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tradução Fabricio Waltrick
garota imperfeita
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Edição: Flavia LagoEditora-assistente: Thaíse Costa MacêdoPreparação: Flora ManzioneRevisão: Débora Donadel e Livia DeorsolaDiagramação: Marcel VotreArte de capa: Debra Sfetsios-ConoverCrédito da ilustração de capa: © 2014 by Jeffrey EverettCrédito das imagens de capa: © 2014 by Henry Beer
Título original: Girl Defective
© 2013 by Simmone Howell. Publicado originalmente pela Pan Macmillar Australia. Direitos de tradução negociados por Jill Grinberg Library Management LLC e Sandra Bruna Agência Literária, SL. Todos os direitos reservados.© 2015 Vergara & Riba Editoras S/Avreditoras.com.br
Todos os direitos reservados. Proibidos, dentro dos limites estabelecidos pela lei, a reprodução total ou parcial desta obra, o armazenamento ou a transmissão por meios eletrônicos ou mecânicos, fotocópias ou qualquer outra forma de cessão da mesma, sem prévia autorização escrita das editoras.
Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel.| Fax: (+55 11) [email protected]
ISBN 978-85-7683-876-0
1a edição, 2015
Impressão e acabamento: IntergrafImpresso no Brasil • Printed in Brazil
Howell, SimmoneGarota imperfeita / Simmone Howell ; tradução Fabricio Waltrick.
– São Paulo : Vergara & Riba Editoras, 2015.
Título original: Girl defective.ISBN 978-85-7683-876-0
1. Ficção - Literatura juvenil I. Título.
15-04519 CDD-028.5
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura juvenil 028.5
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o poço dos desejos do bill
a canção “Wishing Well” – “Poço dos desejos” –, dos
Millionaires (Decca, 1966), era tão rara quanto es-
tranha, e foi com o nome dela que meu pai batizou
sua loja de discos. O cara que a produziu, Joe Meek, era
um maluco notório. Ele tinha inclinações esotéricas e
fama de manipulador. Ouvia vozes, mas também escuta-
va música de um jeito único. Poucos anos depois de seu
maior sucesso, Meek matou a proprietária do apartamen-
to onde vivia e, na sequência, se suicidou, e por um longo
tempo suas gravações ficaram trancadas dentro de uma
caixa de chá. Meu pai tinha “Wishing Well” em uma co-
letânea. Ele não gostava de admitir (coletâneas são uma
trapaça), mas isso queria dizer que eu podia ouvi-la.
A música tinha uma pegada pop e doidona. Parecia ter sido
gravada debaixo d’água ou na Lua. Meu pai costumava di-
zer que o único motivo para ele abrir a loja pela manhã era
por causa da chance, ainda que remota, de alguém entrar
ali querendo lhe vender esse single. Semana sim, semana
não ele ficava com aquela cara esperançosa e patética.
– Ele está vindo – meu pai dizia. – Estou sentindo. Vocês
vão ver, crianças. Mais cedo ou mais tarde, tudo aparece.
E eu e Gully falávamos:
– É isso aí, pai.
Mas nunca acreditamos que aquilo fosse acontecer.
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Esta é a história de como aquilo aconteceu.
É também a história de uma garota louca e de uma ga-
rota fantasma; de um garoto que não sabia de nada e de
um garoto que achava que sabia de tudo. E é sobre vida,
morte, luto e romance. Só coisa boa.
Mas primeiro, os detalhes – como diria Gully.
Éramos apenas meu pai, eu e Gully vivendo no apar-
tamento em cima da loja na Blessington Street, em Saint
Kilda – no subúrbio de Melbourne. Nós, a família Martin,
éramos como super-heróis ao contrário: nossos defeitos nos
definiam. Meu pai era viciado em cerveja e gravações ra-
ras. Gully tinha “dificuldades sociais”, que ficavam eviden-
tes pelo fato de ele usar uma máscara de focinho de por-
co vinte e quatro horas por dia. Por fora, eu parecia estar
bem, mas por dentro havia um bizarro caldo hormonal co-
zinhando em fogo brando. Meus defeitos não eram do tipo
que se podia perceber só de olhar. Mais tarde, eu chegaria à
conclusão de que eles eram sintomas de Nancy Cole.
Na época em que tudo aquilo aconteceu, fazia três me-
ses que eu conhecia Nancy. Ela tinha dezenove anos e era
afiada como uma faca. Eu tinha quinze e era uma trapa-
lhona. A gente tinha se conhecido quando meu pai a con-
tratou para limpar a loja e o apartamento. Eu me lembro
de ela entrando em meu quarto com o tubo do aspirador de
pó pendurado em volta do pescoço, largado e atrevido como
o braço de um namorado mau. Era só ela abrir a boca e mil
coisas jorravam. Por acaso eu sabia que os tubarões po-
diam desligar metade do próprio cérebro? Que uma pessoa
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peidava em média catorze vezes por dia? Que, em pacatos
bairros residenciais, casais de meia-idade estavam fazendo
sexo vestidos de animais de pelúcia? E eu, que não era de
falar muito com ninguém, dizia:
– Nem a pau!
Não demorava muito e a gente já estava jogando con-
versa fora e matando o tempo, enquanto a louça ficava lá,
esquecida. Meu pai precisou mandá-la embora, mas ela
continuou aparecendo. A risada de Nancy – e eu ainda con-
sigo ouvi-la – era um relincho que se chocava totalmente
com sua aparência glamourosa.
– Você está ótima, garota.
“Garota”. Era assim que ela me chamava. Ou de “irmãzi-
nha”, ou de “amiga”, ou de “bonequinha”, ou de “macaquita”.
Às vezes ela até usava o meu nome – Skylark, Sky –, sem-
pre com aquele jeito arrastado de falar, que eu sentia como
unhas em minhas costas, arranhando de leve uma coceira
que eu nem sabia ter.
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parte
um
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muito além do bizarro
em uma noite quente, perto do fim de novembro, Nancy e
eu estávamos no terraço. A gente tinha feito um lanche
ao ar livre (carne assada de micro-ondas), acompanhado
de uma das cervejas artesanais do meu pai – apelidada de
Pneu Velho, porque era esse o gosto que ela tinha, e também
porque fazia minha cabeça rodar depois de dois goles – e
agora estávamos falando sobre formas bizarras de morrer.
Nancy falou primeiro.
– Nono ano. Richard Skidmore. Morto por um piano.
– Nem a pau! – exclamei.
– Verdade. O pai dele fazia carreto. Richard estava aju-
dando um dia, quando um piano caiu do caminhão e o es-
magou. Depois disso, todas as garotas se apaixonaram por
ele. Elas andavam com uma foto dele pendurada no pesco-
ço e se chamavam de “as namoradas do Richard”. O doido é
que antes ele não era nada. Tinha espinhas e tocava clari-
nete, e nem era tão bom assim.
Ela deu outro gole na Pneu Velho e, de gozação, fingiu
um calafrio.
– Sua vez.
Os “sua vez” de Nancy me deixavam nervosa. Os “que
mais” eram ainda piores. Eu não estava à altura dela. Mi-
nhas mortes bizarras eram fictícias. Todas as minhas his-
tórias tinham bordas esfumaçadas.
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Contei a ela sobre o livro que eu estava lendo.
– No primeiro capítulo, Freddie Frenger Junior, o “psi-
copata tranquilão”, quebra o dedo de um hare krishna que
tenta dar pra ele uma flor no aeroporto. E o krishna morre
de choque.
– Nem a pau!
– Verdade. Pensa bem. Quando você dá uma topada com
o dedinho do pé, é de morrer; e isso porque é só uma topada.
Imagine um rompimento total – agarrei o dedo dela e fingi
que o estava torcendo. Nancy me deixou segurá-lo por mais
tempo do que precisava para demonstrar meu argumento.
O terraço era o meu lugar favorito. Não era um terra-
ço com jardim nem nada grandioso. Estava mais para um
poleiro de astrônomos ou suicidas. Ali tínhamos tudo de
que precisávamos: luzinhas de Natal, almofadas e um an-
tigo binóculo de ópera para observar os outros. Tínhamos
a vitrola portátil e os discos que minha mãe tinha deixado
para trás: baladas fofas e psicóticas tocadas por caras de
queixos com covinha e pop nacional cantado por mulheres
de pijamas estilosos.
Nancy pôs para tocar Dusty Springfield cantando
“Spooky”, uma música muito legal, misteriosa e infinita.
Ela cantou junto, levantando os pés e girando os braços.
Depois de um tempo, parou.
– Ela parece triste. Por que ela parece tão triste?
No começo achei que ela estivesse falando de Dusty, mas
então reparei no lugar para onde ela estava olhando. O car-
taz tinha aparecido uma semana antes no muro em frente
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à loja. Era o estêncil do rosto de uma garota, um metro de
altura debaixo de um céu de concreto. Ela tinha cabelos e
olhos negros. Seus lábios estavam ligeiramente entreaber-
tos e três lágrimas grossas escorriam por sua bochecha.
– Aposto que ela é atriz ou modelo.
Nancy concordou com a cabeça.
– Vou perguntar pro Ray. Ele vai saber.
Ray era o dono do apartamento onde Nancy alugava um
quarto. Tinha quarenta e poucos anos, trabalhava na pre-
feitura e fazia um bico vendendo livros em uma lona na
calçada, perto da feira de domingo. Ele se considerava um
antropólogo, ou como Nancy costumava dizer: “Ele gosta de
observar”. Segundo ela, o traje doméstico de Ray consistia
em um quimono desbotado que era tão curto que dava para
ver até seu balangandã.
Nancy deu uma batidinha em seu maço e pegou um ci-
garro. Ela mudou de assunto e começou a falar sobre seu
segundo tema favorito – Sua Grande Fuga.
– Tem um vilarejo no País de Gales que foi tragado pelo
mar no século treze. Eu vou pra lá. Já tenho quase o di-
nheiro de que preciso.
– Como é que você vai pra lá se ele está submerso?
– Eu já te contei sobre a capela feita de ossos humanos?
Tchecoslováquia. E o hotel feito de gelo? Finlândia. Eu não
quero ver o mundo, garota. Eu quero conhecer o que há de
bizarro nele.
– Ahã – mordi meu lábio. Eu não queria pensar em Nan-
cy indo embora. Às vezes eu ficava olhando para ela e quase
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esquecia de parar. Seu cabelo tinha a cor do mel da flor de
laranjeira. Suas ondas perfeitas caíam na altura do ombro.
Meu cabelo era curto, escuro e sem graça. Meu visual tam-
bém era um nada. Eu não precisava usar sutiã – disso eu
gostava. Na minha opinião, quanto menos coisas chamas-
sem atenção para mim, melhor.
A noite caía macia feito um cachecol. Eu estava começan-
do a pegar no sono. Até as palmeiras pareciam cansadas,
como coristas esperando de pé para receber seu pagamento
depois de um show. Nancy se voltou para o seu prato. Ela
partiu uma cenoura em sua boca e fez uma careta antes
de cuspi-la por cima do gradil. Depois, segurou uma batata
como se fosse atirá-la.
– Será que devo?
– Fique à vontade.
Ela a arremessou. Ficamos observando a batata rico-
chetear no toldo do açougue e se espatifar no ombro de
um cara. Ele parou e olhou para cima. Nós nos agacha-
mos, rindo. Nancy pegou o binóculo de ópera para ver
como ele era.
– Ele é gatinho.
Dei uma olhada com mais atenção. O cara que ela tinha
acertado era alto e magro – devia ter uns dezessete anos.
Usava óculos de aro preto, tinha cabelo bagunçado e coto-
veleiras de vinil na jaqueta.
Nancy soltou um grunhido.
– Ele entrou na loja do seu pai. E se foi lá pra roubar?
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– Ele não vai conseguir muita coisa.
Abaixo de nós, a placa da Bill
s Wishing Well rangia com a brisa. As únicas pessoas
que cruzavam a entrada da loja eram viúvos do vinil,
gente esquisita e turistas fora de rota. Fiquei imaginan-
do a que categoria aquele cara pertencia.
Bem naquela hora o celular de Nancy tocou tão alto que
me fez dar um pulo. Ela se afastou sussurrando e voltou
cantarolando.
– Era o Federico. Preciso ir.
– Qual deles é o Federico?
– Cabelo comprido, língua levemente presa, pinto mágico.
– Nem precisa continuar.
Mas ela continuou mesmo assim.
– Você sabe, tipo aqueles bonecos infláveis de posto de
gasolina que ficam se sacudindo de todos os jeitos possí-
veis? – disse isso se balançando a toda velocidade.
– É um encontro ou um rendez-vous? – eu não conseguia
me lembrar da diferença entre os dois.
– Um encontro – Nancy falou.
Eu tentei parecer exausta. Roubei a postura, a gíria e o
estilo dela.
– Então vai, vaza, r-u-a! – meu sorriso seguia inabalável,
mesmo se naquele momento eu estivesse sendo dispensada.
Nancy me deu um selinho. Ela cheirava a chá de rosas e
tinha gosto de molho de carne. Uma combinação esquisita,
mas que funcionava.
– Não se preocupe. Vai acontecer pra você.
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Ela colocou seus óculos de sol espelhados, embora já fos-
se de noite. Por um instante me vi refletida neles. Eu pare-
cia uma coisa pequena e escura. Como um gambá ou uma
uva-passa. Eu nunca tinha beijado, nunca havia tido um
namorado. Nem mesmo conhecia algum cara além do meu
pai, do Gully e da estranha clientela da loja. Antes de Nan-
cy, eu nunca tinha fumado ou bebido; tudo o que eu sabia
sobre sexo dava para escrever na cobertura de um cupcake.
Demos uma última olhada para baixo bem na hora em
que o cara de óculos estava saindo da loja. Ele estava com as
mãos enfiadas nos bolsos, andando de um jeito poético, com
uma expressão pensativa e preocupada. Pesquei tudo isso nos
poucos segundos em que ele passou debaixo da luz do poste.
Ele parou em frente à garota no muro. Naquela luz fraca,
parecia que ele era parte do cartaz.
– Ei, gatinho! – Nancy gritou sobre o gradil. – Está a fim
de se divertir?
Ele olhou para cima sem nem esboçar um sorriso.
Os lábios de Nancy se contorceram.
– Garoto sério. Com certeza é pra você.
Ela falou como se aquilo fosse o fim de alguma coisa,
mas na verdade era o começo.
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garotas retrô
o lugar onde a gente morava nunca foi tranquilo. Mui-
to antigamente, na velha Saint Kilda, mulheres da
região podiam passear e ninguém fazia observações
depreciativas sobre o traseiro delas pela janela aberta de
um Ford Falcon sem placa. Aí vieram as guerras, os ma-
rinheiros, as linhas de bonde, e então o povão chegou e se
misturou: trabalhadores, imigrantes, refugiados. Depois
foram os punks, os viciados e as prostitutas, mas então o
sr. Dinheiro se mudou para cá. Naqueles tempos, a luz ver-
melha da zona de prostituição ainda ficava acesa, mas já
bem mais fraca. Eu até viveria bem sem os turistas, mas
havia coisas que eu amava – como as palmeiras e os bolos
alemães de semente de papoula; como o peixe dourado gi-
gante do jardim botânico e a triste canção dos barcos na
marina. O vento tocava o mastro deles como um arco sobre
as cordas de um instrumento; o som era sinistro e encan-
tador, e era a coisa mais solitária que eu podia imaginar.
Pós-Nancy, eu me arrastei até a cozinha para beliscar
alguma coisa. Tomar conta da casa era minha especia-
lidade. Isso e cuidar de Gully, me certificando de que
ele tinha colocado a calça do lado certo e que em sua
lancheira houvesse três biscoitos de arroz com creme de
amendoim (no estilo sanduíche) e uma fruta embrulhada
(nunca damasco). Ele estava dormindo. Eu podia ouvir
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seus roncos sísmicos. Meu pai ainda estava lá embaixo,
na loja, virando cervejas e ouvindo a trilha sonora de sua
juventude. Era o que ele fazia na maioria das noites. Ele
não era um bêbado inconveniente. Apenas ficava melan-
cólico. Só passava do limite de vez em quando. No último
Natal, deu entrada em uma clínica de reabilitação. Eu
e Gully tivemos de ir para o interior e ficar com uma
tia que fazia mosaicos que mais pareciam vaginas mons-
truosas. Titia V era legal, mas não tinha ideia do que fa-
zer com a gente. Tivemos três semanas de céus enormes
e vacas conspiradoras. Gully ficou bem irritado. Quando
meu pai apareceu para nos buscar, suas bochechas esta-
vam rosadas e seus olhos brilhavam. Ele disse que era
outra pessoa, mas um mês depois já tinha parado de ir
às reuniões do Alcoólicos Anônimos (aa).
Peguei uma maçã e fui para o meu quarto, passando os
olhos pelos meus discos. A gente tinha vitrolas por todo
o apartamento – um risco ocupacional. A minha era uma
Sanyo dos anos setenta que tocava tudo em um oitavo de
batida mais lento. Coloquei Tom Rush cantando “Urge for
Going”. Tinha uma voz tão grave que me lembrava o som
de madeira velha polida. Como dizia o título da música,
ele tinha vontade de ir embora, mas nunca parecia estar
realmente indo. Coloquei essa canção para tocar várias
vezes seguidas, até poder sentir o gosto da tristeza.
Às vezes eu achava que, se não fosse pela música, eu
não seria capaz de chorar ou rir, sentir vertigem ou fi-
car eufórica. A música era uma válvula. Na época do pós-
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-grunge, minha mãe e meu pai tocavam em bares e fes-
tivais, se apresentando com o nome de Little Omie. Meu
pai tocava violão e minha mãe, melodeon. Ela costumava
esvaziar seu tubo de saliva no próprio palco. Eles viaja-
vam pelo país, recolhendo cartões-postais a cada parada.
Eu cobria minhas paredes com as viagens deles, desde o
parque de diversões Big Banana até o festival de Black
Stump. Eu também tinha a foto de uma antiga Rolling
Stone: meus pais em uma casa noturna, vestindo peles
de urso e dando sorrisos de orelha a orelha. Eles canta-
vam baladas sobre assassinatos, como a que deu origem
ao nome da dupla, que contava a história de uma garota
que engravida, é enganada e se afoga – nesta ordem. Little
Omie estava a caminho do sucesso; em vez disso, eles fi-
zeram a mim e ao Gully.
Quando eu tinha dez anos e Gully, seis, minha mãe nos
deixou para “seguir sua arte”. Ela trocou seu nome para
Galaxy e se mudou para o Japão, onde vivia graças aos
subsídios, investimentos e à bondade do “povinho esnobe
da arte” (nas palavras do meu pai). Mantinha contato es-
porádico com a gente. Normalmente eu a seguia pela sua
página na internet. Em seu último show, ela havia usado
chifres e coberto o corpo com pasta de umeboshi, enquanto
raios crepitavam em um fundo preto atrás dela. Não sei
como uma pessoa chega a esse ponto.
Uma vez perguntei ao meu pai que traços eu tinha her-
dado da minha mãe. Ele ficou me olhando por um bom tem-
po, mas só conseguiu pensar em um:
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– Persistência.
Minha mãe costumava ser a rainha do brechó. Se fosse
preciso, para conseguir coisas boas, ela aguentaria passar até
uma hora ao lado de um cara que tivesse cagado nas calças. E
sempre havia coisas boas. Meu quarto era como um altar para
o seu estilo kitsch. Eu tinha bonecos de deuses da Polinésia e
gravuras de Tretchikoff, um par de abajures de foguete, uma
mesinha oval e um guarda-roupa abarrotado com visuais vin-
tage de enlouquecer. Eu não tinha coragem o suficiente para
usar o vestidinho curto com mangas esvoaçantes e barra de
pompons, ou o maiô preto de mulherão dos anos quarenta,
mas sabia que eles valiam muito mais que dinheiro. As rou-
pas foram o motivo da minha conexão com Nancy.
Uma estrela no meu calendário marcava o dia 12 de
agosto. Foi nessa data que Nancy abriu meu guarda-roupa
e quase perdeu a respiração. Ela pegou uma calça capri e
uns saltos plataforma de acrílico.
– Posso experimentar?
Nancy provou uma roupa atrás da outra. Ela não me pe-
diu para olhar para o outro lado. Eu lembro que ela estava
com um sutiã bacana, mas com uma calcinha horrorosa.
Ela puxou o elástico.
– Fina, né? Às vezes você tem que deixar sua pepeca
respirar.
Por fim, ela se deitou na minha cama usando o macaqui-
nho com estampa de leopardo da minha mãe, um número me-
nor que o dela. Deu uma batidinha com a mão no espaço vazio
ao seu lado. Deitei ali e aquilo nem foi esquisito. Ela disse:
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– Vou te contar um segredo: Nancy não é o meu nome
real. Na verdade eu me chamo Nana, como a Nana Mous-
kouri. Você sabe, aquela mulher mais velha de óculos?
Fiz que sim com a cabeça. Eu sabia.
Estávamos tão perto uma da outra que eu podia até ou-
vir sua respiração.
– Sua vez – Nancy falou.
Analisei as possibilidades: quando meu pai ficava cha-
pado, eu jogava sua cerveja artesanal pelo ralo (ele sempre
fazia mais); deixei comentários escrotos no fórum de men-
sagens do site da minha mãe (ela nunca respondeu); eu
tinha uma caixa de sapatos debaixo da minha cama, onde
guardava fotos de gente bonita (meninos e meninas). Eu
poderia ter dito qualquer uma dessas coisas, mas, quando
abri minha boca, foi isto o que saiu:
– Me sinto muito sozinha.
Nancy ficou olhando para mim por séculos.
– Nisso a gente dá um jeito.
Ficamos quietas. Conectadas.
Então ela deu um sorriso exuberante.
– Posso pegar uma coisa emprestada?
Depois disso, a luz se acendeu. A presença de Nancy deu
sentido às coisas da minha mãe. Ela sacou aquilo – que qual-
quer coisa antiga era boa. E então éramos, juntas, garotas
retrô. Eu nunca tinha ousado sonhar com uma amizade igual
àquela. Nós ouvíamos discos antigos. Líamos livros antigos.
Assistíamos a filmes antigos e até roubávamos diálogos:
– Eu me pergunto se entendi o que você quer dizer.
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– Eu me pergunto se você realmente se pergunta isso.
Eu me perguntava um monte de coisas, mas uma eu sa-
bia com certeza: quando Nancy usava as roupas da minha
mãe, ela ficava linda pra cacete.
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