GONÇALVES E GIMENEZ. A MESA DO MARRANO IDENTIDADE E MEMÓRIA JUDAICA NO BRASIL

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    Revista Brasileira de Histria das Religies. ANPUH, Ano II, n. 5, Set. 2009 - ISSN 1983-2850http://www.dhi.uem.br/gtreligiao

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    A MESA DO MARRANO: IDENTIDADE E MEMRIA JUDAICA NO BRASIL

    COLONIAL

    Edvaldo Sapia Gonalves

    Jos Carlos Gimenez

    Resumo: O recorte espao-temporal deste estudo Portugal e o Brasil Colnia entre os anosde 1497 e 1773, perodo em que houve a distino religiosa que ficou conhecida como

    cristo-novo, utilizada para designar os judeus convertidos ao catolicismo e foi chamado demarrano aquele que de forma velada continuava a praticar o judasmo. Com apoio emfontes primrias e secundrias, investiga-se a alimentao do cristo-novo no Brasil colonial,que aqui considerada como suporte da identidade e memria judaica que esteve ligada aosurgimento de uma histria do judasmo em nosso pas. Os resultados da pesquisa permitemdemonstrar que o complexo sistema jurdico e inquisitorial, edificado pela Coroa Portuguesa epela Igreja Catlica, com o manifesto propsito de discriminar e perseguir os cristos-novos,no foi suficiente para impedir a permanncia de tradies e prticas alimentares do judasmo,e que estas tambm no ficaram totalmente impermeveis assimilao de uma rica oferta denovos alimentos e da diversidade cultural que o encontro de povos de diferentes origens podemesclar.

    Palavras-chave: Histria das Religies; Histria da Alimentao; Inquisio.

    Abstract: The temporal-space line of this study is about Portugal and Brazil, the last oneduring its colonial period, between the year of 1443 and 1773, time when happened thereligious distinguish known as new-Christian, used to define the converted Jewishes intoCatholics who were called marrano a person who was a Catholic, but in secret used tocontinuous practicing the Judaism. Based on primaries and secondaries sources, the feedingof the new-Christian in colonial Brazil is been investigated in the project considered as astand of the identity and the Jewish memory, that has been connected with the birth of a

    Jewish history in our country. Based on Pierre Bourdies Field Theory the articulationbetween religion, culture and law is analyzed in the Brazilian Jewish history during theinquisition period. The results of the research allow us to demonstrate that the complex legaland inquisitorialsystems built by the Portuguese Crown and by the Catholic church, allied tothe purpose of the manifest of discriminate and persecute the New-Christians, wasnt

    Pesquisa realizada pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual de Maring Especializao em Histria das Religies e pelo Programa de Iniciao Cientfica da Universidade Estadual deMaring (PIC-UEM). Discente do Curso de Especializao em Histria das Religies: fundamentos para a pesquisa e o ensino e doCurso de Graduao em Histria (DHI/UEM). Docente do Departamento de Direito Privado e Processual

    (DPP/UEM). Mestre em Direito Civil (UEM) Docente do Departamento de Histria (DHI/UEM). Coordenador do Curso de Graduao em Histria (UEM)Doutor em Histria pela Universidade Federal do Paran (UFPR)

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    enough to stop the permanence of traditions and feeding habits of Judaism. Thesecharacteristics also hadnt got totally receptive to the assimilation of a rich offer of new foodsand cultural diversity, which the meeting of people from different origins can merge.

    Key-words: Religions History; Food History; Inquisition.

    Introduo

    Na histria do judasmo no Brasil Colnia, se investiga a alimentao dos cristos-

    novos, judeus que foram submetidos ao dilema de vivenciar a nova realidade imposta pela

    converso involuntria ao cristianismo e obrigados a viver como catlicos.

    Isso atingia a identidade judaica que era orientada por uma tica da responsabilidade

    ligada idia de povo eleito por Deus e que, por isso, eram coletivamente responsveis por

    seu destino. Essa idia de eleio impunha mais deveres do que direitos, de modo que as

    relaes com Deus deviam estar sempre em primeiro lugar.

    Submetidos Lei de Moiss os judeus acreditam que s por ela possvel

    encontrar o caminho para a salvao. nessa relao com o texto sagrado que est impressa

    toda a marca religiosa de pertencimento comunidade judaica. Em virtude disso, esses judeus

    tinham a vida cotidiana e, portanto, a sua alimentao, regulamentada por Lei escrita (Tor).

    Alm disso, essa religio tambm observa uma Lei oral (Talmude), que resultado

    da prtica da discusso, que contribui para preservar o papel central do texto bblico,

    contribuindo para uma adaptao e renovao das prescries escritas aos novos tempos do

    judasmo.

    Situados entre duas realidades contraditrias, a crist e a judaica, muitos cristos-

    novos vivenciaram o criptojudasmo, observando em segredo os preceitos judaicos, fato esse

    que no pode ser visto como algo incompatvel com o momento histrico que eles viveram

    naquele momento. Ainda que precisassem se apresentar como catlicos, eles continuavam

    marcados por caractersticas associadas ao judasmo, como as relacionadas a alimentao aqui

    abordadas.

    O batismo forado no foi fato suficiente para modificar a mente ou o corao desses

    judeus, bem como no poderia ele mudar hbitos alimentares arraigados pela observncia de

    regras religiosas milenares.

    Como suporte da memria social do povo judeu, essas antigas prticas alimentares,como as muitas outras manifestaes culturais da religio, foram transmitidas de uma gerao

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    outra, contribuindo para afirmao das identidades e criando sentimentos de pertena a

    grande comunidade judaica. Isso se deve a existncia de uma dimenso comunicativa nas

    prticas de alimentao.

    Mas, a vinda para o Brasil, que se tornou um lugar para refugiar-se da perseguio da

    Inquisio Moderna que elegeu os judeus conversos e seus descendentes como seu objetivo

    principal (BETHENCOURT, 2000, p. 338; VAINFAS, 2005, p. 10) e de degredo para os

    que foram condenados e penitenciados pelo Santo Ofcio (AZZI, 1987, p. 178), fez com que

    aqui os cristos-novos conhecessem uma grande oferta de novos alimentos que eles

    assimilaram, na medida em que tiveram que se adaptar realidade colonial.

    Dessa forma a alimentao do cristo-novo acabou por se constituir em um modo

    muito particular de alimentar-se em nossa sociedade colonial, um fenmeno histrico local da

    cultura judaica, que foi marcado pelas permutas alimentares que ocorreram com os diferentes

    povos, como os indgenas e os africanos. Esses contatos estabeleceram novas formas de

    comer, de cultivar os alimentos e contribuiu para que se estabelecessem novas relaes com

    as normas religiosas, de modo a torn-las mais adequadas a essa nova realidade.

    Como fenmeno histrico, a alimentao suscetvel a mudanas de sentidos, o que

    ocorre pela exposio a ambientes geogrficos, sociais, culturais, econmicos, religiosos e

    polticos distintos. Em terras brasileiras, fazendo uso dos ingredientes de que podiam dispor,os cristos-novos tiveram seus costumes e viso de mundo, transformados pelas interaes

    com a nova sociedade.

    Essas interaes fizeram aflorar os sentimentos de uma nova identidade e

    promoveram uma verdadeira transformao nas tradies vigentes entre os cristos-novos

    portugueses no Brasil colonial.

    Assim, se de um lado possvel admitir que a necessidade de sobreviver em novas

    terras e proteger-se da perseguio inquisitorial afetou as prticas alimentares triviais que setornaram mais porosas s mudanas , contribuindo para atenuar os limites que diferenciavam

    os cristos-novos dos demais, por outro, a sua condio de portadores de uma memria

    judaica fez com que prticas alimentares rituais e associadas s festividades e celebraes

    religiosas como o Shabat (guarda do sbado), as comemoraes de Pessach (pscoa

    judaica, quando comem o po zimo e o carneiro assado, antecipador do xodo) com as

    Seders (refeies tradicionais da pscoa) e o Rosh-Hashan (ano novo judaico, quando soa

    o schofar, trombeta de corno de carneiro, anunciando a primeira lua nova do ano novoisraelita) fossem mais impermeveis s mudanas, razo porque eram observadas no

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    segredo do mbito domstico. Como indica Salvador (1969, p. 178) em tais oportunidades,

    os judeus reafirmavam suas crenas e tradies, ensinavam-nas aos filhos e, ao mesmo tempo,

    davam-se conta de que pertenciam nao de Israel, a um povo s, o povo eleito.

    Quando existia permeabilidade, essa se justificava pela necessidade de diluir asfronteiras culturais que os diferenciavam da sociedade crist envolvente e perante os cristos-

    novos eram obrigados a se apresentar publicamente como catlicos.

    Expostos que estavam aos processos de interao com outras identidades sociais,

    culturais e religiosas, suas tradies religiosas s poderiam sobreviver transformando-se.

    De judeus a cristos-novos

    Os judeus ibricos compunham a comunidade judaica Sefaradi (Sefarad, que

    corresponde o nome da Espanha em hebraico), que se tornou, ao lado de outras expresses

    como sefardis ou sefarditas , um termo para designar os judeus originrios da Pennsula

    Ibrica e seus descendentes (PEDRERO-SNCHEZ, 1994, p. 123).

    Durante o sculo XIV e a primeira metade do sculo XV, eles puderam encontrar em

    Portugal uma situao que era mais benfica que na Frana e Espanha, pases em que os

    judeus j viviam em grande insegurana desde o final do Sculo XIV e incio do XV. Dealguma forma, em Portugal existiam algumas formas e meios de inter-relaes que permitiam

    a manuteno de suas comunidades, bem como judeus que puderam ocupar funes nas cortes

    reais. Hbeis e diligentes em atividades financeiras e comerciais, muitos judeus puderam

    acumular riquezas e alcanar patrimnios e vantagens econmicas que podiam conferir a eles

    a garantia de certas liberdades.

    No entanto, no final do sculo XV, eles eram uma minoria que procurava preservar a

    unidade judaica em uma sociedade predominantemente crist, desligados dos direitos dos

    membros dessa sociedade, como se far demonstrar no item 3 deste artigo.

    A hostilidade e a perseguio da Igreja Catlica aos judeus se tornou um fato

    demasiado evidente. Contra eles pesaram normas que prescreviam perdas de liberdades; a

    imposio do uso de vestimentas distintivas; obrigavam-nos a ouvir em suas sinagogas os

    sermes pronunciados por pregadores catlicos e o confisco de bens.

    Porm, um dos fatos mais marcantes dos judeus na Pennsula Ibrica foi a expulso

    dos reinos catlicos, como foi o caso da deciso de expulso definitiva da Espanha, proferida

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    pelos reis catlicos, em 31/03/1492, acontecimento que fez com que os judeus emigrassem

    para lugares como o Marrocos, Itlia, Grcia e Turquia, entre outros.

    Em relao a Portugal, Saraiva (1989, p. 74) esclarece que D. Joo II (1481-1495)

    autorizou que muitos dos judeus foragidos se instalassem temporariamente em Portugal,

    mediante o pagamento de elevadas quantias em dinheiro, o que representou o ingresso de

    muitos judeus nesse pas.

    Mas D. Manuel (1495-1521), sucessor de D. Joo II (1481-1495), premido pelos reis

    catlicos da Espanha a expulsar de seu reino os judeus nativos e os que haviam imigrado da

    Espanha seja pela instituio da Inquisio espanhola em 1478, ou pela expulso final em

    1492 , em 05/12/1496 promulgou uma ordem que obrigava todos os judeus a deixarem

    Portugal no prazo de dez meses, ou seja, at outubro de 1497, sendo que nesse perodo seria

    garantindo a eles a sada livre e liberdade para transportarem seus bens. Terminado esse

    prazo, a nenhum judeu seria permitido habitar as fronteiras do pas ou nele permanecer e os

    que ficassem estariam sujeitos a pena de morte e ao confisco de bens.

    Da edio da ordem at o termo final estabelecido para a sada dos judeus do pas,

    estes foram forados a converso ao cristianismo e ao batismo. Procurava-se com isso evitar a

    sada de imensas fortunas e capacidades intelectuais do pas. Em relao a esses judeus

    convertidos ao cristianismo, publicou-se em 30/05/1497, uma Ordem Real pela qual passavama ser denominados de cristos-novos, o que fez dividir a sociedade portuguesa em dois

    grupos que se tornaram antagnicos: os cristos-novos (cristos recm-conversos) e os

    cristos-velhos (cristos de nascena e de estirpe). Essa distino s deixou de existir por

    Carta de Lei de 25/05/1773, que, seguindo a poltica do Marqus de Pombal, a aboliu

    definitivamente.

    Sobre essa converso, Saraiva (1994, p. 35) afirma que: assim acabaram em

    Portugal os Judeus e nasceram os Cristos-Novos. Seguindo a mesma linha, Pernidji (2005,p. 11) tambm observa: Os judeus em Portugal, onde j viviam por mais de um milnio,

    viram-se, num abrir e fechar de olhos, cristos. Batizados de papel passado (...) Aos recm-

    batizados chamaram cristos-novos. To novos quanto podiam ser.

    Constrangidos a negar sua f e seu povo, forados a desligar-se da religio de seus

    antepassados e a se conformar s crenas e prticas do cristianismo do qual no faziam

    parte e inexistindo qualquer tradio cultural ou familiar que os ligasse a ele , os cristos-

    novos, no dizer de Assis (2002, p. 48) tornaram-se uma espcie de elo de ligao entre ojudeu e o cristo, ou seja, uma notvel ambiguidade.

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    A respeito desse dilema, Herson (2003, p. 29) observa que: Os recm-batizados,

    proibidos de ser o que eram (judeus), por no conseguirem ser o que a Igreja Catlica queria

    que fossem (catlicos), tentaram no seu grande dilema, adaptar-se ao novo ser que lhes foi

    imposto: o de cristo novo. A conseqncia dessa situao expressa por Novinsky (2007, p.33):

    Proibidos de serem judeus e impedidos de abandonar o pas, s restou aoscristos-novos um caminho: criar para si justificativas para viver. Econstruram uma viso do mundo totalmente diferente da sociedade ampla,um mundo que carregaram no mais absoluto sigilo nos seus coraes,alimentado e realimentado em cada gerao.

    Mas, ainda que se possa reconhecer a realidade histrica do criptojudasmo, no se

    pode considerar que ele tenha sido uma homogeneidade monoltica (KAPLAN, 2000, p. 344)

    entre os cristos-novos, pois tambm existiram aqueles que realmente se tornaram cristos

    sinceros (ainda que isso no os tenha excludo da perseguio da Inquisio), bem como

    aqueles que se tornaram ferrenhos anti-semitas e que perseguiram impiedosamente os judeus

    e cristos-novos (HERSON, 2003, p. 52-53).

    Todos eles, de uma forma ou de outra, foram envolvidos em um arcabouo

    legislativo de cunho discriminatrio, que desenhou a situao jurdica dos cristos-novos,conforme se ver no captulo que segue.

    A situao jurdica do cristo-novo

    Desde a converso e o batismo forado de outubro de 1497, que marcou o fim da

    existncia legal do judasmo em Portugal, os judeus convertidos em cristos-novos foram

    submetidos a uma nova condio jurdica que no deferia a eles os mesmos direitos dosdemais membros dessa sociedade, os cristos-velhos.

    Nem mesmo mantinham os direitos que existiam previamente, como destaca Pieroni

    (2003, p. 32):

    Com o batismo forado e, posteriormente, avigorado com o estabelecimentodo Santo Ofcio, a nova minoria no possua mais a realidade jurdica, tnicae religiosa que as Ordenaes Afonsinas de 1446 lhe conferiam. Doravanteessa minoria passa a ser crist, porm crist-nova, estigmatizada e

    perseguida. No lhe restava seno um caminho para a sobrevivncia: asubmisso ao rei e ao catolicismo.

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    Com a converso eles tornaram-se sditos de um governo cristo, ligando-os a

    relaes jurdicas das quais at ento estavam desvinculados e ao exerccio de direitos que

    eram exclusivos dos cristos-velhos. Da mesma forma, tornaram-se sditos da Igreja Catlica,

    sujeitos aos cnones religiosos e sanes das autoridades eclesisticas. Se como judeus eram

    infiis, como cristos batizados podiam ser considerados hereges, portanto, mais suscetveis

    s severidades inquisitoriais (VAINFAS e HERMANN, 2005, p. 26-27).

    Se legalmente no havia mais judeus em Portugal, as relaes sociais estiveram em

    descompasso com a lei, pois no se fazia muita distino entre os termos judeu, cristo-

    novo e judaizante. Nessa nova configurao, os cristos-velhos no os consideravam como

    seus iguais, mas os tinham como cristos aparentes que renegavam ao cristianismo com suas

    prticas judaizantes.

    O que deveria ter correspondido a um processo de assimilao dos cristos-novos ao

    cristianismo, no foi isento de receios e atitudes de oposio por parte dos cristos-velhos, de

    modo que a situao jurdica do cristo-novo tornou-se objeto de polmicas teolgicas e

    jurdicas (CONTRERAS, 2003, p. 170-171). Como resultado, produziu-se um arcabouo legal

    de luta contra esse inimigo religioso e com o propsito de excluso e eliminao, os judeus

    foram considerados pela Inquisio como um perigo que ameaava a existncia da sociedadee a f catlica. A esse respeito, Siqueira (1971, p. 83) faz a seguinte considerao: Imperioso

    era pois sequestr-lo ao convvio da famlia, dos amigos, da profisso ou de seus bens, antes

    que voluntria ou involuntariamente viesse a causar males irremediveis. Essa afirmao

    expe o carter preventivo presente na referida legislao, ou seja, precaver a populao e o

    Reino da perfdia dos judeus.

    Desde 1532, foram editadas leis no sentido de impedir que os cristos-novos sassem

    do Reino sem a licena rgia. Estatutos de pureza de sangue e linhagem impossibilitavam queeles tivessem o status de verdadeiros cristos e serviam como medidas de segregao

    (CARNEIRO, 2005) das ordens religiosas e militares, dos corpos de ofcio e cargos de

    governana, bem como para que a Inquisio pudesse identific-los e persegui-los.

    Sonegavam a eles os direitos conferidos aos cristos-velhos (TAILLAND, 2001, p. 35) o que

    se estendia inclusive aos seus descendentes.

    Para compreender as razes dessa represso legal ao cristo-novo, preciso

    considerar que Portugal havia se consolidado como um Estado Moderno no qual a Razo do

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    Imprio identificava-se com a Razo da F, fazendo com que o seu destino se ligasse ao

    cristianismo.

    A defesa da religio era algo que interessava ao Estado, uma vez que Portugal se

    considerava o reino eleito por Deus para propagar e multiplicar o Evangelho de Cristo e levara Graa da salvao a todos os homens. Imprio e cristianismo, dessa forma, se confundiam, o

    que exigia o envolvimento de Portugal na luta contra infiis e herticos. Na conscincia

    coletiva portuguesa, Imprio e F, nacionalidade e cristianismo, patriotismo e catolicismo

    formavam unidades ideais que impulsionavam os portugueses ao servio da Ptria e da Igreja

    (REALE, 1977, p. 93). Isso fez com que a Igreja, que precisava do auxlio do Estado no

    combate as heresias (especialmente para o cumprimento das penas, j que os representantes

    de Deus no podiam sujar-se com o sangue dos condenados), possusse enorme influnciasobre o poder temporal.

    Segundo Chain (2003, p. 39) o resultado disso que as imbricaes da legislao

    laica e da legislao eclesistica em Portugal tornavam-se visveis nas publicaes,

    ordenaes e regimentos expedidos pelos dois poderes. Tanto o , que os procedimentos

    adotados pelos Tribunais Seculares e Tribunais Eclesisticos para os crimes de heresias (que

    tambm foram considerados como crimes de lesa-majestade) eram os mesmos

    (NASPOLINI, 2000, p. 131).Para Novinsky (1983, p. 68), isso permitiu que a Inquisio se convertesse em um

    poderosssimo Estado dentro do Estado e Souza (1986, p. 284) vai alm, ao afirmar que a

    Inquisio portuguesa foi um Estado acima do prprio Estado.

    De fato, o Estado Absolutista e a Igreja Catlica compuseram uma estrutura ampla e

    onipresente de poder, que no admitia infiis e hereges e os eliminava. Alis, a vigncia desse

    Direito, manifestamente repressor e excludente, coerente com aquele momento histrico,

    pois como manifestou Martn (2007, p. 97):

    A viso daquele que demonstra com seus atos no ser capaz de se orientarpelo Direito, como um indivduo que, por isso mesmo deve ser expulso dasociedade, surge constantemente na filosofia tica e poltica pr-moderna emoderna muito mais desenvolvida.

    E a apostasia do cristianismo e o criptojudasmo, com suas prticas judaizantes,

    foram considerados relevantes delitos contra a Igreja Catlica e o Estado portugus. Por mais

    que se reconhea que a Inquisio em Portugal tenha sido estabelecida pela Monarquiaportuguesa, para atendimento de interesses do Estado portugus, relevante considerar

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    tambm que nem sempre ela esteve em inteira harmonia com este, tendo ocorrido diversos

    choques da instituio eclesistica com a instituio temporal.

    A Inquisio portuguesa e as visitaes do Santo Ofcio ao Brasil

    A origem da Inquisio remonta dcada de 30 do Sculo XIII (BAIGENT e

    LEIGH, 2001, p. 38; MERLO, 2003, p. 25) e desde 1376, Eymerich (1993, p. 132-3), em seu

    Directorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores), j fazia contemplar critrios

    relacionados alimentao para reconhecer os judeus convertidos e que continuavam fiis ao

    judasmo:

    Sobre a questo da comida, Simancas afirma que o fato de no comer carnede porco ou de no beber vinho so indcios suficientemente claros de quepertencem ao judasmo ou ao islamismo. No vamos exagerar! Osestmagos no suportam todas as comidas, nem todas as bebidas. E taisindcios, por si ss, no poderiam ser conclusivos. Sem contar que qualquer

    judeu convertido, que jamais tenha experimentado certas carnes, pudessefacilmente habituar-se a um outro tipo de comida! Por outro lado, haveriauma suspeita gravssima se o filho ou os descendentes do convertidocontinuassem a se abster de certas carnes: por que se absteriam, seno porrespeito e reverncia a essa satnica seita judaica?

    Mas neste estudo interessa analisar a questo judaica a partir da Inquisio Moderna

    que, em 1478, foi introduzida na Espanha pelos reis catlicos Fernando de Arago e Isabel de

    Castela e, posteriormente, se estendeu para outros pases.

    Em Portugal, a Inquisio Moderna s se instalou no sculo XVI, pois a mesma

    Ordem Real de 30/05/1497, que havia criado a distino cristo-novo, tinha proibido as

    autoridades de realizar qualquer inquirio sobre a vida e as atividades religiosas dos mesmos

    nos vinte anos seguintes (SARAIVA, 1994, p. 34). Conferiu-se esse tempo para a assimilao

    da f crist. Alm disso, por um Monitrio de 12//10/1535, perdoaram-se os crimes de

    heresia e apostasia da F at essa data (CASCUDO, 1984, p. 94-95), de modo que somente os

    que fossem posteriores a ela podiam ser denunciados.

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    Foi somente no reinado de D. Joo III, o Piedoso (1521-1557), mais especificamente

    em 23/05/1536, por meio Bula Papal Cum ad nihil magis do Papa Paulo III, que se autorizou

    o estabelecimento do Tribunal da Inquisio em Lisboa (SARAIVA, 1994, p. 50). A

    Inquisio portuguesa consolidou-se em uma estrutura composta por quatro tribunais: Lisboa,com jurisdio de uma parte do centro do pas e de suas colnias de alm-mar no Atlntico,

    como o caso do Brasil; Coimbra, com jurisdio no norte e uma parte do centro do pas;

    vora, com jurisdio no sul do pas e Goa, com jurisdio sobre o Estado da ndia

    (BETHENCOURT, 2003, p. 220). Todos esses Tribunais eram subordinados ao Conselho

    Geral do Santo Ofcio.

    Como se pode constatar, por aproximadamente quarenta anos (1497-1536) os

    cristos-novos portugueses no estiveram sujeitos s perseguies e opresses inquisitoriais.H quem considere, como faz Saraiva (1989, p. 74-75), que a verdadeira causa para o

    estabelecimento da Inquisio em Portugal, antes mesmo da defesa das questes da f

    catlica, foi a necessidade de atender as dificuldades econmicas da Coroa portuguesa, j que

    ela podia beneficiar-se com o confisco das riquezas dos cristos-novos que fossem

    condenados. Seguindo a mesma abordagem, em obra mais aprofundada sobre o tema aqui em

    questo, outro Saraiva (1994, p. 127) procurou demonstrar que a inquisio portuguesa

    realmente converteu-se em uma verdadeira fbrica de judeus, expresso essa que tomou doPe. Antnio Vieira, que segundo Novinsky (2008, p. 72) foi a nica voz esclarecida e oficial

    que se ouviu em Portugal obscurantista e no resto da Europa a clamar pelo respeito aos judeus

    e pela igualdade de seus direitos.

    Ainda que essa posio tenha sido alvo de contestaes, sendo a mais destacada a do

    francs I. Silva-Rvah, conforme se pode verificar nos documentos relativos a polmica que

    se estabeleceu entre ele e Saraiva (SARAIVA, 1994, p. 211-291), um fato inegvel: os

    cristos-novos foram o inimigo eleito pela Inquisio portuguesa, que exerceu a sua ao

    repressiva at mesmo contra aqueles que se encontravam no Brasil. Levando em considerao

    todo o perodo de atuao da Inquisio portuguesa, Bethencourt (2003, p. 221) dimensiona

    que os cristos-novos representaram 80% dos processados pelos Tribunais de Coimbra e

    vora, e 60% no Tribunal de Lisboa.

    Apesar dessas divergncias, possvel admitir que a dubiedade religiosa dos

    cristos-novos e a beligerncia crist muito contriburam para que eles e seus descendentes

    fossem as vtimas expiatrias da Inquisio portuguesa. Manifestou-se contra eles um

    verdadeiro dio religioso e social, resultando em uma perseguio que determinou

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    modificaes significativas na sua composio social e econmica, ao produzir rupturas

    dramticas na coeso cultural que os unia. E assim continuou a ser, mesmo aps 1604,

    quando ocorreu o grande perdo aos crimes de heresia (HERSON, 2003, p. 48). Feitler (2005,

    p. 137-138; 2007, p. 63-82) demonstrou que a fora desse preconceito aos cristos-novos se

    perpetuou por uma vasta literatura portuguesa (como tratados, dilogos, sermes e panfletos)

    do sculos XVII e XVIII. Dessa forma, mesmo quando honesta a converso ao cristianismo,

    os cristos-novos foram permanentemente suspeitos de judaizarem.

    Pelas muitas atrocidades cometidas pela Inquisio, no sculo XVIII a Ilustrao j

    procurava feri-la de morte, de modo que na entrada do sculo XIX s permaneciam as

    inquisies da Espanha e de Portugal. Em Portugal, o Ministro Pombal ensaiou a supresso da

    Inquisio ao extinguir o Tribunal de Goa em 1774, mas a Inquisio portuguesa s foi

    efetivamente abolida em 1821, com a Revoluo Liberal. Por Alvar de 01/09/1774,

    estabeleceu-se um novo regimento para a Inquisio portuguesa e foi nomeado como

    Inquisidor Geral o Cardeal da Cunha, arcebispo de vora e sucessor do irmo do Marqus de

    Pombal. O alvar estabeleceu uma maior subordinao do poder espiritual ao poder temporal,

    tornando a instituio inquisitorial um instrumento do Estado e a seu servio (FALBEL, 2008,

    p. 154).

    Apesar das tentativas ocorridas entre os anos de 1621 e 1622 (VAINFAS, 1997, p.221), quando Filipe IV da Espanha reinava em Portugal, no Brasil nunca foi estabelecido

    oficialmente um Tribunal de Inquisio. Segundo Vainfas (1997, p. 222) a funo

    inquisitorial dos bispos foi o mecanismo utilizado para suprir a ausncia do Santo Ofcio na

    Colnia. O mesmo autor (1997, p. 223) observa que:

    (...) desde 1551 nossos bispos andaram visitando os territrios diocesanosem nome da Igreja e do Santo Ofcio, e remetendo uns poucos suspeitos para

    Lisboa. D. Pedro Sardinha visitou Ilhus, Pernambuco e Esprito Santo; D.Pedro Leito esteve em Itaparica, So Vicente, Santos, Bertioga e Rio deJaneiro; e D. Antnio Barreiros visitou Olinda, em 1590, antes que lchegasse o primeiro visitador inquisitorial.

    Assim, por meio de investigaes realizadas nas dioceses e conduzidas pelos bispos

    com o auxlio do clero local, os suspeitos eram presos e enviados em embarcaes para

    Lisboa e mantidos nas prises do Santo Ofcio portugus durante os longos anos em que se

    arrastava o processo (SIQUEIRA, 1971, p. 91). Tambm agiam os familiares do Santo

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    Ofcio, que eram agentes leigos da Inquisio, designados para espionar e prender os

    suspeitos.

    Outra forma de atuao era a Visitao, uma espcie de inspeo peridica

    determinada pelo Conselho Geral do Santo Ofcio, que designava um delegado comoVisitador. Esse enviado tinha a competncia para os casos mais simples, no entanto, atuava

    como juiz de instruo nos casos mais graves que deviam ser encaminhados ao Tribunal de

    Lisboa. Segundo registros at agora encontrados, o Santo Ofcio realizou as seguintes

    Visitaes oficiais ao Brasil, priorizando as Capitanias de Cima, que eram as mais prsperas e

    onde a maioria dos engenhos pertenciam aos cristos-novos: a primeira na Bahia (1591-

    1593) e em Pernambuco (1593-1595), sendo Visitador Heitor Furtado de Mendona; a

    segunda na Bahia (11/09/1618-26/01/1619), pelo Visitador o Licenciado Marcos Teixeira; e aterceira ao Par, Maranho e Rio Negro (1763-1769), sendo Visitador Geraldo Jos de

    Abranches. Fato que, desde meados do Sculo XVII, consolidou-se no Brasil uma rede de

    comissrios e familiares do Santo Ofcio em todo o pas, o que permitiu aperfeioar uma

    estrutura eclesistica que tornou mais constante as visitas diocesanas ou devassas, ordenadas

    pelos Bispos, substituindo, assim, as clssicas Visitaes do Santo Ofcio ao Brasil

    (VAINFAS, 1997, p. 225-227).

    Nas Capitanias de Baixo, ou do Sul, pode-se dizer que a atuao do Santo Ofcio foimuito menor, apesar do registro da visita do Inquisidor Apostlico dos Reinos de Angola, do

    Congo e dos Estados do Brasil, o licenciado D. Lus Pires da Veiga (GORENSTEIN, 2005, p.

    144), que alm da Bahia e Rio de Janeiro, nos anos de 1627 e 1628 chegou pela primeira vez

    na Capitania de So Vicente, So Paulo e Esprito Santo (FALBEL, 2008, p. 141). Sobre este

    aspecto, Salvador (1992, p. 171-172) observa:

    Presume-se, tambm, que a ao inquisitorial se tenha voltado para o Rio,

    agora, em virtude de sua notvel prosperidade e de que na mesma residiamnumerosos judeus e cristos-novos ricos. Ademais, era bastante significativoo relacionamento geogrfico e social com as Gerais, de onde estava saindotanto ouro. Mas, se o objetivo fundamental foi outro, a cupidez dosinquisidores e de seus auxiliares no esteve ausente, conforme as evidnciasdemonstram.

    Portanto, pode-se dizer que a presena do Santo Ofcio nas Capitanias do Sul s se

    fez mais presente a partir incio do sculo XVIII, especialmente no Rio de Janeiro.

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    5 Os cristos-novos no Brasil

    Depois de Gaspar da Gama, que em 1500 veio com a frota de Pedro lvares Cabral,

    ter sido o primeiro judeu converso a pisar as terras brasileiras (LIPINER, 1987, p. 106-107),

    muitos outros cristos-novos vieram para participar do povoamento da colnia portuguesa,

    entre eles Fernando de Noronha (em relao a ele h controvrsia se era realmente um cristo-

    novo, conforme indicam VAINFAS e ASSIS, 2005, p. 45), Joo Ramalho (que escandalizou o

    padre Manoel da Nbrega, considerando-o o exemplo perfeito de portugus que vivia em

    pecado nas terras brasileiras, pois moda dos ndios uniu-se a muitas mulheres. VAINFAS,

    1997, p. 39), Diogo lvares Correia (o Caramuru), Ferno dias Paes Leme, Diogo Fernandes

    e vrios outros (ALGRANTI, 2005, p. 28; PIERONI, 2003, p. 96-97).

    Aqui, as dificuldades da vida rudimentar e perigos de toda a ordem (ataques

    indgenas, grandes extenses de terras desconhecidas e dificuldades de comunicao com um

    poder central) contriburam para amenizar os muitos dios e desavenas que existiam entre

    cristos-velhos e cristos-novos. Sem querer dar qualquer sentido idlico a essas relaes,

    preciso admitir que a precariedade da vida, de alguma forma, contribuiu para que eles

    vivenciassem um esprito de fraternidade, em benvola tolerncia e condies de igualdade.

    Assis (2002, p. 51), esclarece que eles conviviam com:

    (...) problemas dirios maiores e mais imediatos que do que as questes daf, como a presena pouco efetiva do Estado, a carncia de vveres, a falta demateriais e ferramentas para as tarefas do trabalho cotidiano, o perigo deataque por animais selvagens, o risco de doenas tropicais, ou as ameaas deabordagens de piratas e do gentio indmito, entre outros, fazendo-os aliadosde primeira hora contra inimigos comuns e maiores do que as suspeitas deheresia religiosa na busca primordial pela sobrevivncia em ambienteinspito.

    Quando se estuda esse tema preciso considerar sempre que a convivncia em terras

    brasileiras foi uma empresa rdua para todos, uma vez que era uma questo de triunfar ou

    sucumbir juntos, ou seja, o destino de um era o do outro (SALVADOR, 1976, p. 239). Nesse

    sentido, a relativa harmonia em que puderam conviver com os cristos-novos at as primeiras

    aes na Inquisio em terras brasileiras, muitos colonos cristos-velhos assimilaram,

    consciente ou inconscientemente, prticas e costumes judaicos (SALVADOR, 1969, p. 187).

    A instituio da Inquisio em Portugal, no ano de 1536, fez com que muitos

    cristos-novos fossem degredados para o Brasil, pois o degredo havia se tornado uma pena

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    amplamente utilizada pelos juzes inquisitoriais desde o estabelecimento da Inquisio em

    Portugal (PIERONI, 2003, p. 9). Segundo o mesmo Pieroni (2003, p. 9) no Brasil, os

    cristos-novos degredados representavam mais da metade de todos os rus punidos com

    degredo. Deles, as mulheres constituam a maioria. Para Vainfas (1997, p. 41), Portugal teriautilizado sistematicamente o degredo como mecanismo colonizador do Brasil, mas como bem

    lembram Vainfas e Assis (2005, p 46-47): D. Joo III, celebrizado como o rei

    colonizador, foi tambm o monarca que inaugurou as perseguies religiosas contra a

    comunidade conversa do Reino(negritei).

    Para os cristos-novos que tinham condies de sair de Portugal para fugir da

    inquisio, o Brasil passou a ser um lugar de refgio para os cristos-novos, pois um oceanoos separava a colnia da Metrpole. Como pondera Salvador (1976, p. 215): estes homens

    eram pessoas de convico religiosa que preferiam submeter-se ao exlio a agir contra a

    conscincia. importante considerar tambm que na colnia brasileira a legislao

    discriminatria funcionava com menos eficcia (PIERONI, 2003, p. 87). Como expressou

    Cascudo (1984, p. 95): o Brasil foi a esperana da salvao vital. Rodolfo Garcia (apud

    CASCUDO, 1984, p. 95 e AZZI, 1987, p. 178) escreveu que:

    O Brasil continuava a ser, e continuou por muito tempo, o refgio e o lugarde degredo dos cristos-novos; refgio para os que podiam da metrpoleescapar s malhas do temeroso tribunal, degredo para os que, por culpasleves, saam por ele penitenciados, esses em menor nmero do que aqueles.A colnia vastssima, despoliciada dos zeladores do credo oficial, a uns eoutros permitia certa liberdade de ao, e sem receio da represso imediata,voltavam a eles natural e instintivamente s crenas ancestrais.

    Sobre o mesmo aspecto, Herson (2003, p. 30) considerou que:

    O apego vida, mais forte do que a razo, fez os cristos-novos portuguesesusar, para salv-la, todos os recursos e meios possveis; a emigrao para oBrasil, apesar de todas as dificuldades, era um deles. A, na vastido da terraque prometia a liberdade, viviam cristos-novos catlicos e cristos-novos

    judeus, ocupando-se com todo tipo de trabalho e exercendo todas asprofisses.

    Pode-se dizer que at a Primeira Visitao do Santo Ofcio ao Brasil, no ano de 1591,

    muitos dos cristos-novos sentiram liberdade para observar a f judaica e no compreendiam

    que nem todos eles no fizessem o mesmo. A esse respeito, Falbel (2008, p. 139) destaca:

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    Nas denunciaes da Bahia, e durante a Primeira Visitao, transparececlaramente o quanto os cristos-novos sentiram-se vontade para judaizar nacolnia distante da Inquisio continental e mais ainda os que seencontravam na longqua Capitania de So Vicente e na Vila de So Paulo.Pelo teor das denunciaes depreendemos o quanto se mostravam seguros aponto de no trabalhar no sbado, vestindo-se com roupas limpas,blasfemando e expondo suas crenas e praticando o seu culto nas esnogas.

    Essa realidade pode ser compreendida por uma classificao dada por Herson (2003,

    p. 52 e 53) aos cristos-novos que vieram ao Brasil: 1) os que eram judeus autnticos, que

    mesmo se apresentando publicamente como catlicos fervorosos, no mago do seu corao

    eram judeus e dentro de casa praticavam o judasmo, transmitindo essa f aos filhos, mesmosabendo o perigo que isso representava; 2) os que eram judeus inautnticos, que ele divide

    em dois grupos: a) os que fizeram negar e apagar os seus traos judaicos, procurando

    esconder o passado para a proteo de seus descendentes, que acabavam crescendo como

    bons catlicos. Esses cristos-novos, de alguma forma sofriam com essa situao que no

    criava um efetivo sentimento de pertencimento ao cristianismo e nem de total desligamento

    do judasmo, pois no se eliminava completamente a identidade e memria judaica. Em

    relao a esses, verificou-se que em momentos de liberdade religiosa (como os que foram

    vivenciados na invaso holandesa ao Brasil 1624-1654) e de exposio mais intensa

    violncia da Inquisio, existiram aqueles que abraaram novamente a antiga f, tornando-se

    apstatas do cristianismo e judeus autnticos; b) ao segundo grupo pertenceram aqueles que

    destruram em si o judasmo, assimilando-se plenamente ao cristianismo, tornando-se at

    mesmo anti-semitas ferrenhos e perseguidores impiedosos dos judeus.

    E como salienta Herson (2003, p. 53) todos eles e seus descendentes de todas as

    ocupaes e profisses faziam parte da populao do Brasil nos primeiros sculos.Aqui eles

    integraram todas as posies sociais, ocupando cargos na administrao, no sacerdcio, eram

    senhores de engenho, mdicos, advogados, comerciantes, bandeirantes, mas tambm

    exerceram ofcios humildes.

    Embora os judeus fossem conhecidos por sua sociabilidade endgena bastante

    pronunciada, aqui os cristos-novos tambm vivenciaram os anseios dos muitos colonos, em

    que se destacam, por exemplo, a maior liberdade sexual e o desejo de enriquecer e ascender a

    escala social.

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    Aqui eles se dissolveram no sangue nacional miscigenando, pois como indica

    Novinsky (1972, p. 58): miscigenou-se com a populao nativa, criou razes profundas na

    nova terra, integrando-se plenamente na organizao social e poltica local.

    Outra forma de integrao foi o casamento dos cristos-novos no Brasil colonial.Sobre ele, Assis (2002, p. 51) manifesta que:

    O grande nmero de casamentos entre cristos-velhos e novos, embora emparte possa ser explicado pela escassez de mulheres brancas no ultramardisponveis para o matrimnio, tornando disputadssimas as mooilas defamlia neoconversa, mostravam-se bastante justos para ambas as partes: seaos homens de sangue-puro interessava mulheres brancas, mesmo que custa de um matrimnio com donzelas crists-novas, para a famlianeoconversa a filha servia de negociata na busca da diminuio da poro de

    mcula hebraica e das presses sociais dela oriundas, conseguindo-secasamentos com pessoas influentes e de boa situao econmica, o que nodeixa de ratificar a maior aceitao social destes enlaces e diluio dosatritos nos convvios entre os grupos. Sem contar os grossos dotes que porvezes acompanhavam as filhas procura de marido, tornando-as ainda maisatraentes.

    H que se lembrar aqui que D. Manuel, o Venturoso (1495-1521), havia proibido o

    casamento endogmico entre cristos-novos, pois como observam Vainfas e Hermann (2005,

    p. 38) visava inseri-los nas famlias crists-velhas, estimular a assimilao da religio oficiale a melhor educao religiosa dos decendentes. Contudo, Gorenstein (2005, p. 152-153)

    indica que no Brasil Colnia os cristos-novos:

    Desenvolveram estratgias de sobrevivncia, que no foram as mesmas nasvrias regies do pas. Enquanto na Bahia procuraram casar-se fora do grupocristo-novo, no Rio de Janeiro tiveram um comportamento nitidamenteendogmico, casando-se principalmente entre cristos-novos.

    Gorenstein (2005, p. 148) estima que mais de 66% dos casamentos realizados no

    Rio de Janeiro foram de cristos-novos que se casaram com cristos-novos.

    Na Bahia, no sculo XVI, dos sete filhos do casal cristo-novo Heitor Antunes e Ana

    Rodrigues, seis casaram-se com cristos-velhos. Heitor e Ana chegaram ao Brasil em

    28/12/1557, na armada que trouxe o Governador Mem de S, e instituram nas terras do

    Matoim uma extensa famlia patriarcal que congregava cristos-velhos e novos (VAINFAS e

    ASSIS, 2005, p. 53).

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    Foram esses casamentos de crists-novas com cristos-velhos (j que na colnia o

    nmero de homens brancos era maior que o de mulheres e o casamento de cristo-novo com

    crist-velha era algo incomum) que contriburam para criar uma circularidade cultural que

    introduziu prticas judaizantes no cotidiano de boa parte da populao e que acabaram por se

    converter em costumes familiares que eram transmitidos s novas geraes. A esse respeito,

    Assis (2002, p. 52) manifesta que:

    Mesmo alguns cristos-velhos, a princpio insuspeitos de criptojudasmo porserem isentos de qualquer mcula sangunea, confirmariam esta realidade aoreconhecerem a adoo de alguns destes hbitos definidores do judasmo porignorncia, tornando-se comparsas involuntrias do criptojudasmo braslico.

    importante enfatizar que a colonizao do Brasil, no sculo XVI, foi acompanhada

    de um processo de aculturao crist e que equvocos religiosos ocorriam at mesmo entre os

    representantes da Igreja que, por despreparo, no eram rigorosos conhecedores da prpria f

    pela qual zelavam. Alm disso, considerando que no deixaram de existir clrigos de origem

    crist-nova, h que se considerar aqui o que expe Salvador (1969, p. 189) que: o clero

    cristo-novo entrou com sua parte na formao religiosa, moral e cultural do Brasil, quer de

    modo positivo, quer de modo negativo. Se uns tomaram a srio a f catlica, outros amenosprezaram, cultivando eles prprios o judasmo. Assim, clrigos de origem crist-nova

    teriam fechado os olhos ao judasmo no pas (SALVADOR, 1969, p. 56). Alis, h que se

    destacar que a prtica do criptojudasmo tambm se verificava entre religiosos e religiosas em

    conventos e mosteiros de Portugal (SANTOS, 2006, p. 333).

    Mas, aps a inquisio portuguesa ter estendido o seu brao para a colnia ultramar,

    isso fez com que diminusse consideravelmente os que realmente se dispunham mostrar as

    suas diferenas. Foi mais corrente que s assumissem a sua condio judaica apenas na esfera

    domstica, procurando faz-lo com uma discrio que no deixasse traos.

    Portanto, qualquer possibilidade de sobrevivncia do judasmo entre os cristos-

    novos se deu apenas no mbito familiar, sendo judeu em casa e catlico fervoroso fora. Mas

    carecia-se na sociedade colonial de uma vida integralmente privada. Espionados

    constantemente por olhares inquisidores, a vida cotidiana dos cristos-novos era

    rigorosamente vigiada e devassada, tanto pelos vizinhos, quanto pelos escravos que entravam

    e saam dos recintos das casas (PIERONI, 2003, p. 37-38; ALGRANTI, 2007, p. 96-97). O

    outro era uma ameaa permanente, um delator potencial. De fato, as pessoas eram

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    estimuladas a buscar os sinais da nao como: roupas limpas e jias finas; descanso nos

    sbados; alimentao (os que no comiam carne de porco e de certas aves; descobrir se

    jejuavam em determinados dias); lavar as casas nas tardes de sexta-feira; acender velas novas

    aps o cair do sol na sexta-feira; o modo pelo qual enterravam seus mortos. Como exemplodessa realidade pode-se tomar o caso do dramaturgo Antnio Jos da Silva, o Judeu, morto

    em 1739, que foi denunciado por uma escrava de sua me (WIZNITZER, 1966, p. 140).

    Proibidos de manifestar publicamente a sua f e de ensinar o judasmo, a religio

    judaica acabou por limitar-se ao ambiente domstico da famlia crist-nova. Barros (1989, p.

    34) destaca a importncia do ambiente familiar como sendo um espao em que essas

    recordaes podem se reavivadas, pois como complementa Bosi (2003, p. 54):

    A comunidade familiar ou grupal exerce uma funo de apoio comotestemunha e intrprete daquelas experincias. O conjunto das lembranas tambm uma construo social do grupo em que a pessoa vive e ondecoexistem elementos da escolha e rejeio ao que ser lembrado.

    Nesse espao, a mulher passou a se destacar como a transmissora de muitos

    fundamentos e tradies do judasmo, mesmo sem ter estatuto sacerdotal. Cuidando da casa,

    criando seus filhos e preparando a comida, ela cumpriu esse relevante papel.

    O judasmo sempre se apresentou com uma ntida diviso religiosa entre os gneros:

    ao homem recaia a obrigao de estudar as leis judaicas, o que em regra era feito nas escolas

    hebraicas e sinagogas (ento proibidas de funcionar, embora tenham existido, mesmo sem

    autorizao, esnogas como as de Matoim e Camaragibe, que eram espcies de sinagogas

    informais ou locais de reunies para o cultivo da lei mosaica) e s mulheres a prtica dessas

    leis que regulam a vida cotidiana, ou seja, como guardis do lar, dos rituais e da comida

    kasher (que cumpre as exigncias da lei ritual judaica). Sobre essas mulheres crists-novas,

    Assis (2002, p. 47) afirma:

    Dentre os delatados, chama a ateno o significativo nmero de mulheres,baluartes da resistncia judaica, difusoras de sua cultura e tradies para asnovas geraes. Responsveis pelo ambiente domstico, seriam as grandespropagadoras do judasmo secreto e diminuto que se tornara possvel aps asproibies de livre crena no mundo portugus a partir de 1497, e ainstaurao da Inquisio, em 1536, quando os lares passaram a representarpapel preponderante para a divulgao das tradies dos filhos de Israel.

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    Dessa forma, por intermdio delas, as cozinhas e as refeies tornaram-se espaos e

    momentos privilegiados para o reencontro com tradio e a histria religiosa dessas famlias.

    Essas mulheres ao elaborarem, manipularem e trocarem as receitas dos alimentos,

    preservavam a memria familiar. Essas receitas eram, normalmente, transmitidas oralmente

    ou por escrito de uma gerao outra. Os pratos servidos, seus odores e sabores, alm de

    portadores da memria religiosa, contribuam para reconstituir e perpetuar a histria do povo

    judeu.

    A importncia disso pode ser reconhecida, se pensarmos que frente perseguio

    inquisitorial, era justamente essa comida consumida no ambiente familiar um dos poucos elos

    do judasmo que ainda era possvel preservar e transmitir para as novas geraes.

    A alimentao dos marranos no Brasil Colnia: identidade e memria religiosa

    Coagidos a negar o judasmo, muitos cristos-novos manifestavam exteriormente as

    crenas e prticas do cristianismo, com o propsito de serem reconhecidos publicamente

    como cristos, mas no seu ntimo no abandonavam totalmente os preceitos judaicos, que

    continuavam a observar secretamente, mesmo frente aos graves perigos das aes da

    Inquisio. O desejo de pertencer ao povo de origem fazia parte da sua existncia.Assim, o criptojudasmo compreendido como observncia em segredo dos

    preceitos religiosos do judasmo tornou-se uma forma de resistncia religiosa e preservao

    da identidade judaica. Esses cristos-novos que judaizavam foram denominados de marranos.

    Tal procedimento no foi isento de conflitos psicolgicos, o que levou a fragilizao

    dos referenciais identificatrios e ao conflito de identidades, pois como afirma Novisnky

    (2007, p. 29):

    Obrigados a viver divididos entre dois mundos, um externo e outro interno,um visvel e outro oculto, burlando leis, trocando nomes, jogando compalavras e com a sorte, os portugueses que tinham antepassados judeusficaram marcados pelos seus traumas psquicos, o que afetou indelevelmentea sua prpria criatividade.

    Nesse contexto, a manifestao especial do marranismo que interessa aqui analisar,

    foi a observncia de regras religiosas especficas aos alimentos e alimentao, como um

    meio de resguardar o equilbrio emocional. Sobre esta relao entre alimento e equilbrio

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    emocional, cabe transcrever uma interessante observao de Algranti (2005, p. 18) sobre esse

    povo da dispora:

    Muitos dos hbitos culinrios judaicos resultaram de uma segregao social,obrigando o imigrante a se adaptar forosamente a novas formas de viver,em grande parte limitadas pelas adversidades que encontrou. , entretanto,atravs da comida, nos arraigados hbitos de alimentao, que o imigrante,muitas vezes destroado, humilhado, apega-se a um dos poucos elos que lherestaram, entre o passado, seus antepassados, sua gente e um mundodesconhecido e rido, com o qual se defronta.

    necessrio reconhecer que a alimentao do marrano tornava-se um valioso

    elemento de identidade religiosa. Existia uma conexo direta entre a ingesto de certos

    alimentos e a identidade dos indivduos, pois o alimento fazia confirmar essa identidade, na

    medida em que ele contribua diretamente para a composio da prpria substncia fsica e

    espiritual das pessoas. Nessa perspectiva, possvel concordar com Carneiro (2003, p. 112),

    quando ela afirma que:

    A alimentao assume assim a funo de distinguir religiosamente os povospara os quais a dieta torna-se um assunto muito mais transcendente do que amera satisfao do estmago (...) A histria dos alimentos, portanto, tambm

    se imbrica com a histria das religies.

    Em relao s regras religiosas de proibio ou restrio alimentar, preciso

    considerar que elas normalmente esto relacionadas a representaes de pureza e impureza,

    considerando-se como puro o que se possa oferecer em sacrifcio a Deus. Nesse sentido,

    impe-se pensar o corpo do fiel como equivalente ao altar, de modo que se tomando o corpo

    por altar, altar por corpo, as regras que protegem a pureza do tabernculo vo de encontro

    com aquelas que protegem o fiel(DOUGLAS, 2006, p. 163). Elevando-se a esse patamar, o

    significado da pureza depende do sentido que tem a tremenda majestade de Deus

    (DOUGLAS, 2006, p. 173).

    Sobre o sentido religioso e identrio da alimentao judaica, Soler (1998, p. 91)

    esclarece:

    S falta nos perguntarmos a que poderiam servir todas essas restriesimpostas alimentao (pois h muitas outras maneiras de honrar adivindade). A resposta se encontra, da maneira mais explcita na Bblia:

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    Sou eu, o Senhor, vosso Deus, que vos separeis desses povos, e assim fareisdistino entre o animal puro e o impuro, entre a ave pura e a impura, e novos torneis vs mesmos imundos por causa de animais, de aves e de tudo oque rasteja sobre a terra, em suma, de tudo o que separei de vs, como

    impuro (Lev. 20, 24-25).Nessa ordem de mundo em que tudo se funda em uma rede de separaes,o povo hebraico no deve se misturar com os outros povos. Ele definidocomo um povo que vive parte e no classificado entre as naes (Num.23, 9). por isso que os israelitas no devem partilhar as refeies dosgoyim. A alimentao prescrita serve de isolamento. A proibio dosalimentos impuros exerce o mesmo papel que a proibio dos casamentosmistos, entre hebreus e estrangeiros (Dt. 7, 3). Em ltima instncia, poucoimporta de que constituda essa comida, desde que ela se diferencie da dospovos ao redor. Com a simples ressalva de que as diferenas indispensveisno so sem importncia: elas foram elaboradas a partir de uma concepodo mundo que d ao povo hebreu a sua identidade.

    Desse modo, impe-se reconhecer, repita-se, que a despeito do perigo que

    representava para os cristos-novos a observncia de condutas e regras alimentares

    judaizantes, destacadamente por se ter feito isso no seio de uma sociedade catlica que os

    perseguia, foi justamente nelas que eles puderam encontrar poderosas foras de agregao e

    identificao social. Foi uma luta pela identidade, no sentido que nos dado por Prez (1985,

    p. 29):

    Identidade , ao mesmo tempo, um sentimento e uma idia, sentida a nveldas emoes, do aparato psquico e da cognio, enquanto formulao deuma imagem de si mesmo, ou seja, como uma representao. A constituiodo sentimento/idia de identidade como um processo psicossocial abrange asdimenses do ser enquanto indivduo singular e concreto e enquanto sersocial plural e abstrato imerso em relaes sociais-historicamentedeterminadas.

    Apresentados diariamente sobre a mesa da famlia crist-nova, os alimentostornavam-se, assim, sustento para a vida fsica e a vida moral e religiosa, tanto dos indivduos,

    como dos grupos. Seus descendentes, mesmo sem saber preservavam o judasmo, de modo

    que mesmo sendo criados no catolicismo, a alimentao contribua para que no perdessem

    totalmente as suas razes judaicas. Assim, conscientemente ou no, eles de algum modo

    permaneceram unidos s suas tradies religiosas.

    Nesse aspecto, convm observar que o complexo fenmeno do marranismo no se

    reduz apenas ao criptojudasmo (NOVINSKY, 2007, p. 30. At pelo fato dos criptojudeus no

    terem constitudo uma homogeneidade monoltica entre os cristos-novos dos sculos XVI a

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    XVIII. KAPLAN, 2000, p. 344), mas se estende para abranger tambm aqueles descendentes

    dos conversos que, mesmo inconscientemente, continuavam ligados a uma cultura religiosa

    judaica por costumes alimentares. Gorenstein (2005, p. 152) lembra que:

    Os cristos-novos estavam inseridos na sociedade colonial. Assemelhavam-se aoscristos-velhos em todos os aspectos; viviam como eles, vestiam-se, comportavam-se da mesma maneira. Conviviam com eles, eram padrinhos de seus filhos, faziamnegcios, freqentavam suas casas.

    Porm, eram diferentes.

    E a identidade ou a conscincia dela, nasce da diferena, de modo que a identidade

    depende da diferena, pois como afirma Bourdieu (2007a, p. 164) a identidade social define-

    se e afirma-se na diferena. Toda identidade relacional, ou seja, depende, para existir, de

    algo fora dela (WOODWARD, 2007, p. 9) que a faa distinguir daquilo que ela no , ou

    seja, a diferena estabelecida por uma marcao simblica relativamente a outras

    identidades (WOODWARD, 2007, p. 14).

    Revestida de simbolismo, a alimentao contribua para manter os seus membros

    ligados s tradies familiares e religiosas, uma vez que muito da vida judaica encontrava-se

    centralizado em torno da mesa. Alimentos consumidos em datas especiais (como o

    casamento, a inaugurao de um novo lar, a gravidez ou morte de um ente querido) se

    ligavam aos diversos momentos de celebrao da vida judaica, enobrecendo as tradies e

    expressando uma cosmogonia. Eram, usando as palavras de Contreras (2007, p. 16), pratos-

    ttem que carregavam em si valores simblicos e marcavam a identidade do grupo. Em

    relao s crianas, tinham um elevado contedo pedaggico, pois os hbitos alimentares

    contrados na infncia consolidavam um patrimnio que possibilitava a rememorao da

    identidade judaica nas geraes posteriores, pois como adverte Claval (2007, p. 64) o regime

    alimentar da infncia permanece um dos traos mais indestrutveis da cultura. Sobre a

    criana, Garine (1987, p. 5) considera que pela alimentao ela recebe desde o nascimento a

    marca de sua cultura. A reao emocional da criana aos alimentos que sua cultura apresenta

    como sendo bons para ela um elemento de sua integrao social.Para Mintz (2001, p. 32),

    os hbitos alimentares podem mudar inteiramente quando crescemos, mas a memria e o

    peso do primeiro aprendizado alimentar e algumas das formas sociais aprendidas atravs dele

    permanecem, talvez para sempre, em nossa conscincia. Apoiado em Bourdieu (2007b, p.

    346), possvel afirmar que essa transmisso cultural produzia indivduos dotados dosistema de esquemas inconscientes (ou profundamente internalizados), o qual constitui sua

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    cultura, ou melhor, seu habitus, ou seja, em suma, de transformar a herana coletiva em

    inconsciente individual e comum.

    Assim, na medida em que a memria coletiva era exteriorizada e reproduzida pelos

    quadros sociais que faziam preservar o judasmo no Brasil Colonial, por meio de modos de

    conhecimento praxeolgicos como o da produo e consumo de alimentos, o movimento de

    interiorizao pelos cristos-novos confirmava o habitus religioso, que orientava aqueles que

    eram dotados de um mnimo de competncia religiosa judaica. Mas como essas tradies

    alimentares judaicas no estavam isentas a mudanas e negociaes de sentidos frente s

    adversidades brasileiras, cabe aqui levar em considerao a afirmao feita por Srgio Miceli

    na introduo ao livro A economia das trocas simblicas de Bourdieu (2007b, p. XLI) sobre

    a flexibilidade do habitus:

    Com efeito, o habitus constitui um princpio gerador que impe um esquemadurvel e, no obstante, suficientemente flexvel a ponto de possibilitarimprovisaes reguladas. Em outras palavras, tende, ao mesmo tempo, areproduzir as regularidades inscritas nas condies objetivas e estruturaisque presidem a seu princpio gerador, e a permitir ajustamentos e inovaess exigncias postas pelas situaes concretas que pem prova sua eficcia.A mediao operada pelo habitus entre, de um lado, as estruturas e suascondies objetivas, e de outro, as situaes conjunturais com as prticas por

    elas exigidas, acabam por conferir prxis social um espao de liberdadeque, embora restrito e mensurvel porque obedece aos limites impostos pelascondies objetivas a partir das quais se constitui e se expressa, encerra aspotencialidades objetivas de inovao e transformaes sociais. O habitusvem a ser, portanto, um princpio operador que leva a cabo a interao entredois sistemas de relaes, as estruturas objetivas e as prticas. O habituscompleta o movimento de interiorizao de estruturas exteriores, ao passoque as prticas dos agentes exteriorizam os sistemas de disposiesincorporadas.

    Mas, se de um lado o guardar as regras religiosas alimentares serviu para a

    preservao da identidade religiosa judaica, de outro o fato do judasmo ser uma religio

    manifestamente marcada por regras bastante especficas e precisas quanto aos ritos e preceitos

    de pureza, que seus adeptos deviam observar na sua alimentao, contribuiu para que os

    cristos-novos se tornassem vulnerveis perante aqueles que os perseguiam.

    No que se refere s leis dietticas (Kashrut) observadas pelos judeus, essas so

    encontradas, principalmente, no terceiro e no quinto livro do Pentateuco: no Levtico

    (especialmente no Captulo 11) e no Deuteronmio (Captulo 14). Tais regras probem comer

    alimentos e animais considerados impuros (tarefah), como, por exemplo, os animais que no

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    ruminam e que no tem cascos fendidos; peixes sem escamas e barbatanas; animais hbridos

    tambm so rejeitados, como os anfbios, peixes com pele e os moluscos.

    Dessa forma, ao judeu, entre outros comportamentos alimentares, impe-se que ele

    faa ablues antes de comer o po; antes e depois das refeies os alimentos devem serabenoados; o abate ritual dos animais obrigatrio; proibido comer os frutos de rvores at

    trs anos aps o seu plantio; no se pode consumir leite e carne juntos; o vinho deve ser

    fabricado exclusivamente por judeus religiosos; durante os sete dias da pscoa judaica todas

    as bebidas feitas com cereais fermentados so proibidas; desde o momento da morte at o

    enterro, os familiares no podem comer carne ou beber vinho.

    Constata-se que a excluso social dos cristos-novos se dava pela marcao

    simblica da diferena do que eles comiam e como comiam, bem como por aquilo que elesno comiam. Por marcao simblica, entenda-se como o meio pelo qual damos sentido a

    prticas e relaes sociais, definindo, por exemplo, quem excludo e quem includo. por

    meio da diferenciao social que essas classificaes da diferena so vividas nas relaes

    sociais (WOODWARD, 2007, p. 14).

    Como Bethencourt (2000, p. 49) destaca:

    A cultura administrativa inquisitorial uma cultura baseada na classificaoe na identificao. [...] O papel da Inquisio consistiu em produzir os meiosde reconhecimento dessas heresias, no apenas do ponto de vista dogmtico,mas tambm das prticas culturais especficas (nomeadamente a propsitodos cristos-novos de origem judaica ou dos moriscos, cujas tradiesgastronmicas ou hbitos de higiene podiam ser considerados indcios dedesvio religioso).

    Nesse contexto, as suspeitas de judasmo podiam nascer de pequenos detalhes, como

    os relacionados alimentao, pois mesmo se os cristos-novos consumissem a carne de

    porco em outros lugares, exclu-la da mesa familiar j era um indicativo de judasmo. Sobreeste aspecto, Garcia (2000, p. 10) ressalta:

    (...) o porco adquiriu um papel importante, para alm de sua apreciada evariada culinria, desmascarando e acusando hereges e infiis. De tal formaque comer toucinho, presunto ou qualquer outro produto porcino,transformou-se num sinal inequvoco de cristandade. E, conseqentemente,todos aqueles que o recusavam eram irremediavelmente acusados de judeusou de maometanos e sobre eles caa implacvel a Inquisio. Pode-se dizerque, nessas pocas, um dos mtodos mais certeiros e infalveis para

    descobrir os falsos convertidos era a comida: no comer porco ou consumir

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    carne nos dias de abstinncia, ou guisar com azeite em vez de banha, noseguir os jejuns da Quaresma: qualquer destes atos delatava-os.

    E o prprio Garcia (2000, p. 49), complementa:

    Se o fato de comer porco era uma mostra inequvoca de cristandade, ocontrrio, isto , a abstinncia do mesmo, considerava-se prova irrefutvel deheresia judaica ou maometana. O Tribunal da Inquisio prendeu eencarcerou numerosos conversos ou cristos-novos pelo simples fato deterem sido denunciados pelos seus vizinhos com acusaes to peregrinascomo a de que nunca se lhes via deitar nem toucinho nem banha de porcona panela.

    Convm destacar ainda que possvel que os visitadores e demais agentes da

    Inquisio no Brasil tenham se orientado pelo Monitrio do Inquisidor Geral de D. Diogo

    da Silva (apudCASCUDO, 1984, p. 96. Veja tambm PIERONI, 2003, p. 74-75), datado de

    vora, 18/11/1536, embora Vainfas (2005, p. 20) considere isso improvvel, observando que:

    O monitrio utilizado foi, provavelmente, o baseado no Regimento de 1552ou no Edital da F de 1571, elaborados no tempo em que o cardeal D.Henrique, irmo de D. Joo III e tio-av de D. Sebastio, era o inquisitor-

    mor do Santo Ofcio portugus. Monitrio muito calcado, verdade, no de1536, porm acrescido das culpas que, nesse intermezzo, passaram jurisdio inquisitorial.

    A relevncia do Monitrio de 1536 se deve ao fato dele detalhar os indcios de

    prticas judaizantes e conter regras especficas para a identificao da alimentao judaica.

    Veja-se:

    Item, se degolam a carne e aves, que h de comer, forma e modo judaico,atravessando-lhe a garganta, provando e tentando primeiro o cutelo na unhado dedo da mo, e cobrindo o sangue com terra por cerimnia judaica.

    Item, que no comem toucinho, nem lebre, nem coelho, nem aves afogadas,nem enguia, polvo, nem congro, nem arraia, nem pescado que no tenhaescama, nem outras cousas proibidas ao judeu na lei velha. (D. Diogo daSilva apudCASCUDO, 1984, p. 96)

    O Monitrio tambm no descura de indicaes relacionadas a observncia do

    Shabat, da Pessach (pscoa judaica em que comem o po zimo) e dos jejuns judaicos,

    como o Yom Kipur (que o jejum maior, do dia da Expiao, em que pedem perdo uns

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    aos outros) e o Jejum da Rainha Ester. No escapam sequer os relacionados morte de um

    judeu: Item, se por morte dalguns ou de algumas, comeram ou comem em mesas baixas,

    comendo pescado, ovos e azeitonas por amarguras (D. Diogo da Silva apud CASCUDO,

    1984, p. 97).Da aplicao desse Monitrio, nos chegaram pelos registros deixados pela ao da

    Inquisio no Brasil, destacadamente as confisses, que neste estudo so utilizados como

    fontes documentais. Nesses documentos inquisitoriais possvel deparar com a vida

    domstica e social do cristo-novo e compreender o comportamento e a rotina da vida

    familiar fragmentadas desses cristos-novos, ou seja, no dizer de Vainfas e Assis (2005, p. 62)

    as metamorfoses culturais da religio no tempo e no espao. Mas cabe aqui considerar a

    advertncia de Guinzburg (1990/1991, p. 12), sobre esses documentos como sendo portadoresda verdade dos inquisidores, j que os prprios depoimentos, mesmo durante o Tempo de

    Graa, eram distorcidos por presses psicolgicas, alm do que importante considerar que

    quando se estuda os processos inquisitoriais h que se levar em conta que texto registrado era

    de autoria do prprio Visitador, que ditava ao escrivo os depoimentos dos confitentes.

    Mas, a despeito disso, por serem textos intrinsicamente dialgicos (j que a confisso

    tambm era composta de perguntas e respostas entre o inquisidor e o confitente) possvel

    extrair dessas confisses elementos que ajudam a revelar algumas particularidades daalimentao dos cristos-novos no Brasil Colonial.

    o caso, por exemplo, da confisso de Maria Lopes, uma crist-nova, ao Visitador

    Heitor Furtado de Mendona, feita em 03/08/1591:

    E confessando-se, disse que em todo o tempo que teve casa at agora,quando mandava matar alguma galinha, para rechear ou para mandar depresente, a mandava degolar e, degolada, pendurar e escorrer o sangue porficar mais formosa e enxuta de sangue, e que sempre, quando em casa de

    cozinha, digo se assa, quarto traseiro de carneiro ou porco, lhe manda tirar alandoa porque se assa melhor e fica mais tenro, e no se ajunta na landoa osangue evacuado, e assim mais, quando a carne de porco magra, algumavez a manda cozinhar lanando-lhe dentro azeite ou gro na panela com ela,e isto mesmo mandou fazer alguma vez carne de vaca quando era magra.(VAINFAS, 2005, p. 70-71)

    Segundo Vainfas (2005, p. 70), landoa talvez significasse gordura. Ao confessar, ela

    afirmou que no tinha com esses atos qualquer inteno judaica, mas o Visitador, no

    acreditando em sua sinceridade, j que tais prticas seriam notoriamente condutas judaicas,admoestou-a a confessar a verdade de suas culpas (VAINFAS, 2005, p. 73). A mesma prtica

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    se encontra na confisso de Catarina Mendes, crist-nova, no dia 18/08/1591 (VAINFAS,

    2005, p. 90), igualmente sem inteno judaica e que havia aprendido a tirar a landoa com

    Antnio lvares, cozinheiro da rainha.

    Outro exemplo o de Antnia dOliveira, crist-nova, que em 05/10/1591, confessou

    ter sido induzida em erro, por seu primo lvaro Pacheco, a realizar jejuns judaicos

    (VAINFAS, 2005, p. 163-167).

    Nesses processos encontra-se tambm uma destacada crist-nova, Ana Rodrigues,

    que em 01/02/1592 confessava:

    E confessando-se, disse que de quatro ou cinco anos a esta parte no come

    cao fresco porque lhe faz mal ao estmago, mas que o come salgado,assado, e outrossim, no come arraia, mas que nos outros tempos atrs comiaarraia e cao [...] (VAINFAS, 2005, p. 282)

    Sua filha Beatriz Antunes, na sua confisso de 31/01/1592, admitiu o jejum por

    ocasio da morte de parentes. Declarando inexistir inteno judaica em seus atos, afirmou:

    E que assim tambm, quando em casa se assava quarto de carneiro, lhemanda tirar a landoa por ter ouvido que no se assa bem com ela, e tambm

    no come lampreia, e mandando-lhe do Reino duas ou trs lampreias emconserva, ela no as comeu no por outra coisa nenhuma, seno porque lhetomou nojo, mas come os peixes sem escama, salvo os dgua doce, e nocome coelho. (VAINFAS, 2005, p. 278)

    Leonor, outra filha de Ana Rodrigues, em 01/02/1592, alm do jejum de oito dias de

    carne, por ocasio da morte de sua filha, admitiu:

    E que de seis ou sete anos a esta parte, por ouvir dizer que bom tirar as

    landoas aos quartos traseiros das reses midas, todas as vezes que em suacasa se assavam quartos semelhantes, lhe mandava tirar a landoa para seassarem.

    E que, haver dois ou trs anos, veio sua casa uma lampreia que veio doReino em conserva e ela no a quis comer por haver nojo dela, e virfedorenta, e no por outra alguma coisa, e que come os mais peixes semescamas e lhe sabem muito bem.

    E que haver um ano pouco mais ou menos que uma escrava degolou suagalinha defronte da sua porta, e que ela mandou lanar em cima do sangueque estava derramado no cho um pouco de p de serradura de madeira quese havia serrado, porque andava a por perto um porco e arremetia a ele parao comer, e isto fez porque o porco no ficasse inclinado a lhe comer ospintes. (VAINFAS, 2005, p. 289)

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    O cristo-novo Nuno Fernandes, igualmente filho de Ana Rodrigues, por sua vez

    afirmou ao Visitador:

    E confessando, disse que haver quatro anos que sua irm Violante Antunesmorreu, e que no dia que ela morreu, ele, com nojo, no comeu nada todo odia, e sendo domingo o dito dia, no quis comer carne e somente noitecomeu peixe, porm que no sabia que isto era cerimnia judaica, nem elecom essa inteno o fez, somente com nojo. (VAINFAS, 2005, p. 299)

    Como j se disse anteriormente, Ana Rodrigues era casada com Heitor Antunes,

    casal que chegou ao Brasil em 28/12/1557, com a armada do Governador Mem de S. Essa

    clebre famlia de cristos-novos orgulhava-se em dizer ser descendente dos bblicos

    macabeus (VAINFAS e ASSIS, 2005, p. 51), e foram os responsveis pela esnoga do

    Engenho de Matoim. Em 1591, ano da chegada do Visitador Heitor Furtado de Mendona, o

    patriarca Heitor Fernandes j era falecido (o que no impediu que fosse denunciado.

    VAINFAS e ASSIS, 2005, p. 53). Sua esposa e as suas filhas, estas que eram casadas com

    cristos-velhos, pela suspeita pblica que judaizavam, ficaram conhecidas como Macabias,

    de modo que elas foram alvo de muitas acusaes, sendo a principal denunciada a matriarca

    Ana Rodrigues, acusada, entre outras coisas, de preparar pes zimos, no comer carne e fazeras refeies em mesa baixa (VAINFAS e ASSIS, 2005, p. 54). Segundo indicam Vainfas e

    Assis (2005, p. 54-55):

    Os prprios maridos cristos-velhos das filhas e sobrinhas de Heitor e Anano se furtaram de acus-las na mesa inquisitorial, um pouco para selivrarem da pecha de omissos, cumprindo a convocatria do Edital de F,outro tanto para de algum modo aliviar a presuno de culpa que poderiarecair sobre as mulheres.

    Essas pessoas pertencentes ao cl do falecido Heitor Antunes (a viva, os filhos e

    netos) compareceram espontaneamente Mesa da Visitao, amedrontadas com o clima de

    denncias que foi deflagrado j no Tempo de Graa da Primeira Visitao, pois os confitentes

    tambm aproveitavam desse momento para acusar outras pessoas.

    Todos esses fatos levaram o Visitador a concluir que se tratava de um caso tpico de

    transmisso familiar do judasmo. Julgada e condenada, Ana Rodrigues s foi sentenciada

    aps a sua morte que ocorreu em 10/10/1593. Aproximadamente dez anos depois, em

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    09/05/1604, foi queimada em efgie, tendo sua memria amaldioada e seus ossos

    desenterrados e feitos p pelo fogo para apart-los das ossadas crists do cemitrio

    (VAINFAS e ASSIS, 2005, p. 60-61) e por ordem do Santo Ofcio, um retrato seu, em estilo

    burlesco, foi colocado na igreja de Matoim. Como se pode concluir, o cl do Antunes foi uma

    ocorrncia manifesta do criptojudasmo no Brasil Colonial. Como bem ressaltam Vainfas e

    Assis (2005, p. 62):

    Um criptojudasmo domstico j muito mesclado com elementos docatolicismo, incorporando mesmo cristos-velhos no grupo de convvio e nafamlia dos judaizantes. Criptojudasmo este marcado pela intensificao dopapel feminino como baluarte da antiga f, alando as mulheres ao papel degrandes divulgadoras da lei judaica aos descendentes. Embora descoberta,denunciada, presa e condenada pela Inquisio, Ana Rodrigues conseguirapassar aos filhos os ensinamentos da sua f. Suas filhas e netas, mesmodenunciadas e processadas levariam frente costumes e prticas aprendidascom os fundadores do cl de Matoim.

    Na sua anlise das Confisses da Bahia, Vainfas (2005, p. 23-24), considera que:

    tem-se mesmo a impresso, em vrios casos e relatos, de tratar-se, antes, da reiterao de

    certos usos conservados pela tradio familiar, sem maior conexo com a vivncia do

    judasmo que deles se suspeitava.De tudo o que foi dito at agora, h que se considerar que a condio de cristos

    convertidos fez com que tambm ocorresse entre os cristos-novos uma profunda

    interiorizao do cristianismo. Quanto mais se distancia do ano de 1497 e se aproxima do de

    1773, possvel acreditar que as suas sucessivas geraes fossem perdendo seus laos com o

    judasmo, ou seja, caindo no esquecimento, na medida em que os quadros sociais formadores

    da memria judaica tradicional foram se fragmentando ou desaparecendo (HALBWACHS

    apudSEIXAS, 2001, p. 103). Gorenstein (2005, p. 153) ressalta:

    Com o tempo, foi ficando cada vez mais complicada a prtica do judasmo.As regras e costumes da lei de Moiss se apagavam gradualmente damemria, medida que a comunidade crist-nova ficava cada vez maisisolada do mundo oficial judaico fora da pennsula Ibrica.

    As dificuldades de comunicao, a proibio da manuteno de escolas, doensino da Bblia e do hebraico, e principalmente o perigo mortal de serdescoberto pela Inquisio, limitaram as prticas judaicas s poucas leismantidas na memria. No era um judasmo nem profundo, nem ortodoxo;era uma transmisso oral de conhecimentos daqueles que conheciam melhoras tradies judaicas. O fato de serem educados como cristos fez com que o

    judasmo se mesclasse com o cristianismo [...].

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    Perdidos os vnculos com o judasmo tradicional, os descendentes dos conversos

    tiveram uma apreenso intelectual muito restrita dessa religio, cujo conhecimento reduzido,

    simplificado e nebuloso (PIERONI, 2003, p. 78), normalmente, decorria de fontes secundrias(como as apreendidas no mbito domiciliar e nos crculos de parentesco e amizade), alm de

    terem sido educados por instituies catlicas (KAPLAN, 2000, p. 358), o que fez com que

    isso se tornasse um significativo obstculo cultural para a integrao deles ao judasmo e

    resultasse em uma importante abertura para a adoo de crenas sincrticas. Como j afirmou

    Assis (2002, p. 48), o cristo-novo foi uma espcie de elo de ligao entre o judeu e o

    cristo.

    No mesmo sentido manifesta Pieroni (2003, p. 93):

    A vida do cristo-novo era constituda de uma mescla de cultos judaicos ecatlicos. Os costumes da tradio hebraica foram, em muitas famlias,transmitidos a seus filhos e netos, e, pouco a pouco, de gerao em gerao,a identidade original tornava-se hbrida, irregular e essencialmentedomstica, devido inexistncia de sinagogas.

    Sem excluir totalmente a possibilidade de permanncia do criptojudasmo entre

    cristos-novos brasileiros at o sculo XVIII (FALBEL, 2008, p. 30), inclusive com aexistncia de sociedades secretas de criptojudeus (NOVINSKY, 2005, p. 180-181), h que se

    considerar o que bem observa Gorenstein (2005, p. 154): No sculo XVIII, j eram cristos

    h mais de dois sculos, portanto, no exatamente novos.

    Dessa forma, suas identidades eram transformadas e refundidas, o que confirma a

    transitoriedade dos processos identrios. So mutveis, flexveis e transformam-se conforme

    a poca, os lugares e mesmo conforme a idade cronolgica do indivduo ou do grupo (WASSERMAN, 2001, p. 8). Isso dava aos cristos-novos uma mobilidade entre os diferentes

    territrios da identidade religiosa, fazendo com que ela no revelasse integralmente nenhuma

    das identidades religiosas (crist e judaica), mas guardasse traos de ambas.

    Em relao a muitos cristos-novos possvel afirmar que mesmo quando perderam

    a sua identidade judaica, eles mantiveram uma memria judaica.

    Em sendo assim, Le Goff (2003, p. 469) est correto quando afirma que a memria

    um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cujabusca uma das atividades fundamentais dos indivduos e das sociedades de hoje, na febre e

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    na angstia. Nisso concorda Pollak (1992, p. 204) que afirmou que a memria um

    elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual quanto coletiva.

    Simblica e abstrata, a identidade encontra-se ligada s vivncias, experincias e

    afetos concretos (WASSERMAN, 2001, p. 9). E nesse sentido que para DaMatta (1987, p.

    22) o ato de comer cristaliza estados emocionais e identidades sociais, de modo que um

    verdadeiro sistema de comidas totmicas permite exprimir identidades sociais (DA

    MATTA, 1987, p. 23).

    Sendo assim, os alimentos e comidas que eram servidos nas mesas dos marranos,

    bem como a forma especial de os comer, eram verdadeiras manifestaes de suas identidades

    sociais e religiosas.

    Concluso

    Das muitas possibilidades simblicas da comida (que o alimento transformado em

    cultura) judaica, a principal delas a de permitir a mediao com o sagrado. Transmitida s

    sucessivas e novas geraes, ela tambm possibilita o estabelecimento de uma comunho com

    a histria do povo hebreu, definindo e marcando as identidades pessoais e grupais de seus

    membros.Historicamente, as comunidades judias, pela fora da sua religio, tm sido

    portadoras de elementos scio-culturais que as fazem ser distintas das demais, o que se pode

    observar nas suas tradies em prticas culinrias e hbitos alimentares, marcadas que esto

    pela observncia de regras religiosas e transformadas em poderosas foras de agregao e

    identificao social.

    Desse modo, pode-se dizer que o judasmo podia ser sentido no odor das cozinhas

    das famlias de marranos do Brasil Colnia, que procuravam conservar na clandestinidade a fjudaica.

    Vtimas da perseguio religiosa que orientava a misso de manter a pureza da f

    catlica em terras e colnias portuguesas, eles se revelavam diferentes dos cristos nas

    prticas alimentares, suscetveis, portanto, delao e perseguio inquisitorial.

    No estavam imunes a essa perseguio nem mesmo quando o consumo ou a rejeio

    de certos alimentos era totalmente isento de qualquer conscincia ou contedo religioso, ou

    seja, ainda quando fossem apenas costumes familiares herdados de seus antecessores.