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// Revista da Faculdade de Direito // edição 5 // número 5 // 1º semestre de 2018 174 GÊNERO, FAMÍLIA E JUSTIÇA: AS CRÍTICAS FEMINISTAS A “UMA TEORIA DE JUSTIÇA” DE JOHN RAWLS Débora Caetano Dahas* *Doutoranda em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Mi- nas Gerais – PUCMinas. Mestre em Di- reito nas Relações Econômicas e Sociais pela Faculdade de Direito Milton Campos - FDMC. Especialista em Direito Empre- sarial pela Faculdade de Direito Milton Campos - FDMC. Graduada em Direito pela Universidade de Uberaba – UNIU- BE. Advogada. E-mail: debora.dahas@ hotmail.com Sumário 1 Introdução. 2 A posição original e os princípios de justiça. 3 Leituras feministas de “uma teoria de justiça”. 6 Conclusões. Resumo O presente artigo tem como objetivo realizar, de forma concisa, um resumo das principais ideias, recur- sos metodológicos e dos conceitos mais importantes constantes na obra “Uma teoria de Justiça” de John Rawls, em especial aqueles que se encontram na Parte I (Capítulos 1 e 2). Além disso, através de investigação bibliográ- fica – precipuamente de filósofas norte-americanas – objetiva-se também apresentar algumas das mais relevantes críticas feministas à filosofia política de Rawls, atentando-se para a necessidade de se pensar a filosofia política a partir de uma visão que englobe a esfera da vida privada, bem como a importância da não abstração total do sujeito empírico político. Dessa forma, o presente artigo busca acomodar as reinvindicações feministas na teoria de justiça proposta por Rawls, de forma a esclarecer, por fim, alguns pontos do pensamento rawlsiano tidos como controversos. Palavras-chave John Rawls. Feminismo. Justiça. Gênero. Filosofia política. Abstract The purpose of this article is to summarize the main ideas and the most important concepts contained in John Rawls’s “A Theory of Justice”, in particular those in Part I (Chapters 1 and 2). In addition, through bibliogra- phical research – mainly from American philosophers – the present article also aims to present some of the most relevant feminist critiques of Rawls’ political philosophy, specifically the ones in relation to the need to thinking po- litical philosophy based on a view that encompasses the sphere of private life, as well as the importance of the to not proceed with a total abstraction of the empirical political subject. Therefore, this research seeks to adapt Ralws’ theory of justice to the claims of feminist critical theorists, and in so trying to solve a few controversies. Keywords John Rawls. Feminism. Justice. Genre. Political philosophy.

GÊNERO, FAMÍLIA E JUSTIÇA: AS CRÍTICAS FEMINISTAS A “UMA ... · Rawls escreveu “Uma teoria de justiça” durante o Movi-mento dos Direitos Civis nos Estados Unidos da América

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GÊNERO, FAMÍLIA E JUSTIÇA: AS CRÍTICAS FEMINISTAS A “UMA TEORIA DE JUSTIÇA” DE JOHN RAWLSDébora Caetano Dahas*

*Doutoranda em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Mi-nas Gerais – PUCMinas. Mestre em Di-reito nas Relações Econômicas e Sociais pela Faculdade de Direito Milton Campos - FDMC. Especialista em Direito Empre-sarial pela Faculdade de Direito Milton Campos - FDMC. Graduada em Direito pela Universidade de Uberaba – UNIU-BE. Advogada. E-mail: [email protected]

Sumário1 Introdução. 2 A posição original e os princípios de justiça. 3 Leituras feministas de “uma teoria de justiça”. 6 Conclusões.

Resumo O presente artigo tem como objetivo realizar, de forma concisa, um resumo das principais ideias, recur-sos metodológicos e dos conceitos mais importantes constantes na obra “Uma teoria de Justiça” de John Rawls, em especial aqueles que se encontram na Parte I (Capítulos 1 e 2). Além disso, através de investigação bibliográ-fica – precipuamente de filósofas norte-americanas – objetiva-se também apresentar algumas das mais relevantes críticas feministas à filosofia política de Rawls, atentando-se para a necessidade de se pensar a filosofia política a partir de uma visão que englobe a esfera da vida privada, bem como a importância da não abstração total do sujeito empírico político. Dessa forma, o presente artigo busca acomodar as reinvindicações feministas na teoria de justiça proposta por Rawls, de forma a esclarecer, por fim, alguns pontos do pensamento rawlsiano tidos como controversos.Palavras-chave John Rawls. Feminismo. Justiça. Gênero. Filosofia política.

Abstract The purpose of this article is to summarize the main ideas and the most important concepts contained in John Rawls’s “A Theory of Justice”, in particular those in Part I (Chapters 1 and 2). In addition, through bibliogra-phical research – mainly from American philosophers – the present article also aims to present some of the most relevant feminist critiques of Rawls’ political philosophy, specifically the ones in relation to the need to thinking po-litical philosophy based on a view that encompasses the sphere of private life, as well as the importance of the to not proceed with a total abstraction of the empirical political subject. Therefore, this research seeks to adapt Ralws’ theory of justice to the claims of feminist critical theorists, and in so trying to solve a few controversies.Keywords John Rawls. Feminism. Justice. Genre. Political philosophy.

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1 INTRODUÇÃO

John Rawls foi um dos mais relevantes filósofos res-

ponsáveis pela guinada da filosofia política em mea-

dos do século XX, e sua obra “Uma teoria de justiça”

é apontada como uma das mais importantes de sua época.

Rawls escreveu “Uma teoria de justiça” durante o Movi-

mento dos Direitos Civis nos Estados Unidos da América e,

além disso, na década de 1970 ocorreram também outras

mudanças sociais significativas, como a revolução sexual e

o surgimento da segunda onda da Teoria Crítica Feminista1.

Em prefácio à edição brasileira de “Uma teoria de justiça”,

Álvaro de Vita (in.: RAWLS, 2016, p. XVII) esclarece que o

projeto teórico de Rawls

foi o grande divisor de águas, pelo menos na teoria políti-

ca de extração da filosofia analítica. Rawls concebeu seu

projeto como sendo o de articular de forma sistemática

uma perspectiva normativa que oferecesse uma alternati-

va sobretudo ao utilitarismo, de natureza contratualista em

sua fundamentação e que fosse liberal-igualitária em seus

compromissos normativos substantivos.

Aqui cabe inicialmente ressaltar que o pensamento kantia-no é uma das fontes mais notáveis da filosofia política apre-sentada por John Rawls, e está inquestionavelmente pre-sente em sua obra “Uma teoria de justiça”2. Entretanto, ao desenvolver sua própria teoria3, Rawls mantém suas raízes kantianas, mas volta o seu enfoque para as instituições so-ciais e não para questões morais de cunho pessoal4. Rawls não se preocupou em desenvolver uma teoria moral, mas sim uma teoria política. A sua maior preocupação é com a organização da sociedade através de um Estado Democrá-tico – onde o foco da justiça é a garantia de acesso a bens primários – haja vista o fato de esse se encontrar mais sus-cetível à instrumentalização por interesses fragmentários. Ou seja, o foco da teoria de justiça de Rawls é a estrutura básica6 de uma sociedade (RAWLS, 2016, p. 8). Sobre as influências filosóficas de John Rawls, bem como as diferen-ças entre a sua filosofia e suas mais diversas inspirações, Danilo Caretta (2012, p. 297) explica:

Quando se fala em contratualismo, imediatamente os no-

mes de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant nos vêm à mente.

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É certo que John Rawls pode ser considerado um herdeiro

direto destes autores, em especial dos três últimos, mas

sua proposta se afasta da dos modernos em muitos aspec-

tos. Em primeiro lugar, John Rawls não está preocupado

em legitimar alguma forma de governo ou explicar como

a sociedade teve sua origem. Sua preocupação é apenas

com a justiça; mais especificamente, com a justiça no âm-

bito social, ou “o modo como as principais instituições so-

ciais distribuem os direitos e os deveres fundamentais e

determinam a divisão das vantagens decorrentes da coo-

peração social” (RAWLS, 2008, p. 8). Seu alvo é a justiça

em regimes de democracia constitucional, o que não quer

dizer que sua filosofia não seja aplicável a outras formas de

governo, nem que estas não possam ser justas.

Dessa forma, John Rawls pretendeu desenvolver uma ideia

de justiça que servisse de base para a constituição de uma

sociedade não apenas democrática, mas também igualitá-

ria. Vale lembrar, porém, que a teoria de justiça por ele de-

senvolvida – apesar de ter influências claramente kantianas

– não é um projeto de filosofia moral abrangente mas sim,

como já dito anteriormente, um projeto que visa as institui-

ções que guiam a sociedade. Não há que se discutir nesse

momento, portanto, em condutas éticas nas relações inter-

pessoais. Nessa linha, John Roemer e Alain Trannoy (p. 4,

2013) ressaltam, em linhas gerais, que o objetivo de Rawls

com a proposição de sua teoria de justiça era

desbancar o utilitarismo como a teoria dominante da jus-

tiça distributiva e substituí-la por um tipo de igualitarismo.

Ele argumentou que a justiça exige, depois de garantir um

sistema que maximize as liberdades civis, um conjunto de

instituições que maximizem o nível de “bens primários”

atribuído aos que são mais desfavorecidos na sociedade,

no sentido de receber a menor quantidade desses bens.

Os economistas chamam este princípio de “bens primá-

rios máximos”, Rawls geralmente o chamou de princípio

de diferença. Além disso, ele tentou fornecer um argumen-

to para a recomendação, com base na construção de um

“véu de ignorância” ou “posição original”, que protegeu os

tomadores de decisão do conhecimento de informações

sobre suas situações que eram “moralmente arbitrárias”,

de modo que a decisão que eles chegassem em termos de

divisão de bens primários fosse imparcial. Assim, o projeto

de Rawls (1971) era derivar princípios de justiça da raciona-

lidade e da imparcialidade. Rawls não defendeu a utilidade

de “maxi-minning” (mesmo supondo que as comparações

de utilidade interpessoais estavam disponíveis), mas sim o

“maxi-minning” (algum índice de) bens primários. Essa foi,

em parte, sua tentativa de incorporar a responsabilidade

pessoal na teoria. Para Rawls, o bem-estar foi melhor ava-

liado a partir de medida em que uma pessoa está cumprin-

do seu plano de vida: mas ele viu a escolha do plano de

vida como algo para o indivíduo, que as instituições sociais

não tinham nenhuma competência para julgar.6

Rawls visou, portanto, desenvolver uma teoria de justiça

que respondesse as questões de seu tempo e que servis-

se como uma alternativa viável para a construção de uma

sociedade democrática e igualitária que levasse em consi-

deração os membros da sociedade como indivíduos com

plena capacidade moral e que merecem ter seus direitos

fundamentais respeitados, sem que houvesse aqui uma

restrição exacerbada de suas liberdades. Lucas Dalsotto

(2014, p. 3) esclarece que Rawls

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afirma que a ideia fundamental consiste em estabelecer

uma relação apropriada entre uma concepção particular de

pessoa e os princípios primeiros de justiça contrafactual-

mente acordados por meio de um procedimento de cons-

trução. Isso significa que o que justifica a adoção de deter-

minada concepção de justiça pelos cidadãos não é fato de

ela ser verdadeira em relação a uma ordem anterior a nós,

mas que, dadas a nossa história e a tradição que estão na

base de nossa cultura pública, ela é a concepção mais ra-

zoável para normativamente organizar uma sociedade de-

mocrática (Idem, 1999, p. 331). Nesse caso, a objetividade

moral5 para o construtivismo deve ser compreendida como

um ponto de vista corretamente construído e aceitável para

todos, diferentemente do que faz o realismo moral, onde,

por meio de “intuições racionais”, as verdades em relação

à moral seriam apreendidas. Rawls utiliza em sua teoria

uma concepção de pessoa6 como agente moral e não me-

ramente como indivíduo que percebe uma ordem moral já

dada e presente no mundo. A ideia de construtivismo exige

que o procedimento através do qual são derivados os prin-

cípios normativos esteja pressupondo certa concepção de

pessoa e de razão prática.

A obra “Uma teoria de justiça” revolucionou ao lançar um

novo e singular olhar sob a filosofia política através de seus

conceitos originais e desafiador, e a influência de Rawls na

é, portanto, inquestionável. Consequentemente, vários são

os autores que se baseiam em seu pensamento e várias são

também as críticas tecidas acerca dos preceitos da Justiça

como Equidade e de sua defesa do Liberalismo Político.

O presente artigo visa, portanto, realizar – através de in-

vestigação bibliográfica – breves comentários acerca dos

conceitos basilares da teoria de justiça7 de John Rawls,

seguindo-se com alguns concisos apontamentos sobre as

críticas a ele realizadas no âmbito da teoria feminista.

2 A POSIÇÃO ORIGINAL E OS PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA

A teoria contratualista é um importante instrumento de pen-

samento crítico e Rawls utiliza-se do contratualismo para

repensar o sujeito como meio de construção da sociedade.

Para Rawls o necessário são pessoas moralmente capazes

que pensem a partir de um ponto de vista universal, deixan-

do de lado doutrinas morais abrangentes sobre o “bem” ou

a “vida boa” para a construção de uma ideia de justiça.

É a partir dessa tentativa de levar a ideia do contrato social

ao seu nível máximo de abstração8 que Rawls argumenta

por um exercício denominado de “posição original”. A partir

da posição original os sujeitos de uma determinada socie-

dade escolhem os arranjos institucionais mais adequados à

concepção de justiça alcançadas por eles através de juízos

ponderados, o que possibilita o alcance dos fins buscados

por todos, precipuamente a maximização de bens primá-

rios. Cabe aqui um breve adendo: Rawls (2016, p. 111), ao

realizar algumas considerações sobre o que é o “bem” na

sua teoria de justiça pontua que

a ideia principal é que o bem de uma pessoa é definido

por aquilo que para ela representa o plano de vida mais ra-

cional a longo prazo, dadas circunstâncias razoavelmente

favoráveis. Uma pessoa é feliz quando ela é mais ou menos

bem-sucedida na realização desse plano. De forma breve,

o bem é a satisfação do desejo racional. [...] Um problema

evidente é a elaboração de um índice de bens primários so-

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ciais. [...] As liberdades fundamentais são sempre iguais, e

existe igualdade equitativa de oportunidades; não é preciso

contrabalançar essas liberdades e direitos com outros va-

lores. Os bens primários sociais que variam em distribuição

são os direito e as prerrogativas de autoridade, bem como

a renda e a riqueza.

Seguindo-se adiante, destaca-se que é através do exercício

da posição original que pode se chegar aos princípios de

justiça que, segundo Rawls, são aqueles que todos con-

cordariam ser indispensáveis para a construção de uma so-

ciedade justa e democrática. Isso porque, ao se colocarem

sob a posição original, os sujeitos estarão em situação de

paridade e, por buscarem o mesmo objetivo – qual seja, a

maximização de bens primários – escolherão determinados

princípios que não poderiam ser negados por um sujeito

moralmente capaz em posição de igualdade com os demais

membros da sociedade. As pessoas, portanto, quando se

colocam em uma posição original – que permite, de forma

igualitária, a escolha de certos princípios em detrimento de

outros – estão determinando a inclusão e o acesso de todos

aos bens primários de forma equiparada.

Explica-se de forma mais detalhada: para que seja possí-

vel que os sujeitos escolham os princípios mais adequados

para guiar as instituições de uma sociedade democrática e

igualitária é preciso que esses se revistam do “véu da igno-

rância”9 e façam essa escolha a partir uma posição original

onde nenhum dos sujeitos saiba qual é seu status social

ou quaisquer outras características pessoais específicas

como, por exemplo, crenças, sexualidade, raça, gênero,

afinidades políticas e etc.

Quando se fala que a teoria de Rawls é evidentemente con-

tratualista, o que pretende-se dizer é que a posição original

– como já apontado alhures – nada mais é do que o esforço

de se realizar a abstração máxima do contrato social, ou

seja, utilização da ideia de um acordo como situação inicial

que leva a um consenso acerca de certos princípios morais

(RAWLS, 2016, p. 19).

Através desse status quo inicial proposto na posição ori-

ginal os sujeitos escolheriam princípios que se adequam

as suas convicções, ou seja, ao seu senso de justiça. Os

princípios de justiça, portanto, acomodam as convicções

pessoais e oferecem orientação quando essa é necessária.

Nesse sentido, Rawls (2016, p. 14) explica de forma mais

detalhada que,

assim como cada pessoa deve decidir por meio de reflexão

racional o que constitui seu bem, isto é, o sistema de fins

que lhe é racional procurar, também um grupo de pessoas

deve decidir de uma vez por todas, o que entre elas será

considerado justo ou injusto. A escolha que seres racionais

fariam nessa situação hipotética de igual liberdade, presu-

mindo-se, por ora, que esse problema de escolha tem so-

lução, define os princípios de justiça.

Entretanto, é evidente e inevitável que haverá discrepâncias

entre juízos pessoais daqueles que compõe esse grupo de

pessoas, podendo-se, a partir daí modificar-se a situação

inicial ou reformular-se os juízos atuais (RAWLS, 2016, p.

24), em busco de um consenso.

Elucida-se que, a partir da posição inicial, inicia-se uma dis-

cussão acerca de quais deveriam ser os princípios adotados

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pelas instituições. Essa discussão avança e regride conforme

os participantes tentam entrar em acordo. Nem sempre a de-

liberação chegará a princípios que são encontrados ponde-

radamente. O movimento realizado no exercício da posição

original, então, é de avançar no diálogo e, ao chegar a um

impasse, regredir e rever premissas, avançando novamente.

É a partir dessa deliberação que será possível encontrar uma

combinação de “juízos ponderados devidamente apurados e

ajustados” (RAWLS, 2016, p. 25). A essa situação Rawls dá o

nome de equilíbrio reflexivo10. O equilíbrio nada mais é que o

consenso entre as mais diversas convicções. Diz-se reflexivo

pois para se alcançar esse consenso é necessária uma de-

liberação racional e embasada. É o equilíbrio reflexivo, por-

tanto, a situação através da qual chega-se a um sistema no

qual seja possível acomodar de forma fundamentada, efetiva

e eficaz tantos aqueles pressupostos razoáveis impostos aos

princípios, como juízos ponderados de justiça.

Dessa forma, quando assumida a posição original os sujeitos

escolheriam certos princípios específicos a serem aplicados

às instituições11 básicas da sociedade, haja vista ser o véu da

ignorância um artifício que permite a neutralização de diversos

fatores que Rawls considera como moralmente arbitrários.

Ralws explica que os princípios de justiça escolhidos se-

riam, em primeiro lugar, o princípio segundo o qual “cada

pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso

de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com

um sistema similar de liberdades para as outras pessoas”

(RAWLS, 2016, p. 73).

O segundo princípio – chamado de princípio da diferença

– pode ser dividido em duas proposições. Destarte, o pri-

meiro ponto desse princípio diz respeito ao fato de que as

“desigualdade sociais e econômicas devem estar dispostas

de tal modo que [...] estejam vinculadas a cargos e posições

acessíveis a todos” (RAWLS, 2016, p. 73). Importante frisar

que, essa disposição do segundo princípio apontado por

Rawls pode ser justificada pelo seguinte raciocínio: quando

– apesar de termos um esquema de instituições que garan-

tem liberdades iguais a todos – não é garantido igual aces-

so a cargos e posições, tem-se um sistema pouco flexível.

Isso limitaria a mobilidade social, ou seja, a possibilidade

das pessoas de mudarem de posição social.

Além disso, tem-se no princípio da diferença outro ponto

que versa que só aquelas diferenças sociais e econômicas

que sirvam de impulso para aqueles em posições desfavo-

recidas e que representem benefício para todos serão acei-

tas. Não basta, portanto, que haja apenas a redistribuição

de renda. É necessário que a diferença ajude de forma efi-

caz aqueles menos favorecidos. Sobre a aplicação desses

princípios, Rawls (2016, p. 74) estabelece que:

Esses princípios devem ser dispostos em uma ordem se-

rial, o primeiro sendo prioritário do segundo. Essa orde-

nação significa que a violação das iguais liberdades fun-

damentais protegidas pelo primeiro princípio não podem

ser justificadas nem compensadas por maiores vantagens

socais e econômicas.

Algumas das críticas aos princípios de justiça de Rawls se

dão devido à seguinte objeção: poderia o princípio da di-

ferença chancelar desigualdades extremas ou até mesmo

legitimar situações contraditórias à juízos ponderados em

equilíbrio reflexivo? Para responder tal indagação, é neces-

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sário ressaltar que existe a possibilidade de conciliação en-

tre os princípios de justiça, justamente porque há entre eles

uma ordem serial ou léxica12. Explica-se: como ressaltado

alhures, para Rawls a relação entre os princípios de base –

que correspondem à liberdade e oportunidade – com o prin-

cípio da diferença é que os primeiros garantem a plataforma

em que o princípio da diferença será aplicado. Ou seja, só

há que se falar em aplicação do princípio da diferença caso

já tenha sido implementado efetivamente um sistema que

garante a liberdade e a oportunidade. Isso porque a justiça

para Rawls é uma convergências de vários princípios, assim

como elucida Voltaire Michel (2007, p. 65) que destaca:

Rawls acredita na viabilidade de uma convergência em tor-

no de critérios de justiça: essa idéia está presente desde o

primeiro esboço da posição original até o consenso sobre-

posto em PL. Ao mesmo tempo, Rawls não aposta numa

congruência entre concepções de bem, ou em outras pala-

vras, há um “núcleo duro” em cada concepção de bem que

repudia a fusão ou adesão a outros “núcleos duros”113. As

doutrinas compreensivas razoáveis, embora mais suscetí-

veis de aderir ao consenso sobreposto, não estariam livres

desta “repulsa recíproca”. A colocação “entre parênteses”

da noção de bem, em favor de uma concepção de justiça,

alegadamente freestanding, é a pedra de toque da filosofia

rawlsiana.

É importante, ainda, destacar que para Rawls a escolha

desses dois princípios de justiça decorre do fato de que

a sociedade configura um “empreendimento cooperativo

para o benefício de todos” (RAWLS, 2016, p. 102). Esses

princípios, portanto, guiam a estrutura básica social e defi-

nem “um esquema de atividades que conduz os homens a

agirem juntos a fim de produzir um total maior de benefícios

e atribui a cada um deles certos direitos reconhecidos a

uma parte dos ganhos” (RAWLS, 2016, p. 102).

Por fim, evidenciam-se as considerações de Rawls so-

bre as ponderações acerca do princípio da diferença

e da distribuição de bens primários e a ideia de justi-

ça procedimental pura. Salienta-se que quando se fala

em questões das parcelas distributivas o que temos é

um sistema procedimental. Entretanto, para Rawls, esse

sistema procedimental não diz respeito a uma ideia de

justiça procedimental perfeita ou imperfeita, mas sim de

justiça procedimental pura. Sobre o tema, Rawls elucida

que (RAWLS, 2016, p. 104):

A justiça procedimental pura, em contraste, verifica-se

quando não há um critério independente para o resulta-

do correto: em vez disso, existe um procedimento cor-

reto ou justo que leva a um resultado também correto

ou justo, seja qual for, contanto que se tenha aplicado

corretamente o procedimento. O jogo ilustra essa situa-

ção. Se um grupo de pessoas faz uma série de apostas

justas, a distribuição do dinheiro após a última aposta

é justa ou, pelo menos, não é injusta, seja qual for essa

distribuição.

Isso pois, não há um critério único para se definir se os

resultados são justos ou não. O que existe é um procedi-

mento pelo qual sempre se chegará em um esquema justo.

Dessa forma, sem um critério externo ao procedimento, o

princípio da diferença (no que versa sobre a oportunidade)

visa justamente garantir o sistema de cooperação seja um

sistema de justiça procedimental pura.

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3 LEITURAS FEMINISTAS DE “UMA TEORIA DE JUSTIÇA”

Uma vez explicados de forma breve alguns dos conceitos

basilares mais importantes constantes em “Uma teoria de

justiça”, partir-se-á para um estudo sucinto das críticas fei-

tas à obra de John Rawls, precipuamente aquelas realiza-

das por autoras feministas, em especial as esquematizadas

por Emily A. Wilsdon e S. A. Lloyd.

Destarte, ressalta-se que as críticas feministas às teorias de

justiça de filósofos políticos liberais se dão, em sua maioria,

devido ao entendimento de que as teorias de justiça com

base no contratualismo são – de forma geral – extremamen-

te abstratas e individualistas e tendem a ignorar o profundo

efeito que as estruturas de gênero exercem sobre nossas

identidades e papéis sociais (WILSDON, 2010, p. 1).

Explica-se que, por ter desenvolvido a justiça como equida-

de como uma forma racional de se pensar a justiça através

do contratualismo, sem se utilizar do intuicionismo, o pen-

samento de Rawls é de fato atrativo e seus argumentos são

consistentes. Entretanto, vários foram os pontos levantados

ao longo dos anos acerca de conceitos rawlsianos consi-

derados problemáticos. Dentre as críticas feitas à teoria de

Rawls, Emily Wilsdon (2010, p. 2) explica que

os comentaristas questionaram como as pessoas reais po-

deriam estar vinculadas por um acordo hipotético, se al-

guém que não sabe quem elas são poderia fazer uma esco-

lha significativa, se “bens sociais primários” como dinheiro

podem ser coerentemente pensados como bens sem se

ter uma concepção de bens já presumida. As suposições

usadas na elaboração dos princípios para a estrutura bá-

sica também foram criticadas - mais notavelmente por Su-

san Moller Okin, que destacou a suposição problemática

de Rawls de que as exigências da justiça não se aplicam à

família (tradução nossa).

Dessa forma destacam-se, no presente trabalho, duas das

mais relevantes críticas feministas a Rawls: a ideia da “pes-

soa” e a divisão entre vida pública e privada.

Conforme já explicado, Rawls propõe que – através do

exercício hipotético da posição original – o sujeito empírico,

sob o véu da ignorância, escolheria determinados princípios

de justiça para a estrutura social básica, dispondo sobre

um arranjo justo dentro de uma sociedade de cooperação.

Rawls, porém, pouco fala sobre quem é esse sujeito empíri-

co. A “pessoa” se perde dentro de tantos outros conceitos

que o auxiliam a desenvolver a ideia justiça como equidade.

Sobre esse sujeito Rawls apenas aponta para a necessária

capacidade de possuir um senso de justiça e concepção

do bem. O sujeito aqui é racional, simplificado e – por muito

vezes – idealizado. Emily Wilsdon (2010, p. 7) pondera que

se o pessoal é político, então o primeiro sujeito do político

é a comunidade - significando muitas comunidades sobre-

postas, ou estruturas de poder e opressão, ao invés de ‘a’

comunidade. O indivíduo deve ser entendido como exis-

tente nas relações que formam essas estruturas antes de

ser usado em uma teoria política. Se, enquanto feministas,

estamos preocupados com as experiências e o tratamento

das mulheres na sociedade, então um modo de resistência

a essa opressão deve ser o de elaborar teorias políticas.

Pois, como mostrou Foucault, o poder não é exercido ape-

nas pelo “Estado”, mas pode ser encontrado em todas as

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relações que compõem uma sociedade. As filósofas femi-

nistas são “banditas”, “tentando precisamente refletir ou,

pelo menos, trabalhar em um lugar do qual já se está exi-

lada, expropriada”. O começo de uma concepção da pes-

soa para uma política feminista deve envolver identidades,

sem essencializar ou totalizar o que é ser uma ‘mulher’, ou

qualquer outro grupo, e sem reificar ou naturalizar determi-

nadas maneiras de ser. A política feminista é eventualmente

“política de coalizão”. Eu não posso presumir que os su-

jeitos possam ser considerados completamente separados

do contexto, ou exigir que os cidadãos sejam “indepen-

dentes e autossuficientes para serem iguais e totalmente

autônomos”. A identidade ‘mulher’ se torna uma coalizão.

Como Judith Butler eloquentemente colocou: “Aquelas vi-

das que me excedem e não são de minha escolha são,

no entanto, uma condição de quem eu sou. Portanto, não

há vida que seja exclusivamente minha, mesmo que minha

própria vida não seja todas as outras vidas e nem possa ser

”. (tradução nossa)13

Dessa forma, a completa abstração do sujeito empírico

impede que sejam tratados alguns assuntos inerentemen-

te ligados às questões de gênero. Isso, pois, para que se

debata questões de gênero é preciso estar em contato di-

reto com a realidade e, de acordo com as críticas de Susan

Okin, a posição original de Rawls é “desencarnada e não

incorporada em qualquer realidade social ou cultural” (AR-

SENAULT, 2016, p. 10), o que impede que esses assuntos

sejam enfrentados. Emily Wilsdon (2010, p. 8-9) pontua que,

embora Judith Butler tenha criticado duramente a “políti-

ca de identidade”, a concepção de “mulheres” como uma

identidade múltipla e que designa “um certo conjunto de

relações ou posições que motivam a política particular do

feminismo” tem o potencial de oferecer uma maneira de re-

sistência mais coerente que simplesmente fazendo gênero

(ou política) errado. Em vez de entender “mulheres” como

um grupo, podemos entender “gênero como serialidade”,

como Iris Young explica em Intersecting Voices, baseado

no trabalho de Sartre. Em vez de presumir “atributos co-

muns ou uma situação comum”, um entendimento serial

do gênero (ou de qualquer elemento de identidade) enten-

de que se refere “a uma série social, um tipo específico

de coletividade social”. Portanto, uma “política feminista” é

aquela que leva em consideração a natureza da “identida-

de” em dois níveis conceituais. Em primeiro lugar, acontece

quando formulação de uma teoria da política que acomo-

da a experiência de ter identidades particulares em sua

concepção da pessoa. Em segundo lugar, o faz em ação

concreta usando essa teoria para entender a posição das

feministas, tomando uma identidade como “mulher” como

uma ferramenta, uma referência para a ação política que é

sensível e faz o uso mais efetivo das multiplicidades e inter-

dependências da existência (tradução nossa).14

Além disso, Rawls estabelece que – para que haja, efetiva-

mente, a justiça como equidade – é necessário que o sujeito

racional escolha os princípios de justiça na posição original

sob o véu da ignorância de forma a deixar de lado quais-

quer doutrinas morais abrangentes. Uma vez estabelecidos

os princípios de justiça, o funcionamento da sociedade se

dá em meio a convivência de doutrinas morais abrangentes,

que não são vedadas desde que sejam razoáveis. O con-

ceito do que Rawls chama de “razoável”15, entretanto, não

é claro. Sobre esse aspecto da teoria de Rawls, S. A. Lloyd

(1995, p. 1321-1322) explicita que

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qualquer visão feminista abrangente da relação apropria-

da entre homens e mulheres e a concepção apropriada de

como a vida familiar deve ser ordenada é reduzida a uma

entre muitas possíveis doutrinas abrangentes razoáveis.

Essa visão feminista não goza de privilégio especial quan-

do os princípios de justiça são selecionados. Há uma visão

feminista X, e então há a costela de Adão, a visão de ajuda

do homem. Se os princípios de Rawls permitirem que dife-

rentes grupos busquem diferentes formas de vida, práticas

sexistas e formas familiares patriarcais podem encontrar-se

protegidas, mesmo que para suposições feministas estas

práticas sejam claramente erradas e seu sistema de cren-

ça subjacente demonstravelmente incorreto. Não apenas a

feminista achará isso perturbador em si, mas se puder ser

demonstrado que a injustiça nas famílias mina a estabilida-

de da sociedade justa, também representará um problema

para Rawls que a lógica de sua própria posição exige que

ele leve a sério (tradução nossa).17

Cabe aqui uma importante observação: o feminismo – como

apontado acima – pode ser, de forma demasiadamente sim-

plificada, identificado como doutrina moral abrangente já

que existe aparentemente uma tentativa de se regular as

condutas em meio a relações interpessoais. Entretanto, vale

lembrar que o feminismo também se apresenta como teoria

que critica e visa a desconstrução de ideias patriarcais.

Segue-se, argumentando que – levando-se em conside-

ração o raciocínio rawlsiano conforme exposto em “Uma

teoria de justiça” – contando que não haja por parte daque-

les que adotam determinada doutrina moral abrangente a

vontade ou o esforço em institucionalizar certos parâmetros

ou regras específicas, não há que se falar em proibição ou

regulação desse dita doutrina, haja vista não haver qualquer

violação aos princípios de justiça por ele propostos. S. A.

Lloyd (1995, p. 1323) pontua que para Rawls “desde que

uma doutrina abrangente sexista não rejeite os fundamen-

tos de um regime constitucional - por exemplo, não procure

usar o poder coercitivo do Estado para privar as mulheres

de seus direitos políticos e civis iguais”, essa doutrina não

deve necessariamente ser rechaçada. Isso pois, só será

considerada não razoável a doutrina moral abrangente que

for, de certa forma, imposta aos demais indíviduos. Isso se

dá pelo fato de que a imposição de doutrinas morais abran-

gentes implica na flagrante infração dos princípios de justi-

ça escolhidos na posição original.

Pode-se argumentar, então, que essas preocupações têm

menos importância, considerando que a proposta de Rawls

não foi de desenvolver uma teoria moral, mas sim uma teo-

ria política. A preocupação – já disse o filósofo desde o prin-

cípio – é com as estruturas sociais básicas da sociedade e

não com a moral de cada um em sua vida cotidiana. Por

conseguinte, cabe a indagação: poderia a família ser con-

siderada uma estrutura básica da sociedade? E, caso seja

a família parte da estrutura básica da sociedade, seria pos-

sível realmente que existissem no âmbito privado doutrinas

morais abrangentes que – ainda que razoáveis – ferissem a

integridade e a capacidade moral dos membros dessa fa-

mília? Rawls pouco fala sobre a família e sua importância

no desenvolvimento de um pensamento acerca da justiça.

Nesse aspecto, a teoria de Rawls é falha, já que, como des-

taca Susan M. Okin (2004, p. 1541-1542) o filósofo

não discute como os princípios influenciariam as estruturas

internas e o funcionamento da família, ou suas relações com

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a sociedade em geral. As famílias são mencionadas apenas

duas vezes nesta seção intermediária do livro, em conexão

com as restrições que colocam à igualdade de oportunida-

des e em conexão com a justiça intergeracional, por exem-

plo, como instituições que podem desempenhar qualquer

papel na tradução de princípios de justiça para a prática ou

obstruir tal tradução, ou que possa ser estruturado ou or-

ganizado com tais papéis em mente. Além disso, eles não

são mencionados. [...] para tentar aumentar a estabilidade

dos justos sociedade, ele dedica uma atenção considerável

ao desenvolvimento de um senso de justiça nos cidadãos

da sociedade. A família, em grande parte não mencionada,

aparece com destaque como participante desse processo.

Mas, em vez de discutir sua adequação como um campo es-

timulante para a justiça, considerando como a justiça pode

ser aplicada à família, ou explorando formas alternativas de

família, Rawls simplesmente diz sobre isso: “dado que a fa-

mília instituições são justas”. (tradução nossa)18

Apesar de sua indiscutível relevância no desenvolvimento

do sujeito como futuro cidadão participativo da vida polí-

tica, Rawls dá pouco relevo às peculiaridades da relação

entre os princípios de justiça defendidos em sua teoria, as

doutrinas morais abrangentes existentes em uma sociedade

inexoravelmente plural, e a estrutura familiar. Sobre a possi-

bilidade de a família integrar a ideia de estrutura básica da

sociedade, e da sua coexistência com certas doutrinas mo-

rais abrangentes consideradas errôneas pela teoria crítica

feminista, S. A. Lloyd (1995, p. 1343-1344) argumenta que

se a educação sexista em nossa atual sociedade injusta

enfraquece a capacidade das crianças para um senso de

justiça, como podemos de forma realista esperar que es-

ses cidadãos vejam a sociedade bem ordenada de Rawls

como desejável? Em particular, se as práticas contínuas do

mundo não ideal tornam utópica a realização da teoria ideal

de Rawls - se não podemos chegar lá a partir daqui porque

nossas práticas atuais nos impedem de abraçar a visão da

teoria ideal da sociedade justa - então devemos rever es-

sas práticas impeditivas. (tradução nossa)

Se é permitido que certa doutrina moral abrangente consi-

derada sexista, por exemplo, exista em um esquema social

tido como justo, é preciso refletir sobre como essas dou-

trinas morais abrangentes poderiam influenciar as pessoas

que vivem dentro desses grupos ou famílias. S. A. Lloyd

(1995, p. 1324) ressalta, então, que

Okin escreve, por exemplo, que em A teoria da justiça de

Rawls, “famílias e associações foram assumidas e reco-

nhecidas como justas. [...] Mas se, na sociedade justa, fa-

mílias e igrejas não precisam ser justas, mas podem ser

organizadas hierarquicamente (com esta ordem justificada

pela “natureza”, digamos, ou lei divina), como é possível

para aqueles que gastam uma parte muito maior (bem

como mais intensa) de suas vidas nessas instituições do

que em qualquer atividade “política” de pensar em si mes-

mos como cidadãos livres e iguais, como Rawls os exige

no campo político? (tradução nossa)19

Ao pensarmos em uma possível resposta para o questiona-

mento ora realizado, é necessário, primeiramente, apontar

que – para a teoria de justiça de Rawls – a visão feminista

de uma família justa (na qual, por exemplo, o trabalho do-

méstico deve ser igualmente divido entre homens e mulhe-

res) não pode ser imposta a pessoas religiosas que veem

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o papel da mulher de forma distinta do papel do homem.

Isso, pois, impor a visão feminista limitaria a capacidade

racional das pessoas de decidir para si mesmos o que é o

“bem”, e isso não deve acontecer em uma sociedade plu-

ral (LLOYD, 1995, p. 1327). Dessa forma, porém, nem os

princípios de justiça de Rawls poderiam ordenar a família,

mesmo se essa fosse tida como parte da estrutura básica

da sociedade, já que também limitariam – de certa forma – a

capacidade de decisão dos indivíduos20. Nesse ponto, S. A.

Lloyd (1995, p. 1328) explica que,

se existem formas familiares que minam o papel da família

na manutenção de um regime constitucional, elas podem

ser proibidas, assim como práticas familiares que violem as

restrições às associações impostas pela estrutura básica

podem ser proibidas. Caso contrário, as formas e práticas

familiares podem ser como seus membros desejam, de

acordo com suas próprias doutrinas abrangentes. O com-

promisso de Rawls de permitir qualquer forma de família

compatível com o desenvolvimento efetivo de futuros cida-

dãos explica a linguagem peculiar que Rawls usa ao falar

sobre a família como parte da estrutura básica. Ele escre-

ve: “A estrutura básica é entendida como a maneira pela

qual as principais instituições sociais se encaixam em um

único sistema ... Assim, a constituição política, as formas

legalmente reconhecidas de propriedade, e a organização

da economia, e a natureza da família, todos pertencem à

estrutura básica”. Aqui Rawls fala, não da família, mas da

natureza da família, isto é, a seleção de suas formas aceitá-

veis, dado seu papel social. Assim, enquanto a natureza da

família faz parte da estrutura social geral dos princípios da

ordem da justiça, as famílias não devem ser internamente

ordenadas pelos dois princípios. (tradução nossa)21

Para Rawls, então, a família está indiretamente guiada por

princípios de justiça, mas se encontra em uma esfera priva-

da, ou seja, não-política. Os princípios de justiça se fazem

aparentemente insuficientes, portanto, para a efetiva orga-

nização interna das famílias e possibilitam a existência e

manutenção de sistemas patriarcais que podem prejudicar a

capacidade moral e racional daqueles que se inserem nesses

sistemas. Por fim, S. A. Lloyd (1995, p. 1343) pontua que

embora seja reconfortante pensar que a preocupação fe-

minista é aquela que a ciência empírica pode resolver

para nós, isso é certamente uma simplificação excessi-

va. A questão não é simplesmente se a educação sexista

compromete a aquisição das duas potências morais pelas

crianças, mas se elas o fariam na bem ordenada sociedade

de Rawls, contra o pano de fundo de uma estrutura básica

justa ordenada por princípios de justiça que gozavam do

apoio de um consenso sobreposto de doutrinas razoáveis.

Esta é uma questão sobre um mundo tão diferente do nos-

so próprio mundo grosseiramente injusto que é difícil de

responder. (tradução nossa22

Esse é talvez o ponto mais importante dentro das críticas

feministas à justiça como equidade de Rawls. Isso, pois, um

dos tópicos basilares da teoria feminista se dá na ideia de

que para que uma sociedade – e suas estrutura básica social

– seja justa, é necessário que a família também o seja. A se-

paração entre público e privado e o alcance limitado da jus-

tiça como equidade representam grande preocupação para

as teóricas feministas, já que mostram a insuficiência dessa

teoria para combater injustiças no âmbito interpessoal.

Nesse sentido, é necessário refletir acerca do seguinte as-

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pecto: se, para Rawls, a família se encontra na esfera do

não-político ainda assim tem que se ressaltar que o que

acontece no âmbito familiar – em situações que não são

estritamente políticas – pode ter reflexos na vida pública (ou

seja, política) dos membros dessa família. Dessa forma, se

as doutrinas morais abrangentes adotadas no âmbito priva-

do (ou não-político) afetam de qualquer forma a capacidade

moral dos membros da família, essa doutrina abrangente

não pode ser considerada razoável em termos rawlsianos.

Isso, pois, só é razoável aquela doutrina abrangente que

não fere os preceitos defendidos pelos princípios de justiça

escolhidos em posição original.

A justiça como equidade presume que os indivíduos dis-

ponham de faculdades morais que os tornem aptos para a

vida política. Essas faculdades morais, porém, devem ser

protegidas de doutrinas morais abrangentes que ameacem

o seu desenvolvimento ou a sua performance efetiva em na

vida pública em sociedade. Dessa forma, pode-se entender

que para que as doutrinas morais abrangentes sejam con-

sideradas razoáveis não basta apenas que não haja a bus-

ca dos indivíduos pela institucionalização ou imposição dos

ideais dessas determinadas doutrinas. Além disso, conco-

mitantemente, é preciso que essa doutrina moral abrangen-

te não restrinja as capacidades do sujeito de participar efe-

tivamente da vida política.

Ademais, há que se argumentar que doutrinas morais abran-

gentes patriarcais ou sexistas tem, em sua base, preceitos

e ideias que dispõe acerca da inferioridade de um grupo em

relação a outro, bem como dispõe sobre estruturas hierár-

quicas prejudiciais a um grupo de indivíduos. Nessa mesma

linha, tem-se doutrinas morais abrangentes como o racis-

mo – por exemplo, na forma defendida pela Ku Klux Klan

nos Estados Unidos da América – ou a supremacia branca,

que pregam a inferioridade ou até mesmo o extermínio de

determinados grupos. Todas essas doutrinas morais abran-

gentes ameaçam a capacidade moral dos sujeitos e, mes-

mo quando praticadas em um âmbito estritamente privado,

representam significativos reflexos nas relações entre su-

jeitos que se desenvolvem no âmbito público (ou político).

Quando se diz que, para a teoria de Rawls, a família se en-

contra indiretamente regulada pelos dois princípios de jus-

tiça – quais sejam, o princípio da igualdade e o princípio da

diferença – deve-se atentar para a ideia de que, mesmo não

havendo um regulação direta das relações interpessoais no

âmbito familiar, essas relações devem se dar de forma a

possibilitar que os membros dessa família participem efeti-

vamente da vida política.

6 CONCLUSÕES

John Rawls é, inquestionavelmente, um dos filósofos po-

líticos mais relevantes do século XX. Seu projeto teórico

ambicioso apresentou-se como alternativa aos utilitaristas

e intuicionistas e propôs uma concepção contratualista de

justiça como equidade, prezando pela constituição de um

esquema de instituições básicas da sociedade que garan-

tissem a liberdade e igualdade. Conforme apontado, a teo-

ria de Rawls utiliza do recurso metodológico denominado

posição original para apresentar a ideia de que, quando o

sujeito empírico racional se coloca por trás de um véu da

ignorância – anulando todos os fatores considerados mo-

ralmente arbitrários – serão escolhidos determinados prin-

cípios de justiça para guiar a estrutura básica social. Esses

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dois princípios escolhidos pelos sujeitos em posição origi-

nal versam sobre a liberdade, igualdade de oportunidade,

e possibilidade diferenças sociais. Essas proposições cen-

trais guiam todo o desenvolvimento da concepção rawlsia-

na de justiça como equidade.

Ademais, através da exposição aqui realizada, restou de-

monstrado que as teorias feministas são bem-sucedidas

em apresentar críticas pontuais acerca dessas proposi-

ções centrais apresentadas por Rawls. Os esclarecimen-

tos que se fazem possíveis através das críticas realizadas

por teóricas feministas à justiça como equidade no pensa-

mento e Rawls tornam os preceitos da justiça e sua apli-

cação mais claros. Dessa forma, as ideias de Rawls – ape-

sar de serem consideradas incompletas a partir de uma

reflexão proposta por teorias feministas – possibilitam a

adaptação de seus conceitos e uma leitura que acomode

as reinvindicações do feminismo.

A justiça como equidade, através de um exercício de inter-

pretação extensiva, pode-incorporar em um entendimento

do papel da família na construção do sujeito como futuro

membro de uma sociedade justa e como ator da atividade

política. Vale ressaltar, porém, que – como apontado alhures

– a ideia do sujeito empírico abstrato ainda representa um

desafio posto pela teoria crítica feminista.

Além disso, demonstrou-se que as reinvindicações femi-

nistas, entretanto, não descreditam completamente o pen-

samento de Rawls. Ao contrário, as críticas a ele realizadas

servem como meio para se explicar a justiça como equidade

de forma mais clara, bem como apresentar a sua teoria sob

a sua melhor luz, adaptando-a através de novos enfoques.

Conclui-se, portanto, que as críticas realizadas à “Uma teo-

ria de justiça” são importantes para pensarmos as ideias

apresentadas por Rawls através de uma perspectiva distin-

ta daquela em que estão originalmente inseridas e servem

como base para a busca de novas formas de aplicação da

filosofia política ralwsiana. Nesse sentido, portanto, a pers-

pectiva feminista não se mostra apenas como contraponto

ou ataque, mas sim como um importante ponto de auxílio

para uma melhor interpretação e entendimento acerca da

concepção rawlsiana de justiça e de sua aplicação.

REFERÊNCIAS

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Notas

1. Nesse sentido, Susan Moller Okin (2004, p. 1537) pontua: “The revival of Anglo-American political theory and the revival of feminism in what came to be called its “second wave” both emerged early in the second half of the twentieth century. To situate both, consider the publication dates of some of the foundational works of each movement: Simone de Beauvoir’s The Second Sex’ appeared in 1949 and was translated into English by 1952; Isaiah Berlin’s Two Concepts of Liberty was published in 1958, as was John Rawls’s Justice as Fairness; Betty Friedan’s The Feminine Mystique appeared in 1963 and Kate Millett’s Sexual Politics in 1970; John Rawls’s complete A Theory of Justice came out in 1971.”

2. O projeto teórico de Rawls, e o desenvolvimento da ideia da justiça como equidade é, de certa forma, o esforço formal para a tradução do princípio ético kantiano, ou seja, o princípio chamado de “imperativo categórico”, para uma teoria de justiça democrática e igualitária.

3. Importante frisar que, como ressaltou o próprio autor em prefácio de sua obra (RAWLS, 2016, p. XXXVI), a teoria de justiça rawlsiana surge como um terceira via para aqueles que buscam uma alternativa ao utilitarismo, mas que não pretendem se valer de teorias filosóficas do intuicionismo.

4. Immanuel Kant elaborou uma teoria moral. Já John Rawls não teve essa pretensão. A ideia de justiça como equidade apresentada na obra “Uma teoria de justiça” representa, na verdade, uma teoria política.

5. Nesse sentido, o próprio John Rawls (2016, p. 8) elucida que “o objeto principal da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou, mais precisamente, o modo como as principais instituições sociais distribuem os direitos e os deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens decorrentes da cooperação social.”

6. No original: “John Rawls first published his ideas about equality over fifty years ago, although his magnum opus did not appear until 1971. His goal was to unseat utilitarianism as the ruling theory of distributive justice, and to replace it with a type of egalitarianism. He argued that justice requires, after guaranteeing

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a system which maximizes civil liberties, a set of institutions that maximize the level of ‘primary goods’ allocated to those who are worst off in society, in the sense of receiving the least amount of these goods. Economists call this principle ‘maximin primary goods;’ Rawls often called it the difference principle. Mo-reover, he attempted to provide an argument for the recommendation, based upon construction of a ‘veil of ignorance’ or ‘original position,’ which shielded decision makers from knowledge of information about their situations that was ‘morally arbitrary,’ so that the decision they came to regarding just allocation would be impartial. Thus Rawls’s (1971) project was to derive principles of justice from rationality and impartiality. Rawls did not advocate maxi-minning utility (even assuming interpersonal utility comparisons were available), but rather maxi-minning (some index of) primary goods. This was, in part, his attempt to embed personal responsibility into the theory. For Rawls, welfare was best measured as the extent to which a person is fulfilling his plan of life: but he viewed the choice of life plan as something up to the individual, which social institutions had no business passing judgment upon.”

7. Importante esclarecer desde já que o presente artigo trata apenas dos preceitos apresentados por Rawls em sua obra “Uma teoria de justiça”. Logo, não apresenta nenhum comentário acerca das posteriores reformulações realizadas pelo filósofo em outras obras como, por exemplo, “Justiça como Equidade” de 1985 e “Liberalismo Político” de 1993.

8. Nas palavras de John Rawls (2016, p. 13-14) : “Meu objetivo é apresentar uma concepção de justiça que eleve a um nível mais alto de abstração a co-nhecida teoria do contrato social conforme encontrada em, digamos, Locke, Rousseau e Kant. Para isso, não devemos achar que o contrato original tem a finalidade de inaugurar determinada sociedade ou de estabelecer uma forma específica de governo. Pelo contrário, a ideia nortadora é que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade constituem o objeto do acordo original. São eles os princípios que pessoas livres e racionais, interessadas em promover seus própios interesse, aceitariam em uma situação inicial de igualdade como definidores das condições fundamentais de suas associação.”

9. É através do véu da ignorância que, no experimento da posição original, se possibilita a anulação de questões moralmente arbitrárias do sujeito em-pírico para dar lugar a pessoas em par de igualdade.

10. Sobre o equilíbrio reflexivo John Mikhail (2010, p. 6) faz os seguintes apontamentos: “Reflective equilibrium makes its first appearance in Section 4 of A Theory of Justice, where it is defined as a hypothetical state of affairs that is reached in the course of attempting to justify the original position by re-solving expected discrepancies between our considered judgments and the principles yielded by a candidate description of the initial situation. In Rawls’ theory, original position, considered judgments, and initial situation are also technical terms. Accordingly, the Section 4 definition of reflective equilibrium cannot be understood without a clear grasp of the meanings of these concepts. For the latter purpose, a brief summary of the main, contractual argument of A Theory of Justice is required.”

11. Sobre a aplicação dos princípios às instituições, Rawls (2016, p. 67) explica que “ao afirmar que a instituição, e, portanto, a estrutura básica da socie-dade, é um sistema público de normas, quero dizer que todos nela envolvidos sabem ou saberiam se tais normas e suas participação nas atividades que essas normas definem fosses resultantes de um acordo. A pessoa que participa da instituição sabe o que as normas exigem dela e das outras. Também sabe que as outras pessoas sabem disso e sabem que ela sabe disso, e assim por diante. [...] Os princípios de justiça devem aplicar-se a arranjos sociais entendidos como públicos nesse sentido.”

12. Sobre a ordem lexical como solução para a possível necessidade de equilíbrio entre princípios, Rawls (2016, p. 52) comenta: “É uma ordem [léxica] que nos exige a satisfação do primeiro princípio da ordenação para que possamos passar ao segundo; do segundo para passar ao terceiro; e assim por diante. Determinado princípio só entra em ação depois que os anteriores a ele estejam totalmente satisfeitos ou não se apliquem. A ordenação em série evita, então, a necessidade de equilibrar princípios; os princípios anteriores na série tem peso absoluto, por assim dizer, com relação aos posteriores, e valem sem exceções.”

13. No original: “If the personal is political, then the first subject of the political is community - signifying many overlapping communities, or structures of power and oppression, rather than ‘the’ community. The individual must be understood as existing in the relations forming these structures before use in a political theory. If, qua feminists, we are concerned about the experiences and treatment of women in society then one mode of resistance to that op-

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pression must be as political theorists. For, as Foucault has shown, power is not just exercised by the ‘state’ but can be found in every relation that makes up a society. Feminist philosophers are ‘bandita’, “attempting precisely to try, to dwell or, at least, to work in a place from which one is also already exiled, dispossessed”. The beginning of a conception of the person for a feminist politics must involve identities, without essentializing or totalizing what it is to be a ‘woman’, or any other group, and without reifying or naturalizing particular ways of being. Feminist politics is eventually “coalition politics”. It cannot presume subjects as able to be considered completely asunder from context, or require citizens to be “independent and self-sufficient in order to be equal and fully autonomous”. The identity ‘woman’ becomes a coalition. As Judith Butler eloquently put it: “Those lives that exceed me and are not of my choo-sing are nevertheless a condition of who I am. So there is no life that is exclusively my own, even though my own life is not every other life and cannot be”.

14. No original: “Though Judith Butler has heavily criticised ‘identity politics’, the conception of ‘women’ as an identity that is multiple and that designates “a certain set of relations or positions that motivate the particular politics of feminism” has the potential to offer a way of resistance more coherent that simply doing gender (or politics) wrong. Instead of understanding ‘women’ as a group, we can understand “gender as seriality”, as Iris Young explains in Intersecting Voices, based on work by Sartre. Rather than presuming “common attributes or a common situation”, a serial understanding of gender (or any element of identity) understands it to refer “to a social series, a specific kind of social collectivity”. Therefore, a ‘feminist politics’ is one which takes into account the nature of ‘identity’ at two conceptual levels. Firstly, it does so when formulating a theory of politics which accommodates the experience of having particular identities in its conception of the person. Secondly, it does so in concrete action using that theory to understand the position of feminists, taking an identity such as ‘woman’ as a tool, a reference for political action that is sensitive to, and makes the most effective use of the multiplicities and interdependencies of existence.”

15. Nesse sentido, S. A. Lloyd (1995, p. 1323) destaca: “Unreasonable” is not, in Rawls’s parlance, a simple synonym for “unfair” or “discriminatory.” It is both a weaker and more precise notion that makes use of Rawls’s idea of the “burdens of judgment. […]The burdens of judgment account for the pos-sibility of reasonable disagreement in terms of differences in how the values relevant to settling a question are weighted, the complexity of the empirical evidence, the vagueness and indeterminacy of our concepts, and so on.’ 9 Since reasonable disagreement is possible, we need not assume that those who disagree with us are stupid, perverse, or corrupt in order to account for the disagreement. According to Rawls, a citizen among equal citizens is unreasonable if that citizen fails to recognize the burdens of judgment and their implications, the most important implication being that because reaso-nable disagreement is possible and usual among the citizens of a free society, state power should not be used to enforce the constituent views of one comprehensive doctrine on those who hold some other reasonable comprehensive doctrine”

16. No original: “Any comprehensive feminist view of the proper relation between men and women and the proper conception of how family life should be ordered is reduced to one among many possible reasonable comprehensive doctrines. This feminist view enjoys no special privilege when principles of justice are selected. There is feminist view X, and then there is the Adam’s rib, man’s helpmate view, if Rawls’s principles allow different groups to pursue differing forms of life, sexist and patriarchal practices and family forms may find themselves protected, even though, from within feminist assumptions, these practices are plainly wrong and their underlying belief system demonstrably incorrect. Not only will the feminist find this disturbing in itself, but if it can be shown that injustice in families undermines the stability of the just society, it will also pose a problem for Rawls which the logic of his own position requires him to take seriously.”

17. No original: “Significantly, though, Rawls does not discuss how the principles would influence either the internal structures and workings of the fami-ly, or their relations with the wider society. Families are mentioned only twice in this middle section of the book, in connection with the constraints they place on equality of opportunity, and in connection with intergenerational justice, for example as institutions that might play any role in either translating principles of justice into practice or in obstructing such translation, or that might be structured or organized with such roles in mind. Apart from this, they go unmentioned. [...] in order to try to increase the stability of the just society, he devotes considerable attention to the development of a sense of justice in the society’s citizens. The family, otherwise largely unmentioned, features prominently as a participant in this process. But rather than discussing its suitability as a nurturing ground for justice, considering how justice might apply to the family, or exploring alternative forms of family, Rawls simply says of it: “given that family institutions are just.”

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18. No original: “If sexist upbringings in our current, unjust society undermine children’s capacity for a sense of justice, how can we realistically expect to bring citizens of this society to see Rawls’s well-ordered society as desirable? In particular, if continuing practices of the nonideal world make the realiza-tion of Rawls’s ideal theory utopian-if we cannot get there from here because our current practices prevent us from embracing the ideal theory’s vision of the just society-then we must revise the impeding practices. But Rawls’s own theory suggests that most forms of state action to revise these practices would be themselves unjust.”

19. No original: “Okin writes, for example, that in Rawls’s A Theory of Justice, “families and associations were assumed and recognized to be just. In the new account, the political/nonpolitical dichotomy seems to preclude this.”’ But if, in the just society, families and churches are not required to be just but can be organized hierarchically (with this ordering justified by “nature,” say, or divine law), how is it possible for those who spend a far greater (as well as more intense) part of their lives in these institutions than in any “politic” activity to think of themselves as free and equal citizens, as Rawls requires them to in the political realm?”

20. Nesse sentido, S. A. Lloyd (1995, p. 1327) aponta que: “The same is true for families. Although the family as an institution is subject to the constraints that the principles impose on all associations, families are not to be internally ordered by those principles. We need not, for example, distribute goods to our children in accordance with the difference principle, nor, Rawls thinks, would this be desirable. The principles of justice constrain families in obvious ways-their members may not be deprived of their political and civil liberties, sold into slavery, assaulted, or battered. And the constraints of a just basic structure rule out some family practices.”

21. No original: “If there are family forms that undermine the family’s role in upholding a constitutional regime, these may be prohibited, just as family practices that violate the constraints on associations imposed by a just basic structure may be prohibited. Otherwise, family forms and practices may be as their members desire, according to their own comprehensive doctrines. Rawls’s commitment to allowing any family form compatible with the effective development of future citizens accounts for the peculiar language Rawls uses in talking about the family as part of the basic structure. He writes: “The basic structure is understood as the way in which the major social institutions fit together into one system.... Thus the political constitution, the legally recognized forms of property, and the organization of the economy, and the nature of the family, all belong to the basic structure. ‘40 Here Rawls speaks, not of the family, but of the nature of the family, that is, the selection of its acceptable forms, given its social role. So while the nature of the family is part of the overall social structure the principles of justice order, families are not to be internally ordered by the two principles.”

22. No original: “Although it is comforting to think that the feminist concern is one that empirical science can settle for us, this is certainly an oversimpli-fication. The question is not simply whether sexist upbringings do compromise children’s acquisition of the two moral powers, but whether they would do so in Rawls’s well-ordered society, against the background of a just basic structure ordered by principles of justice that enjoyed the support of an overlapping consensus of reasonable doctrines. This is a question about a world so different from our own grossly unjust world that it is hard to answer”.

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