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216 GÊNERO E DOCÊNCIA: VISUALIDADES ENTRE/TECIDAS Maria Emilia Sardelich 1 Maria Laudiceia Almeida Lira 2 Maria do Socorro Costa Limeira 3 Shirley Moreira Tanure 4 RESUMO Vários estudos vêm constatando a predominância de mulheres na profissão docente. A denominada feminização do magistério tem se vinculado à desqualificação e precarização profissional. As categorias sociais gênero e docência nutrem-se da/e na ambiência social, em meio às disputas de poder para dizer o que são. Por isso carregam uma multiplicidade de sentidos. É por essa variedade de sentidos que nossa investigação debruça-se sobre os “modos de ver” a docência que circulam entre licenciand@s de Pedagogia, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em um momento em que a profissão conta com reduzido status social. A pesquisa situa-se no âmbito dos Estudos Culturais, na perspectiva da Cultura Visual, compreendendo o visual como lugar de interação social e enunciados de classe, gênero, identidade sexual e racial. Nosso foco não está no que pensamos sobre essas representações, mas sim nas narrativas que essas imagens fazem circular. Exploramos o modo pelo qual as narrativas favorecem determinadas visões de docência. Os resultados apontam para uma visualidade comum de docência generificada. Essas imagens revelam a sexualidade negada da profissional que ocupa o imaginário de licenciand@s, como também regula os corpos discente e docente. Junto a essa visualidade comum emergem imagens enigmas da paisagem midiática. Essas imagens sinalizam para uma narrativa transmídia, uma docência provocadora, que pode forjar-se na cultura da convergência. Uma cultura na qual a própria mitologia pessoal se organiza a partir de fragmentos de informação extraídos do fluxo midiático e constrói subjetividades entre fronteiras. Palavras-chave: Gênero. Generificação. Visualidade. Formação de professores. INTRODUÇÃO 1 Doutorado Educação - Universidade Federal da Paraíba (UFPB) - Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) - [email protected] 2 Pesquisadora Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) UFPB. 3 Pesquisadora Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) UFPB. 4 Pesquisadora Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) UFPB.

GÊNERO E DOCÊNCIA: VISUALIDADES ENTRE/TECIDAS

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Page 1: GÊNERO E DOCÊNCIA: VISUALIDADES ENTRE/TECIDAS

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GÊNERO E DOCÊNCIA: VISUALIDADES ENTRE/TECIDAS

Maria Emilia Sardelich1 Maria Laudiceia Almeida Lira2

Maria do Socorro Costa Limeira3 Shirley Moreira Tanure4

RESUMO

Vários estudos vêm constatando a predominância de mulheres na profissão docente. A denominada feminização do magistério tem se vinculado à desqualificação e precarização profissional. As categorias sociais gênero e docência nutrem-se da/e na ambiência social, em meio às disputas de poder para dizer o que são. Por isso carregam uma multiplicidade de sentidos. É por essa variedade de sentidos que nossa investigação debruça-se sobre os “modos de ver” a docência que circulam entre licenciand@s de Pedagogia, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em um momento em que a profissão conta com reduzido status social. A pesquisa situa-se no âmbito dos Estudos Culturais, na perspectiva da Cultura Visual, compreendendo o visual como lugar de interação social e enunciados de classe, gênero, identidade sexual e racial. Nosso foco não está no que pensamos sobre essas representações, mas sim nas narrativas que essas imagens fazem circular. Exploramos o modo pelo qual as narrativas favorecem determinadas visões de docência. Os resultados apontam para uma visualidade comum de “docência generificada”. Essas imagens revelam a sexualidade negada da profissional que ocupa o imaginário de licenciand@s, como também regula os corpos discente e docente. Junto a essa visualidade comum emergem imagens enigmas da paisagem midiática. Essas imagens sinalizam para uma narrativa transmídia, uma “docência provocadora”, que pode forjar-se na cultura da convergência. Uma cultura na qual a própria mitologia pessoal se organiza a partir de fragmentos de informação extraídos do fluxo midiático e constrói subjetividades entre fronteiras.

Palavras-chave: Gênero. Generificação. Visualidade. Formação de professores.

INTRODUÇÃO

1 Doutorado Educação - Universidade Federal da Paraíba (UFPB) - Grupo de Pesquisa em Ensino

das Artes Visuais (GPEAV) - [email protected] 2 Pesquisadora Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) – UFPB.

3 Pesquisadora Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) – UFPB.

4 Pesquisadora Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV) – UFPB.

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O momento de secularização e de estatização do ensino, que ocorre no

continente europeu, ao final do século XVIII, trouxe novas dimensões para a

docência. Nóvoa (1991) afirma que essa etapa do processo de profissionalização

permitiu a consolidação do estatuto e da imagem docente que substituiu,

paulatinamente, um corpo de professores religiosos, ou sob o controle da Igreja, por

um corpo docente laico, sob o controle do Estado. Apesar dessa substituição de

controle, poucas foram as mudanças nas normas e valores proclamados pelo

modelo religioso. No século XIX fundam-se as primeiras instituições de formação de

professores e, em meados desse mesmo século, admite-se a presença de mulheres

no exercício do magistério.

Ao longo do século XX a denominada feminização do magistério acentua-se e

vincula-se à desqualificação e precarização profissional. Os avanços da

microeletrônica, combinada com a informática e as telecomunicações,

transformaram os modos de trabalhar e divertir, os modos de relacionamento da

humanidade com a sua própria memória e o conhecimento. Essas transformações

alteraram profundamente as necessidades de aprendizagem bem como as

possibilidades para aprender. A denominada competência digital – que se define

como o uso seguro e crítico das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC)

para o trabalho, o ócio e a comunicação - e a aprendizagem ao longo da vida,

tornaram-se palavras de ordem para o crescimento pessoal e a empregabilidade na

sociedade do século XXI.

Nesse cenário, a instituição escolar tem sido acusada de não cumprir com

seu papel, dado seu apego a modelos pedagógicos anacrônicos, ao mesmo tempo

em que @s docentes são convocad@s a promover as aprendizagens que

respondam aos desafios da incerteza, da diversidade, da instabilidade que

caracterizam os modos de vida no século XXI. Nóvoa (2009) observa que

investigadores das ciências da educação, das didáticas, de redes institucionais

diversas, bem como políticos e legisladores, já estão de acordo em relação aos

princípios e medidas necessárias para assegurar a formação e o desenvolvimento

profissional de docentes que atendam aos desafios do século XXI. Porém, mesmo

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218

que esse discurso seja coerente e consensual entre investigadores e legisladores,

Nóvoa (2009) afirma que raramente temos conseguido fazer aquilo que é dito como

sendo preciso fazer para a valorização profissional docente. O autor identifica que

@s docentes não são @s autoras desse discurso e tem tido seu território

profissional e simbólico ocupado por outros grupos que estão produzindo uma

inflação retórica sobre a missão docente.

No Brasil o processo de profissionalização docente apresenta algumas

especificidades e defasagens em relação ao ocorrido no continente europeu.

Somente no início do período republicano, ao final do século XIX, que a

profissionalização docente se inicia no País e as mulheres ocupam esse espaço ao

longo do século XX (VEIGA, ARAÚJO, KAPUZINSKIM, 2005). Dados do Anuário

Brasileiro da Educação Básica de 2014 indicam que 80% do total de docentes na

Educação Básica são mulheres (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2014).

Vianna (2013) observa que a docência abriu um dos primeiros campos de

trabalho para as mulheres brancas estudadas das chamadas classes médias. Ao

mesmo tempo em que essas mulheres protagonizavam a luta pela participação

feminina na esfera econômica e política também representavam uma feminilidade

idealizada. A autora compreende que a feminização do magistério não abarca,

apenas, o aspecto quantitativo, mas também o modo como os denominados

significados femininos – o amor, o cuidado, a domesticidade - estão representados

nessa atividade. Vianna (2013) afirma que esses significados não são associados à

competência profissional nem ao engajamento político sindical. Por outro lado, na

mídia brasileira circulam imagens de docentes que desistem do magistério como

também imagens daquelas docentes que resistem a aceitar a precária situação

educacional brasileira como uma fatalidade, posicionando-se publicamente, em

assembleias legislativas (Figura 1), nas redes tecnológicas (Figura 2) denunciando

as péssimas condições das instituições escolares em que atuam, nas ruas

enfrentando-se à violência policial em momentos de reivindicação profissional

(Figura 3).

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Figura 1. Professora Amanda Gurgel, Assembleia Legislativa

(RN), 10/05/2011.

Figura 2. Professora Uiliene Araújo Santa Rosa, Facebook,

12/10/2012.

Figura 3. Professora Lenita Oliveira, RJ 3/10/2013. Fabio Motta / Agencia O Dia, 2013.

A docência nutre-se da/e na ambiência social, daquilo que é valor na

coordenada espaço temporal em que se constitui. A docência é uma construção

social e histórica em meio às disputas de poder para sua definição, que carrega uma

multiplicidade de sentidos. É por essa variedade de sentidos que nossa investigação

debruça-se sobre os “modos de ver” a docência que circulam entre licenciand@s da

Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em um momento em que a profissão

conta com reduzido status social. Por isso nos perguntamos sobre a contribuição

que o conceito de gênero pode oferecer para dar visibilidade à construção social

dessa representação.

Outras investigadoras já têm se debruçado sobre a representação de

docentes em textos da literatura infantil (SILVEIRA, 2004, 2002), de revistas

pedagógicas (COSTA E SILVEIRA, 1998), em imagens do cinema (DALTON, 1996)

e produzidas por discentes (COSTA, 2011; FISCHMAN, 2005; LEITE, HYPOLITO E

LOGUERCIO, 2010). Nossa pesquisa situa-se no âmbito dos Estudos Culturais, na

perspectiva da Cultura Visual, compreendendo o visual como lugar de interação

social e enunciados de classe, gênero, identidade sexual e racial. As noções de

visão - o processo fisiológico em que a luz impressiona os olhos - e visualidade - o

olhar socializado - são fundamentais nesse entendimento da Cultura Visual

(MIRZOEFF, 2003). Tourinho (2009) denomina de visualidades comuns um campo

de imagens de referência que compartilhamos, num sentido semelhante ao senso

comum, quando nos referimos a ideias, práticas, hábitos que nos aproximam. Nosso

foco não está no que pensamos sobre essas representações, mas sim nas

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220

narrativas que essas imagens fazem circular. Exploramos o modo pelo qual as

narrativas favorecem determinadas visões de docência.

Quando as crianças chegam à escola trazem experiências que afetam suas

construções cognitivas e que se referem aos conteúdos estudados na escola. Do

mesmo modo @s licenciand@s também trazem representações sobre a docência.

Como sinaliza Hernandez (2005), chegamos aos cursos de Licenciatura com uma

identidade, uma biografia em construção alicerçada em nossas experiências de

gênero, etnia e classe social. Pensamos, como Garcia (2009) que o processo de

formação d@s Licenciand@s deve dar atenção às representações, crenças e

preconceitos de discentes e docentes, pois estes afetam a aprendizagem da

docência, possibilitando ou dificultando as transformações. Fazer emergir e circular

as representações d@s Licenciand@s sobre a profissão pode levar ao

questionamento de suas ideias e noções sobre a prática docente e colaborar para a

reflexão e construção de outros processos de identificação profissional.

Trabalhamos neste projeto, pois avaliamos ser possível discutir os processos

de significação da docência e de nossas relações com os demais e o meio ambiente

em nossos espaços de aprendizagem. Elaborar este projeto e os textos que dele se

originam nos permite refletir sobre a narrativa que vem se configurando sobre a

docência, bem como as que fazemos circular, pois estas também fazem parte dos

dispositivos de produção de subjetividades (GUATTARI, 1990). Investigamos as

narrativas sobre a docência que circulam nessas imagens para pensar o formar/se

em um mundo que se con/forma, de/forma, in/forma, trans/forma no incontrolável

fluxo de bits que aparecem em formato de imagens e palavras, práticas discursivas

para “laminagem das subjetividades, dos bens e do meio ambiente” (GUATTARI,

1990, p. 12). Apresentamos, a seguir, os primeiros achados em nossa investigação

e as nossas considerações transitórias.

1 PRIMEIROS ACHADOS

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Participaram da primeira coleta de imagens desta pesquisa 36 licenciandas e

2 licenciandos de Pedagogia, do quarto período do curso, no segundo semestre de

2013. No componente curricular Didática trabalhamos a memória educativa d@s

licenciand@s em uma reflexão sobre a profissão, o profissionalismo e a

profissionalidade (FARIAS et al, 2011). A produção do memorial abarca a linguagem

verbal e visual. Na produção visual @ licenciand@ apresenta uma imagem que,

para ela/ele, represente a docência, o exercício profissional. A imagem pode ser de

autoria própria ou alheia, produzida a partir de qualquer técnica (desenho, pintura,

colagem, fotografia, etc.). Essas imagens são compartilhadas e interpretadas pelo

coletivo. Das 38 imagens coletadas, 30 são de autoria alheia, sendo imagens

disponíveis em revistas, sites da Internet, de conteúdo educacional. Somente uma

imagem pertence ao repertório consagrado pela História da Arte. Dentre as 8

imagens de autoria própria, 4 são fotografias; 3 desenhos, sendo dois em branco e

preto e um em cores; 1 colagem.

Figura 4. Representações da Docência, Pedagogia 2013.

Na figura 4 estão circuladas as duas imagens que foram apresentadas por

mais de uma licencianda. Das 38 imagens apresentadas, 34 aludem a figura

humana e somente 4 são figurativas sem referência direta à figura humana.

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Figura 5. Representações Figurativas Docência, Pedagogia 2013.

O cenário privilegiado é a sala de aula, representada em 21 imagens.

Figura 6. Cenário Representações Docência, Pedagogia 2013.

A figura masculina, acompanhada ou não de crianças/jovens, aparece em 8

imagens.

Figura 7. Representações Masculinas Docência, Pedagogia 2013.

A figura feminina, acompanhada ou não de crianças, predomina na

representação da docência em 18 imagens.

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Figura 8. Representações Femininas Docência, Pedagogia 2013.

2 VISUALIDADE COMUM: DOCÊNCIA GENERIFICADA

Nossos resultados se aproximam aos do estudo de Fischman (2005), e de

Leite, Hypolito e Loguercio (2010), pois predomina a representação de uma mulher

vestida sobriamente, frente a um quadro ou escrivaninha (Figura 9), muito próxima

da imagem da Professora Marocas, personagem das Histórias em Quadrinhos de

Maurício de Sousa (Figura 10).

Figura 9. Visualidade Comum

sobre a Docência.

Figura 10. Professora Marocas,

Turma do Chico Bento. Sousa, 2007

Consideramos essas imagens como visualidades comuns que emergem no

cruzamento das redes de significados compartilhados pelas licenciandas. Louro

(2002) afirma que no entrecruzamento dessas representações algumas ganham a

autoridade do óbvio, do senso comum, da autoevidência, que se chega a esquecer

de seu “status de representação” socialmente construída. Essas imagens apontam

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para uma representação naturalizada da docência, como atividade feminina,

exercida por mulheres sem atrativos físicos, munidas de signos como réguas, livros,

globo terrestre, batuta, que revelam a regulação dos corpos, tanto de discentes

quanto das próprias docentes. Essas imagens apontam indicam uma concepção de

docência generificada, que não subverte o discurso da “natureza feminina” como

sendo a inclinação para a maternidade, o cuidado, a entrega, a doação.

São imagens que se entre/tecem no sentido de ditar um modo de exercer a

docência e quem a exerce. Louro (1999) observa que por meio de múltiplos recursos

se reforça uma estreita ligação entre professoras e crianças que chega a infantilizar

o processo de formação e o exercício da profissão. As imagens com as quais as

licenciandas de Pedagogia do século XXI identificam a profissão docente pouco

rompem com os lugares comuns dos estereótipos destinados às professoras. Essas

licenciandas são subjetivadas por imagens que reforçam uma determinada

“pedagogia visual do feminino” (LOPONTE, 2008).

Louro (1999) adverte para não incorrermos no erro de homogeneizar todos os

discursos e práticas de sujeitos que exerceram e exercem a docência no Brasil,

porém recorda que, apesar das múltiplas práticas e discursos sobre a docência, nem

todos são considerados socialmente do mesmo modo. Alguns se fixam como os

verdadeiros ou verdadeiras práticas docentes. Apesar desses discursos

impregnarem as visualidades comuns encontradas em nossa investigação, também

circularam imagens que consideramos enigmas e apresentamos uma a seguir.

3 IMAGENS ENIGMAS: DOCÊNCIA PROVOCADORA

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Figura 11. Bui Brothers, Brainiac, 2013.

A imagem da Figura 11 causou um grande alvoroço durante a discussão

coletiva com as licenciandas. A primeira frase que emergiu rapidamente na

apresentação da imagem foi: “Ela tá se achando! Não é a imagem de uma

professora.” O grupo agitou-se com a imagem levando todas as licenciandas a falar

ao mesmo tempo, desrespeitando as regras previamente ajustadas de solicitar a

palavra. Chamou nossa atenção a expressão “Ela tá se achando”, que em geral

utiliza-se para a pessoa que deseja ser o centro das atenções; uma pessoa que,

supostamente, sente-se poderosa, “se acha” e é classificada como arrogante. No

tumulto repentino emergiram argumentos como: “é uma mulher muito sexy”, “ela não

pode entrar assim numa sala do terceiro ano”, “ela está com os braços de fora”, “o

vestido é muito sensual”, entre outros que giraram em torno da elegante e refinada

aparência da figura feminina. Esta imagem foi selecionada por uma licencianda, de

19 anos que, durante a discussão coletiva, não quis se identificar, nem apresentou

nenhum argumento em defesa ou em contra dessa representação. Ao conseguirmos

reorganizar a discussão, recordamos ao grupo que solicitamos uma imagem que

representasse a docência, ou seja, a profissão e não a profissional, a professora.

Apesar de ratificarmos que estávamos discutindo sobre a representação da

profissão, o argumento que, quantitativamente sobressaiu foi o de que “uma

professora não deve vestir-se desse modo”. Ao questionarmos tal argumento o

grupo justificou o posicionamento afirmando que uma professora “está para cumprir

o ofício”. Indagamos os motivos pelos quais a vestimenta estaria inadequada para o

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ofício e a justificativa foi a de que “a professora deve ter os braços cobertos”.

Questionamos as razões para os braços cobertos, pois se essa mulher tem os

braços descobertos, por sua vez está de meias cobrindo as pernas. O grupo

justificou a necessidade dos braços cobertos pelo fato de que uma professora acaba

tendo contato físico com crianças, pode pegar no colo, abraçar, daí a necessidade

dos braços cobertos. As licenciandas também observaram que as meias escolhidas

pela mulher da imagem não são para cobrir as pernas, pois são “meias

provocantes”.

Os argumentos apresentados pelas licenciandas apontam para a constatação

de Silveira (2004) em relação às exigências de uma postura educacional assexuada

na docência. Louro (1999) destaca a imbricação entre gênero – a condição social

pela qual somos identificados como mulher ou homem- e a sexualidade - a forma

cultural pela qual vivemos nossos desejos e prazeres corporais - na docência.

Observa que a sexualidade da docente vem sendo negada em função das restrições

em relação ao contato físico entre professoras e alun@s, pois abraços e beijos

foram considerados práticas inadequadas durante muito tempo.

Apenas duas licenciandas, dentre 36 mulheres, levantaram argumentos em

favor dessa representação para a docência. Os argumentos foram: “essa mulher é

uma intelectual, pois tem muitos livros, se as professoras assumissem o lado

intelectual da docência e não o maternal, a profissão seria mais respeitada”; “se as

professoras se vestissem bem, como essa mulher, seriam mais valorizadas”. Em

relação ao argumento da docência como atividade intelectual, Giroux (1997) afirma

que compreender o trabalho docente como intelectual implica tornar o pedagógico

mais político e o político mais pedagógico, o que significa inserir a escolarização

diretamente na esfera política e fazer ecoar a voz ativa dos estudantes em suas

experiências de aprendizagem.

A imagem que causou tanta discordância entre as licenciandas de Pedagogia

representa uma mulher jovem, diante de uma grande estante de livros que necessita

de uma escada para poder alcançar todas as prateleiras. A estante contém muitos

livros, ordenados, porém não simetricamente e ocupam todos os lugares

Page 12: GÊNERO E DOCÊNCIA: VISUALIDADES ENTRE/TECIDAS

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disponíveis. Causa a impressão de que falta espaço para mais livros e juntam-se a

pequenos objetos que, aparentemente, parecem pertencer a diversas culturas.

Assemelha-se a estante de um colecionador, um estudioso em determinado

assunto. A jovem mulher, de cabelos curtos e avermelhados, usa óculos, agarra-se

à escada com a mão direita e sustenta-se sobre um degrau com o pé direito. Segura

um livro aberto com a mão esquerda, porém não olha para o livro, mas sim para o

espectador em uma atitude séria, de lábios vermelhos e fechados, com uma

expressão que sugere uma indagação, como se aguardasse a resposta a um

enigma. Dentre os vários significados atribuídos pela simbologia ao livro temos

sabedoria, revelação, manifestação da mensagem divina, o próprio Universo. Um

livro aberto significa matéria fecundada e seu conteúdo possuído por quem o lê

(Chevalier e Gheerbrant, 1998).

A seriedade da expressão facial da mulher representada contrasta com a

leveza da pose que se sustenta apenas sobre o pé direito, em um degrau da

escada, com a perna esquerda dobrada para trás, em uma atitude juvenil e graciosa.

A vivacidade da pose contrasta com a sobriedade do vestido preto de alças muito

finas, que deixa a descoberto o colo e braços finos, tendo as pernas encobertas por

meias “arrastão”, de um desenho similar a uma rede, que sugere um ar “retrô” à

mulher, apesar da elegante modernidade.

A figura feminina que posa nesta imagem é a atriz estadunidense Felicia Day

(1979). A imagem está disponível no site da atriz5 e tem por título Brainiac. A autoria

da imagem é da dupla de fotógrafos estadunidense Bui Brothers, e recebe duas

etiquetas de identificação na web: Bui Brothers e Felicia Day. Sobre o título Brainiac,

o dicionário da língua inglesa Oxford, indica como substantivo, originário da

linguagem informal norte americana, que significa uma pessoa de inteligência

excepcional. O dicionário aponta que a expressão resulta da junção das palavras

brain (cérebro) e maniac (maníaco), etimologia datada na década de 1950, no

âmbito das Histórias em Quadrinho, por ter sido o nome dado ao vilão humanoide

inimigo do super-herói Super Homem. 5 Disponível em http://feliciaday.com

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Sobre a figura feminina que posa para esta imagem - a atriz, cantora,

roteirista, produtora e jogadora de videogame (gamer) - Felicia Day, é conhecida

entre o público jovem que consome webseries. Apesar dos suportes tradicionais

para a produção audiovisual ainda serem o cinema e a TeVê, essa produção transita

para as várias telas disponíveis atualmente, como as da web e celulares. Nesses

trânsitos, além da “remediação” - quando um meio herda características de meios

anteriores, mas também as reatualiza - e do cruzamento das mídias - com os

conteúdos distribuídos pelas várias mídias ao mesmo tempo - também encontramos

o fenômeno da “transmidiação” (Machado, 2007). A “transmidiação” de conteúdos

ocorre quando as produções envolvidas não são só derivadas de outros meios e

estão circulando em vários deles, mas em seu conjunto compõem uma narrativa, ou

diversas narrativas, que se constroem em torno a um tema comum.

Jenkins (2009) indica a transmidiação como um fenômeno da cultura da

convergência. Esta não se refere apenas ao processo tecnológico que une múltiplas

funções em um mesmo dispositivo, como podem ser os “telefones inteligentes”, mas

sim como uma transformação cultural, na medida em que consumidores,

espectadores, pesquisadores, “caçam”, coletam informações e são capazes de

estabelecer novas conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos. A cultura da

convergência propõe uma estética que exige a participação ativa do espectador em

comunidades de conhecimento, pois os espectadores necessitam assumir o papel

de coletores, caçadores, para perseguir os pedaços da história em diferentes canais.

As séries são comercialmente exploradas desde os folhetins, no início do século

XIX, porém atualmente constroem narrativas transmídias, como os livros que dão

lugar a Histórias em Quadrinhos, Filmes, Jogos, e vice-versa. As webseries não são

somente uma produção seriada veiculadas na web, mas fazem parte dessa nova

estética transmídia. Na série Supernatural, que recebeu a denominação de

Sobrenatural ao ser veiculada na televisão aberta brasileira, a figura feminina que

posa para a imagem em análise, Felicia Day, interpreta a personagem Charlene

Bradbury, uma especialista em Tecnologia da Informação, que faz uma série de

referências à cultura dos games e séries de TV. Felicia Day também é autora e

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229

produtora de uma webserie denominada The Guild6, (A guilda). O argumento central

da série reúne um conjunto de pessoas, que se conhecem apenas no mundo on line,

cujo interesse comum é o de jogar um jogo sem nome, um MMORPG, um jogo misto

de interpretação de personagens (RPG) e videogame online de múltiplos jogadores.

Essa webserie estreou no Youtube em julho de 2007. Cada episódio começa com a

personagem principal, Codex7, uma fitoterapeuta interpretada por Felicia Day,

recapitulando os eventos do episódio anterior. Além de recapitular os fatos

ocorridos, também compartilha seus próprios sentimentos sobre o ocorrido. A atriz

que posa para esta imagem, não só pelos papéis que interpreta, mas também por

sua própria inserção nas múltiplas funções que envolvem a produção transmídia, é

uma espécie de musa nerd.

Bicca et al (2013) observam que embora o bom desempenho escolar seja

uma característica recorrente dos integrantes do grupo cultural nerd, esse grupo

dedica-se ao estudo aprofundado, sistemático. Um/a nerd não tem por objetivo obter

sucesso na escola, mas apropriar-se de conhecimentos diversos pelo prazer que o

ato de aprender um determinado tema proporciona quando essa aprendizagem

representa um desafio mental. Matos (2013) observa o caráter curatorial na prática

cotidiana de catalogar, selecionar, classificar, atribuir valor e inserir esses objetos em

um mapa de importância entre @s nerds. Para esse grupo não basta, apenas,

consumir e colecionar determinados filmes, histórias em quadrinhos, séries de TV ou

livros, mas sim a escolha, a seleção, a disputa pelo prestígio, pela distinção que a

identificação com determinados signos lhes permite.

CONSIDERAÇÕES ALCANÇADAS

Apesar das múltiplas práticas e discursos sobre a docência, nem todos são

considerados socialmente do mesmo modo. Imagens de docentes que se

posicionam a favor da competência profissional e o engajamento político sindical

6 Disponível em: http://www.watchtheguild.com

7 Em latim placa de madeira usada para registro, livro, código.

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230

(Figuras 1, 2 e 3) ainda não contaminam discursos mais resistentes, como o da

docência generificada. A partir das imagens coletadas podemos identificar que,

quantitativamente, o discurso da docência generificada, com a regulação do

comportamento feminino no exercício da profissão, persevera na subjetivação das

licenciandas. Compreendemos a identificação com a profissão docente como um

processo contínuo que se constrói na trajetória formativa. Inicia-se muito antes da

formação nos cursos de Licenciatura e pode adotar modelos docentes que

marcaram a escolarização da licencianda. A identificação profissional implica uma

rede de interações pessoais e sócio culturais que se institui e se constitui nas

identificações das subjetividades consigo, com os outros e com o contexto espaço-

temporal.

Mesmo que ainda em número pouco expressivo, algumas representações,

coletadas entre as licenciandas em Pedagogia, sinalizam outra visualidade, outro

modo de representar e compreender a docência que denominamos de provocadora.

Uma docência provocadora, para a qual o desafio do aprender se aproxima do

prazer. Uma docência que se abre para a sexualidade, que não nega nossos

desejos e prazeres corporais e intelectuais, que rompe com a anacrônica concepção

maternal e do sacrifício vocacional. Uma docência que pode forjar-se na cultura da

convergência, na qual a própria mitologia pessoal e os processos de identificação se

organizam a partir de fragmentos de informação extraídos do fluxo midiático e

constrói subjetividades entre fronteiras.

REFERÊNCIAS BICCA, A. D. N. et al. Identidades Nerd/Geek na web: um estudo sobre pedagogias culturais e culturas juvenis. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 1, p. 87-104, jan./abr.2003. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. 12ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998.

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