelo choro de Pixinguinha, dentre outras práticas

instrumentais desta tradição. Segundo Porto:

O que me deixa impressionado é o pouco caso que os apreciadores do gênero

dão ao músico nacional anterior a êstes aqui citados. Na contracapa do Lp, por

exemplo, um cavalheiro que se assina Robert Celerier diz, textualmente: 'Até há

bem pouco tempo, era praticamente impossível realizar no Brasil um disco

moderno puramente instrumental. É um fato reconhecido que, nos últimos 30

anos, o sucesso popular foi o apanágio dos vocalistas'. O rapaz se esquece que

no seu tempo, Pixinguinha também foi moderno e que os primeiros grandes

sucessos internacionais da música popular brasileira eram chorinhos

instrumentais e pelo contrário até; depois que puseram letra em “Tico-Tico no

Fubá', estragaram o maior sucesso de Zequinha de Abreu. Quanto à

impossibilidade de o músico ir para um estúdio de gravação, isto é ,muito

relativo: aqui mesmo na minha discoteca estão o já citado Pixinguinha, Jacob,

Benedito lacerda, Luís Americano, o regional de Canhoto, Altamiro Carrilho,

enfim, um monte de executantes que sempre gravaram sem cantor. Radamés

Gnatalli que o diga. Portanto, são excelentes os números apresentados pelos

rapazes deste disco mas... como dizia aquele crioulo: 'vamos arrespeitá as

involução’ 175

A crítica de Sérgio Porto tem o mérito de apresentar a questão

modernidade versus tradição de maneira explícita, nomeando os músicos e as

categorias. Ele opõe o sambajazz ao samba, do qual aquele seria uma versão

decaída pelo uso dos “cacoetes” modernos do jazz. Aqui estamos diante de uma

“linha de força”, conforme a etnomusicóloga Elizabeth Travassos que, juntamente

com a oposição popular e erudito, atravessa todo entendimento da música no

Brasil e que pode ser resumida na “alternancia entre reprodução dos modelos

europeus e descoberta de um caminho próprio”:

Duas linhas de força tensionam o entendimento da música no Brasil e projetam-se

nos livros que contam sua história: a alternancia entre reprodução dos modelos

europeus e descoberta de um caminho próprio, de um lado, e a dicotomia entre

erudito e popular, de outro. Como uma espécie de corrente subterranea que

alimenta a consciência dos artistas, críticos e ouvintes, as linhas de força vêm a

tona, regularmente, pelo menos desde o século XIX. Mobilizadas por dinamicas

culturais mais amplas, de que a música é parte, ou fermentadas no campo

musical, com energia para vazar sobre outros domínios da cultura, elas se

manifestam de maneira dramática em alguns momentos da história.

175

Crítica de Sérgio Porto, publicada em 03/09/1964, no periódico Última Hora. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=102053. Acesso em:

18/07/2015.

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Tal foi o caso do romantismo, do modernismo e da vanguarda dodecafônica na

segunda metade do século XX. As linhas de força estiveram presentes

igualmente, nos debates em torno da bossa-nova, do Tropicalismo, da canção de

protesto. Mais recentemente, emergem em torno de artistas como Egberto

Gismonti e Hermeto Paschoal (...) (TRAVASSOS, 2000, p.7, grifo meu)176

O termo bossa nova, conforme afirmei, podia ter um significado amplo em

1960, sendo entendido como qualquer mistura de samba com jazz. Na coluna

Rádio e TV, do Correio da manhã de 06/02/1960, podemos ver essa abertura

semântica do termo: ele poderia abrigar Elza Soares, uma cantora identificada à

gafieira e mais distante da bossa nova tal como ela é entendida hoje, cantando

uma música de Kurt Weill e Bertolt Brecht: “Bossa Nova. Ouvimos Elza Soares

interpretar 'Mack the Knife' em versão nacional, com muita personalidade e um

notável senso de ritmo. Bossa é o que não lhe falta.” (Grifos meus)177

É possivel ler algumas definições ainda bem amplas da categoria “bossa

nova” em um artigo de página inteira no Segundo Caderno de domingo do Jornal

do Brasil de 31/01/1960, cuja manchete principal era: “Música moderna só tem

um nome: Bossa nova”. Neste artigo, Ronaldo Boscoli, poeta e jornalista, e um

176

O trabalho de Elizabeth Travassos é importante também porque apresenta uma visão integrada

entre os campos da música erudita e da popular, separados por força de instituições consolidadas,

mas que pedem uma análise conjunta. Estes campos estabelecem suas oposições e subgrupos com

grande correlação entre si, constituindo uma grande rede, a da música. Pois não é possível pensar

o sambajazz e a bossa nova, ou o mesmo o choro e toda a MPB sem entendermos o papel

importante que a música erudita teve para estes músicos. Esta jamais foi propriedade exclusiva de

conservatórios ou de eruditos, mas penetrava enquanto saber e prática na chamada música popular;

e o oposto também é verdadeiro. Assim não é possível separar o erudito do popular na obra dos

compositores centrais na música brasileira, sendo sua prática sempre “híbrida” entre popular e

erudito. A alegada “mistura” é tão numerosa no país, que o que seria uma exceção se torna a regra.

São raros os músicos a quem se poderia atribuir pureza quando se trata dessa oposição fértil não

apenas no país, mas em todo o continente americano.

Não se compreende a música de Antônio Carlos Jobim ou Moacir Santos sem pensar nos extensos

cursos de musicologia que estes músicos populares fizeram com eruditos como H. J. Koellreutter e

Claudio Santoro, entre muitos outros. Nem se compreende a atividade de compositores de concerto

como Villa-Lobos ou Guerra-Peixe ou Francisco Mignone sem a centralidade do popular em sua

obra. Ao assumir a importância destas linhas de força caras ao modernismo para o sambajazz e a

bossa nova, assumo também a penetração do modernismo na música popular brasileira em geral

(NAVES, 2001) e, especificamente, nos grupos estudados Conforme Travassos:

Os compêndios de história da música costumam lidar separadamente com música erudita, popular

e folclórica, as quais acabam por configurar especializações acadêmicas: a musicologia tende a

tratar de música erudita; o folclore, a etnomusicologia, a literatura e as ciências sociais em geral

ocupam-se das demias. A necessidade de olhar o campo musical como um todo tem gerado,

recentemente, estudos que revertem a tendência a isolar objetos de análise conforme uma tipologia

da música pré-estabelecida – tendência que contribuiu, à sua maneira, para manter as barreiras que

o modernismo tentou vencer. Falar da interseção entre música e modernismo significa dedicar

atenção especial a Mário de Andrade (...)” (TRAVASSOS, 2000, p.8 e 9) 177

Correio da manhã, 06/02/1960. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=1330. Acesso em:

01/08/2014

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dos “criadores” do movimento, diz que a bossa nova “é brasileira cem por cento”,

afirmando a identidade nacional no movimento. A frase é provavelmente uma

defesa contra as críticas a americanização contida na “influência do jazz”.

Ali podemos flagrar a discussão social/musical sobre o samba moderno em

andamento. Boscoli, possivelmente já empenhado na disputa com a esquerda

nacionalista - que se acirraria posteriormente, onde a oposição entre “morro” e

“asfalto” servia para desqualificar a bossa nova como burguesa em oposição ao

samba de “morro”, dito “autêntico”, defende a transmissão “honesta” das

“verdades bonitas” das letras de bossa nova:

Compasso diferente não tem definição: quem é que pode entender 'BN'. -

Diversas pessoas têm tentado definir essa fase, mas não alcançam o objetivo. Só

os que vivem esse momento da música – a Turma da Bossa Nova – podem

entendê-la, porque 'Bossa Nova é um estado de espírito'. Quem dá essa

definição é Ronaldo Boscoli, jornalista e poeta musical dos mais inspirados.” A

jornalista prossegue, citando Boscoli: “Bossa Nova é o antigo-tango, porque não

aceita o ritmo quadrado, nem a negação da vida. A BN prefere transmitir ao povo

as verdades bonitas sendo honesta porque retrata histórias do asfalto e a gente que

a faz. A BN é brasileira cem por cento, não quer inimizades, aceita tudo que

seja verdadeiro e não pretende ser eterna.178

.

Ao contrário de Bôscoli, que era jornalista e tinha muito a dizer sobre a

bossa nova, Tom Jobim é citado em seguida, sob a manchete: “Bossa Nova é

coisa velha para definir vanguarda: Noel Rosa já falava dela.”. Tom Jobim e Ary

Barroso trazem definições que relativizam o valor novidade atribuído a “bossa

nova”, pois o novo estaria presente também na tradição. Segundo Jobim:

“Confesso que não sei bem o que é Bossa Nova. (…) Considero Bossa Nova tudo

que está na frente de sua época” (idem).

Jobim dava uma interpretação ao termo que era usual: bossa nova era um

movimento de renovação da música nacional, certo. Mas essa renovação era uma

característica da história da música brasileira, com a qual não haveria

rompimento: Noel Rosa já seria bossa nova nas primeiras décadas do século XX,

segundo Jobim.

178

Jornal do Brasil, 31/01/1960. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&pasta=ano%20196&pesq=M%

C3%BAsica%20moderna Acesso em: 18/07/2014. Ver fotografia no ANEXO III.

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215

Ary Barroso, representante desta tradição do samba, também é citado,

corroborando a posição de Jobim ao relativizar o “velho” e o “novo”:

Ary Barroso admira a 'BN', mas acha que não há 'bossa nova' nem antiga, mas

'bossa'. (…) Para mim o Papa da BN é Antônio Carlos Jobim. Tom conseguiu

trazer o ritmo das escolas de samba para as orquestras de salão. O mesmo que eu

fiz com a Aquarela do Brasil. (idem)

Ary Barroso se refere aqui ao problema da “estilização”, que é central na

música brasileira. Trata-se da adaptação da batucada de samba, definida por ele

como “o ritmo das escolas de samba”, para a indústria cultural, ou para a

“orquestra de salão”. Tanto Barroso como Jobim criaram estilizações para a

formação de orquestra a partir das “levadas” de samba já estabelecidas como

práticas comuns. Estes arranjos foram entendidos positivamente como

ritmicamente “orgânicos” a tradição brasileira (ou não “engessados”, no jargão

dos músicos profissionais cariocas de hoje). Ou seja, eles “modernizaram” e

“estilizaram” o samba tradicional, de forma ritmicamente convincente, para sua

fruição em novos ambientes.

Este trabalho de adaptação dos chamados ritmos populares a novos meios

diversos de sua prática original, longe de ser um processo “natural”, é uma

construção ativa, que nestes casos citados foi operada por arranjadores em

conjunção com músicos da seção rítmica de uma orquestra ou banda:

percussionistas, bateristas, baixistas, violonistas e pianistas. O “samba no prato”

de Édison Machado também é parte deste histórico de estilizações do samba, que

perpassa a música brasileira. Moacir Santos, músico abordado anteriormente, é

também um mestre da estilização dos ritmos afrobrasileiros. Sua reinvenção das

levadas da seção rítmica atingiu nível profundo de elaboração, em álbuns como

Coisas (1965). Este álbum é um marco não apenas do sambajazz, mas de toda esta

tradição da estilização rítmica que é central na música brasileira do século XX

(FRANÇA, 2007)179

.

Boa parte da atividade dos músicos da seção rítmica consiste em encontrar

e manter a “levada” rítmica certa, que funciona (ou “suinga”) bem com a melodia

179

Esta tradição criativa da música brasileira liga Pixinguinha aos funks de morro cariocas

contemporâneos, onde os ritmos religiosos afro-brasileiros (como a “macumba”) são por vezes

reinventados em baterias eletrônicas e samplers de última tecnologia.

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tocada pelos solistas. A base rítmica e a melodia dos solistas devem se encaixar

para que a música seja percebida como dançante e “balançada”. As diversas

estilizações do samba ao longo da história da música brasileira foram forjadas

neste sentido.

É necessário frisar ainda que muitas vezes a criação destas estilizações

atende ao surgimento de novas instrumentações e meios técnicos de produção e

difusão musical, como foi o caso das reinvenções do samba pela orquestra da

RCA-Victor, dirigida por Pixinguinha ao início da era do rádio. Pois surgiam, na

virada dos anos 1920 para os 1930, as primeiras orquestras desta nova era da

indústria cultural brasileira. E nasce também com elas a problemática contida em

adaptar a rítmica do samba, executada em instrumentos de percussão pelos

primeiros sambistas, aos sopros e solistas da orquestra de instrumentação, através

da notação musical europeia.

Esta estilização do “samba novo” corresponde, portanto, à uma nova

mudança paradigmática na indústria cultural brasileira, na qual chegava ao

término a referida era do rádio. Este era o principal veículo de comunicação no

Brasil desde os anos 1930, mas agora despontava uma nova fase desta indústria,

onde a televisão ganharia a hegemonia, junto às grandes gravadoras de discos.

Surgem então novas técnicas de gravação e reprodução, como o Long Playing Hi-

fidelity - o álbum “Hi-Fi” - que ocasionou mudanças na música de então. Os

novos microfones aliados ao Hi-Fi permitiram aos cantores e músicos tocar

“baixinho”, característica central do cool jazz que surge à época nos EUA, e que

penetraria também o samba moderno carioca. A importância destas técnicas

modernas de gravação para o sambajazz pode ser medida pelo título deste

segundo álbum fundador do sambajazz, de 1967: Turma da gafieira: samba em

Hi-Fi. O sambajazz nasce, portanto, ligado a “alta tecnologia” de gravação da

época, proporcionada pela gravadora Musidisc.

Em um revelador artigo do jornal Última Hora de 24/09/1957 destaca-se o

engenheiro de som da Musidisc, Jorge Coutinho, que havia retornado dos Estados

Unidos a fim de “ver como andam as coisas no setor da técnica discográfica”

naquele país. Aqui podemos notar que, se o LP Turma da Gafieira: samba em hi-

fi (1957) reveste-se hoje de importância histórica por ser um álbum pioneiro no

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sambajazz, à época de seu lançamento o seu valor musical era inseparável da

importância atribuída à nova tecnologia de gravação que o nomeia.

A matéria de jornal nos deixa entrever este “mundo da arte” (BECKER,

1977) no sambajazz, onde a personagem principal não é um músico ou artista de

sucesso, mas sim o “engenheiro de som”. Este profissional, mesmo atuando no

campo da tecnologia – supostamente mais “técnico” e menos “cultural” -

procurará argumentar em favor da produção nacional de LPs Hi-Fi, afirmando-a

tão boa quanto a norte-americana. Da mesma forma, o artigo cita “nossos

instrumentistas” que tocam no álbum, e que teriam provocado o “entusiasmo” dos

ouvintes norte-americanos.

Se os EUA lideravam o mundo na produção tanto de tecnologia como de

jazz – setores que caminham juntos neste caso – os brasileiros eram tão capazes

quanto eles neste campo, é o pensamento que embasa esta matéria de jornal. Não

há, portanto, a separação entre técnica e arte, ou entre tecnologia e música, mas

pelo contrário, estes campos estão imbricados aqui, ou se apresentam como um só.

Note-se ainda que os músicos não estão identificados no LP, falta que ocorre,

segundo o jornalista: “certamente por questões de contratos de exclusividade com

outras gravadoras”. Abaixo, a referida matéria:

Abriu-se em festa a 'Musidisc', com três assuntos em pauta. O primeiro: retôrno

do engenheiro de som Jorge Coutinho, dos Estados Unidos, que foi lá ver como

andam as coisas no setor da técnica discográfica. (...) Fazendo a triagem de tudo,

chega-se a conclusão de que, segundo o engenheiro Coutinho, nada há de novo

em matéria de gravação nos Estados Unidos, em comparação com o que

fazemos no Brasil. Os processos são exatamente iguais aos nossos (…).

Informou ainda o engenheiro, que levara alguns discos, que os norte-americanos

apreciaram sobremodo as gravações brasileiras, mostrando particular entuasiasmo

pelos nossos instrumentistas; que os “juke box” continuam em grande uso (um

cent por disco) em todo país; que os discos de 78 rpm desaparecem dia a dia,

firmando-se os de 33 1/3 e os de 45, etc. Em seguida foi posto a rodar o 'lp'

'Samba em Hi-Fi', com um conjunto integrado por alguns dos nossos mais

categorizados músicos (não identificados, certamente por questões de contratos

de exclusividade com outras gravadoras), tocando à maneira das 'jam sessions',

doze populares páginas brasileiras. Lá estão, na melhor bossa, com alguns

instrumentistas fazendo verdadeiras 'misérias' em variações melódicas, as

seguintes peças: (…). Um disco muito bom, no seu gênero, satisfazendo ao mais

exigente gôsto, tanto técnico quanto artisticamente180

. (Grifo meu)

180

Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=42114.

Acesso em 03/04/2014.

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No jornal Última Hora de 19/10/57, reproduzido no Anexo III, pode-se ver

ainda a fotografia de um representante da gravadora Musidisc presenteando a Miss

Universo Gladis Zender, que estava em visita ao Brasil, com este álbum, uma

demonstração do valor que a empresa investia no mesmo.181

5.4. Estabilizando o sambajazz: Robert Celerier e a crítica jornalística

Embora Robert Celerier seja uma personagem central deste capítulo, o

primeiro jornalista a usar o termo sambajazz, de acordo com esta pesquisa em

periódicos cariocas da época, não foi ele, mas sim Moyses Fuks ao anunciar um

evento musical produzido por Stevan Hernan, no jornal Última Hora de

06/06/1961: “Ficou mesmo para o próximo dia 11, no CIB, a segunda noite do

“Samba-Jazz” 182

.

Ainda que o crédito a um ator individual pela origem de um termo tão

difundido seja algo sempre discutível, o que surpreende nesta nota de jornal é que

Fuks foi muitas vezes lembrado também como o primeiro a usar a expressão

“bossa nova”, ainda em 1958, para designar uma apresentação musical.

Fuks era o editor do “Tablóide UH”, do jornal Última Hora, onde

trabalhava ao lado de Chico Feitosa, Ronaldo Boscoli e de Nara Leão que, ainda

muito jovem, era uma estagiária183

. Sendo também o diretor artístico do Grupo

Universitário Hebraico do Brasil, no Flamengo, RJ, Fuks era o encarregado das

apresentações musicais que aconteciam no teatro desta associação de estudantes

israelitas. Assim, apresentaram-se nesta noite, que foi muitas vezes lembrada

como um marco histórico da bossa nova, a cantora Silvia Telles acompanhada de

Luiz Eça, ao piano, Bebeto ao saxofone, além de Chico Feitosa, Nara Leão e

Carlos Lyra. Fuks teria anunciado esta apresentação como “uma noite bossa nova”

(CASTRO, 1999, p.200).

181

ÚLTIMA HORA, Festa na Musidisc, Oswaldo Miranda, 24/09/1957. Disponível em

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=42789

Acesso em 04/04/ 2014. Ver fotografia deste periódico no ANEXO III. 182

Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=69459

Acesso em 09/05/2014. 183

Sua irmã, Danusa Leão, era casada com Samuel Wainer, fundador deste jornal.

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No entanto, salvo engano, jamais foi atribuído a Fuks o uso pioneiro do

termo “sambajazz”, conforme mostrou esta pesquisa em periódicos. Nem ao

radialista Stevan Hernan, apontado por Fuks como o organizador do evento.

Quatro dias depois desta primeira notinha, em 10/06/1961, Fuks anuncia

novamente esta “segunda noite do sambajazz”, deixando saber que houve pelo

menos uma noite anterior de “sambajazz” no CIB: “Amanhã no CIB, será

realizada a segunda noite do “Sambajazz”. Coquetel dos dois ritmos. Com a

presença dos maiores artistas nacionais. Quem está organizando é Stevan Hernan.

Para quem gosta, é a pedida certa.”184

CIB era o Clube Israelita Brasileiro, hoje Centro Israelita Brasileiro,

localizado à Rua Barata Ribeiro, ao lado da Galeria Menescal, em Copacabana,

RJ. Em um memorial escrito por Samuel Szwarc185

, um jovem membro do clube

àquela época, encontra-se a menção a uma apresentação no CIB em 1958,

segundo o autor, chamada por “samba-jazz”. Neste concerto, apesar do nome

composto, tocava-se samba e jazz, separadamente, conforme se pode ler na

citação abaixo. A lista de atrações incluía músicos do samba moderno de então,

como os cantores João Gilberto e Nara Leão, e os pianistas Luís Carlos Vinhas e

Luiz Eça, entre outros. O fato de algum destes estarem agrupados ora sob o nome

de “bossa nova”, ora sob “samba-jazz”, deixa ver que estas categorias ainda eram

entendidas genericamente, sem uma definição mais restrita de seu escopo.

A nossa participação foi a seguinte: em 1958, um radialista chamado Estevam

Herman, comandou no CIB, as quintas-feiras, um programa chamado samba-

jazz.

Samba numa 5a feira, jazz na outra. Nesses programas de samba ouvi pela

primeira vez João Gilberto, Chico Feitosa "Fim de Noite”, Luís Carlos Vinhas,

Ronaldo Boscoli, Luiz Eça, Nara Leão e tantos outros. No Carnegie Hall, de

Nova York, já em 62 - aquela batida sincopada ‘conquistava o mundo’, e eu

deixo aos historiadores esses fatos passados no CIB, acho que narrados pela

primeira vez. (Samuel Szwarc, 1999, grifo meu)

Em uma busca sistemática pelo nome “sambajazz” em periódicos da época

não surpreende que os autores da grande maioria das citações sejam jornalistas,

184

Ultima Hora - Moyses Fuks 10/06 /1961

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=69515 185

Publicado na revista Menorah número 481 de julho de 1999, sob o título “CIB nos anos 1950

O RIO JUDEU QUE O POVO ESQUECEU” Disponível em:

http://roitblog.blogspot.com.br/2014_02_01_archive.html. Acesso em 09/05/2014.

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pois são estes os profissionais que escrevem em jornais, por certo. O que ocorre é

que estes jornalistas eram, nestes casos e em outros também, os produtores dos

eventos musicais. Na divulgação dos shows, eles terminavam por usar destas

expressões que “estavam no ar” para nomear suas atrações. “Bossa nova” era uma

dessas expressões. E conforme se viu, o termo “bossa” remonta a um samba de

Noel Rosa, de 1932. Samba-jazz, muitas vezes grafado com hífen, também era um

nome composto que surgia de forma quase espontânea sempre que alguém queria

referir-se à modernização do samba. Mas jornalistas como Fuks e Celerier, em

parte talvez por simples acaso, mas também como fruto de sua militância junto ao

“samba moderno” promovendo apresentações junto aos músicos e divulgando-as

em jornais, terminaram por entrar para a história como os fixadores dos rótulos

que se usa comumente para referir a estes movimentos. Foram em grande parte,

portanto, os jornalistas e os radialistas - trabalhadores da palavra escrita e falada -

os responsáveis por nomear as categorias aqui em discussão.

Celerier, no entanto, foi mais um “estabilizador” da categoria sambajazz

do que um inventor de seu nome. Se não se pode atribuir a origem do termo a ele,

sua intensa militância pelo sambajazz o tornou uma espécie de porta-voz do

movimento, graças aos seus artigos publicados regularmente no jornal Correio da

Manhã na primeira metade dos anos 1960.

Em 1963, portanto 5 anos depois do surgimento do programa de rádio

Samba-jazz de Hernan, lê-se um artigo de Celerier onde o jornalista faz menção a

estas apresentações no CIB como fenômenos amadores do passado. Aqueles

eventos difeririam em muito deste novo festival promovido na Associação Cristã

de Moços pelos músicos Victor Manga e Pedro Paulo, e no qual o violonista

Baden Powell apresentou-se ao lado do pianista Tenório Jr. O sucesso da bossa

nova teria, segundo Celerier, possibilitado financeiramente aos músicos dedicar-se

mais ao jazz brasileiro, adquirindo “prática e cultura musical”:

Felizmente já passou o tempo das 'jam-sessions' desorganizadas, com conjuntos

não ensaiados (…). Felizmente já temos músicos, amadores e profissionais, de

capacidade técnica e inspiração suficiente para conquistar a atenção de um

público cada dia mais numeroso. O Festival de Jazz e Bossa-Nova da

Mocidade, realizado na ACM, sob a direção de dois músicos, o baterista

Vitor Manga e o pistonista Pedro Paulo, foi um sucesso absoluto. (…)

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Desde o último concerto nacional de Jazz, que, se não nos falha a memória,

foi organizado há uns dois anos no CIB pelo disc-jockey Estevão Herman, o

ambiente musical carioca mudou muito. Os músicos profissionais não

podiam, por motivos econômicos, se dedicar ao Jazz com mais interesse. Mas,

com o tremendo sucesso da 'Bossa-Nova', jovens amadores de talento já

pudéssemos (sic) organizar em conjuntos, adquirindo bastante prática e cultura

musical. Estes dois últimos serão certamente lembrados como a época crítica da

formação de uma falange de músicos modernos que não somente assimilaram

a autentica linguagem do Jazz internacional, mas também criaram com a

ajuda de compositores e vocalistas de um gênero mais popular, as bases

estruturais de um Jazz caracteristicamente brasileiro.186

Nota-se no artigo de Celerier que ele se coloca também como um músico,

empregando, propositalmente ou por engano, o verbo na primeira pessoa do

plural, quando diz que “jovens amadores de talento já pudéssemos organizar em

conjuntos”. Ele revela ainda uma preocupação central dos músicos inventores do

samba moderno a época: a de criar “um jazz caracteristicamente brasileiro”.

Trata-se, portanto, de um nacionalismo nada xenófobo, que difere em muito do

discurso que reservava aos músicos de samba moderno reprimendas pela dita

“americanizacao” ou “alienação” de seu samba. É neste sentido que se faz a

construção musical do sambajazz por Celerier e também por muitos músicos

praticantes do estilo: ela pretende incorporar o jazz à musicalidade brasileira, o

que não é entendido como uma forma de submissão à cultura estrangeira. Pelo

contrário, a “autêntica linguagem do Jazz internacional” é uma prática comum em

que os músicos brasileiros poderiam se afirmar tão bons ou melhores que os

estrangeiros.

A tradicional comparação com os EUA, que frequentemente resultava em

inferiorização e admissão do nosso “atraso”, ganha aqui um olhar otimista. E que

não apresenta contradição com a nacionalidade: era possível e desejável um “jazz

brasileiro”, e o Brasil não necessitaria se fechar ao mundo para tornar-se mais

autêntico. Está em jogo, portanto, a relação com o exterior e com a modernidade

representada pelo jazz internacional.

Em julho de 1964 o jornalista francês radicado no Rio de Janeiro, Robert

Celerier, já empregava o termo sambajazz em artigos publicados aos domingos,

no jornal O Correio da Manhã, um dos principais periódicos da época no Rio de

186

CELERIER, Roberto. Correio da Manhã, em 03/09/1963. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=43404 Acesso em

05/05/2014.

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Janeiro. Após traçar um breve histórico das fusões pioneiras do jazz com o samba

nos EUA por músicos americanos e brasileiros como Stan Getz, Charlie Byrd e

Laurindo Almeida, o crítico entusiasmado chama a atenção para a “música

moderna”, ou “sambajazz”, que se praticava então no Brasil. Um índice do

otimismo deste artigo, intitulado “bossa nova e sambajazz”, é a ideia de que os

músicos brasileiros estão mais “a vontade” com o jazz que os estrangeiros. Este é

um nacionalismo diverso dos citados anteriormente, em Sérgio Porto, por

exemplo, por que se orgulha da boa prática nacional do jazz internacional. O

sambajazz enquanto posicionamento político no campo musical brasileiro se

relaciona a esta visão otimista da relação do país com a cultura cosmopolita do

jazz:

Porém, em vez de continuar obsecados pelo sucesso no exterior, é aqui mesmo

que nós podemos mais facilmente avaliar o resultado do pioneirismo de alguns

dos nossos músicos. Enquanto, no seu país, o Jazz perdeu o contacto com o

grande público e trava luta cerrada pela sua sobrevivência econômica, aqui, a

música moderna reúne cada dia mais aficionados. Basta reparar que até os

vocalistas populares mais enraizados numa tradição de mediocridade para

suplício de auditório, estão-se vendo agora na obrigação de modernizar o

repertório e os arranjos. Basta reparar também que as gravadoras nacionais já

encontram um mercado satisfatório para discos de Jazz americano ou

Sambajazz. Sim, amigos, nossos músicos tocam mais e mais à vontade do que

os jazzmen franceses ou alemães! Em um mês foram lançados quatro bons

discos instrumentais: “Embalo”, do pianista Tenório Jr, “Os Ipanemas”, com o

pequeno conjunto do trombonista Astor, 'Samba nova concepção', com uma

escolhida formação de estúdio, e o notável 'Édison Machado e o Samba Nôvo'

(sic), verdadeira obra-prima de música instrumental. Já tivemos recentemente 'O

Som', do conjunto 'Copa Cinco', o ótimo 'Sexteto Bossa rio', o 'Bossa Três' ' Tema

3D', 'Os Cobras', 'Baden Powell à vontade', Donato, também a vontade', Pedro

Matar, de São Paulo, etc. Sem falar de conjuntos mais populares, cuja atuação

regular possibilita a evolução e a sobrevivência dos nossos instrumentistas. De

que estamos nos queixando?187

(Grifos meus)

Note-se que Celerier reforça aqui a ideia do sambajazz como música

instrumental moderna, em oposição aos “vocalistas populares mais enraizados

numa tradição de mediocridade”. O crítico procura reforçar a bipartição entre

música instrumental e canção, formulação que ganharia mais força nos anos 1970.

A referência inicial do texto ao “sucesso no exterior” é típica da época, quando se

fala em músicos de bossa nova ou de sambajazz: estes estilos haviam “estourado”

nos EUA, e de lá haviam alcançado o mundo.

187

“Bossa Nova e sambajazz” – Robert Celerier publicado em O Correio da Manhã em19/7/1964.

Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=53466

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Segundo Ruy Castro, em verbete sobre Celerier na sua “Enciclopédia de

Ipanema” (1999):

O jornalista francês Robert Celerier foi uma figura do panorama musical do Rio

por volta de 1960. E não só porque saía à rua de cabelos compridos e botas,

quando isso não se usava, ou porque rodasse por Ipanema num calhambeque anos

30 (...). E não seria também pelo sax alto que ele insistia em tocar (mal) nas

canjas de domingo a tarde, no Little Club ou no Hotel Plaza,em Copacabana.

Celerier foi importante porque seus artigos sobre jazz no Correio da Manhã,

entre 1961 e 1965, muito informativos e atualizados, ajudaram a educar toda

uma geração. Foi também um ardente divulgador dos músicos do Beco das

Garrafas, como o trombonista Raul de Souza, o baterista Édison Machado, o

pianista Tenório Jr., e lutou (com sucesso) para que eles gravassem. Na vida

real, seu enorme apartamento na rua Almirante Saddock de Sá era um ponto de

encontro entre rapazes e moças do Arpoador, em festas que viravam a noite, ao

som de – imagine – Charlie Parker. O jazz era um estilo de vida para aquela

geração, o passaporte para a rebeldia adulta e intelectualizada, a música dos

existencialistas e dos beatniks. (1999, ps. 85 e 86, negritos meus)

Robert Celerier, nascido em 1938, foi um ator e saxofonista amador

francês aficionado por jazz, que chegou ao Rio de Janeiro em 1952188

e residiu na

cidade até meados dos 1970. Ele escrevia uma coluna dominical sobre jazz e

música popular em um dos jornais de maior prestígio do país, o Correio da

Manhã, na primeira metade da década de 1960, até 1965. Celerier foi um

promotor ativo do jazz e do sambajazz no Rio de Janeiro, e se tornou importante

para os pesquisadores afins por ter escrito regularmente sobre o movimento,

incluindo um texto intitulado Pequena história do samba-jazz, publicado em uma

série de cinco artigos neste jornal, entre 1964 e 1965. Estes artigos foram

reproduzidos no Anexo III desta tese.

O jazzófilo francês discutia em sua coluna não apenas questões musicais

ou estéticas, mas também a situação do jazz e sambajazz no Brasil com relação à

indústria fonográfica e a qualidade e quantidade dos seus lançamentos, bem como

suas estratégias mercadológicas para tanto. Colocava a necessidade não apenas da

prática do jazz no país, mas também da formação de um público, considerando

que era preciso um trabalho educativo da cultura do jazz pelas gravadoras.

188

Conforme o site http://www.myheritage.com.br/research/category-4000/imigracao-e-

viagens?formId=master&formMode=0&action=query&qname=Name+ln.Célerier+lnme.true+lnm

s.false .

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224

Os lançamentos de álbuns de jazz e sambajazz deveriam visar um

investimento no bom gosto musical da audiência, uma formação de público. Pois

se os discos de jazz e sambajazz não eram tão bons em venda quanto um “hit

popular”, eles seriam como os de música erudita, “um investimento a longo

prazo”, que poderia compensar sua baixa vendagem inicial com reedições

posteriores graças a sua característica de música artística, duradoura, e não apenas

atrelada a modismos passageiros. Reproduzo a seguir um trecho do artigo “alguns

conselhos as gravadoras”, que Celerier escreveu em 28/04/1962, no Correio da

Manhã, a respeito do lançamento de um LP do saxofonista norte-americano Paul

Winter:

Pois bem, o distinto perito da Columbia nos afirmou, com números e estatísticas,

que o lançamento de um disco de Jazz era, do ponto de vista financeiro, um

verdadeiro suicídio. Contudo êle foi incapaz de explicar porque é impossível

achar nas lojas ou até nos 'sebos' um único exemplar de alguns antigos

lançamentos jazzísticos da Columbia... Mas, disse êle, a Columbia, para provar

sua boa vontade, tinha feito o lançamento de um LP do Paul Winter Sextet. Boa

vontade, uma virgula! Com tôda a propaganda de graça, tanto dos cronistas

especializados como dos serviços de propaganda da Embaixada dos Estados-

Unidos, os financistas da Columbia acharam a hora certa para ganhar dinheiro. 189

Em crítica de 1963, Celerier mostra estar atento também a fatores gráficos

dos álbuns de sambajazz, percebendo a importância artística e comercial das capas

e contracapas dos álbuns, criações à parte nos lançamentos da época. Celerier

aponta a má prática das gravadoras de não creditar os músicos na contracapa dos

álbuns, mesmo nos álbuns de sambajazz onde estes eram protagonistas. Essa

omissão denuncia a posição social inferior dos músicos de sambajazz em contraste

com a de seus colegas jazzistas norte-americanos, sempre creditados e

frequentemente considerados como “artistas” de destaque:

No recente Festival de Jazz e Bossa Nova, na ACM, uma das atrações mais

aplaudidas foi a pré-estréia do conjunto 'Os Ipanemas'. Integrado por músicos dos

estúdios da Colúmbia e liderado pelo conceituado trombonista Astor, este

conjunto gravou um compacto dos mais interessantes. É claro que a Columbia

não esta fazendo discos por amor à arte”. 'Os Ipanemas' não escapam de

certas contingencias comerciais. (…)

A capa é de um mau-gôsto incrível e a contra-capa não traz outra informação

senão os títulos e os compositores. Columbia do Brasil, embora seus músicos

sejam pagos mensalmente, são mais do que funcionários da empresa: são

189

Correio da Manhã, 28/04/1962. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=39226. Acesso em:

03/08/2014.

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artistas. No caso de um pequeno conjunto, onde o trabalho de cada um é

bastante destacado, a menção dos membros do grupo não é somente um

gesto de boa educação e agradecimento para o artista, mas também uma

informação valiosa para o ouvinte, que sabe reconhecer uma flauta doce de

uma tuba. A famosa Ordem dos Músicos deveria agir neste sentido.”190

Assinale-se aqui que, apesar de não serem creditados no álbum, os

músicos de Os Ipanemas, grupo hoje ainda em atividade eventual, eram

assalariados da gravadora Columbia, conforme o crítico. Esta prática é atualmente

muito incomum entre músicos brasileiros, que vivem uma carreira de profissionais

liberais. Também chama a atenção a menção à Ordem dos Músicos do Brasil,

órgão então recém-criado, em 1960, que regula a profissão no país. O crítico

estava atento, portanto, às questões importantes da carreira de músico à época.

A fim de melhor compreender a posição de Robert Celerier no campo

pesquisado, reproduzo um interessante retrato seu, embora não despido de ironia,

escrito por seu colega, o jornalista e crítico de música do Jornal do Brasil, José

Domingos Rafaelli.

Um episódio algo surrealista ocorreu por ocasião da vinda de Ray Charles, em

1963. Naquela época morava no Rio um francês chamado Robert Celerier, que

era um fanático jazzófilo.

Alegre e comunicativo, Celerier fazia amigos rapidamente, tornando-se figura

popular no meio jazzístico carioca. Durante algum tempo escreveu uma coluna de

jazz no extinto jornal Correio da Manhã. Celerier era o que os americanos

chamam de ‘great talker’, ou seja, um falastrão de carteirinha que não parava de

falar sobre jazz. Ele acompanhava a cena jazzística americana o mais próximo

que conseguia. Entre outras atividades, Celerier 'lecionava' jazz a um grupo de

garotões nas areias da Praia de Ipanema e seus alunos acompanhavam-no onde

quer que fosse. 191

Aqui vemos a atividade de colecionador de discos, muito ligada ao mundo

do sambajazz, em uma época em que o acesso aos álbuns importados era não tão

fácil para músicos e público. Tocar ou conhecer jazz e sambajazz no Rio de

Janeiro nos anos 1950 e 1960 era uma prática que implicava na absorção das

190

Correio da Manhã, 21/09/1963

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=43983 Acesso em:

01/08/2014. 191

Disponível em http://ericocordeiro.blogspot.com.br/2011/06/anarrie-alavantu-viva-santo-

antonio-sao.html Acesso em 03/07/2014. Ainda conforme Rafaelli, Celerier deixou a cidade para

morar em Boston: “Após vários anos no Rio, Celerier herdou uma fortuna da sua mãe, incluindo

uma mansão em Boston, para onde mudou-se. Não lembro em que ano foi isso. Todavia, alguns

anos depois (pode ter sido por volta de 1975/80) ele veio ao Rio para vender seus discos de jazz

que deixara aqui. Nessa ocasião telefonou-me comunicando que viera vender sua discoteca, porém

a grande maioria estava em mau estado, razão pela qual não interessei-me por nenhum.” (idem)

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“novidades” discográficas importadas dos EUA. Ter essa vivência musical

possibilitava ser e tocar “moderno”. Celerier se destacava por conhecer bem a

discografia de jazz e por ter uma grande coleção, que ouvia e compartilhava com

jovens músicos interessados. Segundo o pianista Alfredo Cardim, em entrevista

para esta pesquisa:

O Celerier morava ali na Saint Romain, conhece, em Copacabana? Eu e outros

músicos íamos na casa dele ouvir os LPs de jazz. Ele colecionava, tinha muita

coisa boa. Naquele tempo só tinha uma loja de discos que ficava ali onde era a

Modern Sound, em Copacabana – já era o Pedro, o dono – era pequena mas

depois ele comprou o cinema e aumentou. O Celerier era jornalista e recebia tudo,

as gravadoras mandavam os lançamentos todos pra ele. A gente não se arriscava a

comprar Lps que a gente não conhecia na loja. Se fosse Miles Davis, John

Coltrane, Bill Evans, aí tudo bem, mas Paul Bley e outros músicos menos

badalados, fomos conhecer com o Celerier, na casa dele.

5.5. O Clube de Jazz e Bossa

Seguindo o percurso do depoimento Cardim nos deparamos com o Clube

do Jazz e Bossa, que teve importância especialmente para os músicos da geração

imediatamente seguinte à do sambajazz, da qual o pianista faz parte.

Tinha o Clube de Jazz e Bossa, onde sempre rolava som legal, mas tinha que

pagar uma grana alta pra entrar lá. O Ricardo Cravo Albin falava antes das

apresentações, aquela coisa. Tinha também o Sylvio Túlio Cardoso, conhece? E

pra não pagar tinha que ser músico, ter a carteirinha né. Aí eu, o Ion (Muniz) o

Jaime e o Luis Roberto fizemos um grupo e o Celerier vinha ouvir em casa pra

dizer se o grupo tinha nível pra tocar lá. Fizemos e teste pra ganhar a carteirinha

de musico, lembro até hoje, tocamos Autumm Leaves pra ele e ficamos sócios do

Clube de Jazz e Bossa. (Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese)

O Clube de Jazz e Bossa foi uma agremiação que durou de 1965 a 1977

dedicada a promover o jazz nacional e a reunir seu público. O artigo abaixo foi

publicado no ano de sua fundação por um dos seus “sócios fundadores”, o crítico

musical do Jornal do Brasil, Luiz Orlando Carneiro, na sua coluna semanal

“Jazz”:

Reunir, pelo menos uma vez por semana, o disperso público de jazz que

realmente conhece ou procura conhecer essa forma de expressão musical tão

desamparada pelas gravadoras e empresários brasileiros, é o objetivo do

Clube de Jazz e Bossa que será lançado sábado próximo na boate K-samba por

Jorge Guinle, Sílvio Túlio Cardoso e Ricardo Cravo Albin, seus idealizadores.

O Clube de Jazz e Bossa tem dez sócios fundadores (os três idealizadores,

Everardo Magalhães Castro, Robert Celerier, Sérgio Porto, Paulo Santos,

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Vinícius de Morais, Antônio Carlos Jobim, além deste colunista (grifos

meus)192

O milionário patrocinador da música, Jorge Guinle, era o presidente e

Ricardo Cravo Albin foi o diretor executivo, e também “apresentador das sessões

públicas” do clube. Juntou-se a eles o crítico de música do jornal O Globo, Sylvio

Túlio Cardoso.

O Clube de Jazz e Bossa criou a Comenda da Ordem da Bossa, que “foi

oferecida a Pixinguinha, em cerimônia realizada no Teatro Casa Grande, na noite

de 23 de julho de 1967, com a presença de Vinicius de Moraes, Ismael silva, Tom

Jobim, Ricardo Cravo Albin, Sérgio Cabral, Sérgio Bittencourt, Walter Fleury e

Jorge Guinle, entre outras personalidades do meio cultural carioca.” 193

O saxofonista Ion Muniz descreve o Clube de Jazz e Bossa, em suas

Crônicas (s.d.):

Quando vim morar no Rio, todo domingo havia uma reunião do “Clube de Jazz e

Bossa”. Era organizado por Ricardo Cravo Albin, e era uma espécie de

domingueira do “Little Club” (que já havia acabado), só que bem mais badalado.

O local das reuniões era no salão de festas do Copacabana Palace,

O som começava lá pelas 5 da tarde, se bem me lembro, e terminava por volta das

10. Todos os “cobras” da época abrilhantavam a jam session: Juarez, Aurino,

Maciel, Cláudio Roditi, todo mundo aparecia por lá. Os figurões chegavam e

tocavam, e os iniciantes esperavam por uma chance...

Foi lá que Vitor Assis Brasil se impôs como solista de jazz. O Clube teve várias

“sedes”. Do Copacabana Palace mudou-se para uma casa no Lido, e depois para o

“Casa Grande”, no Leblon.

Para mim domingo era o grande dia da semana. À medida que eu praticava e me

aperfeiçoava como músico, ficava mais fácil para mim chegar ao palco. Eu era

tolerado...

Engraçado, a primeira pessoa a ver algum futuro em mim como músico de jazz

foi Jorge Guinle. Após uma das reuniões ele veio falar comigo, e me convidou

para ir à sua casa ouvir uns discos que havia acabado de receber dos States.

Ficamos amigos, a ponto de eu poder aparecer em sua casa sem avisar. Certa vez

ele me atendeu enrolado numa toalha...

Muitos músicos começaram a ser reconhecidos no Clube: Hélio Delmiro, Wagner

Tiso, e muitos outros.

192

Publicado em 4/11/65 no Jornal do Brasil, Caderno B. Por Luiz Orlando Carneiro. Disponível

em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=76165 Acesso em

21/05/2014. 193

Conforme o verbete “Clube de jazz e bossa”, do Dicionário Cravo Albin da música brasileira,

disponível em: http://www.dicionariompb.com.br/clube-de-jazz-e-bossa/dados-artisticos. Acesso

em 27/09/2014.

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No texto de Ion Muniz podemos entender a importância do Clube de Jazz

e Bossa para a geração de jovens músicos imediatamente posterior ao sambajazz,

na qual se destacam o saxofonista Vitor Assis Brasil e o próprio Muniz, além dos

pianistas Alfredo Cardim e Wagner Tiso e do guitarrista Hélio Delmiro. Ele

destaca a continuidade das “domingueiras” do clube com as da boate Little Club,

um local do sambajazz no Beco das Garrafas. Mas assinala, por outro lado, que

estas novas domingueiras, eram mais “badaladas”, e deixa entrever sua ascensão

social no local das reuniões: o “salão de festas do Copacabana Palace”, um lugar

bem diverso do Little Club, que mal se distinguia dos “inferninhos” da noite do

bairro.

Entre os sócios honorários do clube encontravam-se diversas

personalidades importantes ligadas à música popular ou erudita como Lucio

Rangel, Pixinguinha, Aloysio de Oliveira, Jacques Klein, Rogério Marinho, Mário

Cabral, Eleazar de Carvalho, Armin Berhardt, F.E. Paula Machado, Andrade

Muricy, José Sanz, Sérgio Bahou, Leonardo Lenine de Aquino, Alberto

Pittigliani, Eurico Nogueira França, Maestro Koellreuter, Alberto Faria,

Mariozinho de Oliveira, Anfilófilo Rocha Melo, Luís Carlos Antunes, Estevão

Herman e Jonas Silva.

Podemos destacar alguns pontos importantes sobre o Clube de jazz e

bossa. O primeiro deles refere-se diretamente à discussão sobre categorias, que

ocorreu na ocasião da escolha do nome do clube, segundo o jornalista Luiz

Orlando Carneiro:

A denominação do clube foi objeto de algumas discussões quando de sua

concepção. Embora basicamente um clube se propõe a dar a seus sócios a

oportunidade de ouvir (em tapes e ao vivo) e discutir jazz aprovou-se finalmente

juntar a palavra bossa a denominação original, tendo em vista evitar-se a famosa

discussão sobre o que vem a ser jazz e quais os tipos de criação musical que

podem ser catalogados como jazz. Além disso, muitas formas de expressão

musical, que não são jazzísticas, podem e estão sendo absorvidas pelo jazz que é,

cada vez mais, música de síntese.

O uso da palavra bossa não deve no entanto dar a entender que se trata de

um clube de bossa nova, pois uma das preocupações dos seus idealizadores foi

exatamente a de criar condições para que os músicos brasileiros possam

desenvolver sua linguagem jazzística, o que não vinha acontecendo

exatamente em consequência da grande aceitação popular de um tipo de

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bossa nova comercial que acabou por limitar músicos que se anunciavam

excelentes jazzmen (grifos meus)194

.

Observa-se, a princípio, a resistência do crítico em discutir o que é jazz

apesar de o clube ter sido criado justamente para “ouvir e discutir” o gênero, em

suas palavras. Isto ocorre por que Carneiro opera com uma definição aberta de

jazz, “música de síntese” segundo ele, capaz de absorver mesmo estilos

considerados não jazzisticos e, portanto, a discussão seria infrutífera. O jazz seria,

como a bossa nova definida por Boscoli anteriormente, mais um estilo de tocar e

de viver que um gênero fechado, que pudesse ser descrito de forma objetiva neste

sentido.

Aqui temos ainda um entendimento bipartido do termo “bossa”, presente

no nome do clube, mas que “não deve no entanto dar a entender que se trata de

um clube de bossa nova”. O crítico evoca um entendimento do que seja bossa

nova que é rejeitada com vistas a uma outra bossa a ser promovida pelo clube,

mais jazzística. A bossa nova aparece, portanto, partida em duas, vislumbrando-se

a divisão entre esta – canção à maneira de João Gilberto -, e sambajazz, entendido

como a sua vertente mais jazzística, e frequentemente instrumental. Não se quer

promover ali um tipo de bossa nova “comercial”, e “de grande aceitação popular”

mas que “acabou por limitar músicos que se anunciavam excelentes jazzmen”,

mas sim a que se aproximaria do sambajazz – palavra que, no entanto, não é

citada.

Outro ponto a ser destacado refere-se à classe social elevada dos

fundadores do clube, que contrasta com a dos músicos de sambajazz do Rio de

Janeiro à época, de maneira geral. O Clube de Jazz e Bossa era presidido pelo

conhecido empresário e produtor cultural Jorge Guinle, que residia no Hotel de

luxo Copacabana Palace, fundado por seu tio, Arnaldo Guinle. Ele escreveu

aquele que foi provavelmente o primeiro livro sobre jazz publicado no Brasil, o

Jazz Panorama (GUINLE, 1959). Ricardo Cravo Albin, seu diretor executivo,

fundou e dirigiu o Museu da Imagem e do Som no mesmo ano do clube, 1965, e o

dirigiu até 1972. Muitos membros fundadores do Clube de Jazz e Bossa são

194

Publicado em 4/11/65 no Jornal do Brasil, Caderno B. Por Luiz Orlando Carneiro. Disponível

em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=76165. Acesso em

21/05/2014.

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pessoas de destaque na sociedade, por vezes jornalistas com colunas sobre música

em jornais de prestígio ou músicos eruditos, não se encontrando nenhum músico

que poderia ser caracterizado como de sambajazz entre os sócios citados acima,

salvo engano. O pianista Alfredo Cardim, ainda muito jovem à época, relata que

era preciso realizar uma prova para “ganhar a carteirinha” do clube tendo como

juiz o crítico Robert Celerier. Os músicos, portanto, deviam ser testados pelos

sócios fundadores para serem admitidos. Por outro lado, Cardim havia assinalado

que o principal interesse em ser sócio era a entrada gratuita nas jam sessions

promovidas pelo Clube, em diversas boates.

Escrevendo um artigo intitulado “O novo samba” em 1953, portanto mais

de uma década antes da fundação do Clube de Jazz e Bossa, Vinícius de Moraes já

apontava para esta tendência de aburguesamento do “novo samba”, em um artigo

especialmente crítico:

Sinatra, Copacabana, be-bop, boite, microfone: eis o novo samba. O divórcio

formal entre a burguesia e o povo – divórcio que, por outro lado, se anula certa

comunhão de necessidades outrora inexistentes – criou naquela uma espécie de

letargo, uma espécie de laiseer aller, um intimismo escapista cuja melhor solução

é o pequeno bar, a pequena boite onde encontrar seus desencontros, seu tédio de

complicações orgânicas, seu medo à vida e ao povo lutando por se afirmar.

Pequenos espaços passaram a pedir pequenas músicas – dançaveis, o mais

possível, no mesmo lugar. Pequenas músicas passaram a pedir pequenas

vozes, e o microfone veio facilitar a realização dessa pequenez toda, os

cantores passaram a cantar para o microfone e não para os frequentadores. (...) (grifos meus)

195

No entanto havia também os festivais de música realizados não somente

por promotores de status social elevado, mas também por músicos que praticavam

o jazz e o sambajazz. O referido Festival de Jazz e Bossa Nova196

na Associação

Cristã de Moços do Rio de Janeiro, foi realizado em 1963 por iniciativa do

trompetista Pedro Paulo e do baterista Victor Manga, um sambajazzista ativo que

integrou o "Salvador Trio" de Dom Salvador e Edson Lobo, em 1965, e A

Brazuca, do pianista Antônio Adolfo, em 1969, vindo a falecer em 1970.

195

Publicado em 27/10/1953 em Diz-que-discos, revista Flan, 1953, suplemento de cultura do

jornal Ultima Hora. Em Samba Falado, artigos de 50 e 60 (MORAES, 2008). 196

Ver CELERIER, Roberto. Correio da Manhã, em 03/09/1963. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=43404 Acesso em

05/05/2014

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Tais festivais eram comuns à época. Outra notícia do Correio da Manhã

do mesmo ano, intitulada Jazz e Bossa Nova, anuncia um festival a ser realizado

na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, promovida desta vez por

seus alunos, e cuja apresentação também foi feita por Celerier:

No próximo dia 19, sábado, algumas das maiores figuras do Jazz e Bossa-Nova

estarão reunidas na PUC (…). O show é uma iniciativa dos próprios alunos da

Universidade e se realizará no Ginásio, as 15hs. O 'show', que terá a direção geral

de Thélio Bogado Júnior, com Victor Manga na direção musical, será

apresentado pelo cronista Robert Celerier e já recebeu a denominação de

“Encontro do Jazz com a Bossa-Nova”. Do encontro participarão, entre outros,

os seguintes artistas: Sílvio César, Os Cariocas, Jorge Ben, Menescal e seu

conjunto, Quinteto Cipó, Trio Luiz Carlos Vinhas, Copa Cinco e Tenório e seu

quinteto (…).197

Em outra matéria em data próxima, Celerier advertia inclusive que “Os

ingressos poderão ser adquiridos na famosa “Loja do Jonas”, a “Jazz Samba

Discos”, Rua Santa Clara, 33, sobreloja, (onde hoje funciona uma loja de

moda).”198

Esta ligação do festival com a loja de discos não é ocasional: aqui

pode-se ver a importância destes estabelecimentos para os amantes de jazz e

sambajazz/bossa nova, que eram pontos de encontro importantes neste universo.

Portanto, nem todo o jazz e sambajazz deste período eram providos pelo

que se poderia chamar de elite cultural ou econômica, a exemplo do Clube de Jazz

e Bossa de Guinle e Cravo Albin, havendo os referidos festivais promovidos por

músicos ou por estudantes que gostavam de “samba moderno”.

Se não é possível traçar uma linha de classe social que circunscreva os

promotores desse movimento, por outro lado não deixa de espantar o contraste

entre o que se entendeu por jazz em grande parte do mundo, inclusive nos EUA,

onde ele nasceu e se desenvolveu como música de minorias, pobres e negros

(HOBSBAWN, 1990) e sua apropriação pelas classes altas no Brasil.

A programação do festival citado acima chama a atenção por seu grande

ecletismo – ou ausência de purismo - com relação às correntes depois

197

Correio da Manhã 06/10/63 artigo não assinado. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=44538 Acesso em:

28/07/2014 198

Correio da Manhã, 29/09/1963 Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=44292 Acesso em:

28/07/2014

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classificadas como diversas, mas que aqui conviviam sob a rubrica “jazz e bossa

nova”, como Sílvio César, Os Cariocas, Jorge Ben, Roberto Menescal e seu

conjunto, Quinteto Cipó, Trio Luiz Carlos Vinhas, Copa Cinco e Tenório e seu

quinteto, muitos deles músicos praticantes característicos do sambajazz.

Chama à atenção ainda a presença de Jorge Ben no festival, que hoje

dificilmente seria classificado como um músico de “Jazz e Bossa-Nova”, mas na

época ainda podia ser entendido assim, como se observa neste caso. Conforme foi

lembrado, seus três primeiros álbuns foram arranjados e gravados por músicos

praticantes de sambajazz, sob a liderança do saxofonista J. T. Meireles. Jorge Ben,

era um artista ao qual se pode atribuir ascendência negra, tendo lançado em 1976

o LP África. A referência a esse viés de raça é pertinente uma vez que esse

aspecto teve importância central nas diferentes leituras sobre o jazz no século XX.

5.6. O jazz e o sambajazz enquanto músicas negras

Celerier, cujos artigos “ajudaram a educar toda uma geração” (CASTRO,

1999, p.85), entendia os movimentos musicais como o jazz do tipo be bop, e o

sambajazz por extensão, como músicas que expressam “fatores sociais e

econômicos” do meio em que foram criados. Ele era também bastante sensível à

condição do negro não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. Segundo ele:

A revolução musical do Be-Bop foi também o fruto de fatores sociais e

econômicos. A decadência das grandes orquestras, portanto a dificuldade, para os

jovens músicos prêtos, em encontrar trabalho, fêz com que eles se reunissem em

'jam-sessions' às vezes tocando de graça, para fazer experiências que ainda não

podiam ser desenvolvidas no plano profissional. O nôvo intelectualismo da

população preta norte-americana, que começava a entrever a importância

da sua cultura, as misérias do seu passado e as possibilidades do seu futuro,

contribuiu também para a fermentação de uma nova forma musical. (…)

Mas os sentimentos do prêto norte-americano e, consequentemente do músico

prêto, iam sofrer mais uma modificação. Os acontecimentos na jovem África, em

crise de independência e desenvolvimento, iam ampliar o seu instinto de defesa.

Êle tinha lutado, há um século, com a única ambição de ter os seus direitos de

cidadão americano plenamente reconhecidos. As lutas do Congo, da África do

Sul, a evolução sadia de países livres como Ghana, fizeram acordar o nôvo

sentimento de solidariedade. Nasceram então diversas sociedades, islamistas

ou não, pregando a violência ou a resistência passiva de Ghandi, tôdas em

prol da liberdade da raça prêta inteira, e não somente da minoria vivendo

nos Estados Unidos.

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No clima de abnegação e martírio, criado pela epopéia dos 'Freedom Riders' no

Sul, o disco “We Insist, Freedom Now”, do baterista Max Roach e da vocalista

Abbey Lincoln, estourou como uma bomba. O jazz, de repente, deixava de ser

resignado ou discreto na sua revolta. (...)”199

(grifos meus).

É certo que entender o jazz como tática musical de escape da dominação

social utilizada por negros e minorias não foi uma exclusividade do crítico

francês, mas permeava os discursos sobre jazz da época no Brasil e no mundo.

Esta era uma temática que não era incomum neste período que viu o processo de

independência colonial de diversos países da África e as lutas pelos direitos dos

negros ao redor do mundo e, especialmente, nos EUA.

O historiador Eric J. Hobsbawn escreveu o livro A história social do jazz

em fins da década de 1950, onde explicita um discurso sobre o jazz semelhante ao

de Celerier. Destaque-se ali a oposição colocada entre o jazz e a “música pop

comercial”, também bastante comum no discurso de sambajazzistas brasileiros:

No momento em que escrevo estas palavras, primavera de 1958, não há

provavelmente nenhuma grande cidade no mundo onde não se esteja tocando um

disco de Louis Armstrong, Charlie Parker, ou de algum músico influenciado por

estes artistas. (…) O apelo do jazz sempre aconteceu em função de sua

capacidade de fornecer aquilo que a música pop comercial elimina de seu

produto. Ele conquistou seu espaço como música que as pessoas fazem e de que

participam ativa e socialmente, e não como uma música de aceitacão pacífica;

como uma arte dura e realista, e não como divagação sentimental; como uma

música não comercial, e acima de tudo, como música de protesto (inclusive

contra a exclusividade de uma cultura de minoria). O sucesso foi atordoante e

universal. (…)” (HOBSBAWN, p.28, 1990, grifo meu)

Vinícius de Moraes também escreveu um artigo remetendo às origens

negras do samba e do jazz tendo o cuidado, porém, em ressaltar as

particularidades nacionais, ainda que admitindo uma origem africana comum

entre Brasil e EUA.200

As fontes de inspiração da música popular brasileira são, de certo modo, bastante

aparentadas às fontes que criaram o jazz. O negro americano, absorvido, como o

negro brasileiro, pela escravatura, é originário das mesmas regiões da África que

o nosso: a costa do Ouro e a Costa do Marfin. O que houve, com relação ao negro

brasileiro, é que ele pôde, em terras brasileiras – e na Bahia com especialidade,

conservar a força e a autenticidade dos seus mitos. O candomblé baiano é um

199

Ver fotografia no Anexo II. Robert Celerier no Correio da Manhã em 03/06/1962. Disponível

em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=29531. Acesso em

03/08/2014. 200

A exemplo do que Mario de Andrade já havia feito no artigo A expressão musical nos Estados

Unidos, no livro Música, doce música (1963).

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híbrido antes bastante puro, em certos terreiros (...) Já o negro americano sofreu o

impacto do protestantismo, e os escravos tiveram que adaptar seu ritmo aos hinos

religiosos protestantes que, em última instrução, resultaram nos spirituals e souls,

de onde originou a forma de blues e, posteriormente, (...) no chamado ‘hot jazz’

de King Oliver, Louis Armstrong etc” (MORAES, 2008, p.15).201

Assim, conforme Moraes, não se poderia atribuir as mesmas características

à músicos dos dois países, pois a cultura original do negro norte-americano teria

sido mais eficazmente reprimida em comparação à do negro brasileiro, e este teria

podido “conservar a força e a autenticidade dos seus mitos”. Estamos diante do

ideário modernista cuja expressão mais conhecida é o pensamento de Gilberto

Freyre (2006). Este foi o autor de teorias fundadoras sobre o Brasil que

penetraram o campo da música popular brasileira (NAVES, 2001). Este

pensamento social foi vulgarizado e entendido sob a chave da “democracia racial”

– termo que Freyre aparentemente jamais empregou - negando na escravidão

brasileira a repressão mais brutal que teria apagado completamente a cultura

original africana entre os escravos norte-americanos. A partir desta lógica, não há

como surgir o paralelo entre o sambajazz brasileiro e o jazz original, “música de

protesto” de negros e minorias.

Sobre este assunto poderíamos supor que Vinicius de Moraes e o

pensamento modernista, vulgarizado ou não, estão corretos: de fato a repressão

aos negros no Brasil teria sido menor, estes não foram jamais segregados como o

foram nos EUA. Daí não haveria esta necessidade de “revolta” no sambajazz ou

na música brasileira, sabendo-se inclusive que Vinícius de Moraes se referiu

muitas vezes ao samba enquanto “música negra” brasileira. No entanto o

comportamento de músicos do sambajazz, como o do baterista Édison Machado

ou do pianista Johnny Alf, parece trazer, se não tensão racial explícita, uma forte

oposição aos esquemas hierárquicos da indústria cultural, bem como à chamada

“música comercial” em oposição a criação sambajazzística que praticavam. E o

jazz, conforme se viu, foi entendido também no Brasil como a música de negros e

de setores desfavorecidos da sociedade. Não se pode esquecer, ainda, de Moacir

Santos, que tantas vezes afirmou sua música como “negra”; e assinalou em

entrevista (FRANÇA, 2007) o terror que foi a instituição da escravidão no Brasil.

Ou de Paulo Moura e sua AfroBossaNova. A extensa escravidão brasileira pôde

201

No artigo “O negro no samba e no jazz”, em Samba falado, 2008.

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ser parcialmente recalcada sob a ideia de que nos aproximamos de uma

democracia racial, mas certamente ela está na base das expressões dos negros no

Brasil, do qual o samba, o jazz brasileiro e o sambajazz fazem parte.

A bossa nova, por outro lado, foi uma categoria eficazmente construída

enquanto música apolínea, concisa e estrutural, e com grande foco na “letra”

poética, conforme está explicitado em Balanço da Bossa (1974), de Augusto de

Campos. Esta construção parece ter emprestado à bossa nova uma aparência

“branca”, de “música de apartamento” da burguesia carioca, ainda que liderada

por um “baiano bossa nova”, entendimento que difere francamente de outros mais

antigos citados aqui, que puderam ouvi-la na cantora negra Elza Soares, por

exemplo.

A bossa nova, conforme se viu, nasceu sob o signo da aproximação entre o

drama grego e o samba negro da favela carioca em Orfeu da Conceição, escrita

pelo poeta que se disse “o branco mais preto do Brasil”202

, Vinícius de Moraes.

Espanta, portanto, que seu trajeto a conduza ao epíteto de “música de

apartamento” burguesa, e branca quando oposta às outras categorias do samba

moderno da época: aos afrosambas (a criação “negra” de Vinícius embasada na

música de Baden Powell) ou ao sambajazz, que incluía os músicos negros, a

exemplo de Paulo Moura e Moacir Santos.

Eis, portanto, o grande mistério da bossa nova: como uma expressão

musical que nasceu da tentativa de reunir a cultura grega erudita à favela carioca,

ou juntar “negros e brancos”, conforme estes termos recorrentes no discurso de

seu criador, Vinícius de Moraes, terminou por ser considerada “branca”,

excluindo de seu escopo as representações ostensivamente “negras”, então

alocadas ao sambajazz e aos afrosambas? Certamente não tenho a intenção de

corroborar o entendimento preconceituoso sobre a bossa nova enquanto “música

branca de apartamento”, mas de mostrar que este entendimento foi uma

construção posterior ao movimento, se constituindo em uma leitura, dentre outras

possíveis, da complexidade dos acontecimentos vividos.

202

Na canção Samba da benção, em parceria com Baden Powell.

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236

5.7. O problema das categorias ou gêneros musicais

Sem pretender esgotar a discussão sobre as categorias ou gêneros

musicais, faz-se, no entanto, necessário trazer alguns referenciais teóricos que

informam esta discussão.

De acordo com o verberte “gênero” (genre) do New Grove Dictionary of

music, por Jim Samson (2001), a classificação das obras de arte remete a

Aristóteles, e foi inicialmente pensada sobre os gêneros literários da tradição

europeia. A partir de fins do século XIX estes gêneros foram gradativamente

penetrando o campo musical, inicialmente para designar tipos de danças, rurais,

da corte ou nacionais. Estes gêneros “eram parte de um complexo de

representações maior com base em conceitos retóricos, e eles tinham uma função

comunicativa explícita” (SAMSOM, 2001, p. 665)203

. Gradativamente, porém,

eles penetraram outras esferas, se tornando uma forma corrente de distinguir

práticas musicais. A história da música baseada em gêneros se contrapõe à

organização por compositores e músicos individuais, sugerindo uma oposição

entre uma visão mais holista, por gêneros e outra mais individualista, por autores.

A partir dos anos 1960 as abordagens do gênero cada vez mais mudaram o

foco da natureza intrínseca da obra da arte para a experiência estética. Se os

gêneros eram pensados como historicamente sedimentados este entendimento

mudou para um conceito mais fluido, voltado principalmente para o “discurso” do

gênero dentro da comunicação artística e da recepção (SAMSON, 2001).

Um gênero é um nome, ou um “signo”, que se torna parte integrante da

música influenciando nossa audição, criando expectativas com relação ao seu

conteúdo estilístico e formal que podem ser frustradas ou afirmadas (SAMSON,

2001).

Muito desta correspondência entre a palavra-título e a coisa musical se liga

a construção dos “ritmos nacionais”, como é o caso do samba no Brasil. E esta

discussão recai sobre os gêneros nacionais das Américas no século XX. Estes

203

“were part of a larger complex of representations with a basis in rhetorical concepts, they had

an explicit communicative function” (SAMSOM, 2001, p. 665)

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237

gêneros tiveram uma importante função social, uma vez que discussão sobre

identidade nacional no novo mundo esteve muitas vezes relacionada a “música

popular” enquanto depositário do mais profundo inconsciente nacional

(ANDRADE, 2006, VIANNA, 2002, SANDRONI, 2001).

A etnomusicóloga Ana Maria Ochoa discute os gêneros musicais e sua

gênese relacionada ao nacionalismo, normalmente enfatizada em tais taxonomias,

que racionalizaram as músicas em sambas e salsas nacionais, no início do século

XX:

(...) há uma estética que se fixa como a apropriada. Por outra parte, (a fixação

desta estética) implica em uma invisibilizacão – as formas de determinado gênero

que não se ajustam a determinada descrição se convertem em formas menos

válidas – a diferença é borrada. Geralmente as diferenças estilísticas que se

eliminam são aquelas que remetem a fatores étnicos, de gênero ou de região não

desejáveis. (...) Em outras palavras, a construção de uma categoria genérica se dá

através de um processo de eliminação da diferença em favor da semelhança e este

processo é sempre estético e ideológico. A historia do surgimento da idéia de

gênero como conceito unitário está em parte ligada à historia da homogeneização

cultural empreendida através do estado nação (OCHOA, 2003, p. 34).

Portanto, como aponta Ochoa, a construção dos gêneros implica em uma

redução do seu escopo semantico, ou uma “redução da diferença em favor da

semelhança” que é, a um tempo “estética e ideológica” que se liga a

“homogeneização cultural” que foi historicamente “empreendida através do

estado nação”.

Howard Becker músico e sociólogo, realizou uma pesquisa pioneira entre

músicos de Chicago, EUA, nos anos 1940, presente em Outsiders (2008). Ele é

uma das referências mais importante desta tese, não apenas pela proximidade de

sua condição de músico que estuda seus pares através das ciências sociais, mas

também por suas observações metodológicas. Em Segredos e Truques da

pesquisa, Becker aborda o problema das categorias:

Esbarramos aqui num velho problema filosófico, o problema das 'categorias'.

Como podemos conhecer e levar em conta em nossas análises as categorias mais

básicas que constrangem nosso pensamento, quando elas são tão 'normais' que

não temos consciência delas? Os exercícios (…) destinados a levar as pessoas a

redefinirem assuntos comuns vagos ou indefinidos, muitas vezes têm como

objetivo a eliminação da tela que as palavras interpõem entre nós e a realidade.

Robert Morris, o artista plástico diz: 'Ver é esquecer o nome daquilo que

estamos olhando'. (BECKER, 2007, p.123, grifo meu)

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O erro metodológico consiste, portanto, em confundir “o nome” com

“aquilo que estamos olhando” e também, escutando. Em outras palavras, seria

como confundir os discursos nacionalistas sobre o samba com a música em si, esta

sempre fugidia, sujeita a diversos entendimentos que podem emergir de sua

escuta. Seu significado, em mutação constante, não coincide sempre com uma

determinada compreensão do samba que o quer como símbolo identitário

nacional.

Mesmo a análise musicológica ou semiológica, a partir de suas aferições

“objetivas” da música ou da “canção”, sofre dessa mesma incapacidade de dar

conta da multiplicidade de interpretações que surgem a partir da escuta e poética

dos sons. Por isto não se deve tomar as categorias como nomes colados ao que

designam, mas observar a discussão, sempre política, que se constrói em torno

delas. Conforme argumentei anteriormente, categorias como sambajazz e bossa

nova são disputadas por diversos indivíduos e grupos, com diferentes perspectivas

e interesses sobre elas.

Evita-se ainda uma concepção “nativa”, do mundo da arte em questão,

segundo a qual o trabalho musical se resume ao “artista” principal. Como

observou Becker:

Embora, convencionalmente, se selecione uma ou algumas destas pessoas como

sendo o 'artista', a quem atribuímos a responsabilidade pelo trabalho, parece-nos

ao mesmo tempo mais justo e produtivo, do ponto de vista sociológico,

considerá-lo como a criação conjunta de todas elas. (BECKER, 1977 p.10)

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6. O fim do samba moderno

6.1. Nara Leão e o fim da bossa nova

No início da segunda metade dos anos 1960 o sucesso da bossa nova,

gênero que ocupara o centro das atenções musicais no Rio de Janeiro, já dava

sinais de esgotamento. A televisão se tornava cada vez mais importante no Brasil,

rumo à hegemonia que conquistaria a partir dos anos 1970. A cultura musical do

rádio, plena de grandes orquestras que empregavam centenas de músicos e

coroava maestros como Radamés Gnattali já estava em decadência, e se tornaria

cada vez mais um passado. Surgia uma nova fase da indústria cultural

principalmente ligada à televisão e aos Long-playings hi-fi, novidade comercial da

época.

Começava também o período da ditadura militar brasileira, que a partir de

1964 passou a influenciar a produção de música de diversas formas, seja através

da censura, seja pelo incentivo à nova mídia representada pela televisão que

substituiu a cultura musical radiofônica. Por outro lado, com o sucesso da música

brasileira no exterior, dizia-se comumente que “a saída pro músico brasileiro é o

aeroporto”204

. O resultado deste cenário foi uma grande migração de músicos para

o estrangeiro, a ponto de Ruy Castro, um dos mais destacados cronistas da música

da época, empregar o termo “diáspora” para descrever esse movimento (1990),

conforme foi visto no capítulo 4.

O “fim da bossa nova”, levantado inicialmente pela cantora Nara Leão,

parece ter sido o estopim desse término. Ela era considerada pela imprensa como

a mais característica bossanovista, e sua declaração ocasionou uma grande

discussão pública pelos jornais. O apartamento de Nara Leão, em endereço nobre

no bairro de Copacabana, havia se tornado famoso como o local de nascimento de

uma certa bossa nova, feita por jovens músicos amadores da privilegiada Zona Sul

do Rio de Janeiro, como Roberto Menescal, Carlos Lyra e ela própria.

204

Conforme o depoimento de Maurício Einhorn, em entrevista para esta tese.

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Nara Leão, apesar de, ou justamente porque simbolizava esta bossa nova,

fez do lançamento de seu álbum Opinião, pela gravadora Philips, em 1964, um

cavalo de batalha contra o que ela descreveu como o elitismo bossanovista. Ela

procurou valorizar o que foi chamado de “samba de morro autêntico”, gravando

composições “do povo” como as do sambista carioca Zé Keti, ou de nortistas e

nordestinos que traduziam em canções os problemas sociais brasileiros, como

João do Vale. Em entrevista à revista Fatos e Fotos, nesta ocasião, em 1964, Nara

declarou:

Chega de Bossa Nova. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma

musiquinha de apartamento. Quero samba puro, que tem muito mais a dizer,

que é expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro

grupinho. (...) A bossa nova me dá sono, não me empolga. Pode ser que, no

passado, eu tenha sido uma tola, aceitando aquela coisa quadrada, que ainda

tentam me impingir. Eu não sou isso que querem fazer parecer que eu sou: uma

menina rica, que mora na av. Atlântica, de frente para o mar" (CASTRO 1991,

p.348, grifo meu)

O alegado fim da bossa nova deve ser entendido sob o panorama político

da época. No início da década de 1960, com a situação internacional

extremamente dividida pela guerra-fria e uma crescente radicalização política, o

Brasil sofreu um golpe militar de direita, em 1964. Ganhou força então o projeto

nacional popular promovido pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)

e pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da União nacional dos estudantes

(UNE), que atraiu diversos músicos ligados à bossa nova, como Nara Leão, Carlos

Lyra, Vinícius de Moraes, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré, entre outros.

Segundo o compositor Sérgio Ricardo, que lançava um LP com “sambas mesmo”

pela gravadora Elenco, a bossa nova seria um falso “samba novo”, entreguista,

representando a submissão dos músicos brasileiros frente aos norte-americanos.

Por que tão cedo morreu a bossa-nova? Pela total ausência de autenticidade

como música brasileira. Pela sua forma rítmica evidentemente híbrida, mais

uma contrafação jazzística e fartamente explorada pelos músicos norte-

americanos (o que lhes foi um achado do ponto de vista comercial) do que

propriamente um samba nôvo com substância para sobreviver. (Sérgio

Ricardo)205

205

Fala de Sérgio Ricardo citada pelo jornalista Thor Carvalho em sua coluna “Rio noite e dia” em

Ultima Hora em 23/11;1963. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=91437.

Acesso em: 05/02/2014.

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241

A fala de Sérgio Ricardo deixa entrever a oposição interna que surgiu na

bossa nova, rachada pela situação política de grandes antagonismos ideológicos.

Nara Leão teve importante papel neste dissenso ao seguir o caminho da ala mais à

esquerda do movimento que se ligava ao CPC – Centro popular de Cultura -

como Carlos Lyra, Vinícius de Moraes e outros artistas com quem fez o musical

Pobre Menina Rica, cuja estreia se deu na boate Au Bon Gourmet, no Rio de

Janeiro, em 1963. Segundo Santuza Cambraia Naves:

O CPC propôs uma arte engajada, ideologicamente comprometida. O anteprojeto

do Manifesto do Centro Popular de Cultura, postulava, em 1962, a ‘atitude

revolucionária consequente’ do artista. Rejeitavam-se, nessa proposta, as

perspectivas estéticas mais formalistas, por resultarem numa arte consumida por

minorias privilegiadas, optando-se por uma estética clara e acessível às massas.

Os primeiros anos da década de 60 são, pois, marcados pela busca de uma canção

popular participante, em termos políticos e sociais, e ao mesmo tempo afinada

com os postulados nacionalistas. Esse cenário cria a categoria de compositores

‘engajados’, que procuram misturar as informações técnicas da bossa nova

com os sons populares considerados ‘tradicionais’ e de certa forma

condizentes com o ideal de ‘autenticidade’ comuns às propostas

nacionalistas. (NAVES, 2001, ps. 31 e 32, grifo meu)

O CPC, ligado à União Nacional de Estudantes, era formado por artistas

de diversas áreas, e pretendia conscientizar o povo de seus problemas sociais

através da criação artística direcionada politicamente no conteúdo. Para veicular

estas mensagens de libertação utilizou-se a forma popular da canção, a fim de

penetrar as massas menos favorecidas economicamente. Os atores mais à esquerda

da bossa nova, como Nara Leão, abraçaram esta proposta que está na base do

gênero que ficou conhecido como a canção de protesto, e que se fortaleceu a

partir do golpe militar de direita, em 1964, com críticas ao caráter burguês e

“alienado” do samba moderno. José Roberto Zan traça um perfil desse ideário:

Idéias como as de povo, nação, libertação e identidade nacional, concebidas em

momentos anteriores da história brasileira, foram ressignificadas a partir de

referencias das esquerdas e marcadas por conotações ‘romântico-

revolucionárias’. Buscavam-se no passado as raízes populares nacionais que

constituiriam as bases para a construção do futuro (ZAN, 2001, p. 114).

A mudança de posição de Nara com relação à bossa nova provocou a

reação de seus colegas, também pelos jornais. Dentre as muitas críticas que Nara

recebeu, Roberto Menescal destacou com ironia a pureza que a cantora havia

mencionado como um ideal para o seu samba: “Quando Nara souber o que é

música pura, e conseguir transmiti-la, todos seremos músicos puros e iremos

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juntos para o céu (...). Enquanto isso não acontece, continuamos nos apartamentos

fazendo bossinha nova para vender” (CASTRO 1991, p.348).

A intenção da ex-bossanovista era buscar o samba “puro” em sua “raiz”

social, idealizada enquanto “morro”, a exemplo do que Vinícius de Moraes havia

feito em Orfeu da Conceição, oito anos antes. Trata-se da busca pela origem do

samba. Uma origem, ainda que idealizada e recriada, não é falsa, mas traz uma

verdade que deriva dessa construção.

Esta busca pelo samba “que é a expressão do povo”, em detrimento ao

“samba de apartamento”, conforme muitas vezes se disse da bossa nova de forma

pejorativa, pode talvez ter sido naturalizada por Nara Leão, mas é tributária de

uma construção histórica, da qual Mário de Andrade é um ator central no Brasil.

Quero, no entanto, destacar aqui brevemente o entendimento historiográfico sobre

esta questão, a partir do estudo de Peter Burke em Cultura popular na idade

moderna (1989).

Conforme Burke, a ideia de uma cultura popular, que através das canções

e contos populares deixariam entrever a essência de uma nação, ganha força na

Europa, e mais especificamente na Alemanha de J. Herder, em fins do século

XVIII. Trata-se de uma reação de países europeus periféricos à centralidade

francesa, inglesa e italiana, países cuja cultura nacional fora fundada

anteriormente durante o iluminismo, e que exportavam aos demais suas

concepções de mundo, sua “cultura”206

. A reação dos intelectuais alemães à

tendência hegemônica francesa na Europa os levou a reagir afirmando a sua

“cultura” regional em oposição à invasora internacional, cosmopolita.

206

Conforme Burke: “(...) a descoberta da cultura popular ocorreu principalmente nas regiões que

podem ser chamadas de periferia cultural do conjunta da Europa e dos diversos países que a

compõem. A Itália, França e Inglaterra a muito tempo tinham literaturas nacionais e líguas

literárias. Seus intelectuais, ao contrário, digamos, dos russos ou suecos, vinham se afastando das

canções e contos populares. A Itália, França e Inglaterra haviam investido mais do que outros

países no Renascimento, Classicismo e Iluminismo, e portanto demoraram mais a abandonar os

valores desses movimentos. Como já existia uma língua literária padronizada, a descoberta do

dialeto era um elemento divisor. Não surpreende que, na Inglaterra, fossem principalmente os

escoceses a redescobrir a cultura popular, ou que o movimento do cancioneiro popular tardasse na

França, surgindo com um bretão, Villemarqué, cuja coletânea Barzaz Braiz foi publicada em

1839.” (BURKE, 1989, ps. 41 e 42)

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Trazendo esta problemática ao Brasil do período estudado, a afirmação de

um samba “autêntico” e “do povo” pode ser lida como uma reação à ideia sempre

reiterada de que a bossa nova e o sambajazz seriam “americanizados”, ou seja, por

demais tributários à cultura do país central, os EUA, e por isto mesmo distante do

povo, a exemplo das conhecidas acusações sofridas também por Carmem

Miranda.

Herder e os irmãos Grimm, muito conhecidos pela sua compilação de

contos populares, atribuem três características positivas à cultura popular de seus

povos, conforme Burke (1989, p.48). Esta seria coletiva e comunitária, pois sua

origem estaria perdida em um tempo passado imemorial, impossível de ser

rastreado hoje. E sua expressão estaria conservada, portanto, em uma espécie de

inconsciente coletivo, termo que eles obviamente não usaram por ser posterior,

mas que descreve bem o conceito que gerará canções sem autor, contos

“populares” editados em livros assinados por estes eruditos. A cultura popular

seria, por fim, “pura”, termo que ressoa em Nara Leão, quando diz "Quero um

samba puro”:

O terceiro ponto pode ser chamado de ‘purismo’. De quem é a cultura popular?

Quem é o povo? Ocasionalmente, o povo era definido como todas as pessoas de

um determinado país, como na imagem de Geijer sobre todo o povo sueco a

cantar como um só indivíduo. Na maioria das vezes o termo era mais restrito. O

povo consistia nas pessoas incultas, como na distinção de Herder entre Kultur der

Gelehrten e Kultur des Volks. Às vezes, o termo se restringia ainda mais: Herder

escreveu uma vez que ‘o povo não é a turba das ruas, que nunca canta nem

compõe, mas grita e mutila’. (...) Para os descobridores par excellence

compunha-se dos camponeses; eles viviam perto da natureza, estavam menos

marcados por modos estrangeiros e tinham preservado os costumes primitivos por

mais tempo do que quaisquer pessoas. Mas essa afirmação ignorava importantes

modificações culturais e sociais. Subestimava a interação entre campo e cidade,

popular e erudito. Não existia uma tradição popular imutável e pura nos

inícios da Europa moderna, e talvez nunca tenha existido. Portanto, não há

nenhuma boa razão para se excluir os moradores das cidades, seja o respeitável

artesão ou a ‘turba’ de Herder, de um estudo sobre cultura popular.

A dificuldade em se definir ‘o povo’ sugere que a cultura popular não era

monolítica nem homogênea. De fato, era extremamente variada. (BURKE,

1989, p. 49, grifos meus).

Herder diferenciava, portanto, assim como Mário de Andrade, uma cultura

popular “pura” de uma outra, decaída e urbana. No entanto, a origem social do

samba dito “puro”, almejado por Nara Leão e também por Vinícius de Moraes

(que rejeitaram publicamente, ela a bossa nova e ele o sambajazz, enquanto

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inautênticos, dir-se-ia, “impuros”) não coincidia exatamente com a definição de

Herder, que via a urbanização da cultura popular de forma negativa, e buscava

essa pureza na música rural, conforme Burke.

O modernista Mário de Andrade também fazia a distinção entre a música

“popular” (que hoje chamamos comumente por “música folclórica”, de tendência

rural) e a música “popularesca” (ANDRADE, 2006), que hoje chamamos de

música popular urbana, identificando a cultura popular autêntica na primeira. No

entanto, com o acentuadíssimo êxodo rural brasileiro no século XX, a

representação da pureza rural também se mudou para “o morro”, para as favelas

cariocas, onde residiriam talvez os descendentes destes mesmos “populares” que

talvez a uma geração anterior estivessem no campo.

Este entendimento romântico do “samba de morro” como origem e

essência do samba, e por extensão, da “música popular brasileira”, é portanto

devedor deste primeiro romantismo alemão, representado por Herder. Este

movimento tinha foco especial na “canção popular”, entendida mormente como

uma forma popular de poesia, esta arte que, elitizada, teria perdido o contato com

sua base, o povo da nação.

(...) apenas a canção popular conserva a eficácia moral da antiga poesia, visto que

circula oralmente, é acompanhada de música e desempenha funções práticas, ao

passo que a poesia das pessoas cultas é uma poesia para a visão, separada da

música, mais frívola do que funcional. Conforme disse seu amigo Goethe,

‘Herder nos ensinou a pensar na poesia como patrimônio comum de toda a

humanidade, não como propriedade particular de alguns indivíduos refinados e

cultos’ (BURKE, 1989, p. 32).

As preocupações de Nara Leão, portanto, convergem com as destes

primeiros românticos alemães, para os quais a música é um meio de se chegar ao

grande grupo nacional - o povo - ao invés de se fechar em pequenos grupos da

elite sem representatividade. Se no sambajazz a música funciona também como

metáfora do social, onde as questões da sociedade são colocadas e pensadas

também musicalmente, para Nara a música se descola do social, sendo

principalmente um veículo para “popularizar” uma letra de conteúdo político

desejado.

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Não ocorre, portanto, no interior desta música a inversão social que vemos,

por exemplo, em Moacir Santos, e em grande parte do sambajazz, onde a seção

rítmica - tradicionalmente relegada ao segundo plano – deixa o fundo e é colocada

como figura, invertendo musicalmente - mas com reflexos “sociais” - a posição

tradicionalmente inferior da seção rítmica e de seus músicos, conforme exposto no

capítulo 2.

Segundo Marcos Napolitano, em A arte engajada e seus públicos

(1955/1968), neste período estudado a literatura penetra o campo da música

popular, ocupando na canção de MPB um lugar central.

No teatro, a articulação com a tradição literária até poderia ser considerada

‘natural’, na medida em que a sua linguagem opera com a palavra como material

básico de expressão ao lado do gesto, palavra esta voltada para o drama, para o

ato da encenação, e não para a leitura. Mas na música (popular) e no cinema, a

relação com a literatura (em seus diversos níveis), até então, fora mais episódica e

incomum, e suas articulações com a literariedade parece ser um dos pontos mais

marcantes da renovação dessas duas artes no Brasil dos anos 60 (NAPOLITANO,

2001, p.104 e 105).

Por este motivo a audição atenta do segundo álbum de Nara Leão

imediatamente posterior ao seu rompimento com a bossa nova - O canto de livre

de Nara (1965) - surpreendentemente não revela ruptura musical com o samba

moderno, estando a mudança contida principalmente nas letras e na presença de

compositores populares “autênticos”, como Zé Ketti e João do Vale207

.

Segundo o poeta Ferreira Gular, em texto para a contracapa deste álbum:

Este segundo disco de Nara é um passo adiante (...). Esse caminho, que ela segue

conscientemente, acrescenta à sua função de cantora a de intérprete dos

problemas e aspirações do seu povo. Nara quer levar, na sua voz livre, ao maior

número de pessoas, uma compreensão atual da realidade brasileira (...)208

(grifo

meu).

Nara via no conteúdo das letras, o acesso à “consciência” direta dos

problemas sociais, que ela tinha a fornecer ao povo “alienado”, a partir de sua

posição de “musa da bossa nova”, com acesso à grande imprensa.

207

A segunda faixa deste álbum de Nara Leão (1965), o Samba da legalidade (Zé Keti e Carlos

Lyra), pode ser ouvida no DVD de áudio em anexo. 208

Disponível no sítio oficial de Nara Leão em www.naraleao.com.br, na seção de discografia.

Acesso em: 16/07/2014.

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246

O foco se deslocou da música, entendida então como mero jogo estético

desvinculado do social, para as letras, ou para a sociedade expressa diretamente

em palavras. O interesse de Nara Leão pelo estudo da sociologia vai neste sentido,

em entrevista concedida por ela em 1967:

Eu era professora de violão (62 ou 63), estudava música e fazia jornalismo: era

repórter do Ultima Hora.

Parei de cantar definitivamente para fazer vestibular de sociologia, mas no

meio das provas fui convidada pela Rhodia para ir ao Japão com Sérgio Mendes e

fazer uma excursão pelo Brasil. (...)

Depois da excursão ao Japão com Sérgio Mendes, fui convidada por ele mesmo

para ir aos Estados Unidos cantar. Mas acontece que cantar para mim não

tinha muito sentido; queria fazer uma coisa maior, mais útil, queria estudar

sociologia. Aí veio a revolução de 64, e eu, que já sentia uma inclinação para

cantar coisas políticas (como no meu primeiro disco), achei algum sentido em

cantar. Não fui para os Estados Unidos, fui fazer o show Opinião, e minha

carreira tomou outro sentido: protestando contra as coisas que achava que

estavam erradas, eu podia ajudar a melhorá-las. Só cantava coisas nesse gênero.

Mais tarde comecei a cantar também outras coisas. Fiquei menos radical e

começou então um período de desânimo. Concluí que protestar cantando não

resolvia problema algum. Inclusive porque o que fazia sucesso popular não eram

mesmo as músicas de protesto. Eram as músicas alienatórias: o público ia para o

teatro para se alienar e não para tomar consciência das coisas.” (MELLO, 1976,

p. 50, grifos meus)

Nara, ao fim do trecho citado, conclui que “protestar cantando também não

resolvia problema algum”, mostrando sua decepção com o fato de que as músicas

que tinham “sucesso popular” não eram as “canções de protesto”. A sua decepção

deixa entrever sua aproximação com os artistas da Tropicália, movimento

liderado por Caetano Veloso que no fim desta década representaria uma reação às

tendências de esquerda da canção do protesto, caracterizando-se pela denúncia da

“patrulha ideológica” deste grupo209

. A letra de protesto, segundo Nara Leão, não

foi capaz de atrair a atenção do grande público da época, que permaneceu voltado

para canções que ela considerava “alienatórias”, as mesmas que seriam

enaltecidas pelos Tropicalistas, produzidas pela Jovem Guarda e por Roberto

Carlos, por exemplo. É importante notar que o diálogo de Nara Leão com os

tropicalistas se dá justamente nesta valorização do entendimento intelectual da

“canção”, devedor das ideias estéticas provenientes das esferas literárias, como o

209

Termo cunhado pelo cineasta Cacá Diegues, em fins dos anos 1970.

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concretismo de São Paulo, e menos ocupado com questões consideradas

simplesmente “musicais” ou “técnicas” por eles.

Na opinião de Nara, no entanto, havia outra forma de revolucionar as

coisas. A questão do gênero sexual não é lateral nesta ruptura de Nara Leão com a

bossa nova. Nara nasceu em janeiro de 1942 e tinha apenas 22 anos em 1964.

Durante o período da bossa nova havia namorado o letrista e jornalista Ronaldo

Boscoli, que tivera um importante papel no movimento. Mas em 1963 ela havia

rompido com ele e começara a namorar Rui Guerra, um cineasta membro do

Centro Popular de Cultura, que havia declarado recentemente que:

A bossa nova estava destinada a viver pouco tempo. (...) Era apenas uma forma

musicalmente nova de repetir as mesmas coisas românticas e inconsequentes que

vinham sendo ditas há muito tempo. Não alterou o conteúdo das letras. O único

caminho é o nacionalismo. Nacionalismo em música não é bairrismo (CASTRO,

1990, p.344).

Após o rompimento com Boscoli ela se aliara a este lado mais esquerdista

da bossa nova que geraria a canção de protesto, representada por Carlos Lyra, por

exemplo. E contra a vontade de seu pai, atuou no já referido espetáculo Pobre

menina rica, de Lyra e Moraes, ao lado de Moacir Santos.

Uma leitura tradicional das idas e vindas ideológicas de Nara Leão poderia

atribuir aos seus namorados, Boscoli e Guerra, e logo em seguida, Cacá Diegues,

estas fases conflitantes entre si que ela atravessou. No entanto Nara Leão fazia

questão de ter “opinião” própria, e não se deixar dobrar pelo mundo

evidentemente masculino que a cercava, seja da bossa nova, seja da canção de

protesto. Por pertencer à elite intelectual carioca, ela tinha acesso aos meios de

comunicação e de produção musical, e Nara Leão fez uso pleno de suas condições

de possibilidade para afirmar sua própria voz, enfrentando um mundo masculino

onde as mulheres eram muitas vezes cantoras apassivadas, cujas palavras lhes

eram colocadas na boca por compositores quase sempre homens.

Se algumas mulheres da época, como Dolores Duran ou Maysa, faziam

mais do que simplesmente preencher o lugar feminino que lhes era destinado,

expressando seus pontos de vista e opiniões pessoais, e afirmando sua potencia e

inteligência, isso não era absolutamente a regra. Muito menos nesta bossa nova

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que cercava Nara, onde a mulher aparece intimista e educada, uma “coisinha”

“toda minha”, como na canção Minha namorada, de Carlos Lyra e Vinícius de

Moraes.

Nara, que fora inicialmente enquadrada por jornais como a “musa da bossa

nova” rechaçou esse lugar com veemência e indignação que pareceu se voltar

contra seus ex-colegas da bossa nova e contra seu ex-namorado Boscoli, em

especial, que foram no mínimo coniventes com sua posição objetificada de musa

do movimento. Nara Leão rejeitou o rótulo, queria escolher seu repertório, e

afirmou compositores como Zé Keti, Cartola, e os “sambistas de morro” contra o

gosto de produtores e arranjadores que queriam prosseguir com o sucesso da

bossa nova, mantendo sua musa elegante e apassivada, de voz pequena. Se era

obrigada a interpretar a Garota de Ipanema eternamente, Nara fazia questão de

cantar também as músicas do povo, por decisão intelectual própria. Segundo ela,

em depoimento a Zuza Homem de Mello:

Aloísio de Oliveira disse que eu não podia fazer isso; que eu tinha uma imagem

de Garota de Ipanema e que não podia cantar esses problemas porque não os

tinha. Por isso saí da Elenco. E ele só gravou isso (as músicas “novas” Berimbau,

Consolação e O sol nascerá) porque passei 6 meses chateando ele. Na Philips

aconteceu a mesma coisa: muitas brigas, parei o disco no meio, fiz greves. Faço

isso até conseguir o que quero. E sempre demonstro aos meus contratantes que

não faço a menor questão de ser cantora. Se eu não puder dizer o que tenho

vontade naquele momento não me interessa. Não me interessa ganhar dinheiro,

tudo isso é secundário. Sempre cantei o que me interessa. Menos na televisão. A

televisão engole a gente, se a gente não toma cuidado, passa de cantora a vedete.

Televisão é muito perigosa. Quando você vê, já não sabe mais onde está, já

perdeu o pé (MELLO, 1976, p.51).

Nara concedeu uma entrevista em 1967 à jornalista Teresa Barros, na

Revista Feminina, edição dominical do suplemento do Diário de Notícias. A

revista trazia matérias sobre decoração e moda voltadas para o público feminino,

mas em um tom moderno que deixa ver, ainda que nas entrelinhas, uma posição

mais avançada com relação ao papel da mulher na sociedade. Uma destas

matérias, por exemplo, trazia o título, em letras grandes: “Viva a antiboneca”. Era

dedicada ao jovem figurinista de 23 anos, José Augusto, que deu este nome aos

seus modelos, reproduzidos na revista junto a dicas de moda.

A manchete da entrevista com Nara, anunciada na capa em letras garrafais

era “Cantar sim, casar não”, e trazia o subtítulo: “Num bate-papo ultra-simpático,

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no qual durante toda a conversa não confirmou nem afirmou seu casamento com o

cineasta Cacá Diegues, Nara se nos revelou. (...). E nesta conversa me deu uma:

não é uma garotinha que canta por cantar. É uma mulher livre, serena, cantando

em liberdade...”210

Abaixo, um trecho da entrevista:

- Certa vez, você disse que a nossa música está mais popular agora do que antes.

Eu não acredito nisso. Você acha que nossa música está mesmo 'popular'?

- Olha, eu também acho isso. De 'popular' ela só tem o nome. Mas que está

falando mais ao povo, que êle a canta muito mais que antes...

- Antes quando? No tempo da bossa-nova?

- É isso mesmo. A bossa-nova não tinha tanta comunicação com o grande

público. Falava apenas a uns poucos.

- Ah, por falar em bossa-nova. Se lembra daquela história que ficou meio

confusa? Aquela briga Nara x Bossa?

- Deixa eu explicar. Não briguei com a bossa-nova. Apenas quis valer a minha

liberdade. (…) Fui para a Elenco e nesta época eu queria falar de coisas

diferentes que começavam a surgir: canções falando de terra, de liberdade.

Pois êles acharam que eu era 'musa da bossa-nova' e não podia cantar outras

coisas extras. Pois gravei um só disco e fui embora. Não sou musa, sou

repórter da realidade.”

- Então, você só faz o que quer?

- Quando canto quero mostrar aos outros a verdade, uma verdade atual. Quero

'reportar' alguma coisa que está acontecendo. Seja o amor, a política, a liberdade,

a vida, enfim... 211

(grifo meu).

6.2. O divórcio entre o social e o musical

Observa-se, portanto, a partir de 1964, um descolamento entre os

problemas “sociais” e os problemas “musicais” no interior da canção de MPB. A

formula modernista contida no procedimento de polir a pedra bruta da música

popular com as ferramentas artísticas eruditas, conforme Mário de Andrade, e

continuada por Vinícius de Moraes ao apresentar “negros da favela”, tocando

sambas com sofisticados arranjos orquestrais no Theatro Municipal do Rio de

Janeiro, no Orfeu da Conceição, respondia à questão da identidade social/musical

por excelência de um país de desigualdade tão grande quanto a brasileira: como

210

Revista feminina de 11/06/67 Diario de noticias. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093718_04&pesq=cantar%20sim%20casar

%20nao&pasta=ano%20196 Acesso em: 21/07/2014. 211

Revista feminina de 11/06/67 Diario de noticias. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093718_04&pesq=cantar%20sim%20casar

%20nao&pasta=ano%20196 Acesso em: 21/07/2014.

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juntar os Brasis de cima e de baixo, dando lhe uma unidade cultural nacional

através da música? Como os integrantes da elite nacional, intelectuais plenos de

capital simbólico e financeiro, poderiam se dizer tão brasileiros quanto os

“sambistas de morro”, criando uma identidade nacional convincente que

contemplasse os de baixo e os de cima? Aí se insere a aproximação dos

modernistas à arte popular, do samba, do baião, dos “ritmos nacionais” que vão

ser por eles “vestidos” com sofisticados arranjos musicais.

Esta ponte entre a elite intelectual e o “povo” esteve presente nas diversas

estilizações do samba que vinham sendo feitas pioneiramente por Pixinguinha,

Donga, Ary Barroso e tantos outros, desde os anos 1920, teve continuidade na

bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto, que se mostram também como

reinvenções do samba. Esta continuidade forma algo que se assemelhava para

muitos a uma “linha” de “evolução” do gênero nacional. A batucada, prática

entendida como espontânea, intuitiva, natural do brasileiro - cidadão comum

popular - era “arranjada”, ou “estilizada” no samba quando apresentado através da

indústria cultural. Embora seja absurdo admitir uma evolução progressiva em arte

(conforme quiseram as vanguardas do século XX), mesmo se essa evolução for

pensada em termos de “complexidade” – pois nada indica que os sambas de Jobim

sejam mais complexos que os de seus antecessores, Pixinguinha ou Radamés

Gnattali, por exemplo - pode-se admitir esta “evolução” em um sentido puramente

temporal, como a sucessão das músicas no tempo.

Neste sentido é possível visualizar uma “linha evolutiva” do samba, que é

muito importante na tradição brasileira, e que liga os primeiros sambistas das

comunidades baianas da Praça XI, no Rio de Janeiro, aos bossanovistas e

sambajazzistas, em suas continuas reinvenções do ritmo212

, mas que será

interrompida, ou perderá esta centralidade em movimentos como a Jovem Guarda

ou a Tropicália, pouco interessados em ressintetizar o ritmo nacional.

O samba enquanto um gênero musical vem sendo continuamente

reinventado, ou “estilizado”, longo do século XX. Desde os tempos em que era

212

Segundo NAPOLITANO: “Portanto aquilo que passou a ser conhecido como samba autêntico

nasceu de uma sensível ruptura com o conceito de samba imediatamente anterior (dos anos 20).

(2005, p.51).

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chamado de maxixe no Rio de Janeiro do início do século, passando pela

complexificação e profissionalização com Ismael Silva e o samba do Estácio213

,

atravessando a sua adaptação às orquestras de rádio operadas por músicos como

Pixinguinha Radamés Gnattali e Carmem Miranda, chegando à bossa nova e ao

sambajazz, com os modernizadores João Gilberto e Édison Machado, o samba, no

seu aspecto rítmico, e portanto musical, foi uma tradição continuamente

reinventada.

No entanto, após o proclamado “fim da bossa nova” (que foi também o

ocaso do sambajazz), esta linha que ligava as diversas estilizações do samba desde

os anos 1920 perderá a importância para movimentos como a Jovem Guarda,

voltada para o nascente mercado do público jovem e o Tropicalismo, mais

interessado no relacionamento com as massas através da indústria cultural e no

diálogo com as músicas pop importadas do que em realizar esta ponte com o povo

através dos ritmos brasileiros. Estes podiam eventualmente emergir - ritmos

populares veiculando letras inteligentes, ideias cantadas - mas sua solução rítmica

não era o cerne da problemática musical/social para estes artistas

Serão principalmente as recriações elaboradas pela música negra de

músicos como Banda Black Rio, Luis Melodia, Jorge Ben, João Donato ou Tim

Maia que darão continuidade a esta linha de continua reinvenção do samba que o

caracteriza. São estes músicos, entre outros, ligados à expressão musical negra e

às recriações do samba e dos ritmos afro-brasileiros que podem ser chamados com

justiça de os continuadores de uma “linha evolutiva” da tradição do samba no Rio

de Janeiro da década de 1970.

Na música de Moacir Santos - um compositor negro de origem humilde

que se tornou um erudito através do estudo musicológico - esta estilização atingiu

um dos pontos altos em sofisticação e concisão na música brasileira, conforme se

viu. Moacir Santos se valeu de pequenos motivos musicais constituintes da

“levada” de acompanhamento executada pela seção rítmica, para construir a

melodia e a orquestração (FRANÇA, 2007). As melodias muitas vezes tendem a

se confundir ao baixo, sendo frequentemente apresentadas por instrumentos

213

Ver O Feitiço Decente, SANDRONI, 2001.

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graves, como o clarone ou o sax barítono, sendo característica em Moacir Santos

essa orquestração que tende aos tons graves, passando a ideia de descer ao solo

sonoro, à origem afro-brasileira onde música e sociedade, ritmos negros e

escravidão, se confundem.

O fim do samba moderno, portanto, trouxe uma discussão conceitual ao

ambiente musical que pode ser flagrado pelas críticas de jornal da época: afinal, o

que é bossa nova, e o que é sambajazz, qual a diferença entre eles, a que músicas

e músicos, a que ambientes e ideias se referem?

A categoria bossa nova, conforme foi demonstrado, estava ainda em uma

fase inicial em fins dos anos 1950 e não tinha as especificidades que ganhou

posteriormente: designava qualquer samba fosse considerado “novo”. O termo era

usado principalmente para nomear as experimentações musicais que se fazia então

entre o jazz e o samba, e era chamada genericamente também de samba moderno.

Neste sentido era um sinônimo de sambajazz.

Ocorreu então, conforme se afirmou, uma discussão pública entre músicos,

cantores, jornalistas, produtores culturais e público sobre estas categorias - sobre o

significado de sambajazz, bossa nova, samba e jazz – suas características, seu

escopo, suas interseções e suas diferenças inconciliáveis. E essa é uma discussão

que prossegue até os dias de hoje. Pois as preferências musicais contidas em tais

análises se ligam a estilos de vida, visões de mundo, ou perspectivas, expressas

nas preferências de quem as formula, de acordo com valores atribuídos a estas

categorias.

6.3. A construção da categoria bossa nova

Vinícius de Moraes, em matéria para o periódico Correio da Manhã, do

ano de 1960, explicava “o que significa bossa nova”: “Bossa Nova é samba bom,

samba novo. A onda de bossa nova veio provar uma afirmativa que faço há

bastante tempo, isto é, que a música deve ser sempre renovada”214

. Em 1960 sua

definição de “bossa nova” era ainda bastante genérica e coincide com as de Jobim

214

Vinícius de Moraes no Correio da Manhã, 31/03/1960. Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=3317. Acesso em

22/04/2014.

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e Ari Barroso, vistas anteriormente: deve-se sempre “renovar”. Mas 5 anos

depois, o poeta já trazia um conceito mais definido de “bossa nova”, através das

relações que definiriam a categoria, citando o “samba-jazz” e o “afro-samba”

(grafados com hífen). E anunciava o fim do movimento, no artigo “O legado de

uma bossa que passou”, referindo-se ao êxodo dos músicos para o exterior: “O

pouco que ganham os compositores no Brasil os obriga a procurar outros países,

onde a música é mais valorizada. É o caso de Sérgio Mendes, Carlinhos Lira, Tom

e outros. Mas esse êxodo é terrível, porque o compositor tem de estar em contato

com sua terra, com sua gente”215

Vinícius fala então que os antigos bosssanovistas

estão cada qual seguindo seu rumo. “Sérgio Mendes já está na base do samba-jazz

– diz Vinícius. E o nosso Baden Powell escolheu o caminho do afro-samba”216

.

Note-se que Vinícius de Moraes pensa a categoria sambajazz (e também

afro-samba) como um desdobramento da bossa nova. Nesse entendimento, o

sambajazz não se opõe à bossa nova, como dois iguais opostos, mas é uma

consequência desta, estabelecendo-se como um campo musical diverso, embora

nascido dela. Em matéria de 1965 no Jornal do Brasil, a “crítica e compositora”

Regina Werneck reforça o entendimento de Vinícius, e traz a seguinte definição

do termo sambajazz: “é filho direto da bossa nova, que por sua vez surgiu do jazz,

da necessidade de improvisar. A batida e a harmonia funcionam mais que a

temática.”

Aqui temos então um entendimento que inicia o processo de purificação

ou decantamento dos termos, separando o sambajazz da bossa nova; e formula-se

um significado que a palavra sambajazz ganharia posteriormente. A categoria foi

entendida desta forma como a música instrumental com forte influência do jazz

que surge a partir da bossa nova, sendo diferente dela: uma espécie de “filho” da

bossa nova. Nesse sentido, o sambajazz estaria mais próximo do jazz, enquanto a

bossa nova seria mais próxima ao samba, e portanto, mais brasileira.

Se pensarmos na oposição natureza/cultura, que parece frequentemente

embasar os discursos sobre identidade nacional, o samba estaria do lado da

natureza, sendo ‘natural’ ao brasileiro. Enquanto, por oposição, o jazz estaria do

215

Idem. 216

Idem.

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254

lado da cultura, sendo implantado no Brasil artificialmente, a partir do país

colonizador, os EUA. O samba seria a mãe enquanto o jazz seria um pai distante,

norte-americano217

. Assim, o sambajazz foi entendido por vezes como um rebento

americanizado da bossa nova, que talvez tenha se distanciado demais da sua

natureza nacional, se “modernizado” e se jazzificando em demasia.

No entanto, como já foi assinalado, a ideia de que o sambajazz se

caracteriza por ser “instrumental”, em oposição a bossa nova, “vocal”, é

problemática, e por isto mesmo importante nesta discussão. Pois uma parcela do

sambajazz foi também vocal, a exemplo da música de Leny Andrade, Johnny Alf,

ou Elis Regina. Esta categoria pôde incluir até o Jorge Ben, conforme se viu, se

pensarmos nos seus três álbuns iniciais, com J.T. Meireles, como saxofonista e

arranjador a frente de um grupo de sambajazz218

. Ou ainda se tomarmos os que

seriam “os casos híbridos” entre música vocal e instrumental, como o Tamba Trio,

o Jongo Trio e Os Cariocas. Esta categorização foi bem resumida pelo crítico

musical, Tarik de Souza, em entrevista para esta tese, por email. Note-se que ele

não deixa de problematizar a oposição instrumental/vocal, à qual atribui o caráter

de parâmetro, a época:

O dito ‘samba jazz’ era reconhecido apenas como a ala instrumental da

bossanova. Mas há casos híbridos como os do Tamba Trio, Jongo Trio, Os

Cariocas, que juntavam instrumental & vocal. São samba jazz?

Quando se usa este rótulo ninguém fala no verdadeiro inventor do samba-jazz,

que foi Johnny Alf. Só que ele era, essencialmente, cantor e pianista. Mas foi o

primeiro a conseguir sucesso na fusão.

Já a bossa nova foi o movimento amplo que possibilitou todas essas

tendências (inclusive o samba jazz) aflorarem: da nordestinidade reelaborada

de Geraldo Vandré ("Fica mal com Deus", "Canção nordestina"), Edu Lobo

("Canção da terra', "Borandá", "Ponteio") e Quarteto Novo ("O ovo", "Vim de

Santana", "Misturada") aos afro sambas de Baden e Vinicius e a afrobossa de

217

Esta metáfora não era incomum na época, vide José Ramos Tinhorão ao escrever sobre a bossa

nova ou Vinícius de Moraes em artigo citado anteriormente, publicado no Correio da Manhã,

31/03/1960.

Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=3317.

Acesso em 22/04/2014. 218

Aqui vemos em um artigo de jornal Jorge Ben e Wanda Sá, além de Rosinha de Valença, em

uma excursão do sambajazzista Sérgio Mendes, em 1965: “Agora volta Sérgio Mendes de uma

vitoriosa excursão pelos Estados Unidos com uma parada inicial na capital do México onde, com

muita sabedoria, plantou para colher. Havendo organizado um show musical a que denominou

Brasil- 65 (trio, com Tião Neto no contrabaixo e Chico na bateria, além do seu piano; a cantora

Wanda; o cantor e compositor Jorge Ben e a sensacional violonista Rosinha de Valença)

apresentou-se Serginho Mendes, para princípio de conversa, no Simpósio de Arte Sul-Americana

(…)” em Diário Carioca, “A excursão de Sérgio Mendes”, não assinado, 04/01/1965.

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Dom Um Romão e o afro erudito Moacir Santos, com seus Opus, agrupados no

disco "Coisas". Até a erudita de vanguarda Jocy de Oliveira fez um disco de

bossa nova ("A música do século XX", onde há um "Samba gregoriano").

Cabia tudo lá, porque a bossa nova instaurou os procedimentos de

vanguarda na MPB (acordes alterados, dissonâncias e até atonalismos) a partir

de temas de metalinguagem como "Desafinado" (Tom Jobim/Newton

Mendonça), "Mamadeira atonal" (Ronaldo Bôscoli/ Mario Castro Neves),

"Samba cromático" (Jair Amorim/Carlos Cruz). Até sambistas ditos "do povo"

tentaram entender e praticar estes novos conceitos como Caco Velho

("Tonalidade original") e Padeirinho da Mangueira ("Já não se fala mais no

sincopado/ desde quando o 'Desafinado'/ aqui teve grande aceitação/ e eu também

gostei daquilo/ modificando o estilo/ do meu samba tradição").

Ao mesmo tempo, inúmeros jazzistas gravaram discos de bossa nova: Stan Getz,

Charlie Bird, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Herbie Mann, Coleman Hawkins,

Cannonball Adderley, Paul Winter e até Charlie Parker. Seriam, no rótulo

invertido, discos de jazz-samba?

Caro Gabriel, como você vê, é difícil dar nome aos fugidios bois da estética. O

Tom Jobim já dizia que quando se nomeia uma coisa ela deixa de ser aquilo do

qual se está falando.

A bossa nova seria, portanto, uma categoria ampla, “que instaurou os

procedimentos de vanguarda na MPB”, e que abrigaria diversas outras

subcorrentes da época, como os afrosambas de Baden Powell e Vinícius de

Moraes, ou a corrente nordestina de Geraldo Vandré, Hermeto Paschoal e o

Quarteto Novo. O que os une é que são contemporâneos e tinham a inovação

como valor central, utilizando “procedimentos de vanguarda” nesse sentido. Então

o que caracteriza esta categoria é o uso de determinados meios para se fazer

“música moderna”, algo que não pode ser creditado a um único ator, e nem

mesmo pode ser fechado em um único grupo. Dir-se-ia, com Ion Muniz, que a

bossa nova “já estava pra nascer”, e brotou como cogumelos, em “vários

lugares”219

, conforme citado anteriormente.

Podemos dizer que este grupo de ideias expostas por Tarik de Souza

representam uma perspectiva coletivista da bossa nova, entendida como um

movimento de uma época, de meados dos anos 1950 a meados dos 1960,

composta por diversos atores que, ainda que com diferentes níveis de importância

e projeção, não podem ser resumido em uma corrente principal ou em uma única

“linha evolutiva”, para usar um termo de Caetano Veloso (CAMPOS, 1974).

219

“Pessoalmente eu acho que quando algo está para surgir (no caso a batida da Bossa Nova), ela

brota como os cogumelos, em vários lugares”. (Ion Muniz, Crônicas, s.d.)

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Esta perspectiva sobre a bossa nova poderia ser considerada como mais

próxima do entendimento original dos anos 1960, perdendo lugar posteriormente

para uma outra corrente, que identifica a música de João Gilberto como modelo

inescapável da “verdadeira” bossa nova. É a perspectiva intelectualista, que

tendeu a ganhar a hegemonia, onde um determinado procedimento estilístico

autoral foi tomado como modelo do movimento, que derivaria principalmente

desse criador. Se os elementos para o surgimento da bossa nova já estavam dados,

somente o gênio, em sua solidão, pôde reuni-los a contento, e dar o “salto”

epistemológico que caracteriza sua bossa nova ideal, da qual todas as outras

seriam derivações decaídas. Segundo escreveu em 1965 o poeta Vinícius de

Moraes, precursor desta corrente:

Bossa nova é mais a solidão de uma rua de Ipanema que a agitação comercial de

Copacabana. Bossa nova é mais um olhar que um beijo; mais uma ternura que

uma paixão; mais um recado que uma mensagem. Bossa nova é o canto puro e

solitário de João Gilberto eternamente trancado em seu apartamento,

buscando uma harmonia cada vez mais extremada e simples nas cordas de

seu violão e uma emissão cada vez mais perfeita para os sons e palavras de

sua canção. (MORAES, 1981, p.117, grifo meu)

Esta perspectiva entende que o sambajazz seria demasiado permeável à

influência do jazz, sendo a bossa nova considerada mais próxima do ritmo do

samba. Este entendimento teria seu manifesto maior no livro Balanço da bossa,

publicado em 1968, e organizado pelo poeta Augusto de Campos, com textos de

poetas e musicólogos paulistas. E seria também defendida pelo artista/intelectual

Caetano Veloso, formulador da tese de uma “linha evolutiva”220

na música

brasileira, que ligaria o samba à bossa nova, e em seguida ao tropicalismo.

Este será um grupo que lutará com êxito pela hegemonia do seu conceito

purificado de bossa nova. Trata-se de uma corrente intelectualizada, ligada ao

campo da “alta literatura” nacional, ao contrário da maioria dos músicos da época.

A bossa nova tendeu a ser descrita por este grupo como uma receita de

ingredientes específicos do estilo, como a concisão, o isomorfismo entre letra e

220

Sobre o conceito de “linha evolutiva” em Veloso ver o livro Balanço da bossa (1974), em

artigo de Augusto de Campos, à p.143, por exemplo.

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música221

, idealizado na canção, e também os referidos procedimentos de

vanguarda.

O Balanço da Bossa (1974) é um livro que reúne textos diversos

publicados principalmente em suplementos literários abordando o fenômeno

amplo da bossa nova, mas com foco em conceitos convergentes ao da poesia

concreta. Segundo Augusto de Campos, em texto introdutório, o livro apresenta:

(...) trabalhos de diferentes autores e que – excetuadas obviamente as minhas

próprias incursões e tentativas – julgo dos mais relevantes para a compreensão do

que aconteceu com a nossa música, ou a parte mais conseqüente e inteligente

dela. Publicados quase todos em 'suplementos literários', muitos desses estudos

passaram despercebidos ao público aficionado de música. (CAMPOS, 1974, p.11)

Interessava ao autor, portanto, uma categorização a fim de separar o que

ele considerava “a parte mais conseqüente e inteligente” da bossa nova,

justamente a que converge com os seus ideais estético-literários de “evolução”

artística, assumindo-se como uma “visão parcial” contra o nacionalismo em arte:

Embora escritos em épocas diversas e por autores diversos, esses estudos – de um

musicólogo, um regente, um compositor e um poeta “eruditos” mas entusiastas da

música popular – tem uma perspectiva comum que os solidariza. Estão, todos,

predominantemente interessados numa visão evolutiva da musica popular,

especialmente voltados para os caminhos imprevisiveis da invenção.

Nesse sentido, estou consciente de que o resultado é um livro parcial, de partido,

polêmico. Contra. Definitivamente contra a Tradicional Família Musical. Contra

o nacionalismo-nacionalóide em musica. O nacionalismo em escala regional

ou hemisférica, sempre alienante. Por uma musica nacional universal. (CAMPOS, 1974, ps. 14 e 15, grifos meus).

O citado “posicionamento parcial” não se deu, portanto, ao menos

explicitamente, contra uma visão mais musical ou menos literária de música. Os

instrumentistas sequer são citados, a bossa nova é assumida sem maiores

discussões como um movimento de cantores e compositores-letristas apenas. A

canção será a via única desta perspectiva onde o texto parece sintetizar a música.

Por outro lado, esta alegada posição radical contra o nacionalismo musical

não encontrará sempre ressonância perfeita nesta corrente. Pois será considerado

por muitos atores influentes nesta perspectiva e em diálogo constante e típico da

221

O conceito de isomorfismo conforme colocado pelos concretistas seria a complementariedade

entre forma e conteúdo na obra de arte.

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época com as críticas nacionalistas, que a bossa nova de João Gilberto teria

encontrado o bom termo entre a importação do jazz e a presença da música

brasileira, ao contrário de outros sambas modernos precursores, como os de

Johnny Alf. Este, que foi considerado por muitos como o “pai da bossa nova”,

seria por demais “americanizado”, conforme se viu nas críticas de Caetano Veloso

ao músico negro, citadas no capítulo anterior.

Augusto de Campos atribui ao músicólogo afinado com os ideais

concretistas, Brasil Rocha Brito, o pioneirismo desta perspectiva sobre a bossa

nova, em artigo, segundo ele, “Divulgado meio clandestinamente na página

literária “Invenção” do jornal O Correio Paulistano” em 1960. Este texto “tem

uma importância histórica: é a primeira apreciação técnica fundamentada que se

faz da bossa-nova.” (CAMPOS, 1974, p.12).

Rocha Brito confirma a ideia de uma separação entre os precursores da

bossa nova e seus praticantes que seriam “por demais americanizados” e os

bossanovistas, “verdadeiramente nacionais”, por terem alcançado uma

“elaboração coerente”.

Deve-se observar aqui, de passagem, que Dick Farney, pianista de grandes

méritos, passou mesmo a tratar as novas composições brasileiras como se fossem

be-bops. Disto não resultariam obras verdadeiramente nacionais, pois não

havia a intenção precípua de integrar novos processos, metamorforseando-os se

necessário, dentro de uma elaboração coerente (CAMPOS, 1974, p.19)

Apesar da relativa negação do jazz norte-americano, há este trecho

interessante em Rocha Brasil, reproduzido abaixo, onde se entende a gênese dos

critérios de separação operados entre a bossa nova e outras práticas da época,

como o sambajazz. Estes seriam análogos aos que foram estabelecidos por

músicos do movimento norte-americano do cool jazz, que traz a idéia de

renovação, por oposição ao jazz da época, o bebop, de características mais

expansivas e virtuosísticas:

Dos Estados Unidos ainda, pouco depois dessa época, procederia uma nova

maneira de conceber a interpretação: o cool jazz, designação usada em

contraparte a hot jazz. No cool jazz, ao contrário do que sucedia no hot, os

intérpretes são músicos de conhecimento técnico apurado (…).

O cool jazz é elaborado, contido, anticontrastante. Não procura pontos de

máximos e mínimos emocionais. O canto usa a voz da maneira como

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normalmente fala. Não há sussurros alternados com gritos. Nada de paroxismos.

Dick Farney, ao surgir em nossa música popular, já canta quase propriamente

cool, derivando seu estilo do de Frank Sinatra (CAMPOS, 1974, ps.18 e19,

grifo meu)

João Gilberto que “criou um estilo pessoal de cantar, porém não

personalista” (CAMPOS, 1974, p.36) é apresentado então como o cantor “que

melhor tipifica” a bossa nova, mas há uma valorização, por outro lado, da

“diversidade de estilos representativos”, ainda que esta se restrinja aos cantores do

movimento, sem jamais alcançar instrumentistas:

Insistimos no estudo de João Gilberto por nos parecer o intérprete-cantor que

melhor tipifica a concepção da BN. De notar que nem todos os cantores da BN,

conseguem, a exemplo de Sérgio Ricardo e alguns mais, uma libertação completa

do operismo, da pirotécnica interpretativa. Há de outro lado, uma diversidade

de estilos interpretativos na quase generalidade dos cantores do movimento,

o que representa um fator de enriquecimento para a BN (CAMPOS, 1974,

p.37, grifo meu)

Ao final do texto, no entanto, ao apresentar o que seria “um elenco dos

principais nomes que se alinham no movimento de renovacão musical BN (até

1960)” Rocha Brito cita alguns nomes divididos em três categorias: compositores,

letristas e cantores. Estranhamente, não há a categoria “músicos” ou

“instrumentistas”, que não são citados como bossanovistas. Não são mencionados,

por exemplo, Johnny Alf, João Donato, Paulo Moura, Édison Machado, Milton

Banana, Cipó, nem qualquer instrumentista. (CAMPOS, 1974, p.40). Estes seriam

alocados à categoria contrastante, sambajazz.

Esta visão é contrária à que apresentavam os festivais nomeados como de

bossa nova que ocorriam então, onde diversos instrumentistas se apresentavam

como solistas e líderes de conjunto, conforme se viu no capítulo anterior. A

despeito dessa prática, Rocha Brito, ao comentar o papel do piano na bossa nova,

por exemplo, o entenderá como instrumento que tende a ser “acompanhador”,

embora assuma furtivamente a existência de solistas instrumentistas: “O piano

surge em geral acompanhando cantor, instrumentista ou integrando um conjunto,

Poucas vezes desempenha a função de instrumento solista, não tendo assim sob

sua responsabilidade, necessariamente, a melodia.” (CAMPOS, 1974, p.34).

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Trata-se, portanto, de uma perspectiva que exclui tanto os instrumentistas

quanto a chamada música instrumental da bossa nova, reforçando esta oposição à

canção. A letra, texto literário, é vista como essencial, por convergir às

“manifestações da vanguarda poética”. Neste sentido, Rocha Brito cita Campos,

mostrando seu alinhamento já neste texto de 1960: “Assim, algumas letras da BN

configuram uma tendência que, de certa forma, numa faixa de atuação própria - a

da canção popular – corresponde às manifestações da vanguarda poética,

participando com ela de um mesmo processo cultural.” (CAMPOS, 1974, p.39,

grifo meu). Note-se a restrição do comentário à “canção popular”, termo que

exclui, neste caso, a chamada “música instrumental”.

O paradigma da bossa nova seria a canção Desafinado, de Jobim e

Mendonça, o “verdadeiro manifesto da BN”, por apresentar o conceito concretista

do “isomorfismo” transportado à canção, onde se daria em uma espécie de

conjunção ideal entre a letra e música. A “palavra” teria aqui papel central,

portando o “valor musical”: “Aqui, música e letra caminham quase pari passu,

criticam-se uma a outra, numa auto-definição recíproca” (CAMPOS, 1974).

Ao comentar o Balanço da bossa (1974), Naves assinala o caráter

canônico destas análises que fundam esta perspectiva intelectualista da bossa

nova como canção-concisa, e que “acabam absolutizando o período inicial da

bossa nova”:

Assim, tal como os poetas concretos, que teriam rompido com as tradições

retórico-discursiva e subjetivista na literatura, os músicos da bossa nova,

notadamente João Gilberto, pautariam o seu trabalho pela rejeição dos sambas-

canções e dos boleros melodramáticos do período anterior, e da maneira

operística de interpretar estas canções, ao estilo de Dalva de Oliveira e outros

cantores do período.

Este tipo de interpretação, desenvolvida pelos poetas e musicólogos paulistas,

tornou-se, de certa forma, canonica, passando a constituir uma referencia

imprescindivel para os estudiosos da musica popular no Brasil. Mas observa-

se que, a despeito da profundidade e pertinencia destas analises, elas acabam

absolutizando o periodo inicial da bossa nova, em que, de fato, sob a batuta de

João Gilberto, parte-se para um tipo de experimentação musical bastante afinada

com as propostas da poesia concreta” (NAVES, 2000, p.1)

Caetano Veloso, em entrevista publicada em 1976, explicita sua filiação a

esta corrente. Ele posiciona a cantora Elis Regina (e também o sambajazz, embora

não citado explicitamente, mas através de seus músicos mais conhecidos como o

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261

Tamba Trio e a própria Elis) como um fenômeno “culturalmente anterior” à bossa

nova. Elis e o sambajazz seriam um retrocesso em comparação a João Gilberto

que “revolucionou as coisas em termos de música do Brasil”. Aqui está presente a

concepção da “linha evolutiva” que entendeu o exemplo de João Gilberto como

um marco maior do qual não é possível escapar na música brasileira, mas apenas

se filiar.

O que veio depois, na verdade estava antes: acho que musicalmente o Zimbo

Trio, Elis Regina, o Quarteto, o Tamba Trio, O Simonal daquela época, todos

eram culturalmente anteriores ao João Gilberto, pré-Bossa Nova. Isso não é

absurdo porque a gente vê isso em filosofia, vê essa possibilidade na estória de

todas as artes: às vezes um determinado ramo da cultura se desenvolve até certo

ponto, mas depois ainda aparecem pensamentos e criações que culturalmente são

anteriores, ainda não assumiram esse momento. (...)

O caso do João Gilberto, tem a violência da própria genialidade que superou esse

meiozinho de atmosfera fechada que o Rio propicia. E ele realmente

revolucionou as coisas em termos de música do Brasil. O que a Elis não fez

depois, do ponto de vista musical. Mas do ponto de vista de colocação social do

trabalho artístico, a Elis é um acontecimento maravilhoso, complicado, talvez

triste sob alguns aspectos – as pessoas sofrem, é verdade – mas é uma coisa

violenta. É uma artista jogada na sua venda. (Caetano Veloso em MELLO, p.120,

1996)

6.4. A conjunção entre a mão e a cabeça

A partir desta declaração de Caetano Veloso, onde uma visão evolutiva da

história da filosofia é evocada, gostaria de trazer o pensamento do filósofo

Richard Sennett. Em O artífice (2009) ele apresenta um entendimento do trabalho

e do saber que se dispõe a superar a tradicional dicotomia entre corpo e intelecto,

ou entre trabalho braçal e trabalho intelectual. Reformulando as distinções de

Hannah Arendt, de quem foi aluno, análogas às descritas acima, entre Animal

Laborens e o Homo Faber, Sennett afirma que “fazer é saber”.

Não haveria, portanto, uma atividade puramente “técnica” que seria a do

Animal Laborens, um “ser humano equiparado a uma besta de carga, o

trabalhador braçal condenado à rotina”, alguém alienado, isolado do mundo

absorto em uma tarefa, que se opõe a do Homo faber, “um juíz do labor e da

prática materiais, não um colega do Animal Laborens, mas seu superior”. Segundo

Sennett:

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Esta divisão me parece falsa porque menospreza o homem prático – ou a mulher

– que trabalha. O animal humano que é Animal Laborens é capaz de pensar; as

discussões sustentadas pelo produtor podem ocorrer mentalmente com materiais,

e não com outras pessoas; as pessoas que trabalham juntas certamente conversam

a respeito do que estão fazendo. Para Arendt, a mente se ativa uma vez realizado

o trabalho. Uma outra visão, mais equilibrada, é a de que o pensamento e o

sentimento estão contidos no processo do fazer. (SENNETT, 2009, p17 grifo

meu).

Entenda-se aqui o músico como um Animal laborens que é, ao mesmo

tempo, um Homo faber. Não como o típico letrado especialista em MPB, que

considera a atividade dos músicos como um trabalho manual alienado de uma

realidade social e artística mais alta, reservada aos mais intelectualizados e

possuidores de voz junto à indústria cultural. Ao contrário, a técnica é entendida

aqui como parte do pensamento musical.

Sennett cita diretamente a atividade musical quando conceitua “o artífice”

que, segundo o filósofo: “focaliza a relação íntima entre a cabeça e a mão”.

Prosseguindo com Sennett:

Todo bom artífice sustenta um diálogo entre práticas concretas e idéias; esse

diálogo evolui para o estabelecimento de hábitos prolongados, que por sua vez

criam um ritmo entre a solução de problemas e a detecção de problemas. A

relação entre a mão e a cabeça manifesta-se em terrenos aparentemente tão

diferentes quanto a construção de alvenaria, a culinária, a concepção de um

playground ou tocar violoncelo. A capacitação para a habilidade nada tem de

inevitável, assim como nada há de descuidadamente mecânico na própria

técnica. (2009, p. 20, grifos meus).

A partir deste referencial teórico podemos rever os conceitos formulados

por esta corrente de Campos e Veloso sobre a música dos anos 1960 no Rio de

Janeiro. Ocorreu ali uma purificação conceitual de um conjunto de práticas

musicais diversas entre si, mas ligadas pelo contexto comum da época, chamadas

então, genericamente, de bossa nova ou de samba moderno. Esta era uma

categoria ampla, mas posteriormente promoveu-se uma separação entre as

músicas. De um lado, alocou-se a um novo conceito de bossa nova as músicas

consideradas concisas e elegantes, em afinidade com conceitos da arquitetura

modernista e da literatura concretista. O canône maior desta bossa nova é João

Gilberto. O que restou dessa purificação conceitual seriam diversos movimentos

que seriam posteriores cronologicamente à fundação da bossa nova por este cantor

em 1958, mas que “na verdade estavam antes”, conforme Veloso.

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Observa-se, nesta declaração citada, que ela não admite diferentes leituras

ou perspectivas da história da MPB. A superioridade, ou “avanço”, de João

Gilberto nesta “linha evolutiva” única é apresentada como um dado absoluto pelo

qual tudo mais deve referenciar-se. A partir deste ponto fixo – a grandeza da bossa

nova de João Gilberto - avalia-se as outras expressões, mesmo a música de uma

grande cantora como Elis Regina.

No cerne deste entendimento, que tenderá a hegemonia posteriormente,

repousa a ideia de que os músicos de sambajazz (como Elis Regina, ou o Tamba

Trio, citados por Veloso), agora entendidos como não-bossanovistas, estariam

ligados ao mundo da “técnica”, sem “consciência” artística. Pensando com

Sennett – ou melhor dizendo, contra ele -, estes músicos, ao contrário dos

intelectuais letristas e poetas, seriam apenas “mão”, sem “cabeça”, técnica sem

pensamento. Ou para usar outros termos comuns usuais neste entendimento,

seriam apenas “virtuoses”, inferiores à João Gilberto e à bossa nova do ponto vista

artístico ou intelectual. Conforme Veloso:

Realmente isso tudo que aconteceu depois, veio abrir novas perspectivas, não

pela consciência que essas obras tinham do universo musical criado pela BN,

mas pelo tipo de elaboração de arte final do produto. É muito mais

virtuosismo do Zimbo, a técnica da Elis, a técnica inicial do Simonal, a

técnica do produto, a técnica industrial que abrem certas exigências.

(MELLO, p.120, 1996, grifos meus)

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7. A indústria cultural e a profissão de músico hoje

7.1. Principais questões relativas à indústria cultural

O movimento musical que ficou conhecido como sambajazz representou

um período especial na música brasileira. Ele foi o resultado do acúmulo de uma

rica cultura musical que se desenvolveu durante a chamada era do rádio, plena de

excelentes instrumentistas, cantores, maestros, arranjadores, compositores e

orquestras. Esta cultura radiofônica vinha sendo continuamente elaborada desde

os anos 1930, com as “estilizações” pioneiras de músicos como Pixinguinha, que

adaptou as práticas ainda próximas do folclore e amadoras do samba e do choro

para as orquestras profissionais da rádio nascente como projeto comercial.222

Esta profissionalização que veio com a era do rádio, ainda que tenha se

dado de forma insatisfatória223

, foi se consolidando gradativamente ao longo dos

anos 1940 e 1950 a ponto de criar condições sociais para o surgimento dos

músicos praticantes do sambajazz, em fins dos 1950, que se caracterizavam pelo

alto nível profissional e artístico de sua produção musical224

.

Como consequência deste acúmulo, diversos instrumentistas e

compositores do movimento, como Sérgio Mendes, Airto Moreira, Baden Powell,

Moacir Santos e Raul de Souza, construíram carreiras internacionais sólidas,

sendo conhecidos hoje ao redor do mundo como importantes representantes da

222

Segundo CALDEIRA: “Em 1931 havia cinco emissoras no Rio de Janeiro, 21 no país. A

organização do veículo foi feita pelo Estado, depois da Revolução de 1930. Em 1931, o governo

definiu o rádio como ‘serviço de interesse nacional’ e, no ano seguinte, pelo Decreto-lei 21.111,

autorizou a veiculação de propaganda paga.

Com essa modificação, alterou-se radicalmente o caráter da programação. O novo objetivo das

emissoras – vender publicidade e ter lucro – fez com que o caráter do rádio fosse basicamente de

diversão, para atrair o máximo de ouvintes. Por essa porta entrou a música popular. Com ela,

aumentavam o público, as vendas de aparelhos, o número de emissoras e o tempo de transmissão.

Criava-se uma nova relação entre o ouvinte e os autores da música.” (CALDEIRA p. 35, 2007) 223

Ver Ortiz (1999). Segundo José Roberto Zan: “Do início dos anos 30 até meados dos 50, os

meios de comunicação ainda não apresentavam, no Brasil, um nível de desenvolvimento e de

organização sistêmica que permitisse defini-los como indústria cultural.” (ZAN p. 109) 224

Me refiro a estas condições no mesmo sentido que Norbert Elias lhes dá em seu estudo Mozart

– sociologia de um gênio: o surgimento de uma indústria cultural com solidez e extensão

suficientes para gerar um ambiente profissional entre músicos. (ELIAS, 1995)

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música brasileira225

. Esta geração de músicos representada pelo sambajazz pôde

transformar, de maneira mais efetiva que nunca, o fluxo centro-periferia da

indústria cultural, invertendo ou complexificando a rede de “influências” em jogo

neste grande rizoma226

que é a música das Américas no século XX. Eles

apresentaram ao mundo um Brasil “moderno” e competente através de sua

produção musical.

Se esta geração foi evidentemente tributária de toda uma rica cultura que

floresceu durante a era do rádio, por outro lado ela apresentou-se como um

movimento de modernização da música brasileira que presenciou o nascimento da

era da televisão. Uma vez consolidada esta nova fase, a indústria cultural

nacional, através dos seus líderes, executivos de gravadoras e produtores de TV,

interessada no nicho de mercado voltado para o público jovem, despertado pelo

rock que surgia atraindo massas de consumidores pelo mundo, considerou que

tanto o sambajazz quanto a bossa nova não seriam capazes de mobilizar as

grandes vendas que surgiam em seu horizonte comercial227

.

O sambajazz se apresenta, assim, como um entre tempo, situado entre estas

duas grandes eras da indústria cultural brasileira. Surgem então algumas questões

sobre a relação do sambajazz com a indústria cultural de seu tempo.

225

Estes músicos são possivelmente mais conhecidos no exterior que alguns símbolos nacionais,

como Pixinguinha e Chico Buarque. O seu sucesso pode ser observado das mais diversas formas.

O sociólogo inglês Paul Gilroy cita, por exemplo, o trombonista Raul de Souza no prefácio de

Atlântico negro como um músico que foi muito importante para ele em sua juventude. O pianista

Sérgio Mendes foi o único brasileiro indicado ao Grammy Award em 2014, talvez a mais

prestigiosa premiação em música popular no mundo. 226

Conforme o conceito de Deleuze e Guatary em Mil Platôs (2009). 227

A autobiografia de André Midani, um produtor musical que foi o diretor da gravadora Odeon,

traz um relato proveniente do interior da indústria cultural. Ele se pergunta por que um cantor

“desafinado” como Orlando Dias, em fim dos anos 1950, vendia mais que os respeitados cantores

pré-bossanovistas como Sylvia Telles ou Lúcio Alves, ainda que “com todo o esforço de

promoção” que a gravadora fazia por eles. Segundo Midani:

Comecei, então, a entender que o que o cantor e sua música diziam não era tão importante quanto

a maneira como o diziam, e como o que diziam dependia da genuinidade do sentimento que vinha

do fundo da alma. Quando o público carregava um sentimento similar, identificava-se com o

cantor através do inconsciente coletivo. (...) Anos mais tarde, deixaria aos meus diretores artísticos

e seus talentosos produtores o cuidado de avaliar a estética das melodias, das poesias e das vozes,

cabendo a mim o cuidado de penetrar na personalidade do artista e avaliar seus atributos de

narcisismo, de sofrimento, de raiva, de doçura, de ódio, de ternura, de agressividade, de

determinação, de ambição, de liderança. A compreensão desse meu papel iria se tornar cada vez

mais preponderante na condução da estratégia da(s) companhia(s) que eu viria a dirigir ao longo

dos anos. (MIDANI, 2008, p.87, grifo meu)

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Como os músicos do sambajazz puderam emergir como solistas,

arranjadores e compositores em esquemas de produção de LPs da indústria

cultural de então sem que seus valores musicais exigentes fossem deixados de

lado em sua produção “comercial”?

Como se abriu esta possibilidade para estes instrumentistas, cantores e

compositores entre estas duas grandes fases da indústria cultural – grosso modo,

uma era do rádio de profissionalização ainda incipiente e uma era da televisão,

em que a indústria cultural se consolidou no país – permitindo-lhes participar

como solistas, arranjadores e compositores no mercado fonográfico de então?

7.2. O sambajazz entre a era do rádio e a era da televisão

O período em que floresceu o sambajazz, compreendido entre meados da

década de 1950 e meados de 1960, marca a transição entre duas grandes fases da

indústria cultural no Brasil: a era do rádio e a era da televisão. O samba

moderno, categoria que englobava o sambajazz e a bossa nova, pôde irromper de

forma intensa após esta fase inicial de formação da indústria cultural no Brasil e

antecipar esta segunda ordem diferenciada que se inicia em fins dos anos 1960 e

que significou também um avanço significativo na profissionalização do mercado

cultural. Este se expandiu consideravelmente, incorporando consumidores de uma

parcela muito maior da população ao incluir gradativamente as classes mais

baixas, como parte de um processo maior de industrialização do país. Segundo

Renato Ortiz:

A consolidação de um mercado cultural somente se dá entre nós a partir de

meados dos anos 60, o que nos permite comparar duas situações, uma, relativa às

décadas de 40 e 50, outra, referente ao final dos anos 60 e início dos anos 70.

Creio que é possível falar, neste caso, de duas ordens sociais diferenciadas, e ao

contrapô-las, captarmos algumas especificidades da atualidade. A indústria da

cultura pode, desta forma, ser tomada como um fio condutor para se compreender

toda uma problemática cultural. Fruto do desenvolvimento do capitalismo e da

industrialização recente, ela aponta para um tipo de sociedade que outros países

conheceram em momentos anteriores (ORTIZ, 1999, p.8)

A era do rádio no Rio de Janeiro representara o domínio da Rádio

Nacional durante as décadas de 1940 e 1950. Neste período a industrialização e a

urbanização do país eram ainda incipientes e a Rádio Nacional era muito ligada ao

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Estado Novo, de Getúlio Vargas. Neste contexto, a função do rádio era mais a de

atuar como mediador entre o Estado e a população urbana do que de estabelecer

uma cultura de massas integradora. Segundo Zan, tratava-se de um “modelo

populista de formação de cultura de massa” que entra em crise em meados dos

anos 1950, marcando um período intermediário – em foco nesta tese – que se

estende até o final dos anos 1960.228

Mas em meados dos anos 1960 chegara ao fim este período da indústria

cultural, e preparava-se a era em que a televisão ganhou hegemonia no país, junto

a um pequeno número de majors, como eram chamadas as grandes gravadoras de

discos. Para que se tenha uma ideia da concentração do mercado nesta área, no

ano de 1976 apenas sete grandes gravadoras detinham 88% do mesmo229

. Não que

isto fosse anormal no Brasil, pois no período compreendido entre o início da

década de 1930 e a Segunda Guerra Mundial praticamente toda a produção

fonográfica estava a cargo de apenas três gravadoras: Odeon, RCA Victor e

Columbia230

. Neste período inicial, no entanto, o mercado era consideravelmente

menor em comparação com o período posterior.

Nesta nova ordem, a televisão passaria a desempenhar um papel central na

chamada MPB (música popular brasileira) a partir de fins dos anos 1960.

Inicialmente, em fase de transição ainda bastante ligada à cultura do rádio, a

inserção da música na TV se daria através dos programas de auditório como Esta

noite se improvisa, onde Chico Buarque e Caetano Veloso fizeram sua fama

inicial231

, ou nos festivais da canção onde as gravadoras podiam antecipar o gosto

228

“De meados dos anos 50 até o final dos 60, situa-se um período marcado pela crise do modelo

populista de formação da cultura de massa.” (ZAN, 2001, p.111) 229

“mercado que, ainda em 1976, consumia principalmente LPs e era monopolizado em 88%

pelas sete maiores gravadoras em operação no país.” (MORELLI, p.51, 1991, grifo meu) 230

ZAN p.110, 2001 231

Segundo Caetano Veloso: “Naquela mesma noite eu estreava na TV e a partir de então meu

conhecimento de letras de canções brasileiras e minha memória se tornaram lendários. Chico

Buarque era o meu maior competidor, com uma vantagem: seu reportório era extenso como o meu

e sua memória igualmente fresca, mas ele era ainda capaz de inventar na hora canções tão bem-

feitas que pareciam jóias da nossa tradição aos ouvidos dos responsáveis pelo programa.

Ganhámos vários automóveis Gordini -- que vendíamos automaticamente sem averiguar se

perdíamos alguma coisa nessa venda -- nos meses que se seguiram à minha estréia. E eu fiquei,

além de famoso, rico, para os meus padrões. Passei a ir quase semanalmente a São Paulo.”

(2002, p.139, grifo meu)

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do público através de artistas que surgiam a partir desta nova mídia232

. O período

de formação da TV então coincide com o da formação da MPB, sendo

fundamental estudar esta nova mídia para se entender a música brasileira que

surge no prenúncio da década de 1970. Esta foi a primeira geração da música

televisiva que conduziria posteriormente ao advento dos vídeo-clipes e da MTV

(Music Television), nos anos 1980. TV e MPB no Brasil, portanto, são fenômenos

imbricados em alto grau, ligação que mereceria uma tese. Segundo Morelli:

A importância da televisão no crescimento do mercado de discos no Brasil pode

ser avaliada indiretamente através de dados relativos à crescente participação da

gravadora Sigla, da TV Globo. Lançada em 1971(...), em 1977 a Sigla

despontaria como líder do mercado brasileiro de discos. Dois anos depois, sua

participação nesse mercado seria avaliada em 25%, confirmando-se assim sua

liderança até o final da década de 70. (MORELLI p.70, 1991)

7.3. A Indústria Cultural no “ritmo do aço”

O conceito de Indústria cultural, proposto por Adorno e Horkheimer

(2002) na década de 1930 se tornou tão amplamente conhecido que não é difícil

reconhecer sua vulgarização nas críticas mais cotidianas à música popular

comercial que músicos ou público tecem regularmente à canções que lhes

parecem “comerciais demais” ou de má qualidade. Uma demonizada “indústria

cultural” trabalharia visando apenas ao lucro imediato, baixando o nível cultural

da música que difunde, e influenciando negativamente o gosto popular.

Este conceito se funda sobre a ideia de que os diferentes empreendimentos

do setor cultural, como a indústria fonográfica, a indústria do rádio, da televisão, a

cinematográfica e a imprensa formam um “sistema” integrado, ao qual podemos

chamar de Indústria cultural. Este sistema por sua vez está, segundo estes autores

da Escola de Frankfurt, submetido à própria economia capitalista, cujo interesse

pelo lucro em detrimentos a valores artísticos e sociais que seriam desejáveis nas

obras de arte, conduz a uma produção “alienante”, baseada na estandardização das

232

“A importância da televisão no crescimento do mercado de discos no Brasil pode ser avaliada

indiretamente através de dados relativos à crescente participação da gravadora Sigla, da TV Globo.

Lançada em 1971(...), em 1977 a Sigla despontaria como líder do mercado brasileiro de discos.

Dois anos depois, sua participação nesse mercado seria avaliada em 25%, confirmando-se assim

sua liderança até o final da década de 70.” (MORELLI p.70, 1991)

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músicas populares urbanas233

. Estas são transformadas em mercadoria fetichizada,

a exemplo do que ocorre em diversas outras áreas da produção capitalista.

Toda a cultura de massas em sistema de economia concentrada é idêntica, e o seu

esqueleto, a armadura conceptual daquela, começa a delinear-se. Os dirigentes

não estão mais tão interessados em escondê-la; a sua autoridade se reforça quanto

mais brutalmente é reconhecida. O cinema e o rádio não têm mais necessidade

de serem empacotados como arte. A verdade de que nada são além de

negócios lhes serve de ideologia. Esta deverá legitimar o lixo que produzem de

propósito. O cinema e o rádio se auto definem como indústrias e as cifras

publicadas dos rendimentos de seus diretores-gerais tiram qualquer dúvida sobre

a necessidade social de seus produtos (ADORNO, 2002, p.8, grifo meu)

A crítica de Adorno e Horkheimer (2002) aos novos meios de produção

artística que surgem no século XX se funda principalmente sobre a ideia da

repetição, considerada alienante por eles: através da indústria cultural, que se

caracteriza por seus novos meios técnicos de reprodução234

, as massas seriam

submetidas à repetição incessante de músicas apenas aparentemente diversas, pelo

rádio. Estas músicas, no entanto, seriam em tudo semelhantes entre si, seja na

forma, seja nas harmonias e nas melodias, seja no “ritmo do aço”235

- conforme

estes intelectuais entenderam o tempo metronômico regular que ganhou

hegemonia na música ocidental a partir desta era do rádio.

Assim a repetição alienante da música popular se daria em três níveis.

Primeiro no nível interno das músicas, onde as frases musicais são reapresentadas

(por exemplo, com um ritornelo no fim da parte A, indicando sua repetição) e

pequenos motivos rítmicos são sempre reiterados pela seção rítmica a fim de

constituir a “levada”236

. Mas a repetição se daria também em um segundo nível,

entre as músicas. Pois estas são apresentadas como novidade – “a música da

233

“A dependência da mais poderosa sociedade radiofônica em relação à indústria elétrica, ou a do

cinema aos bancos, define a esfera toda, cujos setores singulares são ainda, por sua vez, co-

interessados e economicamente interdependentes” (ADORNO, p.11, 2006) 234

Ver Walter Benjamin, também um membro da Escola de Frankfurt, e seu texto fundador A

obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (2000) 235

“A cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança. Filmes, rádio e

semanários constituem um sistema. Cada setor se harmoniza em si e todos entre si. As

manifestações estéticas, mesmo a dos antagonistas políticos, celebram da mesma forma o elogio

do ritmo do aço” (ADORNO, 2006, p.7) 236

A levada convida à dança ou, no mínimo, ao batucar com o dedo sobre a mesa. O termo

“levada” tem vários sinônimos como “batida”, ou o “groove”, ou “swing” - os nomes são muitos -

e consiste em um procedimento rítmico largamente usado, comum a toda música popular urbana

do século XX, onde se repetem motivos de acompanhamento pelos instrumentos da seção rítmica,

como bateria, percussões, baixo, violão e piano, eventualmente. É a levada que denota mais

explicitamente o gênero, de critério sempre rítmico, de uma música, como samba ou salsa.

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moda” - pela indústria cultural, mas na verdade seriam mera repetição, ou “mais

do mesmo” produto de sempre, apresentado e reapresentado ao consumidor. Por

fim haveria um terceiro nível de repetição, que seria uma uniformização geral da

sociedade tomada pelo capitalismo, para a qual a indústria cultural contribui

apenas parcialmente, mas de forma ativa.

Não deixa de ser uma ironia que um conceito extremamente crítico à

massificação da cultura e da arte na “era de sua reprodutibilidade técnica”

(BENJAMIN, 2000) tenha se tornado tão amplamente popular, conforme se

afirmou antes. Ainda que Adorno nem sempre seja diretamente citado, suas ideias

são regularmente levantadas até mesmo por quem defende músicas

intrinsecamente ligadas à indústria cultural, mas que ganharam maior

respeitabilidade e o status social de obra de arte com o passar dos anos, como as

gravações de bossa nova, sambajazz ou de MPB, dos anos 1950 aos 1970. Assim,

críticas que Adorno fez pioneiramente às músicas populares norte-americanas,

que não diferem muito dos estilos brasileiros citados do ponto de vista do uso

sistemático da repetição e da relativa estandartização da produção, são usadas

também para defendê-las contra novas produções da indústria cultural que ainda

não ganharam status de “arte” ou de “boa música” na sociedade. O alvo destes

críticos que, muitas vezes sem o saber, se transformam em adornianos vulgares,

passou a ser os gêneros mais recentes da indústria cultural, como o axé, o pagode,

o sertanejo ou o funk, nos quais se vê apenas a “repetição” emburrecedora e a

“alienação” de um público apassivado em oposição a estilos onde se supõe um

valor artístico elevado, ainda que gerados na mesma indústria cultural em uma

fase anterior.

Muitos intelectuais mais ou menos otimistas com a cultura pop

internacional se insurgiram contra esta mentalidade “adorniana”, que condena a

música da indústria cultural. Caetano Veloso, por exemplo, escreveu em sua

coluna dominical em O Globo, em 26/08/2012: “Possivelmente por causa de

Adorno, somos sempre relembrados de que nossas alegrias são suspeitas, nossa

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271

possível felicidade, criminosa. Grande parte das excitações tropicalistas tem

origem no movimento íntimo para confrontar esse mandato.”237

O conceito de indústria cultural tem sofrido relevantes críticas que, de

maneira geral, apontam nele um entendimento idealizado e apassivado do

consumidor. Dentre as numerosas críticas que tem sido feito ao longo de décadas,

destaco aqui três que parecem ser especialmente pertinentes a esta pesquisa.

Os escritos de Adorno despertaram o interesse de muitos músicos que, de

maneira geral, tenderam a criticar a rigidez de sua perspectiva sobre a arte238

. Esta

lhes pareceu por demais restrita, os objetos artísticos forçados em categorias

sociológicas excessivamente generalizantes e com pouca base empírica; e que são

estranhas às múltiplas leituras e usos a que se presta uma peça musical. Seria

preciso especificar sobre quais músicas de massa se exerce esta crítica

indiscriminada à uma grade indústria cultural, conforme o compositor erudito

Luciano Berio (1981). Seria sobre os Beatles, que marcam a chegada de uma

indústria cultural mais pesada na segunda metade do século XX? Ou sobre George

Gershwin, compositor que nos primórdios da era do rádio empreendeu uma

pioneira “estilização” do jazz negro, gênero que apreciava e que quis apresentar

em Rapsódia em Blue da forma mais atraente possível ao público da sala de

concerto? Conforme o compositor italiano Luciano Berio:

Desconfio que as classes e as categorias de Adorno, descritas de maneira tão

circunstanciada e específica, não existem mais e que – nas formas de alienação

paroxística analisadas por ele – jamais existiram. Assim como não existe nem

jamais existiu o significado sociologicamente específico de uma obra musical,

que implícita e moralisticamente ele propõe. (...) (Adorno) investe contra toda a

música de consumo e comercial e não, digamos contra Gershwin ou Beatles.

Preocupa-se com categorias tão gerais que parecem escapar a toda dinâmica de

transformação, esquecendo que um dos aspectos mais enganadores e interessantes

da música de consumo, dos mass media e, no fundo, do capitalismo, é sua fluidez

e sua incessante capacidade de transformação, de adaptação e de assimilação. A

sociedade de Adorno é uma sociedade unânime no mal (...) (BERIO, 1981, p.16)

237

Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/moral-da-historia-5897376#ixzz3LlgrYPzn.

Acesso em 13/12/2014. 238

Caetano Veloso escreveu em sua coluna dominical em O Globo, em 26/08/2012:

“Possivelmente por causa de Adorno, somos sempre relembrados de que nossas alegrias são

suspeitas, nossa possível felicidade, criminosa. Grande parte das excitações tropicalistas tem

origem no movimento íntimo para confrontar esse mandato.”

Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/moral-da-historia-5897376#ixzz3LlgrYPzn.

Acesso em 13/12/2014.

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272

Berio reforça a crítica comum ao trabalho de Adorno: suas categorias

rígidas perdem a fluidez que caracteriza o mundo contemporâneo capitalista.

A crítica de Paulo Puterman a Adorno e Horkheimer se anuncia desde o

título do livro em questão, Indústria cultural, a agonia de um conceito (1994).

Neste trabalho ele analisa os relançamentos em CD (compact disc) das sinfonias

de Beethoven gravadas integralmente pelo regente Herbert von Karajan como

uma estratégia de promoção desta mídia nascente nos anos 1980, e também o

lançamento do primeiro disco de Elvis Presley. O autor critica especialmente o

conceito de “massa” utilizado por Adorno e Horkheimer que seria por demais

“monolítico” e “desumanizado”, fruto de um modelo analítico que não encontraria

correspondência empírica nem mesmo no momento histórico em que o conceito

de indústria cultural foi cunhado. Segundo o autor: “Adorno e Horkheimer

raciocinaram como se a indústria cultural de massa instalasse para todo o sempre

uma coletividade monolítica, destituída de raciocínio crítico e uniformizada pelos

mesmo gostos” (PUTERMAN, 1994, p. 21)

Por outro lado Puterman acusa no conceito uma suposição também

equivocada de que “haveria em todas as sociedades uma tendência à

uniformização do saber” (1994, p.20) como consequência da rápida difusão das

técnicas de comunicação e reprodução.

Richard Midleton (2006), por sua vez, aborda especificamente um ponto

central em Adorno, a crítica da repetição excessiva e alienadora que ele identifica

na cultura de massas. Conforme este autor, a crítica da repetição se dá de forma

dupla, tanto musicalmente, ou seja, no nível interno da peça, como em um nível

externo, onde ocorreria uma “estandartização” dos produtos da indústria cultural.

Midleton assinala a complexidade do assunto, mostrando que, mesmo no nível

interno da peça, podem ocorrer diversas formas de repetição:

Dentro de uma música em particular ou de uma canção individual, a existência, o

papel e a natureza da repetição é um importante instrumento de discernimento

para a análise, ajudando a indicar diferenças sincrônicas que acontecem em

relação a outras músicas e canções, e também ajudando a marcar mudanças

históricas nos estilos musicais. Mas fazer a diferenciação não é uma questão fácil.

A importância das repetições está intimamente ligada ao seu papel na estrutura

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sintática total. Ou seja, está ligada à natureza do que é repetido e com a relação da

repetição com outros processos presentes239

(2006, p.16)

A repetição, portanto, não pode ser entendida de forma unidimensional,

pois ela depende do contexto musical/social em que se insere. Assim, se na

tradição erudita europeia a repetição foi frequentemente entendida como

alienante, ou ainda, por demais corporal e dançante, de caráter circular e

inebriante e negadora de uma visão discursiva linear, desviando o indivíduo da

razão, nas músicas da tradição afro-americana a repetição desempenha um papel

diverso. A repetição ali, muitas vezes, faz parte de um jogo de “fases e

defasagens”240

, de superposição de pequenos motivos rítmicos de matriz talvez

idêntica, mas que frustram ou recompensam o ouvinte, que espera mais uma

repetição. Este jogo sobre a expectativa da repetição, que poderia ser novamente

reiterada ou modificada (através de, digamos, a adição de uma unidade de pulso a

mais na célula rítmica) é um dos pontos principais onde reside o interesse e a

sofisticação a um tempo corporal e intelectual destas músicas das Américas ditas

“populares” ou “negras”.

Midleton tipifica dois procedimentos básicos de repetição no interior das

músicas: a repetição “musemática”, onde pequenas células rítmicas são repetidas

(e modificadas, eventualmente) e a repetição “discursiva”, onde frases maiores

são reapresentadas, como quando ocorre um ritornelo em uma das partes da

música241

. A repetição de pequenas “unidades rítmicas” está presente em grande

parte da música popular das Américas, e é central na tradição do samba, sendo

facilmente observável na ação do tamborim, em uma batucada. Este instrumento,

no samba, alterna pequenas células de dois ou três tempos que vão se encaixando

de diversas formas no tempo regular representado pelo bumbo, em pulso binário.

239

“Within a particular music or individual song, the existence, role and nature of repetition is a

major distinguishing tool for analysis, helping to indicate synchronically existing differences in

relation to other musics and songs, and also helping to mark out historical changes in musical

styles. But to do the distinguishing is no easy matter. The significance of repetition is closely

bound up with its role in the total syntactic structure. – i.e., with the nature of what is repeated

and with the relationship of the repetition to the other process that are present.” (2006, p.16) 240

Ver WISNIK (1989). 241

“First I would like to differentiate between what I shall call musematic repetition and

discursive repetition. Musematic repetition is the repetition of short units; the most immediately

familiar examples – riffs –are found in African-American musics and rock. Discursive repetition is

the repetition of longer units, at the level of the phrase. The effects of the two types are usually

very different, largely because the units differ widely in the amount of information and the amount

of self-contained ‘sense’ they contain, and in their degree of involvement with other syntactic

process.” (MIDLETON, 2006, p.17)

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274

Este tem a função de marcar o compasso de forma regular, embora acentuando o

segundo tempo, e não o primeiro, como na rítmica tradicional europeia242

.

Podemos identificar este procedimento tanto na estilização do samba

promovida por Édison Machado à bateria, onde o tamborim tradicional do samba

é transposto para o prato de condução, originando o samba do prato quanto na

“batida” da bossa nova de João Gilberto ao violão, onde o polegar, mais grave,

executa a linha rítmica correspondente ao surdo do samba, enquanto a os demais

dedos executam a parte aguda, dos tamborins estilizados.

Técnicas musemáticas, como um dispositivo básico de estruturação, apareceu

pela primeira vez em grande forma, em shows de massa de música popular, no

trabalho das bandas de swing dos anos 1930 (sob a forma de riffs). Onde

exatamente na história da música esta técnica teve origem é difícil de dizer, mas,

no fim, é menos importante identificar fontes específicas do que localizar a

técnica na prática (oral) cotidiana generalizada na cultura negra 243

.

(MIDLETON, 2006, p. 18)

Midleton destaca a pluralidade de leituras sobre a repetição musical nas

músicas da indústria cultural – termo aqui empregado no singular graças a

Adorno, mas que é melhor compreendido enquanto uma rede plural, constituída

de indústrias culturais diversas que podem ser apreendidas em seu conjunto

apenas para efeitos de análise, mas que são incapazes de serem exauridas

conceitualmente ou de explicar de forma total as músicas ou sociedades em que se

inserem. É preciso observar o “ponto em que vários grupos de determinação se

cruzam” para gerar o sambajazz:

Eu gostaria de entender a extensão e natureza da repetição em uma determinada

música como sendo produzida e localizada no ponto em que vários grupos de

determinação se cruzam: a ‘economia política’ de produção, a economia psíquica

242

Podemos identificar este procedimento tanto na estilização do samba promovida por Édison

Machado à bateria, onde o tamborim tradicional do samba é transposto para o prato de condução,

originando o samba do prato quanto na “batida” da bossa nova de João Gilberto ao violão, onde o

polegar, mais grave, executa a linha rítmica correspondente ao surdo do samba, enquanto a os

demais dedos executam a parte aguda, dos tamborins estilizados. 243

“Musematic techniques, as a primary structuring device, first broke through in a big way, in

mass-audience popular music, in the work of the 1930s swing bands (in the form of riffs). Where

exactly in music history this technique originated is difficult to say, but in the end it is less

important to identify particular sources than to locate the technique in general everyday (oral)

practice in black culture” (2006, p. 18).

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dos indivíduos; os meios musico-tecnológicos de produção e reprodução; e os

efeitos das tradições histórico-musicais244

(MIDLETON, 2006, p.16)

7.4. O músico profissional no contexto da indústria cultural

O “samba moderno” representado pelo sambajazz e pela bossa nova –

categorias que se confundiam à época, conforme foi demonstrado, foram

vivenciados, tanto pelos músicos como pelo público, como uma necessidade de

modernização da tradição representada pela música brasileira. Esta modernização

tinha um sentido não apenas estético, mas significava concretamente também a

inserção do músico dentro de um mercado musical mais profissionalizado, e que

tendia a crescer. No entanto, este crescimento mais acentuado do mercado deu-se

a partir do ano de 1968, ano crucial na história brasileira, de edição do AI-5, que

marca o estreitamento da ditadura militar e que também pode ser considerado

como o ano do desaparecimento quase total da produção do sambajazz, uma

antecipação da década de 1970. Segundo Morelli, em Indústria fonográfica, um

estudo antropológico:

Os anos iniciais da década de 1970 foram marcados por um crescente aumento da

produção e do consumo de discos no Brasil. (...) houvera um crescimento de

400% nas vendas do setor entre 1965 e 1972, sendo que desde 1970 as taxas

tinham sido de fato progressivas, superando-se o recorde de 18,5% de 1971 logo

em 1972, quando o mercado chegou a crescer 34,5%. (1991, p. 86).

Este crescimento do mercado, que se dá mais acentuadamente a partir do

período que sucede o sambajazz, ia de encontro ao desejo, por parte dos músicos

que são objeto desta tese, de que a profissão que abraçaram pudesse lhes garantir

maior estabilidade financeira sem que fosse necessário recorrer a um segundo

emprego, como faziam muitos instrumentistas da era do rádio a fim de se

sustentar.

Estes músicos também esperavam um crescimento profissional ao longo

da carreira, conforme se pode esperar de outras profissões mais estáveis, onde os

profissionais mais experientes e bem sucedidos obtenham ganhos financeiros e

244

“I would like to see the extent and nature of repetition in a given music as produced by and

located at the point where several sets of determination intersect: the ‘political economy’ of

production; the ‘psychic economy’ of individuals; the musico-technological media of production

and reproduction; and the effects of musical-historical traditions” (2006, p. 16).

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respeitabilidade maiores ao longo do percurso profissional. Ganhar o status de

“solista” tem um significado importante na hierarquia musical, conforme se

observou no caso de Paulo Moura. Músicos mais bem sucedidos financeira e

socialmente se destacam em shows e álbuns como solistas, conforme ocorreu a

muitos músicos do sambajazz. Isto não os impedia de atuar eventualmente

também como “acompanhadores” de cantores de sucesso ou de outros músicos.

No entanto, a pretensão destes músicos de maior profissionalização junto ao

crescente mercado cultural brasileiro, de maneira geral, foi frustrada a partir de

fins dos anos 1960, o que ocasionou uma imigração em massa de músicos para o

exterior, conforme se viu anteriormente.

7.5. A segmentação de mercado

Um fato importante no período estudado é a segmentação do mercado que

se operou então. Com o rock’n roll, que no primeiro mundo havia se tornado um

fenômeno de vendas com grupos como os Beatles, e que no Brasil ficou

conhecido como iê-iê-iê, consolidou-se no país, na segunda metade dos anos

1960, o segmento de mercado “jovem” da indústria fonográfica brasileira.

Segundo José Roberto Zan:

Em meados dos 60, o rock transformou-se no iê-iê-iê da Jovem Guarda.

Concebido pela empresa de publicidade Magaldi, Maia & Prosperi, o programa

musical Jovem Guarda, que foi ao ar pela primeira vez em setembro de 1965 pela

TV-Record, representou o maior empreendimento de marketing, relacionado à

música popular, já registrado no Brasil. (ZAN, 2001, p.114)

Este segmento poderia ter sido inicialmente identificado ao público da

bossa nova e do sambajazz, música de jovens “modernos”, como Elis Regina e

Jair Rodrigues que apresentavam o programa Dois na bossa, rebatizado depois de

O fino da Bossa, ao migrar para a TV Record em 1965. Mas foi a Jovem Guarda

quem de fato ocupou este nicho, a partir do sucesso do programa de TV

homônimo, que foi ao ar de 1965 a 1969, também na TV Record, com Roberto

Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. A audiência deste programa de TV superou

em muito a do programa rival de Elis Regina e Jair Rodrigues, conforme Nelson

Motta, em Memória musical:

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O programa de Roberto, Erasmo e Wanderléa era o mais popular, mais que o

popularíssimo Dois na bossa de Elis Regina e Jair Rodrigues, onde cantavam as

duas tendências em que haviam rachado a Bossa Nova: o jazz-bossa

“americanizado” e “alienado”, e a MPB “politizada” e “nacionalista” (1990, p.28)

A citação de Motta deixa entrever também que a cisão entre o jazz-bossa

dito “alienado” e a MPB dita “politizada” era uma cisão interna de um grupo

maior cuja oposição principal se dava contra a Jovem Guarda e o rock’n roll. O

sambajazz, que era frequentemente acusado de ser americanizado, agora estava na

posição oposta, contra o avanço do que parecia aos músicos o fim de qualquer

pretensão artística e o apogeu da “concessão comercial”, simbolizados pelo iê-iê-

iê.

O sucesso da Jovem Guarda na TV foi acompanhado do lançamento de

diversos produtos em outros segmentos com a marca. O surgimento do rock’n roll

e esta nova fase onde a indústria fonográfica nacional atingiu a quinta posição no

mercado mundial em vendas, estão intimamente ligados ao fortalecimento da

televisão no país245

.

Posteriormente os artistas de MPB também buscaram ocupar este nicho

“jovem” do mercado fonográfico embora a maior parcela de consumo desse

público fosse inicialmente de lançamentos internacionais:

Nos anos iniciais da década de 70 o mercado brasileiro de discos não era ainda

jovem em sua maioria – e, justamente em seu segmento jovem, consumia

principalmente música estrangeira (...) E a formação de um grupo de artistas

nativos, capaz de se constituir numa alternativa permanente aos grandes astros da

música jovem internacional, parecia ser ao mesmo tempo imprescindível para

garantir uma estabilidade maior dos mercados nacionais a longo prazo, através da

245

Segundo o Relatório Música independente - estudos de mercado, do SEBRAE/ESPM 2008:

“A década de 60 foi marcada pela consolidação da televisão, o que causou grande impacto junto

ao rádio e à indústria fonográfica. (...) Se, nos Estados Unidos, coube ao rádio fazer explodir o

fenômeno do rock and roll, no Brasil sua popularização se deu por meio da televisão,

alavancando o até então incipiente mercado jovem. Alavancado pelo chamado “milagre econômico” – época de crescimento sem precedentes da

economia brasileira – houve o crescimento do consumo de bens duráveis, como eletrodomésticos,

aparelhos eletroeletrônicos e TVs. Neste contexto, a partir de 1968, o cenário da indústria

fonográfica começou a mudar: entre os anos de 1967 e 1980 ocorreu um crescimento de 813% na

venda de toca-discos. No período de 1966 a 1976, o crescimento acumulado da venda de discos foi

de 446%; este fenômeno estava ligado ao contexto político e à fertilidade do mercado brasileiro de

música, que favoreceu a pluralidade das manifestações nacionais, como a bossa nova, a jovem

guarda e o tropicalismo. Estes números alçaram o Brasil ao quinto mercado fonográfico do

mundo.” Disponível em:

http://bis.sebrae.com.br/GestorRepositorio/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/CFF7CAF03E4

C061E832574DC0046E89F/$File/NT0003908E.pdf. Acesso em 08/12/2014.

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conquista definitiva dos seus segmentos jovens. Ora, no Brasil, como vimos,

identificava-se esse grupo de artistas com os jovens compositores-intérpretes

universitários que faziam a chamada MPB nos anos 60 (MORELLI, 1991, p. 69)

As grandes gravadoras investiram então nos artistas da MPB

“universitária”, com o intuito de fazer crescer as vendas dos produtos nacionais

realizados pelas subsidiárias brasileiras destas multinacionais, como a CBS, a

Phonogram, a Odeon. A Continental era a única grande gravadora com capital

exclusivamente nacional. Estas quatro empresas se uniram em 1965 formando a

Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD)246

.

O produtor André Midani, então o diretor da Philips-Phonogram no Brasil

concedeu uma entrevista em 1971 onde dizia que “o interesse dos jovens

brasileiros por discos, que era também um fenômeno ainda mais recente, fora

despertado justamente pela bossa-nova, nos anos finais da década de 1950”

(MORELLI, 1991, p.68). Estes músicos, no entanto, ainda segundo Midani, eram

semi-amadores, fazendo música por “diletantismo”. Os compositores surgidos

mais recentemente, entre eles Gilberto Gil, seriam exemplares quanto à “seriedade

profissional”, como o seriam também os artistas da Jovem Guarda. (Idem)

Podemos acompanhar no caso do contrabaixista Sérgio Barrozo o

surgimento do rock’n roll como atividade profissional para músicos, junto ao

surgimento da televisão que era “ao vivo, não tinha VT (vídeo tape)”, segundo

ele. Barrozo relata em entrevista para esta tese que tocava em bandas de rock,

além de atuar como musico de sambajazz, e que chegou a participar do programa

de televisão Hoje é dia de rock, de Carlos Imperial. Gravou também alguns álbuns

dos “baianos” à época, como se refere a Gilberto Gil e Caetano Veloso. Nestas

ocasiões tocava o contrabaixo elétrico, e não o acústico, como nas gravações de

sambajazz.

Esse baianos todos eu gravei (Gilberto Gil e Caetano Veloso). Eu me lembro

deles chegando no Rio, pareciam hippies, com aquelas sandálias de pneu. Eram

hippies mesmo.(...) Eu cheguei a tocar com a Jovem Guarda, agora que eu tô

246

“atuavam aqui quatro grandes empresas: a americana CBS, a Phonogram (ligada à holandesa

Philips), a Odeon e a Continental (a única com capital 100% nacional). Em 1965, estas empresas

se uniram para criar a Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), cujo objetivo é

defender os interesses do setor.” Disponível em:

http://bis.sebrae.com.br/GestorRepositorio/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/CFF7CAF03E4

C061E832574DC0046E89F/$File/NT0003908E.pdf. Acesso em 08/12/2014.

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lembrando. Eu cheguei a fazer um disco 45 rotações, com um grupo que a gente

tinha, Os Belmontes. Eu me lembro que a gente foi pro estúdio e eram dois caras

fazendo vocal, baixo, bateria. O Waltel Blanco tocou guitarra. Ninguém tinha

prática, foi a primeira vez que eu entrei num estúdio. O cantor imitava o Elvis

Presley, o disco era hilário! Eu tenho guardado isso aí, eu não sei aonde. Era uma

capa que tem a gente com uma roupa igual, cabelo não sei o que, a gente fazendo

pose. Depois tinha um programa do Carlos Imperial na TV Tupi Hoje é dia de

rock, eu cheguei a tocar nesse programa com um grupo de rock. A TV era ao

vivo, não tinha VT não.

O sambajazz e a bossa nova, nascidos no período intermediário desta

virada da indústria cultural, foram, portanto, considerados incapazes pelos

executivos das grandes gravadoras e das emissoras de TV de representar este novo

nicho mercadológico que foi ocupado por jovens mais adaptados às demandas da

música via televisão, como Gilberto Gil ou a Jovem Guarda. O episódio do

Concerto de Bossa nova no Carnegie Hall, em 1962, que foi sentido como um

fracasso por muitos pode ter contribuído para que essa impressão de amadorismo

dos músicos de então se propagasse. Mesmo que nem todas as apresentações

daquele concerto tivessem sido tão amadoras, e ele tenha favorecido músicos que,

a partir daí, tiveram grande êxito a nível internacional a partir da indústria cultural

norte-americana. Mas o sambajazz e a bossa nova eram por demais ligados ao

jazz, que era entendido então como a música de uma época anterior.

Foi somente nos anos 1990, com o relançamento dos LPs do período

digitalizados em CD, que o sambajazz viria à tona novamente como um

importante movimento da música brasileira que era necessário resgatar e

valorizar. Portanto, foi apenas em torno de três décadas após o fenômeno inicial

que a categoria realmente se firmou mercadologicamente e o termo sambajazz se

estabilizou como um rótulo em CDs identificados à música que Raul de Souza,

Édison Machado, Paulo Moura, Sérgio Mendes, Leny Andrade, Tamba Trio, João

Donato, Moacir Santos, Maurício Einhorn e tantos outros faziam em fins dos anos

1950 e princípios dos 1960.

7.6. A profissão de músico no Rio de Janeiro atual em comparação com o período do sambajazz

No ano de 2013 participei da turnê nacional de uma conhecida cantora de

MPB como violonista e guitarrista. Mantive um diário de campo desta atividade e

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280

entrevistei três músicos da banda, dos quais dois são abordados aqui247

. As

entrevistas foram realizadas em hotéis, nas horas vagas durante a turnê. A

entrevista de João aconteceu em Fortaleza, sua terra natal, e a de Ricardo, em São

Paulo. Somei a elas o depoimento de Roberto, contrabaixista carioca nascido em

1978, que ele me concedeu em sua casa na Gloria, RJ, em outubro de 2012. As

citações de João, Ricardo e Roberto contidas neste texto se originam destas

entrevistas.

João é um dos contrabaixistas mais ativos no mercado musical carioca, e

tem feito shows e gravações ininterruptamente há duas décadas. Ele tem

“acompanhado” regularmente os “artistas” mais conhecidos da MPB - está sempre

“entre as estrelas” - sendo um dos mais requisitados contrabaixistas no campo.

Toca contrabaixo acústico e elétrico igualmente bem. Sua importância no meio,

bem como sua posição de liderança dentro da turnê que estávamos fazendo (fui

chamado por ele para participar da mesma), no entanto, não parecem diminuir sua

atitude humilde e, ao mesmo tempo, bem humorada e perspicaz. Atento a todos os

envolvidos neste mundo da arte (BECKER, 1977), em um espetáculo itinerante

em que participavam mais de vinte profissionais, entre músicos, técnicos de som,

iluminadores e roadies, ele demosntrou, nesta entrevista para a tese, estar sempre

atento à relação “política” interna ao meio musical: “eu sempre procurei aprender

com todos os músicos que eu toquei, sempre querendo aprender com todo mundo

de música. E sempre atento ao comportamento social. Naquele grupo, como é o

comportamento do grupo. Você acaba fazendo política!”.

“Fazer política” aqui não se trata, por certo, da atividade política

institucional, mas recua ao seu sentido original, do bom relacionamento com os

cidadãos da polis. Neste caso, trata-se da polis musical, um mundo onde João se

movimenta com desenvoltura. Em uma profissão de grande instabilidade, na qual

são raros contratos248

ou garantias trabalhistas, o músico profissional bem

sucedido é um ser essencialmente “político”: ele deve sempre agradar aos outros

247

Estes músicos são referidos aqui por pseudônimos. São eles o contrabaixista João, então com

50 anos, e nascido em Fortaleza - CE e o percussionista Ricardo, carioca, então com 53 anos. 248

Segundo SILVA (2005b): “Além disso, um músico frequentemente trabalha sem contrato

formalizado, oscilando entre fases em que trabalha e recebe e outras em que trabalha sem receber,

como no caso de ensaios, shows e gravações em esquemas da chamada produção independente.”

(SILVA, 2005b, p.223)

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profissionais com quem trabalha, e ter uma boa convivência para que prossiga

sendo chamado para outras “gigs”. Se isto ocorre, por certo, em qualquer

profissão, na música, dada o alto grau de instabilidade da carreira, este fator é

exacerbado. Roberto, um músico mais jovem, usa o mesmo termo que João:

“Você como músico é obrigado a trabalhar com muita gente. E você deve evitar

ficar mal com as pessoas de quem você depende para ser chamado, né. Então

você acaba sendo às vezes muito político, muito social.”

Se Becker (2008) caracterizou os músicos com quem convivia como

indivíduos que rejeitavam seu público, qualificando-os não sem desprezo de

“quadrados”, os músicos do Rio de Janeiro atual poderiam ser adjetivados como

principalmente “políticos”. É preciso fazer boa “política” com os colegas e

superiores dos quais se depende para ser convidado aos trabalhos seguintes.

Por isso muitos músicos profissionais bem sucedidos são verdadeiros

“animadores”, engraçados e falantes, sempre prontos a contar piadas e casos que

promovam um ambiente descontraído. Eles se tornam queridos por isto, em meio

às risadas de todos. É por vezes muito agradável conviver com estes músicos, cujo

sucesso na carreira depende muito da manutenção de uma boa imagem

profissional.

João me relatou certa vez, em conversa informal, que um conhecido cantor

da MPB procurava um violonista para participar de uma turnê. Foi chamado um

profissional altamente qualificado. Haveria uma gravação prévia, que funcionaria

como um teste para o violonista convidado: se o cantor o aprovasse nesta

gravação o músico seria aceito na turnê a seguir. Segundo João, este músico,

como seria de se esperar de um valorizado profissional como ele, realizou a

gravação a contento, mas este fato não provocou qualquer reação no cantor-

celebridade. Porém quando o violonista contou uma piada que o fez rir, o convite

para a turnê veio de imediato, e João pode constatar claramente então que o cantor

gostou do músico.

Obviamente “ser político” e divertido não resume tudo, e a competência

musical continua sendo fundamental entre músicos profissionais. Estes têm de ser

hábeis o suficiente para “resolver” um show ou uma gravação, neste mercado

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altamente concorrido. Mas esta competência, por outro lado, não basta. E ela só

pode ser adquirida através da prática profissional constante, que por sua vez

depende da boa “política” do profissional entre seus pares e superiores.

Portanto, observa-se que a escolha do músico pelo cantor advém não

apenas de uma lógica individualista moderna, onde a competência profissional

seria o principal motivador, mas também de uma lógica pessoal hierarquizante,

em que o músico deve, acima de tudo, agradar pessoalmente ao contratante249

.

Como mesmo em esquemas comerciais de grande porte os contratos são raros,

este músico terá de manter uma boa imagem junto ao superior hierárquico, que

pode a qualquer momento substituí-lo por outro que seja mais de seu agrado.

É muito comum que músicos profissionais do Rio de Janeiro jamais se

neguem a uma “gig” (trabalho) quando são convidados por seus pares, mesmo

quando tem outro compromisso profissional agendado no mesmo dia e horário.

Em um mercado instável e penetrado pela conhecida informalidade carioca, é

comum que os músicos acumulem compromissos profissionais, aos quais mandam

“subs”, isto é substitutos, caso não possam cumpri-los. Estes são chamados muitas

vezes “em cima da hora”, às pressas, e devem lealdade a quem lhes convida. É

considerada uma traição que o músico prossiga trabalhando naquela gig a revelia

do colega que o chamou, em seu lugar.

Paulo Moura me disse certa vez: “negar trabalho dá azar”. Muitos destes

trabalhos oferecidos aos músicos são mal pagos, pois muitos profissionais, mesmo

quando “bem sucedidos”, aceitam eventualmente fazer gigs mal remuneradas “na

noite”, ou seja, em casas noturnas, caso nada melhor lhes apareça naquele dia.

Eles aceitam tocar porque estas são também oportunidades de socialização no

meio profissional. Evita-se, portanto, dizer não ao músico que o convidou para

aquela gig mal paga, por que este eventualmente pode chamá-lo para uma outra

melhor, inclusive como forma de compensação por sua lealdade. Neste meio,

ouvem-se comumente frases como: “tocar na noite é melhor do que ficar em casa

vendo televisão” ou “a gig é mal paga, mas pelo menos dá pra fazer uma feira”.

Assim estes músicos aceitam “pegar a gig”, ainda que mal remunerada e

249

Ver DA MATTA, 1997, p.225, em especial.

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desprestigiada. Eles eventualmente esperam ainda que uma oportunidade melhor

lhes apareça no mesmo horário e, neste caso, eles poderiam então mandar um sub

ao compromisso agendado.

José Alberto Salgado e Silva (2005a) realizou uma etnografia sobre um

grupo do qual este pesquisador fez parte, chamado Garrafieira250

. Neste grupo,

que se apresentava regularmente em uma casa noturna da Rua do Lavradio, na

Lapa, RJ, também era muito comum a prática de “mandar subs”, conforme

observa Silva, pois alguns de nós também tocávamos em espetáculos de mais

prestígio, trabalhos de “artistas” que remuneravam melhor, e que eram então

priorizados. Conforme Silva bem descreve, esta prática era tão comum no grupo,

que ela chegou a ser sentida como uma ameaça à continuidade do mesmo, no caso

de um baterista que “mandava subs demais”, e foi preterido por outro mais

presente e comprometido com aquele trabalho. Esta prática de “mandar subs”, por

certo, não era apenas do Garrafieira, mas é uma constante no mercado musical

carioca. Ela pode inclusive vir a atrapalhar a atividade musical, uma vez que os

subs nem sempre participam de ensaios e muitas vezes desconhecem o repertório

a ser tocado, tendo menos intimidade com o show. O acúmulo de subs em uma

mesma gig pode prejudicar um espetáculo. No entanto, dado o caráter rotineiro

destas substituições, a prática era sentida por nós, jovens músicos, como algo

inerente à nossa “profissionalização”, conforme assinala Silva (2005):

Quando perguntei a Gabriel, antes de sua viagem, como andava o conjunto, ele

foi enfático ao dizer que o Garrafieira estava “cada vez mais profissional”,

associando esta qualificação ao fato de já terem um sistema bem organizado de

substituições, em caso de necessidade. Disse aquilo em resposta a meu

comentário sobre sua própria substituição por outro guitarrista, na apresentação

subseqüente do grupo. “Profissional”, nesta acepção particular, significa permitir

substituições e estar estruturado para tal, conforme ele especificou: “as partes

agora estão escritas, algumas coisas que antes estavam só de bossa.”

Podemos observar nesta fala do músico etnografado (que coincide com

este pesquisador), que a prática da substituição, até certa medida, não era

entendida como algo contrário à atividade “profissional”, mas era antes uma

exigência deste mercado, algo que inclusive qualificava o grupo neste sentido.

250

Publicado em Debates. Rio de Janeiro: CLA/UNIRIO, n. 8, p.39-69, 2005.

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Este subterfúgio da “substituição”, muito comum no meio musical carioca,

é um índice de sua extrema liquidez e da improvisação que domina seus

esquemas. O músico então se torna alguém que tem de se equilibrar entre as

exigências de um mercado frequentemente mal pago e instável. Isto o obriga a

nunca “negar trabalho”, por mais que não possa cumprir com este compromisso e

seja obrigado a mandar um “sub” que não havia sido chamado inicialmente para

aquela “gig”. Ao fazê-lo, porém, ele incorre em uma pequena falta que, se em

outros meios profissionais seria considerada como uma quebra de compromisso, é

tolerada entre músicos.

Segundo Da Matta (1997), a figura do malandro é um “papel social

generalizado e generalizante” (p.262) na sociedade brasileira que, sem nos

totalizar, penetra a todos nós. Esta é um palco onde se desenrolam os nossos

dramas típicos nacionais, no qual esta é uma personagem importante. Da Matta se

vale do mito popular de Pedro Malasartes para caracterizar o malandro, figura que

emerge quando “é difícil dizer onde está o certo e o errado, o justo e o injusto” em

seu comportamento (1997, p.276). Malasartes é alguém que só possui sua força de

trabalho para vender e, em uma de suas estórias, se vê na situação de sustentar

seus pobres pais. Ele consegue um emprego, mas seu patrão faz-lhe exigências

absurdas, que obrigam o empregado usar de “malandragens” para contentá-lo.

Espremido pelas exigências do trabalho e do dinheiro, Malasartes se vê obrigado a

pequenas desonestidades com seu patrão cruel e poderoso, a fim de não despertar-

lhe a ira e seguir trabalhando.

Da mesma forma, o músico profissional carioca, se vê por um lado, tendo

que habitar o mundo moderno do trabalho e dos compromissos profissionais,

embora estes, por outro lado, não lhe garantam estabilidade profissional e

financeira. Em um mundo fortemente hierarquizado, onde produções de “artistas

de sucesso” e produtores chefe de esquemas comerciais dos meios de

comunicação não estão acostumados a ouvir um “não” como resposta, o músico

equilibra compromissos profissionais sendo sempre “político”, mantendo um

sorriso no rosto e a posição infantilizada que consiste em simplesmente aceitar

qualquer chamado profissional que provenha de um lugar de prestígio, mesmo que

isso ocasione a falta em seus compromissos agendados anteriormente.

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Esta situação, portanto, obriga o músico a agir como um malandro,

saltando entre a linha do certo e do errado ao assumir compromissos profissionais

que não pode cumprir. Ao invés de agir de forma impessoal moderna, em acordo

com a ideologia individualista (DUMONT, 1983), recusando o compromisso com

os quais não possa arcar e deixando ao empregador a escolha de convidar ou não

um outro profissional, ele chama para si, pessoalmente, esta tarefa. Incapaz de

negar o pedido de trabalho, que é entendido como um chamado pessoal, ele

próprio decidirá quem será o seu “sub” no trabalho preterido, preferencialmente

alguém que lhe deva lealdade, e que não procurará tomar seu lugar futuramente,

em uma lógica hierarquizante que penetra nossa sociedade e também esta

profissão (DA MATTA, 1997). Até mesmo a nomenclatura usada, “subs”, deixa

ver o caráter hierárquico destes esquemas profissionais.

Ricardo também é um músico igualmente requisitado, tendo trabalhado

desde os anos 1980 com os artistas mais importantes da MPB como percussionista

ou baterista. Criado no Rio de Janeiro, o músico assim se definiu, no começo da

entrevista: “Eu sou o cara da zona sul que nasceu em Ipanema e que toca do seu

jeito o samba tradicional.” Ricardo apresenta uma postura ativa intelectualmente,

faz psicanálise regularmente, e fala com fluência de suas impressões pessoais

sobre as coisas, que incluem muitas observações sobre a profissão de músico.

João e Ricardo demonstram um grande amor pela carreira, nestas

entrevistas concedidas a um músico mais novo como eu, que talvez parecesse a

eles estar traçando um “plano B” profissional, ao estudar ciências sociais. Embora

eu também me identifique sempre como músico e jamais tenha criticado a

profissão nas entrevistas, o próprio fato de eu estar fazendo perguntas sobre a

carreira de músico talvez seja sentido por eles como uma problematização da

mesma, que seria índice de alguma insatisfação minha. Imagino que seja natural

que o músico entrevistado pense sobre este pesquisador-músico: se você está

satisfeito com a carreira por que não vivê-la simplesmente, ao invés de “estudá-

la”? Afinal de contas esta turnê nos hospedava em hotéis 5 estrelas ao redor do

Brasil, acompanhando uma das grandes cantoras de MPB e com boas condições

financeiras de trabalho. Situa-se, portanto, neste contexto o tom otimista de ambos

com a profissão onde são respeitados e estão no topo da carreira de instrumentista

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acompanhador de artistas da MPB. Estes músicos não são, por certo, os “músicos

comuns” de Perrenaud (2007), mas constituem uma elite no meio musical.

Quando fiz a João, que cria três filhos, uma pergunta padrão da entrevista

sobre “Como ser músico afeta sua vida familiar?”, ele me respondeu com uma

tocante declaração de amor à profissão e à música de maneira geral:

A música em relação à minha família não atrapalhou em nada. A música no

ambiente familiar dá muita tranquilidade, ajuda muito, me lembro do meu pai.

Toda cidade que tem música é uma cidade feliz. A música transforma uma

sociedade. A música pode ser um acalanto, pode ser um conforto, pras

pessoas que estão sofrendo. Nas guerras sempre se levou música pros militares,

sempre tinha uma banda de jazz. Então não atrapalha em nada. E minha família

vê como é importante o amor que eu tenho pela minha profissão, e junto com

esse amor eu levo conforto pra eles. Meus filhos dizem: - 'Maravilhoso, meu pai

é tudo, porque meu pai traz música pra casa, a gente canta, a gente dança, e traz

alimento, traz roupa, traz conforto, traz moradia'. É uma junção maravilhosa do

lado profissional com o lado pessoal.

O contrabaixista Roberto, que tinha 33 anos à época da entrevista, também

tem acompanhado grandes cantores da MPB, como Milton Nascimento e

Martinália. No entato, por ser mais jovem, ele não acumula ainda a extensa lista

de serviços prestados à música brasileira de João e Ricardo. Vemos nele uma

posição não tão otimista sobre a profissão de músico no Rio de Janeiro hoje:

Já estive muito insatisfeito (com a profissão de músico), mas ultimamente eu

tenho gostado mais. Quando você vai pegando trabalhos melhores... quando você

está roendo o osso é duro. Tocar no boteco da esquina pra ganhar aquela miséria,

tendo que tocar quatro sets e ainda ouvindo nego reclamar na sua orelha é

horrível. Mas daí quando você começa a fazer trabalhos melhores a brincadeira

começa a ficar melhor, né. (risos)

Hoje em dia eu curto muito, mas vou ser sincero: eu não penso muito no futuro.

Porque eu sei que o músico um dia fica velho e daí tem algumas dificuldades

de trabalhar. Se a pessoa deixar a peteca cair ela pode ter dificuldade. Ou não,

ela pode continuar... mas enfim, você mais velho não vai ter o mesmo gás que

uma pessoa mais nova. Você vai começar a não querer fazer algumas coisas, e a

exigir mais e enfim, isso vai fazendo com que você seja menos procurado, muitas

vezes. Então eu vivo o presente. Eu gosto do que eu faço como músico e eu tento

fazer cada vez melhor pra poder estar em gigs melhores.

Tem amigos meus que não conseguiram sair daquele padrão de barzinho e

desistiram, foram fazer outras coisas. Quando a pessoa vê que não vai sair

daquilo ela vai, sei lá, pilotar helicóptero ou outra coisa qualquer. Então a

música tem essa coisa meio ambígua. Você pode se dar bem ou se dar muito

mal. Se dar muito bem é difícil, assim, financeiramente. Mas pelo menos, se

você já está em trabalhos bons você ganha razoavelmente bem, paga as

contas pelo menos e faz o que gosta. Hoje em dia eu estou gostando - acho que

eu não estou completamente satisfeito não, mas eu estou gostando de ser músico.

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Roberto destaca o problema de “ficar velho” em uma profissão em que a

grande maioria das contratações, seja por bares e restaurantes, seja por grandes

espetáculos da MPB, se dá de maneira informal e, portanto, sem nenhuma garantia

trabalhista, como a aposentadoria. Acresce a isto o fato de que, no chamado show

business, a juventude e a beleza física são valorizadas, o que pode se converter em

problema para o músico mais velho, que ocasione que ele “deixe a peteca cair”,

tendo um fim de carreira descendente.

Roberto assinala ainda o afunilamento na carreira, que é grande: a maior

parte dos músicos não passa da fase de “músico comum” (PERRENOUD, 2007),

que tem de “roer o osso” em barzinhos, durante a madrugada, em troca de péssima

remuneração e pouco respeito profissional. No entanto, como não há “plano de

carreira” na profissão, conforme me disse certa vez um músico mais velho, a

ameaça de terminar no barzinho nunca se dissipa plenamente, em uma atividade

instável em muitos sentidos, que depende principalmente de relações pessoais, e

tem um grau muito baixo de institucionalização.

Um músico amigo me deu a seguinte declaração durante o ensaio para um

show no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em julho de 2013, que transcrevo a

partir de meu diário de campo:

Na velhice ninguém te chama. O músico fica chato, faz reclamação, fica mais

lento. Fica mais exigente. Mesmo um músico importante feito o Paulo Moura

morreu duro, sem um tostão. A mulher dele teve que pegar um empréstimo alto

pra pagar o hospital, porque ele já ia ser despejado pro hospital público! Altamiro

Carrilho (flautista e compositor) morreu duro, fudido, não tinha dinheiro sequer

pro remédio. Foi o Dudu da flauta que conseguiu os remédios por um ano junto

ao laboratório, que era de um parente dele. Como diz um amigo meu: 'no Brasil

músico não morre, sucumbe’.

Sobre este aspecto, diz Ricardo:

Não existe (estabilidade na profissão). É autônomo, é autônomo. É assim.

Fotógrafo não tem, bailarino não tem, ator não tem. Eu posso levantar aqui

profissões que são muito piores do que a nossa ou iguais a nossa nesse aspecto é

o resultado é vinte vezes mais difícil. Entendeu? Um bailarino ou um ator é muito

mais corajoso do que a gente. A chance de um ator é muito menor do que a nossa.

Então essa é a vida do autônomo. Isso está incluído na nossa opção: não ter

estabilidade. Ninguém aguentaria. Arranja um emprego como músico que você

vai ficar três meses e vai dizer: ah, vou embora dessa merda. Preciso tocar com

outras pessoas, preciso tocar outras músicas. Pelo menos eu sou assim.

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Tem um grande emprego de músico no Brasil, o melhor emprego, que é a banda

do Jô Soares. Aquele é o melhor emprego de música do Brasil: os caras tem

carteira assinada, tem seguro de saúde, tem um salário...

Gabriel: Se te chamassem você entraria?

Ricardo: Não! Acho que não. Talvez daqui uns vinte anos...

Ricardo diz que a estabilidade na profissão é algo tão distante da realidade

que sequer seria desejada pelos músicos. Tem uma atitude que poderia ser

classificada de liberal: a carreira é uma opção pela instabilidade, e quem a escolhe

deve saber disso de antemão. Não parece haver desejo algum de que a profissão

seja capaz de prover mais estabilidade financeira aos músicos que dela vivem,

conforme ocorre em países como os EUA ou França, onde as associações de

músicos tem mais força e a categoria é mais regulamentada, com a prática regular

de contratos profissionais, raros aqui. Ele assinala ainda um contínuo entre

profissões artísticas mais estáveis e mais instáveis, assinalando que, se a carreira

de músico oferece esta instabilidade intrínseca às escolhas do “autônomo”, por

outro lado ela seria mais estável que outras carreiras artísticas, como as de

bailarino ou ator.

O baterista narra um encontro de bateristas promovido na sede Ordem dos

Músicos do Brasil no Rio de Janeiro, o órgão responsável por regulamentar a

profissão no país. Ele acusa o problema da diversidade muito grande das

atividades musicais, o que dificulta um entendimento dos músicos enquanto

“classe” trabalhista:

O que eu tenho em comum com um baterista que toca numa churrascaria? Nada.

Eu toco bateria e ele também. Vou falar isso... Quando começou a ter esse troço

de bateria eletrônica me convocaram pra uma reunião na Ordem dos Músicos

contra a bateria eletrônica. Diziam: porque a bateria vai tomar nosso emprego.

Quando eu cheguei lá tava assim: eu, o baterista do clube do baile de São

Cristovão, o baterista da churrascaria gaúcha, o baterista do Djavan. (...) Eu falei,

meu deus, o que é que nós temos em comum? E realmente, esse cara da

churrascaria gaúcha vai dançar semana que vem. Isso nunca foi uma ameaça pra

mim.

Comparando essas declarações recentes do baterista e percussionista

Ricardo com as de Édison Machado, em entrevista de 1974251

podemos notar a

diferença de perspectiva. No momento em que concedeu a entrevista, Édison

Machado sentia a retração do mercado de trabalho para os músicos do samba

251

INSTITUTO MOREIRA SALLES, 1974.

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moderno. Ele, que havia sido talvez o mais importante baterista da bossa nova e

do sambajazz, chegou a publicar em 1972, um anúncio no jornal O Globo,

anunciando seus serviços como músico. Agora, prestes a se mudar para os EUA,

onde viveria durante 14 anos, alardeava nesta entrevista que havia vendido sua

bateria por falta de dinheiro252

. E comentou sobre a situação do músico idoso.

A pior coisa prum artista, um músico, é você ficar com uma idade e ter de

recorrer ao INPS mesmo. E você não fica satisfeito porque acha que tua arte, na

época dela, dava um dinheiro melhor do que o que você está recebendo agora, já

velho. Mas se todo mundo continuasse gravando, o público não esqueceria essas

pessoas, que só alguns críticos que viveram nessa época é que lembram.

Vamos estimulá-los, não vamos dizer que eles estão acabados, estão velhos. Não

vamos dar aposentadoria pra eles não, porque pra artista isso não existe. Não está

Segovia aí nas bocas, Bernstein, tá todo mundo aí. Mas nos Estados Unidos estão

músicos brasileiros como o Bola Sete que, eu acredito, se estivessem aqui,

estavam aposentados pelo INPS. Tem muita gente que pensa que esse negócio de

música é o mesmo que um cara que diz: vamos fazer agora caixote triangular. O

outro: triangular? Ele: é, está dando muito dinheiro, vamos fazer. Mas em música,

não é isso. Tem que haver, digamos, respeito pelos mais velhos - como, aliás, em

todas as artes - as pessoas mais antigas que você, na arte que você quer continuar.

Aí, sim, cria o embalo - sabe? - cria a bola, aquela bola de neve que vai crescer,

vai virar uma avalanche, vai virar uma montanha. E derrubar uma montanha é

muito mais difícil do que derrubar uma bolinha de neve. Mas não houve isso,

sabe? Não cresceu, não deixaram crescer. Fizeram um negócio na base: tá dando;

não tá dando, então para. (...) Você veja, até cantores como Caubi Peixoto,

Orlando Silva, que os hospitais pediam pro homem ir lá cantar, cantor das

multidões mesmo. Acabaram, cortaram, tiraram. Então, eu queria que se

construísse alguma coisa agora. Ainda está em tempo. (INSTITUTO MOREIRA

SALLES, 1974)

Ao contrário de Roberto, que aborda a questão do músico mais velho sob

um ponto de vista individual, de sua carreira, Machado adota um tom coletivo,

que diz respeito à perspectiva profissional dos músicos brasileiros. A certa altura

do depoimento, observa-se que Machado fala na primeira pessoa do plural,

quando diz que “nós”, os músicos, deveriamos “estimular” os mais velhos, e não

dizermos “que eles estão acabados”. Esta afirmação parece conter uma crítica à

esta nova fase da indústria cultural que surgia à época, com a promoção maciça do

segmento “jovem”, e o consequente desemprego entre músicos da geração

anterior, já abordado aqui.

252

Segundo Machado, em entrevista a Luis Carlos Maciel: “Eu não sei, Maciel, como é que vai

ser. Daqui uns três meses em diante, eu não sei como é que vai ser. Por enquanto estou vivendo do

dinheiro da bateria. E eu não tenho mais a bateria pra ganhar mais dinheiro (INSTITUTO

MOREIRA SALLES, 1974).

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290

O exemplo irônico do “caixote triangular”, que encarna uma ridícula

novidade comercial, valorizada apenas por ser o que “está dando muito dinheiro”

é uma crítica ao foco da indústria cultural nos novos produtos deste mercado

musical. O caixote triangular encarnaria provavelmente, no entendimento de

Machado, o rock’n roll, então “trabalhado” pelas grandes gravadoras por ser a

novidade que alavancou altas vendas de produtos culturais no recém-descoberto

segmento jovem (MORELLI, 1991).

O apelo de Machado pela valorização dos músicos mais velhos,

desamparados pela indústria cultural brasileira a cada nova moda que surge – ao

contrário do que aconteceria nos EUA, segundo o baterista, onde os músicos mais

velhos teriam seu espaço no mercado – não passa, no entanto, pela via da

previdência social e do amparo estatal. Este músico não via no “governo”, mas

nos músicos e na sociedade civil, uma possibilidade de organização que, ao

valorizar os músicos mais velhos, pudesse criar esta “avalanche” de música que

atravessaria gerações. Quando questionado pelo entrevistador Maciel sobre o

mercado de trabalho da “noite” para músicos, ele responde fazendo menção à já

referida diáspora dos músicos do samba moderno. Em seguida, comenta sobre o

papel reduzido que caberia ao “governo” em relação aos problemas dos músicos,

em seu entendimento:

Maciel - E a noite, aqui, não está acontecendo nada para os músicos.

Edison - Nada, nada, nada. Está todo mundo indo embora. O Juarez foi pra

Europa. Outros também. E ninguém faz nada 'Esse cara vai embora?' Não, ele

tem de ficar aqui, vamos dar um apartamento pra ele, ele não pode ir embora.

Esse cara faz a gente ser gente. É um artista. Segura ele aqui. Mas quem faz isso?

Não tem, não existe. Os caras riem de tudo. As coisas acabam e eles riem. Nunca

vi coisa assim. Os jornais fecham, os teatros viram bancos, e eles só riem.

M - Quem pode dar um jeito então? O Governo?

E - Não acho que tenha de ser o Governo. O Governo não tem nada com isso.

Tem de ser nós mesmos. O Governo é o Governo, é outro negócio. Não foi o

Governo que fez a Bossa Nova. Não foi o Governo que levou a Música Brasileira

pra América. Governo é outra coisa. O que compete ao Governo é depois fazer

estátua pras pessoas que fizeram as coisas.

Esta denúncia da situação do músico brasileiro de então contrasta com as

declarações de Ricardo, por um lado, na medida em que Machado acusa a situação

profissional desfavorável como algo que mereceria uma ação coletiva por parte

dos músicos, embora não por parte do “governo”.

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291

Ricardo, no entanto, quando compara a profissão de músico hoje com os

anos 1980, quando entrou no meio profissional, acusa criticamente a grande

mudança na carreira ocasionada pelo surgimento dos sítios de compartilhamento

de musicas pela internet e a consequente falência dos antigos esquemas comercias

das gravadoras majors.

Eu acho que essa coisa estranha de hoje em dia, de não se pagar por música, da

música ter ficado de graça, como declínio da venda de discos, um declínio da

forma como se trabalhava, entendeu? É porque eu não sou um estudioso e sou

preguiçoso, mas a sensação que eu tenho é que estamos vivendo uma época

que de alguma forma se assemelha ao fechamento dos cassinos, ao

fechamento da rádio nacional. São mudanças, são cortes radicais em que

uma porrada de gente se fode, não tem jeito. (...)

A referência feita ao “fechamento dos cassinos” e da Rádio Nacional, que

marcam o fim da era do rádio é especialmente interessante. Em outro trecho da

mesma entrevista, ele afirma:

As coisas estão diferentes. Eu vi o Chico Buarque dizendo, no filme do Vinícius,

achei lindo que ele acha que não teria lugar pro Vinícius morar nesse mundo de

hoje em dia. E ele tem razão. Essa é a passagem da grande industrialização,

entendeu? É aquilo que eu falei, começou a se fabricar muito equipamento. Nos

anos 60 não tinha equipamento. (...) Ali é uma passagem muito forte, dos 60 pros

70, dessa industrialização. Da venda de discos, dessa indústria de show e de

música.

O músico identifica, portanto, as grandes fases da indústria cultural em que

trabalha: assim como a era da televisão sucedeu a era do rádio anterior,

desempregando os músicos das orquestras das emissoras e dos cassinos, a era da

internet sucede hoje a era da televisão, com prejuízo para os músicos profissionais

inseridos nestes esquemas, dentre os quais ele está incluído. É comumente falado

entre músicos deste meio que a profissão teve uma grande decadência que

acompanhou a queda das grandes gravadoras, como consequência da referida

ascensão dos sítios de compartilhamento gratuito da internet. Se as gravadoras,

chamadas de majors, eram poucas, e remuneravam a um número restrito de

profissionais através das gravações, quase sempre em esquema freelancer, estes

podiam ser mais bem pagos, ainda que nesta “bolha” de duração relativamente

curta, concentrada em torno década de 1980. Neste período alguns músicos do Rio

de Janeiro (cidade que concentra parcela considerável da produção nacional)

puderam viver dignamente, ou até mesmo com um padrão financeiro elevado.

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292

Transcrevo abaixo um trecho do meu diário de campo de abril de 2012,

onde relato uma conversa sobre este assunto no camarim de um teatro. O diálogo

se deu entre os músicos da banda, que incluía Ricardo e João, além do técnico de

som, Antônio e do roadie, Carlos, todos muito experientes profissionalmente.

Ontem no camarim do teatro, em Recife, conversamos sobre diferenças entre

antes (anos 80, 90), quando Ricardo começou se profissionalizar e hoje, nos

shows de artistas. Havia longas temporadas de grandes artistas, de um a três

meses, no Canecão e nos grandes teatros do país. Segundo Ricardo, que foi quem

mais falou, as turnês começavam no sudeste e tinham que encher para que depois,

devido ao sucesso nesta região, fizessem turnês longas pelas grandes capitais do

Brasil. Fazer somente um show em Recife, três em SP e três no Rio, como nós

fizemos, era algo incomum. Segundo o técnico de som, Antônio, as viagens pelo

nordeste dos grandes artistas de MPB geralmente duravam mais de um mês. Hoje

somente Chico Buarque e Marisa Montes, que fazem turnês com mais de cinco

anos de espaçamento entre elas, conseguem o mesmo número de shows que

“antigamente”, graças à expectativa criada por turnês tão escassas. Eu perguntei:

mas pra onde foi todo esse dinheiro? Vocês deviam comprar um apartamento por

turnê nessa época. Ricardo respondeu, rindo (todos rindo): não me pergunte pra

onde foi esse dinheiro, eu não acumulei nada. No que todos concordam. (Um

músico muito bem sucedido me relatou que, com o dinheiro de gravações e

shows, nos anos 80, pagou um ano de estudos de música em Boston, coisa que

seria impensável hoje, segundo ele próprio. Ele atribui a esta “fartura” mais às

gravações que aos shows, diferentemente de Ricardo e do papo no camarim)

Ganhava-se tão bem por apresentação quanto hoje, segundo Ricardo, duas

tabelas253

. Perguntei o porquê da decadência no número de shows. Ricardo

respondeu em duas partes: primeiro, houve redução do público – estes artistas de

MPB com quem trabalhamos não atrairiam mais tanto público. Alguém (Carlos?)

disse que os ingressos são mais caros e que as casas de show são maiores.

Ricardo falou no Rock in Rio levantando uma crítica geral à decadência da cultura

brasileira: hoje tudo é “evento”. No Rock in Rio as pessoas não vão para ver um

show (assim como em todos os shows hoje). As pessoas vão para um evento,

onde tem diversos palcos, com diversas atrações (eu falei em parque temático,

Disney, e ele concordou). As pessoas não querem mais “pensar”, segundo ele. Os

shows são uma saída à noite (Carlos também concordou), um programa. Ricardo

critica uma ideia, que seria hegemônica hoje no mundo, de que tudo é “cultura”.

Críticas a mercantilização da música, à falta de pensamento.

Ricardo levanta a questão da diminuição da marginalidade desta carreira,

um fator que diferencia positivamente o profissional de hoje do músico de

sambajazz que atuava antes dos anos 1970. No entanto ele considera que esta

diminuição do estigma inflou o mercado de trabalho:

253

Refere-se à “tabela” do Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro que, a época da entrevista,

recomendava pouco mais de R$900,00 reais por show, e hoje recomenda R$1.190, segundo o site

deste sindicato, disponível em:

http://www.sindmusi.org.br/site/texto.asp?iidSecaoPai=11&iidSecaoSelec=25 Acesso em:

24/07/2015.

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293

Então eu acho que ficou muito difícil pro músico (com a decadência das grandes

gravadoras). E ainda tem um outro agravante: a profissão, que era maldita, e

que eu acho que até os anos 70, anos 70 já é um final disso, você escolher ser

músico é uma decisão muito difícil. Hoje dia, de um tempo pra cá, tem um

glamour. Ficou um profissão glamourizada, o sucesso, a celebridade. Hoje tem

muita gente que faz música, que a pessoa quer ser famosa. Entendeu, que não é

uma necessidade profunda, eu vejo isso. E ficou fácil, é fácil fazer música, mas

não viver de musica. Eu não acho que a profissão melhorou. Acho que tem mais

gente ganhando muito pouco dinheiro.

O músico aponta aqui uma cisão geracional. Se Édison Machado era

chamado de Édison “Maluco”, e chegou a ser preso por alguns dias por abrigar

um conhecido, fugitivo da ditadura militar, em seu apartamento na Rua Prado

Júnior, em Copacabana, RJ254

, o estigma de “maldito” associado aos

comportamentos rebeldes dos músicos entrou em franca decadência na profissão.

Neste sentido, os músicos das gerações posteriores se aproximam dos “quadrados”

de Becker (2008), sendo mais “políticos” que “malucos” em seus compromissos

com a música. A frase de um instrumentista, citada por Becker, poderia ter sido

dita por um dos músicos de sambajazz, mas soaria deslocada em um músico

profissional do Rio de Janeiro de hoje: “Sabe, os maiores heróis no meio musical

são os grandes excêntricos. Quanto mais maluco um cara se mostra, maior ele é, e

mais todos gostam dele”. (2008, p.96)

Hoje, conforme se viu, ser bem humorado e agregador, ou “político”, se

mostra mais importante para a popularidade do músico entre seus pares.

Outro ponto importante de distinção reside na oposição entre arte e

comércio, cara aos músicos do sambajazz, conforme apontado, mas que parece

estar em decréscimo entre músicos mais jovens. Segundo José Alberto Salgado e

Silva (2005b), nesta etnografia de músicos estudantes de graduação em música no

Rio de Janeiro:

A constatação de que a prática musical se manifesta em uma variedade de modos

de atuação e profissionalização faz considerar a existência de estruturas

organizadoras do campo e, ao mesmo tempo, de certa margem de invenção, nas

ações dos músicos-estudantes. Entre eles, a discussão sobre música e profissão

mostra complexidade e não cabe nos termos da dicotomia arte-comércio, nem se

define puramente por classificação dos papéis que o músico desempenha

(professor, arranjador, instrumentista, regente etc.) (SILVA, 2005b, p. 268)

254

Segundo o pianista Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese.

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294

Nesta citação observam-se dois pontos de descontinuidade na profissão

hoje com relação ao período do sambajazz. O primeiro, já apontado, reside na não

oposição entre arte e comércio. Esta era uma dicotomia definidora de valores para

os músicos do movimento. O segundo refere-se ao aumento do escopo de práticas

profissionais do indivíduo. Se a carreira de Édison Machado poderia ser definida

como de “instrumentista”, exclusivamente, hoje é raro encontrar músicos

profissionais que não sejam também professores de música, arranjadores,

“trilheiros” (que fazem trilhas sonoras de audiovisuais), e assim por diante. Isto

ocorre em parte devido à diminuição da oferta de shows, comentada na conversa

de camarim acima, que obriga o músico a procurar outras saídas que não a de

instrumentista.

Neste sentido, os músicos etnografados nesta pesquisa, Ricardo e João,

que entraram profissionalmente no mercado a partir da referida “bolha”

caracterizada pela boa remuneração dos instrumentistas ligados às gravações de

grandes majors, são mais próximos de Machado que dos músicos mais jovens,

que entraram no mercado já nesta era da internet. Eles podem viver

exclusivamente de música, estando bem posicionados no mercado de MPB. Este

mercado, no entanto, corre o risco de acabar com o desaparecimento desta geração

de artistas, deixando-os desamparados na velhice, conforme Ricardo comenta em

outro trecho da conversa de camarim citada acima:

Ricardo pergunta, retoricamente: quem são os grandes artistas de hoje? Quando

esta geração morrer (de Caetano e Chico), quem poderemos colocar no lugar,

quem serão os grandes do futuro? (...) Com quem trabalharemos quando esta

geração da MPB falecer ou for velha demais pra trabalhar?

Mesmo estes instrumentistas que, por sua competência, chegaram aos

degraus mais altos da carreira de músico “acompanhante” de artistas famosos,

sendo frequentemente requisitados para trabalhos relativamente bem

remunerados, parecem temer esta passagem do tempo, com a instauração de uma

nova fase da indústria cultural, com novos canais de produção musical que os

desempregaria, conforme já ocorreu a parte dos músicos que viveram a profissão

nos anos 1980.

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Conclusão

A música é, no entanto, uma metáfora plausível do real. Não é nem uma atividade

autônoma, nem um indicador automático da infra-estrutura econômica (…). Sem

dúvida, a música é um jogo de espelhos em que cada atividade é refletida,

definida, registrada e distorcida. Se olharmos para um espelho, vemos apenas

uma imagem do outro. Mas às vezes um jogo de espelho complexo produz uma

visão rica, porque inesperada e profética. Às vezes ele não produz nada além do

redemoinho do vazio. Mozart e Bach refletem o sonho de harmonia da burguesia

antes e melhor do que toda a teoria política do século XIX. Há nas óperas de

Cherubini um zelo revolucionário raramente alcançado no debate político. Janis

Joplin, Bob Dylan e Jimi Hendrix dizem mais sobre o sonho libertário da década

de 1960 que qualquer teoria da crise. (Jacques Attali, 2009, p. 5 e 6).

Observou-se nesta pesquisa, através da análise dos depoimentos e das

atividades profissionais dos músicos de sambajazz, que sua prática está

musicalmente integrada à teoria. Em sua música (e não apenas nas letras de

música) está presente seu pensamento social. Se o pensamento ocidental cindiu

também as práticas musicais a partir do dualismo entre corpo e alma, que se

desdobra nas oposições correlatas entre trabalho manual e trabalho intelectual, o

sambajazz descreve um percurso integrado, que não se guia por estes dualismos.

Ele parte dos salões de dança das tradicionais gafieiras rumo ao Beco das

Garrafas, na “noite” de Copacabana, RJ, onde se experimentavam as novas ideias

musicais e sociais que caracterizavam o samba moderno de então. Ele descreve,

portanto, um movimento que tem por base a corporalidade e a dança, utilizando-se

da performance para chegar à criação intelectual em música. Nesta trajetória o

sambajazz se valeu da improvisação e do “balanço” da “cozinha” como tática

musical de sobrevivência frente às grandes estratégias nacionalistas ou comerciais

(DE CERTAU, 1994).

Uma conclusão que se fortalece ao longo deste percurso entre os músicos

do sambajazz é a ideia que, neste movimento, não há divórcio entre música e

sociedade, antes pelo contrário, os sons musicais são indissociáveis do seu

“contexto”. Para dar conta de um mundo da música assim concebido, faz-se

necessária uma “antropologia musical”, mais do que uma musicologia por um

lado, como suporte analítico para uma antropologia por outro (SEEGER, 2015).

O livro O Artífice (2009), de Sennett, foi resumido pelo autor em uma

afirmação: “fazer é saber”. Esta também pode ser considerada uma conclusão

central a esta tese, abordada aqui por outro ângulo. Segundo Sennett: “A

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civilização ocidental caracteriza-se por uma arraigada dificuldade de estabelecer

ligações entre a cabeça e a mão, de reconhecer e estimular o impulso da perícia

artesanal” (2009, p.20). E, no entanto, ao pesquisar, praticar música ou conviver

com músicos percebe-se como as soluções “técnicas” do tocar são também

soluções “intelectuais”; e como as organizações dos sons refletem e modificam as

organizações humanas, sendo parte delas255

.

Portanto, um conceito caro a esta tese é a ideia de que “pensar

profundamente” a música é algo que ocorre em consonância com o fazer musical.

Como a música jamais se descola do “social”, podemos ver o pensamento social

dos músicos em sua prática. Os músicos imprimem ideias e pensamentos em seus

sons que são, ao mesmo tempo, causa e consequência de sua técnica. Esta não é

jamais “maquinal” mas, pelo contrário, é o resultado da prática continuada,

pensada e repensada no ato musical.

Em seus patamares mais elevados a técnica deixa de ser uma atividade mecânica;

as pessoas são capazes de sentir plenamente e pensar profundamente o que estão

fazendo quando o fazem bem. (SENNETT, 2009, p.30)

Entenda-se sob esta perspectiva as inovações em técnicas instrumentais

realizadas por músicos que fizeram o sambajazz, como a invenção do “samba do

prato”, atribuída ao baterista Édison Machado. Este músico central para o

movimento estudado criou um jeito “moderno” de tocar samba na bateria que se

tornou um padrão de execução. Esta inovação, no entanto, foi mais do que

somente uma nova técnica: ela significou uma solução prática/teórica que

viabilizou no instrumento sua afirmação pessoal de liberdade criativa contida na

sua forma desenvolta de tocar, com grande volume sonoro. Orgulhoso de sua

expressão enquanto solista de um instrumento tradicionalmente relegado ao

acompanhamento ou à “cozinha”, como a bateria, Machado tocava com postura

notável: a cabeça erguida, afirmando sua independência não sem alguma

agressividade. Sua técnica resume e alavanca seu discurso de inversão: a base

toma a frente, o ritmo domina a melodia e a impulsiona. O fundo se transforma

255

Sennett escreve sobre a importância da música em seu livro, a despeito de que seu tema não

esteja circunscrito a ela: “Muitos dos estudos de caso de habilidade artesanal dizem respeito à

práticas musicais. Para eles, pude valer-me de minha antiga experiência no trabalho com a música

(...)” (2009, p.9)

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em figura e o musical tem implicação social: o baterista, que tradicionalmente só

“acompanha”, se torna um vigoroso líder de banda.

O “samba no prato” significou ainda, no caso de Machado, a possibilidade

de tocar a tradição brasileira contida nas formulas rítmicas de samba conjugada à

modernização na condução do prato, característica do jazz moderno. A técnica é

então mais do que a coordenação corporal contida no ato de tocar um instrumento.

Ela se apresenta como uma série de procedimentos físicos, é certo, mas que

resultam e reforçam a busca intelectual de coordenar o orgulho de exercer a

atividade musical e o desejo de ser brasileiro e tocar o ritmo do samba, sem

prescindir da música mais “moderna”, o jazz, contido no jeito de tocar samba.

Quer-se ressaltar aqui que coordenar o samba e o jazz inventando uma prática

moderna de tocar bateria significava para este músico manter a identidade e

tradição brasileiras do samba mas, ao mesmo tempo, exercer a liberdade de tocar

“moderno”, improvisando sobre a canção de rádio e televisão de forma a profanar

suas imposições comerciais. (AGAMBEN, 2007).

Édison Machado é citado nesta conclusão porque ele resume o sambajazz

sob os aspectos elencados acima. A falta de reconhecimento e de homenagens a

ele, somados ao seu fim descendente nos 1980, só reforçam a importância de

destacá-lo aqui enquanto um grande artista criador que foi. Rebelde, maldito,

talvez “irreverente” demais, a personalidade de Machado não foi pródiga em

promover - de forma “política” - a sua música. No entanto, ele foi muitas vezes

descrito como “o mais importante baterista da história do samba moderno”

(VELOSO, 2002, p.79), e suas levadas à bateria estão na base tanto da bossa nova

quanto do sambajazz256

.

A grande importância da bateria na música popular urbana também é mais

um motivo para se lançar luz sobre Machado. Sabe-se que este instrumento é

presença fundamental em quase todas as gravações importantes de música

brasileira da segunda metade do século XX, e Machado foi talvez o mais

destacado formulador do jeito moderno de se tocar samba à bateria no Brasil,

256

Esta afirmação se refere, especialmente no caso da bossa nova, às suas levadas de bateria

presentes no primeiro álbum de Tom Jobim, The composer of Desafinado plays (1963). No caso

do sambajazz muitas gravações suas trazem o típico “samba no prato” de Machado, que se tornou

o padrão de levada de bateria no movimento.

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renovando não apenas este instrumento, mas todo o papel da seção rítmica no

samba moderno.

O sambajazz implica, portanto, em uma valorização da seção rítmica (ou

“cozinha”) e dos instrumentos graves, ou seja, do que está “em baixo”

(BAKHTIN, 1999), como um ponto de partida a fim de “balançar” as “altas”

melodias e harmonias, nesta sociologia dos instrumentos (LEHMANN, 2003)

aplicada ao samba moderno. Este movimento se funda sobre a dança da gafieira,

sobre a elaboração intelectual das atividades rítmicas da “cozinha” e da “música

negra” (GILROY, 2001) com foco nos instrumentos de percussão. A tática de

“começar por baixo” impulsionando os ritmos e fazendo dançar as melodias é o

que possibilita a este movimento - fortemente ligado à construção da música negra

das Américas ao longo do século XX - “avançar mais”, nas palavras de Moacir

Santos (FRANÇA, 2007).

A oposição música e palavra - que é também um desdobramento de outras

como entre corpo e alma, razão e emoção - está no centro desta reflexão

justamente por ter sido naturalizada por certa concepção de MPB que contrasta

com a configuração verificada no sambajazz. Este descreve um movimento que

não opõe a palavra ao som musical, mas a incorpora enquanto música. O

sambajazz descarta, portanto, esta formulação bipartida da canção que Vinícius de

Moraes instaura (BAHIANA, 1980, p.184) onde a palavra, pensada enquanto voo

literário, se descola da música entendida como “forma popular” passiva

intelectualmente, um veículo para se atingir a “o povo” ou a “massa”. Se o

sambajazz foi muitas vezes cantado por “canários” como Leny Andrade, Elis

Regina ou mesmo Jorge Ben, neste movimento as palavras e as vozes sempre

estiveram atuando em polifonia integrada aos instrumentos e à base rítmica, e

nunca enquanto “consciência” política ou literária privilegiada sobre a música.

A relação dos músicos de sambajazz com a palavra é, portanto, diversa da

dos letristas da MPB, uma vez que esta não se isola dos sons musicais enquanto

texto, mas é parte destes, e evita-se o seu descolamento. Trabalha-se com a

palavra enquanto música, negando-lhe a purificação como “letra”. Assim,

observou-se a questão da nomeação das músicas e das letras em músicos como

João Donato e Moacir Santos, onde a palavra, longe de ser ignorada ou

desprezada, mereceu um cuidado extremo, a fim de que não se tornasse anti-

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musical, ou seja, que instrumentalizasse a música para fins literários ou políticos

considerados mais “altos”.

Na relação com a palavra tem-se um ponto de contato forte da atividade do

sambajazz com a dos músicos e cantores profissionais de hoje: a bipartição entre

letra e música, ou entre cantores e instrumentistas tem entrado em decadência a

partir dos anos 1990, deixando entrever, neste sentido, o isolamento de certa

canção de MPB no panorama histórico da música brasileira. Nesta tradição,

músicos e letristas se confundiam na prática do samba (BAHIANA, 1980), e não

era necessário ser menos músico e mais letrista para se atingir o patamar de um

respeitado intelectual da canção, a exemplo deste percurso comum na geração de

Caetano Veloso e Chico Buarque.

O “fim da canção tal como a conhecemos” acusado por este último em

entrevista à Folha de São Paulo em 26/12/2004, deve ser entendido sob este

prisma: o pensamento que separava inequivocamente a idealizada “canção”

intelectual de uma impopular “música instrumental” teve seu auge nos anos 1970,

mas perdeu sua hegemonia. A nova geração de músicos e cantores, da qual faço

parte junto a colegas como Yamandu Costa, Hamilton de Holanda, Monica

Salmaso, Paulinho Moska e tantos outros não procura separar a “canção” da

“música instrumental”, mas faz música sem opor os sons às palavras. Assim,

observa-se hoje como nos tempos áureos do sambajazz, diversos shows conjuntos

entre músicos e cantores, em que estes últimos dividem com seus colegas a

criação do espetáculo, além dos nomes nos cartazes de divulgação e a atenção da

mídia.

Ao apreender a paisagem sonora do sambajazz a partir de hoje, no entanto,

destaca-se seu caráter de exceção e de liminaridade. Este foi um movimento de

músicos (categoria na qual se incluem os cantores) que elaborou o “samba novo”

da seção rítmica de forma intelectual e ativa, se diferenciando do senso comum

nacionalista que vê no trabalho do percussionista um batuque “natural”

“brasileiro” que “não se aprende no colégio”257

, e que, portanto, não mereceria

atenção “intelectual” criadora como a que recebeu por parte de músicos como

Moacir Santos e Édison Machado. A exemplo de Raul de Souza e Tenório Jr., este

foi um movimento que valorizou a improvisação e a criação no momento em

257

Conforme a canção de Noel Rosa e Vadico, Feitio de Oração.

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detrimento às convenções e automatismos da canção comercial da indústria

cultural. Espanta, portanto, que um gênero com tantas características ditas “anti-

comerciais”, segundo a ideologia da canção comercial de MPB, tenha emergido

enquanto música de sucesso internacional, como no caso de músicos como Sérgio

Mendes e Raul de Souza, entre outros.

Somente o caráter liminar do movimento explica esta particularidade,

surgido em uma fase intermediária desta indústria cultural em que pôde, por um

lado, se basear em toda uma rica cultura que se desenvolveu durante a declinante

era do rádio para renová-la, e por outro lado pôde construir musicalmente o

“samba novo” antes do predomínio de uma fase mais pesada que esta indústria

cultural atingiria a partir de fins dos anos 1960 (MORELLI, 1991). Neste período,

aqui denominado a era da televisão, a concentração do mercado em um número

muito reduzido emissoras de TV e gravadoras majors criaria um ambiente

congruente à “posição hegemônica” 258

(NAVES, 2010) que a canção adquiriu

então na indústria cultural brasileira, onde qualquer outro gênero de música foi

considerada fora dos seus padrões “comerciais”. O sambajazz seria então alocado

à uma guetificada categoria de “música instrumental”, naturalizada como

“impopular”, a despeito do grande sucesso de instrumentistas na tradição da

indústria cultural brasileira como o de Waldir Azevedo259

e de Dilermando Reis

na era do rádio (CAZES, 1999). Os canais desta indústria estariam estão fechados

a ele. Esta situação provocou, conforme se viu, a “diáspora” dos músicos rumo ao

exterior (CASTRO, 1990) que caracteriza o fim deste movimento do samba

moderno, a partir da segunda metade dos anos 1960.

Neste período inicia-se então a construção das categorias sambajazz e

bossa nova que haviam sido vividas como um genérico “samba moderno”, no

período em que floresceram estes movimentos. Assim, o próprio uso do termo

“sambajazz” no título desta tese já remete não apenas ao movimento musical em

seu período de florescimento, mas também a esta construção intelectual das

categorias musicais, realizada a posteriori. Como uma brecha no muro de

258

“A escolha da canção se deve a vários motivos. Um deles - e talvez o principal - é a posição

hegemônica que essa forma musical adquiriu no cenário musical brasileiro em alguns momentos

do século XX (...).” (NAVES, 2010, p.7) 259

Cujo o sucesso estrondoso de suas composições, como por exemplo “Brasileirinho”, que

mesmo hoje é extremamente conhecida, é narrado por CAZES, Henrique, em: Choro - Do quintal

ao Municipal. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.

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contenção de uma represa que vai se abrindo gradativamente até deixar a água

entrar, os desdobramentos do sambajazz, do qual a sua própria denominação é

parte, o penetram e são parte constituinte dele. A prática profissional destes

músicos atuais aqui abordados no capítulo 7 é, portanto, algo que tem na

comparação com a atividade dos sambajazzistas um ponto de vista privilegiado.

Observa-se na atitude destes músicos, orgulhosa de sua produção e

negadora de “comercialismos” musicais, que esta difere em muito do ethos

“político” do músico profissional de hoje abordado. Por outro lado, se esses

músicos realizaram melhor do que nenhum outro o ideal da “música de

exportação” do modernista Oswald de Andrade, construindo sólidas carreiras no

exterior, a exemplo de Sérgio Mendes e Raul de Souza, eles deixaram este

caminho aberto aos músicos brasileiros que os seguiram na profissão. Esta rota do

jazz internacional aberta por eles continua sendo trilhada por uma geração mais

jovem de instrumentistas e cantores.

Apesar de seus serviços prestados à divulgação de uma imagem positiva e

competente do Brasil no exterior – campo em que a música, por sinal, é

certamente mais efetiva do que qualquer outra expressão artística do país, o

sambajazz não foi jamais convertido em grande arte nacional, incapaz de atrair

nem o patrocínio constante do Estado e nem as atenções nacionalistas, como por

sorte o conseguiu o choro e mesmo a bossa nova mais recentemente.

O sambajazz foi, conforme constatamos nesta pesquisa, pouco dado a

formatações “comerciais”, que foram entendidas por seus músicos como

concessões artísticas, a exemplo de Édison Machado. É música direta,

comunicativa, baseada na performance musical exuberante mais do que na

composição intelectual prévia, a despeito da sofisticação de seus arranjadores e

compositores. Se seus álbuns originais são alvo do fetiche de colecionadores,

chegando a atingir altos preços no mercado de LPs raros, estes por outro lado são

apenas um registro de mais uma das muitas performances destes músicos, que em

muitos casos tiveram longa carreira posterior.

Hoje o sambajazz é regularmente praticado e relembrado, no Brasil e no

mundo, ainda que de forma discreta. O movimento é minoritário com relação à

bossa nova, que parece englobá-lo em certas concepções desta categoria. Assim,

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João Donato foi homenageado com um show no Teatro Municipal do Rio de

Janeiro por ocasião dos 50 anos da bossa nova, a despeito dele sempre ter negado

sua participação no movimento e nem ter participado do famoso Concerto de

Bossa Nova do Carnegie Hall, em Nova York, EUA, em 1962.

Moacir Santos também mereceu um festival dedicado a ele em 2014 no

Centro Cultural do Banco do Brasil260

do Rio de Janeiro, com diversos shows,

que coroa as muitas regravações e publicações dedicadas a ele que se seguiram a

sua “redescoberta” no início dos anos 2000, por Mario Adnet e Zé Nogueira.

Raul de Souza, após uma longa temporada vivendo em Paris, hoje mora

em São Paulo e continua em plena atividade profissional como trombonista, sendo

homenageado em diversos shows e eventos261

.

Édison Machado, que sintetiza a rebeldia e a liberdade do músico de

sambajazz, tem sido pouco lembrado, mas algumas homenagens pontuais são

feitas, como as regravações e shows do contrabaixista Marcos Paiva sobre o

repertório do LP É samba novo (1965).

Sérgio Mendes, o mais bem sucedido músico de sambajazz em termos

“comerciais”, e que possivelmente angariou mais prêmios internacionais e vendeu

mais álbuns no mercado internacional que qualquer outro músico brasileiro de sua

geração, continua em atividade nos EUA, como produtor e músico.

Hoje, basta abrirmos o jornal para nos depararmos, nos anúncios de shows

em “tijolinhos” com o termo, em grupos como Sambajazz Trio, ou em lançamento

de CDs que trazem o nome no título, como o speed samba jazz (2001), do pianista

Hamleto Stamato. Ou mesmo andando pelos bares e restaurantes da “noite” do

Rio, onde pude ver certa vez em um quiosque popular do Aterro do Flamengo, RJ,

uma faixa que dizia: “hoje, show de sambajazz”, ao som do pagode que saía das

caixas acústicas para animar os clientes. Mas também se encontra a prática do

gênero em eventos sofisticados, como no lançamento do CD Afrosambajazz no

Parque Tom Jobim, produzido por Mario Adnet e Phillipe Baden Powell. Ou

ainda, no material didático formulado por músicos que dão aulas particulares em

260

O CCBB é um dos mais importantes centros culturais da cidade do Rio de Janeiro, onde

ocorrem shows, exposições, mostras de cinema, muitas vezes internacionais, entre outras

atividades ligadas à cultura. 261

Ele e João Donato participaram da gravação de um CD que promovi durante esta pesquisa e

que será lançado ainda em 2015.

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casa ou em escolas de música, se pode por vezes flagrar o termo sambajazz usado

para nomear certas levadas de samba moderno, especialmente à bateria262

.

Uma pesquisa como esta, se por um lado tem foco em um específico

período de tempo que circunscreve o florescimento do sambajazz do final dos

anos 1950 ao início dos 1960, por outro lado provém de um músico que é, de certa

forma, um herdeiro do movimento. Pois o sambajazz foi também muito

importante para a constituição da profissão de músico no Rio de Janeiro, que tem

sido a minha nas últimas duas décadas. Como é ser músico nesta cidade hoje?

Esta tese não pretende responder plenamente a esta pergunta, por certo, mas

fornece dados para uma futura pesquisa neste sentido. Pois a resposta para esta

questão deve começar com uma retrospectiva da carreira no Brasil, que deve

muito a estes músicos trabalhadores pioneiros na construção do “samba

moderno”.

Qual a importância da música brasileira no mundo hoje? Da mesma forma

seria impossível responder a esta outra pergunta sem recorrer aos músicos do

sambajazz, como Sérgio Mendes, Moacir Santos, Raul de Souza e Airto Moreira,

que levaram o samba moderno a colonizar os colonizadores, inverter o fluxo

centro – periferia, e se tornar a cultura brasileira “de exportação”, por sua

excelência artística e nunca por seus “folclorismos”. O sambajazz está, portanto,

na base tanto da profissão de músico no Brasil quanto da grande circulação de

músicos brasileiros ao redor do mundo, graças ao interesse que eles despertaram

internacionalmente pelo samba moderno.

262

Ver, por exemplo, o material didático editado pela escola de música Souza Lima, em São

Paulo: RIBEIRO, Guilherme & D’ALCÂNTARA, Daniel. Samba-jazz. São Paulo: Editora Souza

Lima, 2008.

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PAULO MOURA e ARMANDINHO. AfroBossaNova. Biscoito Fino, 2009. 1

CD.

PAULO MOURA, ALMA BRASILEIRA. ESCOREL, Eduardo. Bretz filmes.

2012. 1 DVD. 86 min.

PIXINGUINHA e BENEDITO LACERDA. Um a zero. (2min 13s) in: Benedito

Lacerda e Pixinguinha. Rio de Janeiro: RCA/BMG, 1966. 1 LP.

RAUL DE SOUZA. A vontade mesmo. RCA, 1965. 1 LP.

ROSINHA DE VALENÇA. Apresentando Rosinha de Valença. Elenco, 1963.

SARAVAH. BAROUH, Pierre. Biscoito Fino. Brasil: 2005. 1 DVD.

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SÉRGIO MENDES E BOSSA RIO. Você ainda não ouviu nada! Rio de Janeiro:

Philips, 1964. 1 LP (ca. 30 min).

SÍLVIA TELLES. Carícia. Rio de Janeiro: Odeon, 1957. 1 LP (ca. 25 min).

TAMBA TRIO. Tamba. Rio de Janeiro: Philips, 1962.

TENORIO JUNIOR. Embalo. Rio de Janeiro, RGE, 1964. 1 LP.

TERRA em transe. ROCHA, Glauber. Brasil: 1967. 115 minutos.

TURMA DA GAFIEIRA. Samba em hi-fi. Musidisc, 1957. 1 LP.

_______________. Turma da Gafieira. Musidisc 1956. HI-FI 1 - 10 polegadas.

VINÍCIUS DE MORAES e ODETTE LARA. Vinícius e Odette Lara. Elenco.

1963. 1 LP (ca. 41 min).

VIVA VOLTA. PASSOS, Heloísa. 2005. Audiovisual. (ca. 15 mins)

WILSON SIMONAL. A nova dimensão do samba. Odeon, 1964. 1 LP (ca. 32

min).

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Apêndice

Digressão literária: a morte da personagem e o início da sua vida em

palavras

Pode-se percorrer o caminho que leva ao sambajazz começando pelo seu

fim, isto é pela primazia da palavra. Foi também a ascenção da letra na MPB

enquanto meio privilegiado de mensagem política/poética que marcou o fim do

sambajazz. Um conhecido romance de Machado de Assis também tem início em

palavras escritas pelo final da vida da personagem.

As Memórias póstumas de Brás Cubas são narradas por um fictício

“defunto autor” e nao por um “autor defunto”, adverte Machado de Assis (2001).

A distinção é importante: foi preciso que a vida do anti-herói completasse seu

ciclo para que pudesse então assumir a forma de palavras encerradas em um livro.

A sua morte marca então não apenas o fecho da vida, mas também o

desdobramento desta em outra, como autor das Memórias. O surgimento do livro

no qual está contada sua vida, do fim ao começo, só é possível, portanto, graças à

finitude do corpo que a viveu.

Agora, livre das vaidades humanas e das vontades corporais, o anti-herói

pode narrar sua existência sob a forma de palavras descompromissadas com os

antigos constrangimentos mundanos. E, por isso mesmo, tornou-se apto a

confessar verdades, a rir de si mesmo e dos seus próximos, e a admitir as

pequenas crueldades cotidianas que, somadas, formam também um retrato crítico

da sociedade que o gerou. Agora Cubas está livre também da linearidade do

tempo cronológico em que vive uma pessoa de carne e osso, um momento se

desvelando após o outro, sempre em sucessão. Na condição de fantasma autor, ele

pode principiar seu relato pelo fim, e recortar o tempo de sua vida em episódios,

como melhor lhe parecer.

Brás Cubas, autor, decide principiar pelo seu fim. As memórias começam

por um delírio do anti-herói, moribundo à cama, que, de tão fantástico, pode ser

entendido como festejo do nascimento dessa nova existência em palavras. Talvez

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consciente de que nomear um sentido é assassinar todos os demais, Cubas faz da

transição da vida real para a literatura uma festa dos significados, onde as palavras

dancam e se transformam. “Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos

triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa”, diz

ele. Seu “delirio”, com cuja narrativa Cubas pretende jocosamente dar uma

“contribuicao à ciencia”, e algo mais proximo de um mito fantastico prenhe de

desdobramentos da vida dos significados do que de uma história linear em

romance tradicional.

Foi mais o espírito que o corpo a causa de sua morte. A obsessão por uma

“ideia fixa” matou Cubas, deixando-se estar tão absorvido por ela que deixou que

uma fatal pneumonia se instalasse. A tal “ideia fixa” lhe apareceu sob a forma de

um enigma que, sedento de resposta, “deu um grande salto, estendeu os braços e

as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.” (2001). Pois

Cubas sentia que ja chegava ao fim de sua vida de “solteirao” abastado a que

faltava qualquer feito extraordinário. A ideia fixa de Cubas dizia respeito a um

“emplastro anti-hipocondriaco”, que lhe daria, conforme suas palavras, o “gosto

de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim mas

caixinhas de remédio, estas três palavras: Emplastro Bras Cubas.” (2001).

A “ideia fixa” que desencadeou a morte do autor foi, portanto, a “sede de

nomeada”. A busca pelo proprio nome impresso em jornais e o embriao do autor

defunto que há de nascer para o mundo não como um dos grandes romances

brasileiros do século XIX. A delirante transformação de Cubas em um livro

imobilizaria seu corpo, ainda antes de seu falecimento:

(...) senti-me transformado na Suma teológica de São Tomás, impressa num

volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia

esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me

lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o

ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a

imagem de defunto (ASSIS, 2001, grifo meu).

Mas esta condição de livro, que tinha o defeito de lhe prover ainda de um

corpo premido pelas contingências do mundo físico, (ele tinha as mãos cruzadas

“como o fecho de um livro”) sem lhe dar ainda a liberdade das palavras, duraria

pouco, para sua sorte. Pois em seguida o autor, ainda na condição de quase

defunto, e carregado por um fantastico hipopotamo falante rumo à “origem dos

seculos”. Quando la chega, ele nada ve alem da “imensa brancura da neve”, e

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nada escuta alem de um silencio “igual ao do sepulcro”. Seus sentidos são inúteis.

Ele está agora na origem do tempo, de tudo. Lá, lhe aparece a Natureza, ou

Pandora, sob a forma de uma grande mulher/mãe, que tudo cria, mas que também

a tudo destrói, e que lhe nega a sobrevida: sua morte é eminente. Mas antes ela o

conduz a um ponto de observação privilegiado, de onde ele pode contemplar o

infinito do tempo, para seu espanto. O tempo se mostrava dali, paradoxalmente,

como “uma coisa unica”.

Imaginas tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as

raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos

ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e

curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade

que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais

lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação

viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago (ASSIS, 2001, grifos meus).

Esse conjunto infinito das realidades que se mostram agora por inteiro,

tanto pode ser a “reducao dos seculos” observada a partir de um lugar, como os

infinitos entendimentos possíveis sobre a vida de um homem, ou sobre a história

de um movimento musical como o sambajazz, que se condensam em uma

narrativa, um texto.

Neste momento em que a morte, em sua “voluptuosidade do nada”, se

aproxima, Brás Cubas tece o seu mito delirante sobre o contínuo dos tempos e de

tudo, ao qual mal consegue observar dada a sua condicao de “turbilhao”, a vida e

a morte agitando o homem “como um chocalho, ate destrui-lo como um farrapo”,

os seculos em marcha acelerada que “escapava a toda compreensao”. Ao fim,

“entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros

perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo (...)” (2001). Fora dado a Brás

Cubas, pelas mãos da Natureza criadora e destruidora de tudo, contemplar, no

momento que marca a passagem do fim de sua vida corporal ao início de sua vida

em palavras póstumas, o contínuo de todos os tempos, onde reina o caos. Brás

Cubas é conduzido ao paradoxo matemático evocado também por Borges no

conto o Aleph263

, como o problema insoluvel da “enumeracao, mesmo parcial, de

263

“Alem disso, o problema central é insolúvel: a enumeração, mesmo parcial, de um

conjunto infinito. Naquele instante gigantesco, vi milhões de atos deleitáveis ou atrozes; nenhum

me assombrou tanto como o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem

transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo: o que transcreverei, sucessivo, porque a

linguagem o é. Algo, contudo, recuperarei. Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena

esfera furta-cor, de um fulgor quase intolerável. No início, julguei-a giratória; depois compreendi

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um conjunto infinito”. Pois contemplar a “condensação viva de todos os tempos”

(algo tão paradoxal como “fixar o relâmpago”) e como materializar o Aleph - esta

ideia imaginada pelo autor como uma esfera cujo diâmetro de “dois ou tres

centimetros” contem todas as coisas, simultaneamente, e “sem diminuicão de

tamanho”.

Assim, se é impossível resumir todos os momentos de uma existência

humana, que se desdobrou ininterruptamente por décadas a fio, nas poucas

páginas de um livro, é possível recortar o tempo dessa existência em capítulos. E

mesmo fazer operações como principiá-la pelo fim. A escolha dos episódios de

uma vida que merecem ser narrados em detrimento a outros que são descartados

pelo autor são como a figura que se destaca de um fundo. Ou como um contínuo

de tempo dos quais se destacam episódios discretos. Como se passa do contínuo

dos tempos vividos ao discreto da memória em episódios, biográficos ou

históricos?

Lévi-Strauss, em um segmento de O Crú e o cozido (2010) chamado

Interlúdio do discreto, parte de um mito Bororo para abordar a passagem do

contínuo primordial, ainda formado por possibilidades infinitas de significados,

que se converte em discreto por justamente uma ação de subtração dessas

infinidades. A passagem da natureza à cultura – questão cara à antropologia – é

entendida como a passagem do contínuo ao discreto.

Após um dilúvio, a terra foi novamente povoada. Mas antes os homens se

multiplicavam tanto que Meri, o sol, teve medo e procurou um modo de

reduzi-los.

Ele mandou toda a população de uma aldeia atravessar um grande rio por uma

passarela feita de um tronco de árvore frágil, que ele havia escolhido. O tronco

partiu-se com o peso, e todos morreram, exceto um homem chamado Akaruio

Bokodori, que andava mais devagar porque tinha as pernas tortas.

Aqueles que foram carregados pelos turbilhões ficaram com os cabelos ondulados

ou cacheados; os que se afogaram em águas tranquilas ficaram com os cabelos

macios e lisos. Tudo isso foi observado depois que Akaruio Bokodori ressuscitou

a todos com seus encantamentos acompanhados de um tambor. Primeiro ele

fez voltarem os Burremoddodogue, depois os Rarudogue, os Bitodudogue, os

Pugaguegeugue, os Rokuddudogue, os Codogue e, finalmente, os Boiugue, que

eram os seus preferidos. Mas ele só recebia os recém-chegados que trouxessem

presentes de seu agrado. Os outros, matava com flechadas, e por isso foi

que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O

diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem

diminuição de tamanho. Cada coisa (a lâmina do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu

a via claramente de todos os pontos do universo”(Jorge Luis Borges, em O Aleph)

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apelidado Mamuiauguexeba, “matador”, ou Evidoxeba, “de morte de causa” (Col.

& Albisetti 1942:231, 241-242, apud LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 74, grifos meus)

Os mitos são analisados por Lévi-Strauss a fim de interrogar aos indígenas

sobre a passagem da natureza à cultura, entendida como a operação de recorte do

contínuo natural pelo humano, cultural. Esta é desencadeada, conforme o mito,

pelo Deus Meri que, temeroso da grande quantidade de homens, decide pelo

extermínio da população original, forçada à morte. Exceto um homem, nomeado

Akaruio Bodokori, se salva, justamente porque “que tinha as pernas tortas”. É ele

que, por ter uma falta (as pernas sãs), fará a mediação entre o Deus e os homens.

É ele também o único homem a ser individualizado em um nome, nesta

versão Bororo do mito. Akaruio, portanto, terá a missão de tornar discreto o

contínuo dos homens, ao trazer de volta a vida apenas os que lhe trouxessem

“presentes do seu agrado”, eliminando os demais fantasmas. O empobrecimento

do universo de homens significa, para Lévi-Strauss, que as diferenças físicas entre

estes ficarao mais marcadas. A diferenciacao entre o cabelo, “ondulado” ou “liso”

se explica: suponha-se que em uma população muito grande haveria tantos

matizes entre o cabelo liso e ondulado que o sistema classificatório, que torna

discretos os diferentes tipos de cabelo, tornar-se-ia impossível. Assim, a

eliminação de grandes áreas do contínuo (que aqui é representada pela exclusão

sinistra de um grande grupo de homens da vida terrestre), é a condição para o

nascimento do discreto.

Em cada um dos casos, essa descontinuidade é obtida através da eliminação

radical de certas frações do contínuo. Este é empobrecido, e elementos em menor

número têm a partir de então folga para se expandirem no mesmo espaço, já que a

distância entre eles passa a ser suficiente para evitar que eles se encavalem ou se

confundam uns com os outros.

Era preciso que o número de homens diminuísse para que os tipos físicos mais

próximos fossem claramente discerníveis. Pois, se fosse admitida a existência de

clãs ou grupos portadores de presentes insignificantes — isto é, cuja originalidade

distintiva fosse tão fraca quanto se possa imaginar —, correr-se-ia o risco de ver

intercalar-se entre dois clãs ou dois grupos específicos uma quantidade ilimitada

de outros clãs e povos, tão pouco diferentes de seus vizinhos mais imediatos que

acabariam todos por se confundir.

Ora, qualquer que seja o campo, é unicamente a partir da quantidade discreta que

se pode construir um sistema de significações. (LÉVI-STRAUSS, 2010, p.76)

Pode-se pensar, voltando a Brás Cubas, que a vida da personagem

representa um contínuo, de onde emerge a pena do defunto, discreto em episódios

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escritos e em palavras de significado em geral bem menos equívocos. O contínuo

da vida é reduzido ao discreto de um livro, que escolhe seus momentos

significativos para serem reduzidos a palavras.

Também aqui esta passagem do contínuo ao discreto se dá pelas mãos de

alguém com características negativas: trata-se de um defunto, afinal, que faz esta

passagem. Falta a Brás Cubas não apenas a pernas sãs, como a Akaruio, mas sua

vida. Doente e prestes a entrar na condição de defunto que lhe dará, finalmente, a

“nomeada” cuja busca o matou, é nesta condição que ele poderá transitar entre o

contínuo de sua vida corporal e o discreto de suas palavras de fantasma. Pelas

mãos do defunto autor, a natureza vivida se transformará em cultura literária.

Sobre este mediador que opera a passagem do contínuo ao discreto, Lévi-

Strauss entende que a falta da condição sã, ou a existência da doença, no caso de

Cubas, é a condição para que ele possa fazê-lo. Pois esta falta é ainda uma

característica positiva, uma marca que lhe concede esta posição especial, de fazer

a “passagem entre dois estados ‘plenos’”:

Em todos os casos, portanto, um sistema discreto resulta de uma destruição de

elementos, ou de sua subtração de um conjunto primitivo. Em todos os casos,

ainda, o próprio autor desse empobrecimento é um personagem diminuído. (...)

Encaramos o aleijão e a doença como privações do ser, e, portanto, um mal.

Entretanto, se a morte é tão real quanto a vida e se, consequentemente, só existe o

ser, todas as condições, mesmo as patológicas, são positivas a seu modo. O “ser-

menos” tem direito a ocupar um lugar inteiro no sistema, pois e a unica forma

concebivel da passagem entre dois estados “plenos”. (LÉVI-STRAUSS, 2010,

p.76)

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Anexo I

Roteiro das entrevistas

I- Relação inicial com a música.

a.Como você começou a tocar?

b.Que tipo de música você praticou inicialmente?

c.Porque escolheu este instrumento?

d.Como obteve o primeiro instrumento?

II- Definição e diferenças e conexões entre jazz e outros estilos musicais.

a.O que é jazz?

b.Na sua formação e na sua prática, o que você pode relacionar direta ou

indiretamente com o jazz?

c.Existe algum aspecto no jazz (em matéria de técnica, estética, comportamento)

que você considere relevante, de modo geral, para o trabalho com música?

d.Existe diferença entre jazz e música instrumental para você? (Você costuma

ouvir cantores de jazz?)

III- Música como profissão

a.Como é ser músico para você? (Descreva os pontos negativos e positivos da

profissão.)

b.Você tem ou teve outra profissão ou outra forma de ganhar dinheiro?

c.Como foi sua trajetória como músico profissional?

IV- Relações recorrentes da profissão

a.Como é a sua relação com outros músicos?

b.Como é sua relação com cantores que você acompanha/acompanhou e como

você entende este tipo de trabalho?

c.Como é sua relação com outros profissionais envolvidos, como produtores,

diretores musicais, arranjadores, cenógráfos, dançarinos, Djs, roadies e etc...?

V- Vida profissional e vida pessoal

a.Como ser músico afeta sua vida pessoal (incluindo a vida amorosa, familiar, as

amizades e outros relacionamentos)?

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Anexo II

Figuras: capas, contracapas e fotografias

Figura 1: Turma da Gafieira (1956) – capa Figura 2: Turma da Gafieira (1956) –

contracapa

Figura 3: Turma da Gafieira: Samba

em Hi-Fi (1957) – capa

Figura 4: Turma da Gafieira: Samba

em Hi-Fi (1957) – contracapa

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327

Figura 5: Édison Machado: É samba novo

(1963) – capa

Figura 6: Édison Machado: É samba novo

(1963) – contracapa

Figura 8: Raul de Souza – À vontade

mesmo (1965) - capa

Figura 7: João Donato e seu trio – A bossa

muito moderna (1963) - capa

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Figura 9: João Donato e seu trio – Muito à

vontade (1963) – capa

Figura 10: João Donato e seu trio – Muito à

vontade (1963) – contracapa

Figura 11: Tenório Jr. – Embalo (1964) – capa Figura 12: Tenório Jr. – Embalo (1964) –

contracapa

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329

Figura 13: Sérgio Mendes e Bossa Rio. – Você ainda não

ouviu nada! (1964) – capa

Figura 14: Sérgio Mendes e Bossa Rio. – Você

ainda não ouviu nada! (1964) – contracapa

Figura 15: Compacto Zambi (1965), de Elis

Regina e Zimbo Trio - capa

Figura 16: Texto de Vinícius de Moraes na

contracapa de Rio (1964), Paul Winter

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330

Figura 17: A primeira formação do conjunto Bossa Rio, no Bottle´s, Beco das Garrafas.

Com, da esquerda para a direita, Dom um Romão, Sérgio Mendes, Paulo Moura, Otávio

Bailly e Pedro Paulo, à frente. Durval ferreira, que fez parte do grupo na apresentação

do Carneggie Hall, em 1962, não está presente. Letícia e Sigrid Hermanny Bailly estão

ao fundo. Foto cedida por Pedro Paulo de Siqueira.

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331

Figura 18: A primeira formação do sexteto Bossa Rio, na histórica apresentação do Carnegie

Hall.

Em novembro de 1962, nos EUA. Divulgação Cia. das Letras Disponível em:

http://brasileiros.com.br/2013/10/o-sergio-mendes-que-o-brasil-desconhece/ Acesso em:

05/07/2015.

Figura 19: fotografia da Jazz band de Pixinguinha.

Pixinguinha está de pé com um saxofone ao centro da foto. No bumbo da bateria lê-se

“jazz” e “Os batutas”.

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332

Figura 20: O pianista Tenório Jr., com barba e cabelos grandes, em 1976.

No ano de seu desaparecimento. Disponível em:

http://www.pastilhascoloridas.com/2012/06/albuns-classicos-embalo-tenorio-

jr1964.html Acesso em: 09/03/2015

Figura 21: Édison Machado no longa-metragem Terra em transe (1967), de

Glauber Rocha.

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333

Figura 22: Concerto de Bossa Nova na PUC-RJ, em 1960.

Bebeto Castilho (na flauta), Herbie Man (flauta), Hélcio Milito (bateria), Tião Neto

(contrabaixo) e Luizinho Eça (piano). Ainda na foto, Luiz Carlos Vinhas, Paulo

Cesar de Oliveira, Sérgio Barrozo, Yara Menescal e o cartunista Leon Eliachar.

Fotografia de FREIRE, Luís Fernando. Bossa nova: história, som e imagem. Rio de

Janeiro: Spala Editora, 1996.

Figura 23: Entrevista com Raul de Souza.

Fotografia de Cristina Nascimento.

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334

Figura 26: Com Joao Donato, ouvindo “as melhores musicas do mundo” segundo ele, apos a entrevista em

sua casa, em 2013.

Fotografia de Jonas Soares Lana.

Figura 24: No palco do show AfroBossaNova, em

2008, Bahia, com Armandinho Macedo e o mestre

Paulo Moura

Figura 25: Com Moacir Santos, em 2006, no Rio

de Janeiro

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335

Figura 27: Com o trompetista Pedro Paulo, durante a entrevista.

Fotografia de Pedro Larrubia.

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336

Anexo III

Periódicos

ALBUQUERQUE, João Luis & SANTOS, Hélio. A dança da bossa nova Jornal do

Brasil. 09/01/1963

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337

CELERIER, Robert. Jazz – uma música de sentido social. Correio da Manhã,

03/06/1962.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=29531.

Acesso em 03/08/2014.

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338

CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz. Em Correio da Manhã, em

25/10/1964.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&

pesq=robert%20celerier Acesso em: 06/04/2014.

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339

CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz II. Correio da Manhã. 08/11/1964.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes

q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014.

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340

CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz III. Correio da Manhã.

15/11/1964.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes

q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014.

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341

CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz IV. Correio da Manhã. 6/12/1964.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes

q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014.

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342

CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz V. Correio da Manhã. 27/12/1964.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes

q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014.

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343

CORREIO DA MANHÃ. Os dez discos mais vendidos da semana. 24/03/1957.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_06&pasta=ano%20195&

pesq=turma%20da%20gafieira#

Acesso em 04/04 2014.

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344

FUKS, Moysés. Sambajazz. Ultima Hora. 10/06/1961

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=69515

Acesso em: 09/05/2014

“Sambajazz. Amanhã no CIB, sera realizada a segunda noite do ‘Sambajazz’. Coquetel

dos dois ritmos. Com a presença dos maiores artistas nacionais. Quem está organizando

é Stevan Hernan. Para quem gosta, é a pedida certa.”

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345

FUKS, Moysés. Nota. Ultima Hora. 06/06/1961

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=69459

Acesso em 09/05/2014.

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346

IVAN, Mauro & PORTELLA, Juvenal. Povo é música de Moacir a caminho de sua

obra erudita. Jornal do Brasil. 18/12/1964

JORNAL DO BRASIL. Bossa nova não e só nossa. Caderno B - “especial BN”, em

09/01/63.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=35667.

Acesso em 04/04/2014.

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347

JORNAL DO BRASIL. Música moderna só tem um nome: bossa nova, 31/01/1960.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&pasta=ano%20196&

pesq=M%C3%BAsica%20moderna Acesso em: 18/07/2014

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348

MORAES, Vinícius Vinícius de Morais explica o que significa bossa nova. Correio da

Manhã. 31/03/1960.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=3317.

Acesso em 22/04/2014.

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349

O GLOBO. Discos mais vendidos no Rio. 19/10/1965.

O GLOBO, Morre no Rio Édison Machado, o criador do ‘samba no prato’. 16/09/1990.

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350

PORTO, Sérgio. Discoteca Lalau. Última Hora. 16/03/1964.

Dísponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=98108. Acesso

em 04/04/2014.

PORTO, Sérgio. Monsueto agora é mais humorista que sambista. Última Hora.

03/09/1964

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=102053.

Acesso em: 18/07/2015

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351

PORTO, Sérgio. Três desconhecidos fazem sucesso na base do samba. Última Hora em

28/05/1964.

Disponível em:

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=99864.

Acesso em 17/07/ 2014.

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352

ÚLTIMA HORA Samba Hi-Fi para Miss U. 19/10/57.

O representante da gravadora Musidisc presenteia Gladis Zender, a Miss Universo em

visita ao Brasil, com o álbum Turma da gafieira: samba em Hi-Fi (1967).

Disponível em

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=42789 Acesso

em 04/04/ 2014

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Anexo IV

DVD de áudio em anexo. Faixas: título, álbum de origem e intérprete.

1. À Vontade Mesmo - À Vontade Mesmo, Raul de Souza (1965)

2. April child - The Maestro, Moacir Santos (1972)

3. Céu e mar - Diagonal, Johnny Alf (1964)

4. Coisa nº 1 - É samba novo, Édison Machado (1963)

5. Coisa nº 4 ou 'ganga zumba' - Coisas, Moacir Santos (1965)

6. Comigo é assim - Chá dançante, João Donato (1956)

7. Consolação, Berimbau, Tem Dó - Samba eu canto assim, Elis Regina (1965)

8. Ela é carioca - Você ainda não ouviu nada - Sérgio Mendes (1964)

9. Embalo - Embalo, Tenório jr. (1964)

10. Índio perdido - A bossa muito moderna, João Donato (1963)

11. Marcha do amanhecer, Samba do carioca - Carlos Lyra e Vinícius de Moraes,

com Moacir Santos (1964).

12. Mas, que nada! - Samba esquema novo, Jorge Ben (1963)

13. Minha saudade - Luis Bonfá, Luis Bonfá, com João Donato (1955)

14. Minha saudade - Apresentando Rosinha de Valença (1963)

15. Nanã - É samba novo, Édison Machado (1963)

16. Nanã - A nova dimensão do samba, Wilson Simonal (1964)

17. Nena Naná - Sacudin Ben Samba, Jorge Ben (1966)

18. O menino das laranjas - Jongo Trio, Jongo Trio (1965)

19. O sapo - Quem é quem, João Donato (1972)

20. Primitivo - Você ainda não ouviu nada, Sérgio Mendes (1964)

21. Rosa Morena - Turma da Gafieira: samba em hi-fi, Turma da Gafieira (1967)

22. Samba da legalidade - O canto livre de Nara, Nara Leão (1965)

23. Seu Chopin, desculpe - Diagonal, Johnny Alf (1964)

24. Só por amor - É samba novo, Édison Machado (1963)

25. Tamba - Tamba, Tamba Trio (1962)

26. Tema sem palavras – Rapaz de bem, Johnny Alf (1961)

27. Villa Grazia - A bossa muito moderna, João Donato (1963)

28. Vivo Sonhando - The composer of Desafinado plays, A. C. Jobim (1963)

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