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Elementos de Semiologia Roland Barthes Libre

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Elementos de Semiologia Roland Barthes Libre

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  • ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA

  • A primeira edio deste livro foi publicada com a colaborao da Editora da Universidade

    de So Paulo.

  • ROLAND BARTHES

    ELEMENTOS DE

    SEMIOLOGIA

    Traduo de

    IZIDORO BLIKSTEIN

  • Ttulo do original:

    LMENTS DE SMIOLOGIE

    1964 by ditions du Seuil, Paris

    3. edio

    MCMLXXIV

    Direitos de traduo para o Brasil adquiridos com exclusividade pela

    EDITORA CULTRIX LTDA. Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, S. Paulo

    que se reserva a propriedade desta traduo.

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

  • NDICE

    CAPA ORELHA - CONTRACAPA

    AO LEITOR BRASILEIRO 8 INTRODUO 10

    I. LNGUA E FALA 15 I.1. Em Lingustica 17

    1. Em Saussure 17 2. A Lngua 17 3. A Fala 18 4. Dialtica da Lngua e da Fala 19 5. Em Hjelmslev 20 6. Problemas 21 7. O idioleto 23 8. Estruturas duplas 24

    I.2. Perspectivas Semiolgicas 26 1. Lngua, Fala e Cincias Humanas 26 2. O vesturio 28 3. A alimentao 30 4. O automvel, o mobilirio 30 5. Sistemas complexos 31 6. Problemas (I): origem dos sistemas 32 7. Problemas (II): a relao Lngua/Fala 34

    II. SIGNIFICADO E SIGNIFICANTE 39

    II. 1. O Signo 39 1. A classificao dos signos 39 2. O signo lingustico 42 3. Forma e substncia 43 4. O signo semiolgico 44

    II.2. O Significado 46 1. Natureza do significado 46 2. Classificao dos significados lingusticos 47 3. Os significados semiolgicos 48

  • II.3. O Significante 50 1. Natureza do significante 50 2. Classificao dos significantes 50

    II.4. A Significao 51 1. A correlao significativa 51 2. Arbitrariedade e motivao em Lingustica 52 3. Arbitrariedade e motivao em Semiologia 54

    II.5. O Valor 56 1. O valor em Lingustica 56 2. A articulao 58

    III. SINTAGMA E SISTEMA 63

    III. 1. Os Dois Eixos da Linguagem 63 1. Relaes sintagmticas e associativas em Lingustica 63 2. Metfora e metonmia em Jakobson 64 3. Perspectivas semiolgicas 66

    III.2. O Sintagma 66 1. Sintagma e Fala 66 2. A descontinuidade 68 3. A prova de comutao 69 4. As unidades sintagmticas 71 5. As presses combinatrias 73 6. Identidade e distncia das unidades sintagmticas 74

    III.3. O Sistema 75 1. Semelhana e dessemelhana; a diferena 75 2. As oposies 77 3. A classificao das oposies 78 4. As oposies semiolgicas 83 5. O binarismo 84 6. A neutralizao 86 7. Transgresses 89

    IV. DENOTAO E CONOTAO 95 IV. 1. Os Sistemas desengatados 95 IV.2. A conotao 96 IV.3. A metalinguagem 97 IV.4. Conotao e metalinguagem 98 Concluso: a pesquisa semiolgica 101 BIBLIOGRAFIA CRTICA 107 NDICE SEMIOLGICO 113

  • AO LEITOR BRASILEIRO

    A histria da Semiologia curta e, todavia, j bastante rica. Em sua forma francesa, nasceu ela h cerca de uns quinze anos, quando se retomou a postulao feita por Saussure no seu Curso de Lingustica Geral, a saber: que pode existir, que existir uma cincia dos signos, que tomaria emprestado da Lingustica seus conceitos principais, mas da qual a prpria Lingustica no passaria de um departamento. Em seus primrdios franceses, (que podemos situar volta de 1956), a tarefa da Semiologia era dupla: de um lado, esboar uma teoria geral da pesquisa semiolgica, de outro elaborar semiticas particulares, aplicadas a objetos, a domnios circunscritos (o vesturio, a alimentao, a cidade, a narrativa, etc).

    Os ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA, que so hoje apresentados ao leitor brasileiro, dizem respeito primeira dessas tarefas: originariamente, foram organizados em forma oral no primeiro seminrio que realizei na Escola Prtica de Altos Estudos em 1962-6 3; foram a seguir publicados em italiano a pedido do grande escritor Elio Vittorini, pouco tempo antes de sua morte. Se recordo aqui o nome desse autor porque devemos desde logo convencer-nos de que a vocao da Semiologia (eu, pelo menos, penso assim) no puramente cientfica, mas relaciona-se com o conjunto do saber e da escritura.

    Cumpre, sem dvida, manejar com precauo os conceitos transmitidos pela Lingustica Semiologia, e a essa exigncia que buscam atender estes ELEMENTOS: do-se definies que esto firmadas na cincia lingustica (a de Saussure, Hjelmslev, Jakobson, Benveniste: a de Chomsky parece ter pouca influncia sobre a Semiologia, a no ser no que concerne anlise da narrativa) e que, no entanto, so sempre levadas at os limites

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  • da Lingustica, onde o signo traduzvel em outros sistemas que no a linguagem articulada. Os ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA propem um vocabulrio, sem o qual a inveno de pesquisa no seria possvel.

    Por outras palavras, cumpre passar por estes ELEMENTOS, mas no deter-se neles. Cada leitor deve reproduzir em si o movimento histrico que, a partir destas bases necessrias, levou a Semiologia no somente a aprofundar-se (o que normal), mas tambm a diversificar-se, fragmentar-se, at mesmo contradizer-se (entrar no campo fecundo das contradies), em suma, expor-se. Isso, a Semiologia o pde fazer porque, jovem cincia recm esboada e ainda frgil, buscou ela avidamente, posso dizer, contato com outras cincias, outras disciplinas, outras exigncias. Faz dez anos que a Semiologia (francesa) se movimenta consideravelmente: forada a deslocar-se, a arriscar bastante em cada encontro, manteve ela um dilogo constante e transformador com: o estruturalismo etnolgico (Lvi-Strauss), a anlise das formas literrias (os formalistas russos, Propp), a Psicanlise (Lacan), a Filosofia (Derrida), o marxismo (Althusser), a teoria do Texto (Sollers, Julia Kristeva). todo esta fulgurao ardente, frequentes por vezes polmica, arriscada, que se deve ler retrospectivamente na histria da Semiologia: sendo precisamente a linguagem que questiona continuamente a linguagem, ela honra, por natureza, as duas tarefas que Brecht assinalava ao intelectual neste perodo da Histria: liquidar (as antigas ideologias) e teorizar (o novo saber, o novo agente, a nova relao social). Isto , qualquer que seja a exigncia cientfica de que se deva investir a pesquisa semiolgica, essa pesquisa tem imediatamente, no mundo tal como , uma responsabilidade humana, histrica, filosfica, poltica.

    Tive muitas vezes a feliz oportunidade de conhecer pesquisadores, estudiosos, escritores brasileiros, pelo que estou convencido de que consideraro estes ELEMENTOS to modestos (isto dito sem nenhum Coquetismo) com esprito livre, caloroso, transformador, aquilo que pretendiam ser desde o comeo: um ponto de partida.

    Setembro de 1971. ROLAND BARTHES

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  • INTRODUO

  • ,\

    Em seu Curso de Lingustica Geral, publicado pela primeira vez em 1916, Saussure postulava a existncia de uma cincia geral dos signos, ou Semiologia, da qual a Lingustica no seria seno uma parte. Prospectivamente, a Semiologia tem por objeto, ento, qualquer sistema de signos, seja qual for sua substncia, sejam quais forem seus limites: imagens, os gestos, os sons meldicos, os objetos e os complexos dessas substncias que se encontram nos ritos, protocolos ou espetculos, se no constituem "linguagens", so, pelo menos, sistemas de significao. certo que o desenvolvimento das comunicaes de massa d hoje uma grande atualidade a esse campo imenso da significao, exatamente no momento em que o xito de disciplinas como a Lingustica, a Teoria da Informao, a Lgica Formal e a Antropologia Estrutural fornecem novos meios anlise semntica. Atualmente, h uma solicitao semiolgica oriunda, no da fantasia de alguns pesquisadores, mas da prpria histria do mundo moderno.

    Entretanto, embora a idia de Saussure tenha progredido muito, a Semiologia investiga-se lentamente. A razo disto simples, talvez: Saussure, retomado pelos principais semilogos, pensava que a Lingustica era apenas uma parte da cincia geral dos signos. Ora, no absolutamente certo que existam, na vida social de nosso tempo, outros sistemas de signos de certa amplitude, alm da linguagem humana. A Semiologia s se

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  • ocupou, at agora, de cdigos de interesse irrisrio, como o cdigo rodovirio; logo que passamos a conjuntos dotados de uma verdadeira profundidade sociolgica, deparamos novamente com a linguagem. Objetos, imagens, comportamentos podem significar, claro est, e o fazem abundantemente, mas nunca de uma maneira autnoma; qualquer sistema semiolgico repassa-se de linguagem, A substncia visual, por exemplo, confirma suas significaes ao fazer-se repetir por uma mensagem lingustica ( o caso do cinema, da publicidade, das historietas em quadrinhos, da fotografia de imprensa etc), de modo que ao menos uma parte da mensagem icnica est numa relao estrutural de redundncia ou revezamento com o sistema da lngua; quanto aos conjuntos de objetos (vesturio, alimentos), estes s alcanam o estatuto de sistemas, quando passam pela mediao da lngua, que lhes recorta os significantes (sob a forma de nomenclaturas) e lhes denomina os significados (sob a forma de usos ou razes); ns somos, muito mais do que outrora e a despeito da invaso das imagens, uma civilizao da escrita. Enfim, de um modo muito mais geral, parece cada vez mais difcil conceber um sistema de imagens ou objetos, cujos significados possam existir fora da linguagem: perceber o que significa uma substncia , fatalmente, recorrer ao recorte da lngua: sentido s existe quando denominado, e o mundo dos significados no outro seno o da linguagem.

    Assim, apesar de trabalhar, de incio, com substncias no-lingusticas, o semilogo levado a encontrar, mais cedo ou mais tarde, a linguagem (a "verdadeira") em seu caminho, no s a ttulo de modelo mas tambm a ttulo de componentes, de mediao ou de significado. Essa linguagem, entretanto, no exatamente a dos linguistas: uma segunda linguagem, cujas unidades no so mais os monemas ou os fonemas, mas fragmentos mais extensos do discurso; estes remetem a objetos ou episdios que significam sob a linguagem, mas nunca sem ela.

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  • A Semiologia talvez, ento, chamada a absorver-se numa trans-lingustica, cuja matria ser ora o mito, a narrativa, o artigo de imprensa, ora os objetos de nossa civilizao, tanto quanto sejam falados (por meio da imprensa, do prospecto, da entrevista, da conversa e talvez mesmo da linguagem interior, de ordem fantasmtica). preciso, em suma, admitir desde agora a possibilidade de revirar um dia a proposio de Saussure: a Lingustica no uma parte, mesmo privilegiada, da cincia geral dos signos: a Semiologia que uma parte da Lingustica; mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso. Da surgiria a unidade das pesquisas levadas a efeito atualmente em Antropologia, Sociologia, Psicanlise e Estilstica acerca do conceito de significao.

    Solicitada algum dia sem dvida a transformar-se, a Semiologia deve entretanto, primeiramente, quando se constituir, pelo menos ensaiar-se, explorar suas possibilidades e suas impossibilidades. S se pode fazer isto a partir de uma informao preparatria. Ora, preciso aceitar de antemo que essa informao seja, ao mesmo tempo, tmida e temerria: tmida porque o saber semiolgico no pode ser, atualmente, seno uma cpia do saber lingustico; temerria porque esse saber deve aplicar-se j, pelo menos em projeto, a objetos no-lingusticos.

    Os Elementos aqui apresentados no tm outro objetivo que no seja tirar da Lingustica os conceitos analticos1 a respeito dos quais se pensa a priori serem suficientemente gerais para permitir a preparao da pesquisa semiolgica. No conjeturamos, ao reuni-los, se subsistiro intactos no decurso da pesquisa; nem se a Semiologia dever sempre seguir estreitamente

    1. "Um conceito, certamente, no uma coisa, mas no tampouco somente a conscincia de um conceito. Um conceito um instrumento e uma histria, isto , um feixe de possibilidades e de obstculos envolvido num mundo vivido." (G. G. GRANGER: Mthodologie conomique, p. 23).

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  • o modelo lingustico 2. Contentamo-nos com propor e esclarecer uma terminologia, desejando que ela permita introduzir uma ordem inicial (mesmo provisria) na massa heterclita dos fatos significantes: trata-se, em suma, de um princpio de classificao de questes.

    Agruparemos, pois, estes Elementos de Semiologia sob quatro grandes rubricas, oriundas da Lingustica Estrutural: I. Lngua e Fala; II. Significado e Significante; III. Sintagma e Sistema; IV. Denotao e Conotao. Estas rubricas, percebe-se, apresentam-se sob forma dicotmica; observaremos que a classificao binria dos conceitos parece frequente no pensamento estrutural3, como se a metalinguagem do linguista reproduzisse "em abismo" a estrutura binria do sistema que descreve; e indicaremos, de passagem, que seria muito instrutivo, sem dvida, estudar a preeminncia da classificao binria no discurso das cincias humanas contemporneas; a taxinomia dessas cincias, se fosse bem conhecida, informaria certamente a respeito daquilo que se poderia chamar o imaginrio intelectual de nossa poca.

    2. Perigo sublinhado por CLAUDE LVI-STRAUSS (Antropologie structurale, p. 58 [Antropologia Estrutural, trad. de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio, Tempo Brasileiro, 1967],

    3. Esse trao foi notado (com suspeio) por M. COHEN ("Linguistique moderne et idealisme", in: Recherches intern., maio, 1958, n. 7).

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  • I

    LNGUA

    E

    FALA

  • I. 1. EM LINGUSTICA

    I. 1.1. O conceito (dicotmico) de Lngua/Fala central em Saussure e constituiu certamente uma grande novidade com relao Lingustica anterior, preocupada com procurar as causas da mudana histrica nos deslizamentos de pronncia, nas associaes espontneas e na ao da analogia, e que era, por conseguinte, uma Lingustica do ato individual. Para elaborar esta clebre dicotomia, Saussure partiu da natureza "multiforme e heterclita" da Linguagem, que se revela primeira vista como uma realidade inclassificvel4, cuja unidade no se pode isolar, j que participa, ao mesmo tempo, do fsico, do fisiolgico e do psquico, do individual e do social. Pois essa desordem cessa se, desse todo heterclito, se abstrai um puro objeto social, conjunto sistemtico das convenes necessrias comunicao, indiferente matria dos sinais que o compem, e que a lngua, diante de que a fala recobre a parte puramente individual da linguagem (fonao, realizao das regras e combinaes contingentes de signos).

    I.1.2. A Lngua ento, praticamente, a linguagem menos a Fala: , ao mesmo tempo, uma instituio social e um

    4. Observe-se que a primeira definio de lngua de ordem taxinmica: um princpio de classificao.

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  • sistema de valores. Como instituio social, ela no absolutamente um ato, escapa a qualquer premeditao; a parte social da linguagem; o indivduo no pode, sozinho, nem cri-la nem modific-la. Trata-se essencialmente de um contrato coletivo ao qual temos de submeter-nos em bloco se quisermos comunicar; alm disto, este produto social autnomo, maneira de um jogo com as suas regras, pois s se pode manej-lo depois de uma aprendizagem. Como sistema de valores, a Lngua constituda por um pequeno nmero de elementos de que cada um , ao mesmo tempo, um vale-por e o termo de uma funo mais ampla onde se colocam, diferencialmente, outros valores correlativos; sob o ponto de vista da lngua, o signo como uma moeda5: esta vale por certo bem que permite comprar, mas vale tambm com relao a outras moedas, de valor mais forte ou mais fraco. O aspecto institucional e o aspecto sistemtico esto evidentemente ligados: porque a lngua um sistema de valores contratuais (em parte arbitrrios, ou, para ser mais exato, imotivados) que resiste s modificaes do indivduo sozinho e que. consequentemente, uma instituio social.

    I.1.3. Diante da lngua, instituio e sistema, a Fala essencialmente um ato individual de seleo e atualizao; constituem-na, primeiro, as "combinaes graas s quais o falante pode utilizar o cdigo da lngua com vistas a exprimir o pensamento pessoal" (poder-se-ia chamar de discurso esta fala desdobrada), e depois os "mecanismos psicofsicos que lhe permitem exteriorizar estas combinaes"; certo que a fonao, por exemplo, no pode ser confundida com a Lngua: nem a instituio nem o sistema so alterados, se o indivduo que a eles recorre fala em voz alta ou baixa, conforme uma elocuo lenta ou rpida etc. O aspecto combinatrio da Fala

    5. Cf. infra, II, 5, 1.

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  • evidentemente capital, pois implica que -a Fala se constitui pelo retorno de signos idnticos: porque os signos se repetem de um discurso a outro e num mesmo discurso (embora combinados segundo a diversidade infinita das palavras) que cada signo se torna um elemento da Lngua; porque a Fala essencialmente uma combinatria que corresponde a um ato individual e no a uma criao pura.

    I.1.4. Lngua e Faia: cada um destes dois termos s tira evidentemente sua definio plena do processo dialtico que une um ao outro: no h lngua sem fala e no h fala fora da lngua; nessa troca que se situa a verdadeira praxis lingustica, como o indicou Maurice Merleau-Ponty. "A Lngua, tambm disse V. Brondal6, uma entidade puramente abstrata, uma norma superior aos indivduos, um conjunto de tipos essenciais, que realiza a fala de modo infinitamente varivel". Lngua e Fala esto, portanto, numa relao de compreenso recproca; de um lado, a Lngua "o tesouro depositado pela prtica da Fala nos indivduos pertencentes a uma mesma comunidade", e, por ser uma soma coletiva de marcas individuais, ela s pode ser incompleta no nvel de cada indivduo isolado; a Lngua existe perfeitamente apenas na "massa falante". S podemos manejar uma fala quando a destacamos na lngua; mas, por outro lado, a lngua s possvel a partir da fala: historicamente, os fatos de fala precedem sempre os fatos de lngua ( a fala que faz a lngua evoluir), e, geneticamente, a lngua constitui-se no indivduo pela aprendizagem da fala que o envolve (no se ensina a gramtica e o vocabulrio, isto , a lngua, de um modo geral, aos bebs). A Lngua , em suma, o produto e o instrumento da Fala, ao mesmo tempo: trata-se realmente, portanto, de uma verdadeira dialtica. Notaremos (fato importante quando

    6. Acta Linguistica, I. 1.p. 5.

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  • passarmos s perspectivas semiolgicas) que no poderia haver (para Saussure, pelo menos) uma lingustica da Fala, pois qualquer fala, desde que tomada como processo de comunicao, j lngua: s h cincia da Lngua. Isto afasta de pronto duas questes: intil perguntar-se se cumpre estudar a fala antes da lngua; a alternativa impossvel e s se pode estudar imediatamente a fala no que ela tem de lingustico (de "gltico"). igualmente intil perguntar-se, primeiro, como separar a lngua da fala: no se trata a de uma diligncia prvia, mas, muito ao contrrio, da prpria essncia da investigao lingustica (e semiolgica, mais tarde): separar a lngua da fala , de um s lance, estabelecer o processo do sentido,

    I.1.5. Hjelmslev7 no subverteu a concepo saussuriana da Lngua/Fala, mas redistribuiu-lhe os termos de maneira mais formal. Na lngua em si (que fica sempre oposta ao ato da fala), Hjelmslev distingue trs planos: 1) o esquema, que a lngua como forma pura (Hjelmslev hesitou em dar a esse plano o nome de "sistema", "pattern" ou "armao"): trata-se da lngua saussuriana, no sentido rigoroso do termo; ser, por exemplo r francs definido fonologicamente por seu lugar numa srie de oposies; 2) a norma, que a lngua como forma material, j definida por certa realizao social, mas independente ainda dos pormenores dessa manifestao ser o r do francs oral, seja qual for sua pronncia (mas no o do francs escrito); 3) o uso, que a lngua como conjunto de hbitos de uma determinada sociedade: ser o r de certas regies. Entre fala, uso, norma e esquema, as relaes de determinao so variadas: a norma determina o uso e a fala; o uso determina a fala mas tambm por ela determinado; o esquema determinado, ao mesmo tempo, pela fala, pelo. uso e pela norma. Vemos

    7. L. HJELMSLEV: Essais linguistiques; Copenhague, 1959, p. 69 e ss.

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  • aparecer assim, de fato, dois planos fundamentais: 1) o esquema, cuja teoria se confunde com a teoria da forma s e da instituio; 2) o grupo Norma-Uso-Fala, cuja teoria se confunde com a teoria da substncia 9 e da execuo; como segundo Hjelmslev a norma uma pura abstrao de mtodo e a fala uma simples concretizao ("um documento passageiro"), reencontra-se, para terminar, uma nova dicotomia, Esquema/Uso, que se substitui ao par Lngua/Fala. O remanejamento hjelmsleviano, entretanto, no indiferente: ele formaliza radicalmente o conceito de Lngua (sob o nome de esquema) e elimina a fala concreta em proveito de um conceito mais social, o uso; formalizao da lngua, socializao da fala, este movimento permite passarmos todo o "positivo" e o "substancial" para o lado da fala, todo o diferencial para o lado da lngua, o que vantajoso, como veremos daqui a pouco, por levantar uma das contradies colocadas pela distino saussuriana da Lngua e da Fala.

    I.1.6. Seja qual for sua riqueza, seja qual for o proveito que dela se possa tirar, tal distino no tem quadrado, na verdade, sem colocar alguns problemas. Indicaremos aqui trs deles. O primeiro o seguinte: ser que se pode identificar a lngua com o cdigo e a fala com a mensagem? Esta identificao impossvel segundo a teoria hjelmsleviana; Pierre Guiraud a recusa, porque, segundo ele, as convenes do cdigo so explcitas e as da lngua so implcitas 10, mas ela certamente aceitvel na perspectiva saussuriana, e Andr Martinet a leva em conta11. Anlogo problema pode ser colocado ao

    ________________________________________________________

    8. Cf. infra, II, 1, 3. 9. Cf. infra II, 1, 3.

    10. "La mcanique de l'analyse quantitative en linguistique", in: tudes de linguistique applique, 2, Didier, p. 37.

    11. A. MARTINET: lments de Linguistique gnrale, Armand Colin, 1960, p. 30.

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  • interrogarmo-nos a respeito das relaes entre a fala e o sintagma12; a fala, j o vimos, pode ser definida, alm das amplitudes da fonao, como uma combinao (variada) de signos (recorrentes); no nvel da lngua em si, todavia, j existem certos sintagmas cristalizados (Saussure cita uma palavra composta como magnanimus); o limiar que separa a lngua da fala pode ento ser frgil, j que aqui constitudo por "certo grau de combinao". E eis introduzida desde ento a anlise dos sintagmas cristalizados, de natureza lingustica (gltica) todavia, visto que se oferecem em bloco variao paradigmtica (Hjelmslev denomina tal anlise a morfo-sintaxe); Saussure notara esse fenmeno de passagem: "H tambm, provavelmente, toda uma srie de frases pertencentes lngua, as quais o indivduo no tem mais de combinar por si mesmo." 13 Se esses esteretipos pertencem lngua, e no mais fala, e se se verificou que numerosos sistemas semiolgicos os utilizam, trata-se ento de uma verdadeira lingustica do sintagma, que se deve prever, necessria para todas as "escrituras" fortemente estereotipadas. O terceiro problema, enfim, que indicaremos aqui, concerne s relaes entre a lngua e a pertinncia (isto , do elemento propriamente significante da unidade); identificou-se (o prprio Trubetzkoy), s vezes, a pertinncia e a lngua, rejeitando assim da lngua todos os traos no-pertinentes, isto , as variantes combinatrias. Esta identificao, entretanto, causa problema, pois existem variantes combinatrias (dependentes, portanto, primeira vista, da fala) que so, contudo, impostas, isto , "arbitrrias": em francs, imposto pela lngua que o l seja surdo aps uma surda (oncle) e sonoro aps uma sonora (ongle). sem que estes fatos deixem de pertencer simples Fontica (e

    12. Cf. infra, acerca do sintagma, cap. III. 13. Saussure, in: R. GODEL: Les sources manuscrites du Cours de Linguistique Cnrale de F. de Saussure. Droz, Minard. 1957, p. 90.

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  • no Fonologia); v-se a consequncia terica: preciso admitir que, contrariamente afirmao de Saussure ("na lngua s h diferenas"), o que no diferenciativo possa assim mesmo pertencer lngua ( instituio)? Martinet assim pensa; Frei tenta poupar a Saussure a contradio, ao localizar as diferenas nos subfonemas: p no seria, em si, diferencial, mas somente, nele, os traos consonntico, oclusivo, surdo, labial etc. No exatamente este o momento de tomar partido a respeito de tais problemas de um ponto de vista semiolgico, reter-se- a necessidade de aceitar a existncia de sintagmas e de variaes no-significantes que sejam contudo "glticas", vale dizer, que pertenam lngua; esta lingustica, pouco prevista por Saussure, pode adquirir uma grande importncia em qualquer lugar onde reinarem os sintagmas cristalizados (ou esteretipos), o que sem dvida o caso das linguagens de massa, e sempre que variaes no-significantes formarem um corpo de significantes segundos, o que o caso das linguagens de muita conotao 14: o r "roul" 15 uma simples variao combinatria no nvel da denotao, mas na linguagem de teatro, por exemplo, ele ostenta o sotaque campons e participa, consequentemente, de um cdigo, sem o qual a mensagem de "ruralidade" no poderia ser emitida nem percebida.

    I.1.7. Para terminar com Lngua/Fala em Lingustica, indicaremos aqui dois conceitos anexos, revelados desde Saussure, O primeiro o do idioleto 16

    . O idioleto "a linguagem enquanto falada por um s indivduo" (Martinet), ou ainda "o

    14. Cf. infra, cap. IV. 15. Trata-se da vibrante apical, rolada, anterior. No Brasil, um exemplo semelhante seria o r com uma articulao retroflexa (o r "caipira" do interior de So Paulo), variante da vibrante apical simples. (N. do T.)

    16. R. JAKOBSON: "Deux aspects du langage...", in: Essais de Linguistique Gnrale, d. du Minuit, 1963, p. 54 [includo em: Roman

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  • jogo inteiro dos hbitos de um s indivduo num determinado momento" (Ebeling). Jakobson contestou o interesse desta noo: a linguagem sempre socializada, mesmo no nvel individual, pois, quando se fala a algum, tenta-se sempre mais ou menos falar sua linguagem, principalmente seu vocabulrio ("a propriedade privada, no domnio da linguagem, no existe"): o idioleto seria ento uma noo bastante ilusria. Reteremos no entanto que o idioleto pode ser bem til para designar as seguintes realidades: 1) a linguagem do afsico que no compreende outrem, no recebe uma mensagem conforme seus prprios modelos verbais, sendo esta linguagem, ento, um idioleto puro (Jakobson); 2) o "estilo" de um escritor, ainda que o estilo esteja sempre impregnado de certos modelos verbais oriundos da tradio, isto , da coletividade; 3) podemos, enfim, francamente alargar a noo e definir o idioleto como a linguagem de uma comunidade lingustica, isto , de um grupo de pessoas que interpretam da mesma maneira todos os enunciados lingusticos; o idioleto corresponderia ento, pouco mais ou menos, ao que tentamos descrever em outra parte sob o nome de escritura 17. De modo geral, as apalpadelas que conceito de idioleto testemunha apenas traduzem a necessidade de uma entidade intermediria entre a fala e a lngua (como j o provava a teoria do uso, em Hjelmslev), ou, se preferirmos, de uma fala j institucionalizada, mas no ainda radicalmente formalizvel, como a lngua.

    I.1.8. Se aceitamos identificar Lngua/Fala e Cdigo/Mensagem, preciso mencionar aqui um segundo conceito

    Jakobson, Lingustica e Comunicao, trad. de Izidoro Blikstein e Jos Paulo Paes, S. Paulo, Cultrix, 1969]. C. L. Ebeling; Linguistic units, Mouton, Haia, 1960, p. 9. A. Martinet: A functional view of language, Oxford, Clarendon Press, 1962, p. 105.

    17. Le degr zro de l'criture, Seuil, 1953 [O Grau Zero da Escritura, trad. de lvaro Lorencini e Anne rnichand, Cultrix, 1971].

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  • anexo que Jakobson elaborou sob o nome de estruturas duplas (duplex structures); no insistiremos muito neste ponto, pois a exposio de Jakobson foi retomada em seus Ensaios de Lingustica Geral (cap. 9), Indicaremos apenas que, sob o nome de estruturas duplas, Jakobson estuda certos casos particulares da relao geral Cdigo/Mensagem: dois casos de circularidade e dois casos de acavalamento (overlapping): 1) discursos acrescentados ou mensagens dentro de uma mensagem (M/M): o caso geral dos estilos indiretos; 2) nomes prprios: o nome significa qualquer pessoa a quem esse nome atribudo e a circularidade do cdigo se torna evidente (C/C): Joo significa uma pessoa chamada Joo; 3) caso de autonmia ("Co uma slaba"): a palavra empregada aqui como sua prpria designao, a mensagem "acavala-se" sobre o cdigo (M/C); esta estrutura importante, pois recobre as "interpretaes elucidantes", vale dizer, as circunlocues, os sinnimos e as tradues de uma lngua a outra; 4) os shifters (ou "engatadores") constituem, indubitavelmente, a mais interessante estrutura dupla; o exemplo mais acessvel do shifter dado pelo pronome pessoal (eu, tu), "smbolo indiciai" que rene em si o lao convencional e o lao existencial: eu s pode, com efeito, representar seu objeto por uma regra convencional (que faz com que eu se torne ego em latim, ich em alemo etc), mas por outro lado, ao designar o proferidor, s pode referir-se existencialmente proferio (C/M); Jakobson lembra que os pronomes pessoais por muito tempo passaram por ser a camada mais primitiva da linguagem (Humboldt), mas que, segundo ele, se trata, ao contrrio, de uma relao complexa e adulta entre o Cdigo e a Mensagem. Os pronomes pessoais constituem a ltima aquisio da linguagem infantil e a primeira perda da afasia: so termos de transferncia difceis de se manejar. A teoria dos shifters parece pouco explorada ainda; , entretanto, muito fecundo, a priori, observar, se se pode dizer assim, o cdigo s voltas com a mensagem

    25

  • (pois o inverso muito mais banal); seria talvez (e a vai apenas uma hiptese de trabalho) junto aos shifters, que so, como vimos, smbolos indiciais, segundo a terminologia de Peirce, que se deveria procurar a definio semiolgica das mensagens que se situam nas fronteiras da linguagem, sobretudo certas formas de discurso literrio.

    I.2. PERSPECTIVAS SEMIOLGICAS

    I.2.1. O alcance sociolgico do conceito Lngua/Fala evidente. Cedo se sublinhou a afinidade manifesta entre a Lngua saussuriana e a concepo durkheimiana da conscincia coletiva, independente de suas manifestaes individuais; postulou-se at uma influncia direta de Durkheim sobre Saussure; Saussure teria seguido de perto o debate entre Durkheim e Tarde. Sua concepo da Lngua viria de Durkheim e sua concepo da Fala seria uma forma de concesso s idias de Tarde acerca do individual18. Esta hiptese perdeu a atualidade, porque a Lingustica desenvolveu sobretudo, dentro da idia da lngua saussuriana, o aspecto de "sistema de valores", o que levou a aceitar a necessidade de uma anlise imanente da instituio lingustica: imanncia que repugna pesquisa sociolgica. No ento, paradoxalmente, na rea da Sociologia que encontraremos o melhor desenvolvimento da noo Lngua/Fala; e sim na da Filosofia, com Merleau-Ponty, provavelmente um dos primeiros filsofos franceses a ter-se interessado por Saussure, ou porque tivesse retomado a distino saussuriana sob a forma de uma oposio entre fala falante (inteno significativa no estado nascente) e fala falada ("fortuna adquirida" pela

    18. W. DOROSZEWSKI: "Langue et Parole", Odbitka z Prac Filologicznych, XLV, Varsvia, 1930, pp. 485-97.

    26

  • lngua, que lembra bem o "tesouro" de Saussure) 19, ou porque tivesse alargado a noo, ao postular que qualquer processo pressupe um sistema20: assim elaborou-se uma oposio doravante clssica entre acontecimento e estrutura, 21 cuja fecundidade se conhece em Histria22. A noo saussuriana teve tambm, sabe-se, um grande desenvolvimento na rea da Antropologia; a referncia a Saussure demasiado explcita na obra inteira de Claude Lvi-Strauss para que seja mister nela insistir; lembraremos somente que a oposio entre o processo e o sistema (entre a Fala e a Lngua) se reencontra concretamente na passagem da comunicao das mulheres s estruturas do parentesco; que para Lvi-Strauss a oposio tem um valor epistemolgico: o estudo dos fatos da lngua depende da interpretao mecanista (no sentido lvi-straussiano, isto , por oposio ao estatstico) e estrutural, e o estudo dos fatos da fala liga-se ao clculo das probabilidades (macrolingustica) 23; por fim, que o carter inconsciente da lngua naqueles que nela colhem sua fala, postulado explicitamente por Saussure 24, reencontra-se numa das mais originais e fecundas posies de Claude Lvi-Strauss, a saber que no so os contedos que so inconscientes (crtica aos arqutipos de Jung), mas as formas, isto , a funo simblica: idia

    19. M. Merleau-Ponty, Phnomenologie de la Perception, 1945, p. 229. 20. M. MEBLEAU-PONTY, loge de la Philosophie, Gallimard, 1953. 21. G. GRANGER, "vnement et structure dans les sciences de l'homme", Cahiers de l'Inst. de science conomique applique, n. 55, maio, 1957. 22. Ver F. BRAUDEL; "Histoire et sciences sociales: la longue dure", in: Annales, oct.-dc.

    1958. 23. Anthropologie structurale, p. 230, e "Les mathmatiques de 1'homme", in: Esprit, out.

    1956. 24. "No h nunca premeditao, nem mesmo meditao ou reflexo acerca das formas, fora

    do ato, da ocasio da fala, a no ser uma atividade inconsciente, no criadora: a atividade de classificao." (Saussure, in: R. Godel, op cit. . p 58).

  • prxima da de Lacan, para quem o prprio desejo articulado como um sistema de significaes, o que acarreta, ou dever acarretar, descrever de novo modo o imaginrio coletivo, no por seus "temas", como se fez at agora, mas por suas formas e funes; digamos mais grosseiramente, mas mais claramente: mais por seus significantes do que por seus significados. V-se, por estas indicaes sumrias, como a noo Lngua/Fala rica de desenvolvimentos extra ou metalingusticos. Postularemos, pois, que existe uma categoria geral Lngua/Fala, extensiva a todos os sistemas de significao; na falta de algo melhor, conservaremos aqui os termos Lngua e Fala, mesmo se no se aplicarem a comunicaes cuja substncia no seja verbal.

    I.2.2. Vimos que a separao entre a Lngua e a Fala constitua o essencial da anlise lingustica; seria vo, pois, propor logo de sada esta separao para sistemas de objetos, imagens ou comportamentos que ainda no foram estudados sob um ponto de vista semntico. Podemos somente, para alguns dos sistemas propostos, prever que certas classes de fatos pertencero categoria Lngua e outras categoria Fala. dizendo logo que, nessa passagem semiolgica, a distino saussuriana est exposta a modificaes, as quais cumprir precisamente observar. Tomemos o vesturio, por exemplo: impe-se, sem dvida, distinguir aqui trs sistemas diferentes, conforme a substncia envolvida na comunicao. No vesturio escrito, ou seja, descrito por um jornal de moda por meio da linguagem articulada, no h "fala", por assim dizer: o vesturio descrito jamais corresponde a uma execuo individual das regras da moda, mas um exemplo sistemtico de signos e de regras: uma Lngua em estado puro. Segundo o esquema saussuriano, uma lngua sem fala seria impossvel; o que torna o fato aceitvel aqui que, de um lado, a lngua da Moda no emana da "massa falante", mas de um grupo de deciso, que elabora voluntariamente o cdigo, e, de

    28

  • outro lado, que a abstrao inerente a qualquer Lngua est aqui materializada sob a forma da linguagem escrita: o vesturio de moda (escrito) Lngua no nvel da comunicao indumentria e Fala no nvel da comunicao verbal. No vesturio fotografado (supondo que, para simplificar, ele no traduzido por uma descrio verbal), a Lngua se origina sempre do fashion-group, mas no mais se apresenta em sua abstrao, pois o vesturio fotografado sempre usado por uma mulher individual; o que oferecido pela fotografia de moda um estado semi-sistemtico do vesturio; pois, de um lado, a Lngua de moda deve ser inferida aqui de um vesturio pseudo-real e, de outro lado, a portadora do vesturio (o manequim fotografado) , por assim dizer, um indivduo normativo, escolhido em funo de sua generalidade cannica, e que representa, consequentemente, uma "fala" cristalizada, desprovida de qualquer liberdade combinatria. Finalmente, no vesturio usado (ou real), como o havia sugerido Trubetzkoy 25, reencontra-se a clssica distino entre a Lngua e a Fala: A Lngua indumentria constituda: 1) pelas oposies de peas, encaixes ou "pormenores", cuja variao acarreta uma mudana do sentido (no tem o mesmo sentido usar uma boina ou um chapu-cco); 2) pelas regras que presidem associao das peas entre si, seja ao longo do corpo, seja na largura; a Fala indumentria compreende todos os fatos de fabricao annima (o que j no subsiste praticamente em nossa sociedade) ou de uso individual (medida da roupa, grau de propriedade, de gasto, manias pessoais, associaes livres de peas); quanto dialtica que une aqui a indumentria (Lngua) e o traje (Fala), ela no se parece da linguagem; certamente, o traje sempre colhido na indumentria (salvo no caso da excentricidade, a qual, alis, tambm tem seus signos), mas a indumentria, hoje pelo menos, precede o traje, j que vem da

    25. Prncipes de Phonologie (trad. J. Cantineau), p. 19.

    29

  • "confeco", isto , de um grupo minoritrio (embora mais annimo do que no caso da Alta Costura )

    I.2.3. Tomemos agora outro sistema de significao: a comida. A reencontraremos, sem dificuldade, a distino saussuriana. A Lngua alimentar constituda: 1) pelas regras de excluso (tabus alimentares); 2) peias oposies significantes de unidades que ficam por se determinar (do tipo, por exemplo: salgado/aucarado); 3) pelas regras de associao, seja simultnea (no nvel de um prato), seja sucessiva (no nvel de um cardpio); 4) pelos protocolos de uso, que funcionam talvez como uma espcie de retrica alimentar. Quanto "fala" alimentar, muito rica, esta compreende todas as variaes pessoais (ou familiais) de preparao e associao (poder-se-ia considerar a cozinha de uma famlia, sujeita a certo nmero de hbitos, como um idioleto). O cardpio, por exemplo, ilustra muito bem o jogo entre a Lngua e a Fala: qualquer cardpio constitudo por referncia a uma estrutura (nacional ou regional e social), mas essa estrutura preenchida diferentemente conforme os dias e os usurios, exatamente como uma "frma" lingustica preenchida pelas livres variaes e combinaes de que tem necessidade um falante para uma mensagem particular. A relao entre a Lngua e a Fala estaria aqui bastante prxima daquela que encontramos na linguagem: , por alto, o uso, ou seja, uma espcie de sedimentao de falas, que constitui a lngua alimentar; os fatos de inovao individual (receitas inventadas), todavia, podem adquirir a um valor institucional; o que falta, em todo caso, e contrariamente ao sistema do vesturio, a ao de um grupo de deciso: a lngua alimentar constitui-se somente a partir de um uso largamente coletivo ou de uma "fala" pura mente individual.

    I.2.4. Para terminar, arbitrariamente alis, com as pers pectivas da distino Lngua/Fala, daremos ainda algumas

    30

  • sugestes concernentes a dois sistemas de objetos, muito diferentes certamente, mas que tm de comum o dependerem ambos de um grupo de deciso (de fabricao): o automvel e o mobilirio. No automvel, a "lngua" constituda por um conjunto de formas e "pormenores", cuja estrutura se estabelece diferencialmente pela comparao dos prottipos entre si (independentemente do nmero de suas "cpias"); a "fala" muito reduzida, pois, em igual posio, a liberdade de escolha do modelo extremamente limitada: s funciona em relao a dois ou trs modelos e, dentro de um modelo, quanto cor ou guarnio; mas talvez fosse necessrio aqui transformar a noo de objeto automvel em noo de fato automvel: reencontraramos ento na conduta automvel as variaes de uso do objeto que constituem ordinariamente o plano da fala; o usurio no pode, de fato, agir aqui diretamente no modelo para combinar-lhe as unidades; sua liberdade de execuo apia-se num uso desenvolvido no tempo e dentro do qual as "frmas" provindas da lngua devem, para atualizar-se, passar pela mediao de certas prticas. Finalmente, o mobilirio, ltimo sistema de que gostaramos de dizer duas palavras, constitui, tambm ele, um objeto semntico: a lngua ao mesmo tempo formada pelas oposies de mveis funcionalmente idnticos (dois tipos de armrios, dois tipos de camas etc.) e de que cada um, segundo seu "estilo", remete a um sentido diferente, e pelas regras de associao das diferentes unidades ao nvel da pea ("moblia"); a "fala" formada aqui seja pelas variaes insignificantes imprimidas a uma unidade pelo usurio ("ajeitando" um elemento, por exemplo) seja pelas liberdades de associao dos mveis entre si.

    I.2.5. Os sistemas mais interessantes, aqueles que ao menos esto ligados sociologia das comunicaes de massa, so complexos sistemas em que esto envolvidas diferentes substncias; no cinema, televiso e publicidade, os sentidos so

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  • tributrios de um concurso de imagens, sons e grafismos; prematuro, pois, fixar, para esses sistemas, a classe dos fatos da lngua e a dos fatos da fala, enquanto, por um lado, no se decidir se a "lngua" de cada um desses sistemas complexos original ou somente composta das "lnguas" subsidirias que deles participam, e, por outro lado, enquanto essas lnguas subsidirias no forem analisadas (conhecemos a "lngua" lingustica, mas ignoramos a "lngua" das imagens ou a da msica). Quanto Imprensa, que podemos considerar, razoavelmente, como um sistema de significao autnoma, ainda que nos limitemos a seus elementos escritos, ignoramos ainda quase tudo de um fenmeno lingustico que parece ter nela um papel capital: a conotao, vale dizer, o desenvolvimento de um sistema de sentido segundo, parasita, se se pode assim dizer, da lngua propriamente dita; este sistema segundo tambm uma "lngua" em relao qual se desenvolvem fatos de fala, idioletos e estruturas duplas. Para estes sistemas complexos ou conotados (os dois caracteres no so exclusivos), j no possvel ento predeterminar, mesmo de maneira global e hipottica, a classe dos fatos de lngua e a dos fatos de fala.

    I.2.6. A extenso semiolgica da noo Lngua/Fala no deixa de colocar certos problemas que coincidem, evidentemente, com os pontos em que o modelo lingustico no mais pode ser seguido e deve ser ajeitado. O primeiro problema concerne origem do sistema, ou seja, prpria dialtica entre a lngua e a fala. Na linguagem, no entra na lngua nada que no tenha sido ensaiado pela fala, mas, inversamente, fala alguma possvel (vale dizer, no responde sua funo de comunicao), se ela no destacada do tesouro da lngua. Este movimento ainda, parcialmente ao menos, o de um sistema como a comida, ainda que os fatos individuais de inovao nele possam tornar-se fatos de lngua; mas, para a maioria dos outros sistemas semiolgicos,

    32

  • a lngua elaborada, no pela "massa falante", mas por um grupo de deciso. Neste sentido, pode-se' dizer que, na maioria das lnguas semiolgicas, o signo verdadeiramente "arbitrrio",26 j que se funda, artificialmente, por uma deciso unilateral; trata-se, em suma, de linguagens fabricadas, de "logotcnicas"; 0 usurio segue essas linguagens, nelas destaca mensagens ("falas"), mas no participa de sua elaborao; o grupo de deciso que est na origem do sistema (e de suas mudanas) pode ser mais ou menos estreito; pode ser uma tecnocracia altamente qualificada (moda, automvel); e pode ser tambm um grupo mais difuso, mais annimo (arte do mobilirio corrente, confeco mdia). No entanto, se este carter artificial no altera a natureza institucional da comunicao e preserva certa dialtica entre o sistema e o uso, porque, de um lado, por ser sofrido, o "contrato" significante nem por isso menos observado pela massa dos usurios (seno, o usurio seria marcado por certa dessocialidade: no pode comunicar mais do que sua excentricidade), e, de outro lado, as lnguas elaboradas "por deciso" no so inteiramente livres ("arbitrrias"); sofrem a determinao da coletividade, pelas seguintes vias, ao menos: 1) quando nascem novas necessidades, consecutivas ao desenvolvimento das sociedades (passagem a um vesturio semi-europeu nos pases da frica contempornea, nascimento de novos protocolos de alimentao rpida nas sociedades industriais e urbanas); 2) quando imperativos econmicos determinam o desaparecimento ou a promoo de certos materiais (tecidos artificiais); 3) quando a ideologia limita a inveno das formas, sujeita-a a tabus e reduz, de algum modo, as margens do "normal". Pode-se dizer, mais amplamente, que as elaboraes do grupo de deciso, isto , as logotcnicas, so, elas prprias, apenas os termos de uma funo sempre mais geral ou

    26. Cf. infra, II, 4, 3.

    33

  • seja, o imaginrio coletivo da poca: a inovao individual assim transcendida por uma determinao sociolgica (de grupos restritos) e estas determinaes sociolgicas, por sua vez, remetem a um sentido final de natureza antropolgica.

    I.2.7. O segundo problema colocado pela extenso semiolgica da noo Lngua/Fala diz respeito ao "volume" que se pode estabelecer entre as "lnguas" e suas "falas". Na linguagem h uma desproporo muito grande entre a lngua, conjunto finito de regras, e as "falas" que vm alojar-se sob essas regras e constituem um nmero praticamente infinito. Pode-se presumir que um sistema como a comida apresente ainda uma diferena considervel de volumes, visto que, dentro das "frmas" culinrias, as modalidades e as combinaes de execuo continuam sendo um nmero elevado; mas vimos que em sistemas como o automvel ou o mobilirio, a amplitude de variaes combinatrias e associaes livres fraca: h pouca margem reconhecida pela prpria instituio ao menos entre o modelo e sua "execuo": so sistemas em que a "fala" pobre e, num sistema particular como a moda escrita, essa fala at praticamente nula, de tal modo que se trata aqui, paradoxalmente, de uma lngua sem fala (o que s se torna possvel, j o vimos, porque essa lngua "sustentada" pela fala lingustica). Se verdade que haja lnguas sem falas ou de fala muito pobre, isto no impede que seja forosamente necessrio revisar a teoria saussuriana, segundo a qual a lngua no seno um sistema de diferenas (e neste caso, sendo inteiramente "negativa", ela se torna inapreensvel fora da fala), e completar o par Lngua/Fala por um terceiro elemento, pr-significante, matria ou substncia, e que seria o suporte (necessrio) da significao: numa expresso como "um vestido comprido ou curto", o "vestido" no seno o suporte de um variante (comprido/curto), que pertence plenamente lngua indumentria: distino desconhecida da

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  • linguagem, em que como o som considerado como imediata mente significante, no pode ser decomposto em um elemento inerte e um elemento semntico. Seramos levados a reconhecer assim nos sistemas semiolgicos (no-lingusticos) trs planos (e no dois): o plano da matria, o da lngua e o do uso; isto permite evidentemente explicar os sistemas sem "execuo", j que o primeiro elemento assegura a materialidade da lngua; arranjo tanto mais plausvel quanto se explica geneticamente: se, nesses sistemas, a "lngua" necessita de "matria" (e no mais de "fala"), porque eles tm geralmente uma origem utilitria, e no significante, contrariamente linguagem humana.

    35

  • II

    SIGNIFICADO

    E

    SIGNIFICANTE

  • II. 1. O SIGNO

    II. 1.1. O significado e o significante so, na terminologia saussuriana, os componentes do signo. Ora, este termo signo, presente em vocabulrios bem diferentes (da Teologia Medicina) e de histria muito rica (do Evangelho27 Ciberntica), por isto mesmo bastante ambguo; alm disto, antes de voltarmos acepo saussuriana, preciso uma palavrinha a respeito do campo nocional onde ele ocupa um lugar, alis flutuante, como veremos. Signo, na verdade, insere-se numa srie de termos afins e dissemelhantes, ao sabor dos autores: sinal, ndice, cone, alegoria so os principais rivais do signo. Suponhamos, inicialmente, o elemento comum a todos estes termos: todos eles remetem necessariamente a uma relao entre dois relata 28; com este trao, no se poderia distinguir ento nenhum dos termos da srie; para reencontrar uma variao de sentido, preciso recorrer a outros traos, que sero apresentados aqui sob a forma de uma alternativa (presena/ausncia): 1) a relao implica, ou no, a representao psquica de um dos relata; 2) a relao implica, ou no, uma analogia entre os relata; 3) a ligao entre os dois relata (o estmulo e sua resposta) imediata, ou no o

    27. J. P. Chartier: "La notion de signe () dans le IVe vangile", Rev. des sciences philos. et thol., 1959, 43, n. 3, 434-48.

    28. O que exprimiu muito claramente Santo Agostinho: "Um signo uma coisa que, alm da espcie ingerida pelos sentidos, faz vir ao pensamento, por si mesma, qualquer outra coisa."

    39

  • ; 4) os relata coincidem exatamente, ou, ao contrrio, um "ultrapassa" o outro; 5) a relao implica, ou no, uma ligao existencial com aquele que dela se utiliza 29. Conforme estes traos sejam positivos ou negativos (marcados ou no marcados), cada termo do campo diferencia-se de seus vizinhos; cumpre acrescentar que a distribuio do campo varia de autor para autor, o que acarreta contradies terminolgicas; apreenderemos facilmente essas contradies com a apresentao do quadro de encontro dos traos e termos por quatro autores diferentes: Hegel, Peirce, Jung e Wallon (a referncia a certos traos, sejam eles marcados ou no-marcados, pode estar ausente em alguns autores):

    sinal ndice cone smbolo signo alegoria

    1. Representao Wallon Wallon

    Walton

    + Wallon

    +

    2. Analogia Peirce +

    Hegel + Wallon + Peirce

    Hegel Walton

    3. Imediatez Walton +

    Wallon

    4. Adequao Hegel Jung

    Wallon Hegel + Jung +

    Wallon +

    5. Existencialidade Wallon +

    Wallon

    Peirce +

    Peirce Jung + Jung

    29. Cf. os shifters e smbolos indiciais, supra, I, 1, 8.

    40

  • V-se que a contradio terminolgica baseia-se essencialmente no ndice (para Peirce, o ndice existencial e no o para Wallon) e no smbolo (para Hegel e Wallon, h uma relao de analogia ou de "motivao" entre os dois relata do smbolo, mas no para Peirce); alm disto, para Peirce, o smbolo no existencial, mas o para Jung. Mas v-se tambm que estas contradies aqui legveis verticalmente explicam-se muito bem, ou melhor: compensam-se por translaes de termos ao nvel de um mesmo autor translaes legveis aqui horizontalmente: por exemplo, o smbolo analgico em Hegel por oposio ao signo, o qual no o ; e se no o em Peirce, porque o cone pode recolher o trao. Isto significa que, para resumir e falar em termos semiolgicos (o que constitui o interesse deste breve estudo "em abismo"), as palavras do campo s adquirem seu sentido por oposio de umas a outras (ordinariamente por par) e que, se estas oposies so salvaguardadas, o sentido fica sem ambiguidade; particularmente, sinal e ndice, smbolo e signo so os functivos de duas funes diferentes, que podem, elas prprias, entrar em oposio geral, como em Wallon, cuja terminologia a mais completa e a mais clara 30, ficando cone e alegoria confinados ao vocabulrio de Peirce e Jung. Diremos ento, a exemplo de Wallon, que o sinal e o ndice formam um grupo de relata desprovidos de representao psquica, enquanto no grupo adverso, smbolo e signo, esta representao existe; que, alm disto, o sinal imediato e existencial, diante do ndice que no o (ele apenas um vestgio); enfim, que, no smbolo, a representao analgica e inadequada (o Cristianismo "ultrapassa" a cruz), diante do signo, no qual a relao imotivada e exata (no h analogia alguma entre a palavra boi e a imagem boi, que perfeitamente coberta por seu relatum).

    30. H. WALLON: Be l'acte la pense, 1942, pp. 175-250.

    41

  • II. 1.2. Em Lingustica, a noo de signo no provoca competio entre termos vizinhos. Para designar a relao significante, Saussure eliminou imediatamente smbolo (porque o termo comportava uma idia de motivao) em proveito de signo, definido como a unio de um significante e de um significado ( maneira de anverso e verso de uma folha de papel), ou ainda de uma imagem acstica e de um conceito. At que Saussure encontrasse as palavras significante e significado, signo permaneceu, no entanto, ambguo, pois tinha tendncia a confundir-se com o significante apenas, o que Saussure queria evitar a qualquer custo; depois de ter hesitado entre soma e sema, forma e idia imagem e conceito, Saussure fixou-se em significante e significado, cuja unio forma o signo; eis uma proposio capital e a que sempre preciso voltar, pois h uma tendncia a tomar signo por significante, quando se trata de uma realidade bifacial; a consequncia (importante) que, pelo menos para Saussure, Hjelmslev e Frei, como os significados fazem parte dos signos, a Semntica deve fazer parte da Lingustica Estrutural, enquanto, para os mecanistas americanos, os significados so substncias que devem ser expulsas da Lingustica e dirigidas para a Psicologia. A partir de Saussure, a teoria do signo lingustico enriqueceu-se com o princpio da dupla articulao, cuja importncia foi mostrada por Martinet, a ponto de torn-la o critrio definicional da linguagem: entre os signos lingusticos, preciso, com efeito, separar as unidades significativas, cada uma das quais est provida de um sentido (as "palavras", ou para ser mais exato, os "monemas"), e que formam a primeira articulao, das unidades distintivas, que participam da forma mas no tm diretamente um sentido (os "sons", ou melhor, os "fonemas"), e que constituem a segunda articulao; a dupla articulao que explica a economia da linguagem humana; constitui, na verdade, uma espcie de poderosa desmultiplicao que faz com que o

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  • espanhol da Amrica, por exemplo, com apenas 21 unidades distintivas, possa produzir 100 000 unidades significativas.

    II. 1.3 . O signo , pois, composto de um significante e um significado. O plano dos significantes constitui o plano de expresso e o dos significados o plano de contedo. Em cada um destes dois planos, Hjelmslev introduziu uma distino importante talvez para o estudo do signo semiolgico (e no mais lingustico apenas); cada plano comporta, de fato, para Hjelmslev, dois strata: a forma e a substncia; preciso insistir na nova definio destes dois termos, pois cada um tem um denso passado lexical. A forma o que pode ser descrito exaustiva, simples e coerentemente (critrios epistemolgicos) pela Lingustica, sem recorrermos a nenhuma premissa extralingustica; a substncia o conjunto dos aspectos dos fenmenos lingusticos que no podem ser descritos sem recorrermos a premissas extralingusticas. Como estes dois strata se reencontram no plano da expresso e no do contedo, teremos ento: 1) uma substncia da expresso: por exemplo, a substncia fnica, articulatria, no--funcional, de que se ocupa a Fontica e no a Fonologia; 2) uma forma da expresso, constituda pelas regras paradigmticas e sintticas (observaremos que uma mesma forma pode ter duas substncias diferentes, uma fnica, outra grfica); 3) uma substncia de contedo: por exemplo, os aspectos emotivos, ideolgicos ou simplesmente nocionais do significado, seu sentido "positivo"; 4) uma forma do contedo: a organizao formal dos significados entre si, por ausncia ou presena de uma marca semntica 31; esta ltima, noo delicada de se perceber, em virtude da impossibilidade em que nos encontramos, diante da linguagem humana, de separar os significados dos

    31. Embora muito rudimentar, a anlise aqui dada, supra, II, 1, 1, concerne forma dos significados "signo", "smbolo", "ndice", "sinal".

    43

  • significantes; mas, por isso mesmo, a subdiviso forma/substncia pode novamente tornar-se til e fcil de se manejar, em Semiologia, nos seguintes casos: 1) quando nos achamos diante de um sistema em que os significados so substantivados mima substncia diversa da de seu prprio sistema (, como vimos, o caso da moda escrita); 2) quando um sistema de objetos comporta uma substncia que no imediata e funcionalmente significante, mas pode ser, em certo nvel, simplesmente utilitria: tal prato serve para significar uma situao mas tambm para alimentar-se.

    II. 1.4. Isto permite talvez prever a natureza do signo semiolgico com relao ao signo lingustico. O signo semiolgico tambm , como seu modelo, composto de um significante e um significado (a cor de um farol, por exemplo, uma ordem de trnsito no cdigo rodovirio), mas dele se separa no nvel de suas substncias. Muitos sistemas semiolgicos (objetos, gestos, imagens 32) tm uma substncia da expresso cujo ser no est na significao: so, muitas vezes, objetos de uso, derivados pela sociedade para fins de significao: a roupa serve para nossa proteo, a comida para nossa alimentao, ainda quando, na verdade, sirvam tambm para significar. Proporemos denominar estes signos semiolgicos de origem utilitria, funcional funes-signos. A funo-signo a testemunha de um duplo movimento que cumpre analisar. Num primeiro tempo (esta decomposio puramente operatria e no implica uma temporalidade real), a funo penetra-se de sentido; tal semantizao fatal: desde que haja sociedade, qualquer uso se converte em signo desse uso: o uso da capa de chuva proteger da chuva, mas este uso indissocivel do prprio signo de certa

    32. Na verdade, o caso da imagem deveria ficar reservado, pois a imagem imediatamente "comunicante", quando no significante.

    44

  • situao atmosfrica; como nossa sociedade produz apenas objetos padronizados, normalizados, esses objetos so fatalmente execues de um modelo, as palavras de uma lngua, as substancias de uma forma significante; para reencontrarmos um objeto insignificante, seria preciso imaginar um utenslio absolutamente improvisado e que em nada se aproxima de um modelo existente (Claude Lvi-Strauss mostrou quanto a "bricole"33 , ela prpria, busca de um sentido): hiptese praticamente irrealizvel em qualquer sociedade. Esta semantizao universal de usos capital: traduz o fato de que s existe real quando inteligvel e deveria levar a confundir, finalmente, Sociologia e Scio-Lgica 34. Mas uma vez que o signo esteja constitudo, a sociedade pode muito bem refuncionaliz-lo, falar dele como de um objeto de uso: trataremos de um casaco de pele como se ele no servisse seno para proteger-nos do frio; esta funcionalizao recorrente, que tem necessidade de uma segunda linguagem para existir, no absolutamente a mesma que a primeira funcionalizao (puramente ideal, alis): a funo reapresentada, essa corresponde a uma segunda instituio semntica (disfarada), que da ordem da conotao. A funo-signo tem pois provavelmente um valor antropolgico, j que a prpria unidade em que se estabelecem as relaes entre o tcnico e o significante.

    33. O termo bricole bem como bricoler, bricolage, bricoleur tem aqui um sentido especial, intraduzvel em portugus. O bricoleur aquele que trabalha sem plano previamente determinado, com recursos e processos que nada tem a ver com a tecnologia normal; no trabalha com matrias-primas, mas j elaboradas, com pedaos e sobras de outras obras (cf. Claude Lvi-Strauss, La pense sauvage Librairie Plon Paris 1962). (N. do T.)

    34. Cf. R. BARTHES: "A propos de deux ouvrages rcents de Cl. Lvi-Strauss: Sociologie et Socio-Logique", in: Information sur les sciences sociales (Unesco), Vol. 1, n. 4, dez. 1962, 114-22.

    45

  • II.2. O SIGNIFICADO

    II.2.1. Em Lingustica, a natureza do significado deu lugar a discusses sobretudo referentes a seu grau de "realidade"; todas concordam, entretanto, quanto a insistir no fato de que o significado no uma "coisa", mas uma representao psquica da "coisa"; vimos que, na definio do signo de Wallon, esse carter representativo constitua um trao pertinente do signo e do smbolo (por oposio ao ndice e ao sinal); o prprio Saussure notou bem a natureza psquica do significado ao denomin-lo conceito; o significado da palavra boi no o animal boi, mas sua imagem psquica (isto ser importante para acompanhar a discusso acerca da natureza do signo35). Essas discusses permanecem todavia impregnadas de psicologismo; preferiremos seguir talvez a anlise dos Esticos36; estes distinguiam cuidadosamente a faaa (a representao psquica). a (a coisa real) e o (o"dizvel"); o significado no nem a faaa, e nem o a, mas sim o ; no sendo nem ato de conscincia nem realidade, o significado s pode ser definido dentro do processo de significao, de uma maneira praticamente tautolgica: este "algo" que quem emprega o signo entende por ele. Voltamos assim justamente a uma definio puramente funcional: o significado um dos dois relata do signo; a nica diferena que o ope ao significante que este um mediador. No essencial, a situao no poderia ser diferente em Semiologia, em que objetos, imagens, gestos etc, tanto quanto sejam significantes, remetem a algo que s dizvel por meio deles, salvo esta circunstncia segundo a qual os signos da lngua podem encarregar-se do significado semiolgico; diremos, por exemplo, que tal suter

    35. Cf. infra, II. 4, 2. 36. Discusso retomada por: Borgeaud, Brcker e Lohmann, in: Acta linguistica,

    III, 1. 27.

    46

  • significa os longos passeios de outono nos bosques; neste caso, o significado no somente mediatizado por seu significante indumentrio (o suter), mas tambm por um fragmento de palavra (o que uma grande vantagem para manej-lo); poderamos dar o nome de isologia ao fenmeno pelo qual a lngua "cola", de modo indiscernvel e indissocivel, seus significantes e significados, de maneira a reservarmos o caso dos sistemas no-islogos (sistemas fatalmente complexos), em que o significado pode simplesmente ser justaposto a seu significante.

    II.2.2. Como classificar os significados? Sabemos que, em Semiologia, esta operao fundamental, pois que resulta em isolar a forma do contedo. Quanto aos significados lingusticos, podemos conceber duas espcies de classificaes; a primeira externa e apela para o contedo "positivo" (e no puramente diferencial) dos conceitos: o caso dos agrupamentos metdicos de Hallig e Wartburg 37

    e, mais convincentemente, dos campos nocionais de Trier e dos campos lexicolgicos de Mator 38; mas, de um ponto de vista estrutural, essas classificaes (sobretudo as de Hallig e Wartburg) tm o defeito de apoiar-se ainda demais na substncia (ideolgica) de significados, no na sua forma. Para chegar a estabelecer uma classificao verdadeiramente formal, seria necessrio chegar a reconstituir oposies de significados e a isolar em cada uma delas um trao pertinente (comutvel) 39; este mtodo foi preconizado por Hjelmslev, Srensen, Prieto e Greimas; Hjelmslev, por exemplo, decompe um monema como "gua" em duas unidades de sentido menores: "cavalo" + "fmea", unidades que podem

    37. R. HALLIG et W. VON WARTBURG: Begriffssystem als Grundlage fur die Lexicographie, Berlim, Akademie Verlag, 1952, 4., XXV, p. 140.

    38. Encontrar-se- a bibliografia de Trier e Mator em: P. GUIRAUD: La Smantique, P. U. F. ("Que Sais-je?"), p, 70 e ss.

    39. o que tentamos fazer aqui para signa e smbolo (supra, II, 1, 1).

    47

  • comutar e servir, consequentemente, para a reconstituio de novos monemas ("porco" + "fmea" = "porca", "cavalo" + "macho" = "garanho"); Prieto v em "vir" dois traos comutveis: "homo" + "masculus"; Srensen reduz o lxico do parentesco a uma combinao de "primitivos" ("pai" = parente macho, "parente" = ascendente em primeiro grau). Nenhuma dessas anlises foi ainda desenvolvida40. preciso lembrar enfim que, para certos linguistas, os significados no fazem parte da Lingustica, a qual deve ocupar-se apenas de significantes, e que a classificao semntica est fora das tarefas da Lingustica. 41

    II.2.3. A Lingustica Estrutural, por mais avanada que esteja, no edificou ainda uma Semntica, isto , uma classificao das formas do significado verbal. Imaginamos facilmente, pois, que no se possa propor atualmente uma classificao dos significados semiolgicos, salvo se recorrermos a campos nocionais conhecidos. Arriscaremos apenas trs observaes. A primeiro concerne ao modo de atualizao dos significados semiolgicos; estes podem apresentar-se ou no de modo isolgico; no segundo caso, so sustentados, por meio da linguagem, articulada, seja por uma palavra (week-end), seja por um grupo de palavras (longos passeios no campo); ficam, desde ento, mais fceis de se manejar, j que o analista no obrigado a impor-lhes sua prpria metalinguagem, mas mais perigosos tambm, pois reconduzem incessantemente classificao semntica da prpria lngua (desconhecida alis), e no a uma classificao cujo fundamento estivesse no sistema observado; os significados da moda,

    40. Exemplos dados por G. Mounin: "Les analyses smantiques", in: Cahiers de l'Inst. de science conomique applique, maro, 1962, n. 123.

    41. Seria bom adotar doravante a distino proposta por A. J. GREIMAS: Semntica quando se refere ao contedo; Semiologia = quando se refere expresso.

    48

  • ainda que mediatizados pela palavra do jornal, no se distribuem por fora como os significados da lngua, visto que justamente no tm sempre o mesmo "comprimento" (aqui uma palavra, l uma frase); no primeiro caso, o dos sistemas isolgicos, o significado no tem seno seu significante tpico como materializao; s podemos manej-lo impondo-lhe uma metalinguagem; interrogaremos, por exemplo, indivduos acerca da significao que atribuem a um trecho de msica, submetendo-lhes uma lista de significados verbalizados (angustiado, tempestuoso, sombrio, atormentado etc.) 42; quando, na realidade, todos esses signos verbais formam um s significado musical, que deveramos designar por um nmero nico apenas, o qual no implicaria nenhum recorte verbal ou converso metafrica. Essas metalinguagem, provenientes aqui do analista e l do prprio sistema, so inevitveis, sem dvida e o que torna ainda problemtica a anlise dos significados ou anlise ideolgica; ser necessrio pelo menos situar teoricamente seu lugar no projeto semiolgico. A segunda observao concerne extenso dos significados semiolgicos; o conjunto dos significados de um sistema (j formalizado) constitui uma grande funo; ora, provvel que, de um sistema a outro, as grandes funes semnticas no s se comuniquem entre si, mas ainda se recubram parcialmente; a forma dos significados do vesturio sem dvida, em parte, a mesma que a dos significados do sistema alimentar, ambas articuladas sobre a grande oposio entre o trabalho e a festa, entre a atividade e o lazer; impe-se prever ento uma descrio ideolgica total, comum a todos os sistemas de uma mesma sincronia. Finalmente esta ser a terceira observao , podemos considerar que a cada sistema de significantes (lxicos) corresponde, no plano dos significados, um corpo de prticas e

    42. Cf. R. FRANCS: La perception de la musique, Vrin, .1958, 3. parte.

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  • tcnicas; esses corpos de significados implicam, por parte dos consumidores de sistemas (isto , "leitores"), diferentes saberes (segundo as diferenas de "cultura"), o que explica que uma mesma lexia (ou grande unidade de leitura) possa ser diferentemente decifrada segundo os indivduos, sem deixar de pertencer a certa "lngua"; vrios lxicos e, portanto, vrios corpos de significados podem coexistir num mesmo indivduo, determinando, em cada um, leituras mais ou menos "profundas".

    II.3. O SIGNIFICANTE

    II.3.1. A natureza do significante sugere, de um modo geral, as mesmas observaes que a do significado: um puro relatum, no se pode separar sua definio da do significado. A nica diferena que o significante um mediador: a matria -lhe necessria; mas, de um lado, no lhe suficiente e, de outro lado. em Semiologia, o significado tambm pode ser substitudo por certa matria: a das palavras. Essa materialidade do significante obriga mais uma vez a distinguir bem matria e substncia: a substncia pode ser imaterial (no caso da substncia do contedo); pode-se dizer, pois. somente que a substncia do significante sempre material (sons, objetos, imagens). Em Semiologia, em que vamos tratar de sistemas mistos que envolvem diferentes matrias (som e imagem, objeto e escrita etc), seria bom reunir todos os signos, enquanto transportados por uma nica e mesma matria, sob o conceito de signo tpico: o signo verbal, o signo grfico, o signo icnico, o signo gestual formariam, cada um deles, um signo tpico.

    II.3.2. A classificao dos significantes no outra seno a estruturao propriamente dita do sistema. Trata-se de recortar a mensagem "sem fim", constituda pelo conjunto das mensagens emitidas no nvel do corpo estudado, em unidades

  • significantes mnimas com o auxlio da prova de comutao 43, agrupar essas unidades em classes paradigmticas e classificar as relaes sintagmticas que ligam essas unidades. Tais operaes constituem uma parte importante da empresa semiolgica de que trataremos no captulo III; s por lembrana citamo-las agora. 44

    II.4. A SIGNIFICAO

    II.4.1 O signo uma fatia (bifacial) de sonoridade, visualidade etc. A significao pode ser concebida como um processo; o ato que une o significante e o significado, ato cujo produto o signo. Claro, esta distino s tem valor classificatrio (e no fenomenolgico): primeiro, porque a unio de significante e significado no esgota, como veremos, o ato semntico, j que o signo vale tambm por seus contornos; em seguida, porque sem dvida o esprito, para significar, no procede por conjuno, mas, como veremos, por recorte45: na verdade, a significao (semiosis) no une seres unilaterais, no aproxima dois termos, pela simples razo de que significante e significado so, cada um por seu turno, termo e relao 46. Esta ambiguidade embaraa a representao grfica da significao, necessria, no entanto, ao discurso semiolgico. A este respeito, notaremos as seguintes tentativas: Se 47 1) . Em Saussure, o signo apresenta-se, demonstrativamente, So como a extenso vertical de uma situao profunda: na lngua, o significado, de certo modo, est atrs do significante

    ________________________________________________________

    43. Cf. infra, III, 2, 3. 44. Cf. infra, cap, III (Sistema de Sintagma). 45. Cf. infra, II, 5, 2, 46. Cf. R. ORTIGUES: Le discours et le symbole, Aubier, (1962). 47. Se = significante, So = significado (N. do T.)

    51

  • e s pode ser atingido atravs dele, ainda que, de um lado, falte a essas metforas, muito espaciais, a natureza dialtica da significao e, de outro lado, o fecho do signo no seja aceitvel seno para os sistemas francamente descontnuos, como a lngua.

    2) E R C. Hjelmslev preferiu uma representao puramente grfica: h relao (R) entre o plano de expresso (E) e o plano de contedo (C). Esta frmula permite explicar, economicamente e sem falsificao metafrica, as metalinguagem ou sistemas obtidos: E R (ERC).48 S

    3) . Lacan, retomado por Laplanche e Leclaire49, s utiliza um grafismo espacializado, diferente entretanto da representao saussuriana em dois pontos: 1) o significante (S) global, constitudo por uma cadeia de nveis mltiplos (cadeia metafrica): significante e significado esto numa ligao flutuante e s "coincidem" por certos pontos de ancoragem; 2) a barra de separao entre o significante (S) e o significado (s) tem um valor prprio (que no tinha, evidentemente, em Saussure): representa o recalcamento do significado,

    4) SE So. Finalmente nos sistemas no-islogos (isto , nos quais os significados so materializados por meio de outro sistema), lcito, evidentemente, estender a relao sob a forma de uma equivalncia ( ), mas no de uma identidade ( = ).

    II. 4.2. Vimos que tudo o que se poderia dizer do significante que este seria um mediador (material) do significado. De que natureza esta mediao? Em Lingustica, tal problema deu lugar a discusso: discusso principalmente terminolgica, pois, na realidade, as coisas so bastante claras (no o sero

    48. Cf. infra, cap. IV. 49. J. LAPLANCHE et S. LECLAIRE: "L'inconscient", in: Temps Modernes, n.

    183, julho, 1963, p. 81 e ss.

    52

  • tanto em Semiologia, talvez). A partir do fato de que, na linguagem humana, a escolha de sons no nos imposta pelo prprio sentido (o boi em nada leva ao som boi, pois esse som diferente em outras lnguas), Saussure havia falado de uma relao arbitrria entre o significante e o significado. Benveniste contestou a palavra 50; o que arbitrrio a relao entre o significante e a "coisa'' significada (entre o som boi e o animal boi); mas, j o vimos, para o prprio Saussure, o significado no a "coisa" e sim a representao psquica da coisa (conceito); a associao entre o som e a representao psquica o fruto de uma preparao coletiva (por exemplo, da aprendizagem da lngua francesa); esta associao que a significao no absolutamente arbitrria (francs algum tem liberdade para modific-la), mas, muito ao contrrio, necessria. Props-se dizer ento que, em Lingustica a significao imotivada; trata-se de uma imotivao parcial, alis (Saussure fala de uma analogia relativa): do significado ao significante, h certa motivao no caso (restrito) das onomatopias, como o veremos daqui a pouco, e sempre que uma srie de signos estabelecida pela lngua por imitao de certo prottipo de composio ou derivao: o caso dos signos chamados proporcionais: pereira, laranjeira, mangueira etc, uma vez estabelecida a imotivao entre seu radical e seu sufixo, apresentam uma analogia de composio. Diremos, pois, que na lngua, de um modo geral, o liame entre o significante e o significado contratual em seu princpio, mas esse contrato coletivo, inscrito numa temporalidade longa (Saussure diz que "a lngua sempre uma herana"), e, consequentemente, naturalizado, de certo modo; Claude Lvi-Strauss, igualmente, precisa que o signo lingustico arbitrrio a priori mas no arbitrrio a posteriori. Esta discusso inclina a prever dois termos diferentes, teis quando da extenso

    50. E. BENVENISTE: "Nature du signe linguistique", Acta linguistica, I, 1939.

    53

  • semiolgica: diremos que um sistema arbitrrio quando seus signos se fundam no por contrato mas por deciso unilateral: na lngua, o signo no arbitrrio, mas o na moda; e diremos que um signo motivado quando a relao entre seu significante e seu significado analgica (Buyssens props para os signos motivados: semas intrnsecos, e para os signos imotivados: semas extrnsecos); poderemos ter ento sistemas arbitrrios e motivados; outros no arbitrrios e imotivados.

    11.4.3. Em Lingustica, a motivao est circunscrita ao plano parcial da derivao ou da composio; para a Semiologia, ao contrrio, colocar problemas mais gerais. De um lado, possvel que. afora a lngua, se encontrem sistemas altamente motivados e ser necessrio ento estabelecer a maneira pela qual a analogia se torna compatvel com o descontnuo, o qual parece at aqui necessrio significao; e, em seguida, como podem estabelecer-se sries paradigmticas (portanto de termos pouco numerosos e finitos), quando os significantes so anloga: ser, sem dvida, o caso das "imagens", cuja Semiologia, por tais razes, est longe de se estabelecer; por outro lado, infinitamente provvel que o inventrio semiolgico revele a existncia de sistemas impuros, que comportam ou motivaes muito frouxas, ou motivaes penetradas, se se pode dizer assim, de imotivaes secundrias, como se o signo, muitas vezes, se oferecesse a uma espcie de conflito entre o motivado e o imotivado; j um pouco o caso da mais "motivada" zona da lngua, a zona das onomatopias; Martinet observou 51 que a motivao onomatopaica se acompanhava de uma perda da dupla articulao (ai, que depende somente da segunda articulao, substitui o sintagma duplamente articulado: est doendo); entretanto, a onomatopia da dor no exatamente a mesma em portugus (ai) e em dina-

    51. A. Martinet: Economie des changements phontiques, Francke, 1955, 5, 6

    54

  • marqus (au), por exemplo; que, na verdade, a motivao se submete aqui, de certo modo, a modelos fonolgicos evidentemente diferentes conforme as lnguas: h impregnao do analgico pelo digital. Afora a lngua, os sistemas problemticos, como a "linguagem" das abelhas, oferecem a mesma ambiguidade: os giros de colheita de alimento tm um valor vagamente analgico; a dana na prancha de vo francamente motivada (orientao da fonte de alimento), mas a dana buliosa em forma de 8 totalmente imotivada (remete a uma distncia).02 Enfim, ltimo exemplo dessas "incertezas",53 certas marcas de fbrica utilizadas pela publicidade so constitudas por figuras perfeitamente "abstratas" (no-analgicas); podem entretanto "desprender" certa impresso (por exemplo, a "potncia"), que est numa relao de afinidade com o significado: a marca Berliet (um crculo fortemente flechado) em nada "copia" a potncia - como "copiar" alis a potncia? mas a sugere, todavia, por uma analogia latente; reencontraramos a mesma ambiguidade nos signos de certas escritas ideogrficas (o chins, por exemplo). O encontro do analgico e do no-analgico parece, pois, indiscutvel, no prprio seio de um sistema nico. A Semiologia, entretanto, no poder contentar-se com uma descrio que reconhea o compromisso sem procurar sistematiz-lo; no pode admitir um diferencial contnuo, pois o sentido articulao, como veremos. Esses problemas no foram ainda estudados pormenorizadamente e no poderamos dar uma viso geral deles. A economia antropolgica da significao, no entanto, adivinha-se: na lngua, por exemplo, a motivao (relativa) introduz certa ordem ao nvel da primeira articulao (significativa): o "contrato" ento sustentado aqui por certa naturalizao desse arbitrrio

    52. Cf. G. MOUNIN: "Communication linguistique humaine et communication non-linguistique animale", in: Temps Modernes, abril-maio, 1960.

    53. Outro exemplo; o cdigo rodovirio.

    55

  • apriorstico de que fala Claude Lvi-Strauss; outros sistemas, ao contrrio, podem ir da motivao imotivao: por exemplo, o jogo das estatuetas rituais de iniciao dos Senufo, citado por Lvi-Strauss em O Pensamento Selvagem. provvel, pois, que, ao nvel da Semiologia mais geral, de ordem antropolgica, estabelea-se uma espcie de circularidade entre o analgico e o imotivado: h uma dupla tendncia (complementar) de naturalizar o imotivado e intelectualizar o motivado (isto , culturaliz-lo). Certos autores, enfim, asseguram que o prprio digitalismo, que o rival do analgico, sob sua forma pura, o binarismo, , ele prprio, uma "reproduo" de certos processos fisiolgicos, se verdade que a vista e o ouvido funcionam de fato por selees alternativas.54

    II.5. O VALOR

    II. 5.1. Dissemos, ou deixamos entender pelo menos, que era uma abstrao bastante arbitrria (mas inevitvel) tratar do signo "em si", como somente a unio do significante e o significado. Impe-se, para terminar, considerar o signo no mais por sua "composio" mas por seus "contornos": o problema do valor. Saussure no viu de imediato a importncia desta noo, mas, a partir do segundo Curso de Lingustica Geral, concedeu-lhe uma reflexo sempre mais aguda e o valor tornou-se para ele conceito essencial, mais importante afinal do que o de significao (que ele no recobre). O valor tem uma estreita relao com a noo de lngua (oposta fala); leva a despsicologizar a Lingustica e a aproxim-la da Economia; ele , pois, central em Lingustica Estrutural. Na maioria das cincias, observa Saussure, 55

    54. Cf. infra, III, 3, 5. 55. SAUSSURE, Cours de Linguistique Gnrale, p. 115. [Curso de Lingustica

    Geral, trad. de Antonio Chelini, Izidoro Blikstein e Jos Paulo Paes. S. Paulo, Cultrix Ed. da USP., 1969, p. 94].

    56

  • no h dualidade entre a diacronia e a sincronia: a Astronomia uma cincia sincrnica (embora os astros mudem); a Geologia uma cincia diacrnica (ainda que possa estudar os estados fixos); a Histria sobretudo diacrnica (sucesso de acontecimentos), embora possa deter-se em certos ''quadros" 56. H uma cincia, entretanto, em que essa dualidade igualmente se impe: a Economia (a Economia Poltica distingue-se da Histria Econmica); o mesmo acontece, prossegue Saussure, para a Lingustica; que, nos dois casos, estamos lidando com um sistema de equivalncia entre duas coisas diferentes: um trabalho e um salrio, um significante e um significado (eis o fenmeno que at agora temos chamado de significao); todavia, tanto em Lingustica como em Economia, esta equivalncia no solitria, pois, se mudarmos um de seus termos, pouco a pouco todo o sistema muda. Para que haja signo (ou "valor" econmico) preciso, portanto, poder permutar coisas dessemelhantes (um trabalho e uno salrio, um significante e um significado) e, por outro lado, comparar coisas similares entre si: pode-se trocar uma nota de Cr$ 5.00 por po, sabo ou cinema, mas pode-se tambm comparar essa nota com notas de Cr$ 10,00, de Cr$ 50,00 etc; do mesmo modo, uma "palavra" pode ser "trocada" por uma idia (isto , o dessemelhante), mas pode ser comparada com outras palavras (isto , o similar): em ingls, mutton no extrai seu valor seno da coexistncia com sheep; o sentido s se fixa realmente a partir desta dupla determinao: significao e valor. O valor no ento a significao; provm, diz Saussure 57, "da situao recproca das peas da lngua"; at mais importante do que a significao: "o que h de idia ou de matria jnica em um signo importa

    56. Seria preciso lembrar que, a partir de Saussure, a prpria Histria, descobriu tambm, a importncia das estruturas sincrnicas? Economia, Lingustica, Etnologia e Histria formam atualmente um quadrivium de cincias-piloto.

    57. SAUSSURE, in: R. Godel. op. cit. p. 90

    57

  • menos do que h a seu redor nos outros signos" 58; frase proftica, se pensarmos que ela j fundava a homologia lvi-straussiana e o princpio das taxinomias. Depois de termos assim distinguido bem, com Saussure, significao e valor, vemos logo que, se retomarmos os strata de Hjelmslev (substncia e forma), a significao participar da substncia do contedo e o valor de sua forma (mutton e sheep esto numa relao paradigmtica, enquanto significados, e no, claro, enquanto significantes).

    II.5.2. Para explicar o duplo fenmeno de significao e de valor, Saussure servia-se da imagem de uma folha de papel: recortando-a, obtm-se, de um lado, diversos pedaos (A, B, C), cada um dos quais tem um valor com relao a seus vizinhos, e, de outro lado, cada um desses pedaos tem um anverso e um verso, que foram recortados ao mesmo tempo (A-A', B-B', C-C): a significao. Esta imagem preciosa, pois leva a conceber a produo do sentido de maneira original, no mais como to-s a correlao entre um significante e um significado, mas talvez, mais essencialmente, como um ato de recorte simultneo de duas massas amorfas, de dois "reinos flutuantes", como diz Saussure; com efeito, Saussure imagina que, na origem (de todo terica) do sentido, as idias e os sons formam duas massas flutuantes, lbeis, contnuas e paralelas, de substncias; o sentido intervm quando se recorta ao mesmo tempo, de uma s vez, estas duas massas: os signos (assim produzidos) so, pois, articuli; entre estes dois caos, o sentido ento uma ordem, mas essa ordem essencialmente diviso: a lngua um objeto intermedirio entre o som e o pensamento: consiste em unir um e outro, decompondo-os simultaneamente; e Saussure adianta uma nova

    58. Ib., p. 166. Saussure pensa evidentemente na comparao entre os signos, no no plano da sucesso sintagmtica, mas no das reservas virtuais paradigmticas, ou campos associativos.

    58

  • imagem: significado e significante so como dois lenis superpostos, um de ar e o outro de gua; quando a presso atmosfrica muda, o lenol de gua se divide em ondas: do mesmo modo, o significante dividido em articuli. Estas imagens, tanto a da folha de papel como a das ondas, permitem insistir num fato capital (para a sequncia das anlises semiolgicas): a lngua o domnio das articulaes e o sentido recorte, antes de tudo. Segue-se que a tarefa futura da Semiologia muito menos estabelecer lxicos de objetos do que reencontrar as articulaes a que os homens submetem o real; diremos, utopicamente, que Semiologia e Taxinomia, embora no tenham nascido ainda, sero talvez chamadas um dia a absorver-se numa nova cincia, a Artrologia ou cincia das reparties.

    59

  • III

    SINTAGMA

    E

    SISTEMA

  • III. 1. OS DOIS EIXOS DA LINGUAGEM

    III. 1.1. Para Saussure59, as relaes que unem os termos lingusticos podem desenvolver-se em dois planos, cada um dos quais engendra seus prprios valores; estes dois planos correspondem a duas formas de atividade mental (tal generalizao ser retomada por Jakobson). O primeiro plano dos sintagmas; o sintagma uma combinao de signos, que tem por suporte a extenso; na linguagem articulada, essa extenso linear e irreversvel ( a "cadeia falada"): dois elementos no podem ser pronunciados ao mesmo tempo (re-ler, contra todos, a vida humana): cada termo tira aqui seu valor da oposio ao que precede e ao que segue; na cadeia de palavras, os termos esto realmente unidos in praesentia; a atividade analtica que se aplica ao sintagma o recorte. O segundo plano o das associaes (para conservar ainda a terminologia de Saussure): "Fora do discurso (plano sintagmtico), as unidades que tm entre si algo de comum associam-se na memria e assim se formam grupos em que reinam diversas relaes": enseignement pode associar-se pelo sentido a ducation, apprentissage; pelo som a enseigner, renseigner, ou a armement, chargement;60

    59. Saussure: Cours de Linguistique Gnrale, p. 170 e ss. [ed. bras. cit., p. 142 e ss.]

    60. ob. cit., p. 146 da trad. brasileira.

    63

  • cada grupo forma uma srie mnemnica virtual, um ''tesouro de memria"; em cada srie, ao contrrio do que se passa no nvel do sintagma, os termos esto unidos in absentia; a atividade analtica que se aplica s associaes a classificao. O plano sintagmtico e o plano associativo esto numa estreita relao que Saussure exprimiu pela seguinte comparao: cada unidade lingustica semelha coluna de um edifcio antigo: essa coluna est numa relao real de contiguidade com outras partes do edifcio, a arquitrave, por exemplo (relao sintagmtica); mas se for drica, essa coluna convidar-nos- comparao com outras ordens arquiteturais, a jnica ou a corntia; e eis a relao virtual de substituio (relao associativa): os dois planos esto de tal modo ligados que o sintagma s pode "avanar" por sucessivos apelos de novas unidades fora do plano associativo. A partir de Saussure, a anlise do plano associativo mereceu um desenvolvimento considervel; o prprio nome mudou: fala-se hoje no de plano associativo mas de plano paradigmtico 61, ou ainda, como o faremos aqui doravante, de plano sistemtico: o plano associativo est evidentemente ligado, de muito perto, "lngua" como sistema, enquanto o sintagma est mais prximo da fala. Podemos recorrer a uma terminologia subsidiria: as relaes sintagmticas so relaes em Hjelmslev, contiguidades em Jakobson, contrastes em Martinet; as relaes sistemticas so correlaes em Hjelmslev, similaridades em Jakobson, oposies em Martinet.

    III .1.2. Saussure pressentia que o sintagmtico e o associativo (isto , o sistemtico para ns) deviam corresponder a duas formas de atividade mental, o que j era sair da Lingustica. Jakobson, num texto doravante clebre 62, retomou esta

    61. Paradigma: modelo, quadro das flexes de uma palavra dada como modelo, declinao.

    62. R. Jakobson: "Deux aspects du langage et deux types d'aphasie" in Temps Modernes, n. 188, janeiro 1962, p. 853 e ss., retomado em-

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  • extenso, aplicando a oposio entre a metfora (ordem do sistema) e a metonmia (ordem do sintagma) a linguagens no lingusticas: teremos, portanto, "discursos" de tipo metafrico e "discursos" de tipo metonmico; cada tipo no implica evidentemente o recurso exclusivo a um dos dois modelos (j que sintagma e sistema so necessrios a qualquer discurso), mas somente o domnio de um ou outro. ordem da metfora (domnio das associaes substitutivas) pertenceriam os cantos lricos russos, as obras do Romantismo e do Simbolismo, a pintura surrealista, os filmes de Charlie Chaplin (as fuses superpostas seriam verdadeiras metforas flmicas), os smbolos freudianos do sonho (por identificao); ordem da metonmia (domnio das associaes sintagmticas) pertenceriam as epopias hericas as narrativas da escola realista, os filmes de Griffith (grandes planos, montagem e variaes dos ngulos de tomadas), e as projees onricas por deslocamento ou condensao. enumerao de Jakobson, poderamos acrescentar: do lado da metfora, as exposies didticas (mobilizando definies substitutivas) 63, a crtica literria de tipo temtico, os discursos aforsticos; do lado da metonmia, os romances populares e as narrativas de imprensa 64. Lembraremos, seguindo uma observao de Jakobson, que o analista (o semilogo, no caso) est melhor armado para falar da metfora do que da metonmia, pois a metalinguagem na qual deve conduzir sua anlise , ela prpria metafrica e, consequentemente, homognea metfora-objeto: h,

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    Essais de linguistique gnrale, d. de Minuit, (1963), cap. 2 [includo em Lingustica e Comunicao, ed