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entre as culturas judaica e contemporânea DIÁLOGOS

Dialogos entre culturas judaica e contemporânea

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Cientes da importância dos impressionantes avanços tecnológicos dos últimos séculos para a vida moderna, um grupo crescente de pessoas com formação universitária e conhecimentos de cultura judaica sentiu a necessidade de prover, com uma linguagem sintonizada com nosso tempo, e, concomitantemente, mantendo o conteúdo original, uma interface entre as culturas judaica e contemporânea. Esta publicação surge para preencher uma lacuna cultural de grande relevância para todos aqueles que apreciam uma leitura simpática e agradável, e reúne autores de grande versatilidade e profundos conhecimentos em suas áreas de atuação.

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entre as culturas judaica e contemporâneaDIÁLOGOS

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea

© Direitos para a língua portuguesa adquiridos pelo Instituto Cultural Interface, que se reserva a propriedade desta tradução. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização prévia, por escrito, do Instituto Cultural Interface.

Opiniões, críticas e sugestões podem ser enviadas para [email protected].

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Diálogo entre culturas judaica e contemporânea [livro eletrônico] / revisão Miriam Shuartz ; diagramação Michoel Regen. — S. Paulo : Instituto Cultural Interface, 2014.21711 kb ; PDF

Vários autores.ISBN: 978-85-68033-00-5

1. Cultura contemporânea 2. Cultura judaica 3. Judaísmo 4. Religião e cultura.

14-04234 CDD-296

Índices para catálogo sistemático:Cultura e Religião : Judaísmo 296

Diálogos entre culturas judaica e contemporânea

© 2014 por Instituto Cultural Interface

Autores:Yaco Alexander Kirzner Chirou

Joe FaintuchDaniela Guertzenstein

Joseph Harari e Gina Szajnbok HarariManu Marcus HubnerEnrique Mandelbaum

Moishe PaimIso Chaitz Scherkerkevitz

Ana SzpiczkowskiEduardo Zeiger

Yossef Zukin

Editores:Gina Szajnbok Harari

Joseph HarariManu Marcus Hubner

Alexandre MatoneMoishe Paim

RevisãoMiriam Shuartz

DiagramaçãoMichoel Regen

Sumário

Apresentação ............................................................................................................................viiSobre os Autores ........................................................................................................................ixEditorial ......................................................................................................................................xi

Crises Financeiras em ElulYaco Alexander Kirzner Chirou .................................................................................................1

Casamento: Influência Judaica no Direito BrasileiroDr. Joe Faintuch ..........................................................................................................................9

Autoridades RabínicasDaniela Guertzenstein .............................................................................................................21

Religião e CiênciaJoseph Harari e Gina Szajnbok Harari ....................................................................................37

Personagens da Bíblia Hebraica que Aparecem em Registros ArqueológicosManu Marcus Hubner ..............................................................................................................45

A Visão Racionalista da Bíblia: Maimônides e os Comentários da MishnáEnrique Mandelbaum ..............................................................................................................63

Visão Secular e Religiosa da Bíblia Hebraica, a ToráMoishe Paim ..............................................................................................................................75

O Direito de Religião no BrasilDr. Iso Chaitz Scherkerkevitz .................................................................................................105

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e InterdiscursividadeAna Szpiczkowski ...................................................................................................................123

Seja uma Abelha, não uma AranhaEduardo Zeiger .......................................................................................................................139

Verdade, Realidades Naturais e VirtualYossef Zukin ............................................................................................................................143

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Instituto Cultural Interface: diálogo entre culturas judaica e contemporânea

O Instituto Cultural Interface é uma associação sem fins lucrativos de caráter sócio-cultural, sem cunho político ou partidário, que objetiva criar uma interface com várias frentes de atuação entre as Culturas Contemporânea e Judaica.

FINALIDADE

Realizar estudos, pesquisas, cursos, aplicações práticas, publicações e eventos sobre as relações entre a cultura judaica e a cultura contemporânea.

MISSãO

Difundir o conhecimento multidisciplinar que fomente o diálogo da Cultura Judaica e suas filosofias com a Cultura Contemporânea, contribuindo para a elevação e compreensão dos objetivos do homem e da humanidade.

VISãO

Ser um centro de estudos, pesquisa, projetos e atividades reconhecido pela excelência de seu trabalho em sua área de atuação.

VALORES

O DIÁLOGO possibilita entendimento e aproximação entre pessoas.

O homem, através de CONHECIMENTO, SABEDORIA e COMPREENSÃO, é o único ser capaz de melhorar a si mesmo e ao mundo.

O ESTUDO leva ao aprimoramento do homem.

Apresentação

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 ix

Sobre os Autores

YACO ALExANDER KIRzNER CHIROuProfessor de Finanças Quantitativas e Gestor de Investimentos Financeiros. Ministrou au-las na USP, FGV, INSPER, FAAP e outras. Trabalhou em diversas instituições financeiras internacionais, como Citibank e Banco de Santander, no Brasil, USA e Reino Unido. Autor do livro “A Crise da Marolinha” e de vários artigos que analisam o conhecimento talmúdi-co em economia e finanças desde a perspectiva do conhecimento atual.

JOE FAINTuCHAdvogado e gestor patrimonial.

DANIELA GuERTzENSTEINPhD pelo programa de estudos judaicos e árabes do DLO/FFLCH/USP. MA em Comuni-cação Social/Jornalismo pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Professora de Cursos de Ensino Superior pelo Min. Educação e Cultura de Israel.

GINA SzAJNBOK HARARIGraduada em Análise de Sistemas pela Faculdade de Tecnologia – FATEC-SP, Pós-Gra-duação em Gestão de Projetos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP e Analista Sênior de Suporte aos Canais Eletrônicos do Banco Itaú-Unibanco S.A., desde 1990.

JOSEPH HARARIGraduado em Física, Mestre em Oceanografia Física, Doutor em Meteorologia e Professor Livre-Docente em Oceanografia Física, pela Universidade de São Paulo, e Docente no De-partamento de Oceanografia Física, Química e Geológica, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, desde 1981.

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Sobre os Autores

MANu MARCuS HuBNEREngenheiro formado pela UFMG, mestre e doutorando em Letras pela USP.

ENRIquE MANDELBAuMPsicanalista, doutor em Letras pela USP, Orientador Educacional do Colégio Lubavitch. Autor do livro Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (SP: Perspectiva, 2003).

MOISHE PAIMEngenheiro eletrônico e rabino.

ISO CHAITz SCHERKERKEVITzProcurador do Estado de São Paulo, Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, Mestre em Direito, Professor Universitário.

ANA SzPICzKOwSKIPedagoga especializada em Orientação Educacional e Administração Escolar pela Facul-dade de Filosofia Ciências e Letras Castro Alves (1974), mestre em Psicologia da Educa-ção pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1984) e doutora em Semiótica e Linguística Geral pela Universidade de São Paulo (1996). Membro do Laboratório de Estudos da Intolerância - LEI da USP e do Instituto do Milênio, patrocinado pelo CNPq. Autora do livro: “Educação e Talmud: Uma releitura da Ética dos Pais”, 2a. ed. São Paulo: Humanitas, 2008.

EDuARDO zEIGERPhD em Genética e Professor Emérito no Departamento de Ecologia e Biologia Evolucio-nária da Universidade da Califórnia (UCLA) e CEO do Torah Science Foundation.

YOSSEF zuKINEngenheiro de Produção pela PUC-Rio, e Mestre em Desenho Industrial pela Domus Academy de Milão, além de ser ordenado rabino pela Ieshivá Pirchei Shoshanim de Bnei Brak - Israel. É Diretor de Operações do Grupo Bandeirantes (BAND) de Televisão, na sua Divisão de TV a Cabo, Internet Banda Larga, VoIP e Telecom, além de editor-chefe do Torah-m@il.

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 xi

Editorial

BS”D

O Instituto Cultural Interface foi for-mado com o objetivo de criar espaços para diálogos sobre a Cultura Judaica e a Cultura Contemporânea, e pesquisas em benefício da so-ciedade.

Cientes da im-portância dos im-pressionantes avan-ços tecnológicos dos últimos séculos para a vida moderna, um grupo crescente de pessoas com forma-ção universitária e conhecimentos de cultura judaica sen-tiu a necessidade de prover, com uma linguagem sintoni-zada com nosso tem-po, e, concomitan-temente, mantendo o conteúdo original,

uma interface entre as culturas judaica e contemporânea.

Apesar de que f loresce atualmente uma rica literatura científica em lín-

gua portuguesa, oriunda das mais diversas edito-ras e institui-ções de ensino e pesquisa, como também um nú-mero crescente de publicações sobre temas ju-daicos, poucas são as publica-ções em língua portuguesa que unem estes dois assuntos. Esta publicação sur-ge, então, para preencher uma lacuna cultural

Cientes da importância dos avanços

tecnológicos dos últimos séculos para a vida moderna, um grupo crescente de pessoas

com formação universitária e

conhecimentos de cultura judaica sentiu a necessidade de prover uma interface entre as

culturas judaica e contemporânea.

Editorial

xii Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

de grande relevância para todos aqueles que apreciam uma leitura simpática e agradável, e reúne autores de grande versatilidade e profundos conhecimentos em suas áreas de atuação.

Os artigos desta primeira publicação já mostram uma linguagem comum entre a Cultura Judaica e a Científica – disse-minada e incorporada nas nossas vidas.

O Instituto Cultural Interface tem conexões com outras entidades inter-nacionais de cunho semelhante. Nesta primeira publicação, o texto inicial é con-tribuição do Prof. Dr. Eduardo (Eliezer) Zeiger, que nos brindou com a palestra de inauguração do Instituto. Ele é Professor

Emérito no Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade da Califórnia (UCLA), PhD em Genética, autor de mais de 100 artigos científicos, cujo livro “Plant Physiology” é referência em diversas universidades do mundo, incluindo a Universidade de São Paulo. Alem disto, ele é o CEO do Torah Science Foundation, um instituto com objetivos semelhantes aos nossos.

Convidamos todos a participar com suas ideias e opiniões, a dialogar e propor novos enfoques e iniciativas, em benefício da difusão da cultura e do conhecimen-to, para tornarmos o nosso mundo um lugar cada vez melhor. ICI

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 1

No dia 5 de setembro de 1929, nos Estados Unidos, políticos, empre-

sários e acadêmicos viviam eufóricos a frenética expansão econômica, política e militar dos Estados Unidos. A Europa se recuperava da guerra e das crises econô-micas e hiperinflacionarias subsequentes e, em Nova York, um discreto professor de contabilidade prepara-va uma palestra sobre a bolsa.

O professor Roger Babson levava meses criticando a valori-zação dos preços das ações. Sustentava que as ações estavam mui-to acima do seu valor econômico e que uma violenta reversão era inevitável e iminente. Mas, como ninguém levava a sério seus comentários, naquele dia resolveu ser mais agressivo e direto, e disse: “Mais cedo ou mais tarde, o crash virá, e poderá ser tremendo”.

Os comentários foram igualmente ig-norados, mas o professor começou a ficar famoso; naquele dia, a bolsa caiu 2,4%, inaugurando a despencada geral e inter-minável da crise do ano de 1929. Aquele dia era o inicio do mês de Elul.

Por causa desta e de outras grandes quedas, existe um mito em Nova York de

que Setembro é o mês das grandes crises eco-nômicas, da volatilida-de, das grandes quebras e calotes. Este mito é sustentado por abun-dante evidência histó-rica, que sugere uma relação entre Setembro e as crises econômicas. Vamos testar esta re-lação sobre a ótica do

calendário judaico.O mês de Setembro normalmente cai

num período importante do calendário ju-daico, que começa com o mês de Elul e ocu-pa também quase todo o mês de Tishrei, o

Crises Financeiras em Elul

Yaco Alexander Kirzner Chirou

Uma crise econômica é

algo muito sério e preocupante em qualquer

época do ano.

Crises Financeiras em Elul

2 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

mês seguinte. Este período dura 53 dias e contém as festas de Rosh Hashaná, Iom Kipur e Sucot - para simplificar, chama-mos este período de PRIKS (Período Rosh Hashaná-Iom Kipur-Sucot). Dividindo os 365 dias do ano em períodos de 53 dias, tere-mos aproximadamente 7 períodos por ano.

Dos últimos 100 anos, selecionamos os dias das 30 maiores quedas do índice Dow Jones da bolsa de Nova York – veja a lista abaixo. Contamos um total de 21 dias. Dividimos estes 21 dias entre os 7 perío-dos do ano e concluímos que, no período PRIKS, deveriam ter ocorrido 3 destes dias. Porem, na realidade, foram 10.

Este resultado surpreende, porque signi-fica que a probabilidade desta relação existir é de 99,91%. Ou seja, podemos disser que não é por acaso que as grandes crises acon-tecem no PRIKS, com uma margem de erro de apenas 0,003% (como não é fácil definir o que são “grandes crises econômicas, vola-tilidade, grandes quebras e calotes”, foram feitos vários testes, incluindo ou excluindo diferentes eventos, utilizando diferentes distribuições de probabilidade e diferentes

parâmetros. Os resultados mudam pouco e continuam expressivos. Apresentamos apenas o teste mais conservador. Porém, se formos mais lenientes na inclusão de eventos, existem outros testes nos quais a probabilidade passa de 99,95%, com mar-gem de erro inferior a 0,000000001%).

Qual é esta relação? Podemos arriscar uma resposta desde a filosofia e o calen-dário judaico.

O mês de Elul é um período de preo-cupação, temor, autoavaliação e angús-tia, porque D’us nos julga no primeiro dia do mês seguinte, que é Rosh Hashaná, o começo do novo ano. Não é um simples julgamento de culpado ou inocente. D’us também julga, em primeiro lugar, se utili-zamos bem o ano de vida que passou e os recursos que Ele nos deu – como saúde e sustento. Em segundo lugar, Ele determina quanto de recursos receberemos durante o ano que começa. Se não tivermos um julgamento bom, é possível que tenhamos um ano com problemas e escassez.

Durante Elul devemos refletir, enten-der e reconhecer que erramos. Também, devemos assumir o compromisso de ten-tar melhorar durante o ano próximo, e

Crises Financeiras em Elul

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 3

com este objetivo, estabelecer metas que possamos cumprir. Se o compromisso e as metas forem convincentes teremos um bom julgamento e um ano “bom e doce”.

Quando chega Rosh Hashaná, D’us jul-ga duas levas. A primeira é daqueles que cumpriram o compromisso e as metas. Estes recebem mais um ano e a designação dos recursos necessários para as novas metas. A segunda leva julgada é daqueles que não recebem um ano mais. Temos aqui dois grupos. Um grupo é daqueles que já cumpriram sua missão no mundo, e um ano mais de vida não vai agregar nada, nem para eles nem para o mundo. D’us os chamará de volta durante o ano. O outro grupo é daqueles que já fizeram dano suficiente e não há possibilidade que mudem. Estes serão cortados do mundo durante o novo ano.

Para os demais, que são chamados os “do meio”, D’us adia o julgamento por 10 dias, até Iom Kipur. Ele nos dá a oportu-nidade de ter julgamento melhor. É um período angustiante, porque depois de ter percebido como, quando e por que erramos, vamos passar 10 dias entristecidos e arrepen-didos, pedindo um indulto que não sabemos se merece-mos nem se será concedido.

Chega Iom Kipur e D’us perdoa todo mundo, de uma vez, de maneira ge-ral e irrestrita. Este súbi-to perdão, depois de tanta aflição e incerteza, acontece

porque D’us gosta de nós e quer nos per-doar. Inclusive, Ele falou várias vezes na Torá, que neste dia ele vai nos perdoar (Lv 16:30; Nm 14:19-20).

Então, como fomos perdoados, ficamos felizes e começamos um período de alegria que vai até o fim da festa de Sucot. Mas não podemos esquecer que, atrás do perdão, houve um julgamento que fixou metas e estabeleceu recursos para o ano próximo, e que pode não ter sido tão bom.

Novamente D’us, que quer que tenha-mos um julgamento bom e uma vida signi-ficativa e feliz, nos dá outra oportunidade. A sentença só será promulgada no final de Sucot, e sua redação ainda pode ser alte-rada, o que proporciona mais 15 dias para tentarmos melhorar o julgamento. Assim, a alegria não é tão completa e permanece um discreto ambiente de temor e dúvidas.

Uma crise econômica é algo muito sério e preocupante em qualquer época do ano. Mas, para que a preocupação seja mais profunda e genuína, e ajude a produzir anos melhores e mais doces, D’us manda as crises nos PRIKS.

Existe um mito em Nova York que Setembro é o mês

das grandes crises econômicas, da

volatilidade, das grandes quebras e calotes.

Crises Financeiras em Elul

4 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

TabEla – CRISES E GRaNDES QUEDaS DaS aÇÕES NOS ÚlTIMOS 100 aNOS

EVENTO DaTa bOlSa DaTa HEbRaICa

Fora do PRIKS 30/7/1914 -6,91%  

Fora do PRIKS 1/2/1917 -7,24%  

Crash do ano 29 23/10/1929 -6,33% 19 Tishrei / Sucot

Crash do ano 29 28/10/1929 -12,82% 24 de Tishrei / 1o. Dia após Sucot

Crash do ano 29 29/10/1929 -11,73% 25 de Tishrei / 2o. Dia após Sucot

Crash do ano 29 6/11/1929 -9,92%  

Crash do ano 29 11/11/1929 -6,82%  

Fora do PRIKS 16/6/1930 -5,81%  

Grande Depressão I 24/9/1931 -7,07% 13 de Tishrei 

Grande Depressão I 5/10/1931 -6,78% 24 de Tishrei / 1o. Dia após Sucot

Fora do PRIKS 31/5/1932 -6,21%  

Grande Depressão II 12/8/1932 -8,40% Motzai T’sha ve Av

Grande Depressão II 5/10/1932 -7,15% 5 de Tishrei 

Fora do PRIKS 25/2/1933 -5,40%  

Fora do PRIKS 20/7/1933 -7,07%  

Fora do PRIKS 21/7/1933 -7,84%  

Fora do PRIKS 26/7/1934 -6,32%  

Fora do PRIKS 18/10/1937 -7,20%  

Fora do PRIKS 14/5/1940 -6,80%  

Fora do PRIKS 21/5/1940 -6,78%  

Presidente de USA sofre infarto. 26/9/1955 -6,54% 10 de Tishrei / Iom Kipur

“Black Monday I” 19/10/1987 -22,61% 24 de Tishrei / 1o. Dia após Sucot

“Black Monday II” 26/10/1987 -8,04%  

Fora do PRIKS 8/1/1988 -6,85%  

Mini Crash de 1989 13/10/1989 -6,91% 14 de Tishrei / Véspera de Sucot

Crise da Ásia 27/10/1997 -7,18% 27 de Tishrei / 1o. Dia após SucotCrise da Rússia, Hedge Funds

- LTCM 31/8/1998 -6,37% 9 de Elul 

11 de Setembro 17/9/2001 -7,13% 23 de Elul

Falência Countrywide 16/8/2007 -0,12% 2 de Elul 

Falência Northern Rock 14/9/2007 0,13% 2 de Tishrei / Rosh Hashaná

Falência Agencias F.Mae e F.Mac 4/9/2008 -3,00% 4 de Elul 

Falências Lehman e AIG 15/9/2008 -4,40% 15 de Elul 

Crise 2008 29/9/2008 -6,98% 29 de Elul / Rosh Hashaná

Crise 2008 9/10/2008 -7,33% 10 de Tishrei / Iom Kipur

Crise 2008 15/10/2008 -7,87% 16 de Tishrei / Sucot

Crises Financeiras em Elul

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 5

Vários dias do mesmo episódio de crise foram contados como um único episódio. Por exemplo, da crise de 2008 foi contada como um único episódio, mesmo tendo três dias. As falências não foram contadas.

CRONOlOGIaCrash do ano 1929.Durante 1929 a bolsa chegou a acu-

mular alta de quase 30%. No dia 5/9/1929, correspondente a 1 de Elul, aconteceu a primeira queda significativa do crash. Na véspera de Rosh Hashaná a queda atingiu 13%, e até os dois dias seguintes a Sucot passava de 25%.

Grande Depressão I – 1931Depois das quedas de 1929 a bolsa con-

tinuou caindo, inclusive durante 1930 e 1931. Em maio deste último ano parecia que a queda da bolsa havia chegado ao fundo do poço. Porém, no dia 14/8/31, correspondente a 11 de Elul, começou ou-tra queda livre. No dia 26 de Elul a perda já era de 10%, e até Iom Kipur chegou a 23%, culminando com a histó-rica queda de 10,7% no dia se-guinte ao fim de Sucot, o 5/10/31. Ao queda acumulada no período foi de 40%.

Grande Depressão II – 1932De novo o fundo do poço

parecia ter sido atingido. Entre junho e setembro de 1932 a bolsa acumulou 85% de retorno. Mas,

no dia 7 de setembro, correspondente a 6 de Elul, começou uma nova queda. Na véspera de Rosh Hashaná a perda chegou a 20%. No dia 5/10/1932, cinco dias antes de Iom Kipur, a bolsa perdeu 7,15%, e até Iom Kipur mais outros 20%.

Guerra na Ásia – 1937A guerra na Ásia tinha começado al-

guns anos antes, e até então não tinha refletido no resto do mundo. Os Estados Unidos continuavam com a política de iso-lamento e a Europa estava muito ocupada com sua recuperação econômica e com o eixo Nazifascista. Nos primeiros dias de agosto de 1937, que era o inicio de Elul, o clima bélico começou a afetar a bolsa e causou a queda de 7,20% no dia 18/10/1937.

Ataque cardíaco do presidente ame-ricano - 1955

Na madrugada do domingo 24/09/1955 o presidente americano, Dwight Eisenhower, sofreu um ataque cardíaco. Na segunda feira, que era Iom Kipur, a bolsa caiu 6,54%.

Crises Financeiras em Elul

6 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

“Black Monday” – 1987Durante 1987, até o início de Elul, a bol-

sa tinha acumulado mais de 40% de lucro. No dia seguinte começou a descida. No meio de Sucot houve um tombo de quase 4%, que elevou as perdas a mais de 10%. Começou um período de pânico e vendas frenéticas que culminou no primeiro dia após Sucot, com uma queda de 22,6%, a maior perda percentual diária da historia.

Minicrash de 1989Os mercados financeiros já vinham

sendo sacudidos pelo estouro da bolha dos “Junk Bonds”, ou “bônus-lixo”. No dia 13/10/89, os sistemas de trading eletrônico dispararam uma série de vendas encadea-das que só parou quando os computadores foram desligados. Era véspera de Sucot e a bolsa caiu 6,9%.

Crise da Ásia – 1997Durante 1997, a bolsa chegou a acumular

ganho de quase 30%. Durante o mês ante-rior a Elul, começaram os boatos sobre os problemas financeiros nas economias emer-gentes da Ásia. Nos primeiros dias de Elul, começaram as notícias que confirmavam os boatos, e as vendas dispararam. O processo

culminou com uma queda de 7,2% no pri-meiro dia após Sucot, no dia 27/10/1997.

Crise da Rússia – Crise dos “Hedge Funds”.

Em meados de agosto de 1998 a Rússia entrava numa crise típica de 3º mundo e ninguém imaginava que esta crise pudesse atingir Europa ou os Estados Unidos. Não obstante, nos primeiros dias de Elul, já se ouviam algumas vozes alertando para os novos e desconhecidos “Hedge Funds”. No dia 31/8/1998, correspondente a 9 de Elul, foram publicadas as primeiras noticias de prejuízos bilionários, inclusive no gigantesco LTCM (Long-Term Capital Management). Logo em seguida, uma reação em cadeia

Não podemos esquecer que, atrás do perdão, houve um julgamento que fixou metas e estabeleceu recursos para o ano

próximo.

Crises Financeiras em Elul

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 7

derrubou centenas de “hedge funds” e ban-cos, muito similar à crise de 2008.

11 de Setembro de 2001.O 11/9/2001 correspondia ao 23 de Elul.

No World Trade Center estavam localizados unidades operacionais e centros de compu-tação de dezenas de instituições financeiras, inclusive o Morgan Stanley, que ocupava 25 andares de uma das torres. Devido ao atentado de 11 de setembro, muitas insti-tuições ficaram impossibilitadas de operar. Somando-se este fato ao medo de novos atentados e à confusão reinante, a bolsa fechou e só abriu no dia 17/9/2001 - que era a véspera de Rosh Hashaná - e caiu 7,1%.

Crise das HipotecasDesde julho de 2007 se multiplicavam

os indícios e os boatos sobre problemas

nas maiores instituições do mercado de hipotecas. Entre elas estavam a financeira Countrywide e o banco Northern Rock. A primeira faliu no dia 16/8/2007, que era 2 de Elul, e o segundo no dia 14/9/2007, que era Rosh Hashaná.

Crise de 2008No dia 4/09/2008, um ano após as pri-

meiras grandes falências no mercado de hipotecas, o mercado assumia o colapso das gigantescas agências financeiras Fannie Mae e Freddie Mac. Para evitar a falência – e do mercado todo – o governo americano nacionalizou ambas as empresas no dia 7/9/2008, que era 7 de Elul. Uma semana depois, no dia 15 de Elul, faliu o gigante Lehman Brothers. A Merryl Linch entrou em colapso no quintal do Bank of America. Até o fim de Sucot a bolsa perdeu 25%. ICI

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 9

I – A Instituição “Casamento” no Judaísmo

“E disse o Eterno D’ us: Não é bom que o homem esteja só; farei para ele uma compa-nheira frente a ele”. (Gn 2:18)

A instituição do casamento é funda-mental e central na vida judaica, a

ponto de se afirmar que o judaísmo pode sobreviver sem a sinagoga, mas é incapaz de perdurar sem a família. O casamento não é uma criação humana, mas sim um mandamento divino expresso ao primeiro homem: “Portanto o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá com a sua esposa, e serão uma carne”. (Gn 2:24)

O casamento judaico é concebido como uma união sagrada, estabelecida e abençoada por D’us, caracterizando-se como forma de constituição da família, célula-base da sociedade judaica, em que

se assenta toda a transmissão dos valo-res religiosos e morais judaicos, além de ser uma oportunidade de se praticar, em primeiro lugar, o mandamento bíblico de “amor ao próximo”.

Uma vez que tamanha é a importância do casamento, o celibato é tido como infra-ção religiosa, inexistindo no aramaico (lín-gua utilizada no Talmud e demais livros sagrados) termo equivalente a “solteiro”. Tal importância pode ser justificada pelo fato de a família ter sido sempre a força do judaísmo, já que a maioria dos atos e experiências nevrálgicos do judaísmo requerem um ambiente familiar.

O casamento não se sustenta somente pela necessidade da reprodução e perpetua-ção da espécie humana, mas também pelo anseio que se tem de um companheiro, bem como para a realização individual de cada um. Acredita-se que o homem e a mulher foram criados como uma entidade única, por isso seu estado natural é de estarem unidos. Nem o homem nem a mulher são a “imagem de D’us” apenas se estão juntos.

Casamento:Influência Judaica

no Direito BrasileiroDr. Joe Faintuch

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

10 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

O Direito Pátrio, como não podia dei-xar de ser, reconhecendo a importância do matrimônio, passa a discipliná-lo, muitas vezes sob a influência da lei hebraica, do direito canônico e do direito português.

II – Do Casamento na Lei HebraicaII. 1- Conceito

Na religião em tela o casamento não é visto tão só como uma criação humana, mas como um mandamento divino ex-presso ao homem: “Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá com sua esposa, e serão uma carne” (Gn 2:24). É sobre a instituição do casamento que depende a vitalidade e a força do homem e da mulher em manter uma vida e cres-cimentos judaicos.

O casamento israelita não é apenas uma sociedade; é mais do que isto – é uma fusão. Enquanto cada um tem suas prerrogativas e responsabilidades, apesar de manter sua individualidade, espera-se que ambos, marido e mulher, saibam renunciar a ambições pessoais e egoístas quando essas contradisserem os interesses do lar. Assim estão criando uma nova entidade e personalidade chamada “Fa-mília”, através da qual cada um poderá desenvolver seu potencial.

Conforme reza a teologia judaica, o casamento é o estado humano ideal, sen-do considerado a instituição social básica estabelecida por D’us quando da Criação. Em se concebendo a Criação como um processo contínuo no qual o homem é sócio de D’us, o Judaísmo encara o matri-mônio como um modo de o ser humano participar na obra Divina.

Ao contrário do que muitos leigos apre-goam, essa religião não tem o casamento como fim único na procriação, a continui-dade da espécie. O matrimônio é concebido como um modo de constituição da família, célula-base da sociedade hebraica, onde se assenta a transmissão de todos os valores morais e religiosos e, principalmente, como a oportunidade maior de se cumprir o mandamento bíblico de amor ao próximo.

Muito mais do que a reprodução, a jus-tificativa maior do enlace matrimonial baseia-se na necessidade indispensável da cumplicidade, entre homem e mulher, para a realização interior do indivíduo.

II. 2- Requisitos para a validade do casamento

a) Capacidade legal dos Contraentes: Prevista na Guemará nos tratados de

Yebamot, p. 112b, Nidá, p. 45b, e Guitin, p. 70b.

A capacidade legal para contatar, in-clusive para contrair casamento dá-se com a maioridade que ocorre para os homens aos 13 anos e um dia e para as mulheres a partir dos 12 anos e um dia. Apesar de a mulher a partir da idade acima já ser

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 11

considerada maior, até a idade dos 12 anos e meio ela será relativamente capaz, en-contrando-se sob a tutela do pai; a partir de então sua capacidade é plena.

Informa o tratado talmúdico de Ki-dushin (p. 41a) que em se tratando de núp-cias contraídas por menores ou quando a noiva for relativamente capaz, mister a anuência dos tutores.

b) Consentimento dos ContraentesRequisito vital à validade do casamento.

É interessante notar que mesmo se tratando de uma noiva menor de idade ou relativa-mente capaz, a lei rabínica orienta ao pai que consulte sua filha no que concerne ao seu real desejo de se casar ou não, sob pena de nulidade, que pode ser invocada a qualquer tempo (Tossefta do tratado de Kidushin [p. 2b]). Tal requisito endossa a natureza contratual do casamento ju-daico. O consentimento deve ser espontâ-neo, nunca sob coação. Enquanto que em matéria civil a coação como um vício do ato jurídico torna o ato anulável, no que concerne ao matrimônio a coação invali-da de pleno o ato, uma vez que, tendo em vista o significado moral do casamento, o consentimento é da própria essência do ato.

c) TestemunhasSob pena de invalidade, o enlace ma-

trimonial deve ser presenciado por duas testemunhas legalmente qualificadas para tanto.

Nas transações comerciais de modo geral, as testemunhas atestam o ato, ou seja, caso sejam chamadas confirmam que a transação se consumou. Quanto ao casamento, a presença das testemunhas pertence à substância do ato, como parte integrante desse; afirmam elas a veracidade do ato que presenciaram através da assina-tura no contrato de casamento – a Ktubá.

Além de serem capazes legalmente, respeitadoras da lei, as testemunhas não podem ser parentes de nenhum dos nu-bentes, não podem ser cegos, vez que se requer delas que assistam a cerimônia, a colocação da aliança, por exemplo; surdos, mudos ou loucos de todo o gênero; que não tenham sido condenados por nenhum crime, que não tenham cometido perjúrio, e que não ajam grosseiramente.

II. 3- Impedimentos matrimoniais

Além dos requisitos anteriormente expressos requeridos para a realização

A instituição do casamento é fundamental e central na vida judaica, a ponto de se afirmar

que o judaísmo pode sobreviver sem a sinagoga, mas é incapaz de perdurar sem a família.

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

12 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

do casamento, devem ser obedecidas as proibições estabelecidas pela lei no que se refere aos impedimentos matrimoniais. Um casamento é nulo quando há um im-pedimento legal entre as partes.

II. 4- Natureza Jurídica Contratual – “A Ktubá” – O contrato nupcial

O casamento judaico é tido como união sagrada de respeito mútuo, lealdade, direi-tos e obrigações para ambos os contraentes, cuja natureza jurídica é indubitavelmente de um contrato não apenas de cunho espi-ritual, mas sim de um contrato com todas as acepções que o termo indica.

A forma definitiva da ktubá foi definida por Shimon bem Shetach, presidente do Sinédrio (Supremo Tribunal Rabínico), no século II-I A.E.C., que aperfeiçoou o documento até então existente, tornando-o um instrumento assecuratório dos direitos da mulher e da estabilidade do casamento, através do estabelecimento de cláusulas legais de cumprimento obrigatório.

Segundo evidências, até o 1º Exílio (586 A.E.C) o casamento consistia num ato pu-ramente oral; a partir de então passou a ser registrado por escrito, sendo enfim aperfeiçoado nos século II-I A.E.C. O contrato matrimonial judaico tem suas normas regulamentadoras arroladas na Mishná e na Guemará.

Há de se ressaltar que além daquelas cláusulas obrigatórias que devem constar em toda ktubá, as partes podem pactuar outras, de caráter particular, que se in-

cluirão no contrato. Todavia, essas não poderão contrariar o que reza o texto nor-mativo, não poderão infringir qualquer princípio de ordem pública. Em suma, as cláusulas do contrato em tela equivalem aos deveres do homem em relação à mu-lher, assumidos por ocasião do casamento, perante duas testemunhas.

A ktubá não é da essência do ato matri-monial, constituindo-se numa evidência desse, num registro assecuratório da esta-bilidade do casamento, uma vez que atra-vés de suas cláusulas, principalmente as de caráter financeiro, evita que se processe um divórcio por um ato impensado do marido. Por não ser da substância do ato, a não redação de um contrato de casamen-to não implica a ineficácia das cláusulas obrigacionais que, por estarem previstas

Enquanto cada um tem suas

prerrogativas e responsabilidades,

apesar de manter sua individualidade,

espera-se que ambos, marido e mulher,

saibam renunciar a ambições pessoais e

egoístas quando essas contradisserem os interesses do lar.

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 13

na lei, subsistem (Tratado de Ketubot [p. 16b]). Todavia, os sábios preocupados com a eventual desproteção da mulher que não tivesse uma ktubá, consideraram aconselhável, e moralmente obrigatória, a elaboração do referido instrumento legal, considerando o casamento sem ktubá” um concubinato, tendo em vista que a única diferença legal entre a esposa legítima e a concubina era a redação ou não da ktubá.

III – Influência Judaica no Direito MatrimonialIII. 1- No direito romano

De início cabe relembrar que conforme anteriormente disposto, o cristianismo não possuía em seus primórdios nenhu-ma normatização ordenada em matéria matrimonial, o que adveio somente com o Concílio de Trento, no século XVI E.C.

A importância da influência judaica pode ser indubitavelmente sentida pela inclusão, como fonte de Direito da “Moi-sacaraum et Romanarum legum Colla-tio” (Lex dei quam praecipit dominua ad Moysen), datada do século IV E.C. Como afirmam os romanistas, o Direito Pós-Clássico revela-se sobretudo pela sua influência oriental.

IV. 2 – No direito canônicoComo é de conhecimento notório, prin-

cipalmente no que se refere a seus aspectos históricos, o cristianismo sofreu inegável e incomensurável influência da religião e da lei judaica. Basta atentar para o fato de que Jesus e Paulo eram judeus pratican-tes, discípulos de dois grandes mestres, respectivamente, Hilel e Raban Gamliel. Nesse contexto, já afirmava Paulo que a Igreja era como um ramo de oliveira sil-vestre enxertado na árvore cultivada do povo judeu.

A herança cultural judaica sobre o cristianismo, perceptível ao mínimo pela admissão do Velho Testamento no cânone cristão, foi durante muito tempo e, por que não dizer, ainda é assunto desconhecido de muitos. Devido ao proselitismo cristão, sobretudo nos tempos primeiros e a con-sequente necessidade de dissociação das duas religiões, a influência judaica sobre o cristianismo passou despercebida por muitos estudiosos.

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

14 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

IV. 3 – No direito brasileiroO desenvolvimento da legislação ma-

trimonial brasileira ocorreu por influência de outros sistemas legais, sobretudo o do Direito Canônico e do Direito Português. Prova disso é o fato de que, por ordem do rei português D. Sebastião, os decretos ma-trimonias contidos no Concílio de Trento eram válidos em todo o seu reinado.

No Brasil Império foram adotadas como legislação as Ordenações do Reino Português, sendo ratificada a vigência dos decretos tridentinos através do decreto imperial de 3 de novembro de 1827.

O legislador constituinte de 1824 não se preocupou, na verdade, com a regula-mentação do casamento, uma vez que esse tinha caráter eminentemente religioso, estando subordinado às normas do Con-cílio de Trento e da Constituição do Arce-

bispado da Bahia. Submetido à jurisdição eclesiástica, era tido como válido apenas o casamento contraído entre católicos apos-tólicos romanos, tendo em vista que pela Constituição Imperial de 1824, no seu art. 5º, a religião Católica Apostólica Romana era a oficial do Império, sendo permitido o culto que não fosse católico tão somente no âmbito doméstico. Gradativamente, foram surgindo novas questões no que concerne ao casamento, não disciplinadas pela doutrina eclesiástica, ligadas ao pátrio poder, licença para casamento de menores, alimentos, dentre outras, que passaram a ser submetidas à legislação civil vigente, ou seja, às Ordenações do Reino de Portugal.

As crescentes ondas imigratórias para o Brasil geraram um grave problema no que se refere ao matrimônio de pessoas que não eram católicas, sendo logo sentida a neces-

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 15

sidade de se legislar a esse respeito. Assim, em 11 de setembro de 1861, foi promulgada a lei nº 1.114, ratificada pelo decreto de 17 de abril de 1863, reconhecendo o casa-mento de não católicos segundo o credo dos nubentes e ampliando a situação de jurisdição civil nas questões matrimoniais.

A necessidade da secularização do direito matrimonial, embora há muito suscitada, esbarrava na oposição clerical, que por sua vez exercia forte pressão sobre o governo imperial.

Somente com o advento da Repúbli-ca, deu-se a separa-ção entre a Igreja e o Estado, com a subsequente secula-rização da matéria matrimonial. Pelo decreto n.º 181, de 24 de janeiro de 1890, no seu art. 108, instituiu-se o casamento civil obrigatório, facultando-se aos noivos obser-var, antes ou depois do enlace matrimonial civil, o credo que lhes conviesse. Como já era de esperar, tal dispositivo encontrou forte oposição do clero, que se mantinha intransigente na adoção de novas normas, razão pela qual levou o Ministério da Jus-tiça a promulgar a Circular de 11 de junho de 1890 e o decreto 521, de 26 de junho de 1890, asseverando a exclusiva validade e reconhecimento do casamento civil.

Seguindo a mesma conduta, a Cons-tituição de 24 de fevereiro de 1891 reco-nheceu em seu art. 72, parágrafo quarto, a exclusiva validade do matrimônio civil,

cuja celebração seria gratuita. Daí em dian-te, a cerimônia religiosa tornou-se mera faculdade das partes, a ser realizada antes ou depois do casamento civil.

A celebração civil do casamento tem sua forma estatuída pelo Código Civil, datado de 1917, nos artigos 180 e seguinte.

A Constituição de 1934 admitia o ca-samento religioso com efeitos civis, desde que se proceda à habilitação, ao Registro e à observância das disposições da lei civil. Essa orientação foi mantida nas Cartas

Magnas seguintes, mantendo-se ainda hoje em vigor. Na Carta de 1988, art. 236, par. 1 e 2, re-conheceu-se que o casamento é civil. Sua celebração é

gratuita, tendo efeitos civis o casamento religioso, se contraído em consonância com os ditames legais.

VI – Considerações Finais

A influência legislativa do sistema legal judaico sobre o Direito Romano, o Direito Canônico e, enfim sobre o Direito Brasilei-ro, por ser matéria de difícil bibliografia e estudo, carece de maior atenção por parte

O casamento israelita não é apenas uma

sociedade; é mais do que isto – é uma fusão.

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

16 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

dos juristas, principalmente brasileiros. No que diz respeito à legislação matrimonial brasileira, preferem os autores nacionais testemunharem a influência canônica e romana, de mais fácil apuração; de fato, muitas vezes, desconhecem a fonte origi-nária de várias regras canônicas e roma-nas como a hebraica, como se pretende demonstrar.

Importante salientar que certos as-pectos da legislação matrimonial brasi-leira não são fruto da citada influência judaica, não obstan-te se possa constatar o avanço dessa le-gislação, que previa há mais de dois mil anos normas que só recentemente foram incorporadas pelo ordenamento pátrio, como é o caso de a mulher impugnar judicialmente, por mo-tivo justificado, a mudança de domicílio determinada pelo marido. Isso demonstra que o Direito Comparado não admite, nos dias atuais, a emissão de julgamentos que denotem o “primitivismo” ou a “moderni-dade” de sistemas jurídicos. O verdadeiro propósito do Direito Comparado é a análise comparativa de sistemas jurídicos, obje-tivando um conhecimento enriquecedor, motivado pelo valor cultural que encerra em si mesmo, e que pode propiciar inovações na vida jurídica nacional, sem manifestações de preconceitos de qualquer natureza.

A secularização do casamento brasilei-ro, tardia em relação aos estados europeus, não afastou a orientação bíblica de muitas das normas civis; como exemplo disso podemos citar os impedimentos matri-moniais.

O casamento, no Direito Brasileiro, consiste num modo de constituição de fa-mília. Tal concepção atribuída por muitos ao Direito Canônico, na verdade, reflete a

influência do Direito Hebraico, perceptí-vel, inicialmente, na narração bíblica da Criação, fundamen-to da doutrina matri-monial canônica. De fato, todo o significa-do do casamento no meio social e jurídico foi incorporado da doutrina canônica

que, nesse particular aspecto, inspirou-se nos conceitos e nas leis judaicas que, de modo ímpar na Antiguidade, dignificavam o matrimônio.

O reconhecimento do casamento como elemento formador da família legítima não impediu que o judaísmo reconhecesse o concubinato, embora com um significado social diverso do existente atualmente, outorgando-lhe um caráter semelhante à “entidade familiar” proclamada na Cons-tituição brasileira em vigor. A concubina, embora possuísse uma posição diferente da esposa legítima, tinha seus direitos respeitados no tocante ao matrimônio e

A secularização do casamento brasileiro, tardia em relação aos estados europeus, não afastou a orientação bíblica de muitas das

normas civis.

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 17

ao direito sucessório de seus filhos. Na prática, a diferença entre o concubinato e o casamento legítimo residia no fato de no último inexistir o contrato de casamento, a ktubá. Atribuir uma influência judaica ao concubinato, tal como hoje reconhecido pelo direito brasileiro, seria uma inverda-de desmedida. Na verdade, deve-se então ressaltar a modernidade e a humanidade da lei judaica, fundamentada na realidade social e destituída de preconceitos.

Coube à lei judaica inaugurar a con-cepção do casamento como contrato de caráter privado. Embora fosse reconheci-da sua importância no contexto religioso, emocional e social, o casamento era con-cebido como um ato particular das partes, de acentuado caráter civil, o que pode ser demonstrado pela necessidade de, quando de sua realização, elaborar-se um contrato por escrito, prática que remonta ao século VI A.E.C. Tal contrato, evidên-cia do ato formal do matrimônio, tinha por fim estabelecer os direitos e deveres das partes, protegendo a mulher parte hipossuficiente na relação matrimonial de uma sociedade patriarcal. Outrossim, a necessidade do consentimento dos nuben-tes e da necessidade da presença de duas testemunhas ao ato reforçam a natureza contratual do casamento e demonstram as preocupações judaicas com os efeitos civis decorrentes do matrimônio. Vale lembrar que o direito romano e o canôni-co não estipulavam a obrigatoriedade de documento escrito, comprobatório do ato matrimonial, ou de testemunhas. Essas

exigências passaram a surgir na doutri-na canônica somente após o Concílio de Trento, embora a natureza contratual do casamento canônico, e a necessidade de se exigir certas formalidades ao ato já fossem pressentidas há muito pelos cano-nistas, e propugnada por S. Agostinho. A regulamentação do casamento canônico como contrato e a exigência dos requisi-tos acima especificados demonstram a influência judaica que se fez sentir nos primeiros tempos, em que pela ausência de uma doutrina matrimonial própria, a Igreja incorporou muitas normas da lei judaica e do Direito Romano. No entanto, convém mencionar que a Igreja retirou da sua doutrina os efeitos patrimoniais decorrentes do matrimônio, que já eram previstos no Direito Hebraico, atribuindo a previsão de tais efeitos ao juízo secular.

A lei rabínica orienta ao pai que consulte

sua filha no que concerne ao seu real desejo de se casar ou

não, sob pena de nulidade, que pode

ser invocada a qualquer tempo. O

consentimento deve ser espontâneo,

nunca sob coação.

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

18 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Ainda, o consentimento dos nubentes, elemento essencial ao matrimônio válido, deveria ser o inicial, diferentemente da regra romana, que exigia o consentimen-to continuado. A ideia do consentimento inicial, originário da lei hebraica, trans-mitiu-se à doutrina canônica, com sua incorporação pelas legislações modernas.

A teoria da nulidade e anulabilidade do matrimônio, desconhecida pelo direito romano, embora atribuída pela doutrina ao direito canônico, reflete influência judaica. De fato, como se depreende da lei judaica constante da Mishná e do Talmud, havia dois tipos de impedimentos: os impedimen-tos que proibiam o casamento acarretando sua nulidade e os que, não obstante proi-bissem o casamento, não o invalidavam se infringidos, tornando-o apenas passível de anulação. Do exposto, percebe-se a nítida influência da lei judaica sobre a doutrina canônica, que, com tal denominação, trans-mitiu essa teoria a várias legislações mo-dernas, como é o caso do direito brasileiro.

Dentre os impedimentos dirimentes previstos na legislação pátria, a consan-guinidade e a afinidade merecem inicial-mente um enfoque especial. A legislação mosaica, prevendo minuciosamente os

impedimentos motivados pela consan-guinidade (incesto) e pela afinidade con-sistiu na primeira sistematização sobre a matéria. Como já foi abordado, a doutrina canônica incorporou, nos primeiros mo-mentos, a teoria da consanguinidade e da afinidade previstas no Direito Hebraico, especificamente no Livro de Levítico e no de Deuteronômio. Origem de toda a teoria do parentesco, a lei judaica serviu como base, fundamento, para todas as legisla-ções modernas, incluindo a brasileira, não obstante tendo essa sofrido, ao longo dos séculos, ampliações e restrições.

No Direito Brasileiro, tal qual prevê a lei civil, o matrimônio gera uma série de consequências pessoais e patrimoniais para os cônjuges, na medida em que faz nascer um vínculo entre as partes. As nor-mas civis que estabelecem o dever de fide-lidade recíproca1, mútua assistência2, são atribuídas por muitos à doutrina canônica e sua influência no nosso ordenamento; na verdade, o exame detalhado desses deve-res demonstra que, embora tenham sido

1. Vide inciso I do artigo 1566 do Código Civil em vigor.

2. Vide inciso III do artigo 1566 do Código Civil em vigor.

Origem de toda a teoria do parentesco, a lei judaica serviu como base, fundamento, para todas as legislações modernas, incluindo a

brasileira, não obstante tendo essa sofrido, ao longo dos séculos, ampliações e restrições.

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 19

transmitidos pela doutrina da Igreja, sua origem é judaica. O conceito do dever de fidelidade recíproca no Direito Hebraico primitivo, consubstanciada na proibição da poliandria, foi desenvolvendo-se aos poucos na medida em que a poligamia ex-tinguia-se; a proibição cristã da poligamia, elaborada por Paulo, reflexo das discussões rabínicas que antagonizavam monoga-mia e poligamia, induziu à estipulação da monogamia, fonte originária do dever de fidelidade recíproca, já preconizado por muitos rabinos. O dever de mútua assistência, cujo fundamento é atribuído ao Direito Canônico, também reflete a in-fluência judaica. Para os romanos, a mútua assistência só foi expressamente prevista no Digesto na época pós-clássica, quando também se passou a admitir a prestação de alimentos do marido à mulher. Ao con-

trário, na lei judaica, a mútua assistência foi concebida como elemento essencial do matrimônio sendo, inclusive, posta na ktubá uma cláusula para manutenção e o sustento em nível moral e econômico. A norma judaica serviu de fundamento à concepção cristã da essência do matri-mônio, a que a mútua assistência acha-se vinculada.

Interessante notar que o poder des-pótico que cabia ao homem no Direito Brasileiro, até o advento da lei 4.121/62 –, de fixar o domicílio da família, assim como no Direito Romano – com aquela lei a mulher passou a ter a possibilidade de impugnar judicialmente o domicílio escolhido pelo marido, se considerá-lo pre-judicial. Tal impugnação já era prevista no direito hebraico, constando expressamente das fontes antigas. Assim, concluímos pela

Casamento: Influência Judaica no Direito Brasileiro

20 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

atualidade da lei judaica e como essa tem o poder de influenciar outros sistemas, pela sua posição de vanguarda.

Vale lembrar que o Direito Canônico não regulamentou em sua legislação os efeitos patrimoniais advindos do casamen-to, matéria que era atribuída ao juízo laico.

Outro ponto em que a doutrina hebrai-ca inovou consiste na proteção da mulher por ocasião do divórcio ou falecimento do marido e sua fundamentação, estipulan-do-se, desde Shimon bem Shetach (século II A.E.C.), a reserva de uma importância para o sustento da mulher nesses casos em que se tornava desprotegida. Assim, podemos tranquilamente afirmar que a prestação alimentícia devida à mulher no direito moderno remonta a essa simplifi-cada forma indenizatória prevista na lei judaica. Em Roma, apenas no Direito Jus-tinianeu, concedeu-se à mulher o direito de receber alimentos do marido, norma advinda da posição privilegiada em que o cristianismo, fundamentado no judaísmo, posicionava a mulher.

A necessidade da redação por escri-to de um documento comprobatório da realização do matrimônio, materializado

no direito pátrio pela certidão do registro civil, foi inicialmente prevista pelo direito hebraico, uma vez que desde o século V A.E.C. havia um documento por escrito, um contrato, destinado a provar o ato ma-trimonial, garantindo assim a estabilidade do matrimônio e a proteção dos direitos dele decorrentes.

A constituição de uma hipoteca legal privilegiada sobre os bens do marido para servir como garantia aos bens dotais da mulher sob sua administração, determi-nada por Justiniano, foi regra incorporada da lei judaica, já que desde Shimon ben Shetach previa-se tal norma, que visava a proteção dos bens da mulher, evitando uma dilapidação por eventual má adminis-tração marital. Assim percebe-se a origem da norma prevista no art. 297 do Código Civil de 1916.

Diante de tudo o que foi exposto, resta clara a influência da lei judaica sobre o direito matrimonial pátrio, seja através do Direito Romano, seja através da doutrina canônica. O fato é que a lei judaica acabou se valendo do Direito Romano ou Canôni-co para manter-se presente, também, nos ordenamentos modernos. ICI

A necessidade da redação por escrito de um documento comprobatório da realização do

matrimônio, materializado no direito pátrio pela certidão do registro civil, foi inicialmente prevista

pelo direito hebraico.

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 21

De Moisés a Moisés não houve como Moisés1. De Moisés filho de Amram

e Yohevet do êxodo do Egito a Moisés bar Maimon se diz entre os judeus que não existiu ninguém como estes dois homens.

O primeiro Moisés é conhecido no ju-daísmo como Moshe Rabeinu, citado na Bíblia Hebraica como a autoridade máxima na formação de um povo em torno a uma Divindade Única. Este primeiro Moisés é conhecido por ter liderado o êxodo do Egito com a ajuda de seu irmão Aharon e por ter transmitido as leis e ensinamen-tos escritos e orientado oralmente seus seguidores pelo deserto até pouco antes da entrada na Terra Prometida.

Este primeiro Moisés é citado no Livro do Deuteronômio (último Livro do Pen-tateuco) por entregar aos lideres das doze tribos do povo de Israel e depositar na Arca do Testemunho as escrituras das leis e dos ensinamentos escritos conhecidos como

1. Inscrição sobre o túmulo de Maimônides em Tiberiades.

Torá Escrita ou Pentateuco. O Pentateuco juntamente com os textos de Profetas e as Escrituras hebraicas e aramaicas vieram a formar o TaNaKh (Torá + Nevyim + Ke-tuvyim) que são as Escrituras Hebraicas conhecidas como Bíblia Hebraica.

Este primeiro Moisés ficou conhe-cido também por transmitir oralmente normas e regras. Moisés para o judaísmo foi o profeta máximo, escolhido por D’us para tirar os israelitas (descendentes de Jacob) do Egito, para transformar seus seguidores em povo e para dar-lhes a Torá. Os ensinamentos orais de Moisés são conhecidos no judaísmo como Torá Oral, ou Tradição Oral, que é o alicerce fundamental da hermenêutica judaica rabínica que rege a doutrina da liderança de um povo.

O segundo Moisés, Moisés bar Mai-mon, conhecido como Rambam ou Mai-mônides, viveu no século XII E.C. e co-meçou a escrever por volta do ano 1170 o compêndio Yiad HaHazaká, em por-tuguês, “A Mão Forte”. Este compêndio

Autoridades Rabínicas

Daniela Guertzenstein

Autoridades Rabínicas

22 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

engloba uma série de catorze livros nos quais Moshe bar Maimon organiza siste-maticamente as leis e os costumes da Torá Escrita (Bíblia Hebraica) e da Torá Oral (Tradição Oral) por tópicos, tornando-se uma das mais reconhecidas autoridades legais do judaísmo rabínico.

O primeiro versículo do Pirkei Avot2 traz o início da sequência das autoridades da qual o judaísmo rabínico descende:

“Moisés recebeu a Torá do Sinai e entregou-a a Josué, e Josué aos Anciões, e os Anciões aos Profetas, e os Profetas a entregaram aos Membros da Grande Assembléia. Eles disserem três ditos (coi-

2. Tratado de Avot (Ética dos Pais) é um dos tratados da Mishná (Mishná = primeiros textos editados da Tradição Oral que são a base do Talmud de Jerusalém do Talmud Babilônico).

sas): sejam circunspectos no julgamento, formem muitos discípulos e façam uma cerca em torno da Torá.”

Maimônides no prefácio de seu com-pêndio Yiad HaHazaká traz conceitos bá-sicos sobre o recebimento da Torá Escrita (Bíblia Hebraica) e da Torá Oral (Tradição Oral) e transcreve as gerações de autori-dades determinantes na transmissão da literatura e da doutrina judaica rabínica. Constam também neste prefácio gerações escolásticas e seus trabalhos, nomes de juizes e tribunais. Seguem abaixo algumas partes deste prefácio:

“Todos os mandamentos que foram

dados para Moisés no Sinai foram da-dos com a sua explicação. Como está dito ‘e darei para você as Tábuas de

Autoridades Rabínicas

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 23

Pedra e os ensinamentos (Torá) e os mandamentos’. Torá é a Torá escrita. “O mandamento” é a sua explicação. E fomos mandados cumprir a Torá segundo o mandamento. E o manda-mento é chamado Torá Oral. Toda a Torá foi escrita por Moisés com a escrita da mão dele antes que ele falecesse. E deu o livro para cada uma das tribos e um livro colocou-o na arca como tes-temunho. Como foi dito ‘peguem este livro da Torá e vocês o coloquem... e será lá para você como testemunho’. E o mandamento é o significado da Torá – não foi escrita, mas sim foi ordenada aos anciãos, a Josué e ao resto do povo de Israel. Como foi dito ‘tudo que eu vos ordeno guardem-o para cumprí-lo’ etc. E por isto é chamada Torá Oral. Apesar da Torá Oral não ter sido escrita. Moshe Rabeinu a ensinou toda ela no seu tribunal aos setenta anciãos. Elazer e Pinkhas e Josué – os três a receberam de Moisés.”

Em hebraico a palavra mandar usada neste contexto equivale a ordenar. Essas palavras de Maimônides retiradas dos en-

sinamentos orais refletem a visão integra-lista do judaísmo rabínico como um todo. O judaísmo rabínico se denomina como descendente e representante da religião original do povo de Israel, transmitida e ordenada por Moshe Rabeinu às autorida-des e a todo povo de Israel na sua formação. Os setenta anciãos eram os encarregados judeus a obrigar os seus irmãos escravos para que cumprissem todas as tarefas da-das pelos egípcios3.

Maimônides continua no prefácio a corrente de juízes que transmitiram os ensinamentos em forma de lei oral:

“E para Josué que foi aluno de Moshe Rabeinu entregou a Torá Oral e a orde-nou a ele. E assim Josué todos os dias de sua vida ensinou-a oralmente. E muitos anciões a receberam de Josué. E recebeu Eli dos anciãos e de Pinkhas. E Samuel

3. Pentateuco, livro 4 – Nm., capítulo 11, versículo 16. Vide comentário de Rashi (Rashi = Rabi Shelomo Itzhaki) sobre este versículo (referência Sifrei 11 – 16). Sifrei é um Midrash Halakhá (Midrash Halakhá = Estudos Legais da Tradição Oral) dos Tanayim (Tanaym = 1ª geração de estudiosos que começou a editar a Tradição Oral no 2º século da era comum a pedido do Príncipe de Judá).

A transmissão da cultura judaica rabínica continua até os dias de hoje através do estudo de todos os textos do judaísmo

rabínico nas escolas e academias de todas as comunidades judaicas ortodoxas pelo mundo.

Autoridades Rabínicas

24 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

recebeu de Eli e de seu tribunal. E David recebeu de Samuel e do seu tribunal... ...E Barukh ben Neria recebeu de Yirminia e de seu tribunal. E Ezra e seu tribunal receberam de Barukh ben Neria e de seu tribunal.

O tribunal de Ezra é chamado ‘As Pessoas da Grande Assembléia’ e eles são Hagai e Zakharias e Malakhi, Da-niel e Hanania e Michael e Azariah e Nekhemias ben Hakhliah e Mordekhai Bilshan e Zerubavel e muitos sábios com eles – completando cento e vinte an-ciãos (...) Shamayia e Avtalyion que eram convertidos e o tribunal deles recebeu de Yehudá e Shimon e do tribunal de-les. Hillel e Shamay e o tribunal deles recebeu de Shamayia e Avtalyion e do tribunal deles...”

Maimônides passa pelas gerações e traz a organização das escrituras, a trans-crição da lei oral passada de geração em geração. Ele apresenta a origem da Mish-ná e da Guemará que formam o texto talmúdico.

Podemos sintetizar uma sequência de gerações do judaísmo rabínico. Depois do tempo de Moisés, as primeiras autori-dades rabínicas foram os anciões, juízes, até Samuel que era juiz e profeta, segue o Rei David e seu tribunal até Salomão e seu tribunal.

Com a construção do Primeiro Tem-plo de Jerusalém pelo Rei Salomão dá-se início ao Sinédrio. O Primeiro Templo de Jerusalém foi destruído, os israelitas (descendentes de Jacob) e outros residen-tes da Judeia, que constituíam então o povo israelita e eram denominados como judeus, foram levados exilados para a Babilônia, e na Babilônia foi estruturada a Grande Assembleia, mas sem o poder de um Sinédrio.

No quinto século antes da era comum, Ezra o Escriba e Nehemia migram da Babilônia para Jerusalém; as escrituras hebraicas, portanto, a Torá, os Profetas e as Escrituras são editados por Ezra o Escriba antes de seu retorno e falecimento na Babilônia. Voltou-se a ter um Sinédrio com a construção do Segundo Templo de

Os fundamentos das leis judaicas rabínicas são basicamente os mesmos para todas as

comunidades judaicas rabínicas, mas estes fundamentos se expressam de maneiras

diferentes de acordo com o desenvolvimento histórico peculiar de cada comunidade e das

culturas das sociedades ao seu redor.

Autoridades Rabínicas

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 25

Jerusalém. Com a destruição do Segundo Templo de Jerusalém no primeiro século da era comum, o Sinédrio transferiu-se para Yavne, pela Galileia e após dez paradas terminou em Tiberíades4.

Entre as autoridades rabínicas temos os tanayim. Tanayim significa repetido-res, recitadores. Os tanayim em aramaico “teni” ou “tena” = ensinar são os sábios judeus da virada da era até a compilação da Mishná por volta do final do segundo século da era comum.

A edição das leis orais, ou seja, a reda-ção da Torá Oral foi iniciada a pedido do Príncipe de Judá no segundo século da era comum, com o intuito de que o judaísmo não fosse esquecido, uma vez que o Templo de Jerusalém tinha sido destruído, os sá-

4. Talmud Babilônico, Tratado Sankhedrin.

bios judeus estavam falecendo e, inclusive, o Evangelho (Bíblia Cristã) estava sendo redigido.

Aliás, podemos lembrar que os textos evangélicos escritos em aramaico ou grego por volta do segundo século da era comum canonizados posteriormente em grego jun-tamente com a Septuaginta (tradução do Pentateuco em hebraico bíblico ao grego que foi elaborada aproximadamente no segundo século antes da era comum) es-tavam se disseminando entre os judeus após a destruição do Segundo Templo de Jerusalém, desenvolvendo uma nova doutrina com conceitos conflitantes aos princípios da hermenêutica oral originada com Moisés no Sinai.

As obras principais que contêm os ensinamentos compilados pelos tanayim são a Mishná, a Tossefta e os Midrashei

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26 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Halakhá. Depois dos tanayim seguem os amorayim; amorayim vêm do verbo falar, e produziram o Talmud de Jerusa-lém e o Talmud Babilônico por volta do terceiro ao quinto século da era comum com textos em aramaico. Após os amo-rayim seguem os savorayim, cujo signi-ficado é explicador; estes se ocuparam principalmente em coletar e comparar redações de trechos talmúdicos, explicar, completar, organizar e continuar redi-gindo em aramaico o Talmud até por volta do fim do sexto século ou metade do sétimo século da era comum.

Permitindo outro adendo, agora sobre o Islã, sabemos que Maomé viveu no sexto e sétimo século da era comum. Seus des-cendentes instauraram o Islã que é uma doutrina miticamente transmitida pelo anjo Gabriel a Maomé e apropriaram-se

de textos da tradição judaica e da tradi-ção cristã. Aliás, o Islã surgiu dividido em duas correntes criadas por pessoas próximas a Maomé. O desenvolvimento de comunidades islâmicas fez com que israelitas e judeus que viviam em terras árabes desde os primórdios das narra-tivas bíblicas hebraicas, muito antes do surgimento do Islã, passassem a ser clas-sificados pelos islâmicos como estrangei-ros em terras islâmicas. Isso só fez com que os líderes de verdadeiros impérios e academias judaicas naqueles territórios sentissem na prática o que eles próprios declaravam em seus cânticos hebraicos. Contudo, não a religião islâmica e suas contínuas guerras e revoltas, mas sim os intelectuais orientais e o desenvolvimen-to das ciências no Oriente, e do idioma árabe inf luenciaram tanto a reestrutu-

Autoridades Rabínicas

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 27

ração gramatical do hebraico quanto o desenvolvimento do pensamento lógico, gerando, na Idade Média, uma literatu-ra judaica rabínica portadora de cunho doutrinário racional e outros filósofos ocidentais.

Retornando ao judaísmo, a sequência continua com os gheonyim, que foram as eminências, ou excelências. A tradução literal de “gheonyim” é gênios. Este título era concedido aos líderes das academias babilônicas de estudos judaicos e cunhado aos estudiosos do Talmud do sexto ao décimo segundo século da era comum. Foram os gheonyim e os seus descenden-tes que revitalizaram o hebraico, uma vez que o talmud foi redigido em aramaico. Surgiram na sequência, então, os chama-dos rishonim, que significa em hebraico ‘primeiros’, já da época de Maimônides, e os akhronim, que significa em hebraico ‘últimos’, do século XV E.C. em diante.

Todos os textos desta longa corrente se tornaram de suma importância nos estudos judaicos rabínicos por serem in-

terpretados como os ensinamentos vivos do judaísmo, passados de geração a ge-ração junto com os textos das escrituras hebraicas e seus santos manuscritos.

Está escrito no oitavo versículo do capítulo dezessete do livro Deuteronômio do Pentateuco: “ ...para não se desviar a direita ou a esquerda de tudo que eles vão te dizer”. A terminologia “o que eles vão te dizer” concede uma autoridade suprema, apoiada no próprio texto da Torá Escrita. Os líderes que transmitem e interpretam o texto bíblico apoiam-se neste versículo para justificar o poder divino dado a sua liderança.

Segundo os tanayim que redigiram o Sifrei - Midrash Halakhá, nós deve-mos seguir as autoridades também se eles chamam a direita de esquerda e a esquerda de direita5, mas isto só deve ser seguido quando não se tem certeza total de que as autoridades estão erradas. Nakhmanides, no século XIII E.C., que

5. Sifrei, Juizes, par 151.

O Sefer HaHinukh, que é uma obra literária judaica rabínica espanhola do século XIII E. C.

de grande influência até os dias atuais, traz que as autoridades são falíveis, mas que o poder de decisão deve ser colocado em algum lugar, ou

vigorará a anarquia uma vez que cada um poderá dizer que ele está correto e as

autoridades estão erradas.

Autoridades Rabínicas

28 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

é um dos mais importantes exegetas do judaísmo rabínico, explica que nós deve-mos atribuir o nosso parecer de que os sábios estavam equivocados à nossa falta de entendimento,6 e explica também que caso os sábios estejam errados, a Torá lhes concedeu esta autoridade e eles de-vem ser obedecidos. O Sefer HaHinukh7, que é uma obra literária judaica rabínica

espanhola do século XIII E.C. de gran-de influência até os dias atuais, adverte que as autoridades são falíveis, mas que o poder de decisão deve ser colocado em

6. Comentário de Nakhmanides sobre Dt. 17:11. Vide inclusive o primeiro princípio de Hasagot LeSêfer HaMitzvoth.

7. Sêfer HaHinukh, atribuído a um dos “rishonim”, conhecido na cultura judaica rabínica.

algum lugar, ou vigorará a anarquia uma vez que cada um poderá dizer que ele está correto e as autoridades estão erradas8.

O Talmud de Jerusalém relata que se uma autoridade está errada, como, por exemplo, se ela declara um pedaço de carne não apropriado como apropriado, não é necessário acatar a decisão desta autoridade. Para poder não acatar a de-cisão desse colega deve-se também ser uma autoridade e ter a convicção de que foi cometido o engano citado acima9. O Talmud de Jerusalém relata também situações em que as autoridades estão cometendo um claro e evidente engano; mas obviamente deve-se ser um estudio-so para ser capaz de identificar e discutir o engano e alegar que os outros estudio-sos estão errados10.

Hoje em dia não existe consenso sobre alguma autoridade rabínica como as des-critas acima. Muito menos existe alguma autoridade como a do Sinédrio de Jerusa-lém que tinha o poder de aplicar a pena de morte no tempo do Templo de Jerusalém, ou ao Sinédrio de Yavne que não tinha mais o poder de julgar a pena de morte. Atualmente não existem regras claras para se tornar uma autoridade rabínica reconhecida. Existe sim um consenso de

8. Sêfer HaHinukh, p.508 da Edição Chavel.

9. Mishná Horayiot 1:1.

10. Torah Temimá, Deuteronômio. Vide Sêfer HaHinukh, número 495 (492) e Hayiei Adam 127:1 quem discorda; as palavras “do juiz que será naqueles dias” pode ser levado a autoridades superiores até para o Sinédrio.

Uma autoridade reconhecida é a de um "possek", que é quem determina a

maneira que devem ser cumpridas as leis

da Torá e os costumes judaicos de

acordo com a doutrina judaica

rabínica.

Autoridades Rabínicas

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 29

quem são os maiores es-tudiosos de cada geração. Uma autoridade reconhe-cida é a de um “possek”, que é quem determina a maneira que devem ser cumpridas as leis da Torá e os costumes judaicos de acordo com a doutrina judaica rabínica, mas se ninguém o leva em con-ta ele não é considerado uma autoridade e se a maioria de sua comuni-dade discorda de uma sua decisão, esta sua decisão termina por se invalidar por si própria.

Retornando a Moisés, Moshe Rabeinu, que re-presenta a autoridade máxima do judaísmo: Yitró, sacerdote de Midyian, sogro de Moshe, foi ao en-contro do povo de Israel depois da saída do Egito e aconselhou seu genro a no-mear juízes, para que todos os casos não tivessem que chegar sempre diretamente para ser julgados por ele11. A autoridade de Moshe Rabeinu foi contestada por Dathan e Aviram filhos de Eliav12, por Korakh e por mais duzentos e cinquenta pessoas de renome13, Dathan, Aviram e

11. Pentateuco, livro 2 – Exôdo, capítulo 18, versí-culos 18 – 23.

12. Pentateuco, livro 4 – Nm., capítulo 16, versículo 1.

13. Idem, versículo 2 até 34.

todos que pertenciam a Korakh foram engolidos vivos pela terra14 e os duzentos e cinquenta homens foram queimados pelo fogo divino15 Algumas curiosidades são apresentadas neste contexto. Korakh era sacerdote e também um líder de sua comunidade. Korakh poderia parecer ter abraçado os termos de uma democracia contra uma aristocracia representada pelos irmãos descendentes de Amran. O capítulo 16 do Livro de Números do Pentateuco traz os tópicos das discussões de Korakh contra Moisés e apresenta o

14. Pentateuco, livro 4 – Nm., capítulo 16, versículo 32 e 33; livro 2 – Exôdo, capítulo 26, versículo 10.

15. Pentateuco, livro 4 – Nm., capítulo 16, versículo 35.

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fim de Korakh, de Dathan e de Aviram e das duzentas e cinquenta pessoas im-portantes que o apoiaram.

Depois do primeiro Moisés, o Pirkei Avot explica que o poder da autoridade foi dividido em três16:

“Rabi Yehudá diz: Seja cauteloso no estudo, pois um erro por descuido no estudo considera-se uma transgressão vo-luntária. Rabi Shimon diz: Há três coroas: a coroa da Torá, e a coroa do sacerdócio, e a coroa do reinado, e a coroa de um bom nome (está acima) é maior do que elas.”

A coroa da Torá é a primeira. Os Tem-plos de Jerusalém foram destruídos e os sacerdotes estão impuros. Em nossos dias os sacerdotes de Israel são chamados antes para ler a Torá, eles abençoam a comuni-dade e tem sobre si o dever de obedecer al-gumas leis a mais do que os outros judeus. Com a coroa real a espera do próximo rei, a coroa do bom nome que é considerada a maior entre elas, pode ser a coroa dos líderes rabínicos que reinam em nome da Torá.

A transmissão da cultura judaica ra-bínica continua até os dias de hoje através do estudo de todos os textos do judaísmo rabínico nas escolas e academias de todas as comunidades judaicas ortodoxas pelo mundo. Na maioria destas academias os rapazes que são capazes se tornam rabinos por volta dos vinte anos. O rabino de hoje

16. Pirkei Avot, capítulo 4, versículo 13.

recebe um certificado de sua academia, chamado Semikhá. Semikhá significa en-coberto, assim como Moisés da saída do Egito cobriu a testa de Josué quando passou (ordenou ou outorgou) a Torá a Josué, para que Josué a transmitisse (outorgasse) ao povo17. Apesar da proibição dos romanos em ordenar rabinos prevalecer até 425 da era comum, o costume retornou de modo que eminências rabínicas conce-dem este título aos seus discípulos quando eles terminam de estudar o programa de estudos judaicos rabínicos definidos pela sua academia.

Com a fundação do Estado de Israel, formou-se a Rabanut HaRashit LeIsrael, Rabinato Mór do Estado de Israel, um ór-

17. Pentateuco, livro 4 – Nm., capítulo 27, versículos 18 -23.

Em termos acadêmicos o título de rabino equivale ao certificado de

mestrado e o título de juiz rabínico

equivale ao certificado de doutorado do Ministério da

Educação do Estado de Israel.

Autoridades Rabínicas

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 31

gão oficial do Ministério das Religiões do Estado de Israel. Esta Rabanut HaRashit é a autoridade governamental israelense responsável em interpretar a lei judaica e emitir pareceres sobre todos os assun-tos que lhe competem. A cada dez anos o Parlamento do Estado de Israel escolhe um Rabino Chefe de Israel para a comunidade de judeus com costumes asquenazitas e um Rabino Chefe de Israel para comunidade de judeus com costumes sefaraditas. Dentre as responsabilidades da Rabanut HaRashit do Estado de Israel encontra-se a função de formar rabinos e juízes rabínicos oficiais e legalmente reconhecidos. Os programas e os exames para conceção do título de rabino da Rabanut HaRashit duram seis anos. O programa e os exames para que um rabino possa receber o título de juiz rabínico leva mais seis a oito anos. Em ter-

mos acadêmicos este título de “semikhá” de rabino equivale ao certificado de mestrado e o título de juiz rabínico equivale ao certificado de doutorado do Ministério da Educação do Es-tado de Israel. Antes de receber um cargo estatal, o candidato a rabino ou a juiz rabínico deve passar por exames e entrevistas. Os cargos estatais oferecem o poder de uma autoridade gover-namental quanto a todas as res-ponsabilidades que competem a um rabino ou a um juiz rabíni-co. Por exemplo, a Rabanut do Estado de Israel é responsável

pela verificação da “kashrut” (kasher é a habilitação religiosa para consumo) dos vegetais nos campos israelenses, da produ-ção “kasher” de alimentos nas indústrias nacionais e nas cozinhas dos restaurantes e quiosques do país. Os tribunais rabínicos israelenses (tribunais judaicos oficiais legal-mente reconhecidos) são responsáveis pelas conversões ao judaísmo, por casamentos e divórcios entre judeus e por outros assuntos somente da vara cível. O rabinato oficial do Estado de Israel concede também títulos por meio de exames e programas de curta duração, alguns destes títulos elaborados especialmente para cargos e funções reli-giosas em comunidades judaicas fora do Estado de Israel.

Apesar da existência da Rabanut do Estado de Israel as comunidades judaicas ortodoxas são lideradas por eminências à

Autoridades Rabínicas

32 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

parte. As escolas das comunidades destas eminências são registradas normalmente como parte do sistema educacional autô-nomo israelense, em hebraico Hinuhkh Atzmayi. As escolas que fazem parte do sistema educacional autônomo israelense têm a liberdade de elaborar seu próprio currículo.

Existem várias eminências rabínicas fora do Estado de Israel. Essas eminências geralmente são conhecidas pelos governos de seus países e algumas delas são conhe-cidas mundialmente inclusive entre não judeus. Entre as eminências fora de Israel destaca-se a figura do Rabino Jonathan Sacks que é o Rabino Chefe da Inglaterra. O Rabino Dr. Jonathan Sacks lecionou ju-daísmo à realeza de seu país e é conhecido no parlamento britânico, formou-se em Oxford, escreve uma infinidade de livros e é pessoa ativa como mentor filosófico no mundo judaico, acadêmico e político.

Os Estados Unidos da América é o país que contém a maior quantidade de judeus no mundo. Encontram-se no país comunidades judaicas ultra-ortodoxas, ortodoxas, conservadoras, liberais, re-formistas, reconstrutivistas entre muitas outras denominações de segmentos ju-daicos modernos e seus desdobramentos pós-modernos, além de grupos e comu-nidades que se apropriam de terminolo-gias e costumes judaicos contemporâneos formando novas identidades judaicas com origens míticas.

Em outubro de 1963, o Rabbi Bernard Weinberger, então membro da Aliança

Judaica Rabínica da América, publicou no segundo exemplar da conhecida revista “The Jewish Observer” um artigo sobre a função das eminências rabínicas. Rabbi Weinberger explicou que uma eminência seria quem possui o ingrediente “Daath HaTorá”, em hebraico, “Visão da Torah”, que transcende o estudo e/ou a piedade que faz uma eminência. Ele escreve que existem várias eminências e que todos nós sabemos intuitivamente quem elas são e acrescenta que ninguém consegue ou pode forçar que os outros aceitem uma eminência como tal. São discutidas as funções dos rabinos das comunidades e o encaminhamento de questões complexas a autoridades maiores.

O termo Daath HaTorá é amplamente discutido nos Estados Unidos da América por rabinos e acadêmicos. Segundo vários sermões e artigos de rabinos ortodoxos quem possui Daath HaTorá está concei-tualmente ligado à profecia e inclusive ao reinado. A pessoa que tem Daath HaTorá recebe um poder próximo a de um oráculo. O termo Daath HaTorá transforma as pa-lavras de seu possuidor em uma imposição religiosa, elas são assim mais do que um bom conselho que o sábio dá a seus alunos...

Mas, o Rabino Soloveitchick, entre outros, discorda que um rei tem com os seus discípulos a mesma relação que um mestre tem com seus alunos. A autoridade de um professor não pode ser imposta e não é usado nenhum instrumento de coerção. Um professor é deliberadamente aceito e abraçado com felicidade...

Autoridades Rabínicas

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 33

Entre as comunidades judaicas rabí-nicas que mais cresceram no mundo na última geração encontra-se a Comuni-dade Hassídica Chabad – Lubavitch, que tem o seu centro mundial situado em Crown Heights no Brooklyn, de Nova Iorque, e tinha como líder máximo o Re-bbe Menachem Mendel Schneersohn ou Rebbe de Lubavitch. O Rebbe Menachem Mendel Schneersohn é conhecido por ter sido completamente dedicado à Torá e ao povo, e ter uma percepção excepcional. O Rebbe Menachem Mendel tinha o mérito de abençoar, e sua comunidade o conside-rava possuidor de Daath HaTorá. Pessoas do mundo todo vinham ao seu escritório pedir conselhos particulares, políticos, dentre outros. Seus discípulos se sentem obrigados a seguir estes conselhos a todo custo, mesmo sem entendê-los.

O Rebbe Hassídico é associado a um rei e responde a todos os tipos de perguntas. Em um de seus discursos dos anos oitenta o Rebbe Menachem Mendel de Lubavitch

pregou que cada judeu pegue para si um mestre (“tasse lekha rav”). Sabe-se também na co-munidade Chabad – Lubavitch que quando uma pessoa quer saber sobre “kashrut”, sobre rezas ou sobre outros assuntos religiosos específicos ela deve encaminhar a sua pergunta a um legislador rabínico, a um Possek ou More DeAtra.

A tensão entre autoridade rabínica e autonomia pessoal

é assunto e título de livros editados por Moshe Sokol nos Estados Unidos. Sokol edita em seu livro sobre o século vinte o texto do Rabino Aharon Lichtenstein. Este texto cita a situação crítica do judeu ortodoxo moderno, de sua necessidade sociopsicológica de procurar a autoridade como uma âncora para retê-lo submisso.

As autoridades rabínicas tratam de assuntos ligados a todas as ações de um judeu. Cada comunidade tem seus líderes e legisladores rabínicos, mas cada uma destas comunidades tem origens, história e costumes diferentes. Os fundamentos das leis judaicas rabínicas são basicamen-te os mesmos para todas as comunidades judaicas rabínicas, mas estes fundamen-tos se expressam de maneiras diferentes de acordo com o desenvolvimento his-tórico peculiar de cada comunidade e das culturas das sociedades ao seu redor.

No Brasil existem vários grupos de judeus ultra-ortodoxos e ortodoxos, e São Paulo é a cidade que agrega o maior

Autoridades Rabínicas

34 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

número destas comunidades. Havia no bairro do Bom Retiro, na cidade de S. Paulo, o Rebbe de Ratzfert, o Rebbe Beher, representante de uma dinastia na qual seus líderes eram associados a reis. Hoje seu filho está com projeto de mudar-se para os Estados Unidos, e, seu genro, que mudou-se do Bom Retiro para a região de Higienópolis, é o rabino responsável por esta comunidade. No bairro do Bom Reti-ro, na região de Higienópolis e no bairro de Cerqueira César são encontradas as maiores sinagogas e centros de estudos das comunidades judaicas, as quais as palavras de seus líderes são consideradas lei por muitos membros de suas próprias comunidades. A comunidade judaica de costumes sefaraditas de origem síria em Higienópolis é uma delas. A comunidade hassídica satmer, a central da comunidade hassídica chabad do Brasil e a comuni-dade judaica ortodoxa de origem lituana no bairro de Cerqueira César são outros exemplos.

As escolas judaicas ultra-ortodoxas outorgam um comportamento judaico rabínico modelo a seus alunos, inclusive através de regulamentos rígidos que atin-gem a vida particular do aluno e de sua família. As escolas judaicas ortodoxas ensinam a religião e orientam seus alunos.

Não se pode esquecer que existem escolas judaicas com líderes que não necessariamente conhecem a literatura rabínica, mas sustentam uma educação com motivos que lhe sejam concernentes como judaicos, além de transmitir alguns

costumes judaicos rabínicos como tradi-ções judaicas. Existem também escolas judaicas, principalmente nos Estados Unidos, que educam de acordo com os seus desdobramentos judaicos reformis-tas, reconstrutivistas, entre outros...

Deve-se também saber que existem rabinos não ortodoxos que não sabem estudar a Bíblia Hebraica e os textos talmúdicos nos idiomas originais e que utilizam em suas prédicas a literatura secular sobre judaísmo e os conteúdos desenvolvidos pelos programas para a formação da erudição pastoral de seus segmentos judaicos. E, que existem rabi-nos não ortodoxos e importantes líderes que não dominam a literatura rabínica, mas que, com seus conhecimentos, repre-sentam com dignidade suas comunidades e por vezes representam as comunidades judaicas em geral.

Sem Juízes e Reis e com Rebbes que não legislam, cresce a tendência de que a elite de cada uma das comunidades ju-daicas rabínicas construa e escolha a sua liderança local.

A liderança no judaísmo rabínico tem a relação simbólica da cabeça com o corpo18. A comunidade judaica rabínica geralmente procura, escolhe e questiona seus líderes. Quando estes líderes são au-toridades rabínicas propriamente ditas eles assumem o papel de cabeça. A relação da cabeça com os orgãos do corpo é outro

18. Veja Midrash Raba, Bereshit 56:7, Tikunei Zohar 114a e Comentário de Rashi Tratado de Hulin 93a.

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Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 35

assunto. A relação deste corpo judaico com o Todo Poderoso é apresentada nas fontes judaicas rabínicas como a relação de um noivo e uma noiva retratada no Cântico dos Cânticos19.

Atualmente, mais do que nunca, se-gundo o Rabino Chefe da Inglaterra, Rabbi Jonathan Sacks, muitos judeus abandonam as suas origens religiosas. Mas, sabemos que das escrituras até hoje, não faltam também não judeus a abraçar os princípios e o modo de vida judaico rabínico.

Com o desenvolvimento de diversos segmentos pós-modernos judaicos e a di-fusão e apropriação dos termos judaicos, talvez seja de bom tom que cada indivíduo que se apresente como rabino aplique como sufixo de seu título o segmento doutrinário, histórico, social e geográfico de que ele faz parte.

Hoje nas sociedades ocidentais tem-se teoricamente o direito de escolher os amigos, escola, ambiente e de se escutar a quem se quer. Temos também o direito de acreditar no que conseguimos imagi-nar. Assim também qualquer indivíduo que queira participar da longa corrente

19. Cântico dos Cânticos.

judaica rabínica e cumprir todos os seus ensinamentos pode se converter e fazer parte dela.

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Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 37

Religião e Ciência têm como objetivo básico o bem estar da humanidade.

O Judaísmo é a Religião monoteísta mais antiga do mundo, e a maior revolução nas ideias que o mundo já conheceu foi a crença em um D’us que é incorpóreo e não tem forma corporal, de modo que Ele não pode ser definido em termos da realidade humana e, portanto, Ele está acima da Ciência, que descre-ve as leis que governam esta realidade [1 e 2].

De acordo com essa abordagem, não pode haver uma contradição entre Ciência e a cren-ça em D’us, visto que a Ciência apenas descre-ve a realidade física e, portanto, não pode descrever D’us.

Além disso, o judaísmo intro-duziu dois princípios básicos da Religião monoteísta: D’us é o criador do universo e Ele estende Sua providência

por todo o mundo. Se definirmos as leis da Ciência como expressão da “vontade de D’us”, não pode haver contradição entre Ciência e Religião. Mesmo que as leis da natureza pertençam ao reino da Ciência, toda lei natural é confirmada por dados científicos, com critérios que devem ser

aceitos pela Religião como uma lei divina que vem do Criador do Universo.

A seguir temos três exemplos de textos bí-blicos donde se extrai indicações de D’us para homem sobre a im-portância da atividade científica.

Segundo a tradição judaica, no sexto dia da Criação, D’us criou o Homem à Sua imagem, o abençoou e ordenou que se frutificasse e se multipli-casse, enchendo a terra e subjugando-a, dominando o peixe do mar e a ave dos céus e todo o animal que se arrasta sobre a Ter-

Religião e Ciência

Joseph Harari & Gina Szajnbok Harari

Religião e Ciência têm

como objetivo básico o bem

estar da humanidade.

Religião e Ciência

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ra. E D’us deu também todas as ervas que dão sementes sobre a Terra, para o homem comer (Bereshit, 1, 28:30). Essas ordens podem ser consideradas como mandamen-tos de conhecimento e desenvolvimento científico, visto que o homem só pode usufruir dos bens da Terra se conhecer o comportamento dos ecossistemas e ciclos de vida neles inseridos.

Paralelamente a esta diretriz de neces-sidade de conhecimento, as leis específicas da Torá podem ser vistas sob ponto de vista espiritual mas também físico. Por exemplo, as leis de utilização do solo na Terra de Israel, como a do o ano sabático, envol-vem a santidade desta Terra, mas também constituem a forma de uma recuperação dos minerais para uma plena produção nos anos seguintes. O atual conhecimento científico da humanidade comprova isto.

Ao expulsar Adão e Eva do Paraíso por causa do pecado da fruta proibida, D’us amaldiçoou a terra e disse ao Homem que com esforço iria comer dela (Bereshit, 3, 17:18). É o desenvolvimento científico que pode proporcionar a produção de milhares

e milhares de toneladas de alimentos, para milhões e milhões de pessoas. Portanto, faz parte do espírito da Torá o manda-mento de esforço físico e espiritual para sua subsistência. Note-se que, no versículo de Bereshit, 1, 29, D’us disse “e eis que dei para vocês toda verdura ...”: segundo Rashi, RamBan e Ibn Ezra, D’us não permitiu ao homem e sua mulher matarem animais e comer sua carne, e só a partir da época de Noé é que isto foi permitido.

Após o Dilúvio, D’us impôs, para a Ter-ra, semeadura e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite, sem cessar (Bereshit, 8, 22). Nessa frase, D’us garantiu que as leis da natureza seriam mantidas para sempre, e que o Homem poderia aproveitar delas para sua subsistência e bem estar. Uma das bases da Ciência se encontra na repetibili-dade dos fenômenos – Emoji, a constante gravitacional se mantém, a decomposição nuclear não muda, etc ...

Pode-se considerar que as leis da na-tureza são expressões da vontade de D’us e, um dos objetivos dos cientistas, é tentar descobrir as teorias que melhor descrevem essas leis. Maimônides escreveu: “O único caminho para conhecer D’us é através do estudo da Ciência Emoji – e é por esta razão que a Torá começa com a descrição da Criação”. (Maimônides, Guia dos Per-plexos, 1190).

Um axioma fundamental do Judaísmo é que a Torá é um livro vivo e sua glória permeia toda a Terra. O princí-pio fundamental da fé judaica, como expressa Maimônides, é que a Torá, dada

O homem só pode usufruir dos bens da Terra se conhecer o comportamento dos ecossistemas e ciclos

de vida neles inseridos.

Religião e Ciência

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 39

ao homem séculos atrás, tem a força da ver-dade absoluta, e não pode haver nenhum evento que contradiz sequer uma parte dela. Segundo este princípio, nenhum desenvolvimento da Ciência, filosofia ou teologia poderá vir a desafiar a verdade da Torá como revelada no Sinai.

Outro ponto de união entre Ciência e Religião se encontra cada vez mais pre-

sente. A descoberta de códigos genéticos, a clonagem de seres vivos e a possibilidade de compreender o início e o fim da vida têm questões morais complexas e a Reli-gião terá um papel importante a desempe-nhar na manutenção do delicado equilíbrio entre o conhecimento e a moralidade.

A importância do estudo da Torá nas gerações futuras está na maneira como

As leis de utilização do solo na Terra de Israel, como a do o ano sabático, envolvem

a santidade desta Terra, mas também constituem a forma de uma recuperação

dos minerais para uma plena produção nos anos seguintes.

Religião e Ciência

40 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

informações científicas estarão relaciona-das com visões religiosas do mundo. Aqui residem grandes desafios, cada vez mais fascinantes para estudiosos judeus e cien-tistas. Em cada geração, haverá novas des-cobertas científicas, e grandes estudiosos judeus terão que levá-los em consideração e “incorporarem” estas descobertas em um contexto religioso judaico. Mesmo se o fu-turo trouxer descobertas científicas que le-vem a aparentes antagonismos entre o que é o relato da Torá e que é conhecido da pes-quisa científica, a tensão criativa acabará por estimular a Torá aos estudiosos, e não enfraquecer a fé religiosa.

Através da pesquisa científica se chega à descoberta da verdade científica e à con-clusão que a mesma é idêntica à Torá, ou seja, contradições aparentes entre a Ciência e a Torá decorrem de nosso conhecimen-to incompleto da verdade científica no presente. Note-se, entretanto, que a Torá é Ciência, mas também envolve moral, caráter, comportamento, ...

Pode-se concluir, portanto, que a visão de Maimônides da Torá e da Ciência é bas-tante ousada. Não só Maimônides rejeita a existência de um abismo entre a Torá e a Ciência, mas ele posiciona a Ciência ao lado

da Torá: as leis da natureza são “a vontade de D’us”, e se o objetivo da Torá e seus mandamentos é levar os seres humanos mais perto de D’us, devemos nos esforçar para compreender a “vontade de D’us”, ou seja, compreender as leis da natureza. Além disso, Maimônides afirma que não se pode aproximar de D’us adequadamente pelo estudo da Torá sozinho. As Ciências naturais, em sua opinião, são um meio de acesso que purifica o cérebro humano a adorar o Criador.

A plausibilidade da Fé Religiosa no Século XXI E.C.

A visão de que, como o passar do tempo, a Ciência irá fortalecer a ver-dade eterna da Torá, de fato pare-ce ter uma base sólida. Além disso, a crença judaica de que D’us criou o mundo parece mais razoável no século XXI E.C. do que nunca. A questão da criação foi re-solvida no século XX E.C.: todos acreditam que o mundo foi criado, seja por um Ser

Maimônides escreveu: “O único caminho para conhecer D’us é através do estudo da

Ciência – e é por esta razão que a Torá começa com a descrição da Criação”.

Religião e Ciência

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 41

Superior, seja por uma grande explosão (Big-bang) [3]. De fato, apenas o primeiro verso de Gênesis continua sujeito a debate. Os crentes afirmam que “D’us criou os Céus e a Terra”, enquanto que os ateus afir-mam que o mundo foi realmente criado, mas que este foi um ato aleatório.

No século XXI E.C., os crentes já não se encontram na defensiva em relação à pesquisa científica. Muito pelo contrá-rio, a crença de uma pessoa religiosa é mais razoável do que a de uma pes-

soa que afirma não haver a Divina Providência, e que apenas o acaso rege a criação.

Podem ser citados vários exemplos, re-tirados do excelente livro do Prof. Nathan Aviezer [4], em apoio à crença na ordena-ção Divina do universo:

A vida na Terra requer água e sem água não há vida. Nos planetas vizinhos, como Vênus, que é mais próximo do Sol do que a Terra, a água se encontra no estado de vapor, enquanto que, em Marte, mais longe

De todas as órbitas possíveis para a Terra em torno do Sol, nós temos a órbita

específica que permite os fluxos exatos de calor e água, que dá vida a todos os seres.

Religião e Ciência

42 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

do Sol, a água se concentra em gelo forma-do ao redor dos polos. Portanto, não pode haver vida nesses planetas. Ademais, como se poderia explicar que, de todas as órbitas possíveis para a Terra em torno do Sol, nós temos a órbita específica que permite os fluxos exatos de calor e água, que dá vida a todos os seres. Alguém poderia supor que isso aconteceu por mero acaso?

Ainda com respeito à água, tome-se como exemplo sua conhecida anomalia: de todas as substâncias, a água em seu estado líquido tem a propriedade de ser menos densa do que em seu estado só-lido, de modo que o gelo flutua na água, permitindo que os peixes sobrevivam na água abaixo da superfície durante o in-verno. Além disso, a densidade da água é máxima a 4ºC, e diminui à medida que

a temperatura se aproxima de 0ºC; como resultado, a vida pode ser mantida nas profundezas do oceano, mesmo durante os invernos mais frios.

Ao lado do fator água, a combustão nuclear no sol permite a vida na Terra e, se a mesma fosse alterada, por um pequeno percentual, as condições no nosso planeta poderiam ser desfavorá-veis para a vida.

Adicionalmente, as estrelas longín-quas explodem e causam a chegada de carbono para a Terra, tornando possível a vida na sua superfície. Se essas estrelas se aproximassem, a radiação liberada em sua explosão tornaria a vida na superfície da Terra possível?

Muitos outros exemplos da Divina Providência mostram que a fé é muito

Religião e Ciência

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 43

razoável. De tudo isso se pode concluir que, com o passar do tempo, enquanto a Ciência faz novas descobertas, a fé no Criador e Sua Providência sobre o mundo só é fortalecida.

Cientistas judeus foram abenço-ados por aprender a Torá e integrar Torá e Ciência, uma grande contribuição para a humanidade.

Com certeza, novos desafios irão apa-recer, para a Ciência e para a Religião. Nos últimos 50 anos, a capacidade de observa-ção e previsão científica aumentou extraor-dinariamente. Marés nos oceanos podem ser previstas com precisão de milímetros, previsões meteorológicas contêm níveis de acerto cada vez maiores. Porém, o objetivo maior da Ciência não é somente o de prever

o comportamento dos processos no planeta e dos seres vivos, mas chegar a controlar todos os passos dos processos naturais.

Atualmente é possível controlar a ge-nética de rebanhos, visando melhorar sua produtividade. Testes são realizados para “bombardear” nuvens com partículas de sal, para produzir chuvas em áreas com secas. Algum dia a Ciência irá controlar totalmente as condições meteorológicas? Nesse dia, como será a bênção de chegada das chuvas? ICI

Notas1. Artigo baseado nos trabalhos do Prof.

Moshe Kaveh, da Universidade de Bar – Ilan,Israel:

Torah and Science (http://www.biu.ac.il/JH/Parasha/eng/bereshit/kavet.html)

Faith and Science in the third Millennium(http://www.biu.ac.il/JH/Parasha/eng/

bereshit/kav2.html), acessados em junho de 2011.

2 Este é um dos 13 “Princípios de Fé” de Maimônides. No original, Maimônides diz em seu comentário sobre a Mishnah: “Esta Torá não deve ser revogada, nem haverá ou-tra Torá”, e de acordo com a tradução de R. Kappah: “Esta, a Torá de Moisés, não deve ser revogada, nem haverá qualquer outra Torá.”

3. Gerland Schroder, Genesis e o Big Bang, de 1994.

4. Nathan Aviezer, In the Beginning, de 1994.

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 45

Os documentos da antiguidade que sobreviveram até os dias de hoje

poderiam atestar a veracidade das narra-tivas Bíblicas ou, pelo menos, confirmar que a Bíblia Hebraica possui um contexto histórico plausível?

Muitos dos locais citados pela Bíblia Hebraica realmente existem, e frequen-temente possuem os mesmos nomes re-gistrados pela Bíblia Hebraica. Existem outros lugares que, aparentemente iden-tificados com cenários de eventos bíbli-cos, possuem nomes diferentes daqueles registrados pela Bíblia Hebraica, mas o trabalho minucioso de arqueólogos por diversas vezes desvendou a correspon-dência histórica entre os nomes antigos e modernos destes locais, como é o caso da antiga cidade de Ramsés (Gn 47:11; Ex 1:11 e 12:37; Nm 33:3, 5) identifica-da com a localidade de Khatana-Qantir, cujo nome atual é Tell el-Daba1. Assim,

1.  Aharoni (1979, p. 176, 196); B. Mazar (Encyclopaedia Mikrait, 1982, Vol. 7, p. 389-394); Hoffmeier (1996, p. 117-9); Bright (2000, p. 121-2);

as evidências epigráficas que possuímos confirmam, com frequência, nomes de personagens, de locais e até mesmo de fatos registrados pela Bíblia Hebraica. É interessante notar que estes personagens, que aparecem tanto na Bíblia Hebraica quanto em documentos arqueológicos, estão, em ambos, em contexto similar, ou seja, tanto na Bíblia Hebraica quanto nos documentos arqueológicos, estes perso-nagens participam dos mesmos eventos ou eventos da mesma época e de contexto possível. Podemos dizer que os perso-nagens registrados pela Bíblia Hebraica dificilmente não seriam os mesmos da-queles de mesmo nome, registrados pela arqueologia.

Vejamos alguns exemplos, entre as dezenas de possibilidades, de documen-tos arqueológicos nos quais aparecem personagens bíblicos.

Naville (1924, p. 18-39); Davies (2009, p. 79); Cole (2000, p. 520); Freedman (1992, Vol. 5, p. 639); Levine (2000, p. 515); Kitchen (2006, p. 255); Sarna (Exploring Exodus, 1996, p. 20).

Personagens da Bíblia Hebraica que Aparecem em

Registros ArqueológicosManu Marcus Hubner

(doutorando em Letras peLa usp)

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

46 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

O nome do rei Acabe, do reino de Is-rael, cuja história está relatada no livro de I Reis 16:28-22:40, está também regis-trado na Estela de Salmaneser, que relata a batalha de Carcar no Rio Orontes (853 A.E.C.), entre o rei assírio Salmaneser III (859-824 A.E.C.) e uma liga de doze reis. Esta estela é também chamada de Monolito Kurkh, por ter sido encontrada

Fig. 1. Estela de Salmaneser

“(...) Ele trouxe para ajudá-lo 1200 bigas,

1200 cavaleiros, 20000 soldados de

Hadadezer de Damasco; (...) 2000 bigas,

10000 soldados de Acabe (A-ḫa-ab-bu), o

Israelita (...)”

Aharoni (1998, p. 96); Bright (2000, p. 243); Dever

(2001, p. 163);

Pritchard (1958, p. 188-191; 1958a, p. 178-180).

Fig. 2. Obelisco Negro de Salmaneser

“(...) O tributo de Jeú (Ia-ú-a), filho de Omri

(ḫu-um-ri); Eu recebi dele prata, ouro, uma

vasilha de ouro, um vaso de ouro de fundo

pontudo, copos de ouro, baldes de ouro,

estanho, um cajado real [e] ‘puruḫtu’ de

madeira.”

Aharoni (1998, p. 100); Dever (2001, p. 166);

Pritchard (1958a, p. 171-178).

no vilarejo de Kurkh, próximo à cidade de Bismil na província de Diyarbekir, Turquia, em 1861, por J. E. Taylor, cônsul britânico. Encontra-se no British Mu-

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 47

seum de Londres. O rei Hadadezer, de Damasco, cujo nome aparece no livro de 2 Samuel 8:2-5, também faz parte da liga de reis que luta contra os assírios. A batalha de Carcar não é mencionada pela Bíblia, e aparentemente o rei Acabe foi morto logo depois em outra batalha, em Ramote-Gileade, em um conflito com Da-masco, após a retirada do exército assírio.

Há também um obelisco do mesmo rei assírio, Salmaneser, chamado de Obelisco Negro (cerca de 830 A.E.C.), que mostra o rei de Israel Jeú (2 Rs 9:4-10:36) pagan-do tributos a Salmaneser III, descoberto pelo arqueólogo Austen Henry Layard em 1846 em Nimrod (Calá), norte do Iraque. Encontra-se no British Museum, Londres. Mesmo que a Bíblia Hebraica não registre esta cena específica, ela é plausível.

A estela de basalto negro de Tel Dan contém uma inscrição em aramaico que celebra a vitória de um rei arameu, prova-velmente de Damasco, sobre os hebreus. Três personagens bíblicos são mencio-nados nesta estela: David, Rei de Israel (1 Sam 16:13; 2 Sam 5:3-4), Joram, Rei de Israel (2 Rs 3:1-9:24), e Acazias, Rei de Judá (2 Rs 8:25-9:29). A linguagem, localização e datação (entre o Nono e o Oitavo Séculos A.E.C.) tornam plausível que o autor seja Hazael ou seu filho, Bar Hadad II/III, reis de Damasco e inimigos de Israel. No relato bíblico, o rei arameu apenas fere o rei de Israel, Joram, que, ferido, abandona a batalha e é posterior-mente assassinado por Jeú, seu sucessor, que também assassina o rei de Judá, Aca-

Fig. 2. Estela de Tel Dan

“(...) E o rei de Israel penetrou na terra de

meu pai. [E] Hadad me tornou rei. E Hadad

foi na minha frente [e] eu parti de ... dos

meus reis. E eu matei dois reis poderosos,

que prepararam duas mil bigas e dois mil

cavaleiros. Eu matei Joram filho de [Acabe]

rei de Israel, e eu matei Acazias filho de

[Joram] rei da Casa de David.”

Athas (2003, p. 192-194); Kitchen (2006, p. 17, 36-37).

2 Rs 9:14-28

“...e o rei Joram voltou para se curar, em

Jezreel, dos ferimentos causados pelos

arameus, quando ele estava lutando contra

Hazael, rei de Aram. (...) Jeú pegou seu arco

e acertou Joram entre suas omoplatas; a

flecha saiu pelo seu coração, e ele caiu em

sua biga. (...) Acazias, rei de Judá, fugiu

para Megido e morreu lá.”

zias. O relato da estela é diferente: o rei arameu é quem assassina os reis de Israel e de Judá. Curiosamente, é a primeira vez que o nome “David” surge em um do-cumento arqueológico. Seus fragmentos

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

48 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

foram descobertos entre 1993 e 1994 por uma equipe dirigida por Avraham Biran.

O Balaam, filho de Beor bíblico (Nm 22:5-24:25; 31:8) foi contratado pelo rei Balak, de Moabe, para amaldiçoar os israelitas. Os fragmentos de Deir Alla trazem o registro de um cataclisma imi-nente, o qual foi informado ao profeta Balaam através de um sonho. As duas narrativas possuem muito em comum: em ambos, Balaam é um profeta com visões proféticas noturnas, e em ambos, o cená-rio dos acontecimentos é a Transjordânia. Os 119 fragmentos já encontrados das inscrições em tintas vermelhas e pretas

sobre gesso branco foram encontrados em 1967 e datam de 840-700 A.E.C. En-contram-se no Museu Arqueológico de Aman, na Jordânia.

A Pedra Moabita de Dibom, uma pe-dra de basalto descoberta na Jordânia, também conhecida como Estela de Mesa, rei de Moabe (849 A.E.C.), foi descoberta em 1868 pelo missionário alemão F. A. Klein, e encontra-se no Louvre, em Paris. Os nomes dos personagens bíblicos Omri, Rei de Israel (2 Rs 9:4-10:36) e Mesa, Rei de Moabe (2 Rs 3:4-5) estão registrados nesta pedra. Após a morte de Acabe, filho de Omri (885-874 A.E.C.), Mesa revolta-se contra o domínio de 40 anos exercido pelo reinado de Israel sobre Moabe. A mesma história de revolta e os mesmos personagens se encontram tanto no relato bíblico, quanto na Estela de Mesa. A estela teria sido feita por volta de 830 A.E.C.

Trezentos textos cuneiformes da Ba-bilônia, que se encontram no Staatliche Museen de Berlim, registram a distribui-ção de alimentos dos armazéns reais de Nabucodonosor II, rei da Babilônia (605-562 A.E.C.), dos quais quarto textos indi-cam rações mensais para Jehoiakhin (2 Rs

Fig. 3. Inscrições de Deir Allah

Kitchen (2003, p. 412-413).

Os documentos da antiguidade que sobreviveram até os dias de hoje poderiam atestar a veracidade das narrativas Bíblicas ou, pelo menos, confirmar que a Bíblia Hebraica possui um contexto histórico

plausível?

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 49

Fig. 4. Estela de Mesa

” (...) Quanto a Omri, rei de Israel, que

humilhou Moabe por muitos anos, pois

Quemosh estava zangado com sua terra.

E seu filho o seguiu e também disse:

‘vou humilhar Moab’. No meu tempo ele

falou, mas eu triunfei sobre ele e sobre

sua casa, enquanto Israel pereceu para

sempre! Omri ocupou a terra de Medeba,

e [Israel] habitou lá no seu tempo e

metade do tempo do seu filho (Acabe),

quarenta anos; mas Quemosh habitou

lá no meu tempo.”

Aharoni (1998, p. 114-116); Bright (2000, p. 242);

Kitchen (2006, p. 13, 34-36); Pritchard

(1958, p. 209-210).

2 Reis 3:4-5

“Mesa, o rei de Moab, era um pastor. Ele

pagou para o rei de Israel cem mil ovelhas

gordas e cem mil carneiros cobertos de lã.

Quando Acabe morreu, o rei de Moab se

rebelou contra o rei de Israel.”

24:15, 25:27-30; Jr 52:31-34), rei de Judá, incluindo seus cinco filhos. Nabucodo-nosor conquistou Jerusalém e exilou seu rei com sua família e parte da população da cidade. Suas condições na Babilônia se mantiveram desconhecidas até que o sucessor de Nabucodonosor, Evil-Me-rodach, concedeu-lhe uma posição de privilégio. A lista de ração comprova que o rei de Judá esteve realmente cativo na Babilônia, conforme a narrativa bíblica.

No XIII século A.E.C., o faraó Mer-neptah (1236-1223 A.E.C.) afirma que destruiu um povo chamado “Israel”. É interessante notar que a estela de granito de Merneptah (1208 A.E.C.) mencione um povo chamado “Israel” vivendo em Canaã. É possivelmente a única vez que um documento egípcio mencione o nome “Israel”. A escrita hieroglífica deste nome deixa claro que este “Israel” se refere a um grupo de pessoas, possivelmente tribal, e não a uma cidade, nação ou região. A estela foi encontrada nas ruínas do templo funerário do Faraó Merneptah em Te-bas, e encontra-se exposta no Museu Egípcio do Cairo.

É interessante destacar, conforme lem-brado por Kitchen (2006, p. 310-11), que os faraós nunca divulgam suas derrotas, ou a perda de um esquadrão de elite de bigas, nas paredes dos templos, para que todos possam ver, já que os deuses egíp-cios somente proporcionaram vitórias aos reis – e derrotas indicam desaprovação!

O prisma hexagonal de Senaqueribe, datado em torno de 689 A.E.C., escrito

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

50 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

em acádio, contém os anais do rei assírio Senaqueribe (704-681 A.E.C.), que sitiou a cidade de Jerusalém em 701 A.E.C., du-rante o reinado de Ezequias, rei de Judá (2 Rs 18:13-19:37, 20:20; Is 36:1-37:38; 2 Cr 32:2-4, 30). Senaqueribe é também men-cionado na Bíblia Hebraica (2 Rs 18:13-19:37; Is 36:1-37:38). O prisma, também conhecido como “Prisma de Taylor”, foi descoberto numa colina em Kuyunjik, atual Mosul, nas ruínas de Nínive, antiga capital do Império Assírio, atual Iraque, pelo coronel Taylor, em 1830. Encontra-se no Oriental Institute of Chicago, Illinois.

Ainda sobre o reinado de Senaqueribe (704-681 A.E.C.), a destruição de Laquis

Fig. 5. Listas de Ração da Babilônia

“(...) 10 [sila] para Ia-ku-ú-ki-nu, o filho do

rei de Ia-ku-du (Judá); 2,5 sila para os cinco

filhos do rei de Judá (Ia-ku-du) through

Qana’a (...)” (text Babylon 28186)

Pritchard (1958, p. 205).

Fig. 5. A Estela de Merneptah

“Canaã é perseguida por todos os males,

Asquelom foi levada, Gezer capturada,

Ianoam é como se não fosse, Israel está

devastada, sua semente não mais existe.”

Malamat (1998, p. 62-66), Propp (2000, p. 741-

744), Pritchard (2011, p. 328).

pelo exército assírio está muito bem do-cumentada através das cartas de Laquis encontradas nos destroços queimados do portão da cidade, e do grande relevo mural encontrado no palácio de Senaqueribe, em Nínive, escavado por Henry Layard em 1845-1849, que detalha a cidade, o sítio e os resultados da conquista: rendição, execução e deportação. (Mazar, 2003, p. 412-437).

O faraó Sheshonk I (945-924 A.E.C.) corresponde ao personagem da Bíblia Shishak (1 Rs 11:40, 14:25-26; 2 Cr 12:2-9), que avança sobre Jerusalém no quinto ano do reinado de Roboão, rei de Judá (1 Rs 14:25-26). A história bíblica corres-ponde ao registro deixado pelo faraó do

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 51

As evidências epigráficas que

possuímos confirmam, com

frequência, nomes de personagens, de locais e até

mesmo de fatos registrados pela Bíblia Hebraica.

Fig. 6. O Prisma Hexagonal de Senaqueribe

“ Quanto a Ezequias (Ha-za-qi-(i)a-ú),

o Judeu, ele não se submeteu ao meu jugo,

eu levantei cerco sobre 46 de suas cidades

fortificadas, fortalezas muradas e sobre

os incontáveis pequenos vilarejos na sua

vizinhança, e conquistei-os (...). Eu expulsei

200150 destas pessoas, jovens e velhos,

homens e mulheres, cavalos, mulas, burros,

camelos, incontáveis cabeças de gado

grandes e pequenas, e considerei-os como

pilhagem. Fiz dele próprio prisioneiro em

Jerusalém, sua residência real, como um

pássaro numa gaiola. (...)”

Aharoni (1998, p. 117-118); Bright (2000, p. 284-

309); Dever (2001, p. 167-171);

Kitchen (2006, p. 40-42); Pritchard (1958, p. 199-201).

O livro de Reis (2 Rs 18:13) menciona a

submissão do rei Ezequias:

“No décimo-quarto ano do rei Ezequias,

Senaqueribe rei da Assíria atacou todas as

cidades fortificadas de Judá, e as capturou.

Ezequias, rei de Judá, enviou mensageiros

ao rei da Assíria, a Laquis, dizendo: ‘Eu

pequei. Retire-se e aquilo que você me

impuser, eu acatarei. O rei da Assíria impôs

sobre Ezequias rei de Judá uma taxa de 300

talentos de prata e 30 talentos de ouro.”

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

52 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

seu itinerário, uma lista das 154 cidades conquistadas nos territórios atuais de Is-rael e Síria. Este registro encontra-se no templo de Amon, em Karnak. Além desta lista de cidades, em Megido foi encontrado um fragmento de uma estela monumental contendo o nome de Sheshonk I, reforçan-do a conclusão de que o faraó realmente esteve na região e ergueu um monumento triunfal naquele local. O fragmento de Megido foi encontrado nas escavações de 1930 chefiadas por R.S. Lamon e G.M. Shipton do Oriental Institute de Chicago.

A Tábua de Tiglate-Pileser III (745-727 A.E.C.), chamado de “Pul” na Bíblia He-braica, e sua lista de prisioneiros, registra que o rei Menaém, de Samaria (reino de Israel) pagou tributos e se submeteu ao rei assírio, além da menção de outros reis de Judá e de Israel. Encontra-se no Museu Israel, de Jerusalém. Os seguintes persona-gens bíblicos são mencionados pela tábua: Acaz, Rei de Judá (2 Rs 16:7-8; 2 Cr 28:20-21; Os 1:1; Mi 1:1), Menaém, Rei de Israel (2 Rs 15:14-22; 1 Cr 5:26), Oséas, Rei de Israel (2 Rs 17:1-18:12), Peca, Rei de Israel (2 Rs 15:25-31), Rezin, Rei de Aram (2 Rs 16:5-9) e Tiglate-Pileser III, rei da Assíria (2 Rs 15:29, 16:7-10).

Em seus anais, o rei assírio Sargão II (721-705 A.E.C.) (Is 20:1; 2 Rs 18:9-

10) menciona a conquista do reino de Israel, mencionando até mesmo o número de prisioneiros capturados, e se declara conquistador do reino de Judá. O relevo de Sargão II foi descoberto nas ruínas de Corsabade, no nordeste do Iraque, pelo arqueólogo francês Paul Emil Botta em 1842, e encontra-se no Louvre de Paris. O relevo de Sargão II com seu marechal de campo encontra-se no British Museum de

Fig. 9. A destruição de Laquis

O livro de Reis (2 Rs 18:13) menciona o

ataque de Senaqueribe a Laquis:

“No décimo-quarto ano do rei Ezequias,

Senaqueribe rei da Assíria atacou todas as

cidades fortificadas de Judá, e as capturou.

Ezequias, rei de Judá, enviou mensageiros

ao rei da Assíria, a Laquis, dizendo: ‘Eu

pequei’ (...)”

Diversos selos nos fornecem nomes de pessoas, títulos oficiais, e informações sobre o sistema

administrativo e a iconografia.

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 53

Fig. 7. Relevo e Estela do Faraó

Sheshonk

Aharoni (1998, p. 91-92); Bright (2000, p.

233-234);

Kitchen (2006, p. 10, 32-34); Pritchard (1958,

p. 187; 2011, p. 239).

Fig. 8. A Tábua de Tiglate-Pileser

“ (...) Em todas as nações nas quais

[eu recebi] tributo (...), Joacás (Ia-ú-

ḫa-zi) de Judá (...). Eu recebi tributo

de (...), Rezon de Damasco, Menahem

(Me-ni-ḫi-im-me) de Samaria, (. . .).

[Quanto a Menaém, eu] o oprimi [como

uma nevasca] e ele... fugiu como um

pássaro, solitário, [e se ajoelhou aos meus

pés(?)]. Eu o fiz retornar ao seu lugar [e

cobrei tributo dele:] ouro, prata, vestidos

de linho com guarnições multicoloridas, ...

muito eu recebi dele. Israel (literalmente:

“terra de Omri”, Bît ḫumria), todos seus

habitantes (e) seus pertences eu levei para

a Assíria. Eles derrubaram seu rei Peca (Pa-

qa-ḫa) e eu coloquei Oséas (A-ú-si-) como rei

deles. Eu recebi deles 10 talentos de ouro,

1000 (?) talentos de prata como seu tributo,

e eu os levei para a Assíria”.

Aharoni (1998, p. 113); Bright (2000, p. 270-274);

Pritchard (1958, p. 193-194; 2011, p. 264-265).

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

54 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Londres. Os prismas foram encontrados em Nimrod, Iraque, entre 1952 e 1953, e estão hoje no Louvre, em Paris.

Os livros de Reis (2 Rs 20:2) e Crôni-cas (2 Cr 32:2-4) relatam as obras do rei Ezequias, do reino de Judá, como parte das preparações contra a iminente in-vasão assíria. Estas obras estão também registradas na inscrição de Siloam, que se encontra no Museu de Istambul, Turquia.

Diversos selos encontrados, feitos de diferentes tipos de pedras duras e semi-

preciosas, e suas impressões em asas de jarros e bullae de argila, nos fornecem nomes de pessoas, títulos oficiais, e in-formações sobre o sistema administrativo e a iconografia do período. A maioria destes selos é encontrada em níveis dos séculos VIII e VII A.E.C., referentes aos reinos de Israel e Judá. Alguns dos nomes encontrados podem ser identificados na Bíblia, como por exemplo: “Berachyahu, filho de Neriyahu, o escriba”, que pode ser identificado com Baruc, escriba de

Inscrições:

“Eu conquistei e saqueei as cidades de

Shinurthu [e] Samaria (As-mir-i-na) e todo

Israel (Bît-ḫu-um-ri-a, Terra de Omri”) (...)”

” Eu sitiei e conquistei Samaria (Sa-me-

ri-na), levei como prisioneiros 27290 de

seus habitantes.”

Prisma:

“(...) Então para os governantes da

Palestina (Pi-lis-te), Judá (Ia-ú-di), Ed[om],

Moabe [e] aqueles que vivem [nas ilhas] e

trazem tributo [e] ‘tâmartu’ - presentes

para meu senhor Ashur (...)”

Inscrição em Nimrod:

“Propriedade de Sargão, conquistador da

nação de Judá (Ia-ú-du), que é distante (...)”

Aharoni (1998, p. 114-116); Bright (2000, p.

275); Gadd (1954, p. 173-201); Pritchard (1958, p.

195-198; 2011, p. 266-269).

Fig. 8. Anais de Sargão

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 55

Jeremias durante a época de Joaquim (Jr 36); “Jeremiel, o filho do rei”, presumivel-mente o filho de Joaquim, enviado para prender Jeremias (Jr 36:26); Gamarias, filho de Safã”, uma importante autoridade

(Jr 36:10-12); “Gedalyahu acima da casa”, identificado com Godolias (“Guedália”), filho de Aicam, nomeado governador de Judá depois da destruição de Jerusalém (Jr 39:14). (Mazar, 2003, p. 493-4)

“E esta foi a maneira em que foi

perfurado: — Enquanto [. . .] ainda

(havia) [. . .] machado(s), cada homem

em direção ao seu companheiro, e quando

ainda faltavam três côvados para serem

perfurados, [ouviu-se] a voz dum homem

chamando seu companheiro, pois havia

uma sobreposição na rocha à direita [e à

esquerda]. E quando o túnel foi aberto, os

cavouqueiros cortaram (a rocha), cada

homem em direção ao seu companheiro,

machado contra machado; e a água fluiu

da fonte em direção ao reservatório por

1.200 côvados, e a altura da rocha acima

da(s) cabeça(s) dos cavouqueiros era de 100

côvados.” (Museu de Istambul)

“Ora, o restante dos atos de Ezequias,

e todo o seu poder, e como fez a piscina e

o aqueduto, e como fez vir a água para a

cidade, porventura não estão escritos no

livro das crônicas dos reis de Judá?” (2

Rs 20:2)

“Quando Ezequias viu que Senaqueribe

tinha vindo com o propósito de guerrear

contra Jerusalém, teve conselho com os

seus príncipes e os seus poderosos, para

que se tapassem as fontes das águas que

havia fora da cidade; e eles o ajudaram.

Assim muito povo se ajuntou e tapou

todas as fontes, como também o ribeiro

que corria pelo meio da terra, dizendo: Por

que viriam os reis da Assíria, e achariam

tantas águas?” (2 Cr 32:2-4)

“Também foi Ezequias quem tapou o

manancial superior das águas de Giom,

fazendo-as correr em linha reta pelo lado

ocidental da cidade de Davi. Ezequias, pois,

prosperou em todas as suas obras.” (2 Cr 32:2)

Pritchard (2011, p. 290)

Fotos: Museu de Istambul.

Fig. 9. Inscrição de Siloam e Túnel de Ezequias

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

56 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Estes são apenas alguns exemplos de evidências epigráficas que comprovam a existência de personagens menciona-

dos pela Bíblia Hebraica. Temos muitas outras ocorrências, conforme a tabela a seguir.

O nome Gedália, “acima da casa”, é

identificado com Godolias (“Guedália”),

filho de Aicam (2 Rs 25:22-24; Jr 40:5-41:3),

nomeado governador de Judá depois da

destruição do primeiro templo de Jerusalém

(586 A.E.C.) por Nabucodonosor, rei da

Babilônia. O selo foi encontrado em 1935

nas escavações de Laquis.

"Pertence a Gedália, que está sobre a

casa.”

Kitchen (2003, p. 69-70)

Em Jr 36:1-8, o profeta Jeremias chama

seu escriba Baruc ben Neria, que escreve

as palavras ditadas pelo profeta. Em Jr

36:26, o rei de Judá, Jehoiakim, ordena a

prisão do profeta e de seu escriba. Em Jr

36:32, o profeta dita ao escriba novamente

as palavras proféticas, após saber que o

rei havia queimado o manuscrito original.

Kitchen (2003, p. 21, 383)

Fig. 10. Exemplos de Selos

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 57

Personagem (ordem

alfabética)

Bíblia Hebraica Arqueologia

Acabe, rei de Israel

1 Rs 16:28-22:40

A estela de Salmaneser, que relata a batalha de Carcar no Orontes - 853 A.E.C., entre o rei assírio Salmaneser III (859-824 A.E.C.) e uma liga de doze reis, entre os quais é mencionado o rei Acabe, de Israel.

Acazias, filho de Joram, rei da Casa de David

2 Rs 8:25-9:29 A estela de Tel Dan contém uma inscrição em Aramaico que celebra a vitória de um rei arameu, provavelmente de Damasco, sobre os hebreus. A linguagem, localização e datação (entre o Nono e o Oitavo Séculos A.E.C.) tornam plausível que o autor seja Hazael ou seu filho, Bar Hadad II/III, reis de Damasco e inimigos de Israel. Curiosamente, é a primeira vez que o nome “David” surge em um documento arqueológico.

Acaz, rei de Judá

2 Rs 16:7-8; 2 Cr 28:20-21; Os 1:1; Mi 1:1

Inscrição de Tiglat-Pileser III recebendo tributos do rei de Judá.

Balaam Nm 22:5-24:25; 31:8

Inscrições de Deir Alla, na Jordânia, contam suas profecias.

Baltazar (Belshazzar), rei da Babilônia

Dn 5 Cilindro de Nabonidus, original de Sippar.

Berachyahu, filho de Neriyahu, o escriba

Jr 36 Duas impressões de selo com seu nome foram encontradas em 1975 e 1996, pode ser identificado com Baruc, escriba de Jeremias durante a época de Joaquim.

Ciro, rei da Pérsia

2 Cr 36:22-23 Cilindro de Ciro, que comemora a vitória sobre a Babilônia.

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

58 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Esarhaddon, Rei da Assíria

(2 Rs 19; Is 37; Ez 4)

A estela de Esarhaddon (680-669 A.E.C.), datada 671 A.E.C., registra as campanhas militares vitoriosas do rei assírio filho de Senaqueribe, e lista reis de territórios a oeste do rio Eufrates, entre os quais está incluído o rei Menassés, de Judá. Tratados de Esarhaddon.

Ezequias, rei de Judá

2 Rs 18:13-19:37, 20:20; Is 36:1-37:38; 2 Cr 32:2-4, 30

O Prisma Hexagonal de Senaqueribe (701–681 A.E.C.), escrito em acádio, no qual este rei afirma ter subjugado o reino de Judá, tomando cidades, levando escravos e prendendo o rei, Ezequias, em Jerusalém, como numa gaiola.Obras de Ezequias: aqueduto de Siloé e manacial de Giom. As inscrições de Siloé testemunham a narrativa Bíblica da construção de um novo canal para trazer suprimento de água até Jerusalém, enquanto a cidade estava sendo ameaçada pelos assírios, em torno de 701 A.E.C.. As águas de Giom foram desviadas para o vale de Gai por um túnel de 533 metros de comprimento. Uma inscrição numa pedra, no final do túnel, descreve o projeto.

Gamarias, filho de Safã

Jr 36:10-12 Nome encontrado em impressões de selos, uma importante autoridade.

Gedália, “acima da casa”

Jr 40:5-41:3 Nome encontrado em impressões de selos, identificado com Godolias, filho de Aicam, nomeado governador de Judá depois da destruição de Jerusalém.

Hazael, rei de Damasco

2 Rs 8:7-15 Obelisco de Salmaneser III, 18º. ano, e inscrição do mesmo rei em mármore pérola.

Jeremiel, o filho do rei

Jr 36:26 Nome encontrado em impressões de selos, presumivelmente o filho de Joaquim, enviado para prender Jeremias.

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 59

Jeroboão II, rei de Israel

2 Rs 14:23-29 O Selo de Megido, onde se lê “Sema servo de Jeroboão”, provavelmente pertenceu a um ministro do rei Jeroboão II.

Jeú, filho de Omri, rei de Israel

2 Rs 9:4-10:36 O Obelisco Negro de Nimrod (norte do Iraque, cerca de 830 A.E.C.), mostra o rei de Israel pagando tributos a Salmaneser III.

Johanan, sumo-sacerdote durante o reinado de Dario I

Ne 12:22-23 Papiro de Elefantina, Egito.

Joram, filho de Ahab, rei de Israel

2 Rs 3:1-9:24 A estela de Tel Dan contém uma inscrição em Aramaico que celebra a vitória de um rei arameu, provavelmente de Damasco, sobre os hebreus. A linguagem, localização e datação (entre o Nono e o Oitavo Séculos A.E.C.) tornam plausível que o autor seja Hazael ou seu filho, Bar Hadad II/III, reis de Damasco e inimigos de Israel.

Menahem, rei de Israel

2 Rs 15:14-22; 1 Cr 5:26

A Tábua de Tiglate-Pileser III (745 A.E.C.) e sua lista de prisioneiros, em cujas inscrições está registrado que o rei Menahem, de Samaria (reino de Israel) pagou tributos e se submeteu ao rei assírio.

Menassés, rei de Judá

2 Rs 20:21-21:18; Ez 4:9-10

Registros de Assurbanipal, rei da Assíria, sobre a conquista de Elam e da Babilônia; registros de Esarhaddon, filho de Senaqueribe.

Mesa, rei de Moabe que se revolta contra o reino de Judá

2 Rs 3:5 A Pedra Moabita de Dibom, na Transjordânia, também conhecida como Estela de Mesa, rei de Moabe (853-852 A.E.C.)

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

60 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Nabucodonosor, rei da Babilônia

Jr 27:6. Portão de Ishtar, construído por ele mesmo. Tábua cuneiforme de Nabucodonosor. O registro arqueológico da destruição de Judá pelos babilônios é extenso. Jerusalém foi maciçamente destruída e queimada, como demonstrado pelos achados perto da torre no Bairro Judeu e pelas casas queimadas na costa oriental da Cidade de Davi. Fora de Jerusalém, o palácio de Ramat Raquel caiu em ruínas.

Neco, faraó do Egito

2 Rs 23:33-35 Inscrições de Assurbanipal.

Omri, rei de Israel

2 Rs 9:4-10:36 A Pedra Moabita de Dibom, na Transjordânia, também conhecida como Estela de Mesa, rei de Moabe (853-852 A.E.C.)

Oséas, rei de Israel

2 Rs 17:1-18:12 Anais de Tiglate-Pileser III, rei da Assíria, encontrados em Calah.

Pekah, rei de Israel

2 Rs 15:25-31 Anais de Tiglate-Pileser III, rei da Assíria.

Rezin, rei de Aram

2 Rs 16:5-9 Anais de Tiglate-Pileser III, rei da Assíria.

Sanballat, governador da Samária, opositor de Neemias

Ne 6 Papiro de Elefantina, Egito.

Sargão II, rei da Assíria

Is 20:1 Inscrições e relevo de Sargão II (721-705 A.E.C.), descobertos nas ruínas de Khorsabad, no nordeste do Iraque. Nas inscrições, Sargão afirma ter conquistado Samaria no seu primeiro ano de reinado, levando 27.290 prisioneiros.

Personagens da Bíblia Hebraica que aparecem em registros arqueológicos

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 61

Pritchard, 1950; id., 2011. Aharoni, 1998, p. 97-103; Mazar, 2003, p. 412-437, 493-4.

Senaqueribe, rei da Assíria

2 Kings 18:13-19:37; Isaiah 36:1-37:38

O Prisma Hexagonal de Senaqueribe (701–681 A.E.C.), escrito em acádio, no qual este rei afirma ter subjugado o reino de Judá, tomando cidades, levando escravos e prendendo o rei, Ezequias, em Jerusalém, como numa gaiola.A destruição de Laquis pelos assírios está muito bem documentada através das cartas de Laquis encontradas nos destroços queimados do portão da cidade, e do grande relevo mural encontrado no palácio de Senaquerib, em Nínive, que detalha a cidade, o sítio e os resultados da conquista: rendição, execução e deportação.

Shishak, faraó do Egito

1 Rs 14; 2 Cr 12 Parede sul do Grande Templo de Amon, em Carnaque.

Tiglate-Pileser III, rei da Assíria

2 Rs 15:29, 16:7-10

Inscrição de Barrakab, rei de Sem’al, e na lista de reis asssírios; Tábua de Tiglate-Pileser III.

O grande arqueólogo Albright (1964, pp. 294-296) classificou da seguinte forma a contextualização histórica bíblica:

“Tem havido um retorno geral ao apreço da exatidão da história religiosa de Israel, tanto no aspecto geral como nos pormenores factuais. Em suma, agora podemos novamente tratar a Bíblia do começo ao fim como documento autêntico de história religiosa (...). Não é exagero enfatizar-se fortemente que, a bem dizer, não há nenhuma evidência, no antigo Oriente Próximo, de falsificação documentária ou literária.”

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Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 63

Rabi Moshé ben Maimon, mais conhe-cido dentro do campo judaico pelo

acróstico Rambam e, no campo da filosofia em geral, pelo nome de Maimônides, é daqueles homens cuja obra pode ganhar o qualificativo de biblioteca, não apenas pelo impressionante volume de páginas escritas, mas principalmente porque, em torno de sua obra, um homem pode viver. E é mais do que isto. Em sua obra, todo um coletivo humano pode organizar-se. Se Maimônides é um filósofo, então a filosofia tem nele um autor em quem a distância entre os fenômenos humanos e as elaborações teóricas é eliminada, tor-nando assim a elaboração teórica o meio privilegiado para o aperfeiçoamento da vida dos homens. É impressionante como, em pleno início do século XII E.C., o nome de Rabi Moshé espalhou-se por lugares tão distantes quanto o norte da França, a Pro-vença, a atual região da Alemanha, Itália, Síria, Babilônia, norte da África e Yêmen. Em tempos de aldeia global, tendemos a acreditar que o mundo medieval era mar-

cado por um enorme isolamento, ou que as comunicações entre os diversos centros culturais eram extremamente reduzidas. O caso de Maimônides é um bom exemplo de quão errada é essa suposição. Ele se põe num lugar que poderíamos definir como uma encruzilhada de civilizações, e assume uma postura que, utilizando um termo contemporâneo, poderia defini-lo como humanista, mas o faz implicando-se

A Visão Racionalista da Bíblia: Maimônides e os Comentários da Mishná

Enrique Mandelbaum

A Visão Racionalista da Bíblia: Maimônides e os Comentários da Mishná

64 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

profundamente em sua identidade pessoal, em sua condição de judeu, e assumindo total responsabilidade por seu coletivo. Rambam é um exemplo de que o melhor caminho para o universal é o mergulho nas raízes pessoais. E, para nos apropriarmos da ideia do lugar que Rambam ganhou dentro do povo judeu, basta dizer que, quando de sua morte, no dia 20 de Tévet de 4965 (1204), todas as comunidades judaicas o prantearam. Não que sua obra não tenha despertado oposição no próprio campo judaico, mas a oposição, principalmente, foi suscitada pelo reconhecimento de sua grandeza, tão monumental ela era que corria o risco de eclipsar, de acordo com al-guns oponentes, toda a produção anterior. É que Maimônides, por assim dizer, atuou primeiro como uma “esponja”, podendo-se dizer sem exagero que absorveu toda a produção rabínica do período talmúdico e gaônico para, a seguir, comportar-se como um “funil”, organizando um código de leis tão impressionante que, aos seus contem-porâneos, lhes parecia que levaria a pres-cindir do incrível empenho realizado pelas

academias talmúdicas. Visto à distância e com nossos olhos contemporâneos, que desconfiam das grandes sistematizações, tendemos a aderir às objeções do Rabi Abraham ben David, o Rabad, do círculo de poskim (comentadores) da Provença, que, com olho crítico, investigou toda a Mishné Torá – a principal obra halákhica de Rambam -, produzindo o que, no campo talmúdico, se conhece pelo nome de Hasa-got (objeções) de Rabad. Claro que, nessa polêmica – uma polêmica violenta e de grande implicação histórica -, as concep-ções de Rambam sobre D us ocupam um lugar importante, mas a principal questão parece suportar-se no empenho de de-monstrar que o código de leis da Mishné Torá, essa organização sistemática de leis e preceitos realizada por Rambam, não conseguiria, apesar de toda a sua grandeza, sobrepor-se ao Talmud. O que o Rabad quer demonstrar é que emitir um juízo final e definitivo em torno de uma lei ou um preceito somente pode ser feito após uma revisão exaustiva das fontes princi-pais, e estas são a Mishná e a Guemará. Um dos elementos da Mishné Torá que deu margem para a controvérsia, para além do profundo objetivo sistematizador, que implica sempre uma ação de contração, foi o fato de que Rambam suprimiu, em seu trabalho, as fontes e os nomes dos sábios comentadores que realizaram e compila-ram o Talmud, nos quais se baseou para definir as leis. Este fato problematiza o estudo das relações entre o corpo talmúdi-co e a Mishné Torá. O próprio Rambam se

A Visão Racionalista da Bíblia: Maimônides e os Comentários da Mishná

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 65

apercebeu deste problema e quis escrever um livro das fontes, que não foi realizado. É ele próprio quem relata, numa missi-va a Rabi Pinchas ben Rabi Meshulam, os inconvenientes surgidos pela falta das fontes. Diz ele: “visitou-me um piedoso juiz, que trazia consigo um volume do livro (Mishné Torá) que trata do assunto Rotzeach (Assassino), contido no tratado Nezikim (Prejuízos). Mostrou-me um as-sunto e disse-me: ‘Lê isto’. Eu li e lhe disse: ‘O que há de especial?’ Respondeu-me com a seguinte pergunta: ‘Em que lugar [do Talmud] consta isto?’ E eu lhe respondi: ‘Na seção correspondente, ou no capítulo ‘E estes são os redentores’ [parte de Da-nos, do tratado Prejuízos], ou no tratado Sanedrim, onde se trata a respeito das leis do crime’. Respondeu-me: ‘Eu procurei em todos esses lugares e não o encontrei, nem no Talmud Yerushalmi [Talmud pro-duzido em Jerusalém], nem na Tossefta [agregado de leis do período dos tanaim, não fixado na Mishná]’. O fato me intrigou muito, e eu lhe disse: ‘Porém, eu me lembro que, em algum lugar do capítulo Guitim (Divórcios), trata-se desse tema de forma marginal’. Busquei no capítulo Guitim e não encontrei. Fiquei perplexo e voltei a

me perguntar: ‘Onde eu encontrei estas palavras?’ Disse então ao meu interlocutor: ‘Me dê um tempo para lembrar onde está’. Ele se foi e, então, eu me lembrei. Mandei um mensageiro a procurá-lo e o fiz vol-tar, e lhe mostrei a explicação do assunto de que ele duvidava no capítulo Ievamot (Regras referentes ao matrimônio com a cunhada), do tratado Nashim (Mulheres), porém somente de passagem. Se eu, que sou o autor, esqueci a fonte original dessa lei, o que dizer dos demais?” O problema é bem mais complexo do que apenas o de citar as fontes. Ocorre que Rambam, com a sua Mishné Torá, um trabalho que lhe tomou dez anos ininterruptos de elabora-ção, criou um gênero e, por conseguinte, uma atitude, totalmente nova com respeito à Halakhá. Para compreendermos o que está em questão, é importante tentarmos definir o conceito de Halakhá e apresentar, mesmo que em breves traços, o seu de-senvolvimento até o período de Rambam.

A palavra Halakhá é utilizada, de modo geral, para definir a Lei judaica. Etimologi-camente, por Halakhá podemos entender “o caminho por onde se anda”, o que põe de manifesto principalmente a sua dimensão prática. Não é um termo encontrado na

Maimônides é daqueles homens cuja obra pode ganhar o qualificativo de biblioteca, não apenas pelo impressionante volume de páginas escritas,

mas principalmente porque, em torno de sua obra, um homem pode viver.

A Visão Racionalista da Bíblia: Maimônides e os Comentários da Mishná

66 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Bíblia. Sua origem remonta aos períodos dos tanaitas e amoraitas, e é aramaica – prove-niente do verbo Halakh, caminhar -, sendo utilizado para indicar aquele que observa a Torá de D us e cumpre os seus mandamen-tos. No texto bíblico, a metáfora do caminho e a observância da Lei já se encontram vincu-ladas: “Ensina-lhes os estatutos e as leis, faze-lhes conhecer o cami-nho a seguir e as obras que devem fazer” (Ex. 18:19)/ “Se vos conduzi-res segundo os meus es-tatutos, se guardares os meus mandamentos e os praticares” (Lv. 26:3)/ “O Eterno disse a Moi-sés...A fim de que Eu o ponha à prova para ver se anda ou não na mi-nha Lei (Torá)” (Êxodo 16:4). Andar, em todas essas passagens, é aná-logo a cumprir. A Halakhá não é um desen-volvimento teórico sobre os procedimentos do homem para com seus semelhantes e para com D us. Ao contrário, ela é uma construção realizada colocando-se toda ênfase na descrição e compreensão dos atos humanos envolvidos em toda e qualquer cir-cunstância, a partir dos princípios da Torá – ou Lei mosaica – e de seu desenvolvimento, tal como operado no conjunto de livros do Tanach. Não existe nenhuma área na esfera

da conduta humana que não seja tratada e a qual não se lhe ofereça um caminho a seguir. Isto porque é inerente à concepção judaica a noção de que a esfera do sagrado deve abarcar todo o campo do existir hu-

mano. São inúmeras as passagens bíblicas em que fica explicitado que o sagrado não se res-tringe apenas ao culto religioso. A passagem “santos sereis porque santo sou Eu” sintetiza bem o processo que foi se desenvolvendo aos poucos, no sentido de formatar toda a vida humana no interior de uma Lei tida como re-velada. Os estudiosos estão de acordo que, já no período do pri-meiro Templo, as leis e os mandamentos, tal como aparecem formu-lados na Torá, pressu-

põem a necessidade de uma atividade de interpretação e desdobramento, para que os mesmos pudessem ser aplicados. No próprio Pentateuco, encontramos algumas situa-ções nas quais a Lei é enunciada a partir de um incidente. Assim, por exemplo, em Lv. 24:12, ao homem que blasfemou o nome de D us, “...puseram-no sob custódia, para que se decidisse somente pela ordem do Eterno”. Ou seja, dá-se uma situação para a qual ainda não se sabe como agir de acordo

É inerente à concepção judaica a noção de que a esfera do sagrado deve abarcar todo o campo do existir

humano. São inúmeras as

passagens bíblicas em que fica

explicitado que o sagrado não se

restringe apenas ao culto religioso.

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com a Lei. Somente após o acontecimento, define-se a Lei: “...Todo homem que amal-diçoar o seu D us...deverá morrer...” (24:16). Entre outros casos do Deuteronômio, temos também aquele, em Números 27, em que as filhas de Salfaad apresentam-se para re-clamar a herança dos pais. Moisés, então, leva o caso delas diante do Eterno (27:5), e a lei da herança lhe é revelada (27:1-11). No último livro do Pentateuco, explicita-se o modo de proceder com a Lei quando Moisés não mais estiver entre os seus: “Quando tiveres que julgar uma causa que te pareça demasiado difícil – causas duvidosas de homicídio, de pleito, de lesões mortais, ou causas controvertidas em tua cidade -, le-vantar-te-ás e subirás ao lugar que o Eterno teu D us houver escolhido. Irás então até os sacerdotes levitas e ao juiz que estiver em função naqueles dias. Eles investigarão e te anunciarão a sentença. Agirás em conformi-dade com a palavra que eles te anunciarem deste lugar que o Eterno houver escolhido. Cuidarás de agir conforme todas as suas instruções. Agirás segundo a instrução que te derem, e de acordo com a sentença que te enunciarem, sem te desviares para a direita ou para a esquerda que eles te houverem anunciado” (Dt. 17:8-11). Dessa passagem, podemos depreender a constituição de uma autoridade ou uma corte que terá por função desdobrar e ensinar a Torá. Nos livros dos Reis, podemos acompanhar essa autoridade em funcionamento e, nos livros dos Profetas, o lugar central que ela tinha tanto nas questões concernentes ao culto quanto em todas as esferas da vida humana.

Não houve nenhuma época em que não se tivessem feito estudos e renovações, num processo ininterrupto que deu origem a uma cadeia de transmissão descrita no capítulo Avot (Pais) e que retroage até o momento da revelação da Torá a Moisés. De acordo com esta leitura, que se tornou oficial no judaísmo rabínico, Moisés teria recebido de D us duas Torot, uma escrita - Torá sche-bikhtav –, e outra oral – Torá shebe al peh. Fazem parte da primeira os cinco livros do Pentateuco, e a segunda – que corria em paralelo e sobre a qual pairava o imperativo de nunca ser registrada por escrito, para não promover o risco de um deslocamento da centralidade da Torá escrita – compreendia exatamente todos os desdobramentos da Lei que se faziam necessários para que a Lei da

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Torá escrita pudesse ser cumprida pelo co-letivo de Israel.

Historicamente, podemos dizer que a construção da Halakhah ganhou um primeiro impulso quando do exílio da Ba-bilônia, no ano 587 A.E.C., porque já nesse período o coletivo do reino de Judá lutava por preservar a sua identidade no exílio e, com certeza, o processo de elaboração legal deve ter tido que ser agilizado. O livro de Ezra constitui-se numa importante fonte de informações para acompanharmos as transformações institucionais que tiveram que ser feitas para que pudesse ser operada a reforma necessária para, diante do edito de Ciro, o rei persa que permitiu o retorno do exílio, retomar a vida nacional, no período da reconstrução do Templo. Os primeiros registros da atividade halákhica nos vêm do período dos pares (zugot), e as leis por eles realizadas são conhecidas como guezerot

e takanot. A guezerah tinha um intuito restritivo, que mais tarde ganhou o seu entendimento através do aforismo, atri-buído aos homens da grande assembleia, de fazer um cerco (sugah) ao redor da Torá. Já a takanah tem um intuito mais positivo, promovendo algumas transformações no sentido de permitir que a Lei pudesse ser cumprida em novos contextos. Nesse longo período histórico, que adentra o momento em que Alexandre, o grande, conquista a região do reino de Judá (333-331 A.E.C.), e se desenvolve até a anexação de Judá pelo império romano e a posterior destruição do Templo, no ano 70 E.C., um profundo conflito acompanha o coletivo de Israel, pela definição da autoridade dos promul-gadores da Lei, em torno de uma intensa luta ideológica. Esta autoridade, que é tanto administrativa como judicial, no início está profundamente vinculada aos serviços do Templo, onde é instalado o Beit Din (casa da justiça), no qual exerciam sua função os sanedrim, um corpo de 71 membros que sancionavam as normas religiosas e jurídicas e supervisionavam a vida reli-giosa tanto no interior da Judeia quanto das comunidades judaicas espalhadas fora, por exemplo na Babilônia e na Alexandria.

Opõem-se a essa autoridade, no período pré-asmoneu, os samaritanos, por exemplo. É durante o governo asmoneu, que se esten-de de 168 a 63 A.E.C., que o processo ha-lákhico ganha força, instituindo-se diversas academias, entre as quais destacam-se as de Hillel e Shamai, que tomam para si a tarefa de desenvolver o corpo de leis através

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do estudo. A seita mais importante desses estudiosos é a dos pirushim (fariseus), que deram continuidade a uma orientação que teve a sua origem no período persa e incluía as atividades dos soferim (escribas), desde o período de Esdras. Seu princípio básico era o de garantir a fidelidade à Torá e de-monstrar a sua aplicabilidade a todos os aspectos da vida. Com o desenrolar dos even-tos históricos, eles fo-ram ganhando centra-lidade e a legitimidade da maioria do coletivo judaico, em sua luta contra os saduceus, que faziam parte da aristo-cracia governante e as-sumiam uma postura mais helenizada. São os fariseus os responsáveis pelo desenvolvimento da Halakhá, num cam-po tão extenso que abarca a ordem dos ritos e das orações, os dízimos e as oferendas, as leis da pureza e impureza, os procedi-mentos do calendário sagrado e das leis do Shabat, as relações conjugais, a lei civil e a criminal, entre muitas outras. E serão prin-cipalmente os sucessores da escola de Hillel e da atividade que esta realizava que, em meio aos dramáticos acontecimentos que se seguiram à destruição do Templo, no ano 70 E.C., tomarão para si, agora em novos centros, entre os quais se destaca Iavne, a responsabilidade de manter vivo o estudo da Torá, iniciando-se um enorme processo

de revisão e ordenamento de toda a lei oral acumulada, desde o período de Hillel e Shamai. Cabe a Yehuda Hanassi, sessenta e cinco anos após a derrota da rebelião de Bar Kokhba (132-135 E.C.), compilar todo o corpo de leis num conjunto ao qual se deu o nome de Mishná, e que é dividido em seis grandes ordens – Zeraim (Sementes),

Moed (Festas), Nashim (Mulheres), Nezikim (Danos), Kodashim (Santidade) e Tohorot (Purezas), que são, por sua vez, subdivididos numa série de 62 trata-dos. Sem Estado e sem o Templo, a atividade desenvolvida nesses centros constituiu-se numa referência para todo o coletivo judaico, criando uma dinâmica que, aos poucos, o foi

organizando numa vida governada pela Torá e pelo cumprimento dos preceitos – mitzvot. A Mishná, cuja etimologia vem da palavra lishnot (repetir, reiterar, estudar), foi a principal matéria de estudos, a fonte das regras da Halakhá, a base da vida e do pensamento do povo judeu, e sobre ela foi se construindo, ao longo dos três ou quatro séculos seguintes, o grande compêndio da tradição oral, tanto na versão babilônica, feita pelos sábios que viviam nessa região, quanto na versão de Jerusalém, feita pelos sábios das academias da Palestina. É im-portante ressaltar que, na compilação da

O trabalho talmúdico visa

propiciar que a Lei da Torá possa ser aplicada, na sua integridade, em toda situação

histórica, que é sempre dinâmica.

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Mishná, Rabi Yehuda quis principalmen-te encontrar uma maneira de fixar as leis orais tal como as tinha recebido, manten-do a discrepância das diferentes opiniões, sem emitir uma decisão definitiva sobre os múltiplos assuntos que são tratados, o que oferece a esse texto seu incrível caráter polifacetado. Cada norma é atribuída ao seu autor, e muitos pontos são tratados através da controvérsia (makhloket) – uma controvérsia que remonta até a um perío-do anterior à revolta dos asmoneus, até as academias de Hillel e Shamai. A Mishná, portanto, não é uma síntese fechada, e essa é a maior maravilha desse trabalho, que é a de deixar, mesmo que na forma registrada, o que era atividade exegética ainda num estado de abertura para a exegese. É sobre esta base que será realizada a Guemará, ou literatura amoraíta, um compêndio de discussões sobre a Mishná que não apenas mantém, mas acelera o estilo polêmico e de debate em torno da formulação e desdo-bramento das leis. É importante ressaltar que toda essa produção ocupou um lugar central, no sentido de dotar o coletivo judai-co de uma referência identitária em todo o território onde existisse uma comunidade judaica – território este tão amplo que abar-cava as regiões da Antioquia, Alexandria, Roma, Espanha e Alemanha –, e o fator que possibilitou esse amplo alcance foi, a partir do ano 640 E.C., a expansão do Islão em grande parte dessas regiões.

Com o declínio dos centros na região do atual Israel, no século IV E.C., o eixo transfere-se para a Babilônia, que, até o sé-

culo X E.C., exerce um papel central na vida espiritual e na liderança do coletivo. O Rav Ashi (371-427 E.C.) inicia a compilação, na Babilônia, de todas as discussões, ordens e tratados da Mishná. A redação final do Talmud babilônico foi feita no século V E.C. O trabalho talmúdico visa propiciar que a Lei da Torá possa ser aplicada, na sua integridade, em toda situação histórica, que é sempre dinâmica. Da forma como o Talmud é elaborado, fica pouco claro o limite entre o que seria a opinião singular de um sábio e uma doutrina geral válida. Isto confere ao Talmud uma forma que é, ao mesmo tempo, rígida e flexível. A flexibilidade possibilitou a emergência de uma rica filosofia judaica medieval, capaz de reinterpretar as crenças religiosas tradi-cionais com uma liberdade bem maior do que aquela encontrada, por exemplo, na es-colástica cristã do período. Mas, por outro lado, essa mesma flexibilidade deu margem para uma discussão sobre a legitimidade da Lei no interior do campo judaico.

A crise de autoridade das instituições judaicas - em primeiro lugar do Exilarca, um representante do coletivo judaico diante dos califas e, logo a seguir, dos gaonim, as autoridades máximas das academias ba-bilônicas – trouxe consigo a ampliação de um processo de oposição dentro de parcelas do coletivo judaico – lideradas por Anan ben David -, que propunham um retorno às escrituras sagradas. Este grupo foi se afastando da autoridade legal do Talmud, propondo um retorno à Bíblia. E, no século X E.C., ganham força, sob a denominação

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de caraítas. É neste contexto que devemos situar a obra de Maimônides. Diversos exercícios de sínteses parciais sobre a obra talmúdica já tinham sido realizados antes da Mishné Torá. Porém, nenhum se com-para em magnitude ao empreendimento de Rambam. Já frisamos que o Talmud não é uma obra sistêmica. O receio de Mai-mônides era de que o empreendimento talmúdico, devido às suas proporções e ao modo como os temas são tratados, ficasse distante do coletivo judaico. Na sua in-trodução à Mishné Torá, Rambam deixa claro que o que ele se propõe é que todos os mandamentos sejam perfeitamente co-nhecidos por todos, de forma que pudessem encontrar com facilidade os procedimentos adequados, sem terem que se ver obrigados a atravessar as profundas polêmicas do texto talmúdico, que poderiam induzir a erros. Rabi Yehuda HaNassi (Yehuda, o príncipe), 150 anos após a destruição do 2o

Templo, achou importante compilar a lei oral para que as gerações futuras pudessem ter acesso a ela. A algo semelhante se propôs Maimônides, ao dividir todo o material halákhico talmúdico e organizá-lo em 14 li-vros, dando a cada um o nome apropriado, de acordo com o assunto tratado. São estes: Sêfer HaMadá (Livro da Ciência), Sêfer Ahavá (Livro do Amor), Sêfer Zmanim (Livro dos Períodos), Sêfer Nashim (Livro das Mulheres), Sêfer Kedushá (Livro da Santidade), Sêfer Haflahá (Livro das Dis-tinções), Sêfer Zraim (Livro das Sementes), Sêfer Avodá (Livro do Serviço [Religioso]), Sêfer Korbanot (Livro das Oferendas), Sêfer Tahará (Livro da Pureza), Sêfer Nezikim (Livro dos Prejuízos), Sêfer Kinyam (Livro dos Patrimônios), Sêfer Mishpatim (Livro das Sentenças) e Sêfer Shoftim (Livro dos Juízes). A gigantesca obra divide-se em 14 livros, 83 sinopses, 982 capítulos e milhares de versículos.

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Na abertura do primeiro livro, o Livro da Ciência, de forma concisa e extrema-mente lúcida, Maimônides integra pen-samento e Lei, dando a esta última uma legitimidade necessária, derivada da con-cepção de D us. Normalmente, tende-se a separar a obra filosófica da obra rabínica desse grande autor. Porém, essa introdução mostra claramente o quanto ambas se in-tegram num todo uniforme. Maimônides teve acesso à obra de Aristóteles através da rica mediação árabe do período, e leva em consideração, tanto na metodologia quanto nas reflexões teóricas, os procedimentos aristotélicos, para elaborar uma interpreta-ção racional sobre as razões de cada mitzvá e do conjunto de todas elas, como um modo de veneração a D us. O Guia dos Perplexos, sua obra principal de cunho filosófico - realizada posteriormente à Mishné Torá -, um verdadeiro exercício de exegese no qual mais de 1400 passagens bíblicas são elucidadas por ele, não deve ser compreen-dida à margem da produção da Mishné Torá. A última parte desse livro na verdade rea-firma o seu exer-cício realizado na Mishné Torá, e as primeiras partes podem ser enten-didas como um desdobramento das primeiras quatro halakhot da primeira parte

do Sêfer HaMadá – Hilkhot Iesodi HáTorá (leis referentes aos fundamentos da Torá), que é o modo como Rambam apresenta D us diante dos leitores:

Halakhá 1: O fundamento e a base da sabedoria é saber que há um primeiro ser e que Ele dá existência a todos os seres, e todos os seres no céu ou na terra, ou entre eles, não têm existência senão através da verdade da Sua existência.

Halakhá 2: E se fosse concebível que Ele não existisse, nada poderia ser.

Halakhá 3: E se fosse concebido que os outros seres, exceto Ele, não existissem, so-mente Ele seria, e Ele não cessaria de ser com a inexistência deles. Porque todos os seres requerem Dele, e Ele, abençoado seja, não requer de nenhum deles; portanto Sua ver-dade não é igual à verdade de nenhum deles.

Halakhá 4: E é isto que o profeta diz: “Mas o Eterno é um D us verdadeiro” (Je-remias 10:10). Somente Ele é a verdade, e nenhum outro tem verdade como a Sua verdade. E é isto que as escrituras dizem:

Para Rambam, a Halakhah é um processo cumulativo. De acordo com ele – e ele é

explícito nessa ideia -, ao lado da tradição recebida por Moisés, os sábios foram

introduzindo novas interpretações. Cada geração agrega novas considerações

normativas, derivadas de sua própria argumentação, ao corpo de conhecimentos

revelados que lhes foram transmitidos.

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“Além Dele, não existe outro” (Deut. 4:35)- isto é, não há ser verdadeiro além Dele, que seja como Ele.

Nessas compactas sentenças, Rambam apresenta D’us com uma visada aristotélica, como sendo o responsável e o causador de tudo. Todos os existentes no céu, na terra e entre eles, dependem Dele. Mas Ele não depende de nenhum deles. Essa é a noção de causa primeira, que Rambam toma de Aristóteles. O segundo fato que chama a atenção é que nenhum atributo, a não ser o da verdade, é utilizado para apresentar D us. E, de fato, grande parte do empe-nho do Guia dos Perplexos está voltado para desantropomorfizar a noção de D us, através de exercícios exegéticos que res-significam as passagens bíblicas nas quais aspectos da vida ou da dinâmica humana são projetados em D us. Maimônides leva às últimas consequências a noção de um D us indescritível - a não ser como verda-de - e que não depende para nada de Sua criação. Assim, ele se aproxima da noção de D us concebido muito mais como ideia do que como ser. Mas Rambam não chega propriamente a isto. Para ele, D us é um existente, porém um existente que só pode ser conhecido através do cumprimento de Seus mandamentos. Conhecer D us é uma mitzvá, e só através do cumprimento das mitzvót conhece-se D us. Por isto, ele lê no Decálogo “Eu sou o Eterno teu D us, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Êxodo 20:2), “Eu sou” como sendo um mandamento, o primeiro e es-sencial do qual todos os outros derivam

– como causa primeira. Isto quer dizer que o primeiro mandamento é o reconhe-cimento de um Ser que se dá a conhecer através dos mandamentos que transmite, que são os caminhos para conhecê-Lo. E, conhecendo-O, ou seja, andando por seus caminhos, cumprindo os preceitos, aperfei-çoam-se os homens e aperfeiçoa-se a vida dos homens. E o trabalho que Rambam organiza no Mishné Torá nada mais é do que uma facilitação, se assim pudermos chamar, para que os homens sigam esse conhecimento – um conhecimento que, como se vê, é, à melhor maneira judaica, antes de mais nada uma prática, um modo de relacionar-se com os outros e com o mundo que aperfeiçoe o acontecer da histó-ria. Na Mishné Torá, que pode ser traduzido como Segunda Torá e que popularmente foi chamada de Yad Hazaká –(Mão Forte), talvez porque yad representa o número 14 em hebraico –, as leis que se encontravam esparsas pelos diversos tratados do Talmud são fortemente reunidas. Logo na abertura do livro, Maimônides cita as 613 mitzvot – como que para não esquecer de nenhuma -, 365 das quais são preceitos que impedem alguma ação e 248 que demandam uma ação. Distribui todas as mitzvot ao longo dos 14 livros, recolhendo e juntando do mar do Talmud tudo o que diz respeito a cada uma delas. Ele não se limita a apresen-tar a lei, como se fosse um legislador, mas explica a razão de ser de cada uma delas, discorrendo sobre sua origem e elaboração e sua evolução através da história. Assim, por exemplo, no primeiro capítulo sobre

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as orações, depois de citar os versículos da Torá em que se determina a obrigação de rezar diariamente, Maimônides explica em detalhes e com incomparável clareza como surgiram os costumes da reza diária e como foram criados os trechos litúrgicos que compõem os livros de rezas. Não se trata apenas de um código civil. À dimensão ju-rídica, agrega-se uma outra pedagógica, de modo que aquele que aprende a lei, apren-de também o sentido dela. Cada capítulo dos muitos que inte-gram a obra é antece-dido por um prólogo que, de forma precisa, explica ao leitor o tema que está sendo trata-do. E, ao final de cada capítulo, segue-se um postulado moral ou um relato fabulado, de forma a que, junto com a razão que deve aprender a lei, desper-te-se também um sen-timento de apego a ela.

Não há dúvida de que essa obra mudou o panorama da vida judaica. Ainda em vida, através de uma intensa troca de cartas, grande parte da obra foi sendo esclarecida, e o tamanho de sua influência pode ser melhor ava-liado se lembrarmos que se tornou uma

referência obrigatória em todos os campos da tradição judaica, dos racionalistas aos místicos. Muitos autores consideram que sua obra freou um processo mais dinâmico no mundo da Halakhah, sendo uma dos principais responsáveis por sua cristali-zação. No entanto, devemos lembrar que, quando Rambam começou o seu trabalho,

a era do Talmud já tinha se encerrado, e que a vi-são do processo halákhi-co que Maimônides tem não é em nada cristali-zado. Ao contrário, para Rambam, a Halakhah é um processo cumu-lativo. De acordo com ele – e ele é explícito nessa ideia -, ao lado da tradição recebida por Moisés, os sábios fo-ram introduzindo no-vas interpretações. Cada geração agrega novas considerações norma-tivas, derivadas de sua própria argumentação, ao corpo de conheci-mentos revelados que lhes foram transmiti-dos. E é nesse processo de desdobramento da

Lei que os homens, aos poucos, vão apro-fundando seu conhecimento de D us, até que as esperanças messiânicas, das quais Maimônides, o racionalista, não abria mão, se realizem. ICI

Na sua introdução à Mishné Torá,

Rambam deixa claro que o que ele se

propõe é que todos os mandamentos

sejam perfeitamente conhecidos por

todos, de forma que pudessem encontrar

com facilidade os procedimentos

adequados, sem terem que se ver

obrigados a atravessar as

profundas polêmicas do texto talmúdico.

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Introdução

Judaísmo e Torá são indissociáveis. É praticamente impossível entender o

Judaísmo sem conhecer a Torá.Há duas premissas diferentes enfo-

cando o mesmo texto, a Torá – a Bíblia Hebraica: secular e religiosa; e isso cau-sa confusão. O estudo secular é o mais conhecido por ser difundido, através de traduções, nos idiomas locais. O estudo religioso tem por referência o texto ori-ginal, sendo que as traduções auxiliam, ou facilitam, a sua compreensão e acesso.

Os estudos acadêmicos da Bíblia He-braica dão ênfase ao conteúdo, à mensa-gem, portanto é indiferente usar o texto original ou traduzido, ou traduzido de tradução. Contém grande heterogeneidade de enfoques, premissas, e abordagens, com teorias chegando a um ápice de aceitação, e sendo abandonadas; sofrendo efeitos de interesses políticos, guerras, adaptando-se à mentalidade da época, ajustando-se às descobertas arqueológicas, e várias outras

mudanças. Tem raízes antigas, pois já no inicio da Era Comum surgiram questio-namentos sobre sua genuinidade, e di-vindade, e com o passar do tempo foram formuladas teorias sobre o número de au-tores, sobre datas em que foram escritos, e outras.

A grande maioria desses estudos foi e ainda é feita usando textos traduzidos, e, normalmente, com traduções dessas traduções, versões e atualizações, afas-tando-se cada vez mais do texto original hebraico. Por isso a análise baseada em texto – ou crítica literária – é o modo de estudo predominante para determinação de datas, de autores, de explicação de leis, de relatos históricos, da situação do povo na época, etc., bem como para elaborar premissas, tirar conclusões e encontrar comprovações. Os Hebreus, seu idioma, suas características indi-viduais e seu escrito, a Bíblia Hebraica, são analisados do ponto de vista da ci-vilização ocidental, apesar das inúmeras diferenças.

Visão Secular e Religiosa da Bíblia Hebraica, a Torá

Moishe Paim

Visão Secular e Religiosa da Bíblia Hebraica, a Torá

76 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

O Judaísmo tem sido encarado ora como religião, ora como estilo de vida, ora como cultura, ora como Ocidental, ora como Oriental; além de particularizações como: “meu Judaísmo”;“ na minha opinião o Judaísmo é...”.

No presente artigo apresentamos um resumo dos principais conceitos e ideias do enfoque secular da Torá, e alguns prin-cípios e conceitos do enfoque religioso.

Também trazemos trabalhos-pesquisa sobre relações entre o Judaísmo e civiliza-ções da Ásia e Extremo Oriente, uma vez que a relação do Judaísmo com o Ocidente e Oriente Próximo já é bem divulgada.

Visão Acadêmica

1. Sobre Bíblia HebraicaO método moderno de interpretação

histórica do Velho Testamento é de origem relativamente recente. O texto do Pen-tateuco atribui a origem da lei completa a Moisés, que o recebeu diretamente de Y-HWH no Monte Sinai. Só em 1521 E.C. a autoria mosaica do Pentateuco foi pela primeira vez nos dias de hoje posta em causa. Espinosa, segundo sua interpretação de um comentário de Ibn Ezra, expressou dúvidas sobre a autoria mosaica, dando-lhe uma importância até então não recebida, e apresentando uma formulação nova, que marcou permanentemente a crítica bíbli-

ca. Após essa nova abordagem, a origem mosaica do Pentateuco foi abandonada pelos críticos1.

Os primeiros cristãos usaram, primor-dialmente, a LXX (Septuaginta, como é conhecida a tradução para o grego). Eram usadas, também, outras traduções pois eram consideradas como sendo idênticas em natureza. No primeiro século da era

comum apareceram pessoas que questio-naram a genuinidade e autenticidade das fontes da Bíblia Hebraica até negando a sua fonte divina, como, por exemplo, os ensinamentos dos Gnósticos. Os Ofitas (precursores dos Gnósticos) desdenhavam do D’us da Bíblia Hebraica. O italiano Pto-lomeu (~145-180 E.C.) concluiu que os cin-co livros tinham por fontes D’us, Moisés

1.  Origin and History of Hebrew Law, John Merlin Smith.

Há duas premissas diferentes enfocando o

mesmo texto, a Torá – a Bíblia Hebraica: secular e religiosa; e

isso causa confusão. O estudo secular é o

mais conhecido por ser difundido, através de

traduções, nos idiomas locais.

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Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 77

e os Anciãos. Os heréticos começaram a estudar e analisar a Bíblia Hebraica de uma perspectiva subjetiva. O herege Marcion (filho de um bispo cristão) adotou uma interpretação literária do texto bíblico, concluindo que D’us era fraco, injusto e instável. Também os nazareus negavam a autoria mosaica da Bíblia Hebraica. No século III E.C., Porfírio (um dos principais expoentes da filosofia mística conhecida por Neoplatonismo) foi o primeiro a arguir que Daniel não era obra de um profeta. No século IV E.C., a critica literária começou a ser aplicada à análise bíblica, e, em séculos posteriores estudiosos levantaram proble-mas e questões sobre a Bíblia Hebraica, incluindo uma corrente que pregava ater-se ao sentido gramatical simples, independen-te de interpretações eclesiásticas.

O filosofo judeu Benedito Espinosa (século XVIII E.C.) é considerado por mui-

tos estudiosos atuais como o fundador da abordagem científica da Bíblia. Apre-sentou, em seu Tratado Teológico Político (1670) regras para interpretação das Es-crituras levando em consideração fatores como o estilo de vida, caráter, expectativas dos autores dos vários livros do Pentateuco como meio de determinar o proposito, a ocasião, a data que foi escrito.

Em 1790 surgiu uma hipótese da exis-tência de duas seitas obedientes a dois deu-ses E-lohim e Y-HWH (o Tetragrama). E ao longo do tempo outras hipóteses foram lançadas: As Escrituras seguiam padrão jurídico dos Códigos de Hamurábi, de Li-pit-Eshtar , dos Hititas; Adaptar os textos à antiga cultura do Oriente Próximo; Na Era do Iluminismo, caracterizada pelo enal-tecimento da razão, houve revolta contra autoridades externas; O Texto da Bíblia Hebraica deveria ser tratado com os mes-

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mos critérios aplicados aos textos seculares, sem considerar autoridades eclesiásticas, dogmas ou tradições religiosas; No iní-cio do século XIX E.C. foi desenvolvida uma “hipótese de documentos bíblicos fragmentados” postulando a existência de 40 fontes separadas na constituição do Pentateuco, comba-tida com vigor por estudiosos conven-cidos da autoridade mosaica; Pentateu-co e Livro de Josué constituiriam uma mesma obra, cha-mada de Hexateuco; “Documento Fundamental” (Grundschrift) ; “Hipótese da cristalização”; Exemplos de enfoques utilizados para crítica à Bíblia Hebraica: Filologia, Literário, Subjetivo, Fi-losófico, Histórico, Evolucionista, Arqueo-lógico, Antropológico, Jurídico, Psicologia primitiva, Zeitgeist (“Espírito da época”), Sitz in Leben des Volkes (“Importância da situação vivida pelos povos”); A Torá era um produto do estado Hebreu, ao invés de ser a base sobre a qual foi formado; Teoria pan-babilônica / “Grande Mesopotâmia”; Gordon (1962): Gregos e Hebreus eram civilizações com estruturas paralelas, de-rivadas de sua posição no Mediterrâneo, e não, diferentes, como se pensava.

Graf aderiu à “Teoria Suplementar”, e seus critérios, para a determinação das datas dos acontecimentos relatados na Bíblia Hebraica. Suas conclusões foram

abraçadas por Wellhausen, que desenvol-veu a “Hipótese Documental”, seguindo princípios Hegelianos de evolução, enca-rando as atividades religiosas dos Israelitas como impulsos primitivos e animalescos, destituindo as fontes históricas que des-

creviam a religião monoteísta dos Pa-triarcas. Devido à sua simplicidade e abrangência a me-todologia de Graf-Wellhausen tornou-se preferida, numa época empenhada em agrupar vários assuntos num único

princípio. Com o tempo várias vozes se levantaram contra a Hipótese Documental.

Alguns assuntos relacionados com estu-dos divergentes da Hipótese Documental: Os critérios puramente subjetivos de Graf foram contestados por muitos estudio-sos da época, devido a variados motivos e fundamentos; Na tentativa de atribuir datas aos documentos da LXX os autores extrapolaram a crítica literária movendo-se para a crítica histórica, que desde o inicio foi dominada por assunções errôneas, re-centemente comprovadas As Universidades britânicas exerciam um controle para que os que não simpatizassem com a Hipótese Documental fossem apontados para car-gos secundários, fortalecendo a influência da Hipótese Documental; Bissel atacou as pressuposições básicas da hipótese de Graf-Wellhausen; Orr apontou fragilidades

O amor é proporcional ao

ENTENDIMENTO; quanto maior o

entendimento, maior o amor.

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essenciais na aplicação do método; Sayce abandonou seu suporte à Hipótese Docu-mental devido às descobertas arqueológicas surgidas; Dahse mostrou ser impossível considerar que os nomes Jacob e Israel eram indicações de distintas fontes literárias; Vá-rias comparações entre MT ( o texto masso-rético da Bíblia Hebraica) e LXX indicaram outros defeitos e imperfeições dos estudos e conclusões; Estudos indicaram que as condições religiosas e culturais eram de um nível bem mais avançado do que a teoria de Wellhausen estava preparada para re-conhecer ou admitir; Erdmans (século XX E.C.) rejeitou a validade do critério de no-mes divinos indicarem seitas ou estágios de politeísmo; Möller (século XX E.C.) expli-cou que os dois nomes divinos indicavam funções diferentes: E(lohim), a atividade de D’us na natureza; J(aveh, o Tetragrama), o D’us da revelação; Dornseiff referiu-se aos nomes “Alexandros” e “Paris”, da Ilíada, de Homero, que se-gundo o critério da Hipótese Documental indicaria fontes “Alexandrista” e “Parisista” à Ilíada, de Homero. Meck, um reconhecido Orientalista, escreveu que a Hipótese Do-cumental é de natureza muito artificial; Umberto Cassuto foi outro feroz oponente da Hipótese Documental, e de-fendia a tese de que A Bíblia Hebraica foi escrita nos tempos do Rei Da-vid, por uma única pessoa, baseado em antigas compilações e narrativas; Yehezkel

Kaufmann escreveu que “os argumentos de Wellhausen se complementam bem, e ofereceu o que parecia um fundamento sólido para construir a casa da crítica bí-blica. Tanto evidências como argumentos contrários chegaram, até, a rejeitar, contu-do o estudo bíblico continua usando suas conclusões. O estudo bíblico entrou num período de buscar novos fundamentos” ; Bright (1960):” após duas guerras mundiais e outros incontáveis horrores, sobraram poucos que advoguem a teoria da evolução suficiente para explicar a história de Israel”; O estudo acadêmico da Bíblia Hebraica está em estado de fermentação. Todos os mo-delos convencionais para a compreensão da formação e desenvolvimento do Penta-teuco ficaram sujeitos à questionamento. Também apontou a impossibilidade de ordenar os documentos numa pura e clara progressão cronológica. Parece difícil che-

gar a um novo consenso. Os seguidores de Wellhausen aceitaram, incondicionalmen-te, sua liderança intelectual – assim como

Os estudos acadêmicos da Bíblia Hebraica dão

ênfase ao conteúdo, à mensagem, portanto é

indiferente usar o texto original ou traduzido, ou

traduzido de tradução

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80 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

este confessou ter agido com relação a Graf – no assunto de determinação das datas dos acontecimentos bíblicos. O excessivo detalhismo desses dois homens, combina-do ao seu menosprezo pelas opiniões dos outros estudiosos, tornaram seu mé-todo o dominante na crítica bíblica. A aplicação do esquema de Wel-lhausen pelos seus discípulos tornou-se um veículo in-voluntário para a expressão de fraquezas espe-cíficas implícitas no caráter nacio-nal germânico. É fácil perceber que os trabalhos dos estudiosos alemães contemporâneos manifestavam uma incapacidade egoísta de apreciar opi-niões diferentes das suas, atestando-se um superioridade ideológica e monopólio da verdade2.

Segundo A. Alt é difícil detalhar, his-toricamente, o crescimento de Israel, pois nenhuma nação observou ou deixou algum relato, nem mesmo os próprios Israelitas. Nós ficamos na dependência de coletâneas de sagas, transmitidas oralmente por longo

2.  Introduction to the Old Testament, Ronald Ken-neth Harrison, Theory and Method in Biblical and Cuneiform Law, Bernard M. Levinson.

tempo antes de adquirirem forma literá-ria. O processo por meio do qual as tribos israelitas se uniram no culto de Y-HWH é indubitavelmente muito complicado. Ha-veria algo na existente religião herdada

pelas tribos que preparou o cami-nho para o que vi-ria, de modo que o que aconteceu não parecesse uma quebra radi-cal com o passa-do, mas sim uma cont inuidade? Qualquer um que conheça o consi-derável poder de assimilação do povo judeu, imediatamente se inclinará a su-por que essa força

deve estar atuando desde o início, num extraordinário nível, que conquista tanto líderes como o povo.”

“Há um limite do que pode ser pro-vado cientificamente, mesmo pela mais bem sucedida comparação; e não devemos esquecer disso3.”

Embora essencialmente secular, o es-tudo acadêmico não deve dessacralizar a Bíblia Hebraica. Não se pode exilar o elemento sagrado de escritos que foram

3.  Essays on Old Testament history and religion - The G-d of Fathers , Albrecht Alt.

No início do século XIX E.C. foi desenvolvida

uma “hipótese de documentos bíblicos

fragmentados” postulando a existência de 40 fontes separadas

na constituição do Pentateuco, combatida

com vigor por estudiosos convencidos da

autoridade mosaica.

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Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 81

formulados com o propósito explícito de ser literatura sagrada, nem desconsiderar os significados de revelação, punição e redenção atribuídos a eventos da história dos antigos israelitas.

O desafio do estudo acadêmico da Bí-blia Hebraica, contudo, não se restringe à abordagem crítica. Os modos de expressão, categorias de pensamento e o ambiente sociocultural pressupostos nas narrativas e nas leis são estranhos ao pensamento ocidental, embora o Antigo Testamento seja o livro mais lido no mundo.

Debruçar-se, horas a fio, sobre o ori-ginal, implica reformular nosso padrão de pensamento, e mergulhar nas dimensões de uma racionalidade antiga e desconhecida, que se revela aos poucos, encantando-nos no processo de sua leitura interminável4.

2. Sobre TraduçõesHá quatro grandes eras de traduções

da Bíblia:1) ~200 A.E.C. – século IV E.C. De

origem Judaica e vernáculos grego (basi-camente a LXX) e aramaico. As traduções foram necessárias só devido ao fato de que grandes comunidades judaicas viviam aonde (Alexandria e Ásia Ocidental) aque-las línguas eram a norma.

Para os judeus da Diáspora era cada vez mais difícil de entender, pois os idiomas populares tornaram-se o grego e o ara-maico. Os Targums e a LXX tornaram-se

4.  Do Estudo Acadêmico da Bíblia Hebraica, Suzana Chwarts.

mais influentes. Filosofia grega de tradu-ção era “palavra-por-palavra”, que, no caso da LXX, foi aplicada num idioma Semítico, que possui sintaxe bem diferente5.

Nos sécs. III e IV A.E.C. (fim do perío-do Pérsico e início do período Helênico) surgiu o ponto-de-vista que, juntamente com a Lei Escrita (torah she bikhtav) D’us deu a Moisés, no Monte Sinai, uma Lei Oral (torah she be’al peh); consequente-mente, para compreender e seguir a Torá de D’us total e completamente, era essen-cial utilizar ambas as Leis, e não se dava ênfase na literalidade do texto, dando li-berdade para interpretações.

5.  Do Prólogo do livro Eclesiastes, de Ben-Sira: “Deve ler com muito cuidado e atenção pois, apesar de nosso esforço e indulgência em traduzir, frases podem ter sido traduzidas imperfeitamente. Pois o que está expresso no original hebraico não tem o mesmo sentido e significado quando traduzido para outra língua.”. O que estava sendo traduzido? Não uma obra literária comum, uma saga, um documento comercial, ou semelhante; estava-se traduzindo a Palavra de D’us. Para os Hebreus a Bíblia constituía a Palavra de D’us transmitida através de seus porta-vozes. Portanto não se brinca com tal tradução mas, sim, as reproduz o mais literalmente possível, sem introduzir o entendimento e interpretação próprios.

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82 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Para os judeus-cristãos, como para muitos judeus, em geral, a LXX era a Bíblia, e não a original, em hebraico. E em cada Era de Tradução da Bíblia, as versões sofre-ram revisões de vários tipos, primordial-mente relativas a idioma e interpretação.

2) Séc. IV- ~1500. De princípio Cató-lico-cristão. As línguas envolvidas eram, primordialmente, o grego e, posterior-mente, o latim (especialmente a tradução Vulgata). Os principais centros eram a Palestina e as emergentes comunidades cristãs do Império Romano. Cristianiza-ção das versões judaicas e do texto ori-ginal, em hebraico; isso ocasionou novos sentidos, acepções e nuances.

Geronimo (Hyeronimus) decidiu apren-der o hebraico para fazer sua tradução, para o latim, da Bíblia, apesar de já ter feito tradução dos Salmos da LXX6.

A Vulgata não representava a unidade que se imaginava. Havia novas traduções e traduções de traduções. Quaisquer que sejam os méritos intrínsecos e da autoridade recebida pela Igreja, da LXX, não era mais do que uma tradução e, portanto, secundá-ria. Além disso, era inútil em controvérsias com judeus que, justificadamente, a apon-tavam como travesti da Bíblia Hebraica7.

3) 1500- ~1960. Essencialmente Pro-testante. As línguas eram: alemão, inglês, francês, holandês, espanhol, italiano e escandinavo.

6.  H.F.D. Sparks, Cambridge History of Bible.

7.  H.F.D. Sparks, Cambridge History of Bible. Como tradutor, Geronimo era inconsistente e, à vezes, ne-gligente.

Nos séculos XIV-XV a Europa Oci-dental começou uma crescente mudança econômica, política, social e, também, re-ligiosa. Essa nova ordem influiu no estudo e tradução da Bíblia, e o latim já não era linguagem acessível. Duas versões8 ajuda-ram a determinar a filosofia da tradução para os cinco séculos seguintes, quando uma nova ordem social resultou dos efei-tos das duas Guerras Mundiais. Para se fazer essas traduções a partir do original em hebraico, foram exigidos vários anos de estudo da língua. O grego e o hebraico voltaram, após quinze séculos, ao foco da atividade intelectual.

4) De escopo Judaico-Católico-Protes-tante. O idioma predominante é o inglês, e, secundariamente, o francês. Tentativas dessas comunidades, nos Estados Unidos, de deixar a exegese pura, e a reprodução “palavra-por-palavra” do texto hebraico ou grego9.

No hebraico, as letras, ainda que não sejam ideogramas, produzem palavras impregnadas de sentidos que só emergem diante do leitor quando este outorga a essa escrita as vogais necessárias para que, dentre a pluralidade de sentidos possíveis, um deles se realize na leitura. A não utilização de sig-nos para ritmar a leitura, tais como pontos e vírgulas, também contribui para que o texto assuma essa condição de obra em aberto e,

8.  Em alemão, por Martin Luther (1483-1546) e em inglês, por William Tyndale (1495-1536).

9.  A history of bible translations and the North-Amer-ican contribution, Harry M. Orlinsky/Robert G. Bratcher.

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Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 83

dotado de ambiguidade, transforme o ato de ler, de interpretar, num desígnio do leitor10.

3.Sobre LeiO método moderno de interpretação

histórica do Velho Testamento é de origem relativamente recente. O texto do Pentateu-co atribui a origem da lei completa a Moi-sés, que o recebeu diretamente de Y-HWH no Monte Sinai. Só em 1521 E.C. a autoria mosaica do Pentateuco, pela primeira vez, foi posta em causa. Espinosa, segundo sua interpretação de um comentário de Ibn Ezra, ex-pressou dúvidas sobre a autoria mosaica, dando-lhe uma impor-tância até então não recebida, e apresenta ndo uma formula-ção nova, que marcou perma-nentemente a crítica bíblica. Após essa nova abordagem, a origem mosaica do Penta-teuco foi abandonada pelos críticos11.

A mais importante fonte de informa-ções sobre a história jurídica dos Hebreus é o Pentateuco. Vários códigos e leis são

10. Destraduzindo a Bíblia: A realização utópica de Haroldo Campos, Enrique Mandelbaum.

11. Origin and History of Hebrew Law, John Merlin Smith.

incluídos na narrativa contínua que se ini-cia com a criação mundo e termina com a morte de Moisés. A tradição judaica, bem como a própria Bíblia, atribui todos eles ao mesmo período, o período da vida de Moisés, que corresponde aproximadamen-te ao final do século 13 A.E.C.

A escola Wellhausen12, por outro lado, distingue entre a redação final do Penta-teuco, que é fixado no final do século 4 A.E.C. e as diversas fontes usadas pelo re-dator. O mais antigo é o pequeno Código

Ex xxxiv 17-28, que usa o nome divino J(ahveh), e que pode ser atribuído à época de Moisés. Outra coleção é Êx. xx--xxii, pertencente a uma fonte que utiliza o nome divino E(lohim), que deveria ser datado para o período de Josué ou dos Juízes, ou seja, cerca do sé-

culo XII A.E.C.. O livro D(euteronômio), de acordo com esta escola, é o livro da lei encontrada no Templo em 621 A.E.C. e está conectado com a reforma cultual do rei Josias. Outra coleção, a chamada H(Códi-go de Santidade-Holiness): Lev. xviii-xxvi,

12.  J. Wellhausen, Prolegomena to the History of Ancient Israel.

Qualquer um que conheça o considerável poder de

assimilação do povo judeu, imediatamente se

inclinará a supor que essa força deve estar atuando

desde o início, num extraordinário nível, que conquista tanto líderes

como o povo.

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84 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

é considerado anterior a 600, enquanto o P(Código Sacerdotal-Priestly) pertence ao período pós-exílio e foi identificado por esta escola com a lei promulgada por Esdras, na segunda metade do século V A.E.C. Esta fonte consiste, principalmente das porções legais da primeira parte de Lv e Nm bem como uma revisão de Ex e muitas passagens de Gn l.

Outra visão so-bre a estrutura dos códigos da Bíblia foi proposta por A. Jir-ku. De acordo com sua “ lei de ferro”, o autor de um código segue sempre o mes-mo estilo, de modo que as diferenças de estilo indicam a existência de diferentes fontes. Deve-se, portanto, distinguir no Pentateuco entre dez formas de expres-são, tais como casuística ou apodíctica, no singular ou plural.

A primeira classificação foi aceita e desenvolvida por A. Alt. A formulação casuística, em sua opinião, resulta da ju-risprudência dos Cananeus e corresponde às coleções de outras leis do antigo Oriente. O sistema sugerido por este autor, embora ainda communis opinio, recentemente so-freu muitas críticas. Sabemos muito pouco das leis dos Cananeus para sermos capazes de identificá-lo com as passagens casuísti-cas do Pentateuco. A maioria dos livros de leis do Antigo Oriente, é verdade, é formu-lada em um padrão casuístico , mas existem

exemplos do estilo apodíctico fora de Israel. Até mesmo a regra, que um legislador não muda seu estilo a menos que haja citações de fontes diferentes, está aberto à discussão. Se alguns elementos são importantes para ele, ele pode deixar o discurso apodítico, especialmente quando estão envolvidas questões morais e religiosas.

Para efeitos de história legais, não devemos colocar muita ênfase nos aspectos literários de pesquisa bíblica. Ideias encontradas no Código Sacer-dotal (Priestly), por exemplo, podem ser mais antigas e sua re-

dução à escrita pode ter sido a etapa final de uma longa tradição oral. Escolas mais recentes, como os de Crítica da Forma e Upsala, corretamente, tomam uma posi-ção mais sintética em relação a variedade de fontes. Os estudiosos suecos atribuem muito mais importância à tradição oral subjacente à literatura bíblica do que à sua forma escrita. Ao lidar com a estrutura social e as instituições de Israel nós não confiamos nos dados literários e crono-lógicos, mas sim nos concentramos nas tendências do desenvolvimento, tal como resulta da Bíblia como um todo.

A tradição hebraica não fazia distin-ção entre as normas da religião, moral e lei. Condizente com essa origem divina comum, o homem foi obrigado a obede-

O convívio entre o crer e entender está na própria base do Judaísmo, de forma indissociável. Não existe “fé cega”.

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Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 85

cer todas com igual consciência. O estilo apodítico, em especial, significa que o comando provém de D’us e que a sua promulgação foi parte de uma cerimônia religiosa. Regras de culto frequentemente aparecem em uma sequência de leis civis (cf. Êx. xxii-xxiii) e os pedidos dos Profe-tas para justiça fazem parte de seu ensino de lealdade para com D’us.

A distinção entre religião e lei já era, no entanto, conhecida nas leis da Babi-lônia dos Hititas assim como no Código de Gortyn e Grego e nas Doze Tábuas romanas. Isso não significa que o Estado não tinha interesse no exercício dos de-veres religiosos dos sacerdotes ou cida-dãos. Mas os assuntos religiosos, embora de interesse público, pertenciam a uma categoria separada da lei do Estado; em Israel, por outro lado, nenhuma diferença era sentida entre os dois e nenhum deles eram criações do Estado.

O pensamento hebraico, assim, reagiu sobre o conceito mesopotâmico de ordem cósmica. As várias forças da natureza eram compreendidas pelos babilônios como deuses vivos vivendo numa espécie de super-estado ao abrigo de um sistema legal todo abrangente. O monoteísmo de Israel não mudou essa ideia de uma crença na ação contínua de um poder discricionário de D’us. O conceito de Es-tado foi mantido, mas foi alterado para a ideia, se assim pode-se dizer, de uma monarquia constitucional e não de uma tirania. É com base nessa crença que as questões de teodiceia desempenham um

papel tão importante no pensamento bí-blico. Questões como a de Abraão (Gn xviii 25) e Jó tocam os fundamentos da religião hebraica13.

Os intérpretes do Código da Aliança precisam chegar a termos com o fato de que ele é parte de uma ampla tradição literário-legal, e só pode ser entendido em termos daquela tradição. O ponto de partida para a interpretação deve ser a presunção de que o Código da Aliança é um texto coerente compreendendo leis claras e consistentes, da mesma forma de seus antecessores cuneiformes. Apa-rentes incoerências devem ser atribuídas ao estado de nossa ignorância sobre o contexto social e cultural das leis, não necessariamente ao desenvolvimento his-tórico e, certamente, não a um excesso de qualquer sutileza ou incompetência da parte do seu compilador14.

Sobre Culturas e Civilizações

Não é claro quando se iniciou a distin-ção entre Oriente e Ocidente e, conforme encontramos em Paul Goodman (extraído de “A History of the Jews”), o judaísmo é anterior a essa divisão: “A história dos

13. Hebrew Law in Biblical Times, Ze’ev Falk; Essays

on Old Testament history and religion-The Origins of Israelite Law, Albrecht Alt.

14. What Is The Covenant Code? Raymond West brook.

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86 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Judeus começa nos primórdios da civili-zação humana. Mas enquanto a descen-dência das outras nações foi perdida ‘nas brumas da mitologia’, a Bíblia preservou um relato notavelmente simples e vívido das origens e do início da história do povo chamado Hebreus, Israelitas ou Judeus”. “A origem do povo Hebreu é um enigma. Certamente eles não eram uma raça dife-rente, nem tinham características físicas suficientes para distingui-los das demais nações ao seu redor15”.

O Judaísmo precedeu religiões e civili-zações influentes no Ocidente e no Oriente, conforme Paul Goodman:

“Se tirássemos os Judeus da esfera do pensamento e da vida – se imaginás-semos que não existiram aqueles que geraram as forças espirituais, dogmá-ticas e éticas do Cristianismo e do Is-lamismo (a réplica árabe do Judaísmo), que vieram ao mundo, que nós nada soubéssemos deles e das influências Hebraicas, as quais agiram substancial e repetidamente mudando o curso da História – então ambas as civilizações, Oriental e Ocidental, nos pareceriam irreconhecíveis.”

O Judaísmo não é identificado, exclu-sivamente, com o Ocidente ou Oriente, tendo, conseqüentemente, sofrido devido a essa não-identificação; por outro lado essa

15. História da civilização ocidental: do homem das cavernas às naves espaciais, Edward Mcnall Burns.

vida resultou numa cultura, que preza os valores dos dois lados, permitindo parti-cipar positivamente nos seus desenvolvi-mentos. Segundo Walter G. Muelder, reitor da Escola de Teologia da Universidade de Boston, “desde que a questão Oriente--Ocidente foi levantada, o Judaísmo tem sido mal-entendido e mal interpretado, principalmente devido ao viés cristão e à forte noção antissemita contra os judeus ou tudo o que houvesse no Judaísmo.”

Devido a boa, e disponível, documen-tação consegue-se identificar a influência do Judaísmo na Civilização Ocidental.

A civilização ocidental é o produto de duas civilizações imensamente poderosas. De um lado, a Grécia antiga. Do outro, o antigo Israel. Atenas e Jerusalém são duas culturas muito diferentes e sempre assumimos que podiam ser razoavelmen-te traduzidas uma para a outra. A antiga Grécia e o antigo Israel eram duas formas de se falar das mesmas coisas. Assumimos isso porque a cultura europeia está basea-da no Cristianismo, que virou, depois da conversão de Constantino em 327 E.C., a força cultural dominante na Europa. E o Cristianismo é a síntese dos dois. Nasceu em Israel, mas sua área de atividade estava em Grécia e Roma, o mundo helenístico. Portanto, tínhamos uma cultura baseada no Cristianismo, que juntou o mundo do antigo Israel e o mundo da antiga Gré-cia. Por isso achamos que um podia ser traduzido para o outro.

Entretanto, embora os primeiros cris-tãos fossem, de fato, judeus, o que é pro-

Visão Secular e Religiosa da Bíblia Hebraica, a Torá

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 87

fundamente significativo é que os primei-ros textos cristãos estão todos em grego. Desde seu próprio começo, o Cristianismo – embora tivesse partes de Judaísmo – se expressou na linguagem da Grécia. E isso influenciou a civilização ocidental até os dias de hoje. No coração de nossa civi-lização há uma tensão não reconhecida e não resolvida entre as partes gregas e as partes judaicas, e as partes gregas foram dominantes.

Não se t rata apenas de que no Judaísmo há pala-vras que não se po-dem traduzir para o grego. É muito mais do que isso. A estrutura profunda do pensamento ju-daico não pode ser traduzida para as categorias domi-nantes do pensa-mento ocidental. O pensamento ocidental está baseado num modelo grego, muito diferente do mo-delo judaico. E como não percebemos isso, achamos que o Judaísmo era muito mais simples, domesticado e dócil do que é na verdade16.”

“Dentre todos o povos do antigo Oriente, nenhum, com a possível exceção

16. O que é fé? Rabino-chefe do Reino Unido, Jonathan Sacks.

dos Egípcios, tiveram maior importân-cia para o mundo moderno do que os Hebreus. Foram eles que, obviamente, nos proveram com a maior parte dos fundamentos da religião Cristã – seus Mandamentos, os relatos da Criação e do Dilúvio, seu conceito de D’us como Legislador e Juiz e mais do que dois terços da sua Bíblia. As concepções hebraicas de

moralidade e teoria política também ti-veram profunda inf luência nas na-ções modernas, es-pecialmente aque-las aonde a fé Cal-vinista era forte17.”

“Os Israelitas, ou Hebreus, eram diferentes em sua religião, porque, ao contrário dos outros povos do Oriente Próximo, eles rei-v indicavam que seu d’us era o único

d’us; que ele fez o mundo e tudo que nele existe, mas estava separado deste mundo,e que tinha feito um pacto especial com eles e, como parte desse pacto, ele deu a eles uma coleção completa de leis e regras de como viver, como cultuá-lo. Os Israelitas, dessa forma, contribuíram para o Ociden-te com o monoteísmo. Essa contribuição

17. História da civilização ocidental : do homem das cavernas às naves espaciais, Edward Mcnall Burns.

A civilização ocidental é o

produto de duas civilizações

imensamente poderosas. De um

lado, a Grécia antiga. Do outro, o

antigo Israel.

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88 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

foi importante não somente como re-ligião ou teologia, mas também por-que o monoteísmo causou uma distin-ção radical entre o divino e o humano. Essa distinção tem duas consequências. Primeiramente, ela enfatiza os valores morais dos atos humanos e, assim, ajuda a criar a ideia de uma consciên-cia individual e da responsabilidade individual. Segundo, direciona a atenção humana para entender a natureza, tanto humana quanto não-humana, e esse im-pulso, junto com o racionalismo grego e os modernos princípios europeus de li-berdade e tolerância, tornaram possível a Ciência e a Democracia18”.

Um estudo comparativo do Veda e da Torá19 mostra várias afinidades, contra-riamente à caracterização estereotipada ressaltando as oposições entre “Hinduís-mo” e “Judaísmo”, e sugere que represen-tam duas espécies do mesmo gênero. O modelo de escritura exemplificado pelo Veda e pela Torá é enraizado num modelo

18. From Plato to NATO: the idea of the West and its opponents, David Gress.

19. Veda and Torah, Profa. Dra. Barbara A. Holdrege.

de tradição religiosa diferente dos para-digmas de tradição religiosa que fun-damentam as con-cepções cristãs do Novo Testamento, ou das concepções islâmicas do Qu’rãn, e é uma alternativa para repensar a mo-nolítica concepção de tradição religiosa baseada no Cristia-nismo, que tem ten-dido a dominar os estudos e pesquisas acadêmicas.

O paradigma de tradição religiosa de-senvolvido a partir do contexto cristão dá precedência a categorias como: crença, doutrina, teologia, e delineiam noções de tradição-identidade que estão enraizadas no caráter missionário do Cristianismo. As tradições brâmanes e rabínicas ofe-recem uma alternativa com prioridades em: prática, observância e leis e tradi-ção-identidade priorizando categorias étnicas e culturais, predominantemente não missionárias.

O Veda e a Torá assumem um papel de símbolos multivalentes. Cada um tem status e forma de um símbolo que possi-bilita legitimação transcendente para a totalidade de tradição normativa; cada um assume uma função dupla: um cor-po circunscrito por texto, e um símbolo

Visão Secular e Religiosa da Bíblia Hebraica, a Torá

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 89

aberto que pode ser estendido para incluir qualquer texto normativo, ensinamento, prática ou tradição20.

Ananda21 aponta alguns princípios básicos do Hinduísmo e do Judaísmo. Comenta que, efetivamente, a história sempre começa acompanhada por cren-ça ou fé; contudo, tem se tornado uma norma, especialmente entre os autores modernos, iniciar com história, e todas suas tendências, para racionalizar o início do homem nesta terra. Apesar de não ser simples a questão se o início foi a história ou a fé, autores modernos enfatizam, vee-mentemente, suas posições do seguinte modo:” O Judaísmo, no seu começo, não possuía ‘princípios básicos’. Nem o Penta-teuco ou os Profetas estabeleceram credo ou doutrina que pudesse ser considerado como fundamento do Judaísmo. A Bíblia contém, somente, uma declaração que é: ´Shemá Israel...(Escuta, ó Israel, O Eterno é nosso D’us, O Eterno é Um’.

20.  No nordeste da Índia, na massa de terra que fica entre Mianmar (antiga Birmânia) e Bangladesh, vive um pequeno grupo de pessoas que vêm praticando o Judaísmo desde a segunda metade do século XX E.C. Eles não assumiram uma “nova” religião. Essas pessoas, na verdade, voltaram à religião de seus an-cestrais. Eles chamam a si mesmos Bnei Menashe (ou Manmaseh), descendentes da tribo de Menashe, uma das dez tribos perdidas. Também conhecida como a Shinlung, os Bnei Menashe relatam sua história de exílio do Reino do Norte de Israel em 721 A.E.C. em toda a rota da seda, finalmente, terminando na Índia e Myanmar (Birmânia). A história dessas pessoas é surpreendente. Depois de milhares de anos de exílio, eles redescobriram suas raízes e estão retornando ao Judaísmo. (http:www.bneimenashe.com).

21.  Hindu View of Judaism, Ananda.

O Rabino Saadia Gaon22 escreve: “Por que dizemos nas preces ‘Nosso D’us e D’us de nossos pais’? Há dois tipos de pessoas que acreditam em D’us. Os que acreditam porque sua fé tem sido transmitida de pai para filho, e é uma fé forte; e os que atin-giram a fé através de busca intelectual. A diferença entre os dois: o primeiro tem a

vantagem da fé inabalável – independente de questões com que se depare, mas tem a falha de ter sido dada por uma pessoa (seu pai ou seu mestre), sem racionalização; o segundo tem a vantagem de ser fruto de esforço próprio, mas pode ser mudada por algum argumento convincente.”.

O Dr. Saeki23 descobriu a tumba de Ha-da-no-Kawatsu, chefe da tribo Hada (ou Hata) e do templo chamado “Osake Jinja” (“Templo do Rei David”). E após quarenta

22. Livro de Crenças e Opiniões (Emunot VeDeot), cap. III.

23. Ikuro Teshima, aluno e sucessor do prof. Yoshiro Saeki, em seu livro The Jewish Diaspora in Japan – the tribe of Hada.

A maioria dos filósofos pensam

sobre D’us da maneira mais logicamente inteligível.

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90 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

anos de intensi-vos estudos con-cluiu que a tribo Hada era de ju-deus da diáspora, que chegaram ao Japão no início da Era Comum, muito antes do que o Budismo, que lá chegou em meados do século VI A.E.C.

Em uma vi-sita do autor, Te-shima, ao templo de Osake, em Sa-goshi, os sacerdo-

tes lhe mostraram uma máscara do rei Ko, e, conforme a história da antiga China, o ideograma Ko se refere às terras do ocidente. Há teorias de que tal máscara foi trazida por Hada-no-Kawatsu, e outra de que era do próprio Kawatsu. Quando o Dr. Saeki viu a foto da máscara exclamou, exultante: “É, seguramente, a feição de um judeu!”.

Teshima diz que os primeiros imigrantes que chegaram na formação do Japão provi-nham de diversas regiões da Ásia, Malásia e Polinésia, e outro importante grupo de semitas, incluindo a tribo de Hada, cujas origens são traçadas até a antiga terra de Israel. O reino de Hada é frequentemente mencionado nos relatos chineses da época.

Na mitologia japonesa encontramos elementos profundamente marcados pelo Judaísmo.

No reinado do imperador Ojun, século III E.C., um líder de Hada, chamado de Rei de Yudzuki24 veio ao Japão, voltou à sua terra e retornou ao Japão com 18.680 pessoas que se instalaram na Rota da Seda. Posteriormente, foram cativos dos chineses e participaram, brutalmente oprimidos, da construção da Grande Muralha.

Teshima traz fatos que indicam que Shih Huang-Ti, sec. III A.E.C., que unificou o império chinês, e cujo nome dá origem ao nome do país (China), tinha origem judaica. Sambem traz indicações de que a família real japonesa, em épocas passadas, seguia o rito shintoista chamado Yahada – que tem ligações com o Judaísmo. A princesa Mikasa, irmã do imperador Hi-roito, é arqueóloga de renome e descobriu num antigo espelho de ouro, pertencente à família real, a inscrição do Tetragrama (o nome Divino de quatro letras).

A Prof. Dra. Vera Swarcz25 cita que as civilizações Chinesa e Judaica são as mais antigas e ininterruptas civilizações da terra com tradições e idiomas que resistiram aos milênios. Apesar de terem histórias diferentes, cada qual com sutilezas no vo-cabulário para a transmissão da memória cultural, é significativo que os caracteres

24.  Dr. Saeki explica que Yuzdu deriva de Yehuda, e o sufixo “ki” significa “recém-chegados, novos imigrantes”.

25.  Especialista em Estudos Asiáticos, poliglota — incluindo o chinês — em “Bridge across time”.É autora de importantes obras sobre o tema, incluin-do um trabalho de três volumes sobre a história da intelectualidade chinesa, vivia e estudava na China já nos anos 70.

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usados hoje no Diário do Povo podem estar diretamente ligados às inscrições em ossos, do século VII A.E.C., bem como o fato de cientistas judeus publicarem suas mais recentes descobertas no mesmo idioma dos textos bíblicos, de mais da 3500 anos. Chineses e Judeus podem contemplar seu passado com familiaridade, reconhecendo seus ancestrais, como se estivessem con-versando com eles hoje. Essa continuidade não pode ser atribuída a acidente histórico ou de geografia. Entender essa conexão requer um considerável esforço intelectual e de abstração. Outras antigas civilizações também possuem memória com profun-das raízes, mas que, ao longo do tempo, tiveram interrupções e esvaeceram.

Meng Jiao, poeta da dinastia Tang (618-907), advertiu: “Se você abandonar a his-tória, não lhe restará vontade para ações morais. Se der as costas para os que te an-tecederam, as armas em suas mãos quebra-rão e será impossível dominar o presente”. Similarmente diz o Salmista, sobre o exílio da Babilônia (Salmo 137). Cada poeta fala sobre a memória como imperativo cultural e ético. Cada um usa diferentes metáforas para alertar sobre os perigos do esqueci-mento e as dificuldades da recordação.

Outra afinidade entre essas civilizações é que ambas encorajam, e exigem, atenção meticulosa e apego à literalidade dos tex-tos. Somente uma pessoa treinada e letrada pode apreciar as tradições e transmiti-las; somente quem lembra (especialmente tex-tos básicos e clássicos) pode tornar-se um arquiteto de continuidade cultural.

No entanto, há diferença na motivação. O conceito de um D’us que está no mundo, e, concomitantemente, o transcende é fun-damental para todas as práticas judaicas, e o lembrar é considerado um preceito religioso, não somente um hábito cultural. No caso chinês, o compromisso com a memória provém do conceito organicista do universo.

Outra diferença é com relação ao tem-po. Os sábios-estudiosos confucionistas, assim como o povo em geral, viveram qua-se ininterruptamente em sua terra natal, sendo a relação com o espaço mais forte do que a com o tempo. A história dos judeus é marcada por frequentes tentativas de sepa-rá-los de sua terra (apesar de que alguma parte do povo sempre conseguiu ali viver), e sua ligação com o tempo é muito forte, como descrito por Ahad Ha-Am (Asher Ginzberg) sobre a santidade do Shabat (que é função do tempo não do espaço): “Aquele que verdadeiramente sente em seu coração uma conexão com a vida de seu povo através das gerações vai achar quase impossível imaginar a existência do povo de Israel sem a Rainha Shabat”.

Apesar dessas diferenças, seu aluno David Fine percebeu uma similaridade essencial e escreveu que Chineses e Judeus compartilham uma “tradição Judeo-Con-fucionista que conservou a identidade de dois grandes povos através de 3000 anos” o que contraria generalizações da tradição judaico-cristã, que frequentemente nega os discernimentos espirituais da Bíblia Judaica. No seu ensaio, Fine se detém

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nas práticas culturais chinesa e judaicas e encontra analogias, ao ponto de pare-cerem idênticas. Por exemplo, enfatiza a similaridade entre a posição cultural do rabino e do sábio-estudioso chinês, e entre o ritual confucionista (li) e a lei judaica (halachá).

E vejamos o que se encontra no livro Zohar (1:99b), que faz parte da Torá:

“Disse Rabbi Abba: Um dia che-guei a uma cidade do povo do Orien-te, e disseram-me alguma sabedoria que tinham herdado desde tempos antigos. Eles também tiveram li-vros que explicavam esta sabedoria, e eles me trouxeram um tal livro. Neste livro estava escrito que quando uma pessoa medita neste mundo, um espírito (ruach) é transmitido para ele desde o alto. O tipo de espírito depende do desejo de que ele se liga. Se a sua mente se liga a algo sublime e sagrado, então é isso que ele atrai para si. Mas se sua mente se liga ao ‘Outro Lado’, e ele medita sobre isso, então isso será o que ele atrai para si. Eles disseram: ‘Tudo depende da palavra, ação e do desejo do indivíduo de ligar-se. Através desses ele atrai o lado ao qual ele se apega’. Nesse livro eu encontrei todos os ritos [idólatras] e práticas envolvidas na ado-ração das estrelas e constelações. Ele incluía as coisas necessárias para tais ritos, bem como instruções de como se deve meditar, a fim de atrair para si as influências.

Da mesma forma, aquele que deseja unir-se ao alto através de Ruach HaKo-desh deve fazer isso com ação, palavra e desejo do coração, meditando nessa área. Disso é o que depende quando alguém tem desejo a algo e atrair a in-fluência para si....

Eu lhes disse: ‘Meus filhos, as coisas desse livro são muito próximas dos en-sinamentos da Torá. Mas vocês devem se afastar desses livros, para que seus corações não sejam atraídos para suas práticas [idólatras] e todas as outras [os facetas] lá mencionadas, e para que não sejam desviados de servir o Santo, Abençoado Seja’ ”.

Todos estes livros podem confundir uma pessoa. Isso ocorre porque o povo do Oriente tinha grandes sábios, que herda-ram essa sabedoria de Abraão. Ele a tinha dado aos filhos de suas concubinas, como está escrito, “Para os filhos das concubinas, Abraão deu presentes”(Gn 25:6) [Origi-nalmente essa era sabedoria verdadeira], mas depois foi transformada em muitos lados [idólatras].”

A Visão Religiosa1. Lógica de estudo

O formato ocidental padrão é que, para explicar um assunto (numa publicação ou

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Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 93

num livro, por exemplo) é necessário expor a lógica de forma sequencial, como, por exemplo, em capítulos, cuja numeração indica a sequência, e os conceitos vão sendo expostos ordenadamente. Contudo, como fazer isso quando os conceitos a serem apre-sentados são entrelaçados ou concomitan-tes? Ao explicar um já é necessário explicar o outro, e vice-versa. Ao apresentar um conceito antes de outro há a possibilidade de ficar com a impressão de que o anterior é mais importante do que o posterior, e isso influir na compreensão.

No Talmud – o exemplo clássico e mais conhecido da forma de estudo judaico – é comum que os conceitos, princípios, opiniões estejam espalhados pelo texto, e em diversos livros. Com a lógica sequen-cial é difícil de seguir seu raciocínio. Mas a Ciência e a Tecnologia têm fornecido muitas ferramentas que facilitam a com-preensão de conceitos e ideias da Torá, inclusive alguns bem difíceis. No caso em pauta, de interdependência de conceitos, encontramos na internet o recurso comum do link. Um texto pode conter palavras ou conceitos não conhecidos e, através de links, pode-se consultar a explicação e continuar a leitura do texto. Podemos citar, ainda, pesquisas interdisciplinares, onde distintos ramos científicos são envolvidos simultaneamente.

2. ModelosComo definição de ‘Modelo’, neste tex-

to, adotamos a seguinte:“Representação, esquema ou conjunto de hipóteses que

descrevem, ou interpretam, um estrutura, fenômeno ou fato, de modo simplificado, fragmentado”.

O uso de modelos é necessário quando há dificuldades para entender um assunto no seu todo, e essa é uma prática comum de áreas de pesquisa a atividades práticas. Uma maior complexidade pode exigir diferentes modelagens: (a) Modelos si-multâneos, onde o assunto é representado, interpretado, explicado, por intersecções entre os modelos; (b) Cada Modelo trata de uma parte, e o conjunto explica o todo. Se a abrangência do assunto aumentar, pode ser necessário modificar a mode-lagem; se não houver esta necessidade, admitimos que a modelagem existente tem boa consistência. Deve-se levar em conta, também, que há diferenças entre ‘Modelo’ em Ciências Exatas, Humanas, Biológicas. A Torá pode ser considerada Filosofia, História, Religião, Teosofia, Ciências Sociais, etc., cada qual com seu significado específico de ‘Modelo’.

Significativamente, observamos dife-rença de enfoque nos nomes usados: Sefer Torá e Bíblia. O nome usado na academia é Bíblia, que provém da palavra grega biblos (papel, livro). Sefer provém da raiz “SFR .(מספר) a mesma da palavra número ,”(ספר)A Bíblia dá prioridade para o conjunto (livro, papel aonde estão os escritos), en-quanto Sefer não abandona o conjunto, mas, ao mesmo tempo, se atém à impor-tância de cada unidade.

Para entender o “assunto” Torá, também necessitamos de um modelo.

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Por abranger diversas e distintas áreas, modelos simples podem até confundir a compreensão e as conclusões. Por isso, neste artigo apresentamos uma visão da Torá bem mais ampla do que a tradicio-nalmente conhecida no meio acadêmico na medida em que os modelos tradicionais são insuficientes para analisar e permitir a apreciação da grande riqueza nela contida.

3.Torá: Escrita e OralTorá é uma palavra hebraica com

algumas conotações, entre elas: instru-ções, ensinamentos, ordens de D’us para o mundo, e para o povo de Israel; referência a toda a Bíblia Hebraica, também conhe-cida por Velho Testamento; referência ao chamado Pentateuco; Lei mosaica; Leis e recomendações D-ivinas. No presen-te artigo usamos a palavra Torá tanto significando os cinco livros escritos por Moisés, segundo o que recebeu de D’us, como no sentido mais amplo que abrange as formas escrita e oral.

A Torá possui duas formas, que se complementam totalmente: a forma escrita e a forma oral. Há uma ideia errônea de que exista uma Torá Escrita e uma Torá Oral, como se houvessem duas Torá.

A Torá Escrita é constituída por cinco partes, escritas em pergaminho. A escrita e o pergaminho precisam seguir muitos detalhes para que possam ser considerados um Livro da Torá (Sefer Torá, em hebrai-co). Uma de suas particularidades é que o Sefer Torá adquire santidade, o que o torna diferente de um livro comum.

Essa santidade (kedushá, em hebraico) é um conceito pouco conhecido e familiar. Não deve ser confundido com espiritua-lidade, apesar de que o espiritual é parte integrante da Torá – e do Judaísmo. O mesmo texto do Sefer Torá, escrito sobre papel adquire uma santidade, mas dife-renciada da do Sefer Torá.

No texto da Torá Escrita não está claro o que são ordens, o que é relato histórico, o que são recomendações, etc., pois é com-plementado pela forma Oral. Há milênios existem pessoas que não conheciam, ou não aceitaram essa forma Escrita-Oral, e do limitar-se somente à forma escrita decorre uma compreensão diferente da-quela que considera a forma mais ampla, com a forma oral.

D’us, no Judaísmo, não é um ser com poderes sobrenaturais. Essa extrapolação do ser humano pressupõe

alguma ligação, ainda que muito distante. No caso judaico, D’us está

numa esfera, por assim expressar,

diferente, da qual o homem não tem

qualquer referência, ou imaginação.

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A forma oral contém esclarecimentos e explicações do conteúdo da Torá Escrita. Essa forma, de uma parte escrita e uma parte oral, é de difícil visualização em termos teóricos, mas é através da prática que se consegue entendê-la.

4. Letras, Palavra, NúmerosNo hebraico não existe diferença entre

consoantes e vogais. Para uma letra ser pronunciada é necessário que seja associa-da a um som, como o da vogal. Vendo o texto original da Torá, só se observa certos sinais, sendo, portanto, impossível de ser lido, e, consequentemente, entendido. Esse sinais são chamados de Ot, em hebraico.

No texto da Torá Escrita, a vocalização é fornecida pela Torá Oral. Assim, a trans-missão da Torá, desde seu início, foi feita através dessas duas formas, em conjunto. Posteriormente, a vocalização recebeu um sistema de sinais, para acompanhar os textos escritos em papel, facilitando o seu entendimento. Esses sinais são chama-dos, em hebraico, de Nekudá (Nekudot, no plural).

Outra necessidade para o entendimento do texto são as pontuações: vírgula, ponto, parágrafo,etc.. Também nesse caso essas informações provêm da Torá Oral, por meio de uma cantilena, uma melodia. As entoações também receberam um sistema de sinais, permitindo que sejam transmi-tidos com o texto escrito. Obviamente, o som de cada sinal é transmitido oralmente.

Uma peculiaridade pouquíssimo co-nhecida é que na Torá Escrita há muitas

palavras que têm sua leitura diferente de como está escrito. Dentro dos padrões se-culares isso parece uma aberração, para a qual apresentam várias hipóteses. Mas é bem coerente com o sistema do conjunto Escrita-Oral. Exemplos: Gn 25:23; 30:11; Dt 2:33; 5:10; 8:2; 21:7; 27:10; 28:23; 28:57; 28:30; 29:22.

Outra peculiaridade que não tem rele-vância nos estudos seculares é que na Torá Escrita há, espalhado em meio às palavras, um alfabeto completo (desde Alef (א) até Tav (ת)) de letras com tamanho menor do que o texto geral, e um alfabeto com letras de tamanho maior.

Ot também pode corresponder a um valor quantitativo, ou seja, um valor nu-mérico, ou seja, há “ letras” e “números” que possuem a mesma forma.

Outro significado de Ot de é “sinal”. O Ot “sinaliza”, ou “aponta” para algo. No campo de linguagens de programação de computadores, na linguagem C, há um conceito chamado de “ponteiro” que guar-da semelhança com este aqui apresentado.

5. 70 idiomas, 70 faces, 70 70 pedaços

Na própria Torá consta que ela foi tra-duzida para os 70 idiomas existentes na época. O objetivo disto é que todos os po-vos tivessem possibilidade de conhecê-la, estudá-la e, também, discutir ou contestar seu conteúdo.

Um outro aspecto é a perspectiva, o ângulo, o ponto-de-vista. A Torá tem 70

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panim, normalmente traduzido como “fa-ces”, e, similarmente, tem 70 achor, que significa “costas”– o oposto de panim (“face”). Isso é muito interessante e sig-nificativo: a Torá contém explicações, ou entendimentos, que permitem confirmá-la (panim) ou negá-la (achor).

Contudo, estes aspectos têm uma mesma origem. Isto é exemplificado pelo Midrash que diz: A Torá é comparada a uma pedra, que foi golpeada e ficou em 70 pedaços. Isto é, olhando cada pedaço, individualmente, ele parece ser uma uni-dade independente. Porém, se sabemos que são partes de um todo, é possível buscar integrá-los26.

6. Mashal Kadmoni, linguagem humana, linguagem figurada, Metáfora, Parábola

A Torá também é chamada de Mashal Kadmoni. É uma expressão com pro-fundos significados. A palavra hebraica mashal, é usada, em geral, com o sentido de ‘parábola’, ‘exemplo’, ‘referir-se indi-retamente’. Kadmoni provém da palavra kadmon, cuja raiz significa ‘o antes de qualquer antes’, ‘o antes absoluto’. Mashal kadmoni, então, nos transmite a ideia de que a Torá – suas letras, palavras, fra-ses, números, história, interpretações, ângulos-de-vista, etc.– é uma referência

26.  Ez 2:9-10; Midbar Shur, 5 e 16; Ain Aieh, Hak-damah; Shaloh Hakadosh; Shushan Sodot, 556; Sefer Likutim Tzemach Tzedek, Ot Aleph; Sefer Maamarim Admur Emtzai, Bamidbar.

a “algo”, ao Kadmon ou uma referência produzida pelo Kadmoni a “algo”.

D’us, o Kadmoni, que é infinitamente mais elevado do que o homem, possui in-finitas maneiras de Se expressar, enquan-to o homem é limitado. “Meus pensamen-tos não são como teus pensamentos, teus caminhos não são como Meus caminhos” (Isaías 55:8). Portanto, se a “comunicação” de D’us para o homem é feita segundo a linguagem (palavras e conceitos) que este consegue entender, D’us, por assim dizer, “veste” Sua sabedoria dentro da limitação humana.

Assim, uma maneira de explicar mashal é que ele é uma linguagem sim-bólica. Isto se assemelha à transmissão de um conceito, ou conhecimento para um aluno: quando esse conhecimento é muito elevado, além da capacidade do aluno, o mestre se utiliza de parábolas, exemplos, comparações, histórias que “apontam” para aquilo que quer transmitir.

No caso da Torá encontramos algo extraordinário. Ela relata um história real e, ao mesmo tempo, é como uma história para transmitir conceitos e ensinamentos elevados. Se o aluno se esforça, ele con-segue aprender coisas que os outros não conseguem imaginar, coisas que a pessoa, por si própria, não conseguiria concluir, atingir. Quanto mais meticuloso, aplica-do, dedicado, perspicaz for o aluno, mais conseguirá entender, e com mais profun-didade, plenitude, detalhe, abrangência.

No livro chamado Sefer Ietzirá, en-contramos esta interessante expressão: “O

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mundo foi criado por 3 coisas: Sofer (quem escreve, escritor), Sefer (o que é escrito, livro), Sipur (o que é contado no livro)”. O Sofer pode expressar suas ideias através de Sipur, diferentes e equivalentes, em fala, ou em Sefer.

A linguagem figurativa depende da imaginação e tipo de experiências indivi-duais. Não há como definir, claramente, qual parte da figura usada é comum ao conceito transmitido. Quais são os limites ou fronteiras de aplicação da linguagem figurativa? Depende do idioma e de situa-ções regionais; a tradução de expressões idiomáticas é difícil e pode até distorcer, ou ser de todo impossível. (Exemplo: Ele é um ‘cobra’. Ele é um ‘avião’. A comida ‘caiu’ mal. ‘No mundo da lua’.)

7. Comunicação A palavra para ‘letra’, em hebraico é ot

,Ot significa, também, ‘sinal’, que é .(אות)inclusive, uma tradução mais adequada.

Portanto, no Hebraico, a letra é uma si-nalização para algo. (Conforme explicado no item Mashal kadmoni.) A sinalização é uma forma de comunicação.

Numa visão mais profunda, pode-mos dizer que há vários níveis de letra: (1) Quando se lê um texto há (a) a letra escrita, com tinta no papel, (b) a imagem da letra formada no cérebro (letra do pen-samento), (c) decodificação, identificando a ‘letra-sinal’ com um acervo de imagens na memória, (d) o significado desta letra, (e) o entendimento desta letra devido à sua posição relativa às letras vizinhas, etc.;

(2) No processo de explicar um conceito: (a) O início de um pensamento é quase imperceptível, ocorre “mais rápido do que um raio”. Esse raio – que contém todas as informações e detalhes extremamente concentrados – está comunicando algo. Esta comunicação é pessoal e quase inde-tectável. As letras e palavras nesse nível são diferentes do entendimento tradicional. (b) Para que essa ideia seminal contida nessa raio possa ser entendida – mesmo para a própria pessoa – ela deve ser desenvolvida em uma forma um pouco mais inteligível. Nesta forma, aquela ideia passa para uma nova “ linguagem”, com outro tipo de le-tras, menos conceituais, abstratas, do que as do estágio anterior. (c) Num novo está-gio, em direção ao material, encontramos uma nova “ linguagem”. (d) Após alguns estágios de “materialização”, com suas “ linguagens”, chega-se à expressão falada (letras no formato falado) e escrita (letras no formato escrito).

Transcendência Natural

Os Sábios usam uma interessante ex-pressão sobre a Torá: “Ela fala sobre os Mundos Superiores, mas refere-se aos Mundos Inferiores”27. A história relata-

27. Torá medaberet batachtonim veromezet bae-lionim.

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da na Torá acontece no mundo material, contudo, além desta superfície, há ensi-namentos sobre assuntos muito elevados.

É conhecido em certos círculos que a Torá possui 4 níveis de interpretação e estudo, chamado, em hebraico, de Pardes. Esta palavra é, também, o acróstico que representa 4 níveis: P (da letra Pei) sig-nifica Peshat, que é o senti-do literal e super f ic ia l (Mikrá); R (da letra Resh), que significa Remez, o sentido indireto (Mishná); D(da letra Dalet), que signifi-ca Drash, no sentido de indicar, apontar. Quem passou pelas fases P e R pode en-tender para o que o texto aponta (Talmud); S da letra (Samach), que significa Sod, o segredo, que é o nível do estudo da Kabalá, e da Agadá.

Deste modo, ao simplesmente se ler o texto da Torá, já há um certo contato com os níveis espirituais, e um sentimento de transcendência.

8. Interpretações O formato e sistema de interpretações

da Torá não encontra paralelo em outras literaturas ou culturas. Assim se expressa o rabino Jonathan Sacks: “Peguem um texto padrão do Chumash (Pentateuco), o

texto clássico Mikraot Gdolot tem um pou-quinho do texto bíblico e, ao redor deste, uma discussão. Há a leitura que Rashi faz do versículo, a de seu neto Rashbam, a de Ibn Ezra, a do Ramban, a de Chizkuni, Radak, Sforno,etc.. Essa página da Torá

é uma discus-são extensa, contínua. Se vocês fossem d e s c r e v e r a literatura religiosa ra-bínica, a me-lhor expres-são para ela que eu posso pensar é “an-

tologia de argumentações”.E como é o texto do Talmud? O Rabino

X diz isto, o Rabino Y aquilo. E na pági-na padrão do Talmud, em volta do texto principal, há uma discussão entre Rashi (francês do século XI E.C.) e seus filhos e netos – conhecidos como Baalei Tossafot – ou seja, uma discussão em redor de uma discussão, e, ao redor dessas, e em outras páginas, outras discussões e análises.

Não conheço nenhuma literatura simi-lar, nem conheço outros livros impressos dessa forma, nem o Arden Shakespeare tem “Rashi e Tossafot” dessa forma. Eles já resolveram a discussão antes de escre-verem os comentários28.

28. O que é fé? Rabino-chefe do Reino Unido, Jonathan Sacks.

Os Sábios usam uma interessante expressão sobre a Torá: “Ela fala sobre os Mundos Superiores, mas refere-se aos Mundos Inferiores”.

A história relatada na Torá acontece no mundo material,

contudo, além desta superfície, há ensinamentos sobre assuntos

muito elevados.

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Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 99

Desse prisma, as hipóteses dos estu-dos seculares podem ser consideradas interpretações, e serem comparadas com as outras já existentes. Esse é um dife-rencial, pois as interpretações religiosas não são aceitas, de antemão, nos estudos seculares.

9. Judaísmo & ReligiãoO Judaísmo é comumente citado como

sendo uma religião de um povo, da mesma forma que outros povos têm sua religião. Mas vejamos os significados de Religião: (a) culto, credo, crença num ente supremo; conjunto de dogmas29 e práticas; manifes-tação da crença por meio de doutrinas e ritos próprios30; (b) crença, manifestação de tal crença; modo de pensar ou de agir; princípios31.

Esses significados têm pontos em co-mum com o significado de ‘Axioma’: (a) premissa considerada necessariamente evidente e verdadeira, fundamento de uma demonstração, porém ela mesma inde-monstrável, originada, segundo a tradição racionalista, de princípios inatos da cons-

29.  Dogma: (a) Ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível, cuja verdade se espera que as pessoas aceitem sem questionar. (b) Por extensão de sentido: qualquer dou-trina (filosofia, política, etc.) de caráter indiscutível em função se supostamente ser uma verdade aceita por todos. (c) Opinião sustentada em fundamentos irracionais e propagada por métodos que também o são. Dogma: Ponto fundamental e indiscutível duma doutrina religiosa, e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema.

30.  Dicionário Houaiss.

31.  Dicionário Aurelio.

ciência, ou, segundo os empiristas, de ge-neralização da observação empírica32; (b) premissa imediatamente evidente, que se admite como universalmente verdadeira, sem exigência de demonstração; Proposi-ção que se admite como verdadeira porque dela se podem deduzir as proposições de uma teoria ou de um sistema lógico ou matemático33..

A palavra hebraica para religião é דת (dat), que é a mesma palavra para lei. Isto significa que o contexto para religião é seguir leis, e o religioso é chamado de דתי (datí). E o Judaísmo não é só seguir leis.

O Judaísmo tem crença, fé, tem mani-festação da crença, tem dogmas. Mas: (a) O dogma máximo que é o monoteísmo possui mais um contexto de axioma, do que de dogma. Pois o início do Monoteís-mo se deu com Abraão que, como seus pais, nasceu idólatra, cultuando diversos deuses; ele “descobriu” o monoteísmo através de lógica e ponderações. (b) A manifestação de crença não é resumida a cultos e rezas. Há estudo, conduta pes-soal, familiar e coletiva. Há preocupação com o desenvolvimento sadio entre toda a humanidade. Há manifestações através da música, diversas forma de arte, e outros modos pessoais.

10. Judaísmo & CiênciaMaimônides fez dois Tratados sobre a

Lei Judaica: (a) Sefer HaMitzvot; (b) Iad

32.  Dicionário Houaiss.

33.  Dicionário Aurelio.

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100 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

HaChazaká. Na abertura de cada um de-les, ele trata da primeira Lei, que é a mais básica e fundamental, de duas formas até antagônicas. No Sefer HaMitzvot ele diz que a primeira obrigação é ACREDITAR em D’us, e no Iad HaChazaká que é EN-TENDER que há D’us.

No final do Livro Madá, do Tratado Iad HaChazaká, encontramos: “É algo claro e sabido que o amor a D’us não se instala no coração, a menos que a pessoa persiga. E o amor é proporcional ao ENTENDI-MENTO; quanto maior o entendimento, maior o amor”.

Crença e entendimento são, aparen-temente, mutuamente excludentes. Se alguém entende, não há espaço para crer; e, se crê, é porque não está conseguin-do entender. Crença é, normalmente, associada a fé, religião; entender é nor-malmente associado à conhecimento, ciência.

E esta é a mensagem. O convívio entre o crer e entender está na própria base do Judaísmo, de forma indissociável. Não existe “ fé cega”.

A ciência e a tecnologia têm contri-buído enormemente para facilitar o en-tendimento de passagens e conceitos pro-fundos da Torá e, mais especificamente, da Kabalá. As complexas ideias da Teoria do Tzimtzum, Tikun Olam, criação ex-nihilo, Influência do observador, e outras, tornaram-se mais acessíveis através das ilustrações tecnológicas.

Atualmente encontramos milhares de judeus, observantes das tradições religio-

sas, em diversos postos na Academia, Cen-tros de Pesquisa, e em desenvolvimento de tecnologia de vanguarda.

Uma menção significativa é o comen-tário do prêmio Nobel de Física, Dr. Arno Penzias sobre o livro “Mind over Matter”, do rabino Menachem Mendel, o Luba-vitcher Rebbe: (tradução livre) “O que é ciência, quais os seus pontos fortes, suas limitações e suas lições para a humani-dade? Este volume instigante ajudará a abordar tais questões”.

Uma definição ampla, sem ater-se à divergências encontradas na Filosofia da Ciência, para Ciência, seria: “Encontrar lógica para explicar observações men-suráveis. Em consequência, aumenta o conhecimento humano, e de como a na-tureza, ou a realidade, funciona”. O termo ‘observações mensuráveis’ implica que seja fenômeno detectável pela capacidade sensorial humana, inclusive com auxí-lio de equipamentos. Esta descrição não contempla certos estudos, que também são considerados Ciência, como História, Psicologia, Educação, e outros; portanto, Torá – que não é como Ciência Exata ou Natural, que possa ter prova indiscutí-vel, mensurável e definitiva – também pode ser estudada sob um prisma cien-tífico, dentro de sua própria essência (e não como Teologia, História, Educação, dentre outras).

O estudo lishmá pode ser um equi-valente ao estudo de Ciência ou Pesquisa básica, cujo objetivo é o conhecimento, não se preocupando com utilizações.

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11. Leis, Halachá, Mitzvá, Filosofia, Teologia

Na Liturgia judaica há algo aparen-temente simples, que oculta uma pro-fundidade. Referimo-nos à frase: “Adon Olam asher malach, beterem kol ietzur nivrá”, “Dono/ Senhor do mundo, que reinou antes de que tudo fosse criado”. A atitude de reinar é feita através de or-dens, ou seja, o rei dita as leis que de-vem ser obedecidas pelos súditos. E a sequência é: primeiro é necessário haver pessoas sobre as quais possa haver um rei e, consequentemente, reinado, que é expresso através das ordens reais, suas leis. Essas leis podem ter a finalidade de regulamentar as atividades, estabelecer deveres e obrigações, ou, ainda, serem simplesmente expressões da vontade real, sem necessidade de algum motivo.

Contudo, a sequência de “Adon Olam” é outra: Primeiro há um rei (Adon/Senhor), depois o reinado (ou seja, as ordens) e de-pois as criaturas (súditos). Por isso o ser humano não consegue entender as leis D-vinas, pois elas são de um tipo diferente daquele que o homem entende. Uma lei que existe antes de haver quem vai cumpri-la, e um rei que estabelece leis antes de haver um reinado. A lei feita pelos homens tem a fina-lidade de regulamentar ações, ou expressar comportamento (como as leis Científicas, da História, da Economia, do Mercado, dentre outras), e, por definição são sujeitas a alterações e mudanças. Não são leis que determinam o fato, mas sim, são geradas

pelos fatos e observações. As leis D-ivinas determinam os fatos, são imutáveis.

Assim, por serem diferentes o uso do mesmo nome: ‘lei’ - causa confusão. As ‘leis D-ivinas’ e as ‘leis’ humanas não po-dem ser comparadas, porque são diferentes em sua raiz.

Quanto ao conceito-palavra, “ lei” pode ter vários significados: norma, regulamen-tação, costume, Torá, convenção, etc, como por exemplo: leis de trânsito são conven-ções; leis de esporte são regulamentações; leis da Física, da Matemática, da Economia têm diferentes significados. Na Torá encon-tramos, entre outros, os seguintes termos que podem se referir a “Lei”: דין (din) משפט (mishpat) מנהג (minhag) חוק (chok) עדות (edut) צדקה (tzedaka) דת (dat) תורה (tora) .(mitzva) מצוה (halachá) הלכה

Halachá pode ser entendida como “sis-tema jurídico” judaico. Ela incorpora as leis talmúdicas e suas práticas. Boa parte da filosofia e do espírito do Judaísmo estão nela contidos. Consequentemente, é muito importante que haja um entendimento, ou equacionamento adequado.

Pesquisas e estudos modernos sobre o Judaísmo seguem modelos de outras culturas, gerando uma visão [e análises e conclusões] deformada. Tentar enqua-drar o relacionamento entre homem e D’us, ou seu semelhante, nos moldes de teorias sociológicas, econômicas e políticas atuais, mascara ou transforma o Judaísmo. Seguindo estas tendências, um Sábio pode ser considerado ora “conser-vador”, ora “ liberal”, ora “reacionário”,

Visão Secular e Religiosa da Bíblia Hebraica, a Torá

102 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

etc.. A constituição política não é nenhu-ma das existentes em outras culturas, como : monarquia, oligarquia, eleições dos representantes, ou outras. A forma

de obedecer ao “Reino do Céus” e aceitar seu jugo é peculiar, só entendida dentro de seu escopo. Por isso, é possível uma democracia – no sentido que “honra a igualdade, e é governada pela a lei e a justiça”– independente do forma fun-cional do governo.

Teologia tampouco é uma abordagem adequada. Como as teorias citadas, a ideia de Teologia – que é um termo derivado do grego – é alheia, estranha, ao Judaísmo.

Teologia, por ser considerada Ciên-cia, pressupõe estudo sistemático, com um corpo de doutrinas articula-do e organizado. A título de exemplo, Maimônides enumera 13 princípios, nos Princípios da Fé, ao passo que o Rabino Iossef Albo relaciona três. Outro aspecto importante é que no Judaísmo não há separação, na prá-tica, entre crença e teoria religiosa.

Na Halachá, deveres do homem para com seus semelhantes são par-te integrante dos seus deveres para com o Criador.

Não são leis sociais, ou deriva-das da praticidade humana, pois, apesar de usar-se o termo ‘lei’, elas são, efetivamente, “regulamentações de comportamento”, ou “normas de conduta” que variam para adequa-rem-se ao local, ao povo, à época. Por isso a Halachá é, efetivamente, mais parecida com o conceito de imutabi-lidade que a palavra ‘lei’ transmite.

Um outro conceito judaico é en-contrado na Mitzvá. São ordens di-

vinas, que a priori devem ser obedecidas incondicionalmente. Contudo, se alguém tem fraqueza espiritual e só consegue cum-pri-la após análise minuciosa, este ato é bem aceito34.

34.  Yehuda Halevi, O Cuzari, 2:26.

Não é claro quando se iniciou a distinção entre Oriente e Ocidente, sendo o Judaísmo anterior a essa divisão: “Se

tirássemos os Judeus da esfera do pensamento e da vida – se

imaginássemos que não existiram aqueles que geraram

as forças espirituais, dogmáticas e éticas do

Cristianismo e do Islamismo (a réplica árabe do Judaísmo), que vieram ao mundo, que nós nada soubéssemos deles e das

influências Hebraicas, as quais agiram substancial e repetidamente mudando o curso da História – então

ambas as civilizações, Oriental e Ocidental, nos

pareceriam irreconhecíveis.”

Visão Secular e Religiosa da Bíblia Hebraica, a Torá

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 103

A tendência do homem é tomar a si como referência. É natural buscar adaptar aos seus valores, conhecimentos, capaci-dades, e assim por diante.

D’us, no Judaísmo, não é um ser com poderes sobrenaturais. Essa extrapolação do ser humano pressupõe alguma liga-ção, ainda que muito distante. No caso judaico, D’us está numa esfera, por assim expressar, diferente, da qual o homem não tem qualquer referência, ou imaginação. A possibilidade para que o homem entenda D’us depende de que D’us Se comunique com o homem, dentro dos limites e pos-sibilidades humanas.

“Tu És Um, mas não no sentido numé-rico...oculto dos ocultos...Tu és quem dirige e não há quem Te dirija...Tu És a Causa de todas as causas, Produtor de todos efeitos..

Não há quem possa Te conhecer em absolu-to...” (Introdução ao Tikunei Zohar, pg. 17a)

“Uma Existência Primeira, que criou tudo o que existe. Tudo o que existe, em todos os níveis, só existe devido à Sua Existência. Se imaginar-se que Ele não existe, então, nada existe. Se imaginar-se que tudo o que existe deixe de existir, só Ele continua existindo, e nunca deixa de existir. Todas as existências dependem de Sua Existência, mas Ele não depende de qualquer outra existência. Ele é a única verdade, e não há verdade sem Ele. Ele movimenta, continuamente, os astros, sem mão ou corpo.” (Descrição de D’us, feita por Maimônides, no inicio do Tratado Iad HaChazaká).

No Monoteísmo Judaico, D’us é infi-nito. Contudo a palavra ‘infinito’ é im-

Visão Secular e Religiosa da Bíblia Hebraica, a Torá

104 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

possível para o homem entender35. Sendo ele finito, o conceito de infinito, para o homem, é algo além de seu limite. O Uni-verso é dito ser infinito, mas está se ex-pandindo, segundo as teorias atuais; para onde pode se expandir, se é infinito? Sa-be-se que a Ciência se refere ao denomi-nado Universo conhecido; e, assim, o que conhecemos como infinito é imensamen-te grande, mas tem limite.

Portanto o que é D’us, por princípio é impossível de entendermos. Conse-quentemente, também não entendemos Sua Torá, que também é infinita. E isto gera uma conhecida contradição: sendo Ele infinito, como é possível que tenha criado um mundo finito; afinal, qualquer parte do infinito é, também, infinito. Há dificuldades em encontrar uma resposta.

A Criação é uma ideia judaica. Ao ler-se os mitos de culturas antigas – seja chinesa, hindu, egípcia, babilônica, assíria ou grega – não se encontra a noção de um poder puramente espiritual que criou o mundo do nada. Nesse mitos, o mundo evoluiu a partir da noite, da escuridão, da mãe-natureza, do infinito, ou de ou-tra fonte vaga. Contudo a noção de um mundo criado de um nada absoluto não é encontrado nesse mitos. Aliás, não há palavra no grego que possa ser apropria-damente traduzida como ‘criação’(Na

35.  Encontramos em certos campos de pesquisa acadêmico-científica estudos baseados em um infi-nito teórico (e.g. Funções). David Hilbert (“On the Infinite”, em Philosophy of Mathematics) sustenta que não é possível, no mundo real, um conjunto infinito.

Septuaginta, a tradução da Torá para o grego, a primeira sentença está assim:”En arxei apoisen ho Theos ton houranon kai tain gain”. A tradução para o inglês da Septuaginta, publicada na Inglaterra em 1784, traduz essa sentença como: “In the beginning G-d made the heaven and the earth” (“No princípio D’us fez os céus e a terra”). O verbo grego epoisen geralmente significa ‘produzir algo’, que não expressa o contido no original hebraico). A ideia da origem do mundo, para os gregos, não in-cluía a noção de um Ser absolutamente in-finito, nem de um Criador. A maioria dos filósofos pensam sobre D’us da maneira mais logicamente inteligível. Somente Espinosa concebeu D’us como um Ser ab-solutamente infinito, mas rejeitou a noção de Criação, e consequentemente não con-seguiu explicar a existência de um mundo finito, e seu conceito de ‘modos finitos’ é a grande fraqueza de sua filosofia36 . ICI

36. Creation, The Argument from Finitude, Prof. Yitzchok Block – Professor Emeritus de Filosofia, Universidade de Ontário.

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 105

Sumário: I - Da liberdade de religião. II - Da religião na Constituição Fede-

ral. III - Da necessária separação Igreja--Estado. IV - Do ensino religioso na rede pública de ensino.

I - Da Liberdade de Religião

A Constituição Federal consagra como direito fundamental a liberdade de reli-gião, prescrevendo que o Brasil é um país laico. Com essa afirmação queremos dizer que, consoante a vigente Constituição Federal, o Estado deve se preocupar em proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa, proscre-vendo a intolerância e o fanatismo. Deve existir uma divisão muito acentuada entre o Estado e a Igreja (religiões em geral), não podendo existir nenhuma religião oficial, devendo, porém, o Estado prestar

proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões.

É oportuno que se esclareça que a confessionalidade ou a falta de confes-sionalidade estatal não é um índice apto a medir o estado de liberdade dos cidadãos de um país. A realidade nos mostra que tanto é possível a existência de um Estado confessional com liberdade religiosa ple-na (v.g., os Estados nórdicos europeus), como um Estado não confessional com clara hostilidade aos fatos religiosos, o que conduz a uma extrema precariedade da liberdade religiosa (como foi o caso da Segunda República Espanhola).(2)

O fato de ser um país secular, com se-paração quase que total entre Estado e Religião, não impede que tenhamos em nossa Constituição algumas referências ao modo como deve ser conduzido o Brasil no campo religioso. Tal fato se dá uma vez que o Constituinte reconheceu o caráter inegavelmente benéfico da existência de todas as religiões para a sociedade, seja em virtude da pregação para o fortalecimento

O Direito de Religiãono Brasil

Iso Chaitz Scherkerkevitz(1)

O Direito de Religião no Brasil

106 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

da família, estipulação de princípios mo-rais e éticos que acabam por aperfeiçoar os indivíduos, o estímulo à caridade, ou sim-plesmente pelas obras sociais benevolentes praticadas pelas próprias instituições.

Pode-se afirmar que, em face da nossa Constituição, é válido o ensinamento de Soriano de que o Estado tem o dever de proteger o pluralismo religioso dentro de seu território, criar as condições materiais para um bom exercício sem problemas dos atos religiosos das distintas religiões, velar pela pureza do princípio de igualdade religiosa, mas deve manter-se à margem do fato religioso, sem incorporá-lo em sua ideologia.(3)

Por outro lado, não existe nenhum empecilho constitucional à participação de membros religiosos no Governo ou na vida pública. O que não pode haver é uma relação de dependência ou de aliança com a entidade religiosa à qual a pessoa está vinculada. Salienta-se que tal fato não impede as relações diplomáticas com o Estado do Vaticano, “porque aí ocorre re-lação de direito internacional entre dois Estados soberanos, não de dependência ou de aliança, que não pode ser feita.”(4)

A liberdade religiosa foi expressamente assegurada uma vez que esta liberdade faz parte do rol dos direitos fundamentais, sendo considerada por alguns juristas como uma liberdade primária.(5)

Consoante Soriano, a liberdade reli-giosa é o princípio jurídico fundamental que regula as relações entre o Estado e a Igreja em consonância com o direito fun-

damental dos indivíduos e dos grupos a sustentar, defender e propagar suas crenças religiosas, sendo o restante dos princípios, direitos e liberdades, em matéria religio-sa, apenas coadjuvantes e solidários do princípio básico da liberdade religiosa.(6)

O jurista americano Milton Konvitz salienta que

“If religion is to be free, politics must also be free: the free conscience needs freedom to think, freedom to teach, freedom to prea-ch — freedom of speech and press. Where freedom of religion is denied or seriously restricted, the denial or restriction can be accomplished — as in the U.S.S.R., Yugos-lavia, or Spain — by limits or prohibitions on freedom to teach, freedom to preach-by restrictions on freedom of speech and press. Political and religious totalitarianism are two sides of the same coin; neither can be accomplished without the other.”(7),

ou seja, não existe como separar o direi-to à liberdade de religião do direito às outras liberdades, existindo um inter-relaciona-mento intenso entre todas as liberdades por ele mencionadas (liberdade de ensinança, de consciência, liberdade de pensamento, de imprensa, de pregação, dentre outras).

Jorge Miranda também relaciona a liber-dade religiosa com a liberdade política. São suas palavras: “Sem plena liberdade religiosa, em todas as suas dimensões — compatível, com diversos tipos jurídicos de relações das confissões religiosas com o Estado — não há plena liberdade política. Assim como,

O Direito de Religião no Brasil

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 107

em contrapartida, aí, onde falta a liberdade política, a normal ex-pansão da liberdade religiosa fica comprometida ou ameaçada.”(8)

É importante que se perceba que a ideia de liberdade religiosa não pode ser entendida de uma maneira estática, sem atentar-se para as mudanças de nossa socie-dade. Segundo Soriano:

“La libertad religiosa no es lo que fue ni lo que es hoy; la libertad religiosa es un concepto histórico, como todas las libertades, que en nuestro tiempo adopta una deter-minada forma, que no es la única ni la definitiva. También la libertad religio-sa ha passado por varias etapas que han ido poco a poco enriqueciéndola. Una primera etapa en la que se reducía exclusivamente a la tolerancia religiosa ante el predominio de un monopolio religioso confesional: la religión dominante toleraba otros credos religiosos distintos y ‘ falsos’, debido, pri-mero a los imperativos de orden político, y, después, al reconocimiento de la libertad de conciencia; una etapa que sustituye a otra del más crudo confesionalismo estatal, intransigente y militante, representado en Europa por la diarquía del Pontificado y el Imperio, guardiana de la tradición ca-tólica imperante en el continente hasta las luchas religiosas del Renacimiento. Una segunda etapa de predominio del plura-lismo confesional con el reconocimiento de las distintas confesiones religiosas: libertad

religiosa para las confesiones dentro de un panorama de relativa desigualdad en el ejercício de las religiones. La libertad reli-giosa no está ahora presidida por el signo de la tolerancia en el ámbito de una única, verdadera y oficial religión del Estado, sino por la aceptación de la pluralidad de credos dentro del territorio del Estado; con ello el fenómeno religioso se engrandece y abar-ca una diversidade de opciones fideístas y la libertad religiosa se enriquece con la aportación de nuevos horizontes teológi-co-doctrinales; pero se trata todavia de un pluralismo moderado, el pluralismo de las opciones fideístas y del colectivo de los creyentes exclusivamente. Hay una tercera etapa en la que aún no estamos y cuyos primeros brotes doctrinales comienzan a aparecer en los momentos actuales, la etapa del pluralismo religioso íntegro, como la he llamado en otra ocasión, que representa

O Direito de Religião no Brasil

108 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

la inserción de las opciones religiosas no fideístas dentro del concepto y de la pro-tección de la libertad religiosa.”(9)

Para se falar em liberdade religiosa é importante analisar-se o próprio conceito de religião, pois conforme ressalta Konvitz, o que para um homem é religião pode ser considerado por outro como uma su-perstição primitiva, imoralidade, ou até mesmo crime, não havendo possibili-dade de uma defi-nição judicial (ou legal) do que venha a ser uma religião.(10)

Se não é possível uma conceituação legal do que vem a ser religião, pode-mos tentar definir o conceito com apoio na filosofia.

Em conformida-de com as ensinan-ças de Carlos Lopes de Mattos, religião é a “crença na (ou sentimento de) dependência em relação a um ser superior que influi no nosso ser – ou ainda – a instituição social de uma comunidade unida pela crença e pelos ritos”.(11)

Para o Professor Régis Jolivet, da Univer-sidade Católica de Lyon, o vocábulo religião pode ser entendido em um sentido subjetivo ou em um sentido objetivo. Subjetivamente, religião é “homenagem interior de adoração,

de confiança e de amor que, com todas as suas faculdades, intelectuais e afetivas, o homem vê-se obrigado a prestar a Deus, seu princípio e seu fim”. Objetivamente, religião seria “o conjunto de atos externos pelos quais se expressa e se manifesta a religião subjetiva (= oração, sacrifícios, sacramentos,

liturgia, ascese, pres-crições morais)”.(12)

Juan Zaragüeta, com mais precisão esclarece que

“I) La ‘religión’ consiste essencial-mente en el homena-je del hombre a Dios. Pero la precision de esta definición tro-pieza con la doble dificultad: 1) de de-finir el concepto de Dios, de tan múltiple acepción (véase); 2) de determinar en qué consiste el homenaje

religioso. A) A este propósito cabe distinguir: a) la religión interessada, que busca a Dios como un Poder superior a los de este mundo, para hacerle propicio (con oraciones y sa-crificios) a los hombres, en el doble sentido de liberarlos de los males y procurarles los bienes de esta vida; b) la religión desinte-ressada, que (sin excluir lo anterior) busca sobre todo a Dios para hacerle el homenaje — culto interno o mental y externo o verbal y real, especialmente sacrificial, privado

Com base no nosso progresso

constitucional, pode-se afirmar com segurança que o Estado não deve

simplesmente “tolerar” a existência de outras

religiões em seu território. Deve saber

conviver com a multiplicidade de

religiões existentes, tratando igualmente

a todas.

O Direito de Religião no Brasil

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 109

y público (véase) — de la adoración y del amor de los hombres. B) La religión: a) no moral, que considera a Dios como el legisla-dor y sancionador, en esta vida o en la otra, del orden moral y jurídico, y al ‘pecado’ o infracción de este orden (que incluye tam-bién el religioso) como una ofensa de Dios, que quien cabe recabar su perdón a base del propósito de volver a cometerlo. Las re-ligiones inferiores se caracterizan en ambos conceptos por atenerse al sentido a) y las superiores al sentido b). Hay que advertir, sin embargo, que la religión, incluso en el sentido b), se presta a ser utilizada hasta por los que no creen en Dios y para los demás en el concepto de A) b), como fuente de consuelo para el alma; y en el concepto B) b) como auxiliar del orden moral y político (concepto ‘pragmático’ de la religión). II) Se distinguen también la religión natural y las religiones positivas, o históricamente existentes; de las que varias pretenden ser reveladas por Dios con revelación variamente garanti-zada, y por ende sobrenaturales, no sólo por el modo de la revelación, sino también por la elevación con ella del hombre a una condición de intimidad con Dios (la ‘gracia santificante’, conducente tras de la muerte a la ‘gloria’ o visión beatifica de Dios) que por su naturaleza no le corresponde; la re-ligión cristiana descuella como tal religión sobrenatural. Es de advertir que espíritus agnósticos tocante al dogma de la existencia o cuando menos de la esencia de Dios, no renuncian a la religión como sentimento o actitud de dependencia respetuosa del hom-bre del impe-netrable. Absoluto imanente

o transcendente al mundo que nos rodea. De esta actitud ha derivado el sentido de ‘lo religioso’ hasta a actos de la vida profana que se entienden ejercidos con una absoluta seriedad o deberes cumplidos con escrupu-losa diligência.”(13)

A liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos, porém in-trinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a liberdade de culto; e a liberdade de organização religiosa.

Consoante o magistério de José Afonso da Silva, entra na liberdade de crença “a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liber-dade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença...”(14)

A liberdade de culto consiste na liber-dade de orar e de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para tanto.(15)

A liberdade de organização religiosa “diz respeito à possibilidade de estabele-cimento e organização de igrejas e suas relações com o Estado.”(16)

A liberdade de religião não está restrita à proteção aos cultos e tradições e crenças das religiões tradicionais (Católica, Judaica e Muçulmana), não havendo sequer dife-

O Direito de Religião no Brasil

110 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

rença ontológica (para efeitos constitu-cionais) entre religiões e seitas religiosas. Creio que o critério a ser utilizado para se saber se o Estado deve dar proteção aos ritos, costumes e tradições de determinada organização religiosa não pode estar vin-culado ao nome da religião, mas sim aos seus objetivos. Se a organização tiver por objetivo o engrandecimento do indivíduo, a busca de seu aperfeiçoamento em prol de toda a sociedade e a prática da filantropia, deve gozar da proteção do Estado.

Por outro lado, existem organizações que possuem os objetivos mencionados e mesmo assim não podem ser enquadra-das no conceito de organização religiosa (a maçonaria é um exemplo desse tipo de sociedade). Penso que em tais casos o Estado é obrigado a prestar o mesmo tipo de proteção dispensada às organizações religiosas, uma que vez existe uma coin-cidência de valores a serem protegidos, ou seja, as religiões são protegidas pelo Estado simplesmente porque as suas existências acabam por beneficiar toda a sociedade (esse benefício deve ser verificado objeti-vamente, não bastante para tanto o simples beneficiamento para a alma dos indivíduos em um Mundo Superior — os atos, ou melhor, a consequência dos atos, deve ser sentida nesse nosso mundo). Existindo uma coincidência de valores protegidos, deve existir uma coincidência de proteção.

Devemos ampliar ainda mais o concei-to de liberdade de religião para abranger também o direito de proteção aos não-crentes, ou seja, às pessoas que possuem

uma posição ética, não propriamente re-ligiosa (já que não dá lugar à adoção de um determinado credo religioso), saindo, em certa medida do âmbito da fé(17), uma vez que a liberdade preconizada também é uma liberdade de fé e de crença, devendo ser enquadrada na liberdade religiosa e não simplesmente na liberdade de pensamento.

Pontes de Miranda reforça esses argu-mentos ao afirmar que tem se perguntado se na liberdade de pensamento caberia a liberdade de pensar contra certa religião ou contra as religiões. Salienta que nas ori-gens, o princípio não abrangia essa emissão de pensamento, tendo posteriormente sido incluído nele alterando-se-lhe o nome para ‘liberdade de crença’, para que se prestasse a ser invocado por teístas e ateus. Afirma, por fim, que “liberdade de religião é liber-dade de se ter a religião que se entende, em qualidade, ou em quantidade, inclusive de não se ter.”(18)

II - Da Religião na Constituição Federal

Para a análise do tema é conveniente que se traga à colação os dispositivos cons-titucionais a ele relativo. Vejamos:

A Constituição Federal, no artigo 5º, VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o

O Direito de Religião no Brasil

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 111

livre exercício dos cultos religiosos e ga-rantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.

O inciso VII afirma ser assegurado, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

O inciso VII do artigo 5º estipula que ninguém será privado de direitos por mo-tivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

O artigo 19, I, veda aos Estados, Mu-nicípios, à União e ao Distrito Federal o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, res-salvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

O artigo 150, VI, “b”, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municí-pios a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto, salientando no parágrafo 4º do mesmo artigo que as vedações expres-sas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem

somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.

O artigo 120 assevera que serão fixados conteúdos mínimos para o ensino funda-mental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores cul-turais e artísticos, nacionais e regionais, salientando no parágrafo 1º que o ensino religioso, de matéria facultativa, consti-tuirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

O artigo 213 dispõe que os recursos públicos serão destinados às escolas pú-blicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantró-picas, definidas em lei, que comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação e as-segurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades. Salientando ainda no parágrafo 1º que os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insufi-

Se a organização tiver por objetivo o engrandecimento do indivíduo, a busca de seu aperfeiçoamento em prol de toda a sociedade e a prática da filantropia, deve gozar da proteção

do Estado.

O Direito de Religião no Brasil

112 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

ciência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.

O artigo 226, parágrafo 3º, assevera que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

Cada um desses dispositivos constitu-cionais poderia dar origem a uma mono-grafia, porém, por uma opção meramen-te didática, optamos, como já se deve ter percebido, por não tratá-los por tópicos isolados, tecendo comentários sobre eles no bojo do texto.

III - Da Necessária Separação Igreja-Estado

De início podemos notar uma falta de sintonia entre a nossa fala inicial, embasa-da no texto constitucional, e o que ocorre cotidianamente no Brasil.

Como é possível se falar que não exis-te uma religião oficial quando ao abrir-se qualquer folhinha nota-se a existência de feriados oficiais de caráter religioso. E mais, de caráter santo para apenas uma religião (v.g. dia da padroeira do Brasil e finados).

Se existe uma separação entre o Estado e a Religião, será que seria constitucional-mente possível a existência desses feria-dos? E como ficam as datas santificadas das outras religiões: o ano novo judaico, o ano novo chinês, o período de jejum dos muçulmanos etc.?

Tal questionamento está sendo feito atualmente pela Igreja Universal do Reino de Deus. É uma pena que as atitudes da mencionada Igreja estejam também envol-tas em um manto de intolerância religiosa, sendo a discussão sobre a existência dos dias santificados encarada como uma “vingan-ça” contra a imagem da padroeira do Brasil. Tal questionamento deveria ser feito no âmbito frio e racional da Constituição, sem o apelo a lutas religiosas, perseguições etc.

Porém é bom que se ressalte que Kon-vitz, citando o Justice Douglas, afirma que a separação entre o Estado e a Igreja não é absoluta. Ela é limitada pelo exer-cício do poder de polícia do Estado(19) (e por outros poderes constitucionalmente atribuídos a este) e pelas práticas ampla-mente aceitas como símbolos ou tradições nacionais e que não seriam abolidas pela população mesmo que não gozassem de apoio estatal.(20)

Portanto, se a existência desses feria-dos é de constitucionalidade duvidosa, tal realidade é plenamente defensável face ao apego que a maioria da população tem a essas tradições, sendo que, provavelmente, grande parte da população não iria traba-lhar mesmo que não fosse determinado o feriado.

O Direito de Religião no Brasil

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 113

Creio não ser inconstitucio-nal a existência dos feriados re-ligiosos em si. O que reputo ser inconstitucional é a proibição de se trabalhar nesse dia, por outras palavras, não reputo ser legítima a proibição de abertura de estabelecimentos nos feria-dos religiosos. Cada indivíduo, por sua própria vontade, deve-ria possuir a faculdade de ir ou não trabalhar. Se não desejasse trabalhar, a postura legal lhe se-ria favorável (abono do dia por expressa determinação legal), se resolvesse ir trabalhar não es-taria obrigado a obedecer uma postura válida para uma religião que não segue. Pode-se ir mais além nesse raciocínio. Qual é a lógica da proibição de abertura de estabelecimento aos domingos? Com certeza existe uma determinação religiosa por trás da lei que proibiu a abertura de estabelecimentos nos domingos (dia de descanso obrigatório para algumas reli-giões). Como ficam os adeptos de outras religiões que possuem o sábado como dia de descanso obrigatório (v.g., os judeus e os adventistas)? Dever-se-ia facultar aos estabelecimentos a abertura aos sábados ou aos domingos, sendo que a ratio legis estaria assim atendida, ou seja, possibilitar o descanso semanal remunerado.

Portanto, creio que alargando o ca-lendário de feriados e dias santificados para incluir as datas das maiores religiões

existentes no nosso país e tornando estes feriados e dias santificados facultativos (no sentido de ser feita a opção entre ir trabalhar ou não), qualquer resquício de inconstitucionalidade estaria sanado.

Um problema muito mais grave está na descoberta de qual deve ser a exata postura do Estado frente às religiões (minoritárias e majoritárias).

Em que consiste a já mencionada se-paração de Estado e Igreja? Já vimos que o Estado brasileiro está terminantemente proibido de subvencionar qualquer reli-gião. Vimos também que o Estado não pode obstar uma prática religiosa. Não pode adotar uma religião oficial. Não pode

O Direito de Religião no Brasil

114 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

discriminar por critérios religiosos. Não pode fomentar disputas religiosas. Resta-nos ver o que pode o Estado fazer.

O Estado pode cooperar com as ins-tituições religiosas na busca do interesse público (art. 19, I, da C.F.), ou seja, ele não pode manter relações de dependência ou aliança, porém pode firmar convênios com as entidades religiosas quando tais convê-nios atendam ao interesse público (e não ao interesse dos governantes). Aliás, pode e deve ter tal postura.

A experiência judicial americana nos mostra como é difícil delimitar até

onde é constitucionalmente possível e permitido a cooperação entre Estado e religiões. Vários casos foram levados às Cortes americanas com relação à leitura da Bíblia (Velho Testamento-sem comen-tários) em sala de aula(21), com relação ao pagamento pelo Estado do ônibus escolar em Escolas Católicas(22), com relação ao

planejamento das aulas na Escola Pública para que se abra um espaço para o ensino religioso(23), com relação à distribuição de Bíblias com o Novo e o Velho Testamento nas escolas(24), com relação ao descanso semanal(25). Todas as decisões foram to-madas por uma estreita margem de votos, o que demonstra a enorme polêmica que envolve o assunto.

Nossa jurisprudência sobre o tema ain-da está engatinhando, podendo ser citados os seguintes precedentes:

Em 1949, foi impetrado no Pretório Ex-celso o Mandado de Segurança que recebeu o n. 1.114. Nesse Mandado, um bispo dissi-dente da Igreja Católica Apostólica Romana requeria o amparo do Judiciário no sentido de evitar que o executivo impedisse “as manifestações externas, quais procissões, missas campais, cerimônias em edifícios abertos ao público etc.,” de sua Igreja, quando praticadas com as mesmas vestes e seguindo o mesmo rito da Igreja Católica Apostólica Romana. O S.T.F. manifestou-se contrário à pretensão do impetrante, ful-minando com essa decisão a acalentada se-paração entre Estado e Igreja. Esta decisão deixa claro como é extremamente difícil a prática do “jogo democrático religioso”, ou seja, se na teoria a separação Estado-Igreja já estava bem delimitada (desde 1890), na prática essa separação ainda era feita por linhas muito tênues.

É importante registrar-se o teor do voto discordante do saudoso Ministro Hahne-mann Guimarães. A transcrição do voto se faz necessária pois vale como uma aula

O Direito de Religião no Brasil

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 115

prática e teórica sobre o tema: “...Daí resultou a providência sugerida do Sr. Consultor-Geral da República, o Professor Haroldo Valadão, nos seguintes termos:

“Cabe, portanto, à autoridade civil, no exercício do seu poder de polícia, atendendo ao pedido que for feito pela autoridade competente da Igreja Católica Apostólica Romana, e assegurando-lhe o livre exercício do seu culto, impedir o desrespeito ou a perturbação do mesmo culto, através de manifestações externas, quais procissões, missas campais, cerimônias em edifícios abertos ao público etc., quando praticadas pela Igreja Católica Apostólica Brasileira com as mesmas vestes, enfim, o mesmo rito daquela”.

Adotando a providência sugerida neste parecer, Sr. Presidente, parece-me que o poder civil, o poder temporal, infringiu, frontalmente, o princípio básico de toda a política republicana, que é a liberdade de crença, da qual decorreu, como conse-quência lógica e necessária, a separação da Igreja e do Estado. Reclamada essa separa-ção pela liberdade de crença, dela resultou, necessariamente, a liberdade de exercício de culto. Devemos esses grandes princípios à obra benemérita de Demétrio Ribeiro, de cujo projeto surgiu, em 7 de janeiro de 1890, o sempre memorável ato que sepa-rou, no Brasil, a Igreja do Estado. É de se salientar, aliás, que a situação da Igreja Católica Apostólica Romana, separada do

Estado, se tornou muito melhor. Cresceu ela, ganhou prestígio, graças à emancipa-ção do regalismo que a subjugava durante o Império. Foi durante o Império que se proibiu a entrada de noviços nas ordens religiosas; foi durante o Império que se verificou a luta entre maçons e católicos, de que resultou a deplorável prisão dos Bispos D. Vital Maria Gonçalves de Oli-veira e D. Macedo Costa, bispos de Olinda e do Pará. Mas não nos esqueçamos do próprio cisma, provocado, no século XIV E.C., pelos cardeais rebeldes, em que se elegeu o antipapa Clemente VII. Assim, a História da Igreja está repleta desses cis-mas, está repleta desses delitos contra a fé. Trata-se pois, de delito contra a fé, como o classificam os canonistas... É o que se dá, no presente momento. O ex-bispo de Maura, D. Carlos Costa, não quer reco-nhecer o primado do Pontífice Romano, quer constituir uma Igreja Nacional, uma Igreja Católica Apostólica Brasileira com o mesmo culto católico. É-lhe lícito exer-cer esse culto, no exercício da liberdade outorgada pela Constituição no artigo 14,

Se existe uma separação entre o Estado e a

Religião, será que seria constitucionalmente

possível a existência de feriados oficiais de caráter religioso?

O Direito de Religião no Brasil

116 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

parágrafo 7º, liberdade cuja perturbação é, de modo preciso, proibida pela Cons-tituição, no artigo 31, inciso II. Trata-se, pois, de delito espiritual, podemos admitir. Como resolver um delito espiritual, um conflito espiritual, com a intervenção do poder temporal, do poder civil, que está separado da Igreja? Os delitos espirituais punem-se com as sanções espirituais; os conflitos espirituais resolvem-se dentro das próprias Igrejas; não é lícito que essas Igrejas recorram ao prestígio do poder para resolver seus cismas, para dominar suas dissidências. É este princípio fundamental da política republicana, este princípio da liberdade de crença, que reclama a sepa-ração da Igreja do Estado e que importa, necessariamente, na liberdade do exercício do culto; é este princípio que me parece profundamente atingido pela aprovação de parecer do eminente e meu ilustre colega de Faculdade, Professor Haroldo Valadão. Assim sendo, Sr. Presidente, concedo o mandado.”(26)

Portanto, com exceção do Ministro Hahnemann Guimarães, o Supremo Tri-bunal Federal fez vistas grossas à necessá-ria separação entre Estado e Igreja, descon-siderando o próprio texto constitucional, apegando-se a sentimentos individuais não amparados pela ordem jurídica.

A nossa Suprema Corte foi novamen-te convocada a pronunciar-se na Repre-sentação n. 959-9 - PB (JSTJ-Lex, 89/251) aonde arguía-se a inconstitucionalidade da Lei n. 3.443, de 6.11.66 que exigia a prévia autorização da Secretaria da Segu-

rança Pública do Estado da Paraíba para o funcionamento das Tendas, Terreiros e Centros de Umbanda.

O Ministro Francisco Rezek, à época Procurador da República, salientou em seu parecer que: “5. Em termos absolutos, nada existe na norma sob crivo, tanto em sua redação atual quanto, mesmo, na pri-mitiva, que constitua embaraço aos cultos africanos, de modo a afrontar a garantia constitucional da liberdade religiosa.

6. No máximo, dar-se-ia por defensável a tese do embaraço relativo, e do conse-quente ultraje ao princípio da isonomia, à consideração de que as exigências da lei paraibana não se endereçam por igual, aos restantes cultos religiosos. Para tanto, po-rém, seria necessário que a conduta do le-gislador local parecesse abstrusa e inexpli-cável, o que, em verdade, não ocorre. Pelo contrário, a quem quer que não se obstine em ignorar a realidade social, parecerão irrespondíveis os argumentos do digno Governador do Estado da Paraíba, à luz de cujo entendimento os cultos africanos

‘são destituídos de qualquer ordena-mento escrito ou mesmo tradicionalmente preestabelecido. Não contam com sacerdo-tes ou ministros instituídos por autoridades hierárquicas que os presidam ou dirijam, nem possuem templos propriamente ditos para a prática dos seus rituais.

Estes como textualmente esclarece a pró-pria representação sub judice, se realizam separadamente, em terreiros, tendas ou Centros de Umbanda, entidades autônomas

O Direito de Religião no Brasil

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 117

e independentes, nem sempre harmônicas nas suas práticas, fundadas por qualquer adepto daquelas seitas que se considere com poderes e qualidades sobrenaturais para criá-las. Tais circunstâncias, agravadas pela ausência de qualquer ministro ou sacerdote, notória e formalmente constituído, compro-metem o sentido da responsabilidade a ser assumida perante as autoridades públicas, no que concerne à boa ordem dos terreiros, tendas e Centros de Umbanda. Quis, então, o legislador local, assegurar no Estado o funcionamento daqueles cultos, mediante o cumprimento de determinadas exigências, a serem atendidas pelos representantes dessas sociedades, que passariam, assim, a ter existência legal.

Essas exigências, feitas em garantia da ordem e da segurança pública, não podem constituir embaraço ao exercício do cul-to, no sentido constante do artigo 9º, II,

da Constituição da República, tanto mais quanto a própria lei, no seu artigo 3º, de-termina expressamente que, autorizado o funcionamento do culto, nele a polícia não poderá intervir, a não ser por infração da lei penal que ali ocorra.’”

O Pretório Excelso furtou-se à análise do mérito da representação por entender que a mesma estaria prejudicada pela alte-ração sofrida no artigo 2º da Lei n. 3.443/66 pela Lei n. 3.895/77.

Ocorre que a alteração mencionada não teve o condão de sanar a inconstitu-cionalidade existente.

Pela Lei n. 3.895, de 22 de março de 1977, “O funcionamento dos cultos de que trata a presente lei será, em cada caso, co-municado regularmente à Secretaria de Se-gurança Pública, através do órgão compe-tente a que sejam filiados, comprovando-se

O Direito de Religião no Brasil

118 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

o atendimento das seguintes condições preliminares: ...II-b) possuir licença de funcionamento de suas atividades reli-giosas, fornecida e renovada anualmente pela federação a que foi filiado”.

Ora, somente os Terreiros, Tendas e Centros de Umbanda (Cul-tos Africanos) deveriam, pela mencionada lei, comunicar o seu funcionamento à Secretaria de Se-gurança Pública. Qual é o motivo desta discrimi-nação? É patente que tal exigência sendo feita exclusivamen-te aos Cultos Africanos fere o princípio da isonomia, não importando se a Secretaria de Segurança Pública não tenha mais que dar a sua autorização para que a entidade funcione. O só fato dos Templos de uma determinada religião serem obrigados a co-municar o seu funcionamento à Secretaria de Segurança Pública, e outros Templos de outra religião não serem obrigados a tal procedimento, já mostra um preconceito e um tratamento diferenciado totalmente injustificados. A fala de que a discrimina-ção foi feita em razão da “realidade social” é desprovida de conteúdo, não possuindo pertinência lógica com o próprio trata-mento desigual. A expressão equivale a um “cheque em branco” a ser preenchido a gosto do sacador.

Quando o Supremo Tribunal se ne-gou a apreciar a representação, por via oblíqua, julgou válida a discriminação, fazendo, novamente, tábula rasa de nossa Constituição.

No âmbito do Estado de São Paulo pode-se mencio-nar o Mandado de Segurança n. 13.405-0 (publi-cado na RJTJESP 134/370) impe-trado contra ato do Presidente da Assembleia Legislativa que mandara reti-rar, sem oitiva

do Plenário, crucifixo colocado na sala da Presidência da Assembleia.

O Tribunal entendeu, sem adentrar ao mérito do ato, ser matéria de “âmbito estri-tamente administrativo, constituindo, do, ademais, ato inócuo para violar o disposto no inciso VI do artigo 5º da Constituição da República”.

Apenas ad argumentandum vale a transcrição de trecho do voto vencido do douto Desembargador Francis Davis que afirma que o “crucifixo existente na Presi-dência da Augusta Assembleia Legislativa é uma exteriorização dos caracteres do Povo de São Paulo. É a representação de um preâmbulo da própria Constituição deste Estado, outorgada com invocação da ‘proteção de Deus’. É ainda, a exteriori-zação de um Povo que, como deve, cultua

A Constituição Federal consagra como direito

fundamental a liberdade de religião, prescrevendo

que o Brasil é um país laico. Não existe uma

religião oficial no Brasil.

O Direito de Religião no Brasil

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 119

sua história, tendo sempre presente que o Brasil, desde o seu descobrimento, é o País da Cruz. Isto é, a Ilha da Vera Cruz, e de-pois, a Terra de Santa Cruz, indicação, em última análise, de um povo espiritualista, nunca materialista.

Cabe ao Senhor deputado impetrante defender, na Casa das Leis, esse símbolo representativo do Povo de São Paulo, que, ao elegê-lo, outorgou-lhe legitimidade bastante para a defesa, na Assembleia, dos predicados e interesse de São Paulo, dentre os quais seus caracteres religiosos (independentemente do credo individual) e histórico.”

Com o devido respeito, não creio ser esta a melhor interpretação a ser dada ao preceito constitucional que invoca a “prote-ção de Deus”. Se é inegável a tradição cristã do povo brasileiro, também é inegável o crescimento de outras religiões que consi-deram a existência de crucifixos e imagens de santos uma “abominação”. É difícil, hoje, precisar numericamente qual é a religião majoritária. O que se pode afirmar, sem qualquer dúvida, é que existe uma parcela considerável da população que não segue mais a religião católica apostólica romana. Com base no nosso progresso constitu-cional, pode-se afirmar com segurança que o Estado não deve simplesmente “to-lerar”(27) a existência de outras religiões em seu território. Deve saber conviver com a multiplicidade de religiões existentes, tratando igualmente a todas.

A existência de um Ser Superior é aceita por todas as religiões. As religiões, basica-mente, divergem na forma de se encontrar

Deus, escolhendo cada uma seu próprio caminho. Portanto, concluo que o Estado Brasileiro não pode escolher aleatoriamen-te um caminho. Que o lado “espiritual” do povo deve ser respeitado, estimulado e protegido não há dúvida. O que não se pode fazer é optar por uma religião em detrimento de outras.

Acredito estar a razão com o nobre De-putado Estadual Presidente da Assembleia, que entende que “nenhum símbolo reli-gioso deve ornamentar qualquer próprio do Estado, em especial a sede de um dos Poderes, exatamente o Gabinete daquela autoridade que o representa, sob pena de se estar violando a Constituição.”

IV - Do Ensino Religioso na Rede Pública de Ensino

A Constituição da República estabelece em seu artigo 210, parágrafo 1º, que as escolas públicas de ensino fundamental deverão ter, obrigatoriamente, em seu cur-riculum, como matrícula facultativa porém dentro do horário normal de aulas, uma cadeira relacionada ao ensino religioso.

A Constituição não traça, no menciona-do dispositivo, nenhum padrão de conduta para o Administrador ou para os educadores

O Direito de Religião no Brasil

120 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

com relação à forma que se dará o ensino religioso, muito menos qual o seu conteúdo ou ainda, por ser facultativa a matrícula, não dá nenhuma dica sobre o que farão as crian-ças que não optarem pelo ensino religioso durante o período em que estiverem sendo ministradas as aulas relacionadas à matéria. Tais indagações ficaram sem resposta ime-diata devendo ser feita uma exegese de todo o texto constitucional para que se consiga dar a aplicação correta ao artigo.

Primeiramente, é conveniente repisar-se que não existe uma religião oficial no Brasil. Não existindo religião oficial, não se pode optar pela ensinança dos preceitos de nenhuma religião específica (ou melhor dizendo, não se pode optar pelo ensinamen-to de apenas uma religião) pois em assim ocorrendo estar-se-ia promovendo o pro-selitismo patrocinado pelo Poder Público.

Se está proibida a ensinança de deter-minada religião, qual era a intenção do Constituinte? Cremos que a intenção do Constituinte foi dar a oportunidade para que os alunos, em idade de formação de sua personalidade, possam ter informa-ções para optar, no futuro, livremente por uma religião, ou por nenhuma religião. Na cadeira de ensino religioso deveriam ser transmitidos os fundamentos das maiores religiões existentes no Brasil, com ênfase nos aspectos que lhes são comuns: práti-ca de boas ações, busca do bem comum, aprimoramento do caráter humano etc..

Deixa-se consignado que a implemen-tação do ensino religioso nas escolas pú-blicas vai passar por um grave problema,

que é a falta de bons profissionais, aptos a transmitir conceitos gerais sobre todas as religiões, sem tentar forçar a prevalência de suas próprias ideias, ou das ideias da religião que representa (é conveniente que se atente que à margem da quase inexistência de tais profissionais, ainda existe, na nossa realidade, a agravante das péssimas condições generalizadas do ensino de nosso país, que como regra geral, infelizmente, não oferece a possi-bilidade da mantença de bons quadros do magistério dentro do ensino público).

Existe, por outro lado, uma impossi-bilidade de que os professores sejam re-crutados em determinada religião. Deve haver um concurso público em que se exija o conhecimento das linhas gerais de todas as principais religiões existentes no Bra-sil: religiões de origem africana, católica, evangélica, judaica, muçulmana, budista etc., pois só assim os professores estarão,

O que para um homem é religião, pode

ser considerado por outro como

uma superstição primitiva,

imoralidade, ou até mesmo crime.

O Direito de Religião no Brasil

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 121

pelo menos em tese, aptos a transmitir as ideias com um grau relativo de isenção.

Outra questão que deverá ser solu-cionada é a relativa à facultatividade da matrícula. Será que existe a facultativida-de constitucionalmente prevista? Sendo que a matéria relativa ao ensino religioso deverá ser ministrada no horário normal de aula, aonde ficarão os alunos que não fizerem a opção por ela? Se não houver uma opção viável, não há que se falar em facultativa. Se a opção for ficar sem fazer nada durante o período das aulas, ou ainda, ficar tendo aula de uma das matérias tradicionais, com certeza a “fa-cultatividade” estará ameaçada.

Por derradeiro, outro ponto a ser ana-lisado é relacionado à pressão do grupo: se noventa por cento de uma classe se dispuser a ter aula de determinada reli-gião (no caso de não ser seguida a inter-pretação que fizemos relacionada com a obrigatoriedade de serem ministradas aulas sobre todas as correntes religiosas), como se sentirão os dez por cento da clas-se que por não fazerem parte da religião majoritária, ou por não possuírem ne-nhuma convicção religiosa? Fatalmente o grupo exercerá uma forte pressão sobre as crianças que ainda estão em estágio de formação de ideias.

Pelos argumentos colacionados cremos que foi infeliz o legislador constituinte ao determinar que o ensino religioso deva ser ministrado dentro do horário normal das escolas públicas, devendo, portanto, ser revisto este dispositivo, pois está em contra-

dição com o bojo da Constituição Federal no tocante à separação obrigatória entre o Estado e os entes religiosos, sob pena do Estado vir a patrocinar o proselitismo. ICI

NOTAS(1) Artigo publicado na Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Janeiro/dezembro de 1996 ns. 45/46.(2) SORIANO, Ramón. Las liberdades públicas. Madri: Tecnos, 1990. p. 84.(3) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 64.(4) SILVA, José Afonso da. Curso de direito cons-titucional positivo. 5 ed. rev. e ampl. de acordo com a nova Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 223.(5) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 62.(6) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 61.(7) KONVITZ, Milton R. Fundamental liberties of a free people: religion, speech, press, assem-bly, 2. ed. New York: Cornell University Press, 1962. p. 5.(8) MIRANDA, Jorge. Manual de direito cons-titucional: direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1988. v. 4, p. 348.(9) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 75-76.(10) KONVITZ, Milton R., ob. cit., p. 49.(11) MATTOS, Carlos Lopes de. Vocábulo filo-sófico. São Paulo: Leia, 1957.(12) JOLIVET, Régis. Vocábulo de filosofia. Tradução de Gerardo Dantas Barreto, Rio de Janeiro: Agir. 1975.(13) ZARAGÜETA, Juan. Vocábulo filosófico. Madri: Espasa-Calpe. 1955. p. 454.(14) SILVA, José Afonso da., ob. cit., p. 221.(15) Idem, ibidem.(16) Idem, ibidem.

O Direito de Religião no Brasil

122 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

(17) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 76.(18) PONTES DE MIRANDA, Francisco Caval-canti. Comentários à Constituição de 1967 com a Emendan. 1, de 1969. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974. v. 5, p. 123.(19) A legitimidade do exercício do poder de polícia já foi declarada nas Apelações Cíveis ns. 146.692-1/6 e 152.224-1/10, do Tribunal de Jus-tiça do Estado de São Paulo, cujo relator foi o Desembargador Andrade Marques. Nos acórdãos mencionados ficou demonstrada a possibilidade da Municipalidade fechar templos que não estejam cumprindo as posturas municipais para o seu fun-cionamento (falta de alvará, horário, barulho etc.)(20) KONVITZ, Milton R., ob. cit., p. 56.(21) Trata-se do Doremus Bible-Reading Case quando foi considerada constitucional a leitura do texto sem comentários, em virtude do espírito religioso do povo americano.(22) Trata-se de Everson case, onde foi questio-nado se o Estado deve suportar com o custo do transporte das crianças quando estas frequentem escolas religiosas. A Suprema Corte manteve a decisão da mais alta Corte de New Jersey que sustentou essas parcerias.(23) Trate-se do Zorach case onde, em 1952, foi considerado constitucional o planejamento da cidade de New York no tocante ao horário das aulas nas Escolas Públicas de modo a ser possível o ensino religioso, com expressa autorização dos pais, fora do horário de aula e fora das escolas.(24) A Suprema Corte entendeu ser tal ato in-constitucional por ser um ato sectário no Gi-deon’s Bible case.

(25) A Assembleia Legislativa do Estado de New York decidiu que “In the United States, as has been manifested in the attitude of the Supreme Court

with respect to Sunday laws, and in its treatment of the New Jersey Bible-reading case, and in the Zorach decision, separation means co-operative, not absolute, separation. The most (and the least) that can be expected is that the law, while preserving Sunday as the Sabbath, will provide relief for those who observe the seventh day as their Sabbath, by permitting them to engage in their vocation or bu-siness on Sunday, provided they conduct themselves ‘in such manner as not to interrupt or disturb other persons in observing the first day of the week as holy time.’” (KONVITZ, Milton R., ob. cit., p. 81).(26) PONTES DE MIRANDA, Francisco Caval-canti, Comentários à Constituição de 1967..., ob. cit., v. 5, p. 133-135.(27) É conveniente que se traga à colação as ensinanças de PONTES DE MIRANDA sobre o tema: “Os inícios da liberdade religiosa foram simples armistícios, ou tratados de paz, entre duas religiões interessadas em cessar, por algum tempo, a luta. Depois, admitiram-se mais uma ou duas ou as mais conhecidas. Não só: onde uma preponderava, não abria mão do seu pres-tígio; tolerava as outras. Era a chamada religião “dominante”. Em vez de se falar de liberdade re-ligiosa, falava-se de tolerância religiosa, espírito de tolerância e outros conceitos semelhantes. Em 1789, MIRABEAU e TOMAS PAINE puseram o dedo na chaga. Surgiram as ideias de religião “dominante” e de “tolerância”. O último foi assaz claro e feliz: “A tolerância” dizia ele, no estudo sobre os Direitos do Homem, “não é o oposto à intolerância, mas a sua falsificação. Ambas são despotismos. Uma se atribuiu a si mesma o direito de impedir a liberdade de consciência, e outra, o de autorizá-la”. A “tolerância” era resto de pensamento despótico.” (ob. cit., p. 121-122).

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 123

A presença dos judeus no Oriente Mé-dio data dos tempos bíblicos. Dentre

as diferentes etnias que habitam o Oriente Médio, os judeus, representados por seu patriarca Abraão, primeiro representante do judaísmo, lá se instalaram.

A unidade do povo judeu na antiguida-de se dava não em relação a um território mas à sua história sequencial, relatada e escrita na Bíblia, a Torá.

A Torá, consti-tuída pela Lei Es-crita e pela Lei Oral, tem como persona-gem principal a fi-gura de Deus que, por seu intermédio, impõe sua moral ao seu povo. Moral (“mos”, “mores”, hábitos ou costumes

em latim), conjunto de hábitos e costumes formados por acúmulo de experiência ou pela preservação das tradições, é diferente de Ética. Ética diz respeito ao exercício in-dividual diante de questões, em função de algum critério pessoal. Nas construções de normas morais estão incutidos con-ceitos de ética. Para viver em sociedade

são necessárias re-gras, que consistem em normas adotadas ou aceitas conven-cionalmente para tornar possível a convivência huma-na, as quais podem variar de acordo com a civilização a que se destina, com

a época, com povo ou com o ramo da atividade humana, e passam a ser obede-

Ética Educacional dePaulo Freire e Pirkei Avot:

Intertextualidade e Interdiscursividade

Ana Szpiczkowski

O verdadeiro educador reconhece em seu

aluno uma pessoa que também possui

conhecimentos, fruto da sua própria

experiência.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

124 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

cidas por todos os seus membros. Grande parte das normas morais tem como fonte a Bíblia. Embora a ética não seja necessa-riamente religiosa, a religião necessita da ética. Todas as religiões se fundamentam em princípios éticos.

No judaísmo, a atribuição da Bíblia a Deus faz com que a moral e a ética se tornem muito próximas. Trata-se de uma moral que emana de Deus, não do ser humano. A mo-ral é composta de mandamentos, aos quais os judeus de-vem cumprir de tal maneira a exercitar e aprender a perder a sua própria vontade para chegar a apren-der a vontade divina. A ética judaica, por sua vez, consiste em obedecer ao código moral, aos mandamentos divinos, contidos na Lei Escrita, o Tanakh e na Lei Oral, o Talmude.

Apesar da existência de diferentes teorias sobre ética na filosofia judaica, enfocaremos aqui o tratado do Pirkei Avot, do Talmude, “Ética dos Pais” em português, e procuraremos estabelecer um diálogo entre os aspectos educacio-nais contidos neste texto e a proposta de Paulo Freire, eminente filósofo e educador brasileiro, que defende a prática demo-crática na educação para a formação de cidadãos conscientes, críticos, atuantes e

modificadores da sociedade. A seleção das máximas do Pirkei Avot, denominadas Mischnayot1, foi feita com base na questão da intertextualidade entre a Ética dos Pais e a proposta freiriana, procurando incorporar um texto em outro e utilizar a interdiscursividade entre ambos, quer para reproduzir o sentido incorporado, quer para transformá-lo e perceber a in-tertextualidade “interna” das vozes que

falam no texto. Nossa proposta,

portanto, é ler e in-terpretar o texto do Pirkei Avot no con-texto das modernas teorias da educação, particularmente a educação democrá-tica proposta por Paulo Freire. Muito mais há para ver no Pirkei Avot, e sua

riqueza filosófica e teológica permitiria inesgotáveis abordagens. Fique claro que, aqui, visamos especificamente à questão da educação e do ensino.

O assunto da educação recebe ênfase neste estudo, pelo fato de que ela, enquanto processo de libertação, garante ao homem a sua superação. Porque educar (de edu-care), de acordo com Villa (2000) signifi-ca conduzir, guiar, orientar, e engloba o

1.  Plural de Mischná – A mais antiga das obras remanescentes da literatura rabínica, editada por Judá Há-Nassi e completada por membros de seu círculo após sua morte, no início do século III E.C.

“O diálogo não pode converter-se num ‘bate-papo’,

que marche ao gosto do acaso

entre professor e educandos”

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 125

conceito de educere, referente a fazer sair, extrair, dar à luz

Paulo Freire (1976) enfatiza, em seus estudos, a importância do despertar e da participação do cidadão no processo edu-cacional. De fato, a problematização do ensino, decorrente do envolvimento e da motivação do educando por ver sua reali-dade social e cultural deve ser considerada nos conteúdos ensinados; o relacionamen-to efetivo entre professores e alunos, a visão do aluno como um todo, e o respeito ao seu desenvolvimento cognitivo é fundamental para a educação. Para tanto é necessário o Diálogo. Diálogo enquanto princípio pedagógico e metodológico, portanto di-ferente de mera conversa ou como afirma Freire: “O diálogo não pode converter-se num ‘bate-papo’, que marche ao gosto do

acaso entre professor e educandos”. (Freire, 1992, p. 1, nota 47). O diálogo é necessário enquanto exigência epistemológica, e não apenas enquanto um recurso dentre outros para ser usado ou não na relação docente, pois “A dialogicidade não pode ser com-preendida como um instrumento usado pelo educador, às vezes, em coerência com sua opção política. A dialogicidade é uma exigência da natureza humana e também um reclamo da opção democrática do edu-cador” (Freire, 1995. pp. 74-82).

Diálogo e investigação, para Freire, várias vezes aparecem juntos, formando o que denominamos de “investigação dia-lógica”, em que o conhecimento do objeto não é de posse exclusiva do professor, que transfere o conhecimento aos alunos num gesto benevolente; em vez dessa afetuosa

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

126 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

dádiva de informação aos estudantes, o ob-jeto a ser conhecido medeia os dois sujeitos cognitivos. Em outras palavras, o objeto a ser conhecido é colocado na mesa entre os dois sujeitos do conhecimento. Eles se encontram em torno dele e através dele para fazer uma in-vestigação conjunta (Freire, 1987, 1975).

I nv e s t i g a ç ã o como princípio pedagógico e me-todológico signifi-ca a superação da pedagogia de ar-mazém, visto que, nesta perspectiva: “O educador pro-blematizador refaz, constantemente, seu ato cognoscente, na cognoscibilidade dos educandos. Estes, em lugar de serem re-cipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também” (Freire, 1997, p. 80).

Conceitos semelhantes aos de Paulo Freire podem ser encontrados no trata-do do Pirkei Avot, que contém toda uma coleção de ditos e sentenças dos “pais”, os Sábios de Israel, cobrindo um período aproximado de quinhentos anos, desde 300 A.E.C. até 200 E.C. O caráter de suas má-ximas é fundamentalmente ético, muitas delas exaltam a Torá, a Bíblia, ao mesmo tempo em que propõem um aprimora-mento individual do homem enquanto ser atuante na sociedade em que vive, e

contém, entre outras, uma inesgotável ri-queza de ensinamentos e reflexões sobre educação e ensino.

Não se trata de um código de valores e normas, mas de uma série de condições mínimas necessárias para a sustentação de

toda sociedade hu-mana e do homem simples do povo.

A leitura do Pirkei Avot nos permite observar que por meio de sentenças breves, máximas com estilo e forma genuínos, os Tanaítas, educado-res e repetidores da

época, transmitiam ao povo uma manei-ra democrática de viver, respeitosa, com direitos e obrigações, em que impera a justiça e a responsabilidade pessoal e cole-tiva. Interessante observar que, enquanto Paulo Freire defende o exercício da inves-tigação dialógica, com direito à crítica, à argumentação, à autonomia, à constru-ção e à participação, também os sábios do Talmude desenvolviam uma metodologia participativa para o seu estudo, o Pilpul2 e a Havruta3. Trata-se de um processo pro-blematizador, em que as declarações de cada estudioso são aceitas e integradas às afirmações de outros Sábios, na busca de conciliação e redução de diferenças.

2.  Raciocínio dialético, in Steinsaltz, 1989, p. 321.

3.  Parceria.

Conceitos semelhantes aos de Paulo Freire podem ser encontrados no tratado do Pirkei

Avot.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 127

Nele os mestres expõem a doutrina e, na medida em que os alunos não a compre-endem inteiramente, fazem perguntas. A essas perguntas segue-se a contestação dos professores, explicando-a mais claramen-te. Surgem objeções e os defensores das teses de seus mestres se enfrentam com seus contraditores. Ao término do deba-te, algumas opiniões são definitivamente descartadas e outras adotadas por ter sido reconhecido o seu valor.

Esta metodologia pressupõe o envolvi-mento afetivo com o objeto de discussão, e a participa-ção ativa no processo de aprend i z a-gem. Propor-ciona ao alu-no uma auto-confiança tal que ele não tenha receio de expor seus pensamentos e lhe permi-ta explorar e criar novas ideias. Na medida em que o aluno vai se desprendendo da timidez, adquire coragem para se colocar diante dos colegas e mestres, vencer etapas e adquirir autoestima mais elevada. Com esse proce-dimento, não estará somente escutando aos outros, mas tem a oportunidade de ouvir também a si mesmo e de tentar, cada vez mais, atingir um nível apropriado para igualar-se aos colegas na argumentação.

O Tratado de Avot, outro nome atri-buído ao Pirkei Avot, é formado por cinco capítulos, acrescido posteriormente de um sexto capítulo. Sua extensão não permite que se faça neste artigo uma análise de to-dos os ditos nele contidos, mas procurarei apresentar, de maneira sucinta, o conteúdo de algumas de suas máximas, a título de ilustração.

Tomemos como exemplo a máxima 1 do Capítulo 1:

“Moisés recebeu a Torá do Sinai 4, trans-mitiu-a a Josué, Josué aos anciãos 5, os

anciãos aos Profetas 6 e os Profetas a transmitiram aos homens da Grande Assembléia7 Esses mes-tres procla-maram basi-camente três pr incípios: sede ponde-rados no jul-

gamento formai muitos discípulos...”

4.  De Deus que esteve no monte Sinai.

5.  Os Sábios e dirigentes de Israel, tanto nos tempos de Josué como depois dele, até o aparecimento dos Profetas, cuja linha se inicia com Samuel e o rei Davi.

6.  Surgiram durante o período do Primeiro Templo, época do exílio da Babilônia e início do Segundo Templo - 586 A.E.C.

7.  Existiu logo após o início do período que cor-responde ao Segundo Templo; dela faziam parte as figuras exponenciais de Esdras e Neemias- 516 A.E.C.

Não se trata de um código de valores e normas, mas de uma série de condições mínimas necessárias para

a sustentação de toda sociedade humana e do

homem simples do povo.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

128 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

A cadeia transmissora de ensinamen-tos, conforme nos referimos acima, nos leva, através das gerações, até os Tanaí-tas, os Sábios da Mischná. Trata-se de uma cadeia sem interrupções, desde a Revelação no monte Sinai até os nossos dias, sendo que em nenhuma época o estudo da Torá foi abandonado; cada um dos períodos teve grandes mes-tres e nos legou monumentos de sua atividade es-piritual.

Os três prin-cípios enuncia-dos nessa máxi-ma parecem-nos extremamente atuais e estão presentes nos conceitos de educação democrática.

A ponderação no julgamento remete a conceitos de atuação do mestre. Se o mestre for precipitado no julgamento, poderá dis-torcer a avaliação, desrespeitando o aluno.

Quanto a “formar muitos discípulos”, Lehmann (1985) nos explica que o judaís-mo existe somente na Torá e pela Torá. É, pois, um dever primordial estudar a Torá com cuidado, aprender e conhecê-la bem, aprofundar-se nos seus preceitos e submeter-se a eles com rigor. Porém, en-siná-la é tão importante quanto estudá-la.

Infere-se daí que o discípulo que estuda a Torá não deve ficar apenas ligado ao seu estudo, mas deve ser capaz de ensiná-la, na medida em que vai adquirindo matu-ridade e autonomia. Há uma passagem no

Talmude sobre Rabi Hya, sécu-lo III E.C., dis-cípulo de Rabi Yehuda Hanas-si - o compilador da Mischná, que viajou por dife-rentes vilarejos de Israel. Lá ve-rificou que as crianças f ica-vam soltas pelas ruas, não rece-biam instrução e, ao atingir uma idade de maior

responsabilidade, eram encaminhadas por seus pais para atividades agrícolas, a fim de ajudar no sustento familiar. Ao chegar a determinado vilarejo, Rabi Hya reuniu um grupo de crianças, de seis a sete anos de idade, e ensinou-lhes a Torá. Para um ensinou o Gênesis, para outro, o Êxodo, para um terceiro, o Levítico, e assim por diante, com todos os livros da Bíblia. Em seguida pediu-lhes que ensi-nassem uns aos outros, entre si, aquilo que haviam aprendido. E assim continuou Rabi Hya por outras cidades, formando cada vez mais discípulos. Conseguiu que essas crianças, a quem ele chamava de

Os Tanaítas, educadores e repetidores da época, transmitiam ao povo

uma maneira democrática de viver,

respeitosa, com direitos e obrigações, em que impera a justiça e a

responsabilidade pessoal e coletiva.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 129

Tzon Kodaschim – “re-banho de santos” – não somente detivessem o conhecimento, mas que, também, multiplicassem seus ensinamentos. Im-possível seria para nós deixar de estabelecer uma relação direta entre essa passagem do Talmude e a situação brasileira, tão similar em termos de abandono de suas crian-ças. A solução encontrada por Rabi Hya foi bastante criativa e adequada para a época, mas não consiste necessariamente numa resposta para os dias de hoje. É preciso que se busquem soluções atuais para um problema que, como vimos, ocorre em todos os tem-pos. Não se trata de simplesmente copiar exemplos e modelos adotados em outros tempos ou por outras nações, pois a ba-gagem das crianças é outra e varia muito de região para região do Brasil. É preciso antes de tudo conhecer e analisar atenta-mente a realidade dessas crianças, para buscar soluções alternativas, criativas e adequadas a essa realidade. A solução encontrada por Rabi Hya promoveu a autonomia das crianças e, aparentemente, considerou o fato de que sua tarefa de mestre não se restringia apenas a ensinar os discípulos, mas formá-los, preparando--os para que fossem autônomos e capazes de ensinar também. Um estudioso da

Torá tem por obrigação formar o maior número de discípulos, contribuindo, as-sim, para a difusão da Lei. Um sábio deve colocar seus conhecimentos a serviço de seu próximo, com o fim de ajudá-lo a encontrar o bom caminho. Isto significa que o sábio não deve ser muito severo e exigente na aceitação de discípulos, mas ao contrário, deve atraí-los, quaisquer que sejam suas possibilidades, seu ritmo ou suas condições de aprendizagem.

Vale lembrar que os homens da Grande Assembleia insistem na necessidade de intensificar o ensino, independente do número de alunos; querem que os profes-sores se ocupem de cada um em particular, para que, mais adiante, sejam capazes de estudar por si sós, ensinando-os, de tal forma que possam se tornar autônomos e converter-se também em mestres.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

130 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Sob outro ângulo, Bunim (1966) es-clarece que a expressão “formai muitos discípulos” literalmente significa “erguei muitos discípulos”. Comenta o autor que o mestre tem a tarefa de levar seus dis-cípulos a “erguer-se”, proporcionar-lhes força e substância, dignidade e senso de independência.

Percebe-se, portanto, que a máxima que se refere a formar muitos discípulos envolve conceitos propostos por Freire, tal qual a aceitação do indivíduo, o respeito pelo mesmo independentemente de suas condições materiais, culturais e psicológi-cas, e o incentivo à sua autonomia.

Na Mishná 14 do capítulo 1, encon-tramos os seguintes dizeres: “Se eu não for por mim, quem será por mim? Mas se eu só for por mim, o que sou eu? E se não agora, quando”.

Embora o homem, por sua própria na-tureza, procure preservar sua individua-lidade, dadas suas características sociais, ele possui, também, responsabilidade em relação aos outros e à sociedade de um modo geral. É preciso, entretanto, que ele perceba a si e aos outros como seres que

se movimentam continuamente, em uma sociedade inconstante e que exige que se adapte a ela ou proponha mudanças. Essas, por sua vez, devem ser propostas no mo-mento certo, em função de uma leitura real da sociedade como se apresenta. O passado é importante enquanto modelo a ser ana-lisado com crítica. O futuro nem sempre é alcançado, em virtude da acomodação, muitas vezes eleita como modo de vida, e que pode trazer consequências nefastas. O momento presente, portanto, como resul-tado de suas vivências anteriores, deve ser vivificado de maneira intensa, para que o possa conduzir para um futuro melhor, a ele, como indivíduo, e ao grupo social do qual faz parte, propiciando-lhe, de acordo com Freire, a capacidade de tornarem-se responsáveis por sua própria educação.

Em outra máxima, Rabi Yokhanan Ben Zakay (10 a 80 E.C.) dizia: “Se tiveres estudado muito a Torá, não te louves a ti mesmo, pois para isto foste criado”.

Ao assumir a responsabilidade de ensi-nar, o professor, com base em seus conhe-cimentos, deve cumprir humildemente seu dever de educar, porque sua obrigação vai

Estudar a Torá, portanto, é aplicar-se com a finalidade de levar uma vida digna, e adquirir sabedoria e inteligência. Transportando esse

conceito para a educação geral, concluímos que é preciso estudar e ensinar aquilo que é

pertinente à realidade da pessoa.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 131

além da simples transmissão de conheci-mentos. Implica uma atitude educacional que envolve respeito pelo ser humano que está ali, ávido por receber novos conheci-mentos, pois o mestre também aprendeu a Torá de gerações anteriores, para ter a capacidade de transmiti-la à nova geração.

É preciso ter clara a meta educativa que se pretende atingir e, na busca de respostas e perguntas, tentar conduzir a ação político-pedagógica numa direção emancipadora.

Consciente disso, o verdadeiro educa-dor reconhece em seu aluno uma pessoa que também possui conhecimentos, fruto da sua própria experiência. Assim, o pro-fessor autoritário e dono do saber dá lugar, de acordo com Freire (1976), ao professor problematizador, que possui um papel mais abrangen-te do que aquele que utiliza seus alunos como meros receptores do conhecimento. O verdadeiro edu-cador reconhece nos seus alunos pessoas com suficiente capacidade para investigação e crítica, respon-sáveis pela transformação da reali-dade e da sociedade. Desmembrar esta ideia da importância da apli-cabilidade na vida daquilo que se aprende significa não reconhecer que o atendimento às necessidades do aprendiz seja um dos princípios básicos da educação democrática. Há que se lembrar aqui os assim chamados professores, que se co-locam em posição de superioridade

frente aos alunos, pelo fato de dominarem um conhecimento específico. Esse “profes-sor” desconhece que seus alunos possuem conhecimentos distintos dos seus e que ele próprio também estaria se beneficiando, se estivesse suficientemente aberto para a troca de conhecimentos. Muitas vezes guarda e até esconde o que sabe, pois isso lhe proporciona um sentimento de poder e domínio, fruto de uma possível insegu-rança e necessidade de se impor pela força. O verdadeiro educador deve transmitir aquilo que aprendeu, à semelhança de seus antepassados que, desde Moisés no Sinai, foram transmitindo a Torá para as gerações seguintes, sucessivamente, até a atualidade.

Esta metodologia pressupõe o envolvimento

afetivo com o objeto de discussão, e a

participação ativa no processo de

aprendizagem. Proporciona ao aluno

uma autoconfiança tal que ele não tenha receio

de expor seus pensamentos e lhe

permita explorar e criar novas ideias.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

132 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Este movimento de dar e receber co-nhecimentos, certamente, conduz o estu-dante ao desenvolvimento de sua inteligên-cia, aguça o sentido crítico do pensamento e permite a elucidação de problemas.

No caso específico do estudo da Torá, afirma Lehman (1985) tal compenetração permite a prática de saber aconselhar, pois

sua inspiração conduz à aplicação de seus princípios. Assim, aquele que decide guiar-se pelas prescrições da Torá, que tem agu-çado e fortalecido sua mente na companhia dos Sábios, estudando em companhia de

outros discípulos e ensinando, ele mesmo, por sua vez, sabe formular juízos claros e seguros, pois tem o hábito de consultar os demais e, reciprocamente, dar a sua opinião.

O estabelecimento de uma relação entre a sabedoria e a maneira de estudar a Torá nos dá uma lição de democracia, na qual todos têm o direito de questionar, emitir opiniões, ensinar e aprender uns com os outros. Assim, o professor que estiver en-volvido e interessado, tanto em seus alunos como no conteúdo, estará transmitindo seus conhecimentos e desenvolvendo, ao mesmo tempo, o envolvimento dos alu-nos com o conteúdo da aprendizagem. Estudar a Torá, portanto, é aplicar-se com a finalidade de levar uma vida digna, e adquirir sabedoria e inteligência. Trans-portando esse conceito para a educação geral, concluímos que é preciso estudar e ensinar aquilo que é pertinente à realidade da pessoa.

Vários outros exemplos do Pirkei Avot poderiam ser incluídos neste estudo, mas devido ao espaço escasso apresentarei uma síntese de valores contidos no mesmo. Ao proceder a uma “leitura” do Pirkei Avot sob a perspectiva das modernas teorias peda-gógicas, foi possível encontrar semelhan-ças e proximidade às teorias educacionais andragógicas.

Numa metodologia andragógica há uma relação horizontal entre professor e aluno. Ambos participam do processo de aprendizagem, embora se leve em conta à experiência e sabedoria do professor.

Rabi Hya conseguiu que essas crianças não somente detivessem o

conhecimento, mas que, também,

multiplicassem seus ensinamentos.

Impossível seria para nós deixar de

estabelecer uma relação direta entre essa passagem do

Talmude e a situação brasileira, tão similar

em termos de abandono de suas

crianças.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 133

Na relação andragógica, po-rém, é necessário o diálogo, como meio de estimular um constante intercâmbio entre o repertório do professor e o repertório do aluno. Isso não elimina, em nada, a transmis-são de conhecimentos técnicos e formais.

Nesse sentido, a discus-são intertextual, entre os princípios de Paulo Freire e o Pirkei Avot, me faz refletir nas profundas mudanças so-ciais, econômicas, tecnológi-cas que o mundo globalizado tem enfrentado nos últimos tempos, e propor mudanças que exaltem o humanismo e o estudo. Ambos os textos aconselham e recomendam atitudes e comportamentos, tanto do mestre quanto do aprendiz, relacionados, especialmente, à liberdade e responsabilidade. A liber-dade pressupõe conceitos ligados a uma atuação consciente e disciplinada, isto é, contrária à libertinagem. E ela pode se manifestar de diferentes maneiras: pela liberdade de expressão e pela liberdade de escolha, ou seja, o livre-arbítrio. A liberdade, conforme podemos observar em algumas máximas, se constitui em direito do cidadão, para que ele possa se estabelecer como elemento responsável na sociedade em que atua, em um compro-misso de responsabilidade que envolve a si mesmo e aos outros. Essa responsabilida-de coletiva implica uma busca constante

de aperfeiçoamento e um compromisso do homem não só com a geração da qual faz parte, mas também com o legado de conhecimentos que deve deixar para as gerações futuras. O aperfeiçoamento e o legado, por sua vez, certamente, deverão passar pelas situações de estudo e ensino responsáveis e conscientes.

Isso envolve o respeito pelo próximo, que pode ocorrer em diferentes níveis e se manifesta de distintos modos. Encontra-mos, por exemplo, o respeito pelo homem que, quando considerado como um ser integral, tem direito à individualidade, possibilidades e ritmos diferenciados, a opiniões distintas e a erros. Aquele que erra deve ser corrigido, porém não hu-milhado ou envergonhado publicamente, pois, por ser uma pessoa honrada, merece inicialmente o respeito próprio e se tor-

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

134 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

na, assim, pronto para ser honrado pelo semelhante.

Ser respeitoso significa realizar esforços para merecer o respeito do outro e exige flexibilidade e tolerância dos interlocuto-res. Esse tipo de relacionamento, quando considerado adequado para a sociedade como um todo, certamente deverá servir para o relacionamento educacional entre

mestres e aprendizes. Envolve deferência e reverência de ambas as partes, e nunca o temor que inibe e prejudica.

Nesse contexto, a liderança é exerci-da com humildade e modéstia, além de reverência por aquele que se encontra ávido por aprender. Assim, o líder acaba por ocupar tal posto não por seus valores materiais, mas por seus valores pessoais que, certamente, irão vigorar na eleição de outros líderes. Procura agir com justiça, evitando extremismos e discriminações.

Para tanto, propõe-se aceitar o próximo do modo que ele é e tenta desenvolver sua autonomia e autoconfiança, oferecen-do-lhe afetividade, autenticidade, apre-ço, confiança, e compreensão empática. Procura demonstrar interesse pelo outro, porém, um interesse não possessivo, em uma relação interpessoal amável, paciente e respeitosa, porque, na medida em que

reconhecer no outro um elemento críti-co, irá permitir e até promover a ex-ploração, isto é, irá levá-lo a buscar so-luções. Dessa forma, é importante que lí-deres, professores, enfim a sociedade, promovam opor-tunidades de de-senvolver o senso crítico, a ref lexão, o questionamento, para que as pesso-

as possam fazer escolhas conscientes e responsáveis. Para que isso ocorra, são necessários, em nosso entender, o envol-vimento e a motivação, que impulsionam à participação ativa, à tomada de risco e à problematização para a busca de soluções e modificação da realidade.

É preciso, também, que haja disponibi-lidade e desprendimento para a cooperação em vez de competição. Nem sempre as pessoas estão preparadas para este tipo de exercício da cidadania. Daí o papel do

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 135

líder, do educador que, numa atitude dia-lógica, favorece a autoestima elevada dos educandos, promovendo problematizações e buscando soluções conjuntas, quer seja entre grupos de educandos ou de colegas, em um ambiente propício às colocações diversificadas, à argumentação, ao respeito pelas diferenças e à revisão e criação de no-vas ideias. O verdadeiro líder sabe que está sempre em situação de aprendizagem e que, muitas vezes, a posição de educa-dor-educando pode inverter-se. Permite ousar e criar, procu-rando tornar o erro um elemento cons-trutivo para o desen-volvimento de seus educandos. Desse modo, estará, a nos-so ver, provendo-os de sentimentos de segurança, autocon-fiança e autorreali-zação, pois, recorrer a professores, cole-gas e outras fontes signif ica buscar crescimento e aprendizagem significativa.

Esse educador, diferente daquele que crê na educação bancária, é um profes-sor-orientador, considera a realidade dos alunos, procura motivá-los com conteúdos pertinentes à sua realidade, orienta o gru-po o qual representa enquanto líder, honra

a si e aos outros, propiciando um ambiente estimulador e apropriado, em que ouvir o outro, ouvir a si mesmo constitui princípio básico da ponderação e do bom senso. A ponderação do educador está intimamente ligada à consciência que ele tem de seu papel enquanto líder, à manutenção de um equilíbrio entre a teoria e a prática, num exercício de coerência e sabedoria,

em que se reconhece que a ação procede do pensamento e do estudo enraizado desde cedo. A esco-la, neste contexto, torna-se uma insti-tuição de formação e não só de ensino, coerente com a re-alidade e necessi-dades de alunos e professores. Assume seu caráter social, como um local de exercício diário da democracia, que põe em prática a apren-dizagem adquirida dos alunos, respei-ta sua capacidade

particular de absorver, de selecionar e transmitir os conhecimentos. Seu cará-ter democrático permite considerar as diferenças de opinião como discussões construtivas, sedimentadas no princípio do direito à reivindicação e à possibilidade de mudanças no sistema.

O passado é importante enquanto modelo a ser

analisado com crítica. O futuro nem sempre é

alcançado, em virtude da acomodação, muitas vezes eleita como modo

de vida, e que pode trazer consequências nefastas. O momento presente, portanto,

como resultado de suas vivências anteriores, deve ser vivificado de

maneira intensa.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

136 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Para concluir, gostaria de citar uma máxima do Pirkei Avot, de autoria de Rabi Elazar Ben Schamuá 8:

“Que a honra do teu discípulo seja tão querida para ti como a tua pró-pria, e a honra do teu companheiro como a reverência pelo teu mestre, e a reverência pelo teu mestre como a reverência pelos Céus”, que resume ao mesmo tempo em que amplia, a dis-cussão sobre o exercício democrático da cidadania.

8.  Quarta geração de Tanaítas, período de 140 a 165 E.C.

Por sinal, “responsabilidade” em he-braico, Akhraiut, é constituída do mesmo radical da palavra Akher – “outro”, fato que segundo Rosemberg, ao citar Lévinas em uma palestra, nos leva a associar um termo ao outro e considerar a vida em sociedade como um eterno exercício de responsabilidade para consigo mesmo e com os seus semelhantes.

Finalmente, considero que a inclusão da ética  na educação significa a  eleição de princípios metodológicos que funda-mentalmente afirmam o reconhecimen-to do outro, ou noutros termos, ética na educação significa o confronto através do diálogo e da troca de argumentos, isto é, diálogo e investigação.  Assim como o Pirkei Avot representou um marco para a sociedade aristocrática da época, en-tendo que os princípios defendidos por Paulo Freire, em defesa da conquista da cidadania pelo homem, encontram eco na sociedade atual brasileira.

Por conseguinte, uma leitura in-tertextual dos modernos princípios da educação democrática, e em especial de Paulo Freire, à luz do Tratado judai-co em questão, poderá constituir uma contribuição, mesmo que modesta, para o debate e a ref lexão sobre a educação e o exercício da cidadania, no mundo atual e, particularmente, no contexto brasileiro.

A discussão intertextual entre os princípios de Paulo

Freire e o Pirkei Avot, me faz refletir nas

profundas mudanças sociais, econômicas, tecnológicas que o mundo globalizado tem enfrentado nos últimos tempos, e

propor mudanças que exaltem o humanismo

e o estudo.

Ética Educacional de Paulo Freire e Pirkei Avot: Intertextualidade e Interdiscursividade

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 137

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBunim, Irving M. Ethics From Sinai, New York: Editora Philipp Feldheim, Inc. Vol.1, 1966.Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1975. . Educação como Prática da Liberdade, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1976. . Educação e Mudança, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979. . Aprendendo com a Própria História, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987. . Pedagogia da esperança, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992. . A Sombra desta Mangueira, São Paulo: Editora Olho d’água, 1995. . Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Editora Cortez, 1997.Matheus, C. Apostilas e aulas Teóricas em Ética: Uma Introdução à História e aos Problemas do Pensamento Ético, COGEAE – PUC SP.

Modem, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000.Pirkei Avot Ética dos Pais, São Paulo: B’nai B’rith, 1976, 1a ed., tradução e notas explicativas de Eliezer Levin.Steinsaltz, Adin. O Talmud Essencial, Rio de Janeiro: A. Koogan editor, 1989, tradução de Elias Davidovich.Sofiste, Juarez. Ética e Filosofia na Educação Fundamental, Revista Ética & Filosofia Política (Volume 6, Número 2, Novembro/2003).Szpiczkowski, Ana. Educação e Talmud: Uma Releitura da Ética dos Pais, São Paulo: Editora Humanitas, 2ª. ed., 2008. Unterman, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 1992, tradução de Paulo Geiger. Vi l la, Mariano Moreno (direção). Dicionário de pensamento contemporâneo, São Paulo: Paulus, 2000. ICI

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 139

Num certo país havia um carroceiro judeu muito pobre. Ele trabalhava dia

e noite, mas não conseguia economizar um centavo. Ele não podia mais suportar voltar para casa e para sua esposa sem nenhum dinheiro, então ele foi ao Rebe para obter ajuda. O conselho do Rebe foi: “Torne-se um maguid! “ (Um maguid ia de cidade em cidade incentivando os judeus a se arre-pender e se esforçar mais nos caminhos da Torá). “Rebe”, disse o carroceiro chocado “Como eu poderia ser um possível maguid, eu nunca falei em público e eu não sei nada?” O Rebe lhe disse: “Assemelhe-se a abelha e não a aranha. A aranha agarra tudo o que pode e mantém para si, a abelha recolhe e dá tudo o que pode”. O carroceiro seguiu o conselho do Rebe, ouvia o que as pessoas sábias diziam, e retransmitia suas palavras em sua função de maguid. Ele foi

bem sucedido e pode sustentar sua família e educar seus filhos nos caminhos da Torá.

A porção da Torá Shemini inclui as leis de distinção entre animais casher (próprio para o consumo) e não-casher (impróprio para o consumo). A abelha não é casher — portanto os judeus não podem comê-la — ao contrário do mel, que é casher (1). Esta é uma situação muito especial, por-

que, geralmente, “o que vem de um animal não-casher é, também, não-casher” (2). Assim, na maio-ria dos casos, um produto de um animal casher é,

também, casher (exemplo: leite de vaca), enquanto um produto de um animal não-casher não é casher (exemplo: leite de por-co). No caso da aranha, a qual o carroceiro foi aconselhado a não se assemelhar, nem o animal nem sua seda — usada para cons-truir a teia — são casher.

Seja uma Abelha,não uma Aranha

Prof. Eduardo Zeiger

A aranha agarra tudo o que pode e mantém

para si, a abelha recolhe e dá tudo o

que pode.

Seja uma Abelha, não uma Aranha

140 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Por que o mel — que é produzido por um inseto não-casher — é casher, enquan-to a seda da aranha não é? A resposta, cla-ro, é que a lei judaica, codificada por nossos sábios há muitos séculos, determina que os judeus observantes podem comer mel, mas não abelhas, aranhas ou seda de aranha. Fato notá-vel é que a nature-za da produção de mel pelas abelhas e da seda pelas ara-nhas, que só foram compreendidos em detalhes no século passado, são totalmente coerentes com a lei judaica. As abelhas produzem o mel forrageando néctar das flores (que são casher como qualquer produto vegetal) e armazenando em seus corpos em um es-tômago especial, chamado de saco de mel. As abelhas têm um segundo estômago, no qual digerem o alimento que consomem.

Se uma abelha fica com fome durante o voo, ela transfere néctar do saco de mel para o seu estômago e usa o néctar como alimento. Quando o saco está cheio de mel, a abelha retorna para a colmeia e as abelhas-operárias retiram o néctar com as

línguas e o passam ao redor, deixando uma parte da água no néctar evaporar no processo; em seguida, o néctar é depositado em uma célula da colmeia, onde é armazenado. Ve-

mos assim que o néctar nunca faz parte do metabolismo da abelha.

A teia de aranha, por outro lado, é uma mistura complexa de proteínas produzidas pela aranha. As proteínas são codificadas por DNA de cada organismo e são muito es-pecíficas para cada espécie. Por exemplo, a principal proteína de seda de aranha é cha-mado sericina e tem atraído uma grande atenção nos últimos anos. A seda da aranha é um material extraordinário que pode es-ticar de 4 a 6 vezes o seu comprimento, sem quebrar, e tem um enorme potencial para a fabricação de muitos produtos. Em con-traste com vermes de seda, no entanto, as aranhas não podem ser cultivadas porque comem uma as outras, quando cultivadas no mesmo meio. Recentemente, o gene para sericina foi clonado e transferido para cabras, com o objetivo de utilizar a cabra para produção de sericina juntamente com

Por que o mel — que é produzido por um

inseto não-casher — é casher, enquanto a

seda da aranha não é?

Seja uma Abelha, não uma Aranha

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 141

o seu leite (tal leite, geneticamente modifi-cado, contendo quantidades significativas de sericina, talvez não seja casher).

Os blocos de construção das proteínas são substâncias químicas chamadas ami-noácidos. Se um animal come uma proteína que se origina a partir de um outro animal, ou se uma planta desmonta essas proteínas em seus componentes aminoácidos, serão criadas as próprias proteínas específicas do animal ou da planta em questão. Apren-demos da lei judaica que um peixe casher que come alimento não-casher permanece casher, enquanto um peixe não-casher que come comida casher permanece não-casher. Pode-se inferir que as proteínas específicas de animais casher e não-casher podem de-sempenhar um papel na manifestação física das propriedades espirituais que fazem um animal casher ou não-casher.

A compreensão científica da síntese de proteínas e os detalhes do processo da produção de mel não estavam dispo-níveis quando nossos sábios determina-

ram que o mel é casher, ou seja, nossos sábios agiram com Ruach Hakodesh, inspiração divina. A percepção de que o conhecimento científico sobre o mel e a seda de aranha são totalmente coerentes com a lei judaica nos fornece uma com-

preensão da sabedoria refinada de nossos sábios. Além disso, a compreensão da base científica da lei judaica pode nos dar um melhor entendimento dos seus princípios orientadores. ICI

NOTAS:(1) Maimonid e s Hi l chot

ma’chalot asurot 3:3. Shulchan Aruch Yoreh De’ah 81:8

(2) Mishnah Bechorot 01:02

A compreensão científica da síntese de proteínas e os detalhes do processo da produção de mel não

estavam disponíveis quando nossos sábios

determinaram que o mel é casher.

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 143

1. Introdução:Nós vivemos em uma realidade, D’us

criou muitas realidades diferentes e os seres humanos estão criando outras rea-lidades. Quantas realidades exis-tem? Nossa reali-dade, aquela em que vivemos, é uma realidade. Ela pode ser chamada a Rea-lidade Humana ou Natural. Não pode-mos afirmar que é “A realidade”, ou a “Verdadeira Reali-dade”, porque ela é limitada em mui-tos aspectos. Ela não abrange outras realidades que D’us criou, que incluem os milagres, o mundo após a morte, o mundo dos anjos, e assim por diante. Finalmente, através da ciência e da tecnologia, os seres humanos estão criando Realidades Virtuais, que são a

realidade mais limitada, pois refletem os limites de seu criador.

No entanto, apesar dessa multiplicidade de realidades, este artigo explica como

de fato há somente Uma e Verdadeira Realidade. Esta é a visão incorporada nos livros da Torá. Ela compreende todas as realida-des descritas acima e está oculta na Realidade Natural deste mundo.

E s te a r t igo t a mb ém mo s-tra como o con-ceito científico de

Realidade Virtual está ajudando a revelar a Verdadeira Realidade. Pesquisas de alta tecnologia feitas hoje estão convergindo para o que está há muito tempo escrito na Torá, e que hoje é um fato: a ciência não contradiz a Torá, muito pelo contrário.

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

Prof. Yossef Zukin

Você não se encontra mais na

sala de jantar, mas está dentro do ciberespaço de Marte que você

conhecia da ficção científica.

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

144 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

As linhas gerais deste artigo são baseadas principalmente na experiência do trabalho do autor. Ele é diretor de um importante grupo de empresas de Telecomunicações e foi sócio de uma grande empresa de Ciência da Computação. Ambas são a estrutura principal para a realidade virtual.

2. Definições:É possível que tenhamos chegado a

uma situação em que seja necessário defi-nir nossa realidade como uma “realidade real”, em contraposição a uma realidade virtual - um conceito que é muito popular hoje em dia.

Realidade virtual se refere, em geral, aos sistemas em que o usuário interage com um computador, e se envolve numa tarefa visual tridimensional (3D) . O com-putador oferece um domínio virtual de suporte para os modelos 3D ou para um ambiente completo e, se houver transdu-tores adequados, o usuário pode interagir com o sistema em tempo real.

Não é um novo tipo de realidade que está aparecendo. É diferente da realidade

natural, mas não pode ser considerada propriamente uma “nova realidade”, uma vez que é mais um acréscimo ou “ampli-ficação” do que realmente uma outra realidade.

Essas realidades são caracterizadas como “virtuais” pois têm funções cria-das por seres humanos, que produzem uma saída puramente aleatória. Isso sig-nifica que a lógica da saída não segue uma entrada específica ou “semente”, tais como a hora do dia ou um número escolhido. Além disso, o resultado não corresponde a um padrão específico.

3. Quantas realidades?É possível responder a essa pergunta

de diferentes maneiras, tais como:1. Uma = a Realidade Natural: o mundo

em que vivemos, comemos, dormimos, andamos, falamos, trabalhamos, estuda-mos, fazemos Mitsvot (mandamentos) etc.

2. Muitas = As diferentes realidades que D’us criou: o mundo dos anjos, o mundo das almas sem o corpo, o paraíso, Guehinom (inferno), etc.

É possível que tenhamos chegado a uma situação em que seja necessário

definir nossa realidade como uma "realidade real", em contraposição

a uma realidade virtual - um conceito que é muito popular hoje em dia.

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 145

3. Muitas = As diferentes realidades que os seres humanos criam: o mundo virtual (como um jogo de vídeo ou um dispositivo de capacete), um filme, internet, etc.

4. Duas = o mundo agora e o Mundo Vindouro.

5. Nenhuma = a realidade é ilusória; na realidade, é recriada a cada instante.

6. Muitas = dependendo de quem esteja vivendo esta realidade particular.

7. Uma = Uma Verdade, a Realidade Divina.

Essas respostas descrevem duas pers-pectivas diferentes: a visão “de baixo para cima” e a visão “de cima para baixo”. Todas, exceto a última resposta, referem-se à visão humana, que é a visão que temos agora. A última resposta é a Visão Divina “de cima para baixo”.

Um paralelo a esses dois tipos de visão pode ser identificado pela seguinte histó-ria: um grupo de pessoas que nunca viram ou ouviram falar de um piano em suas vidas está contemplando um piano [Figura 1]. Um diz que é um pedaço de madeira, o outro diz que é uma peça requintada de mobiliário, e o outro diz que é, obviamente, algum tipo de máquina.

Cada uma dessas pessoas busca a verdade segundo sua maneira particu-lar, usando sua experiência e capacidade para decifrar o significado do objeto à sua

frente. As conclusões alcançadas são todas verdadeiras - um piano é uma peça de madeira, uma peça de mobiliário e uma máquina. Mas eles captaram apenas a parte mais externa da realidade. E não é por-que seu raciocínio é falho, ou baseado em dados falsos; mas porque o piano pertence a um mundo – o mundo da música – que está além dos parâmetros das suas reali-dades. Assim sendo, eles não perceberam o piano pelo que é, mas, o piano que existe em seus respectivos mundos – o mundo da química, o mundo da marcenaria, o mundo da engenharia.

Eles estavam olhando para ele de baixo para cima. Quando um músico de outra

A luz do sol entra através de muitas janelas, e, mesmo assim, o sol continua a ser, apenas, um.

Figura 1

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

146 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

galáxia entra na sala, ele diz que é um piano, um instrumento musical. Ele se senta ao teclado e toca um concerto.

O músico é como um embaixador do mundo da música que veio e introduziu uma nova percepção: a percepção de “cima para baixo” - uma visão do piano do seu mundo, o mundo do piano. 2

Hoje vemos essas realidades de uma forma múltipla e esta é a razão pela qual todas as respostas acima são verdadeiras. No entanto, na essência, só existe uma rea-lidade, que é a visão Divina. As múltiplas realidades (incluindo as virtuais) podem ser entendidas como parte da Verdadeira Realidade, da mesma forma como a luz do sol entra através de muitas janelas, e, mesmo assim, o sol continua a ser, apenas, um.

O Lubavitcher Rebe explicou que “apesar da variedade de janelas, há ape-nas uma luz. Isso vale mesmo quando a luz aparece de maneira diferente de lugar para lugar: a luz solar brilhando através de janelas de vidro colorido de diversos matizes.

No entanto, a luz permanece inal-terada, mesmo que tenha a aparência

colorida das janelas, como ocorre, tam-bém, com a água em um vidro colorido: uma vez removida do vidro, ela volta a apresentar sua clareza original. Assim, também, com os vários modos em que a luz da Presença Divina se manifesta: a luz permanece a mesma, sem mudança ou divisão; quaisquer diferenças na manifes-tação são atribuíveis apenas à forma como a luz é recebida pelo objeto para o qual se manifesta “ .3

Nas seções seguintes serão explicadas algumas das respostas acima. Será mos-trado como todas elas são corretas e levam à resposta verdadeira absoluta: há apenas UMA REALIDADE VERDADEIRA.

Dizer que há anjos em um determinado espaço é tão científico como dizer que há

ondas elétricas com frequências diferentes, e ao mesmo tempo não podemos vê-las.

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 147

4. A Realidade Natural:Nós vivemos no mundo material da

realidade natural. Em hebraico a pala-vra para “mundo” é “olam” (עולם), o que denota ocultação, o lugar que D’us esco-lheu para nos encontrar e Se revelar. Nós revelamos D’us a partir de nossas ações físicas neste mundo.

É explicado que 5 “a finalidade para a qual este mundo foi criado é que o Santo, bendito seja Ele, desejou ter uma morada nos reinos inferiores,6 especificamente neste mundo físico. Neste mundo de dobrada e redobrada escuridão espiritual, Sua luz irradia ainda mais forte do que nos reinos espirituais, mais superiores, através do homem que transforma as tre-vas em luz. E para cumprir este objetivo, D’us nos queria como Seus parceiros,7 para aperfeiçoar este mundo e transformar esta realidade.

No entanto, os termos “superior” e “inferior” não servem para denotar graus de importância respectiva aos olhos de D’us, ou de proximidade com Ele. Eles indicam em que grau a Divindade é revelada em cada mundo individual: quanto mais revelação, mais “superior”

é o mundo; quanto maior a escuridão e a ocultação, mais “inferior”. Deste ponto de vista, o nosso mundo físico é o mais baixo, pois aqui a Divindade é mais velada e escondida.8

5. A Realidade Invisível:D’us criou muitas realidades, mas Ele

colocou um filtro para que possamos ver apenas a nossa realidade natural. Tudo o que vemos fora da natureza é visto como um milagre. Os anjos vivem também em nosso mundo, mas não podemos vê-los porque eles estão em uma realidade dife-rente. Dizer que há anjos em um determi-nado espaço é tão científico como dizer que há ondas elétricas com frequências diferentes, e ao mesmo tempo não pode-mos vê-las. No entanto, se ligarmos um dispositivo de rádio que pode capturar essas ondas, então seremos capazes de ouvir esta realidade que estava oculta.

Poderemos ver o paraíso quando mor-rermos, mas ele existe também no tempo presente. O Guehinom, ou o inferno, é uma outra realidade que existe para as almas que precisam de correção antes de ir para o paraíso.

As pessoas podem estar sentadas na sua casa, em Londres, Paris, Nova York ou Rio de

Janeiro, e todos estarem interagindo de uma forma significativa, em uma Realidade Virtual.

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

148 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

O Zôhar revela-nos que o nosso mundo é chamado de o mundo de mentiras (almah dishikrah), em confronto com o mundo verdadeiro, “o Mundo Vindouro”, em que todos seremos capazes de ver a verdadeira realidade, que agora não é visível.

6. A Realidade VirtualA realidade virtual pode ser vista

em jogos de vídeo de entretenimento, ou em simulações de qualquer tipo, tais como simulações de voo para a indústria da aviação; videoconferências para fins comerciais; protótipos para projetos de design industrial; operações a distância na medicina, etc.

Sua tecnologia é tão poderosa que dá ao usuário a sensação de estar imerso no mundo virtual. Esse tipo de imersão é uma característica muito importante da eficácia dos sistemas de realidade virtual, uma vez que é central para o paradigma em que o usuário se torna parte do mundo simulado, ao invés de o mundo simulado ser uma característica do mundo dos pró-prios usuários. A fim de deixar que os usuários/operadores tenham a sensação de estarem imersos no ambiente virtual, dois

dispositivos importantes são necessários: capacete de exibição e luva de dados.

O Capacete de Exibição (HMD- Head Mounted Device) [Figura 3] corta e isola as sensações visuais e de audio do ambiente circundante, e as substitui por imagens tridimensionais geradas por computador. Funciona assim: imagine que você esteja na sala de jantar em sua casa. Quando você coloca um Capacete HMD conectado a um computador, pode sentir que foi teletrans-portado para a superfície de Marte, com as duas luas, Phobos e Demos, e numerosas estrelas brilhando no horizonte distante. O que está na sua frente já não é a mesa de jantar, mas o pé do gigantesco Monte Olimpo: um vulcão maior do que qualquer montanha da Terra. Quando você dá um passo para a frente, seu ponto de vista (3D) avança neste espaço virtual. Você não se encontra mais na sala de jantar, mas está dentro do ciberespaço de Marte que você conhecia da ficção científica. Tudo é tão real que não se pode negar que se esteja explorando aquele planeta.

Tudo isso é consequência das imagens 3D geradas por computador (IGC) pro-duzidas por um computador sofisticado.

A tecnologia de Realidade Virtual, utilizada por pilotos de bombardeiros

da Guerra do Golfo, está ajudando pessoas quase cegas a ver.

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 149

Além disso, o sistema de monitoração dos movimentos da cabeça indica a posição exata e a orientação da cabeça, enquanto o computador usa esse conjunto de dados para atualizar a exibição na tela.

Com um capacete de Realidade Virtual, um astronauta pode ver um cenário 3D de um planeta em exploração e ter a sensa-ção de estar lá. Esta técnica de realidade virtual é conhecida como telepresença e pode ser utilizada para familiarizar os astronautas com a condição de um planeta em particular. Alternadamente, através de um display 3D diferente, um homem será capaz de ver a imagem virtual 3D de um

ônibus espacial, que ele pode estudar (por exemplo, para verificar possíveis falhas) antes de ser construído.

Através do capacete virtual, podemos entender como existem diferentes reali-dades e o que vemos é apenas uma parte das realidades disponíveis, pois podemos mudar de canal e ver ou viver realidades diferentes não vinculadas à estrutura do espaço-tempo.

Além do capacete, um operador pode usar uma luva especialmente projetada [Figura 4] que o torna capaz de controlar um braço robótico localizado num lugar distante. Este tipo de técnica de realidade

Figura 3

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

150 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

virtual é conhecida como TeleRobótica e pode ser aplicada a tarefas simples, como controlar um braço telerobótico na Lua e coletar amostras de rocha por intermédio de um operador na Terra.

Há uma profecia de que na Era Messiânica, quando a Verdadeira Realidade será definitivamente revelada, as espadas serão transformadas em arados [Figura 5], ou seja, armas de guerra (para fazer o mal) serão transformadas em ferramentas de agricultura (para fazer o bem). Isso já está acontecendo hoje, quando a tecnologia de Realidade Virtual, utilizada por pilo-tos de bombardeiros da Guerra do Golfo, está ajudando pessoas quase cegas a ver. “Os pilotos usavam capacetes que exibiam diante de seus olhos uma imagem virtual

de seu alvo. Apenas focando os olhos na imagem alvo e em seguida pressionando um botão, um míssil era lançado sobre o alvo terrestre.

O ‘arado’ derivado desta tecnolo-gia é um equipamento chamado Low Vision Enhancement System (Sistema de Aprimoramento para Visão Baixa). São óculos especiais que usam uma matriz de espelhos e lentes para que possibilitem a visão de imagens exibidas em minúscu-los tubos de raios catódicos. As imagens são transmitidas por mini câmeras de TV montadas na parte frontal dos óculos. As imagens são totalmente ajustáveis e dão visão a pacientes com visão tão pobre como 20/80”. 9

Na Medicina há exemplos muito úteis de Realidade Virtual ajudando a revelar a Verdadeira Realidade, tais como pla-nejamento para cirurgias auxiliadas por computador, telecirurgias, imagens tri-dimensionais, planejamento cirúrgico e simulação de cirurgias.

O Institut de Recherche en Informatique de Toulouse (IRIT)10 publicou uma pes-quisa sobre os sistemas de telecirurgias, em que a realidade virtual tem se mostrado um meio eficaz de exibição de informações

Figura 5

Figura 4

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 151

para o operador humano. Ela permite a criação de ambientes tridimensionais e interativos, que podem ser explorados e controlados de uma forma intuitiva.

A Realidade Virtual se torna muito útil quando é usada em sistema distri-buídos [Figura 6], porque ela aumenta seu poder de ação. A ideia por trás da Realidade Virtual distribuída é muito simples: um mundo simulado não é exe-cutado em um sistema de computador, mas em vários. Os computadores estão conectados em uma rede (possivelmente a Internet global ou a ‘Nuvem’) e as pes-soas que usam esses computadores são capazes de interagir em tempo real, com-partilhando o mesmo mundo virtual. Em

teoria, as pessoas podem estar sentadas na sua casa, em Londres, Paris, Nova York ou Rio de Janeiro, e todos estarem inte-ragindo de uma forma significativa, em uma Realidade Virtual.

O usuário pode entrar num sistema (ou realidade) de qualquer lugar do mundo, tornando-se um cliente de um servidor que pode estar noutro extremo do pla-neta. As barreiras da distância e espaço são quebradas, mostrando a verdadeira falta de limites da realidade. Com o avanço da Tecnologia de Telecomunicações, bem como com a enorme redução de custos, é possível, hoje, entrar no espaço da reali-dade virtual, mesmo com um dispositivo pequeno como um celular.

Figura 6

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

152 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

Finalmente, é muito interessante per-ceber como um dos criadores da realidade virtual escreve frases que demonstram perfeitamente a convergência para a Torá. “Outro debate que tem surgido é sobre o que acontece depois que você morrer, em termos do modelo? A resposta simples é que você existe como uma transformada integral de Fourier de sua vida”.11. Isto significa que a realidade virtual pode ser vivida, mesmo quando o jogador não está mais lá (ou morto), rompendo os limites do tempo e mostrando realmente a imor-talidade da alma.

No Judaísmo, podemos ver isso através de várias fontes: Está escrito, no Zôhar, que “Quando um tsadic (justo) parte, ele pode ser encontrado em todos os mundos mais do que durante a sua vida...” 12 Na Torá está escrito que o patriarca Jacó não morreu. Ela nos conta o que parecia ter acontecido, ou seja, que morreu, foi embalsamado e enterrado... mas, de fato, ele ainda está fisicamente vivo! Em outra parte, o mesmo é dito em relação a Moisés,13 ao rei David,14 ao rabino Yehuda HaNassi,15 ao rabino Elazar ben Shimon. 16 Além disso, afirma-se que os lábios físicos de cada sábio da Torá (mesmo aqueles que morreram há mais de 2.000 anos), na verdade se movem e falam, no túmulo, quando alguém estuda e repete seus ensinamentos em voz alta!17 Também há uma lista de outras nove pes-soas que não provaram o “gosto da morte”, mas entraram, vivas, no céu.18

O que significa tudo isso? Certamente, a maioria achará que estes relatos não

devem serem levados a sério. Afinal, temos ouvido falar de vida após a morte no céu, e mesmo em reencarnações... mas como pessoas já falecidas podem viver em seu corpo material, físico?

De acordo com um ponto de vista da realidade virtual, “durante sua vida você cria eventos, interage com outros Sistemas de Monitoração, e gera siste-mas que seguem para o futuro sem a sua presença, e uma vez que o sistema para de viajar para a frente, através do tempo, sua vida pode ser olhada em termos dos eventos ou interações que criou. Como em uma transformada integral de Fourier, são independentes do tempo, e pode ser definida somente como frequências (ou interações). Assim, quando o último ciclo ficar completo, os padrões que você criou no tecido do espaço-tempo ficam como a sua essência, a sua contribuição.”19 É como uma estrutura de cristal, cuja complexi-dade e beleza será baseada no que você fez com o seu tempo. O que é muito bom, sobre

Figura 7

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 153

isto, é que ele não fica congelado; tópicos que você começou poderão continuar e mudar. Por exemplo: quando a vida de seus filhos prosseguir, ou assuntos que você iniciou continuarem a ser utilizados.

Mas uma vez que o pecado de Adão e, posteriormente, do Bezerro de Ouro trouxeram a morte para o mundo, esse corpo é puro demais para ser visto. Na ver-dade, o que percebemos hoje é como nosso corpo humano está apenas “cobrindo” o VERDADEIRO e invisível (aos nossos olhos) corpo físico, que é eterno.

Para ser produtiva, a realidade virtual necessita de ações, reais, físicas: mover, tocar, segurar, etc.. No entanto, ela precisa de ferramentas que ajudem o usuário a inte-ragir com a realidade, como um capacete e uma luva [Figura 7], um sensor que captura imagens na Lua e as transmite para um astronauta na Terra, um braço robótico que opera um paciente, etc. Este é um prin-cípio importante e central do Judaísmo: o principal é a ação! Alguém que leu cente-nas de livros sobre o preceito de colocar tefilin, visitou várias lojas na internet para pesquisar diferentes pares de tefilin, mas não os colocou fisicamente, não cumpriu o preceito. Por outro lado, alguém que não sabe nada sobre o tefilin, mas é abordado por

jovens estudantes de yeshivá, em um ponto de ônibus, e o coloca antes de perceber o que está fazendo, cumpriu uma mitsvá e teve uma grande influência na realidade!

É possível identificar uma das razões pelas quais as almas percorrem todo um caminho, desde o paraíso até este mundo complicado. É só aqui que as almas podem agir, cumprindo os mandamentos, como está escrito no Pirkei Avot:20 “uma hora de arrependimento e boas ações neste mundo é melhor que toda a vida do mundo vin-douro (paraíso, Gan Éden)”. Por outro lado, lá os filmes são muito mais bonitos.

7. Não Realidade:Contrariamente à opinião dos filó-

sofos, que negam a Providência Divina do Criador sobre toda e cada uma de Suas criações, o Criador da realidade não está descansando desde a Criação. Filósofos, por meio de uma falsa analogia, comparam os feitos do D’us, o Criador do céu e da terra, aos feitos do homem, e os dispositivos que produzem.

Da mesma forma que a realidade natural, a realidade virtual precisa de uma renovação criadora constante, e não pode ser deixada sem supervisão. A força ativadora do Criador, que inicialmente

As barreiras da distância e espaço são quebradas, mostrando a verdadeira falta

de limites da realidade.

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

154 Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774

traz todos os seres criados à existência, deve continuamente estar presente na coisa criada, para dar-lhe vida e existência continuada. A Realidade Virtual precisa da constante supervisão de seu criador, constantemente fazendo cópias de seus arquivos, renovando, a cada instante, a realidade para que ela permaneça no ar.

8. Considerações finais:Primeiro de tudo, é claro que a rea-

lidade virtual não contradiz a opinião da Torá, de múltiplas realidades coexis-tindo mas integradas nUma Verdadeira Realidade. Segundo, a realidade primordial em nosso mundo é a realidade natural. É o ambiente principal, onde podemos realizar o nosso objetivo no mundo inferior: ações físicas sobre a realidade a fim de construir uma morada para D’us.

Em terceiro lugar, a realidade virtual simula a realidade natural e ela não existe de forma independente. Seu objetivo princi-pal é atingido com as mesmas ações físicas sobre a realidade natural. Este foco na ação está em consonância com um dos principais princípios da Torá e do Judaísmo.

Finalmente, um dos produtos secun-dários da realidade virtual está ajudando a revelar a Verdadeira Realidade por trás de tudo, que é expressa de muitas maneiras.

A Verdadeira realidade não é limitada pelo espaço e pelo tempo. A realidade vir-tual pode ser encontrada em qualquer lugar do mundo, e experimentada por qualquer um noutra parte do mundo, rompendo os limites do espaço na realidade. A realidade

virtual pode ser experimentada, mesmo quando o jogador não está mais lá (ou morto), rompendo os limites do tempo, e mostrando a verdadeira imortalidade da alma. Da mesma forma, o criador de qualquer realidade virtual fica oculto das páginas de suas criações.

A Verdadeira realidade é a realidade que envolve e está dentro de tudo. Foi experimentada por Adão, quando vivia no Gan Éden, antes do pecado da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Da mesma forma, mas em um nível muito mais elevado, vamos experimentá-la na Era Messiânica, rapidamente em nossos tem-pos. Então as profecias serão cumpridas e “a terra se encherá com o conhecimento de D’us como a água cobre o fundo do mar”21, e “naquele dia D’us dia será Um e seu Nome será Um” 22

Notas1.  Virtual Reality Systems (Siggraph Series) by John Vince, Publisher: Addison-Wesley Pub Co (June 1995).2.  Yanky Tauber, The Week In Review, Vol. VII, No 36, Shavuot 5756, May 24 1996, Vaad Hanochos Hatmimim, Brooklyn, NY 11213-3409.3.  Rabbi Schneur Zalman of Liadi, Likutei Amarim (Lessons In Tanya), vol. II, chap. 35 (Brooklyn, NY: Kehot, 1996), 469.4.  2001, by Jeanette Oren Kuvin.5.  Rabbi Schneur Zalman of Liadi, Likutei Amarim (Lessons In Tanya), vol. II, chap. 36 (Brooklyn, NY: Kehot, 1996).6.  Midrash Tanchuma, Nasso 7:1.

Verdade, Realidades Naturais e Virtual

Diálogos entre Culturas Judaica e Contemporânea 5774 155

7.  Bereshit Rabah, end of Parasha 3, and Bamidbar Rabah, Chapter 13, v.6.8.  Isto é empiricamente evidente a partir do princípio de kri, [o texto bíblico como é lido], e ktiv, [o texto bíblico como é escrito, não sendo sempre os dois idênticos.] O kri reflete a com-preensão [do texto] como nos foi revelado. O ktiv transcende a concepção e compreensão.

Ou seja, uma determinada palavra em sua forma escrita não tem “vestimento” compreen-sível, embora, quando lida em voz alta tem tal “vestimento” , [ou seja, é diretamente compreen-dido. Um exemplo disso é o versículo: “Saibam que o S-enhor é D’us, Ele nos fez [velo anachnu] Seu povo e as ovelhas que pastorea.”

A forma ktiv da palavra “velo” termina com um “alef ”, enquanto a forma kri da palavra ter-mina com um “vav”. De acordo com a última forma o versículo é facilmente compreensível: “Saibam que o Eterno é D’us, Ele nos fez,” velo anachnu ‘- e nós somos Seus....” Na forma ktiv, no entanto, o versículo diz: “Ele nos fez e não nós ....” Embora isso tenha significado em um nível mais sublime, o sentido simples do ktiv deste versículo parece extremamente difícil de compreender.

O mesmo se aplica às letras grandes [que são ocasionalmente encontrados] no Tanach. Elas derivam de um mundo sublime - [da Sefirá de Binah] - e de lá irradia abertamente, e não através de uma vestimenta, como as outras letras. 9.  Desenvolvido pelo Professor Robert Massof, da Escola de Medicina da Universidade John Hopkins em colaboração com o Departamento de Assuntos Veterinários, in Dr. Arnie Gotfryd, Living, em The Age of Moshiach, 2000, Mendelsohn Press, p. 134. ref to. Shimon Silman’s article, Swords into Plowshares, 1 Adar I, 5757. p.31

10. Volume 6, Issue 2, pp. 57-62, Springer-Verlag London Limited, 2002, A Virtual Reality Tool for Teleoperation Research, N. Rodriguez, J.-P. Jessel, P. Torguet.11.  Michael A. Colicos.12.  Tanya, Volume V, p. 173.13.  Sotá 13b.14.  Tratado Rosh HaShaná 25b. Até nossos dias, quando os judeus fazem o ritual de santificar a lua no início de cada mês, eles dizem “o rei Davi de Israel vive e existe”.15.  Tratado Ketuvot 104a nos diz que depois que o Rabino Yehuda haNassí morreu e foi sepultado, na verdade ele voltava para casa a cada Shabat e fazia Kidush para sua família (o que implica, de acordo com a Lei da Torá, que estava “fisi-camente” vivo)! 16.  Tratado Baba Metsia 84b. O Rabino Shimon ben Elezar morreu, mas sua esposa estava com medo de enterrá-lo e porque ele tinha muitos inimigos, ela colocou seu corpo no sótão. O Talmud nos diz que as pessoas, não sabendo que ele estava morto, continuaram a visitar sua casa para fazer perguntas sobre assuntos da legislação e ele realmente gritava do sótão as respostas, por muitos anos até que ela finalmente teve que enterrá-lo. 17.  Tratado Yevamot 96b.18.  Midrash Yalkut Shimoni (Yechezkel 367) lista nove pessoas que não provaram o “gosto da morte”, mas foram, vivas, para o céu. Um deles é o Profeta Eliyahu (2 Reis, 2:11) (que ainda visita cada circuncisão judaica!), e outro será Mashiach. 19.  Michael Colicos.20.  4:7.21.  Isaías 11:9.22.  Zacarias 14:9. ICI

ISBN 978-85-68033-00-5

9 788568 033005

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