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DIÁRIO DE LUTO, DE ROLAND BARTHES OU A ESTÉTICA DO FRAGMENTO Rodrigo da Costa Araújo (UFF; FAFIMA) [email protected] Como o amor, o luto fere o mundo, o mundano, de irrealidade, de importunidade. Resisto ao mundo, sofro com o que ele me reclama, com a sua reclamação. O mundo aumenta a minha tris- teza, a minha secura, a minha confusão, a minha irritação, etc. o mundo deprime-me. (Roland Barthes, 2009, p. 135) Não desejo outra coisa que não seja habitar o meu desejo. (Roland Barthes, 2009, p. 184) Produzido entre outubro de 1997 e setembro de 1979, ou seja, um período de dois anos, o Diário de Luto [2009], de Roland Barthes [1915-1980] foi escrito a tinta e, por vezes, a lápis, em fichas que ele próprio preparava delicadamente e dividia de folhas de papel A4 cor- tadas em quatro e das quais organizava sempre uma reserva sobre a mesa. Período, também, que o crítico-escritor e autor de Le plaisir du texte, preparava o seu curso para o Collége de France sobre O Neu- tro (fevereiro a junho de 1978), publicava grande número de artigos em diferentes jornais e revistas, escreveu A Câmara Clara entre abril e junho de 1979 e, ainda, o curso La Preparation du roman (dezem- bro de 1978 a fevereiro de 1980). Pelo que tudo indica, no princípio de cada uma destas obras citadas acima, todas elas, explicitamente, foram postas sob o signo da morte da mãe, e, por isso, encontram-se nas fichas do Diário de Luto. Fragmentário e bordando arabescos em torno do vazio, esse di- ário é composto por notas dispersas e breves, onde a reflexão domi- nante é a obsessão pela figura desaparecida; a devoção e a dor; mas, também, a reflexão sobre a própria noção de gênero [no caso o diá- rio], de luto, do tecido excessivo da linguagem e as suas implicações discursivas. A leitura desse diário, de certa forma, confirma que a busca da arte (literária) converte o escritor a uma relação de busca de si

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  • DIRIO DE LUTO, DE ROLAND BARTHES OU A ESTTICA DO FRAGMENTO

    Rodrigo da Costa Arajo (UFF; FAFIMA) [email protected]

    Como o amor, o luto fere o mundo, o mundano, de irrealidade, de importunidade. Resisto ao mundo, sofro com o que ele me reclama, com a sua reclamao. O mundo aumenta a minha tris-teza, a minha secura, a minha confuso, a minha irritao, etc. o mundo deprime-me. (Roland Barthes, 2009, p. 135)

    No desejo outra coisa que no seja habitar o meu desejo. (Roland Barthes, 2009, p. 184)

    Produzido entre outubro de 1997 e setembro de 1979, ou seja, um perodo de dois anos, o Dirio de Luto [2009], de Roland Barthes [1915-1980] foi escrito a tinta e, por vezes, a lpis, em fichas que ele prprio preparava delicadamente e dividia de folhas de papel A4 cor-tadas em quatro e das quais organizava sempre uma reserva sobre a mesa. Perodo, tambm, que o crtico-escritor e autor de Le plaisir du texte, preparava o seu curso para o Collge de France sobre O Neu-tro (fevereiro a junho de 1978), publicava grande nmero de artigos em diferentes jornais e revistas, escreveu A Cmara Clara entre abril e junho de 1979 e, ainda, o curso La Preparation du roman (dezem-bro de 1978 a fevereiro de 1980).

    Pelo que tudo indica, no princpio de cada uma destas obras citadas acima, todas elas, explicitamente, foram postas sob o signo da morte da me, e, por isso, encontram-se nas fichas do Dirio de Luto. Fragmentrio e bordando arabescos em torno do vazio, esse di-rio composto por notas dispersas e breves, onde a reflexo domi-nante a obsesso pela figura desaparecida; a devoo e a dor; mas, tambm, a reflexo sobre a prpria noo de gnero [no caso o di-rio], de luto, do tecido excessivo da linguagem e as suas implicaes discursivas.

    A leitura desse dirio, de certa forma, confirma que a busca da arte (literria) converte o escritor a uma relao de busca de si

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    mesmo no quero falar disto com medo de fazer o que no o ser - embora de fato a literatura tenha origem nestas verdades (BAR-THES, 2009, p. 31). De alguma forma, o fazer literrio (cujo produto uma obra de arte) impe ao autor (escritor-Barthes) a renncia de si mesmo, de seu nome civil em nome da arte (do eu da escrita), em favor da expresso esttica do humano, dessa potncia neutra, sem forma e sem destino, que est por trs de tudo o que se escreve (BLANCHOT, 1987, p. 19).

    dessa repugnncia que Maurice Blanchot, em O Espao Li-terrio, v surgir o Recurso ao dirio. No h nesta aferio crtica nenhuma tonalidade romntica, j que o Dirio no confessa a essn-cia de um relato em primeira pessoa (ele sim, a expresso memori-al do escritor recordando a si mesmo, atravs das reminiscncias co-tidianas de sua vida). O diarista recorda a si mesmo escrevendo o di-rio em fragmentos insignificantes como em Roland Barthes par Roland Barthes do mesmo autor - que o prende a realidade cotidiana (histrica). Assim, o verdadeiro no dirio o recorte literrio de suas observaes, o registro fragmentado de seus incidentes (estilhaos de linguagem soltos na cotidianidade).

    Segundo Blanchot, quando o escritor pressente a metamorfose de ter que renunciar a si mesmo na obra, lana mo do dirio, que se-r a sequncia de pontos referentes ao reconhecimento de si mesmo. Assemelha-se a uma ronda noturna a mapear , como em Incidentes , esse reconhecimento (o escritor a se escreve): conserva um no-me e fala em seu nome, e a data que se inscreve a de tempo comum em que o que acontece, acontece verdadeiramente (BLANCHOT, 1987, p. 19). O dirio que, aparentemente, solitrio, serve ao escri-tor para o escape da solido que lhe imposta por intermdio da o-bra (BLANCHOT, 1987, p. 19). Recorrer escrita do Dirio, para Blanchot, agarrar-se ao verdadeiro do cotidiano, no abdicando da felicidade e da convenincia de dias que se sigam de modo verda-deiro; deixar-se estar ao sabor de uma incessante escritura, tempo-ralizando essa escrita na humanidade do cotidiano datado e preser-vando a sua data (BLANCHOT, 1987, p.20). No importa aqui a-testar a veracidade do escrito, mas salvaguardar a ocorrncia do e-vento cotidiano (mesmo que insignificante) como um trabalho da-quilo que se ultrapassa e avana para amanh definitivamente (1987, p. 20).

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    Nas 330 fichas 266 pginas dia a dia, o ensasta francs registrou as suas impresses, emoes e sentimentos, face ao luto da me, Hemiette Binger que faleceu aos 84 anos. Se, apenas por isso, esta leitura poderia ser interessante (sem qualquer interpretao mr-bida no termo), existe, ainda, a importncia de Roland Barthes ter si-do um dos grandes nomes do pensamento da semiologia e da lingus-tica. Ou seja, subsiste, ao folhear este dirio ntimo, a tentao de en-contrar nestes fragmentos em prosa uma tentativa de desabafar, evi-dentemente, mas sempre sob o foco de uma esttica ou da sua assu-mida e propositada negao Escrever para recordar? No para me recordar, mas para combater a dilacerao do esquecimento [...] (BARTHES, 2009, p. 123) ou No quero falar disto com medo de fazer literatura - ou sem a ter a certeza de que no o ser - embora de facto a literatura tenha origem nestas verdades (BARTHES, 2009, p. 31).

    As diversas referncias literrias, em especial ao autor de Em Busca do Tempo Perdido, como A literatura, isto: que no posso ler sem dor, sem sufocao de verdade, tudo o que Proust escreve nas suas cartas sobre a doena, a coragem, a morte da sua me, o seu desgosto, etc. (2009, p. 187) acentuam ainda mais a relao entre a vida vivida e a escritura. O escritor-diarista assume-se como um eu fora do tempo: pela ao de sua escrita (que no a mesma ao de uma firmeza ordinria); por seu trabalho incomum (prolongando es-crituras diversas); pela solido do seu ofcio (cada escritor, s escre-ve seu dirio); pela intimidade de uma fala simples. O dirio deixa de ser histrico para ser a histria cotidiana de quem o escreve (a vi-da do autor uma obra).

    No abolindo o jogo da convergncia, o Dirio de Luto reva-loriza o disparate como totalizao, como fez, por exemplo, S/Z (1970), todo montado em lexias estelares, os Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977), bem como outros ensaios. Sob o signo do fragmento, no h tampouco sobras: o semilogo faz oferendas, pri-mcias, primorosos frutos de uma linguagem-vida-escritura. Para La-tuf Isaias Mucci, quando teoriza o conceito de fragmento ressalta que ele :

    Testemunha do passado, que ajuda a compreender e a reconstituir, extrato de um livro, de um discurso, ndice de uma crise do gnero, da totalidade, da obra, do sujeito, do autor e do leitor, espcie de gnero,

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    que engendrou uma esttica do fragmento, sem referncia a uma organi-zao globalizante, cunhado numa forma lapidar, como os provrbios, e, muitas vezes, paradoxal e circular, reao contra o estruturalismo, que privilegia os esquemas e sistemas, ou seja, objetos acabados e fechados, recuperado no ps-estruturalismo, que elege o inacabado, o fragmento, mesmo com sua origem milenar, ressurge como signo de certa moderni-dade em busca de uma nova linguagem num mundo onde a unidade e a certeza no so, definitivamente, evidentes onde vigem a aporia, as con-tradies, a fluidez, inscritas, como modos de disperso e justaposio, no texto.

    Dirio de Luto construdo por fragmentos, de articulaes de instantes que vm picar, ferir (como o punctum)1 o leitor Roland Barthes, no momento de escrever, desmontando do oral em proveito do imaginrio da escritura. Assim, apresenta-se, para ns, um Roland Barthes-escritor, investigado pelo romanesco. O descontnuo na for-ma desliza para o descontnuo da identidade, abrindo espao para a ficcionalizao da vida, aproximando o tema do dirio, aos fragmen-tos j vistos e reunidos em Roland Barthes por Roland Barthes.

    O esteta, nesse sentido, reflete, em suas mltiplas mscaras e rubricas, e na polifonia de suas referncias artsticas e culturais, uma marca singular em relao ao discurso do luto. a singularidade des-se discurso, o registro do cotidiano e as mirades de conexes por ele viabilizadas que pluralizam a leitura das descobertas. Nos fragmen-tos, inscreve-se um crivain-dandy2 que rompe com as noes de gneros (literrio e ensastico), em um texto em que as simulaes romanescas do o tom.

    O reivindicador do prazer do texto e o crtico romanesco de si mesmo fez desse dirio um trabalho de explicitao de um texto plural e que se adensa, se opaciza, se ambiguiza por um trabalho de

    1 Punctum mais conhecido como um conceito de Roland Barthes, o que em fotogra-fia pina o olhar do espectador. A definio de punctum em fotografia, segundo Barthes (1984, p. 45-46), um despertar para algo que nos chamou a ateno na ima-gem. Esse despertar ao contrrio do studium que do leitor para imagem o interesse ou o gosto pela foto emana da cena na fotografia para o leitor e parecido com uma marca que pontua, um instrumento que fere

    2 BOUAS, Edmundo. Qui je dois dsirer (deliberao de um crivain-dandy). In: CASA NOVA, Vera e GLENADEL, Paula (org). Viver com Barthes. Rio de Janeiro. Sete Letras, 2005. pp.91-106.

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    escritura. A medida e valor dos fragmentos e do texto, assim, so da-dos pelo prprio valor do texto, que ele consegue suscitar: o luto em fragmentos. Fez, como ele mesmo estabeleceu:

    Como um bricoleur, o escritor (poeta, romancista ou cronista) s v o sentido das unidades inertes que tem diante de si relacionando-as: a o-bra tem, pois, aquele carter ao mesmo tempo ldico e srio que marca toda grande questo: um quebra-cabea magistral, o quebra-cabea do melhor possvel (BARTHES, 1964, p. 186).

    A prtica crtica, como vista nesse fragmento que se refere a Butor, , pois, uma prtica secreta do indireto e, que, tambm, pode ser aplicada a sua prpria escritura nesse dirio. O pretexto crtico talvez seja ideal para que se pratique no o romance, mas o romanes-co a que aspirava Roland Barthes. A crise do nome prprio que, segundo ele, o impede de ser romancista, encontra sada quando esse nome prprio no tem um referente real, mas j ele prprio um nome literrio. A reivindicao do prazer por Barthes, em seu ensino e, por sua vez, nesse dirio e escritura, um dos aspectos mais insti-gantes de sua proposta.

    Inquietante, sua escritura, nesses registros diarsticos, a ati-vidade com a qual o escritor se envolve, se enovela, finge que vai di-zer, mas apenas aponta, sugere, indicia, de forma a fisgar o leitor com o seu canto rfico3, que s pode olhar para frente, proibido que esta de retornar ao objeto amado. Nesses fragmentos ficam ape-nas os possveis narrativos e a obstinao de escritor em dispor, ma-nipular, compor, manejar, reordenar a vida, enquanto a morte no lhe rouba a cena. Nesse discurso, ora em crtica-escritura, ora srio e denso, as confisses acontecem entre as digresses da memria e o jogo escritural.

    No espao esperado e continuamente suspenso da criao do dirio, tece-se o luto como ausncia-presena: a criao que emerge, pelos fragmentos, da criao submergida e impossibilitada do dizer.

    3 Roland Barthes ao falar do escritor e do crtico no prefcio de Essais critiques (1964) acentua a linguagem indireta do escritor. E sendo ela indireta, tambm, simultane-amente obstinada e desviante. Seria esse olhar, segundo o crtico francs, uma situa-o rfica, no porque Orfeu cante, mas porque o escritor e Orfeu esto ambos to-mados pela mesma interdio, que faz o seu canto: a interdio de se voltarem para aquilo que amam (BARTHES, 1964, p. 16).

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    O romanesco se realiza e pulsa nos e dos flagrantes da ausncia, das clivagens, suspenso, rupturas daquilo que o romance poderia ser di-to, mas no foi. Em meio confuso e fragmentao diegtica, per-cebe-se a construo de um eu que se mantm como perturbvel personagem, ou em contrapartida, um eu que retorna dilacerando as estruturas da linguagem, ressignificando o sentido discursivo do luto. Dessa forma, constri-se um discurso como se tudo no passas-se de ensaios de uma biografia-fico de um escritor-autor do jogo. As imagens encarnadas pela escrita assemelham-se a projees da imaginao alterada de um escritor entre a vida e a morte, entre Eros e Tanatos.

    Apegando-se vida, para continuar a viver, em meio ausn-cia extremamente dolorosa, anestesiado pela escritura e pelo desejo, o escritor rebela-se, discretamente, contra o discurso do luto, crian-do, agarrando-se escrita da vida atravs da criao. A morte o en-redo de um imaginrio em sofrimento, da memria misturada escri-tura, da viglia discreta e sobressaltada pelos dilaceramentos fsicos, matria bruta de certo romance no escrito que vai se convertendo em matria prima para a anlise discursiva. Em certo sentido, fica nas entrelinhas, o que Blanchot refora:

    [...] escreve-se para salvar a escrita, para salvar sua vida pela escrita, para salvar seu pequeno eu (as desforras que se tiram contra os outros, as maldades que se destilam) ou para salvar seu grande eu, dando-lhe um pouco de ar, e ento se escreve para no se perder na pobreza dos dias ou, como Virginia Woolf, como Delacroix, para no se perder naquela prova que a arte, que a exigncia sem limite da arte. (BLANCHOT, 2005, p. 274)

    No contexto dessas ideias, o dirio e registros dos fatos sur-gem como argumento de que, na arte, na literatura, o jogo entre sig-no, vida e morte atinge o paroxismo, seu ponto de reflexo crtica. O que Barthes acaba a revelando a arte como lugar privilegiado onde se consuma a batalha discursiva entre o perecvel e o imortal. Na sua aspirao para a eternidade da vida no signo, a escritura no seno o descarnamento e a mais cabal evidenciao da angustia humana: a provisoriedade do vivido, que habita cada milsimo de instante da nossa existncia. A vida registrada, relida e transcrita em significan-tes est cada vez mais grvida e prxima da morte.

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    Essa mesma sequncia fragmentria do Dirio de Luto utili-zada inclusive em Roland Barthes por Roland Barthes (1975), texto que subverte o conceito de autobiografia, no qual o autor fala se si por biografemas4, fragmentos de vida que quebram a cronologia dos fatos e que, ainda que apresentem um Roland Barthes histrico, cro-nologicamente situado, no impede que outros Barthes sejam (re)ela-borados, medida que o leitor, ao levantar a cabea aqui e ali ca-dencie, com os movimentos de seu prprio corpo, os movimentos do corpo que se encena no texto. Tudo refora os valores do texto de gozo, num encontro de pluralidades, conforme o que se l em S/Z: Este eu que se aproxima do texto j uma pluralidade de outros textos, de cdigos infinitos, ou mais exatamente: perdidos (cuja ori-gem se perde) (BARTHES, 1970, p. 16).

    O fragmento, portanto, marca inconfundivelmente da potica barthesiana, presta-se em alto grau ao objetivo do autor, o de escapar organizao retrica, o que equivale a dizer, dada a explicitao desse objetivo, que o autor no tem ensinamentos a transmitir e tam-pouco tem a pretenso de criar, com sua produo textual, um mode-lo que possa ser seguido ou imitado com o discurso do luto. Isso se comprova tanto pela pluralidade de sua obra como um todo, quanto pelo fato de dela se poder extrair nenhuma metodologia aplicvel ao tratamento dos textos. A pluralidade do autor espelha a pluralidade do leitor que foi Barthes e essa relao especular est na prpria raiz do conceito de escritura por ele forjado. Entretanto, ainda que procu-re, atravs do fragmento, escapar ao fascismo (BARTHES, 1987, p. 14) da lngua, Barthes no se mostra ingnuo, pois um fragmento de escritura sempre uma essncia de escritura e, ainda que em menor proporo, pode muito bem servir a fins ideolgicos, motivo pelo qual assumido pelo autor em vrias discusses e livros.

    Maria Augusta Babo e Maria Lusa Janeira (1982) ao estuda-rem a escritura e a textualidade em Roland Barthes ressaltam a sub-jetividade, o sujeito discursivo como instncia, a corporalidade, alm

    4 O biografema o detalhe insignificante, fosco; a narrativa e a personagem no grau zero, meras virtualidades de significao. Por seu aspecto sensual, o biografema con-vida o leitor a fantasmar; a compor, com esses fragmentos, outro texto que , ao mes-mo tempo, do autor amado e dele mesmo leitor (PERRONE-MOISES, Leyla, 1983, p. 15).

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    do fragmentrio e do aforstico em sua potica. O real, segundo elas, apresenta-se, ainda, no fragmento em estado corpuscular e no afo-rismo como microcosmo. Em consequncia disso, temos uma relati-va desintegrao discursiva do dito pela incluso do no dito, a ener-gia da multiplicidade, a disperso, a contingncia. Quanto ao aspecto aforstico do discurso, contrariamente, temos a fora da totalizao, o concentramento, a necessidade. Entre o fragmentrio e a o aforstico, nas entrelinhas da escritura, comparece um sujeito refratado, oscilan-te entre a atopia fragmentria e a utopia aforstica, diferenciando tan-to um sujeito central, razo e centro de um sistema de signos, com um sujeito local, efeito e lugar de uma estrutura. O sujeito, com esses efeitos discursivos, multiplica-se, a razo desarticula-se. Da iluso passa-se fico da identidade, qual o indivduo e no a pessoa, a qual significncia e no j conscincia (BABO, 1982, p. 239).

    Para elas, o sujeito aforstico fala de dentro da verdade, ence-rando-a e excluindo, assim, o espao que a transcende, negando-a ou pervertendo-a. Com essa postura esse sujeito, tambm, se mascara, se esconde no interior desse espao indubitvel para afirmar, no a sua diferena, mas a sua sujeio, a sua ausncia como tal, dando lu-gar ao todo, sujeito universal, que vai desde o senso comum, a voz da coletividade, at a banalidade, nem eu nem ele, mas todos, a evi-dncia. (BABO, 1982, p. 239).

    Alm de reforar esse mesmo estilo da escritura barthesiana, aforstico e fragmentrio , Susan Sontag (1982) aproxima o estilo barthesiano ao de Gide, Sartre e, essencialmente, ao de Benjamim. De todas as comparaes, ela entende e explora o crtico-ensasta, como a um esteta5, aquele que atravs da escrita, mostra-se e se ree-labora, dispersando-se, numa diferena infinita, pelo Texto, de que o sujeito, nele se constituindo e dissolvendo entre o prazer e o gozo. Ao mostrar-se e trabalhar a linguagem, poeticamente, o escritor-esteta no faz mais do que sacrific-la, ao mesmo tempo, a literatura na escrita.

    5 A obra de Barthes, como a de Wilde e a de Valry, devolve a dignidade ao conceito de esteta. Seus trabalhos mais recentes, em grande parte, so uma celebrao da inteli-gncia e dos sentidos, e dos textos da sensao. Defensor dos sentidos, jamais traiu a mente. Barthes no cultivou clichs romnticos sobre a posio entre a agilidade men-tal e sensual. (SONTAG, 1986, 130).

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    Ao relermos - reescrevemos - o texto barthesiano entre a luz e a sombra do esteticismo (diramos e encontraramos, no seu intertex-to mitolgico: Eros e Thanatos nas entrelinhas desse dirio), reco-nheceremos nesses registros, em figuraes e desfiguraes mlti-plas, os fragmentos mitogrficos que nele, citacionalmente, compa-recem, desaparecem. Assim, ao pretender, paradoxalmente, totalizar a experincia do autor entre os fragmentos e aforismos, no conse-gue deixar de repor opacidade, - o discurso obtus-, no faz mais que captar fragmentos e arranj-los, criando um simulacro de inteireza que se oferece ao leitor. No nos familiarizamos com Barthes atravs de seu dirio, mas sim, atravs de Barthes-escritor que vemos aos poucos compor e apagar esse rosto, que no nico e nem totalmen-te coerente, que no obra de um autor que o entrega acabado, mas obra do leitor que vai aos poucos descortinando seus traos, tambm jogo do bvio e o obtuso, inteirando-se de seus traos, pressupon-do seu texto, sua criture. Imagem mvel para cada um que a com-pe, que se refaz na releitura ou no contato com aquilo que ainda no foi lido. Nesse sentido, podemos dizer que Barthes-crtico-semilogo se disfara em personagens.

    Entre o lobvie et lobtus, entre o crtico e o escritor parece no haver divises, apenas o afrontamento que os desvela ou a fron-teira difusa que se coloca para o leitor como desafio que instiga a descobrir os limites que os envolvem. A leitura desse dirio aponta, em Barthes, o caminho que o transforma de autor-crtico em leitor de si mesmo, de artista, em semilogo das linguagens. Nessa leitura de si, o crtico e escritor se desafiam para proporcionar, ao leitor de am-bos, uma reviso da literatura a partir da leitura responsvel pela descoberta do autor nos textos que l o crtico na maneira como des-cobre esse autor/leitor. Entre o ficcionista e crtico h apenas um dis-farce de autores, ambos so leitores sagazes.

    Ao fragmento junta-se o romanesco6, o romanesco um mo-do de notao, de enquadramento do real cotidiano, um modo de fra-gmentao; e captado, de preferncia quando se produz (MARIEL-

    6 O romanesco a palavra-chave para Barthes, uma forma discursiva no estruturada (no uma histria, uma anedota, com personagens, no um romance), notao, investimento, interesse pelo real cotidiano, pessoas, o que se passa na vida (BAR-THES, 1982, p. 219).

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    LE, 2010). Mesmo falando de luto, o dirio, atravs do romanesco refora a passagem entre a vida e a literatura, entre o romanesco e a passagem que se faz atravs da fragmentao, da descontinuidade - modo de notao, de enquadramento ou mesmo de picturalizao do cotidiano, o romanesco torna-se a matria de uma escritura curta, certa ideia da errncia da vida cotidiana. Tal como o romance de Proust, o narrador-protagonista, nesse dirio, estabelece uma busca potica da realidade perdida do passado, e uma busca dos meios ar-tsticos para recri-la colocando no papel suas memrias ou reminis-cncias.

    Observando-se e envolvido em tdio (e fazendo o leitor per-ceber esse sentimento) - feito espectador de si mesmo, em pleno de-sinvestimento do mundo - Barthes vai preenchendo o dirio com um cotidiano nfimo, em meio insnia, na volta de incurses noturnas que comeam e acabam na posio melanclica. Barthes, como em muitos outros textos, perseguia o tempo todo a escritura, tanto na prtica como na teoria, uma teoria que, parecendo pretender concei-tuar a escritura, era ela mesma um discurso escritural. Por isso em Dirio de Luto, no acontece diferente disso, ele uma espcie de Fragments dun discours amoureux mais pessoal e delicado. Mostra, que, tal como a vida, a morte carrega o simbolismo da primeira vez e a sua carga semntica que ensombra todos os dias. a primeira noite de luto, o primeiro domingo, o regresso casa vazia, a primeira neve em Paris sem a presena da me. A dor, que inscrita nas fichas e nos significantes, ser substituda pelo receio da repetio. Ao longo dos dias, a descoberta da banalidade no luto Ao tomar estas notas, confio-me banalidade que existe em mim (BARTHES, 2009, p.25) traz-lhe um novo olhar sobre o apartamento onde vivia, as pessoas da rua, a ida pastelaria, a repetio de rituais quotidianos sem a presena da me. O dirio para Barthes no revigora na escrita a questo trgica do louco: Quem sou eu? (BARTHES, 1988, p. 371), mas apresenta a questo cmica do desvario: Sou?. O dirio traz em si um paradoxo: ao constituir-se numa forma obsoleta de es-crita (o limbo do Texto, a sua forma inconstituda, inevoluda e imatura) tambm um retalho autntico desse Texto (BARTHES, 1988, p. 371). Diante do dirio, o prprio crtico afirma: Ao escre-ver o meu Dirio, estou, por estatuto, condenado simulao. Dupla

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    simulao, at: porque, sendo toda emoo cpia da mesma emoo que se leu em algum lugar (BARTHES, 1988, p. 370).

    Jogar com o privado, permitindo a mirada voyeurista, no o que mais surpreende em Barthes, autor de escritos ntimos - discurso que, progressivamente, ele foi se subjetivando, adotando o fragmento e a notao, a comear pelas notas de viagem do livro LEmpire des Signes [1970] e, de forma esparsa, em Roland Barthes par Roland Barthes [1975] e, ainda, com a presena da primeira pessoa do sin-gular, plenamente em cena desde Fragments dun discours amou-reux [1977]. Esse dirio se escreve, assim, em nome do morto, em direo morte. Futura ou presente, anunciada ou encenada, ela pai-ra sobre o texto. E com ela, o gozo do diarista, por isso, tambm, a escrita descontnua e lacunar, que encena o vazio: ali tm lugar a ruptura, a ciso e, sobretudo, o silencio. Linhas, fragmentos, fichas em torno de um vazio, palavras no lugar do indizvel, lpide sobre as runas, epitfio para a me.

    Enfim, buscar a definio de autobiografia7 como uma frmu-la clara e total, conforme observa Lejeune seria um fracasso. Por is-so, o terico pontua que a autobiografia se define a esse nvel glo-bal: um modo de leitura tanto como um tipo de escritura, um efei-to contratual que varia historicamente (p. 60). Ressaltando pontos importantes dos estudos autobiogrficos, Lejeune percebe que a t-nica da questo perceber a autobiografia como um gnero contratu-al, indo alm das estruturas aparentes do texto, colocando em ques-to as posies do autor e do leitor.

    Nesse dirio, os fragmentos exibem-se como espetculo das impresses dos acontecimentos, dos testemunhos literrios e do luto, da observao minuciosa, da histria e da vida pessoal, transcritas, inscritas, reescritas no dirio, em um espao autobiogrfico, de que fala Philipe Lejeune. A esttica do fragmento, para Latuf Isaias Mu-cci, recria um espao literrio, postulado por Maurice Blanchot (1907-2003), em que cintilam, significam, reverberam resduos, tra-

    7 Autobiografia e dirio so gneros diferentes, mas possuem em comum o fato de tra-balharem com uma forma especfica de narrativa - a prosa - e remeterem a uma tem-poralidade inscrita no campo da memria (o passado), tendo como eixo norteador o relato da vida de um eu. E, so, justamente, essas caractersticas que os fazem com-partilhar da denominao prosa memorialstica.

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    os, marcas discursivas. Dele, resulta um relativismo esttico e hist-rico, que amalgama o criador e o leitor, no desenho da rede escritu-ral, onde bailam os objetos percebidos, os signos lidos, relidos e in-terpretados, reinterpretados.

    A escrita do gozo, nesse caso, constitui, nesse dirio, uma es-crita que se aproxima da morte, da perda, da destruio das certezas do sujeito, da runa de seus alicerces: Avec lcrivain de jouissance (et son lecteur) commence Le texte intenable, le texte impossible8 [BARTHES, 1977, p. 37). Assim, pondo-se, com efeito, na posio daquele que faz e no mais na daquele que fala sobre um discurso, Barthes-escritor endossar sua produo, fundamentalmente, a partir das proposies do fragmento e do romanesco nesse dirio ou em muitos outros ensaios crticos.

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    8 Como o escritor de gozo (e seu leitor) comea o texto insustentvel, o texto impos-svel. [BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. 1977. Paris. Seuil. p.37].

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