O Imperio Dos Signos - Roland Barthes

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    ROLAND BARTHES o imprio dos signos

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    0 IMPRIO DOS SIGNOS

    Por que o Japo? Porque o pas da escrita: de todos os pases que o autor pde conhecer, o Japo aquele onde encontrou otrabalho do signo mais prximo de suas convices e de suas fan-tasias, ou, se preferirem, o mais distante dos desgostos, irritaes e

    recusas que nele suscita a semiocracia ocidental. 0 signo japons forte: admiravelmente regrado, arranjado, exibido, jamais natu-ralizado ou racionalizado. O signo japons vazio: seu significadofoge, no h deus, verdade, moral, no fundo desses significantesque reinam sem contrapartida. E sobretudo a qualidade superior

    desse signo, a nobreza de sua afirmao e a graa ertica com

    que ele se desenha so postas em toda parte, sobre os objetos eas condutas mais fteis, aquelas que remetemos habitualmente insignificncia ou vulgaridade. 0 lugar do signo no ser portantobuscado, aqui, no lado de seus domnios institucionais: no tratare-mos nem de arte, nem de folclore, nem mesmo de civilizao(no oporemos o Japo feudal ao Japo tecnolgico). Trataremos

    da cidade, da loja, do teatro, da polidez, dos jardins, da violncia;de alguns gestos, de certos alimentos, de certos poemas; falare-

    mos dos rostos, dos olhos e dos pincis com os quais tudo issose escreve mas no se pinta.

    R.B.

    9788560156412

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    ROLAND

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    imprio

    dossignos

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    ROLAND BARTHES

    Esta coleo rene importantes obras deRoland Barthes, algumas em reedio

    cuidadosamente revista e vrias inditas.

    Entre os inditos, destacamse os Cursos

    do Collge de France e quatro volumes

    temticos contendo artigos esparsos enunca antes traduzidos no Brasil. Esta

    coleo dirigida e organizada por LeylaPerroneMoiss, sem dvida a maior res-

    ponsvel pela divulgao do pensamen-to de Barthes no Brasil.

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    O IMPRIO DOS SIGNOS

    Traduo | Leyla Perrone-Moiss

    i ti L 'm / m a r ti n s f o n t e sSO PAULO 2007

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    Esta obra foi publicada originalmente em francs com o ttuloL'EMPIRE DES SIGNES por ditions du Seuil, Paris.

    Copyright ditions du Seuil, 2005.

    A primeira edio desta obra foi publicada em 1970

    por ditions d'Art Albert Skira.Copyright 2007, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

    So Paulo, para a presente edio.

    I a edio 2007

    TraduoLEYLA PERR ON E-MOIS S

    Reviso da traduoMaria Fernanda Alvares

    Acompanhamento editorialMaria Fernanda Alvares

    Revises grficas Solange Martins

    Marisa Rosa Teixeira

    Dinarte Zorzanelli da SilvaProduo grfica

    Geraldo AlvesPaginao/Fotolitos

    Studio3 Desenvolvimento EditorialImpresso e Acabamento

    Bandeirantes Solues Grfica Ltda

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Barthes, RolandO imprio dos signos / Roland Barthes ; traduo Leyla

    Perrone-Moiss. - So Paulo : WMF Martins Fontes, 2007. -(Coleo Roland Barthes)

    Ttulo original: L'empire des signes.

    ISBN 978-85-60156-41-2

    1. Japo - Civilizao 2. Lingstica 3. Signos e smbolos

    I. Ttulo. II. Srie.

    07-3559 CDD-952

    ndices para catlogo sistemtico:1. Sign os : Jap o : Civ ilizao 952

    Todos os direitos desta edio reservados Livraria M artins Fontes Editora Ltda.

    Rita Conselheiro Rama lho, 33 01325-000 So Paulo SP BrasilTel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042

    e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com.br

    mailto:[email protected]://www.martinsfontes.com.br/http://www.martinsfontes.com.br/mailto:[email protected]
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    Nota presente edio.............................................

    VII

    Naquele lugar....................................................... 7A lngua desconhecida ........................................ 11Sem palavras......................................................... 17A gua e o flo co ................................................... 19

    Palitos...................................................................

    24A comida descentrada.......................................... 29O interstcio......................................................... 34Pachinko ............................................................. 39Centro da cidade, centro vazio ........................... 43Sem endereos ..................................................... 47

    A estao.............................................................

    52Os pacotes ........................................................... 57

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    Pelo fato de a caligrafia ser muito importante, nasconsideraes de Roland Barthes, mantivemos o textooriginal escrito por ele, sobreposto ou aposto a algumasdas ilustraes deste volume. O leitor encontrar, nofinal, a traduo desses textos.

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    Para Maurice Pinguet

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    O texto no comenta as imagens. As imagens no ilustram o texto: cada uma foi, para mim, somente a origemde uma espcie de vacilao visual, anloga, talvez, quelaperda de sentido que o Zen chama desatori; texto e imagens, em seus entrelaamentos, querem garantir a circulao,a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e neles

    ler o recuo dos signos.

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    Se eu quiser imaginar um povo fictcio, posso dar-lhe um nome inventado, trat-lo declarativamente comoum objeto romanesco, fundar uma nova Garabagne*, demodo a no comprometer nenhum pas real em minhafantasia (mas ento essa mesma fantasia que comprometo nos signos da literatura). Posso tambm, sem pre

    tender nada representar, ou analisar realidade alguma(so estes os maiores gestos do discurso ocidental), levantar em alguma parte do mundo ( lugar)umcerto nmero de traos (palavra grfica e lingstica), ecom esses traos formar deliberadamente um sistema.E esse sistema que chamarei de: Japo.

    * Na obra Voyage en Grande Garabagne,publicada em 1936, o poeta Henri Michaux (1889-1984) fala de pases imaginrios. (N. daT.)

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    O Oriente e o Ocidente no podem, portanto, ser

    aqui tomados como realidades, que tentaramos aproximar ou opor de maneira histrica, filosfica, culturalou poltica. No olho amorosamente para uma essncia oriental, o Oriente me indiferente. Ele apenas mefornece uma reserva de traos cuja manipulao, o jogoinventado, me permitem afagar a idia de um siste

    ma simblico indito, inteiramente desligado do nosso. O que pode ser visado, na considerao do Oriente, no so outros smbolos, outra metafsica, outra sabedoria (embora esta aparea como bem desejvel); apossibilidade de uma diferena, de uma mutao, deuma revoluo na propriedade dos sistemas simblicos. Seria preciso fazer, um dia, a histria de nossa prpria obscuridade, manifestar a compacidade de nossonarcisismo, recensear ao longo dos sculos os poucosapelos diferena que s vezes ouvimos, as recuperaes ideolgicas que infalivelmente os seguiram e que

    consistem em sempre aclimatar nosso desconhecimento da sia graas a linguagens conhecidas (o Orientede Voltaire, da Revue Asiatique,de Loti ou da. Air Fran-ce). Existem hoje, sem dvida, mil coisas a seremaprendidas do Oriente: um enorme trabalho de conhecimento, ser necessrio (seu atraso s pode ser o resultado de uma ocultao ideolgica); mas precisotambm que, aceitando deixar, de ambos os lados,

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    imensas zonas de sombra (o Japo capitalista, a acultu

    rao americana, o desenvolvimento tcnico), um tnuefilete de luz busque, no outros smbolos, mas a prpria fissura do simblico. Essa fissura no pode aparecerno nvel dos produtos culturais: o que aqui apresentado no pertence (pelo menos o desejamos) arte, aourbanismo japons, cozinha japonesa. O autor jamais,

    em nenhum sentido, fotografou o Japo. Seria antes ocontrrio: o Japo o iluminou com mltiplos clares;ou ainda melhor: o Japo o colocou em situao de escritura. Essa situao exatamente aquela em que se opera certo abalo da pessoa, uma revirada das antigas leituras,uma sacudida do sentido, dilacerado, extenuado at oseTvazio insubstituvel, sem que o objeto cesse jamaisde ser significante, desejvel. A escritura , em suma e sua maneira, um satori: o satori(o acontecimento Zen) um abalo ssmico mais ou menos forte (nada solene)que faz vacilar o conhecimento, o sujeito: ele opera um

    vazio de fala.E tambm um vazio de fala que constitui a escritura; desse vazio que partem os traos comque o Zen, na iseno de todo sentido, escreve os jardins,os gestos, as casas, os buqus, os rostos, a violncia.

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    A LNGUA DESCONHECIDA

    O sonho: conhecer uma lngua estrangeira (estranha)e, contudo, no a compreender: perceber nela a diferena, sem que essa diferena seja jamais recuperadapela sociabilidade superficial da linguagem, comunicao ou vulgaridade; conhecer, refratadas positivamente

    numa nova lngua, as impossibilidades da nossa; aprender a sistemtica do inconcebvel; desfazer nosso realsob o efeito de outros recortes, de outras sintaxes; descobrir posies inditas do sujeito na enunciao, deslocar sua topologia; numa palavra, descer ao intraduzvel,sentir sua sacudida sem jamais a amortecer, at que, emns, todo o Ocidente se abale e vacilem os direitos da lngua paterna, aquela que nos vem de nossos pais e que

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    nos torna, por nossa vez, pais e proprietrios de umacultura que, precisamente, a histria transforma em natureza. Sabemos que os principais conceitos da filosofia aristotlica foram de certo modo constrangidospelasprincipais articulaes da lngua grega. Quanto, inversamente, seria benfico transportar-nos numa viso dasdiferenas irredutveis que nos podem sugerir, por vis

    lumbres, uma lngua muito longnqua. Certos captulosde Sapir ou de Whorf sobre as lnguas chinook, nootka,hopi, de Granet sobre o chins, certa frase de um amigo sobre o japons abrem o romanesco integral, de queapenas alguns textos modernos podem dar uma idia(mas nenhum romance), permitindo perceber uma pai

    sagem que nossa fala (esta de que somos proprietrios)no podia, de modo algum, adivinhar ou descobrir.

    Assim, em japons, a proliferao de sufixos fun-cionais e a complexidade dos enclticos supem que osujeito avance na enunciao atravs de precaues, re

    tomadas, atrasos e insistncias, cujo volume final (nopoderamos mais falar de uma simples linha de palavras) faz precisamente do sujeito um grande invlucrovazio de fala, e no esse ncleo pleno que pretende dirigir nossas frases, do exterior e do alto, de modo queaquilo que nos parece um excesso de subjetividade (diz-se

    que o japons enuncia impresses, no constataes) muito mais uma forma de diluio, de hemorragia do

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    sujeito numa linguagem parcelada, particulada, difra-

    tada at o vazio. Ou ainda, isto: como muitas lnguas,o japons distingue o animado (humano e/ou animal)do inanimado, principalmente no nvel de seus verbosser; ora, as personagens fictcias que so introduzidasnuma histria (do gnero: era uma vez um rei) sao afetadas pela marca do inanimado; enquanto toda a nossaarte se esfora por decretar a vida5, a realidade dos seres romanescos, a prpria estrutura do japons restabelece ou retm esses seres em sua qualidade de produtos,de signos separados do libi referencial por excelncia:o da coisa viva. Ou ainda, de modo mais radical, j que

    se trata de conceber o que nossa lngua no concebe:como podemos imaginarum verbo que seja, ao mesmotempo, sem sujeito, sem atributo, e no entanto transitivo, como por exemplo um ato de conhecimento semsujeito conhecedor e sem objeto conhecido? porm

    essa imaginao que nos pedida diante do dhyanahindu, origem do ctian chins e do zen japons, que naopoderamos evidentemente traduzir por meditaosema colocar o sujeito e o deus: expulsem-nos, eles voltam,e nossa lngua que cavalgam. Esses fatos e muitos outros nos convencem de quo irrisrio querer contestarnossa sociedade sem jamais pensar nos prprios limitesda lngua pela qual (relao instrumental) pretendemos

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    Ti *+1*4

    t TTssut .c**.'J*aJL

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    contest-la: querer destruir o lobo alojando-se confortavelmente em sua goela.

    Esses exerccios de uma gramtica aberrante teriampelo menos a vantagem de lanar uma suspeita sobre aprpria ideologia de nossa fala.

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    A massa rumorosa de uma lngua desconhecida constitui uma proteo deliciosa, envolve o estrangeiro (desde que o pas no lhe seja hostil) numa pelcula sonoraque bloqueia, a seus ouvidos, todas as alienaes da lngua materna: a origem, regional e social daquele que afala, seu grau de cultura, de inteligncia, de gosto, a ima

    gem atravs da qual ele se constitui como pessoa e pedepara ser reconhecido. Assim, no estrangeiro, que repouso! Estou ali protegido contra a tolice, a vulgaridade, avaidade, a mundanidade, a nacionalidade, a normalidade. A lngua desconhecida, da qual capto no entantoa respirao, a aerao emotiva, numa palavra, a signifi-cncia pura, forma minha volta, medida que me desloco, uma leve vertigem, arrasta-me em seu vazio arti

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    ficial, que s se realiza para mim: vivo no interstcio, livre de todo sentido pleno. Como vocse virou l, com alngua?Subentendido: Como vocgarant ia essa necessi-dade vi tal da comunicao?Ou mais exatamente, assero ideolgica que recobre a interrogao prtica: s hcomunicao na fa l a.

    Ora, acontece que naquele pas (o Japo) o imprio

    dos significantes to vasto, excede a tal ponto a fala, quea troca dos signos de uma riqueza, de uma mobilidade,de uma sutileza fascinantes, apesar da opacidade da lngua, s vezes mesmo graas a essa opacidade. A razo que l o corpo existe, se abre, age, se d sem histeria, semnarcisismo, mas segundo um puro projeto ertico em

    bora sutilmente discreto. No a voz (com a qual identificamos os direitos5da pessoa) que comunica (comunicar o qu? nossa alma - forosamente bela - nossa sinceridade, nosso prestgio?), o corpo todo (os olhos, osorriso, a mecha, o gesto, a roupa) que mantm conoscouma espcie de balbucio, ao qual o perfeito domnio dos

    cdigos tira todo carter regressivo, infantil. Marcar umencontro (por gestos, desenhos, nomes prprios) leva defato uma hora, mas durante essa hora, para uma mensagem que se teria abolido num instante se tivesse sido falada (ao mesmo tempo essencial e insignificante), o corpo todo do outro que conhecido, degustado, recebido,

    e que desenvolveu (sem verdadeira finalidade) sua prpria narrativa, seu prprio texto.

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    A GUA E O FLOCO

    A bandeja de refeio parece um quadro dos maisdelicados: uma moldura que contm, sobre um fundoescuro, objetos variados (tigelas, caixas, pires, palitos,montinhos midos de alimentos, um pouco de gengibrecinza, alguns fiapos de legumes alaranjados, um fundo

    de molho marrom), e como esses recipientes e esses pedaos de alimento so exguos e tnues, mas numerosos,diramos que essas bandejas realizam a definio da pintura que, nas palavras de Piero delia Francesca, somente uma demonstrao de superfcies e de corpos quese tornam cada vez menores, ou maiores, segundo seutermo. No entanto, tal ordem, deliciosa quando aparece,est destinada a ser desfeita, refeita segundo o prprio

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    ritmo da alimentao; o que era, no incio, quadro imobilizado, torna-se bancada ou tabuleiro, espao, no deuma vista, mas de um fazer ou de um jogo; a pintura,afinal, era apenas uma paleta (uma superfcie de trabalho) com a qual voc vai jogar enquanto come, colhendo aqui uma pitada de legumes, ali de arroz, ali de condimento, ali um gole de sopa, segundo uma alternncia

    livre, como um grafista (precisamente japons) instaladodiante de um conjunto de potinhos de tinta e que, aomesmo tempo, sabe e hesita; assim, sem ser negada oudiminuda (no se trata de uma indiferena com relao comida, atitude sempre moral),a alimentao fica marcada por uma espcie de trabalho ou de jogo, que seexerce menos sobre a transformao da matria-prima(objeto prprio da cozinha;mas a comida japonesa poco cozinhada, os alimentos chegam mesa em estadonatural; a nica operao que sofreram, de fato, foi a deserem cortados) do que sobre a combinao mvel e

    aparentemente inspirada de elementos, cuja ordem de retirada no fixada por nenhum protocolo (voc podealternar um gole de sopa, um bocado de arroz, uma pitada de legumes): como toda a feitura do alimento est nacomposio, ao compor suas pores voc mesmo fazo que come; a iguaria no mais um produto reificado,

    cuja preparao, entre ns, pudicamente afastada notempo e no espao (refeies elaboradas de antemo,

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    atrs da parede de uma cozinha, cmodo secreto onde

    tudo permitidocontanto que o produto s saia dali jcomposto, ornado, embalsamado, maquiado). Da o carter vivo(o que no quer dizer: dessa cozinha,que parece cumprir, em todas as estaes, o desejo dopoeta: Oh! celebrar a primavera com comidas deliciosas...

    Da pintura, a comida japonesa toma ainda a qualidade menos imediatamente visual, a qualidade maisprofundamente engajada no corpo (ligada ao peso e aotrabalho da mo que traa ou cobre) e que , no a cor,mas o toque.O arroz cozido (cuja identidade absolutamente especial atestada por um nome particular, que

    no o do arroz cru) s pode ser definido por umacontradio da matria; ele , ao mesmo tempo, coesivo e destacvel; sua destinao substancial o fragmento,o leve conglomerado; o nico elemento de ponderao da comida japonesa (antinmica comida chinesa); aquilo que cai, por oposio quilo que flutua; ele

    dispe, no quadro, uma brancura compacta, granulosa(ao contrrio da do po) e, no entanto, frivel: aquiloque chega mesa apertado, colado, desfaz-se ao golpedos dois palitos sem contudo se espalhar, como se a diviso s se operasse para produzir ainda uma coeso ir

    redutvel; essa defeco comedida (incompleta) que,para alm (ou aqum) da comida, dada a consumir. Domesmo modo mas no outro extremo das substncias

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    a sopa japonesa (a palavra sopa indevidamente espessa, e caldolembra penso familiar) dispe, no jogoalimentar, um toque de claridade. Na Frana, uma sopaclara uma sopa rala; mas aqui a leveza do caldo, fluidocomo gua, a poeira de soja ou de feijes que nele sedesloca, a raridade dos dois ou trs slidos (talo de erva,filamento de legume, parcela de peixe) que dividem,

    flutuando, essa pequena quantidade de gua, do a idiade uma densidade clara, de uma nutritividade sem gordura, de um elixir reconfortante pela pureza: algo deaqutico (mais do que aquoso), de delicadamente marinho, traz um pensamento de fonte, de vitalidade profunda. Assim, a comida japonesa se estabelece num sis

    tema reduzido da matria (do claro ao divisvel), numtremor do significante: so estes os caracteres elementares da escritura, estabelecida sobre uma espcie devacilao da linguagem, e assim se apresenta a comida

    japonesa: uma comida escrita, tributria dos gestos de

    diviso e de retirada que inscrevem o alimento, no sobre a bandeja da refeio (nada a ver com a comida fotografada, as composies coloridas das revistas femininas),mas num espao profundo que dispe, em patamares,o homem, a mesa e o universo. Pois a escritura precisamente aquele ato que une, no mesmo trabalho, o que

    no poderia ser captado junto no nico espao planoda representao.

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    No Mercado Flutuante de Bangkok, cada vendedor se mantm sobre uma pequena piroga imvel; elevende mnimas quantidades de alimento: gros, algunsovos, bananas, cocos, mangas, pimentes (sem falar doInominvel). Dele at a mercadoria, passando por seuesquife, tudo pequeno.O alimento ocidental, acumu

    lado, dignificado, inchado at o majestoso, ligado a alguma operao de prestgio, tende sempre ao grosso,ao grande, ao abundante, ao planturoso; o oriental segue o movimento inverso, expande-se em direo ao infinitesimal: o futuro do pepino no o amontoado ou

    o espessamento, mas a diviso, o tnue espalhamento,como dito neste haicai:

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    Pepino cortado.

    Seu suco escorreDesenhando patas de aranha.

    H convergncia do minsculo e do comestvel: ascoisas no so pequenas apenas para serem comidas,mas tambm so comestveis para cumprir sua essncia,que a pequenez. O acordo da comida oriental com ospalitos no pode ser apenas funcional, instrumental; osalimentos so cortados para poderem ser pegos pelospalitos, mas tambm os palitos existem porque os alimentos so cortados em pedacinhos; um mesmo mo

    vimento, uma mesma forma transcende a matria e seuutenslio: a diviso.

    Os palitos tm muitas outras funes alm de transportar a comida do prato boca (esta a menos pertinente, j que tambm a dos dedos e do garfo), e essasfunes lhes pertencem como prprias. Primeiramenteo palito - sua forma o diz suficientemente - tem umafuno ditica: ele mostra a comida, designa o fragmento, faz existir pelo prprio gesto da escolha, que o ndex;mas assim fazendo, em vez de a ingesto seguir uma espcie de seqncia maquinal, pela qual nos limitara

    mos a engolir pouco a pouco as partes de um mesmoprato, os palitos, designando o que escolheram (e portanto escolhendo na hora isto e no aquilo), introduzem

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    no uso da alimentao no uma ordem mas uma fantasia e como que uma preguia: em todo caso, uma operao inteligente e no mais mecnica. Outra funo dospalitos, a de pinar o fragmento de comida (e no maisde espetar, como fazem nossos garfos); pinar* alisuma palavra demasiadamente forte, agressiva (beliscar o que fazem as meninas sonsas, pinar o que fazem

    os cirurgies, as costureiras, os temperamentos suscetveis); pois o alimento no sofre nunca uma pressosuperior quela que estritamente necessria para le-vant-lo e transport-lo; h no gesto dos palitos, aindaamaciado por sua matria, madeira ou laca, lgo de maternal, a mesma moderao, o mesmo comedimento

    que se emprega para carregar uma criana: uma fora(no sentido operatrio do termo), no uma pulso; este todo um comportamento com relao comida, bemvisvel nos longos palitos do cozinheiro, que servemno para comer, mas para preparar os alimentos: o ins

    trumento nunca fura, corta, fende, fere, mas apenas colhe, vira, transporta. Pois os palitos (terceira funo),para dividir, separam, afastam, bicam, em vez de cortare espetar como nossos talheres; eles nunca violentam oalimento: ora o desembaraam pouco a pouco (no casodas ervas), ora o desfazem (no caso dos peixes, das en

    * Pincer, em francs, pode significar tanto beliscar como pinar. (N. da T.)

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    guias), reencontrando assim as fissuras naturais da ma-

    que da faca). Enfim, e talvez sua funo mais bela, ospalitos trasladam o alimento, quer quando, cruzadoscomo duas mos, suporte e no mais pina, se insinuamsob o floco de arroz e o estendem, o levantam at a bocado comensal, quer quando (por um gesto milenar de

    todo o Oriente) fazem deslizar a neve alimentar da tigela aos lbios, como uma p. Em todos esses usos, emtodos os gestos que implicam, os palitos se opem nossa faca (e a seu substituto predador, o garfo): eles so osinstrumentos alimentares que se recusam a cortar, a es

    petar, a mutilar, a furar (gestos muito limitados, rechaados no preparo da comida: o peixeiro que esfola diante de ns a enguia viva exorciza, uma vez por todas, numsacrifcio preliminar, o assassinato da comida); pelos palitos, a comida no mais uma presa que violentamos(carnes sobre as quais nos encarniamos), mas uma

    tria (nisso bem mais prximos do dedo primitivo do

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    substncia harmoniosamente transferida; eles transformam a matria previamente dividida em alimento depssaro, e o arroz em onda de leite; maternais, conduzem incansavelmente o gesto da bicada, deixando a nossos hbitos alimentares, armados de lanas e de facas, oda predaao.

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    O sukiyaki um guisado cujos elementos conhecemos e reconhecemos, pois feito diante de ns, sobrea prpria mesa, sem parar, enquanto o comemos. Osprodutos crus (mas descascados, lavados, j revestidosde uma nudez esttica, brilhante, colorida, harmoniosa

    como uma roupa primaveril: A fineza, o toque, oefeito, a harmonia, o tempero, tudo a se encontra,diriaDiderot) so reunidos e trazidos numa bandeja; a prpria essncia da feira que chega at ns, seu frescor, suanaturalidade, sua diversidade e at a classificao quefaz da simples matria a promessa de um acontecimento:recrudescncia de apetite ligada a esse objeto misto que o produto de feira, ao mesmo tempo natureza e mer

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    cadoria, natureza mercantil, acessvel posse popular:

    folhas comestveis, legumes, cabelos de anjo, quadrados cremosos de pasta de soja, gema crua do ovo, carnevermelha e acar branco (aliana infinitamente maisextica, mais fascinante ou mais enjoativa, porque visual, do que o simples doce-salgadoda comida chinesa,que cozida e na qual o acar no visvel seno no

    brilho caramelizado de certos pratos laqueados), todosesses alimentos crus, primeiramente aliados, compostos como num quadro holands do qual conservariamo contorno do trao, a firmeza elstica do pincel e o verniz colorido (ignoramos se este se deve matria dascoisas, luz da cena, ao ungento que recobre o quadro ou iluminao do museu), pouco a pouco transportados para a grande caarola em que so cozidos sobnossos olhos, ali perdem suas cores, suas formas e seudescontnuo, ali amolecem, se desnaturalizam, adquirem aquele tom ruo que a cor essencial do molho;

    medida que pegamos, com a ponta de nossos palitos,alguns fragmentos desse guisado recm-cozido, outrosalimentos crus vm substitu-los. Uma assistente presidea esse vai-e-vem; postada um pouco distncia atrs dens, armada com palitos longos, ela alimenta alternativamente a panela e a conversa: toda uma pequena

    odissia da comida que vivemos pelo olhar: assistimosao Crepsculo da Crueza.

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    Essa Crueza, como se sabe, a divindade tutelar dacomida japonesa: tudo lhe dedicado, e, se a cozinha

    japonesa se faz sempre diantede quem a vai comer (marca fundamental dessa cozinha), que talvez seja importante consagrar, pelo espetculo, a morte daquilo quese honra. O que honrado na crueza ( : termoque o francs emprega de maneira bizarra no singular

    para denotar a sexualidade da linguagem, e no plural,crudits, para nomear a parte exterior, anormal e umpouco tabu de nossos cardpios) no , parece, como

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    entre ns, uma essncia interior do alimento, a pletora

    sangnea (sendo o sangue smbolo da fora e da morte), cuja energia vital recolhemos por transmigrao(entre ns, a crueza um estado forte da comida, comoo mostra metonimicamente o intenso tempero que impomos ao steak tartare).A crueza japonesa essencialmente visual; ela denota certo estado colorido da carne

    ou do vegetal (entendendo-se que a cor nunca esgotada por um catlogo de tintas, mas remete a toda umatatilidade da matria; assim, o sashimiexibe menos cores do que resistncias: as que variam na carne dos peixescrus, fazendo-a passar, ao longo da bandeja, pelas estaes do flcido, do fibroso, do elstico, do compacto,

    do spero, do escorregadio). Inteiramente visual (pensada, arrumada, manejada pela viso e at mesmo poruma viso de pintor, de grafista), a comida diz, assim,que ela no profunda: a substncia comestvel desprovida de mago precioso, de fora oculta, de segredovital: nenhum prato japons provido de um centro(cen

    tro alimentar implicado entre ns pelo rito que consiste em ordenar a refeio, em cercar ou cobrir de molhoas iguarias); tudo ali ornamento de outro ornamento:primeiro porque sobre a mesa, sobre a bandeja, a comida nunca mais do que uma coleo de fragmentos,dos quais nenhum privilegiado por uma ordem deingesto: comer no respeitar um cardpio (um itinerrio de pratos), mas colher, com um toque ligeiro dos

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    O cozinheiro (que no cozinha nada) pega uma enguia viva, enfia uma longa ponta em sua cabea e a raspa, a esfola. Essa cena rpida, mida (mais do que sangrenta), de pequena crueldade, vai terminar em renda.A enguia (ou o fragmento de legume, de crustceo),cristalizado na fritura, como o ramo de Salzburgo, re-

    duz-se a um pequeno bloco de vazio, a uma coleo deburacos; o alimento chega, assim, ao sonho de um paradoxo: o de um objeto puramente intersticial, aindamais provocante porque esse vazio fabricado para quenos alimentemos dele (s vezes, o alimento construdoem bola, como uma bolha de ar).

    A tempura liberada do sentido que ligamos tradicionalmente fritura, e que o peso. A farinha reencontra

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    nela sua essncia de flor espalhada, diluda to levemen

    te que forma um leite, e no uma pasta; tomado peloleo, esse leite dourado to frgil que recobre imperfeitamente o fragmento de comida, deixa aparecer umrosa de camaro, um verde de pimento, um marrom deberinjela, retirando assim, da fritura, aquilo de que feito nosso bolinho, e que a ganga, o invlucro, a compacidade. O leo (mas ser mesmo leo, ser de fato asubstncia me do oleoso?),logo enxuto pelo guardanapo de papel sobre o qual nos apresentam a tempura,numa cestinha de vime, o leo seco, sem mais nenhuma relao com o lubrificante que, no Mediterrneo e

    no Oriente, cobrem a cozinha e a doaria; ele perde umacontradio que marca nossos alimentos cozidos noleo ou na banha e que consiste em queimar sem esquentar; essa queimadura fria do corpo gorduroso substituda, aqui, por uma qualidade que parece recusada a toda fritura: o frescor. O frescor que circula na

    tempura,atravs da renda de farinha, montando os maisvivazes e mais frgeis dos alimentos, o peixe e o vegetal, esse frescor que , ao mesmo tempo, o do intacto edo refrescante, exatamente o do leo: os restaurantes detempuraso classificados a partir do grau de desgaste do

    leo que empregam: os mais cotados empregam o leonovo que, usado, revendido a outro restaurante maismedocre, e assim por diante; no o alimento que com

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    pramos, nem mesmo seu frescor (e ainda menos a ca

    tegoria do local ou do servio), a virgindade de seucozimento.s vezes, a pea de tempurase apresenta em pata

    mares: a fritura contorna (melhor do que: envolve) umpimento, ele mesmo recheado de mexilhes. O queimporta que o alimento seja constitudo de pedaos,

    de fragmentos (estado fundamental da cozinha japonesa, na qual a cobertura de molho, de creme, de crosta- desconhecida), no apenas pela preparao, mas tambm e sobretudo por sua imerso numa substnciafluida como a gua, coesiva como a gordura, de onde saium pedao acabado, separado, nomeado e contudo crivado; mas o cerne to leve que se torna abstrato: o alimento no tem mais por invlucro seno o tempo (alismuito tnue) que o solidificou. Diz-se que a tempura uma iguaria de origem crist (portuguesa): o alimentoda quaresma {tmpora);mas, afinado pelas tcnicas ja

    ponesas de anulao e de iseno, o alimento de outro tempo: no o de um rito de jejum e de expiao, masde uma espcie de meditao, to espetacular quantoalimentar (j que a tempura preparada sob nossos olhos),em torno desse algo que determinamos, na falta de melhor termo (e talvez em funo de nossos limites temti

    cos), do lado do leve, do areo, do instantneo, do frgil,do transparente, do fresco, do nada, mas cujo verdadeiro

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    nome seria o interstcio sem bordas plenas, ou ainda: o

    signo vazio. preciso, de fato, voltar ao jovem artista que fazrenda com peixes e pimentes. Se ele prepara nossa comida diante de ns, conduzindo, de gesto em gesto, delugar a lugar, a enguia, do viveiro ao papel branco que,para terminar, a receber toda crivada, no (somen

    te) para nos tornar testemunhas da alta preciso e dapureza de sua cozinha; porque sua atividade literalmente grfica: ele inscreve o alimento na matria; suabancada distribuda como a mesa de um calgrafo; eletoca as substncias como um grafista (sobretudo se ele japons) que alterna os potinhos, os pincis, a pedra

    de tinta, a gua, o papel; ele cumpre assim, na agitaodo restaurante e no cruzamento dos pedidos, um escalonamento, no do tempo, mas dos tempos (os de umagramtica da tempura), torna visvel a gama das prticas,recita o alimento no como uma mercadoria acabada,da qual s a perfeio teria algum valor (o que o caso denossas iguarias), mas como um produto cujo sentidono final mas progressivo, esgotado, por assim dizer,quando sua produo terminada: voc que come,mas foi ele que jogou, escreveu, produziu.

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    O Pachinko uma mquina caa-nqueis. Compra-se, no balco, uma pequena proviso de bolinhasmetlicas; depois, diante do aparelho (espcie de quadro vertical), com uma das mos enfia-se cada bolinhanuma boca, enquanto com a outra, graas a um gatilho,

    propulsa-se a bolinha atravs de um circuito de passagens em ziguezague; se o disparo certeiro (nem muitoforte, nem muito fraco), a bolinha impelida libera umachuva de outras bolinhas, que caem em nossa mo, etudo o que se tem a fazer recomear - a menos quese prefira trocar o ganho por uma recompensa irrisria(tablete de chocolate, laranja, mao de cigarro). Os hallsde Pachinko so muito numerosos, e sempre cheios de

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    um pblico variado (jovens, mulheres, estudantes de

    tnica preta, homens sem idade de terno). Diz-se que o

    volume de negcios do Pachinko igual (ou mesmo superior) ao de todas as grandes lojas do Japo (o que, sem

    dvida, nao pouca coisa).

    O Pachinko um jogo coletivo e solitrio. As mquinas sao dispostas em longas filas; cada um, em p,

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    diante de seu quadro, joga para si mesmo, sem olhar o

    vizinho, que no entanto ele acotovela. Ouve-se apenaso rumor das bolinhas propulsadas (a cadncia de sua suco muito rpida); o halluma colmia ou um ateli;os jogadores parecem estar trabalhando em cadeia. Osentido imperioso da cena o de um labor aplicado,absorto; nunca uma atitude preguiosa, desenvolta ou

    coquete, nada daquela ociosidade teatral de nossos jogadores ocidentais, demorando-se em pequenos gruposdesocupados em torno de um bilhar eltrico, ou bemconscientes de emitir, para os outros clientes do caf, aimagem de um deus hbil e sabido. Quanto arte desse jogo, ela tambm difere da de nossas mquinas. Para

    o jogador ocidental, uma vez lanada a bola, trata-se sobretudo de corrigir pouco a pouco seu trajeto de queda (dando golpes no aparelho); para o jogador japons,tudo se determina no disparo, tudo depende da foraimpressa ao gatilho pelo polegar; o dedilhado imediato, definitivo, e apenas nele reside o talento do jogador,

    que s pode corrigir o acaso de antemo e com um nico golpe; ou mais exatamente: a propulso da bolinha, no mximo, delicadamente retida ou apressada (masno dirigida) pela mo do jogador que, com um nicomovimento, move e vigia; essa mo , pois, a de um artista ( moda japonesa), para o qual o trao (grfico)

    um acidente controlado. O Pachinko reproduz, emsuma, na ordem mecnica, o prprio princpio da pin-

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    tura alia prima, que exige executar o trao com um nico movimento, uma vez por todas, e que, em razo daprpria qualidade do papel e da tinta, nunca pode sercorrigido; da mesma maneira, a bolinha lanada nopode ser desviada (seria de uma grosseria indigna maltratar o aparelho, como fazem nossos trapaceiros ocidentais): seu caminho predeterminado pelo nico relmpago de seu disparo.

    Para que serve essa arte? para regular um circuitonutritivo. A mquina ocidental sustenta um simbolismo da penetrao: trata-se, por um golpe bem desferido, de possuir apin-upque, bem iluminada no painel,provoca e espera. No Pachinko, nenhum sexo (no Japo

    - nesse pas que chamo de Japo - a sexualidade est nosexo, no em outra parte; nos Estados Unidos o contrrio: o sexo est em toda parte, exceto na sexualidade).Os aparelhos so manjedouras alinhadas; o jogador,com um gesto destro, renovado com tal rapidez que parece ininterrupto, alimenta a mquina com bolinhas:

    ele as enfia como se entope um ganso; de tempo emtempo, a mquina, repleta, solta sua diarria de bolinhas: por alguns ienes, o jogador simbolicamente salpicado de dinheiro. Compreende-se, ento, a seriedadede um jogo que ope, constrio da riqueza capitalista, parcimnia constipada dos salrios, a derrocada volup

    tuosa das bolinhas de prata que, de um s golpe, enchea mo do jogador.

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    As cidades quadrangulares, reticulares (Los Angeles,

    por exemplo), produzem, segundo dizem, um mal-estar profundo; elas ferem em ns um sentimento cenes-tsico da cidade, que exige, de todo espao urbano, umcentro aonde ir e de onde voltar, um lugar completocom que se possa sonhar, aonde se dirigir e de onde se

    retirar, numa palavra: inventar-se. Por mltiplas razes(histricas, econmicas, religiosas, militares), o Ocidente compreendeu bem demais essa lei: todas as suas cidades so concntricas; mas tambm, conforme ao prprio movimento da metafsica ocidental, para a qual

    todo centro o lugar da verdade, o centro de nossas cidades sempre pleno:lugar marcado, nele que

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    nem e se condensam os valores da civilizao: a espiritualidade (com as igrejas), o poder (com os escritrios),o dinheiro (com os bancos), a mercadoria (com as grandes lojas), a fala (com as goras: cafs e passeios); ir aocentro encontrar a verdade social, participar daplenitude soberba da realidade.

    A cidade de que falo (Tquio) apresenta este para

    doxo precioso: possui certamente um centro, mas essecentro vazio. A cidade toda gira em torno de um lugarao mesmo tempo proibido e indiferente, morada escondida pela vegetao, protegida por fossos de gua, habitada por um imperador que nunca se v, isto , literalmente, por no se sabe quem. Diariamente, em sua

    circulao rpida, enrgica, expeditiva como a linha deum tiro, os txis evitam esse crculo, cuja crista baixa,forma visvel da invisibilidade, oculta o nada sagrado.Uma das duas cidades mais poderosas da modernidade , portanto, construda em torno de um anel opacode muralhas, de guas, de tetos e de rvores, cujo centro

    no mais do que uma idia evaporada, subsistindo alino para irradiar algum poder, mas para dar a todo o movimento urbano o apoio de seu vazio central, obrigando a circulao a um perptuo desvio. Dessa maneira,dizem-nos, o imaginrio se abre circularmente, por voltas e rodeios, ao longo de um sujeito vazio.

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    As ruas desta cidade no tm nome. Existe um endereo escrito, mas ele s tem um valor postal, refere-sea um cadastro (por bairros e quarteires, nada geomtricos) cujo conhecimento acessvel ao carteiro, no aovisitante: a maior cidade do mundo praticamente in-classificada, os espaos que a compem no pormenorso desprovidos de nomes. Essa obliterao domiciliarparece incmoda queles (como ns) que foram habituados a decretar que o mais prtico sempre o maisracional (princpio em virtude do qual a melhor toponmia urbana seria a das ruas-nmeros, como nos Es

    tados Unidos ou em Quioto, cidade chinesa). Tquio noslembra, entretanto, que o racional apenas um sistema

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    entre outros. Para que haja domnio do real (no caso,o dos endereos), basta que haja sistema, mesmo que essesistema seja aparentemente ilgico, inutilmente complicado, curiosamente disparatado: sabemos que um bomtrabalho de bricolagem pode, no apenas resistir pormuito tempo, mas tambm satisfazer a milhes de habitantes afeitos, por outro lado, a todas as perfeies da

    civilizao tcnica.O anonimato compensado por certo nmero deexpedientes (pelo menos assim que nos parece), cujacombinao forma sistema. Pode-se representar o en-

    Caderno de endereos

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    dereo por um esquema de orientao (desenhado ouimpresso), espcie de levantamento geogrfico que situao domiclio a partir de um ponto de referncia conhecido, uma estao, por exemplo (os habitantes so hbeis nesses desenhos de improviso), em que vemos esboar-se, num pedao de papel, uma rua, um prdio, umcanal, uma via frrea, um letreiro, e que fazem da troca

    de endereos uma comunicao delicada, na qual a vidado corpo recupera seu lugar, uma arte do gesto grfico: sempre saboroso ver algum escrevendo e, ainda mais,desenhando: de todas as vezes em que assim me comunicaram um endereo, guardo o gesto de meu interlocutor virando seu lpis para apagar suavemente, com a

    borracha situada em sua extremidade, a curva excessivade uma avenida, a juno de um viaduto (embora a bor-

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    racha seja um objeto contrrio tradio grfica do Japo, vinha ainda desse gesto algo de pacfico, acarician-te e seguro, como se, mesmo nesse ato ftil, o corpotrabalhasse com mais reserva do que o conforme o preceito do ator Zeami; a fabricao do endereosuperava, em muito, o prprio endereo, e, fascinado,eu teria desejado que levassem horas para me dar esse

    endereo). Podemos assim, por pouco que j conheamos o lugar aonde vamos, dirigir ns mesmos o txi derua em rua. Podemos, finalmente, pedir ao motoristaque se faa guiar ele mesmo pelo habitante longnquo casa de quem vamos, a partir de um dos grandes telefones vermelhos instalados em quase todas as bancas

    de uma rua. Tudo isso faz da experincia visual um elemento decisivo da orientao: afirmao banal, se setratasse de uma floresta ou um serto, mas que o bem

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    menos em se tratando de uma cidade moderna muito

    grande, cujo conhecimento geralmente garantido pelomapa, pelo guia, pela lista telefnica, em suma, pela cultura impressa e no pela prtica gestual. Aqui, pelo contrrio, a moradia no sustentada por nenhuma abstrao; afora o cadastro, ela apenas pura contingncia:muito mais factual do que legal, ela cessa de afirmar a

    conjuno de uma identidade com uma propriedade.Essa cidade s pode ser conhecida por uma atividadede tipo etnogrfico: preciso orientar-se nela, no pelolivro, pelo endereo, mas pela caminhada, pela viso,pelo hbito, pela experincia; toda descoberta a intensa e frgil, s poder ser reencontrada pela lembrana do rasto que deixou em ns: visitar um lugar pelaprimeira vez , assim, comear a escrever: como o endereo no est escrito, preciso que ele funde sua prpria escritura.

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    Nesta cidade imensa, verdadeiro territrio urbano,o nome de cada bairro ntido, conhecido, colocadosobre o mapa um pouco vazio (j que as ruas no tmnome) como um grande flash-,ele adquire aquela identidade fortemente significante que Proust, sua maneira,explorou em seus Nomes de Lugares. Se o bairro bem

    delimitado, reunido, contido, terminado sob seu nome, porque h um centro, mas esse centro espiritualmente vazio: em geral uma estao.

    A estao, vasto organismo em que se abrigam aomesmo tempo os grandes trens, os trens urbanos, o me

    tr, uma grande loja e todo um comrcio subterrneo,d ao bairro aquele ponto de referncia que, segundo

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    certos urbanistas, permite que a cidade signifique, seja

    lida. A estao japonesa atravessada por mil trajetosfuncionais, da viagem compra, da roupa comida: umtrem pode desembocar numa seo de calados. Destinada ao comrcio, passagem, partida e, contudo,mantida num nico edifcio, a estao (ser alis assimque devemos chamar esse novo complexo?) esvaziada

    daquele carter sagrado que marca geralmente os grandes pontos de referncia de nossas cidades: catedrais,igrejas, prefeituras, monumentos histricos. Aqui, o ponto de referncia inteiramente prosaico; sem dvida, omercado tambm, freqentemente, o lugar central da

    cidade ocidental; mas, em Tquio, a mercadoria desfeita pela instabilidade da estao: uma partida incessante contraria sua concentrao; dir-se-ia que ela apenas a matria preparatria do pacote, e que o prpriopacote apenas o passe, o tquete que permite partir.

    Assim, cada bairro se concentra no buraco de sua

    estao, ponto vazio de afluncia de seus empregos e deseus prazeres. Em determinado dia, decido ir a tal outal bairro, sem outro objetivo seno uma espcie de percepo prolongada de seu nome. Sei que, em Ueno, encontrarei no trreo uma estao cheia de jovens esquiadores; mas seus subterrneos, extensos como uma cidade,ladeados de lojinhas, de bares populares, povoados declochards, de viajantes dormindo, falando, comendo no

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    Estes lutadores formam uma casta;

    vivem parte, usam cabelos longos e

    alimentamse com uma comida ritual.

    A luta dura apenas um timo: o tempo de

    derrubar a out ra massa. Nenhuma crise,

    nenhum drama, nenhum esgotamento,

    em suma, nenhum esporte: o signo do

    peso, no o eret ismo do confl ito.

    cho, realizam enfim a essncia romanesca do bas-fond.Bem perto - mas outro dia ser um outro povo: nasruas mercantis de Asakusa (sem automveis), sob arcosde flores de cerejeira de papel, vendem-se roupas bemnovas, confortveis e baratas: bluses de couro grosso

    (nada de delinqente), luvas orladas de pele negra, echarpes de l muito longas que se usam jogadas por cimade um ombro, como as das crianas de aldeia que voltam da escola, bons de couro, toda a indumentria lustrosa e lanosa do bom operrio, que precisa se agasalhar bem, corroborada pela opulncia das grandes ba

    cias fumegantes em que se cozinha lentamente a sopade macarro. E, do outro lado do anel imperial (vazio,

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    como dissemos), ainda outro povo: Ikebukuro, operrio e campons, rugoso e amigvel como um grandeco bastardo. Todos esses bairros produzem raas diferentes, outros corpos, uma familiaridade nova a cada vez.Atravessar a cidade (ou penetrar em sua profundeza,pois h sob a terra redes de bares, de lojas, s quais setem acesso s vezes por uma simples entrada de prdio,

    de modo que, passada essa porta estreita, descobrimos,suntuosa e densa, a ndia negra do comrcio e do prazer) viajar no Japo de alto a baixo, superpor topografiaa escrita dos rostos. Assim soa cada nome, suscitando aidia de uma aldeia, provida de uma populao to individual quanto a de uma tribo, da qual a cidade imensa

    seria a selva. Esse som do lugar o da histria; pois onome significante , aqui, no lembrana, mas anam-nese, como se toda Ueno e toda Asakusa me viesse destehaicai antigo (escrito por Bash no sculo XVII):

    Umanuvem de cerejeiras em flor:O sino. O deUeno?O de Asakusa?

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    Se os buqus, os objetos, as rvores, os rostos, os jardins e os textos, se as coisas e as maneiras japonesas nosparecem pequenas (nossa mitologia exalta o grande, ovasto, o largo, o aberto), no em razo de seu tamanho, porque todo objeto, todo gesto, mesmo o mais livre,o mais mvel, parece emoldurado.A miniatura no vemdo tamanho, mas de uma espcie de preciso que a coisa pe ao delimitar-se, deter-se, acabar. Essa precisonada tem de razovel ou de moral: a coisa no ntidade um modo puritano (por limpeza, franqueza ou ob

    jetividade), mas antes por um suplemento alucinatrio

    (anlogo viso provocada pelo haxixe, nas palavras deBaudelaire) ou por um recorte que tira do objeto a em-

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    pfia do sentido e priva sua presena, sua posio nomundo, de toda tergiversao.E, no entanto, essa moldura invisvel: a coisa japonesa no contornada comouma iluminura; no formada de um contorno forte,de um desenho, que viriam preencher a cor, a sombra,a pincelada; sua volta, h: nada,um espao vazio que a

    torna fosca (e portanto a nossos olhos: reduzida, diminuda, pequena).Diramos que o objeto desmonta, de modo ao mes

    mo tempo inesperado e refletido, o espao no qual estsempre situado. Por exemplo: o quarto conserva limitesescritos, so as esteiras no cho, as janelas lisas, as divi

    srias montadas em ripas (imagem pura da superfcie),nas quais no se distinguem as portas corredias; tudo

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    aqui trao, como se o quarto fosse escrito com umnico golpe de pincel. Entretanto, por uma disposiosegunda, esse rigor , por sua vez, desmontado: as divisrias so frgeis, perfurveis, as paredes deslizam, osmveis so escamoteveis, de modo que reencontramos,no cmodo japons, aquela fantasia (de vestimenta,sobretudo) graas qual todo japons desmonta - sem

    simular ou se dar ao trabalho de o subverter o conformismo de seu ambiente. Ou ainda: num buqu japons, rigorosamente construdo (segundo a linguagemda esttica ocidental), e quaisquer que sejam as intenes simblicas dessa construo, enunciadas em todoguia do Japo e em todos os livros de arte sobre abana,o que se produz a circulao do ar, do qual asflores, as folhas, os galhos (palavras demasiadamentebotnicas) so, em suma, apenas as divisrias, os corredores, as passagens delicadamente traadas segundo aidia de uma raridade,que ns outros dissociamos da

    natureza, como se somente a profuso provasseo natural; o buqu japons tem um volume; obra-prima desconhecida, assim como sonhava Frenhofer, o heri deBalzac que desejava poder passar por detrs da personagem pintada, podemos avanar o corpo no interstcio de seus galhos, nas aberturas de sua estatura, no ler

    (ler seu simbolismo), mas refazer o trajeto da mo queo escreveu: escritura verdadeira, pois produz um volume

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    e, impedindo que a leitura seja o simples deciframento

    de uma mensagem (mesmo que altamente simblica),permite refazer o traado de seu trabalho. Ou enfim (esobretudo): mesmo sem considerar emblemtico o jogoconhecido das caixas japonesas, alojadas uma na outraat o vazio, podemos j ver uma verdadeira meditaosemntica no menor pacote japons. Geomtrico, ri

    gorosamente desenhado e no entanto assinado em algum lugar por uma dobra ou um lao assimtricos,pelo cuidado, pela prpria tcnica de sua confeco, acombinao do papelo, da madeira, do papel, das fitas, ele j no o acessrio passageiro do objeto transportado, mas torna-se ele mesmo objeto; o invlucro,em si, consagrado como coisa preciosa, embora gratuita; o pacote um pensamento; assim, numa revistavagamente pornogrfica, a imagem de um jovem japonsnu, amarrado de modo muito regular, como um salame: a inteno sdica (muito mais exibida do que cum

    prida) ingenuamente - ou ironicamente - absorvidana prtica, no de uma passividade, mas de uma arteextrema: a do pacote, do cordame.

    Entretanto, em virtude de sua prpria perfeio,esse invlucro muitas vezes repetido (nunca acabamosde desfazer o pacote) faz recuar a descoberta do objeto

    que contm - e que freqentemente insignificante,pois precisamente uma especialidade do pacote japons

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    que a futilidade da coisa seja desproporcionada ao luxo

    do invlucro: um docinho, um pouco de pasta de feijo aucarada, um souvenirvulgar (como os que o Japosabe infelizmente produzir) so embalados com tantasuntuosidade quanto uma jia. Diramos, em suma,que a caixa o objeto do presente, no o que ela contm: revoadas de estudantes, aps uma excurso de um

    dia, trazem para seus pais um belo pacote contendono se sabe o qu, como se tivessem partido para bemlonge e isso fosse para eles uma ocasio de se consagrar,coletivamente, volpia do pacote. Assim, a caixa brinca de signo: como invlucro, mscara, ela valeporaquilo que esconde, protege e contudo designa: elatrapaceia*, no duplo sentido, monetrio e psicolgico;

    mas aquilo mesmo que ela contm e significa , pormuito tempo, remetido para mais , como se a funo do pacote no fosse a de proteger no espao, mas ade adiar no tempo; no invlucro que parece investi

    do o trabalho da confeco (do fazer), mas exatamentepor isso o objeto perde algo de sua existncia, torna-semiragem: de invlucro a invlucro, o significado foge,e, quando finalmente o temos (h sempre qualquer coi-sinhano pacote), ele parece insignificante, irrisrio, vil:o prazer, campo do significante, foi experimentado: o

    * No original: elle donne le change, expresso idiomtica que significa enganare contma palavra cmbio. (N. da T.)

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    pacote no vazio, mas esvaziado: encontrar o objetoque est no pacote, ou o significado que est no signo, jog-lo fora: o que os japoneses transportam, com umaenergia formigante, so afinal signos vazios. Pois h, noJapo, uma profuso daquilo que poderamos chamarde instrumentos de transporte; eles so de toda espcie,de todas as formas, de todas as substncias: pacotes, bol

    sos, bolsas, malas, panos {o fuj:leno ou xale campons com que se embrulha a coisa), todo cidado tem,na rua, uma trouxa qualquer, um signo vazio, energicamente protegido, apressadamente transportado, comose o acabamento, o enquadramento, o contorno alucinatrio que funda o objeto japons o destinasse a uma

    translao generalizada. A riqueza da coisa e a profundidade do sentido s so expedidas custa de uma triplaqualidade, imposta a todos os objetos fabricados: queestes sejam precisos, mveis e vazios.

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    Os bonecos do Bunrakutm de um a dois metrosde altura. So homenzinhos ou mulherzinhas com membros, mos e boca mveis; cada boneco movido portrs homens visveis, que o cercam, sustentam, acompanham: o mestre segura o alto do boneco e seu braodireito; ele tem o rosto descoberto, liso, claro, impassvel,frio como urna cebola branca que acaba de ser lavada(Bash); os dois ajudantes se vestem de preto, um panoesconde seus rostos; um deles, enluvado mas com o polegar descoberto, segura uma grande tesoura com fios,graas qual ele move o brao e a mo esquerdos do

    boneco; o outro, rastejando, sustenta seu corpo, garante sua marcha. Esses homens evoluem ao longo de um

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    A-en

    'Idk AaflM ,

    H t*, d 1 O AaJ\a-j

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    fosso pouco profundo, que deixa seus corpos aparentes. O cenrio fica atrs deles, como no teatro. Ao lado,um estrado acolhe os msicos e os recitantes; o papeldestes exprimiro texto (como se espreme uma fruta);esse texto meio falado, meio cantado; pontuado comgrandes pancadas de plectro, pelos tocadores desen, ele ao mesmo tempo comedido e atirado, com

    violncia e artifcio. Suados e imveis, os porta-vozesficam sentados atrs de pequenas estantes que sustentam o grande escrito que vocalizam e do qual vemos,de longe, os caracteres verticais, quando eles viram umapgina de seu libreto; um tringulo de tecido esticado,amarrado a seus ombros como uma pipa, emoldura seu

    rosto, que submetido a todas as angstias da voz.O Bunrakupratica trs escritas separadas, que d a

    ler simultaneamente em trs lugares do espetculo; a marionete, o manipulador, o vociferante: o gesto efetuado, o gesto efetivo, o gesto vocal. A voz: trunfo real da

    modernidade, substncia particular de linguagem que,em toda parte, tentamos fazer triunfar. Bem ao contrrio, o Bunrakutem uma idia limitadada voz; ele noa suprime, mas destina-lhe uma funo bem definida,essencialmente trivial. Na voz do recitante, vm de fatoreunir-se: a declamao exagerada, o tremolo,o tom su-

    peragudo, feminino, as entonaes entrecortadas, os choros, os paroxismos da clera, da queixa, da splica, do

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    espanto, opthosindecente, toda a cozinha da emoo,

    elaborada abertamente no nvel daquele corpo interno,visceral, do qual a laringe o msculo mediador. Masesse transbordamento s acontece segundo o prpriocdigo do transbordamento: a voz se move apenas atravs de alguns signos descontnuos de tempestade; lanada para fora de um corpo imvel, triangulado pela

    vestimenta, ligada ao livro que, de sua estante, o guia,cravada secamente pelas pancadas levemente defasadas(e por isso mesmo impertinentes) do tocador de shami-sen, a substncia vocal fica escrita, descontinuada, codificada, submetida a uma ironia (se tirarmos dessa palavra

    todo sentido custico); assim, o que a voz exterioriza,afinal de contas, no o que ela carrega (os sentimentos), ela mesma, sua prpria prostituio; o signifi-cante, astuciosamente, apenas se revira, como uma luva.

    Sem ser eliminada (o que seria um modo de a censurar, isto , de designar sua importncia), a voz en

    to posta de lado (em cena, os recitantes ocupam umestrado lateral). O Bunrakulhe d um contrapeso, ou melhor, uma contramarcha: a do gesto. O gesto duplo:gesto emotivo no nvel da marionete (as pessoas choram no momento do suicdio da boneca-amante), atotransitivo no nvel dos manipuladores. Em nossa arte teatral, o ator finge que age, mas seus atos nunca passam degestos: no palco, apenas teatro, mas teatro envergonhado.

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    O travesti or ient al no copia a Mulher, ele a signi fi ca: no se envisga em seu mo-

    delo, desligase de seu signi ficado: a Femini l idade dada lei tura, no viso:

    translao, no transgresso; o signo passa do grande papelfeminino ao qinquage

    nrio pai de fam i l ia: o mesmo homem, mas onde comea a metfora?

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    O Bunraku(por definio) separa o ato do gesto: ele mostra o gesto, deixa ver o ato, expe ao mesmo tempo a artee o trabalho, reserva a cada um deles sua escrita. A voz(e no h, ento, nenhum risco de deix-la atingir as regies excessivas de sua gama) secundada por um vastovolume de silncio, no qual se inscrevem, com aindamaior fineza, outros traos, outras escritas. E aqui se pro

    duz um efeito indito: longe da voz e quase sem mmica,essas escritas silenciosas, uma transitiva, outra gestual,produzem uma exaltao to especial, talvez, quanto ahiperestesia intelectual que se atribui a certas drogas.Sendo a fala, no purificada (o Bunrakuno tem nenhuma preocupao de ascese), mas por assim dizer concen

    trada margem da representao, as substncias enve-nenadoras do teatro ocidental so dissolvidas: a emoo

    j no inunda, j no submerge, torna-se leitura, os esteretipos desaparecem sem que, com isso, o espetculo tenda para a originalidade, o achado. Tudo isso corres

    ponde, claro, ao efeito de distanciamento recomendado por Brecht. Aquela distncia, entre ns reputadaimpossvel, intil ou irrisria, e abandonada apressadamente, embora Brecht a tenha situado muito precisamente no centro da dramaturgia revolucionria (e istocertamente explica aquilo), o Bunraku permite com

    preender como essa distncia pode funcionar: pelo descontnuo dos cdigos, por aquela cesura imposta aos

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    diferentes traos da representao, de modo que a cpia

    elaborada sobre o palco seja, no destruda, mas de certa forma quebrada, estriada, subtrada ao contgio me-tonmico da voz e do gesto, da alma e do corpo, queenvisga nossos atores.

    Espetculo total mas dividido, o Bunrakuexclui, claro, a improvisao: voltar espontaneidade seria vol

    tar aos esteretipos que constituem nossa profundidade. Como Brecht havia visto, aqui reina a , apitada de escrita, o fragmento de cdigo, pois nenhumdos promotores da representao pode atribuir sua prpria pessoa aquilo que ele nunca escreve sozinho. Comono texto moderno, o entranamento dos cdigos, dasreferncias, das constataes desligadas, dos gestos antolgicos multiplica a linha escrita, no pela verdade dealgum sinal metafsico, mas pelo jogo de uma combinatria que se abre no espao inteiro do teatro: o que comeado por um continuado pelo outro, sem descanso.

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    U

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    A escrita, portanto, brota do plano de inscrio, porque ela se faz a partir de um recuo e de uma defasagemno observvel (no face a face; incitando de imediatono viso, mas ao traado) que divide o suporte em corredores, como que para lembrar o vazio plural no qual ela

    se realiza ela somentedestacada na superfcie, vem te-cer-se na superfcie, delegada, do fundo que no umfundo, para a superfcie que no mais uma superfcie,mas fibraescrita por baixo, na vertical de sua parte superior (o pincel se mantm ereto na palma) o ideogramaentrando, assim, na coluna tubo ou escala e a se dis

    pondo em patamares, como uma barra complexa desencadeada pela monosslaba no campo da voz: essa coluna podeser considerada como um "punho vazio, no qual apareceprimeiro um "nico trao, o sopro que atravessa o braocavado, e a operao perfeita deve ser a da "ponta escondida ou da 'ausncia de rastos.

    Philippe Sollers,Sur le matrialisme, 1969.

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    Tratando uma antinomia fundamental, a do animado!inanimado., o Bunraku a perturba, a desfaz semproveito para nenhum dos termos. Entre ns, a marionete (o polichinelo, por exemplo) encarregada deapresentar ao ator o espelho de seu contrrio; ela anima o inanimado, mas para melhor manifestar sua de

    gradao, a indignidade de sua inrcia; caricatura davida, por isso mesmo ela afirma seus limites moraisepretende confinar a beleza, a verdade, a emoo no corpo vivo do ator, que, no entanto, faz desse corpo umamentira. O Bunrakuno remete ao ator, livra-nos dele.

    Como? Precisamente por certo pensamento do corpohumano que a matria inanimada leva aqui, com infi

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    nitamente mais rigor e frmito do que o corpo anima

    do (dotado de uma alma)- O ator ocidental (naturalista) nunca bonito; seu corpo pretende ser essnciafisiolgica, no plstica: uma coleo de rgos, umamusculatura de paixes, na qual cada mola (voz, mmica, gesto) est submetida a uma espcie de exerccio deginstica; mas, por uma reviravolta propriamente bur

    guesa, embora o corpo do ator seja construdo segundo uma diviso das essncias passionais, toma de emprstimo fisiologia o libi de uma unidade orgnica, a davida: o ator que aqui marionete, apesar do cartercontnuo de seu desempenho, cujo modelo no a carcia, mas somente a verdade visceral.

    O fundamento de nossa arte teatral , de fato,muito menos a iluso de realidade do que a iluso detotalidade; periodicamente, da choria grega peraburguesa, concebemos a arte lrica como a simultaneidade de vrias expresses (representada, cantada, mi

    mada), cuja origem nica, indivisvel. Essa origem o corpo, e a totalidade buscada tem por modelo a unidade orgnica: o espetculo ocidental antropomorfo;nele, o gesto e a palavra (sem falar do canto) formamum nico tecido, conglomerado e lubrificado como umnico msculo, que move a expresso mas jamais a di

    vide: a unidade do movimento e da voz produz aqueleque atua; por outras palavras, nessa unidade que se

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    constitui a pessoa da personagem, isto , o ator. De

    fato, sob sua aparncia viva e natural, o ator ocidental preserva a diviso de seu corpo e, por conseguinte, o alimento de nossos fantasmas: aqui a voz, alio olhar, acol a postura so erotizados, como vrios pedaos do corpo, como vrios fetiches. A marionete ocidental tambm (isto bem visvel no Polichinelo) um

    subproduto fantasmtico: como reduo, reflexo rangente cuja pertena ordem humana constantementelembrada por uma simulao caricatural, ela no vivecomo um corpo total, totalmente vibrante, mas comouma poro rgida do ator do qual emana; como autmato, ela ainda pedao de movimento, sobressalto,

    sacudida, essncia do descontnuo, projeo decomposta dos gestos do corpo; enfim, como boneco, reminiscncia do trapo, do penso genital, ela exatamentea pequena coisa flica (das ) cada do corpopara se tornar fetiche.

    Pode ser que a marionete japonesa conserve algodessa origem fantasmtica; mas a arte do Bunrakuim-prime-lhe um sentido diverso; o Bunrakuno visa a animar um objeto inanimado, de modo a tornar vivo umpedao do corpo, uma lasca de homem, conservandosua vocao de parte; no a simulao do corpo que

    ele busca, , por assim dizer, sua abstrao sensvel. Tudoo que atribumos ao corpo total, e que recusado a

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    nossos atores sob pretexto de unidade orgnica, viva,

    o homenzinho do Bunrakuo recolhe e o diz sem nenhuma mentira: a fragilidade, a discrio, a suntuosidade,a nuance indita, o abandono de toda trivialidade, o fraseado meldico dos gestos, em suma, as qualidades queos sonhos da antiga teologia concediam ao corpo glorioso, isto , a impassibilidade, a clareza, a agilidade, a

    sutileza. Eis o que o Bunraku realiza, eis como converte o corpo-fetiche em corpo amvel, eis como recusa aantinomia animadoUnanimado e dispensa o conceitoque se esconde por detrs de toda animao da matria, e que simplesmente a alma.

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    Veja-se o teatro ocidental dos ltimos sculos; suafuno essencialmente a de manifestar o que considerado secreto (os sentimentos, as situaes, os conflitos), escondendo entretanto o prprio artifcio damanifestao (o maquinrio, a pintura, a maquiagem,as fontes de luz). O palco italiana o espao dessa

    mentira: tudo acontece num interior sub-repticiamenteaberto, surpreendido, espiado, saboreado por um espectador escondido na obscuridade. Esse espao teolgico, o da Falta: de um lado, numa luz que ele finge ignorar, o ator, isto , o gesto e a fala; do outro, no escuro,o pblico, isto , a conscincia.

    O Bunraku no subverte diretamente a relao dasala com o palco (embora as salas japonesas sejam infi-

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    nitamente menos confinadas, menos abafadas, menos

    sobrecarregadas do que as nossas); o que ele altera, maisprofundamente, a ligao motora que vai da personagem ao ator e que sempre concebida, entre ns, comoa via expressiva de uma interioridade. preciso lembrar que os agentes do espetculo, no Bunraku,so aomesmo tempo visveis e impassveis; os homens de preto

    se empenham em torno do boneco, mas sem nenhumaafetao de habilidade ou de discrio, e, por assim dizer, sem nenhuma demagogia publicitria; silenciosos,rpidos, elegantes, seus atos so eminentemente transitivos, operatrios, coloridos pela mistura de fora e su

    tileza que marca o gesturio japons e que como o invlucro esttico da eficcia; quanto ao mestre, sua cabea descoberta; liso, nu, sem maquiagem, o que lheconfere um carter civil (no teatral), seu rosto oferecido leitura dos espectadores; mas o que cuidadosamente, preciosamente dado leitura, que no h nada

    para ser lido; reencontramos aqui a iseno do sentidoque mal podemos compreender, pois, entre ns, atacaro sentido escond-lo ou invert-lo, jamais dispens-lo.Com o Bunraku, as fontes do teatro so expostas em seuvazio. O que expulso do palco a histeria, isto , oprprio teatro; e o que posto em seu lugar a ao ne

    cessria para a produo do espetculo; o trabalho substitui a interioridade.

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    portanto intil perguntar-se, como fazem certos

    europeus, se o espectador pode esquecer ou no a presena dos manipuladores. O Bunrakuno pratica nema ocultao nem a manifestao enftica de seus meios;assim, ele alivia a animao do ator de todo relento sagrado e abole a ligao metafsica que o Ocidente noconsegue deixar de estabelecer entre a alma e o corpo,

    a causa e o efeito, o motor e a mquina, o agente e oator, o Destino e o homem, Deus e a criatura; se o manipulador no est escondido, por que e como fazer deleum Deus? No Bunraku,a marionete no est presa a nenhum fio. Sem fio, no h mais metfora, no h maisDestino; como a marionete no macaqueia mais a cria

    tura, o homem no mais uma marionete nas mos dadivindade, o dentrono comanda mais o fora.

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    Por que, no Ocidente, a polidez considerada comsuspeita? Por que a cortesia nos parece uma distncia(se no uma fuga) ou uma hipocrisia? Por que uma relao informal (como se diz aqui com gulodice) maisdesejvel do que uma relao codificada?

    A impolidez do Ocidente se apia em certa mitologia da pessoa. Topologicamente, o homem ocidental considerado duplo, composto de um exterior, social,factcio, falso, e de um interior, pessoal, autntico(lugar da comunicao divina). Segundo esse desenho,a pessoa humana aquele lugar cheio de natureza (ou

    de divindade, ou de culpabilidade), cinturado, fechadonum invlucro social pouco estimado: o gesto polido

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    (quando postulado) o sinal de respeito trocado en

    tre uma plenitude e outra, atravs do limite mundano(isto , apesar e por intermdio desse limite). Entretanto, se o interior da pessoa que julgado respeitvel, lgico reconhecer melhor essa pessoa negando todointeresse por seu invlucro mundano: ento a relaopretensamente franca, brutal, nua, mutilada (assim se cr)

    de toda sinaltica, indiferente a todo cdigo intermedirio, que respeitar melhor o valor individual do outro: ser mal-educado ser verdadeiro, diz logicamentea moral ocidental. Pois, se h de fato uma pessoa humana (densa, plena, centrada, sagrada), ela, sem dvida, que num primeiro movimento pretendemos cumprimentar (com a cabea, os lbios, o corpo); mas minha prpria pessoa, entrando inevitavelmente em lutacom a plenitude da outra, s poder fazer-se reconhecida rejeitando toda mediao do factcio e afirmandoa integridade (palavra justamente ambgua: fsica e mo

    ral) de seu interior; e, num segundo momento, reduzirei minha saudao, fingirei que ela natural, espontnea, livre, purificada de todo cdigo: serei apenas gracioso, ou gracioso segundo uma fantasia aparentementeinventada, como a princesa de Parma (em Proust) assi-

    tyuA salujt fvu' ?

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    nalando a amplido de suas rendas e a altura de sua po

    sio social (isto ,seu modo de ser cheia de coisas e dese constituir como pessoa), no pela rigidez distantede seu trato, mas pela simplicidade voluntria de suasmaneiras: como sou simples, como sou gracioso, comosou franco, o quanto sou algu,o que didez do ocidental.

    A outra polidez, pela mincia de seus cdigos, pelografismo ntido de seus gestos, e justamente quandoela nos parece exageradamente respeitosa (isto , a nossos olhos, humilhante), porque ns a lemos habitualmente segundo uma metafsica da pessoa, essa polidez

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    um certo exerccio do vazio (como se pode esperar de

    um cdigo forte, mas significando nada). Dois corpos se inclinam muito baixo, um diante do outro (osbraos, os joelhos e a cabea permanecendo semprenum lugar regrado), segundo graus de profundidade

    Ca de au ScuX. :4 K ' - u t W r X * 'Aa -dj*frf 0Sl'CiL

    Kc /Aaa -(a 'Zt ^

    4 ^ 4 Aa -di C A ^ d a Aak V e fuBUy

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    sutilmente codificados. Ou ainda (numa imagem anti

    ga): para oferecer um presente, achato-me, curvado ata incrustao, e, para me responder, meu parceiro faz omesmo: uma mesma linha baixa, a do cho, junta o ofe-recedor, o receptor e o objeto do protocolo, uma caixaque talvez no contenha nada ou to pouca coisa; umaforma grfica (inscrita no espao do cmodo) assim

    conferida ao ato de troca, no qual, por essa forma, anu-la-se toda avidez (o presente fica suspenso entre doisdesaparecimentos). A saudao pode ser aqui subtradaa toda humilhao ou a toda vaidade, porque literalmente no sada ningum; ela no o signo de umacomunicao, vigiada, condescendente e precavida entre duas autarquias, dois imprios pessoais (cada umreinando sobre seu Eu, pequena propriedade de quetem a chave); ela apenas o trao de uma rede de formas na qual nada detido, amarrado, profundo. Quem.sada quem?Somente tal pergunta justifica a saudao,

    inclina-a at a curvatura, o achatamento, faz triunfar nelano o sentido, mas o grafismo, e d, a uma postura quelemos como excessiva, a prpria discrio de um gesto doqual todo significado est inconcebivelmente ausente.A Forma Vazia, diz e rediz a frase budista. o queenunciam, por uma prtica das formas (palavra em que o

    sentido plstico e o sentido mundano so aqui indissociveis), a polidez da saudao, a curvatura de dois cor

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    pos que se escrevem mas no se prosternam. Nossos h

    bitos de fala so muito viciosos, pois, se digo que l apolidez uma religio, dou a entender que nela h algosagrado; a expresso deve ser desviada, de modo a sugerir que a religio l apenas uma polidez, ou aindamelhor: que a religio foi substituda pela polidez.

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    O ARROMBAMENTO DO SENTIDO

    O haicai tem esta propriedade algo fantasmtica:imaginamos sempre que podemos faz-lo facilmente.Dizemo-nos: o que pode ser mais acessvel escrita espontnea do que isto (de Buson):

    noite, outono,

    Penso somenteEm meus pais.

    O haicai apetece: quantos leitores ocidentais nosonharam em passear pela vida com um caderninho na

    mo, anotando aqui e ali algumas impresses cuja brevidade garantiria a perfeio, cuja simplicidade atestaria

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    a profundidade (em virtude de um duplo mito, um

    clssico, que faz da conciso uma prova de arte, outroromntico, que atribui um prmio de verdade improvisao). Ao mesmo tempo que inteligvel, o haicaino quer dizer nada, e por essa dupla condio queparece ofertado ao sentido de modo particularmentedisponvel, prestativo, como um hospedeiro polido

    que nos permite instalarmo-nos vontade em sua casa,com nossas manias, nossos valores, nossos smbolos; aausncia do haicai (como se diz tanto de um espritoirreal quanto de um proprietrio que viajou) solicita osuborno, o arrombamento, em uma palavra, a maior cobia, a do sentido. O haicai, livre das exigncias mtricas (nas tradues que temos dele), parece oferecer-nosem profuso, a bom preo e por encomenda esse sentido precioso, vital, desejvel como a fortuna (acaso edinheiro); no haicai, algum diria, o smbolo, a metfora, a lio custam quase nada: apenas algumas palavras,

    uma imagem, um sentimento - ali onde nossa literaturaexige ordinariamente um poema, um desenvolvimentoou (no gnero breve) um pensamento cinzelado, emsuma um grande trabalho retrico. Assim o haicai parece dar ao Ocidente direitos que sua literatura lhe recusa, e comodidades que ela lhe regateia. Voc tem odireito, diz o haicai, de ser ftil, curto, comum; encerre o que voc v, o que sente, num escasso horizonte

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    de palavras, e isso ser interessante; voc tem o direito defundar pessoalmente (e a partir de voc mesmo) suaprpria notabilidade; sua frase, qualquer que seja, enunciar uma lio, liberar um smbolo, voc ser profundo;com pouca despesa, sua escrita ser plena.

    O Ocidente umecta todas as coisas com sentido,como uma religio autoritria que impe o batismo a po

    pulaes; os objetos de linguagem (feitos com palavras)

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    so, claro, legitimamente convertidos: o primeiro

    sentido da lngua chama, metonimicamente, o sentidosegundo do discurso, e esse apelo tem valor de obrigao universal. Temos dois meios de poupar o discursoda infmia do no-sentido, e submetemos sistematicamente a enunciao (por uma colmatagem desvairadade qualquer nulidade que poderia dar a ver o vazio da

    linguagem) a uma ou outra destas significaes (ou fabricaes ativas de signos): o smbolo e o arrazoado, ametfora e o silogismo. O haicai, cujas proposies sosempre simples, corriqueiras, em suma aceitveis(comose diz na lingstica), atrado para um ou outro desses

    dois imprios do sentido. Como se trata de um poema,ns o alojamos na parte do cdigo geral dos sentimentosque chamamos de emoo potica (a Poesia geralmente, para ns, o significante do difuso, do inefvel,do sensvel, a classe das impresses inclassificveis);falamos de emoo concentrada, de anotao sincera

    de um instante privilegiado, e sobretudo de silncio(que, para ns, signo de uma plenitude de linguagem).Se um (Jco) escreve:

    Quantas pessoasPassaram atravs da chuva de outonoSobre a ponte de Seta!

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    vemos a a imagem do tempo que foge. Se outro (Bash)escreve:

    Chego pela senda da montanha.Ahlisto lindo!

    Uma violeta!

    que ele encontrou um eremita budista, flor de virtude; e assim por diante. Nenhum trao deixa de ser investido, pelo comentarista ocidental, de uma carga desmbolos. Ou ainda, querem ver a qualquer preo, noterceto do haicai (seus trs versos de cinco, sete e cincoslabas), um desenho silogstico em trs tempos (a su

    bida, o suspense, a concluso):

    A velha lagoa:Uma r salta nela:Oh! o rudo da gua.

    (nesse singular silogismo, a incluso feita fora: paraser contida, preciso que a menor salte na maior). claro que, se renuncissemos metfora e ao silogismo, ocomentrio se tornaria impossvel: falar do haicai seriapura e simplesmente repeti-lo. O que faz, inocente

    mente, um comentador de Bash:

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    Quat ro horas j...

    Levantei me nove vezes

    Para admi rar a Lua.

    A Lua tao bela, diz ele, que o poeta se levantamuitas vezes para contempl-la janela. Decifradoras,formalizantes ou tautolgicas, as vias de interpretao,

    destinadas entre ns a penetraro sentido, isto , a faz-lo entrar por arrombamento e no a sacudi-lo, a faz-locair, como o dente do ruminante de absurdo que deveser o praticante do Zen, em face de seu koan-, s podem,pois, perder o haicai; pois o trabalho de leitura a ele ligado consiste em suspender a linguagem, no em provoc-la: empresa cuja dificuldade e cuja necessidade omestre do haicai, Bash, parecia conhecer bem:

    Como admi rvel

    Aquele que no pensa: A Vida efmera

    Ao ver um relmpago!

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    A ISENO DO SENTIDO

    O Zen inteiro guerreia contra a prevaricao do sen

    tido. Sabemos que o budismo desmonta a via fatal de

    toda assero (ou de toda negao), recomendando que

    jamais nos deixemos aprisionar nas quatro proposies

    seguintes: isto A isto no A ao mesmo tempo A e

    noA no nem A nem uoA. Ora, essa qudrupla

    possibilidade corresponde ao paradigma perfeito construdo pela lingstica estrutural A noA nem A

    nem noA (grau zero) zA e noA (grau compl exo);por

    outras palavras, a via budista precisamente a do sen

    tido obstrudo: o prprio arcano da significao, isto , o

    paradigma, torna-se impossvelQuando o Sexto Patriarcad suas instrues concernentes ao mondo, exerccio da

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    pergunta-resposta, ele recomenda que, para melhor em-

    baralhar o funcionamento paradigmtico, logo que umtermo colocado, nos desloquemos para o termo adverso (Se, quest i onandooy al gum o interroga sobre o ser;responda pelo naoser. Se ele o interroga sobre o naosery res-

    ponda pel o ser. Se ele o int erroga sobre o homem comumy

    responda fal ando do sbio etc.), de modo a fazer aparecer

    a irriso do gatilho paradigmtico e o carter mecnicodo sentido. O que visado (por uma tcnica mentalcuja preciso, pacincia, refinamento e saber atestam oquanto o pensamento oriental considera difcil a iseno do sentido) o fundamento do signo, isto , a classificao (maya); constrangido classificao por excelncia, a da linguagem, o haicai opera pelo menos comvistas a obter uma linguagem plana, que no se apoia(como acontece sempre em nossa poesia) em camadassuperpostas de sentido, o que poderamos chamar defolheado dos smbolos. Quando nos dizem que foi o

    rudo da r que despertou Bash para a verdade doZen, podemos entender (embora esta seja ainda umamaneira de dizer demasiadamente ocidental) que Bashdescobriu nesse rudo no o motivo de uma iluminao, de uma hiperestesia simblica, mas antes um fimda linguagem: h um momento em que a linguagem cessa (momento obtido custa de muitos exerccios), e esse corte sem eco que institui, ao mesmo tempo, a ver

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    dade do Zen e a forma, breve e vazia, do haicai. A denegao do desenvolvimento aqui radical, pois nose trata de deter a linguagem num silncio pesado, pleno,profundo, mstico, nem mesmo num vazio da alma quese abriria comunicao divina (o Zen sem Deus); oque colocado no deve ser desenvolvido nem no discurso nem no fim do discurso; o que colocado fos-

    co,e tudo que dele podemos fazer repeti-lo; isso quese recomenda ao praticante que trabalha um koan (ouanedota que lhe proposta por seu mestre): no se tratade resolv-lo, como se ele tivesse um sentido, nem mesmo de perceber sua absurdidade (que ainda um sentido), mas de rumin-lo at que o dente caia. Todo o

    Zen, do qual o haicai apenas o ramo literrio, aparece assim como uma imensa prtica destinada a det er alinguagem, a quebrar essa espcie de radiofonia interiorque se emite continuamente em ns, at em nosso sono(talvez seja por isso que se impedem os praticantes dedormir), a esvaziar, a estupefazer, a enxugar a tagareliceincoercvel da alma; e talvez o que se chama, no Zen,de satori, e que os ocidentais s podem traduzir por palavras vagamente crists (i l uminao, revelao, i ntuio),seja somente uma suspenso pnica da linguagem, obranco que apaga em ns o reino dos Cdigos, a que

    bra dessa recitao interior que constitui nossa pessoa;e, se esse estado de alinguagem uma libertao, por

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    que para a experincia budista a proliferao dos pen

    samentos secundrios (o pensamento do pensamento)ou, por outras palavras, o suplemento infinito dos significados supranumerrios crculo de que a prprialinguagem a depositria e o modelo - aparece comoum bloqueio: , pelo contrrio, a abolio do segundopensamento que rompe o infinito vicioso da linguagem.

    Em todas essas experincias, ao que parece, no se tratade esmagar a linguagem sob o silncio mstico do inefvel, mas de comedi-la,de deter esse pio verbal, quecarrega em seu giro o jogo obsessivo das substituiessimblicas. Em suma, o smbolo como operao se

    mntica que atacado.No haicai, a limitao da linguagem objeto de umcuidado para ns inconcebvel, pois no se trata de serconciso (isto , de encurtar o significante sem diminuira densidade do significado), mas ao contrrio de agirsobre a prpria raiz do sentido, para fazer com que esse

    sentido no se difunda, no se interiorize, no se torneimplcito, no se solte, no divague no infinito das metforas, nas esferas do smbolo. A brevidade do haicaino formal; o haicai no um pensamento rico reduzido a uma forma breve, mas um acontecimento breveque acha, de golpe, sua forma justa. O comedimento dalinguagem aquilo a que o ocidental mais imprprio:no que ele faa algo demasiadamente longo ou dema-

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    siadamente curto, mas toda a sua retrica que o obrigaa desproporcionar o significante e o significado, querdiluindo o segundo sob as ondas tagarelas do primeiro,quer aprofundando a forma em direo s regies implcitas do contedo. A justeza do haicai (que no , demodo algum, pintura exata do real, mas adequao dosignificante e do significado, supresso das margens, bor

    res e interstcios que geralmente excedem ou esburacama relao semntica), essa ju