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Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos
Editado por Andreas Kopf e Nilesh B. Patel
ASSOCIAO INTERNACIONAL PARA O ESTUDO DA DOR (IASP)
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos
Material educativo escrito por uma equipe de autores multidisciplinar e multinacional,
para distribuio geral aos prestadores de cuidados de sade
Editores Andreas Kopf, MD
Department of Anesthesiology Charit Medical University
Berlin, Germany
Nilesh B. Patel, PhD Department of Medical Physiology
University of Nairobi Nairobi, Kenya
2010 IASP International Association for the Study of Pain (Associao Internacional para o Estudo da Dor) Todos os direitos reservados. Este material s pode ser utilizado para propsitos educacionais e de treino com a meno da fonte de origem proibida a sua venda ou uso comercial
Translated from the original English edition, published in 2009 under the titleGuide to Pain Management in Low-Resource Settings.
Os tpicos da pesquisa e tratamento da dor foram selecionados para publicao, mas as informaes fornecidas e opinies expressas no envolveram qualquer verificao dos resultados, concluses e opinies por parte da IASP. Assim, as opinies expressas no Guia de Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos no refletem necessariamente as da IASP ou dos Diretores e Conselheiros. A IASP no assume nenhuma responsabilidade por qualquer dano e /ou danos a pessoas ou bens, em questes de responsabilidade civil, negligncia, ou qualquer uso de quaisquer mtodos, produtos, instruo ou ideias contidas no material aqui contido. Devido ao rpido avano da cincia mdica, a editora recomenda que deve haver uma verificao independente dos diagnsticos e dosagens de medicamentos. A meno de determinados produtos farmacuticos e qualquer procedimento mdico no implica o endosso ou recomendao por parte dos editores, autores ou IASP em favor de outros medicamentos ou procedimentos que no so abordados no texto. So esperados erros e omisses. Apoiado por uma bolsa educacional da International Association for the Study of Pain
Uma verso preliminar deste texto foi impressa em 2009
.
A presente verso em lngua Portuguesa do Guia para Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos foi produzida no mbito de uma colaborao entre a Associao Portuguesa para o Estudo da Dor (APED) e a Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED), sob a coordenao de Jos Castro Lopes, elemento de ligao da IASP aos seus captulos na Amrica Latina. Agradece-se a valiosa colaborao de: Ana Marcos, Ana Valentim, Ananda Fernandes, Cristina Pinto, Daniel Pozza, Diamantino Pereira, Duarte Correia, Durval Campos Kraychete, Fabiola Peixoto Minson, Fani Neto, Filipe Antunes, Graa Carrapatoso, Isaura Tavares, Ivone Nabais, Joo Batista Garcia, Joo Mota Dias, Jorge Cortez, Jos Osvaldo Oliveira Jnior, Jos Tadeu Tisseroli Siqueira, Luis Agualusa, Manuel Pedro Ribeiro da Silva, Maria Jos Ramalho, Maria Rosa Fragoso, Rosrio Alonso, Susana Abreu e Teresa Sarmento. A traduo da obra original foi parcialmente financiada com o apoio da Fundao Grnenthal Portugal. Translated from the original English edition, published in 2010 under the title Guide to Pain Management in Low-Resource Settings.
Published by:IASP PressInternational Association for the Study of Pain111 Queen Anne Ave N, Suite 501Seattle, WA 98109-4955, USAFax: 206-283-9403www.iasp-pain.org
iii
ndice
Prefcio vii
Introduo viii
Bases
1. Histrico, Definies e Opinies Atuais 1
Wilfried Witte and Christoph Stein
2. Obstculos ao Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos 6
Olaitan A Soyannwo
3. Fisiologia da dor 9
Nilesh B. Patel
4. Fatores Psicolgicos na Dor Crnica 14
Harald C. Traue, Lucia Jerg-Bretzke, Michael Pfi ngsten, and Vladimir Hrabal
5. Influncias Etnoculturais e de Gnero na Dor 23
Angela Mailis-Gagnon
6. Farmacologia dos Analgsicos (Exceto Opioides) 30
Kay Brune
7. Os Opioides na Medicina da Dor 36
Michael Schfer
8. Princpios dos Cuidados Paliativos 44
Lukas Radbruch and Julia Downing
9. Teraputicas Complementares para a Gesto da Dor 57
Barrie Cassileth and Jyothirmai Gubili
Avaliao Fsica e Psicolgica do Doente
10. Antecedentes de dor e Avaliao da Dor 65
Richard A. Powell, Julia Downing, Henry Ddungu, and Faith N. Mwangi-Powell
11. Exame Fsico: Neurologia 81
Paul Kioy and Andreas Kopf
12.Exame Fsico Msculo-Esqueltico 90
Richard Fisher
13. Avaliao Psicolgica do Paciente com Dor Crnica 97
Claudia Schulz-Gibbins
iv
Gesto da Dor Aguda
14. Analgesia Ps-Operatria em Cirurgias Major 108
Frank Boni
15. Traumatismo Agudo e Dor Pr-Operatria 122
O. Aisuodionoe-Shadrach
16. O Tratamento da Dor em Cirurgia Ambulatria/de 24 Horas 127
Andrew Amata
17. Gesto Farmacolgica da Dor em Obstetrcia 131
Katarina Jankovic
Gesto da Dor Oncolgica
18.Cancro Abdominal, Obstipao e Anorexia 145
Andreas Kopf
19. Metstases sseas com Dor Irruptiva 155
M. Omar Tawfik
20. Cncer de Pulmo com Plexopatia 164
Rainer Sabatowski and Hans J. Gerbershagen
21. Cncer de Pulmo com Problemas Respiratrios 172
Th omas Jehser
22. Cncer Hematolgico com Nusea e Vmitos 179
Justin Baker, Paul Ribeiro, and Javier Kane
Gesto da Dor Neuroptica
23. Neuropatia Diabtica Dolorosa 187
Gaman Mohammed
24. Gesto da Nevralgia Ps-Herptica 193
Maged El-Ansary
25. Dor Neuroptica Central 201
Maija Haanp and Aki Hietaharju
26. Gesto da Dor em Adultos e Crianas com VIH/SIDA 208
Glenda E. Gray, Fatima Laher, and Erica Lazarus
Gesto da Dor Crnica No Oncolgica
27. Dor nas Costas Crnica Inespecfica 221
Mathew O.B. Olaogun and Andreas Kopf
28. Cefaleia 229
Arnaud Fumal and Jean Schoenen
v
29. Dor Reumtica 238
Ferydoun Davatchi
Situaes Teraputicas Difceis e Tcnicas
30. Dismenorreia, Dor Plvica e Endometriose 245
Susan Evans
31. Consideraes sobre o Tratamento da dor Durante Gestao e Aleitamento 252
Michael Paech
32. Dor na Anemia Falciforme 263
Paula Tanabe and Knox H. Todd
33. Sndroma Dolorosa Regional Complexa 267
Andreas Schwarzer and Christoph Maier
34. Tratamento da Dor em Crianas 274
Dilip Pawar and Lars Garten
35. Dor na Velhice e Demncia 291
Andreas Kopf
36. Dor do Tipo Breakthroug. Emergncia da Dor e Dor Incidental 299
Gona Ali and Andreas Kopf
37. Controlo da Dor em Unidades de Cuidados Intensivos 306
Josephine M. Thorp and Sabu James
38. Bloqueios Nervosos Diagnsticos e Prognsticos 317
Steven D. Waldman
39. Cefaleia Ps-Puno da Dura Mater 325
Winfried Meissner
40. Radioterapia Citosttica 329
Lutz Moser
41. A Funo da Acupuntura na Abordagem da Dor 333
Natalia Samoilova and Andreas Kopf
Planeamento e Organizao da Gesto da Dor
42. Como Desenvolver um Plano de Tratamento da Dor 342
M.R. Rajagopal
43. Recursos para Garantir a Disponibilidade de Opioides 347
David E. Joranson
44. Configurando Diretrizes para Necessidades Locais 357
Uriah Guevara-Lopez and and Alfredo Covarrubias-Gomez
vi
Prolas de Sabedoria
45. Tcnicas para Bloqueios Nervosos Usados com Frequncia 365
Corrie Avenant
46. Princpios Psicolgicos do Tratamento da Dor 369
Claudia Schulz-Gibbins
47. Insights da Fisiologia Clnica 372
Rolf-Detlef Treede
48. Suplementos Fitoterpicos e Outros 375
Joel Gagnier
49. Perfil Farmacolgico, Doses e Efeitos Adversos de Medicamentos Usados para o Tratamento da Dor 377
Barbara Schlisio
Apndice
Glossrio 387
Andreas Kopf
vii
Prefcio
A convico de que o tratamento da dor um direito humano tem sido aceite por muitos h muito tempo, mas em 2004, a afirmao de que "o alvio da dor deve ser um direito humano" foi considerada to importante que foi publicada aps o lanamento da primeira campanha global contra a Dor em 2004, em Genebra, pela IASP International Association for the Study of Pain (Associao Internacional para o Estudo da Dor), a EFIC European Federation of Chapters of the IASP (Federao Europeia dos Captulos da IASP), e a WHO World Health Organization (Organizao Mundial da Sade). Infelizmente, um grande nmero dos doentes que sofrem com dor e, especialmente, nos pases em desenvolvimento, no recebem tratamento para a dor aguda e, mais especialmente, para a dor crnica. Existem vrias razes para este problema, que incluem a falta de profissionais de sade adequadamente treinados, a indisponibilidade de frmacos, especialmente opiides, o receio da utilizao de opiides, devido crena errnea de que, inevitavelmente, o uso destas substncias causam dependncia. O primeiro grande passo na melhoria do tratamento dos doentes com dor nos pases em desenvolvimento proporcionar-lhes, profissionais treinados, no apenas mdicos e enfermeiros, mas tambm os demais profissionais de sade. Uma pesquisa realizada pela IASP em 2007 revelou que entre os seus membros nos pases em desenvolvimento, poucos reconheceram ter recebido uma educao adequada na compreenso e tratamento da dor enquanto universitrios. Na maioria das regies do mundo, menos de metade receberam formao no tratamento da dor, mesmo que fosse uma parte significativa do seu trabalho dirio. No de estranhar, portanto, que 91% relatassem que a falta de formao tenha sido a principal barreira para o tratamento da dor no seu pas. claro que em muitos pases em desenvolvimento, o alvio da dor no uma prioridade, e que a preocupao com doenas infeciosas como a malria, a tuberculose, e acima de tudo VIH/SIDA tem precedncia. De facto, 75% dos que responderam pesquisa da IASP, considerou a no prioridade ao controlo da dor um falha do governo e o segundo obstculo mais comum para a melhoria da qualidade do tratamento. Quase todos referiram que o medo da dependncia de opiides, entre mdicos, enfermeiros e
profissionais de sade em geral, era uma barreira para a disponibilidade e uso desses frmacos, embora, de facto, esse medo seja principalmente uma consequncia da m formao. A produo deste manual oportuna porque ir preencher uma lacuna importante no conhecimento de quem lida com pessoas com dor nos pases em desenvolvimento. Abrange a cincia bsica da dor, e talvez seja o nico, a abordar o racional para o uso de medicamentos naturais. Tambm proporciona conhecimento aprofundado e conselhos sobre a gesto dos principais distrbios dolorosos que ocorrem nos pases em desenvolvimento, incluindo os dois grandes flagelos do presente, Cancro e VIH/SIDA. Este livro deve estar disponvel para todos os responsveis pelo tratamento da dor, seja aguda ou crnica, trabalhem em cidades, vilas, ou provncia, porque seguramente vo consider-lo uma ajuda inestimvel para a sua prtica.
Professor Sir Michael Bond Glasgow, Esccia
Agosto 2009
viii
Introduo
A dor amplamente subtratada, causando sofrimento e perdas financeiras aos indivduos e sociedade. Acredita-se que a sade de todos os doentes deve incluir a avaliao da dor e do seu impacto sobre os doentes, esforos especiais por parte dos profissionais de sade para controlar a dor, e desenvolvimento de programas de educao para especialistas no tratamento da dor. Alm disso, a investigao cientfica clnica e bsica deve ser incentivada a fornecer melhores cuidados no futuro. O objetivo desses esforos assegurar que o controle da dor seja alta prioridade no sistema de sade. Este livro, Guia de Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos, tem por objetivo incentivar a investigao sobre os mecanismos da dor e sndromes dolorosas e ajudar a melhorar o tratamento de doentes com dor aguda e crnica, reunindo cientistas, mdicos e outros profissionais de sade de vrias especialidades interessados em dor. O pblico-alvo so cientistas e pessoal pr-clnico, cirrgico e praticantes de medicina interna de todas as especialidades, anestesistas e anestesiologistas, toda a equipa de enfermagem, trabalhadores da sade em geral, bem como estudantes de medicina, enfermagem e autoridades da sade. Em contextos de poucos recursos, a maioria dos profissionais de sade tm pouco ou nenhum acesso informao bsica e prtica. Na verdade, muitos passaram a confiar na observao, na opinio dos colegas, e na construo emprica de experincias atravs dos sucessos e fracassos dos seus prprios tratamentos. A disparidade de informaes tericas e prticas deve-se a vrios fatores, incluindo a distribuio desigual de acesso Internet, e tambm ao fracasso das polticas de desenvolvimento e iniciativas internacionais, que tendem a concentrar-se em abordagens inovadoras para os profissionais de sade de nvel superior e cientistas, ignorando, relativamente falando, outras abordagens essenciais para a grande maioria dos profissionais de sade. A pobreza da informao dos profissionais de sade em ambientes de poucos recursos exacerba o que claramente uma emergncia de sade pblica. Os profissionais de sade bem como as autoridades devem estar no centro dos esforos para resolverem esta crise. A disponibilidade de informaes sobre a sade transmite confiana na tomada da deciso clnica, melhora as competncias prticas e atitudes nos cuidados.
Informaes sobre a dor e o seu tratamento so cruciais. Todos os profissionais de sade iro tratar doentes que sofrem de dor. A dor o principal motivo para procurar ajuda mdica. Assim, qualquer mdico, enfermeiro ou outro profissional de sade necessita conhecimentos bsicos sobre a fisiopatologia da dor e deve ser capaz de usar, pelo menos, um simples tratamento de primeira linha. Ao contrrio de "tratamento especial da dor", que deve ser reservada para mdicos especialistas com formao ps-graduada especfica em sndromes dolorosas complexas, o conhecimento da "gesto geral da dor" uma obrigao para todos os outros profissionais de sade que devem estar aptos a tratar a maioria dos doentes com dor e sndromes dolorosas comuns. Os editores pretendem que, com a ajuda deste guia o leitor saiba identificar os doentes que sofrem de dor, compreender a natureza da sua dor e a sua influncia na vida do doente, conhecer os mtodos de analgesia que podem oferecer um tratamento eficaz da dor para a maioria dos doentes , saber como aplicar os mtodos e como classific-los em esquemas formados incluindo abordagens no farmacolgicas, e saber como avaliar a eficcia do tratamento da dor. O foco principal do Guia abordar os seguintes quatro sndromes de dor: dor aguda ps-traumtica ps-operatria, dor oncolgica, dor neuroptica, e dor crnica no oncolgica. Os editores entendem as barreiras e as necessidades futuras em matria do bom tratamento da dor. Estas barreiras incluem a falta de formao em dor e a falta de nfase no controle e pesquisa da dor. Alm disso, quando o tratamento da dor se torna numa prioridade governamental, h receios de dependncia de opiides, alto custo de determinadas substncias e, nalguns casos, baixa adeso do doente. Nos pases em desenvolvimento, os recursos disponveis para sade, concentram-se compreensivelmente, na preveno e tratamento de doenas "assassinas". No entanto, algumas dessas condies de doena so acompanhadas por dor no controlada, razo pela qual as questes do controle da dor so to importantes no mundo em desenvolvimento, segundo o Prof. Sir Michael Bond. A OMS recomenda que "uma vez que em muitas partes do mundo, a maioria dos doentes com cancro apresentam x estadio de doena avanada... a nica opo de tratamento realista o alvio da dor e cuidados paliativos." Devido aos recursos limitados
ix
para a sade, a OMS prope ainda que, no futuro, devam ser incentivadas abordagens de tratamento paliativas, em vez de curativas. No entanto, uma triste realidade que os medicamentos que so essenciais para aliviar a dor, muitas vezes no esto disponveis ou acessveis. H inmeros relatos, alguns deles publicados nas principais revistas mdicas e cientficas, sobre os deficits do tratamento adequado da dor, principalmente nos pases em desenvolvimento em todas as regies do mundo. Acredita-se que, com relativamente menor investimento (referindo-se no a esforos para mudar a situao, mas disponibilidade de medicamentos essenciais e tcnicas), a qualidade do tratamento analgsico oncolgico e VIH/SIDA em pases de poucos recursos pode ser consideravelmente melhorada, como documentado por iniciativas locais em todo o mundo. A IASP produziu recentemente um atlas de treino e estruturas para o tratamento da dor nos pases em desenvolvimento. Mais informao sobre este atlas pode ser encontrada no site da IASP (www.iasp-pain.org). Para o especialista em dor nos pases desenvolvidos, esto disponveis informaes detalhadas, mas para o no-especialista em dor e outros profissionais de sade, incluindo enfermeiros e pessoal clnico em muitas outras regies do mundo, que tm de lidar com doentes com dor, no existe um guia bsico ou um manual sobre os mecanismos da dor, gesto e realidades do tratamento. Isto particularmente preocupante nas zonas do mundo onde, fora das principais zonas urbanas, no h acesso a informaes sobre a etiologia ou gesto da dor e no existe acesso a um especialista em dor. A IASP Developing Countries Task Force (agora Developing Countries Working Group) foi fundada para incentivar a educao mdica continuada e ensino clnico em pases com poucos recursos e est a apoiar os esforos locais para aumentar a perceo da dor. O programa de subveno educacional, a " Initiative for Improving Pain Education ", aborda a necessidade de melhoria da educao sobre a dor e seu tratamento nos pases em desenvolvimento, fornecendo bolsas de apoio educativo. Estas bolsas destinam-se a melhorar o alcance e disponibilidade da educao fundamental para os mdicos de dor de todas as especialidades, tendo em conta as necessidades locais especficas. Na sequncia de uma proposta conjunta da University of Nairobi (N. B. Patel) e do Charite University Medicine Berlin (A. Kopf)), a IASP atribuu um dos subsdios para um projeto de livro sobre o tratamento da dor em pases com poucos recursos. O resultado este Guia, que se destina a fornecer de forma concisa e atualizada informaes,
numa estrutura curricular inovadora para o mdico em pases do mundo em desenvolvimento. Servir tambm faculdades de medicina, sugerindo temas curriculares fundamentais sobre a fisiologia e gesto da dor. Acredita-se que o projeto incentivar escolas de medicina a integrar estes objetivos educacionais nos seus currculos bem como em currculos de enfermagem. Ele ir fornecer ao no-especialista em dor informao base relevante de uma forma que seja facilmente compreendida, sobre a fisiologia da dor e as diferentes abordagens de gesto e tratamento para os diferentes tipos de sndromes dolorosos. Qualquer profissional que lida com problemas de dor deve estar ciente de toda a gama de problemas fisiopatolgicos e psicopatolgicos, comumente encontradas em doentes com dor ,e deve, portanto, ter acesso a uma gama razovel de teraputicas mdicas, fsicas e psicolgicas de forma a evitar a imposio de quaisquer custos adicionais financeiros e pessoais sobre os doentes e a sociedade. O objetivo destes esforos garantir que o controlo da dor recebe alta prioridade, especialmente no tratamento de doentes oncolgicos e de VIH/SIDA, bem como para dor aguda ps-operatria e dor relacionada com uma leso. Portanto, este livro vai incentivar o tratamento de doentes com dor aguda e crnica, percebendo-se a partir da literatura que, mesmo a educao bsica tem um impacto considervel na qualidade do tratamento analgsico para o doente. Os editores agradecem o entusiasmo e esforos investidos pelos autores voluntrios deste Guia, sem os quais este livro no teria sido possvel. Muitos tm conhecimento dos problemas enfrentados pelos prestadores de cuidados de sade no mundo em desenvolvimento. Eles tentaram projetar os seus pensamentos em situaes particulares e definies, tais como: "Posso lidar com o que esperado de mim, trabalhando como mdico, enfermeiro ou profissional de sade num pas em desenvolvimento e enfrentar uma ampla gama de problemas de dor?" Esta questo presumivelmente passou pelas mentes inquietas de muitos profissionais. O objetivo fornecer ao leitor vrias abordagens para a gesto de alguns problemas comuns com o tratamento da dor. E de modo nenhum pretende ser uma referncia definitiva. Os algoritmos de tratamento apresentados so baseados na reviso da literatura disponvel e experincia em clnicas de dor, com uma viso especfica sobre as potenciais limitaes em locais no mundo em desenvolvimento. Em vez de uma abordagem livro com captulos independentes escritos de uma forma sistemtica, o Guia tenta seguir um caminho de aprendizagem orientado para o problema. Pretende-se que todos os Captulos desde a Introduo sejam de fcil compreenso e de grande utilidade para os no-
x
especialistas. A estrutura, incluindo perguntas e respostas, prolas de sabedoria, e relatos ilustrativos de casos, bem como sugestes valiosas da literatura para leitura posterior, ir, esperamos, fazer do Guia um companheiro til e de grande ajuda para o tratamento da dor. Todos os leitores so convidados a contribuir para a melhoria das edies seguintes, enviando os seus comentrios e sugestes aos editores. O Guia tem algumas deficincias. Embora o tratamento da dor tenha sido um tema de crescente interesse desde h pelo menos duas dcadas, os pases em desenvolvimento tm poucas iniciativas nesse sentido, e pouco se sabe sobre as necessidades, caractersticas e modalidades de tratamento no que respeita dor. Cursos de reciclagem, workshops, escolas mdicas e de anestesia geral, conferncias, no tm incorporado o tratamento da dor nos seus programas de treino para estudantes, internos, pessoal clnico e
enfermeiros. Portanto, o conhecimento local sobre as caractersticas da dor e formas de tratamento escassa, o que tornou difcil para ns, determinar a relevncia de alguns dos tpicos, mas no vai, esperamos, limitar a utilidade do Guia. Os autores, com o seu conhecimento internacional, tm tentado fornecer uma viso ubqua do controle da dor. Os editores esperam que o Guia seja til para os leitores de vrias regies do mundo e para profissionais de sade de vrias especialidades. Dependendo do feedback dos leitores, os editores pretendem produzir um segundo volume, com nfase sobre os termos e normas gerais do bom tratamento da dor, bem como reviso das edies anteriores, e edies noutras lnguas.
Andreas Kopf, Berlin, Germany Nilesh Patel, Nairobi, Kenya
Setembro 2009
Este guia dedicado ao Professor Mohammed Omar Tawfik, Cairo, Egito,
cuja vida profissional foi dedicada ao ensino e desenvolvimento do tratamento da dor.
Agradecimento Desde a sua fundao em 1973, a IASP tem consistentemente apoiado a investigao da dor e
os esforos do seu tratamento nos pases em desenvolvimento. Os editores desejam expressar a sua gratido para com a IASP, que tem apoiado continuamente este projeto com conselhos e reviso do material bem como com uma bolsa de formao que permite a divulgao deste
Guia para Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos.
xi
Autores Participantes
Comentrios e perguntas aos editores e autores, via e-mail, so bem-vindos
Oseremen Aisuodionoe-Shadrach, MBBS Department of Surgery University of Abuja Abuja, Nigeria [email protected] Dr Gona Ali Faculty of Medicine University of Sulaymaniyah Sulaymaniyah, Iraq [email protected] Andrew O. Amata, MBBS Department of Anaesthesia and Intensive Care Georgetown Public Hospital Corporation Georgetown, Guyana [email protected] Corrie C. Avenant, MB ChB Fontainebleau, Randburg South Africa [email protected] Justin N. Baker, MD Department of Pediatric Medicine Division of Palliative and End-of-Life-Care St. Jude Childrens Research Hospital Memphis, Tennessee, USA [email protected] Dr Frank Boni Department of Anesthesiology University of Ghana Medical School Accra, Ghana [email protected] Kay Brune, MD Institute of Pharmacology and Toxicology Friedrich-Alexander University of Erlangen-Nurnberg Erlangen, Germany [email protected] Barrie Cassileth, PhD Integrative Medicine Service Memorial Sloan-Kettering Cancer Centre New York, New York, USA [email protected]
Alfredo Covarrubias-Gomez, MD Vasco De Quiroga 15, Col. Seccion XVI Torelio Guerra, Tlalpan Mexico City 14000, Mexico [email protected] Ferydoun Davatchi, MD Rheumatology Research Center Division of Rheumatology Tehran University for Medical Sciences Tehran, Iran [email protected] Dr Henry Ddungu, MD African Palliative Care Association Kampala, Uganda [email protected] Julia Downing, PhD African Palliative Care Association Kampala, Uganda [email protected] Maged El-Ansary, MD Department of Anesthesiology Al-Azhar University, Cairo, Egypt [email protected] Susan Evans, MD Endometriosis Care Centres of Australia Adelaide, Australia [email protected] Richard C. Fisher, MD Orthopedic Overseas Division Health Volunteers Overseas Washington, DC, USA richard.fi [email protected]
Arnaud Fumal, MD Neurology and Headache Research Unit University of Liege, Liege, Belgium [email protected]
Joel Gagnier, ND, MSc, PhD Department of Epidemiology School of Public Health University of Michigan Ann Arbor, Michigan, USA [email protected]
xii
Dr Lars Garten Otto Heubner Centre for Pediatric and Adolescent Medicine Charite University Hospitals, Berlin, Germany [email protected] Hans J. Gerbershagen, MD, PhD Department of Anesthesiology Division of Perioperative and Emergency Care University Medical Center Utrecht Utrecht, The Netherlands [email protected] Glenda E. Gray, MD Perinatal HIV Research Unit University of Witwatersrand, Diepkloof, South Africa [email protected] Jyothirmai Gubili, MS Integrative Medicine Service Memorial Sloan-Kettering Cancer Centre New York, New York, USA [email protected] Uriah Guevara-Lopez, MD, MSc Department of Pain Medicine and Palliative Care National Institute of Medical Sciences Mexico City, Mexico [email protected] Maija Haanp, MD, PhD Department of Neurosurgery Helsinki University Hospital, Helsinki, Finland [email protected] Aki Hietaharju, MD, PhD Pain Clinic Department of Neurology and Rehabilitation Tampere University Hospital Tampere, Finland [email protected] Vladimir Hrabal, Dr phil. Department of Medical Psychology University of Ulm, Ulm, Germany [email protected] Sabu Kumar James, MBBS Department of Anaesthesiology University ofGlasgow Glasgow, Scotland United Kingdom [email protected]
Katarina Jankovic, MD Department of Anesthesiology MP Shah Hospital Nairobi, Kenya [email protected] Thomas Jehser, MD Pain and Palliative Care Department Havelhohe Hospital Berlin, Germany [email protected] Lucia Jerg-Bretzke, PhD Medical Psychology Department of Psychosomatic Medicine and Psychotherapy University of Ulm Ulm, Germany [email protected] David E. Joranson, MSSW Pain & Policy Studies Group University of Wisconsin Carbone Cancer Center School of Medicine and Public Health Madison, Wisconsin, USA [email protected] Javier R. Kane, MD Department of Pediatric Medicine Division of Palliative and End-of-Life Care St. Jude Childrens Research Hospital Memphis, Tennessee, USA [email protected] Paul G. Kioy, MBchB, MMed Department of Medical Physiology University of Nairobi Nairobi, Kenya [email protected] Andreas Kopf, MD Pain Unit, Department of Anesthesiology Charite University Hospitals Berlin, Germany Visiting Professor, Department of Medical Physiology University of Nairobi, Kenya [email protected] Fatima Laher, MBBCh Perinatal HIV Research Unit University of Witwatersrand Diepkloof, South Africa [email protected]
xiii
Dr Erica Lazarus Perinatal HIV Research Unit University of Witwatersrand Diepkloof, South Africa Christoph Maier, MD Department of Pain Management Clinic for Anesthesiology University Clinic Bergmannsheil Ruhr-University Bochum, Germany [email protected] Angela Mailis-Gagnon, MD Comprehensive Pain Program Toronto Western Hospital Toronto, Ontario, Canada [email protected] Winfried Meissner, MD Department of Internal Medicine University Medical Centre Jena, Germany [email protected] Dr Gaman Mohammed Diabetes Centre Avenue Healthcare, Nairobi, Kenya [email protected] Lutz Moser, MD Department of Radiology Charite University Hospitals Berlin, Germany [email protected] Faith N. Mwangi-Powell, PhD African Palliative Care Association Kampala, Uganda [email protected] Mathew O.B. Olaogun, PT Department of Medical Rehabilitation Obafemi Awolowo University Ife-Ife, Nigeria [email protected] Michael Paech, MBBS, FRCA, FANZCA, FFPMANZCA Division of Anaesthesiology University of Western Australia Crawley, Western Australia, Australia [email protected]
Nilesh B. Patel, PhD Department of Medical Physiology University of Nairobi, Nairobi, Kenya [email protected] Dilip Pawar, MBBS Department of Anesthesiology All India Institute of Medical Sciences New Delhi, India [email protected] Michael Pfi ngsten, PhD Pain Clinic Department of Anaesthesiology University Medicine Gottingen, Germany michael.pfi [email protected] Richard A. Powell, MA, MSc African Palliative Care Association Kampala, Uganda [email protected] Lukas Radbruch, MD Palliative Care Unit University Hospital Aachen Aachen, Germany [email protected] M.R. Rajagopal, MD Pallium India (Trust) Trivandrum, Kerala, India [email protected] Dr. Raul Ribeiro, MD Department of Oncology International Outreach Program St. Jude Childrens Research Hospital Memphis, Tennesee, USA [email protected] Rainer Sabatowski, MD Interdisciplinary Pain Clinic University Hospital Carl-Gustav Carus Dresden, Germany [email protected] Dr Natalia Samoilova Department of Pain Medicine National Research Centre of Surgery B.V. Petrosky Russian Academy of Medical Science Moscow, Russia [email protected]
xiv
Michael Schfer, MD, PhD Department of Anesthesiology Charite University Hospitals Berlin, Germany [email protected] Barbara Schlisio, MD Department of Anesthesiology University Medical Centre Tubingen, Germany [email protected] Dr Jean Schoenen Headache Research Unit Department of Neurology and GIGA Neurosciences Liege University Liege, Belgium [email protected] Claudia Schulz-Gibbins, Dipl.-Psych. Department of Anesthesiology Charite University Hospitals Berlin, Germany [email protected] Andreas Schwarzer, MD, PhD Department of Pain Management Clinic for Anesthesiology University Clinic Bergmannsheil Ruhr-University Bochum, Germany [email protected] Olaitan A Soyannwo, MB BS, MMed Department of Anesthesia Ibadan College of Medicine Ibadan, Nigeria [email protected] Christoph Stein, MD Department of Anesthesiology Charite University, Berlin, Germany [email protected] Paula Tanabe, RN, PhD Department of Emergency Medicine Institute for Healthcare Studies Northwestern University Chicago, Illinois, USA ptanabe2@nmff .org
Mohamed Omar Tawfi k, MD, MBBCh (deceased, June 2009) Pain Unit National Cancer Institute Cairo University, Cairo, Egypt Josephine M. Th orp, MRCP, FFARCS Anaesthetic Department, Monklands Hospital Airdrie, Lanarkshire Scotland, United Kingdom [email protected] Knox H. Todd, MD, MPH Department of Emergency Medicine Beth Israel Medical Center New York, New York, USA [email protected] Dr Harald C. Traue Medical Psychology Department of Psychosomatic Medicine and Psychotherapy University of Ulm, Ulm, Germany [email protected] Rolf-Detlef Treede, MD Department of Neurophysiology Faculty of Medicine Mannheim, University of Heidelberg Mannheim, Germany [email protected] Steven Waldman, MD Th e Headache and Pain Centre Leawood, Kansas, USA sdwaldman@ptfi rst.org Wilfried Witte, MA Department of Anaesthesiology Charite University Hospitals Free University of Berlin Berlin, Germany [email protected]
Bases
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos, editado por Andreas Kopf e Nilesh B. Patel. IASP, Seattle, 2010. Todos os direitos reservados. Esse material pode ser usado para fins educacionais e de treinamento com a citao adequada da fonte. Proibida a venda ou o uso comercial. A IASP no assume qualquer responsabilidade por qualquer leso e/ou dano a pessoas ou bens por responsabilidade do produto, negligncia, ou por qualquer uso de qualquer mtodo, produto, instruo ou ideias contidos nesse material. Devido aos rpidos avanos das cincias mdicas, o editor recomenda que deve haver verificao independente dos diagnsticos e das doses dos medicamentos. A meno de produtos farmacuticos especficos e de qualquer procedimento mdico no implica endosso ou recomendao dos editores, autores ou da IASP, em detrimento de outros produtos ou procedimentos mdicos no cobertos pelo texto.
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos
Captulo 1 Histrico, Definies e Opinies Atuais
Wilfried White e Christoph Stein
A experincia dolorosa fundamental e faz parte do
desenvolvimento cultural de todas as sociedades. Na
histria da dor, os poderes sobrenaturais tiveram
um papel to importante quanto os fatores naturais.
Considerar a dor como o resultado de uma
comunicao entre os homens e os poderes
divinos um pressuposto fundamental para muitas
sociedades. Quanto mais as sociedades se
distanciam da medicina ocidental, ou medicina
moderna, mais prevalente essa viso da dor. Por
outro lado, uma teoria puramente mdica baseada
em fenmenos naturais independentes dos poderes
divinos foi desenvolvida h muito tempo.
Aconteceu muito na China antiga, enquanto que na
ndia antiga a medicina foi fortemente influenciada
pelo hindusmo e pelo budismo. A dor sentida no
corao pressuposto comum dos antigos egpcios.
Os praticantes da medicina dos tempos faranicos
acreditavam que a composio dos fluidos corporais
determinava a sade ou a doena, e no era possvel
distinguir entre magia e medicina.
A medicina da Grcia antiga baseou-se fortemente
em seus predecessores asiticos e egpcios. A
introduo do conhecimento mdico antigo na
Europa medieval foi mediada principalmente pela
medicina rabe que tambm deu suas contribuies.
O latim era o idioma dos cultos na Europa medieval
e a ideologia era orientada pelas crenas judico-
crists. Apesar das vrias adaptaes, a teoria
mdica permaneceu submetida aos modelos antigos
por sculos. A dor tinha um papel importante. A
bblia ilustra a necessidade de suportar catstrofes e
dor na histria de J. A fora da f provada pela
humildade de J com relao a Deus. A humildade
ainda um ideal do cristianismo at hoje. No Novo
Testamento, Jesus Cristo encerra sua vida na terra
como um mrtir, pregado e morto na cruz. Seu
sofrimento marca o caminho para Deus.
necessrio suportar o sofrimento na vida para ser
absolvido dos pecados. A mensagem da dor
mostrar humanidade a insuficincia da vida na
terra e a maravilha de estar no paraso. Portanto, o
que quer que a cincia diga sobre a dor, uma
abordagem baseada apenas no conceito fisiolgico
no leva em considerao o significado religioso ou
espiritual da dor.
A teoria cientfica mais importante e radicalmente
mecnica da dor no incio da idade moderna vem do
filsofo francs Ren Descartes (1596-1650). Em
seu conceito, o antigo pressuposto de que a dor era
representada no corao foi abandonado. O crebro
assumiu o lugar do corao. Apesar (ou por causa)
de sua parcialidade, a teoria de Descartes abriu as
portas para que a neurocincia explicasse os
mecanismos da dor.
A pergunta de como a dor deve ser tratada teve
respostas diferentes ao longo do tempo. Se os
poderes sobrenaturais tinham que ser agradados
2 para a dor desaparecer, era preciso realizar certos
rituais mgicos. Se os remdios inventados pela
cincia no eram utilizados ou no estavam
disponveis, era preciso usar ingredientes de plantas
ou animais para aliviar a dor. Principalmente, o
conhecimento dos efeitos analgsicos das sementes
de papoula era amplamente divulgado nas
sociedades antigas como o Egito. O pio foi usado
por muito tempo em vrias preparaes, mas seus
constituintes qumicos eram desconhecidos. O
isolamento da morfina, um alcalide do pio, foi
realizado pela primeira vez em 1803 pelo
farmacutico alemo Friedrich Wilhelm Sertrner
(1783-1806). A produo industrial da morfina
comeou na Alemanha durante a dcada de 1820 e
nos Estados Unidos na dcada de 1830. Durante o
final do sculo XVIII e meados do sculo XIX, as
cincias naturais assumiram a liderana da medicina
ocidental. Esse perodo marcou o incio da era das
teorias fisiopatolgicas da dor e o conhecimento
cientfico da dor avanou passo a passo.
A descoberta de medicamentos e gases mdicos foi
um marco para a medicina moderna porque
possibilitou melhoras no tratamento mdico.
Particularmente, foi a anestesia moderna que
promoveu o desenvolvimento da cirurgia. A
anestesia geral com ter foi introduzida com sucesso
em Boston em 16 de outubro de 1846 pelo mdico
William Thomas Morton (1819-1868). A
importncia de sua descoberta, no apenas para a
cirurgia, mas tambm para o entendimento
cientfico da dor em geral, destacada pela inscrio
em seu tmulo: Inventor e Revelador da Anestesia
Inalatria: Antes de Quem, em Todos os Tempos,
Cirurgia era Agonia; Por Quem, a Dor da Cirurgia
foi Impedida e Anulada; Desde Quem, a Cincia
Tem o Controle da Dor. Essa frase sugere que a
dor desapareceria da face da terra apenas pela
aplicao da anestesia. A prpria cirurgia mudou
para procedimentos que no estavam
necessariamente ligados a um alto nvel de dor.
Portanto, o papel da cirurgia mudou. Os cirurgies
tinham mais tempo para fazer os procedimentos e
os pacientes no eram mais obrigados a sentir dor
nas mos dos cirurgies.
Seguiram-se outras inovaes. Um ano depois, em
1847, o clorofrmio foi usado pela primeira vez
para anestesia ginecolgica pelo mdico escocs
James Young Simpson (1811-1879). Em Viena, o
mdico Carl Koller (1857-1944) descobriu as
propriedades anestsicas da cocana em 1884. Mais
ou menos na mesma poca, durante as duas ltimas
dcadas do sculo XIX, o neurologista norte-
americano James Leonard Corning (1855-1923) e o
cirurgio alemo August Bier (1861-1949)
realizaram estudos de raquianestesia com solues
de cocana. A anestesia moderna possibilitou
procedimentos cirrgicos mais longos e complexos
com desfechos de longo prazo bem sucedidos. Esse
avano promoveu o consenso geral de que a dor
somtica era boa, mas era secundria terapia
curativa: no era possvel tratar a dor sem cirurgia!
Portanto, no mbito da prtica anestsica, o
tratamento da dor como meta teraputica no
existia na poca. A dor crnica no era importante.
As primeiras dcadas do uso da morfina podem ser
vistas como um perodo de altas expectativas e
otimismo com relao capacidade de controlar a
dor. O primeiro obstculo a esse otimismo foi a
descoberta feita durante a Guerra Civil Americana
(1861-1865), quando apareceram casos de
dependncia e abuso da morfina. Como
consequncia, comearam as restries quanto
distribuio de opiceos. A viso negativa do uso da
morfina foi aumentada por experincias na sia,
onde um extenso comrcio de pio e morfina para
fins no mdicos j estava estabelecido no sculo
XIX. Portanto, no incio do sculo XX, a ansiedade
social com relao ao uso da morfina se fortaleceu e
se transformou em opiofobia (isto , medo de usar
opiides), que foi um importante passo atrs para o
tratamento da dor nas dcadas seguintes.
As guerras estimularam a pesquisa sobre a dor
porque os soldados voltavam para casa com
sndromes dolorosas complexas que causavam
problemas intransponveis para o repertrio
teraputico disponvel. Aps sua experincia em
1915 durante a Primeira Guerra Mundial, o
cirurgio francs Ren Leriche (1879-1955)
comeou a se concentrar na cirurgia da dor,
abordando principalmente o sistema nervoso
autnomo. Leriche aplicou mtodos de anestesia
regional (infiltrao com procana, bloqueio
ganglionar simptico) alm de cirurgia,
principalmente simpatectomia periarterial. Ele no
apenas rejeitou a ideia da dor como um mal
necessrio, mas tambm criticou a abordagem
cientfica reducionista de que a dor experimental era
3 um fenmeno puramente neurocientfico. Ele via a
dor crnica como uma doena por si s (douleur-
maladie), no apenas um sintoma de doena.
A anestesia regional foi o esteio da terapia da dor
aplicada pelo cirurgio francs Victor Pauchet
(1869-1936). Antes de suas experincias durante a
guerra, ele j havia lanado a primeira edio de seu
compndio LAnesthsie Regionale (Anestesia
Regional), em 1912. Atravs de Louis Gaston Labat
(1876-1934), um cirurgio parisiense que depois
exerceu a medicina nos Estados Unidos, sua
sabedoria ficou conhecida em todo o Novo Mundo
e foi um estmulo importante para a disseminao
da anestesia regional nos Estados Unidos entre as
duas Grandes Guerras. Na dcada de 1920, a noo
de que a anestesia regional poderia ser usada no
apenas para cirurgias, mas tambm para dor crnica
espalhou-se por todos os Estados Unidos.
Aps a Segunda Guerra Mundial essas ideias foram
retomadas por John Joseph Bonica (1914-1994), que
havia emigrado com seus pais da Siclia para os
Estados Unidos com 11 anos de idade. Como
cirurgio do exrcito com a responsabilidade de
administrar anestesia, ele notou que os cuidados
para os soldados feridos eram inadequados. Os
pacientes ficavam sozinhos com sua dor aps a
cirurgia. Bonica observou que a dor se tornava
crnica com frequncia e que muitos desses
pacientes foram vtimas de abuso de lcool ou de
distrbios depressivos. A resposta de Bonica a esse
problema, que tambm afetava outros pacientes
com dor, foi estabelecer clnicas de dor onde
mdicos de diferentes disciplinas, psiclogos e
outros terapeutas trabalham em equipe para
entender a complexidade da dor crnica e trat-la
adequadamente. A anestesiologia continuou sendo a
especialidade de Bonica. Havia apenas poucas
clnicas de dor nos Estados Unidos quando ele
publicou a primeira edio de seu compndio Pain
Management (Tratamento da Dor) em 1953. Esse
marco pode ser considerado a data de nascimento
de uma nova disciplina mdica.
No entanto, passaram-se muitos anos at que um
grupo maior se interessasse pela terapia da dor. Em
1973, para tornar esse tpico mais popular, Bonica
fundou a Associao Internacional para o Estudo da
Dor (IASP). Nos anos seguintes, foram fundados
captulos nacionais da IASP em todo o mundo. Em
1979, a IASP cunhou a importante definio da dor
como uma experincia sensorial e emocional
desagradvel associada a dano real ou potencial de
tecidos ou descrita em termos de tal dano, que
ainda vlida. Essa definio foi importante porque
pela primeira vez ficou implcito que dor nem
sempre uma consequncia de dano tecidual, e
pode ocorrer sem ele. A cincia ocidental ento
comeou a perceber que fatores somticos (dano
tecidual) no podem ser separados de fatores
psicolgicos (aprendizado, lembrana, a alma e
processos afetivos). Junto com o reconhecimento
das influncias sociais na perceo dolorosa, esses
fatores formam o ncleo do conceito biopsicolgico
da dor.
Vrias teorias da dor surgiram durante o sculo XX.
A mais importante tambm aceita por Bonica
do psiclogo canadense Ronald Melzack (1929-) e
do psiclogo britnico Patrick D. Wall (1925-2001).
Sua teoria foi publicada em 1965 e conhecida
como a teoria de controle da porta da dor. O
termo porta foi adotado para descrever os
mecanismos da medula espinhal que regulam a
transmisso dos impulsos dolorosos entre a periferia
e o crebro. Essa teoria foi importante porque no
mais considerava o sistema nervoso central como
um simples meio passivo de transmisso de sinais
nervosos. Implicava que o sistema nervoso central
alterava ativamente a transmisso dos impulsos
nervosos. No entanto, a teoria de controle da porta
da dor enfatizava uma viso estritamente
neurofisiolgica da dor, ignorando os fatores
psicolgicos e as influncias culturais.
A etnologia mdica leva em considerao as
influncias culturais na perceo e expresso da dor.
O estudo mais importante foi publicado em 1952 e
foi financiado pelo Servio de Sade Pblica dos
Estados Unidos. Baseados nas entrevistas com
aproximadamente cem veteranos das duas Guerras
Mundiais e da Guerra da Coreia, que estavam
internados em um Hospital de Veteranos no Bronx,
cidade de Nova Iorque, os pesquisadores
verificaram como diferentes antecedentes culturais
influenciam a perceo da dor. Os veteranos foram
divididos em pessoas de origem italiana, irlandesa
ou judia alm do grupo de Velhos Americanos,
composto de norte-americanos de nascimento,
caucasianos e a maioria de religio protestante. Um
resultado dessa pesquisa foi que os Velhos
Americanos tiveram o maior estoicismo na
4 experincia dolorosa e sua atitude com relao dor
foi caracterizada como ansiedade orientada para o
futuro. De acordo com a interpretao dos
pesquisadores, essa ansiedade demonstrou uma
tentativa de estar consciente de sua prpria sade.
Quanto mais os imigrantes italianos, irlandeses ou
judeus eram assimilados pelo modo de vida
americano, mais os seus comportamentos e atitudes
se aproximavam daqueles dos Velhos
Americanos. No entanto, a dor ainda era vista
como apenas um sintoma e as culturas no
ocidentais no eram foco de interesse.
Foi preciso cerca de mais trs dcadas para mudar
essa situao. Durante a dcada de 1990, estudos
demonstraram que atitudes e crenas diferentes em
grupos tnicos diferentes de todo o mundo tinham
um papel na variao de intensidade, durao e
perceo subjetiva da dor. Como consequncia, os
profissionais de sade tiveram que admitir que os
pacientes com dor (crnica) admiram terapeutas que
reconhecem suas crenas culturais e religiosas.
Outro aspeto importante que atraiu o interesse foi o
alvio da dor em pacientes com doena avanada.
Foi a enfermeira, assistente social, e depois mdica
Cicely Saunders (1918-2005) que desenvolveu o
conceito de dor total. A dor crnica na doena
avanada muda totalmente a vida cotidiana e pe
em cheque a vontade de viver. Esse problema est
sempre presente, ento Saunders chegou
concluso de que a dor constante precisa de
controle constante. De acordo com esse conceito,
a dor no pode ser separada da personalidade e do
ambiente do paciente com doena avanada e fatal.
A fundao do St. Christophers Hospice em Londres,
Inglaterra, em 1967 por Saunders pode ser
considerada o ponto de partida da medicina
paliativa. Reflete uma mudana de interesse da
medicina de doenas agudas (infeciosas) para cncer
e outras doenas crnicas na primeira metade do
sculo XX. O termo cuidados paliativos (ou
terapia paliativa) vem da palavra latina pallium
(coberta, casaco) e tem como objetivo aliviar a
ltima fase da vida se a terapia curativa j no for
mais possvel. Os cuidados paliativos, a priori, so
dirigidos para a qualidade de vida. Suas razes esto
nas sociedades no crists, mas so vistos
principalmente como vindos das instituies
medievais de cuidados paliativos. No entanto, os
antecedentes histricos dessas instituies no eram
iguais em todos os pases europeus nem o sentido
da palavra pallium; s vezes ela era usada por
curandeiros para disfarar sua incapacidade de tratar
curativamente os pacientes.
Os cuidados paliativos se tornaram ainda mais
importantes quando outra pandemia totalmente
inesperada irrompeu em meados da dcada de 1980
HIV/AIDS. Principalmente na frica, essa nova
praga se transformou em um enorme problema
de sade que j no podia mais ser ignorado. Cncer
e dor neuroptica tm um papel importante na vida
de pacientes com HIV/AIDS. O desenvolvimento
da medicina paliativa na frica comeou no
Zimbbue em 1979, seguido pela frica do Sul em
1982, pelo Qunia em 1989 e por Uganda em 1993.
As instituies de Uganda se tornaram modelos na
dcada de 1990, a partir da iniciativa da mdica
Anne Marriman (1935-) que passou a maior parte de
sua vida na sia e na frica. Uganda tinha um
ambiente favorvel para seu projeto Hospice Africa
Uganda porque na poca Uganda era o nico pas
africano cujo governo havia declarado os cuidados
paliativos para vtimas de cncer e AIDS uma
prioridade do seu Plano Nacional de Sade. A
taxa de tratamento curativo de cncer em Uganda
baixa, assim como em quase todos os pases em
desvantagem econmica. Essa situao torna os
problemas associados ao cncer e AIDS ainda
mais urgentes.
A ampla aceitao do tratamento da dor crnica no
sculo XX exigiu que a Organizao Mundial de
Sade (OMS) assumisse a liderana, estimulada por
Jan Stjernswrd da Sucia (1936-). Em 1982,
Stjernswrd convidou um grupo de especialistas em
dor, inclusive Bonica, para ir a Milo, Itlia,
desenvolver medidas para a integrao do
tratamento da dor ao conhecimento comum e
prtica mdica. O cncer foi escolhido como ponto
de partida. Naquela poca, os especialistas estavam
preocupados com a crescente lacuna entre pesquisa
bem-sucedida sobre dor, de um lado, e
disponibilidade cada vez menor de opiides para os
pacientes, principalmente de cncer, de outro.
Houve uma segunda reunio em Genebra em 1984.
Como resultado, foi publicada a brochura Cancer
Pain Relief (Alvio da Dor Oncolgica) em 1986. Ao
distribuir essa brochura, a OMS fechou a lacuna por
obrigar os sistemas de sade a usarem opiides de
acordo com a hoje amplamente conhecida escada
5 analgsica de trs degraus. Infelizmente, o sucesso
dessa iniciativa no foi igual em diferentes regies
do mundo. Embora a disponibilidade e o consumo
de opiides tenha se multiplicado nos pases anglo-
americanos e na Europa Ocidental, outras regies
do mundo observaram apenas pequenos aumentos
ou at diminuio no nmero de prescries de
opiides. preciso dizer, porm, que nos pases
anglo-americanos e na Europa Ocidental, o acesso
facilitado aos opiides promoveu um aumento do
uso de opiides para pacientes com dor no
oncolgica tambm. Esse uso pode ser justificado
em casos de dor inflamatria neuroptica ou
crnica, mas deve ser considerado uma aplicao
errada em outras sndromes dolorosas no
oncolgicas. Os opiides no devem ser usados
como a panaceia (um remdio para todos os males),
e a prtica atual em alguns pases pode ameaar a
disponibilidade de opiides no futuro se as
autoridades de sade decidirem intervir e restringir
o uso de opiides ainda mais do que hoje.
Em concluso, o entendimento da dor como um
importante problema de sade progrediu bastante.
Dos tempos antigos, quando a dor costumava ser
vista como parte inevitvel da vida, que os homens
s podiam influenciar parcialmente devido sua
etiologia presumivelmente sobrenatural, foi
desenvolvido um conceito fisiolgico onde o
controle da dor agora possvel. Nas ltimas
dcadas, o conceito de cincia natural foi revisto e
expandido pela aceitao da influncia de fatores
etno-culturais. Embora a pesquisa bsica tenha
ajudado a desvendar os complexos mecanismos da
dor e facilitado o desenvolvimento de novas
estratgias para o tratamento da dor, os velhos
opiides ainda so o esteio do tratamento da dor
aguda, da dor oncolgica e da dor neuroptica.
Embora a compreenso e o tratamento de outras
dores no oncolgicas ainda sejam necessrios, a
dor oncolgica, a dor aguda e a dor neuroptica
podem ser aliviadas em um grande nmero de
pacientes com algoritmos fceis de tratamento e
analgsicos opiides e no opiides simples.
Portanto, o futuro do tratamento da dor em
ambientes com muitos e poucos recursos vai
depender do acesso aos opiides e da integrao dos
cuidados paliativos como uma prioridade dos
sistemas de sade. O livro Tratamento da Dor em
Instituies com Poucos Recursos pretende contribuir
para essa meta em instituies onde o baixo
financiamento dos sistemas de sade destaca a
importncia do tratamento da dor nos cuidados
paliativos.
Referncias
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6
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos
Captulo 2 Obstculos ao Tratamento da Dor em Contextos de
Poucos Recursos
Olaitan A Soyannwo
Por que o tratamento eficaz da dor difcil em pases com poucos recursos?
As economias de baixa e mdia renda do mundo
so s vezes chamadas de pases em
desenvolvimento, embora haja grandes diferenas
em sua situao econmica e de desenvolvimento,
na poltica, na populao e na cultura. No entanto, a
pobreza um fator comum na situao da sade de
pases com poucos recursos e a principal
determinante das doenas, porque a maior parte da
populao vive com menos do que US$ 1 por dia
(abaixo da linha da misria). Desnutrio,
infeces e doenas parasticas so prevalentes com
altas taxas de morbidade e mortalidade,
principalmente nas reas rurais e entre mulheres
grvidas e crianas. A maioria dos pases, portanto,
define e implementa um pacote essencial de sade
(PES) que o pacote mnimo econmico de sade
pblica e de intervenes clnicas para lidar com
fontes importantes de doenas.
Essas prioridades de sade foram abordadas na
2000 United Nations Millennium Development Goals
(MDG) (Metas de Desenvolvimento para o Milnio
das Naes Unidas, 2000), que enfatizou a
erradicao da pobreza e da fome, educao
primria universal, igualdade de sexos, reduo da
mortalidade infantil, melhora da sade materna,
combate ao HIV/AIDS, malria e outras doenas
graves, sustentabilidade ambiental, e parceria global
para o desenvolvimento. Embora doenas
contagiosas sejam a nfase, nota-se agora uma
transio da epidemiologia das doenas medida
que doenas no contagiosas, leses e violncia so
to importantes quanto as doenas contagiosas
como causa de morte e incapacidade. Muitas dessas
condies vm acompanhadas de dor (aguda e
crnica), que abordada e tratada inadequadamente.
Embora haja consenso de que sistemas mais slidos
de sade sejam o segredo para obter melhores
resultados de sade, existe menos concordncia
sobre como fortalec-los. Em pases onde a renda
mdia est abaixo da linha da misria, existe
pouca prioridade especfica para a dor, j que muitas
pessoas se concentram em trabalhar para ter renda,
independentemente de qualquer problema de dor.
O tratamento da dor um problema em pases com poucos recursos?
A dor o problema mais comum que leva os
pacientes a procurar os profissionais de sade em
pases com poucos recursos. Em um estudo da
OMS, a dor persistente foi um problema de sade
informado com frequncia pelos pacientes de
cuidados primrios e foi consistentemente associada
a distrbios psicolgicos. A dor aguda ou crnica,
7 oncolgica ou no, subtratada, e os analgsicos
podem at no estar disponveis em hospitais rurais.
Como os pacientes lidam com seus problemas de dor?
Em geral, a primeira tentativa de tratar a dor desses
pacientes recorrer a remdios caseiros, inclusive
fitoterpicos e remdios sem prescrio mdica
(RSP). Eles podem ser simples analgsicos,
fitoterpicos ou medicamentos complementares. A
automedicao e as recomendaes de terceiros
(amigos, parentes, outros pacientes, fornecedores de
medicamentos e mdicos tradicionais) so comuns.
Tais recomendaes podem ser eficazes para dor
simples, sem complicaes, mas quando a dor
forte ou persistente os pacientes vo ao hospital
como ltimo recurso. No hospital, a maioria dos
problemas de dor tratada pelo clnico geral,
mdico de famlia ou especialistas de primeira linha
como cirurgies ortopdicos, neurologistas e
oncologistas. Os especialistas em tratamento da dor
e os clnicos dedicados dor ou equipes de dor
aguda so poucos e s vezes no existem em pases
com poucos recursos. Portanto, embora o alvio da
dor seja parte do direito fundamental ao mais alto
padro possvel de sade, esse alvo difcil de
atingir em pases com poucos recursos, onde a
maior parte da populao vive na zona rural.
Frequentemente, o servio de sade prestado por
uma rede de pequenas clnicas algumas sem
mdicos ou analgsicos essenciais. Mesmo quando
existem mdicos, por exemplo para cirurgias, os
pacientes aguardam a dor como parte inevitvel da
interveno cirrgica e, apesar da alta incidncia de
dor relatada, ainda classificam o alvio da dor
como satisfatrio.
Por que difcil tratar adequadamente a dor?
Falta de conhecimento
A falta de conhecimento entre os profissionais de
sade em pases com poucos recursos um dos
principais obstculos para o tratamento eficaz da
dor. A avaliao abrangente da dor e os mtodos
multimodais de tratamento no so bem entendidos
porque a dor costuma ser ensinada como um
sintoma da doena e no como uma experincia
com dimenses fsicas, psicossociais e outras. A
falta de treinamento e os mitos podem levar a
medos descabidos dos efeitos adversos de
analgsicos opiides e a crenas errneas sobre o
risco de dependncia, mesmo em pacientes
oncolgicos. Os pacientes tambm podem no
entender seus prprios problemas mdicos, e
podem esperar a dor, que eles acham que deve ser
suportada como parte inevitvel de sua doena.
Assim, a educao adequada essencial para todos
os profissionais de sade envolvidos com o
tratamento da dor, e uma equipe multidisciplinar
essencial para o tratamento bem sucedido da dor. A
dor deveria ser includa nos currculos e nos exames
de estudantes graduados ou ps-graduados em
cuidados de sade, e tambm incorporada a
programas de educao continuada. Vrias
organizaes produziram pacotes, protocolos e
diretrizes educacionais abrangentes para a prtica
clnica, inclusive a IASP (www.iasp-pain.org). No
entanto, esses itens precisam ser adaptados para
serem econmicos e culturalmente adequados.
Atitudes inadequadas dos profissionais de
sade
Em geral, os pacientes no recebem os analgsicos
adequados quando prescritos porque os
profissionais de sade que deveriam administr-los
esto muito ocupados, no esto interessados, ou se
recusam a acreditar nas queixas do paciente.
Recursos inadequados
Devido ao pessoal, equipamentos e restries
financeiras, as instalaes para os servios de dor
so manifestamente inadequadas ou no existentes
em vrios pases em desenvolvimento. Recursos
inadequados impedem a organizao de equipes de
dor aguda e de clnicas de dor crnica, que so
largamente utilizadas em pases desenvolvidos para
oferecer controle eficaz da dor atravs de mtodos
baseados em evidncias, educao, aconselhamento
sobre difceis problemas de dor, e pesquisa. No
mundo em desenvolvimento, as melhoras no
tratamento da dor aguda so mais provavelmente
resultado de programas eficazes de treinamento, do
uso de analgesia multimodal e do acesso a
suprimento confivel de medicamentos.
8
Falta de analgsicos opiides
A dor moderada ou grave precisa ser tratada com
analgsicos opiides, conforme proposto pela
escada analgsica da OMS, que tambm foi adotada
pela Federao Mundial de Sociedades de
Anestesiologistas (WFSA). Infelizmente, em vrios
pases com poucos recursos, os medos (opiofobia),
as preocupaes e os mitos sobre o uso de opiides
se concentram mais em tolerncia, dependncia e
vcio, que em geral no deveriam impedir o uso
mdico adequado de opiides. Em 1996, o
International Narcotics Control Board (INCB) (Agncia
Internacional de Controle de Narcticos) fez
recomendaes que levaram publicao das
diretrizes da OMS Achieving Balance in National
Opioid Control Policy (2000) (Como Obter Equilbrio
na Poltica Nacional de Controle de Opiides). O
manual explica a razo e a urgncia do uso de
analgsicos opiides.
Falta de prioridade do governo
As polticas nacionais so a pedra angular para a
implementao de qualquer programa de sade, e
tais polticas no existem em vrios pases com
poucos recursos. S possvel tratar eficazmente a
dor se o governo incluir o alvio da dor no plano
nacional de sade. Os fazedores de polticas e os
legisladores precisam garantir que as leis e os
regulamentos nacionais, embora controlando o uso
de opiides, no restrinjam a prescrio em prejuzo
dos pacientes necessitados. A estratgia de sade
pblica, que teve como pioneiros os cuidados
paliativos, a melhor para transformar novos
conhecimentos e aptides em intervenes baseadas
em evidncias e econmicas que possam atingir
toda a populao.
Concluso
A dor no tratada causa muito sofrimento aos
indivduos afetados, sejam ricos ou pobres.
Portanto, todos os esforos devem ser feitos para
promover o tratamento eficaz da dor, mesmo para
pessoas que vivem abaixo da linha da misria.
Referncias
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9
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos
Captulo 3 Fisiologia da Dor
Nilesh B. Patel
A dor no apenas uma sensao desagradvel, mas
tambm uma modalidade sensorial complexa
essencial sobrevivncia. Existem casos raros de
pessoas sem sensao de dor. Um caso referido com
frequncia o de F.C., que no apresentava uma
resposta normal de dor face a danos tecidulares.
Mordia repetidamente a ponta da lngua, queimava-
se, no mudava de posio na cama nem transferia o
peso do corpo quando estava de p e no
demonstrava uma resposta autnoma aos estmulos
dolorosos. Morreu aos 29 anos.
O mecanismo do sistema nervoso de
deteo de estmulos com potencial para causar
leses nos tecidos muito importante para
desencadear respostas comportamentais que
protegem o organismo de danos atuais ou
posteriores nos tecidos. Estas consistem em reaes
reflexas e tambm em aes preventivas contra
estmulos que podem causar danos nos tecidos
como, por exemplo, foras mecnicas fortes,
temperaturas extremas, falta de oxignio e
exposio a determinados qumicos.
Este captulo refere-se aos recetores
neuronais que respondem a vrios estmulos
dolorosos, a substncias que estimulam
nociceptores, s vias nervosas e modulao da
perceo da dor. O termo nocicepo (em latim nocere,
doer) refere-se ao processo sensorial
desencadeado, e dor refere-se perceo de um
sentimento ou sensao que a pessoa designa como
dor e descreve variavelmente como irritativa,
dolorosa, pungente, persistente, pulstil ou
intolervel. Ambos estes aspetos, a nocicepo e a
dor, so separados e, tal como descrito na
abordagem da modulao da dor, uma pessoa com
leses tecidulares que deveriam produzir sensaes
dolorosas pode no apresentar qualquer
comportamento que indique dor. A nocicepo
pode levar dor, a qual pode aparecer e
desaparecer, e uma pessoa pode ter uma sensao
de dor sem atividade nociceptiva evidente. Estes
aspetos so abrangidos na definio da IASP:
Experincia sensorial e emocional desagradvel
associada a danos nos tecidos, efetivos ou
potenciais, ou descrita em funo desses mesmos
danos.
Fisiologia da dor
Nociceptores e a transduo dos estmulos dolorosos O sistema nervoso para a nocicepo que avisa o
crebro quanto a estmulos sensoriais nocivos
separado do sistema nervoso que informa o crebro
quanto a estmulos sensoriais incuos.
Os nociceptores so terminaes nervosas
livres no especializadas, no mielinizadas que
convertem (transduzem) uma variedade de
estmulos em impulsos nervosos que o crebro
interpreta para produzir a sensao de dor. Os
corpos celulares dessas terminaes nervosas
situam-se nos gnglios raquidianos, ou no caso do
nervo trigeminal nos gnglios trigeminais, e enviam
uma ramificao de fibra nervosa para a periferia e
outra para a medula espinhal ou tronco cerebral.
10 A classificao do nociceptor baseia-se na
classificao da fibra nervosa que constitui a
terminao nervosa desse nociceptor. Existem dois
tipos de fibras nervosas: (1) nervos de pequeno
dimetro, no mielinizados, que conduzem
lentamente o impulso nervoso (2 m/seg. = 7,2
km/h), designados fibras C, e (2) nervos de maior
dimetro, ligeiramente mielinizados, que conduzem
impulsos nervosos mais rapidamente (20 m/seg. =
72 km/h) designados fibras A. Os nociceptores de
fibra C respondem de forma polimodal aos
estmulos trmicos, mecnicos e qumicos; e os
nociceptores de fibra A so de dois tipos e
respondem aos estmulos mecnicos e
mecanotrmicos. amplamente conhecido o facto
de que a sensao de dor constituda por duas
categorias uma dor inicial rpida e aguda
(epicrtica) e uma dor lenta mais retardada,
moderada, de longa durao (protoptica). Este
padro explica-se pela diferena na velocidade de
propagao dos impulsos nervosos nos dois tipos
de fibras nervosas descritos acima. Os impulsos
neuronais em nociceptores de fibra A de rpida
conduo produzem uma sensao de dor aguda e
rpida, enquanto os nociceptores de fibra C, mais
lentos, produzem uma sensao de dor moderada e
retardada.
A ativao perifrica dos nociceptores
(transduo) modulada por uma srie de
substncias qumicas que so produzidas ou
libertadas quando existe leso celular(Tabela 1).
Estes mediadores influenciam o grau de atividade
nervosa e, por conseguinte, a intensidade da
sensao de dor. A estimulao repetida causa
normalmente uma sensibilizao das fibras nervosas
perifricas, causando a reduo dos limiares de dor e
dor espontnea, um mecanismo que pode ser
sentido sob a forma de hipersensibilidade cutnea,
por exemplo, em zonas da pele que sofreram
queimaduras solares.
Para alm disto, a libertao local de
qumicos, como a substncia P, causa vasodilatao
e a tumefao, bem como a libertao de histamina
pelos mastcitos, aumentando ainda mais a
vasodilatao. Esta complexa sinalizao qumica
protege a zona lesionada, produzindo
comportamentos que mantm essa rea afastada de
estmulos mecnicos ou outros.
A promoo da cura e a proteo contra a infeo
so auxiliadas pelo maior fluxo sanguneo e pela
inflamao (funo protetora da dor).
Tabela 1
Substncias qumicas selecionadas libertadas com estmulos suficientes para causar leses nos tecidos
Substncia Fonte
Potssio Clulas danificadas
Serotonina Plaquetas
Bradicinina Plasma
Histamina Mastcitos
Prostaglandinas Clulas danificadas
Leucotrienos Clulas danificadas
Substncia P Aferentes nervosos primrios
A hipersensibilidade pode ser diagnosticada
analisando o historial e atravs de um exame
rigoroso. Podem ser distinguidas determinadas
condies:
a) Alodinia: dor provocada por um estmulo
que normalmente no provoca dor, por ex. dor
provocada pelo toque de uma pea de vesturio em
doentes com nevralgia ps-herptica.
b) Disestesia: sensao incmoda e anormal,
seja espontnea ou evocada. (Nota: uma disestesia
deve ser sempre incmoda, ao passo que a
parestesia no o deve ser; por ex., em doentes com
polineuropatia diabtica ou carncia de vitamina B1.)
c) Hiperalgesia: resposta aumentada a um
estmulo que normalmente doloroso. (Nota: a
hiperalgesia reflete dor aumentada mediante
estimulao supra-limiar; por ex., em doentes com
neuropatias na sequncia de perturbaes do
sistema nociceptivo com sensibilizao perifrica
e/ou central.)
d) Hiperestesia: maior sensibilidade
estimulao, exceto dos sentidos especiais, por ex.,
11 sensibilidade cutnea acrescida sensao trmica
sem dor.
Com o conhecimento das vias da dor e dos
mecanismos de sensibilizao, possvel
desenvolver estratgias teraputicas para interagir
especificamente com os mecanismos de gerao da
dor.
Vias centrais da dor
A via espinhotalmica e a via trigeminal so os
principais percursos nervosos para a transmisso da
dor e da informao de temperatura normal do
corpo e do rosto ao encfalo. Os rgos viscerais
possuem apenas nervos nociceptivos de fibra C,
pelo que no h ao reflexa devido dor nos
rgos viscerais.
Via espinhotalmica
As fibras nervosas dos gnglios raquidianos entram
na medula espinhal atravs da raiz dorsal e enviam
ramificaes para 1 a 2 segmentos para cima e para
baixo na medula espinhal (trato dorsolateral de
Lissauer) antes de entrar na substncia cinzenta da
medula espinhal, onde estabelecem contactos
(inervam) com os neurnios na lmina I (zona
marginal) e na lmina II (substncia gelatinosa) de
Rexed. As fibras A inervam as clulas na zona
marginal e as fibras C inervam principalmente as
clulas na camada de substncia gelatinosa da
medula espinhal. Estas clulas nervosas, por sua
vez, inervam as clulas do nucleus proprius, outra zona
da substncia cinzenta da medula espinhal (camadas
IV, V e VI de Rexed), as quais enviam fibras
nervosas atravs da linha mdia espinhal e ascendem
(na parte anterolateral ou ventrolateral da substncia
branca da medula espinhal), atravessando o bolbo
raquidiano e a ponte, e inervam neurnios situados
em zonas especficas do tlamo. Isto constitua via
espinhotalmica para a transmisso de informao
sobre a dor e dos estmulos trmicos normais (
12
Patofisiologia da dor
As sensaes de dor podem surgir na sequncia de:
1) Inflamao dos nervos, por ex. nevrite
temporria.
2) Leses nos nervos e terminaes nervosas
com formao de cicatriz, por ex. leses cirrgicas
ou hrnia discal.
3) Invaso do plexo nervoso por cancro, por
ex. plexopatia braquial.
4) Leses nas estruturas da medula espinhal,
no tlamo ou nas zonas corticais que processam a
informao da dor, que podem causar dor intratvel;
desaferenciao, por ex. traumatismo da medula
espinhal.
5) Atividade anmala nos circuitos nervosos
que apreendida como dor, por ex. dor fantasma
com reorganizao cortical.
Modulao da perceo da dor
amplamente conhecido o facto de que existe uma
diferena entre a realidade objetiva de um estmulo
doloroso e a resposta subjetiva ao mesmo. Durante
a Segunda Guerra Mundial, Beecher, um
anestesiologista, e os seus colegas realizaram o
primeiro estudo sistemtico deste efeito.
Descobriram que, muitas vezes, os soldados que
sofriam de ferimentos de guerra graves sentiam
pouca ou nenhuma dor. Esta dissociao entre
ferimento e dor tambm foi observada noutras
circunstncias, como em eventos desportivos, e foi
atribuda ao efeito do contexto no qual ocorre a
leso. A existncia de dissociao indica que o
organismo possui um mecanismo que modula a
perceo da dor. Acredita-se que este mecanismo
endgeno da modulao da dor garante a vantagem
de uma maior sobrevivncia em todas as espcies
(berlebensvorteil).
Foram descritos trs mecanismos
importantes: inibio segmentar, o sistema opiide
endgeno e o sistema nervoso inibitrio
descendente. Alm disso, as estratgias cognitivas e
outras estratgias para lidar com a dor podem
tambm desempenhar um papel fundamental na
perceo da mesma, conforme descrito noutros
captulos deste guia.
Inibio segmentar
Em 1965, Melzack e Wall propuseram a teoria do
porto de controlo da dor, que foi modificada
posteriormente, mas que permanece vlida na
essncia. A teoria prope que a transmisso da
informao atravs do ponto de contacto (sinapse)
entre as fibras nervosas A e C (que transportam
informao nociva a partir da periferia) e as clulas
do corno dorsal da medula espinhal possa ser
reduzida ou bloqueada. Assim sendo, a perceo da
dor associada ao estmulo diminui ou no sentida
de todo. O desenvolvimento da estimulao nervosa
eltrica transcutnea (ENET) foi a consequncia
clnica deste fenmeno.
A transmisso do impulso nervoso atravs
da sinapse pode ser descrita como se segue: a
ativao das grandes fibras nervosas mielinizadas
(fibras A) est associada aos mecano-recetores de
baixo limiar, como o toque, que estimulam um
nervo inibitrio na medula espinhal que inibe a
transmisso sinptica. Esta uma explicao
possvel para o facto de a sensao de dor diminuir
quando se fricciona uma zona lesionada (Fig. 2).
Sistema opiide endgeno
Para alm do bloquear da transmisso de estmulos
nocivos assumida na teoria do controlo do porto,
outro sistema modula a perceo da dor. Desde
4000 a.c., que se sabe que o pio e seus derivados,
como a morfina, a codena e a herona, so
analgsicos potentes, e continuam a ser atualmente a
base da teraputica de alvio da dor. Nos anos 1960
e 1970, foram descobertos os recetores para os
derivados do pio, em particular nas clulas
nervosas da substncia cinzenta periaquedutal e no
bolbo raquidiano ventral, bem como na medula
espinhal. Esta descoberta significava que o sistema
13 nervoso devia produzir qumicos que constituam
ligandos naturais destes recetores. Foram
descobertos trs grupos de compostos endgenos
(encefalinas, endorfinas e dinorfina) que se ligam
aos recetores opiides e que so referidos como
constituindo o sistema opiide endgeno. A
presena deste sistema e o sistema de modulao da
dor descendente (adrenrgico e serotoninrgico)
fornece uma explicao para o sistema de
modulao interna da dor e para a variabilidade
subjetiva da dor.
Sistema nervoso inibitrio descendente
A atividade nervosa nos nervos descendentes de
determinadas zonas do tronco cerebral (substncia
cinzenta periaquedutal, bolbo raquidiano rostral)
pode controlar a ascenso da informao
nociceptiva ao crebro. A serotonina e a
norepinefrina so os principais neurotransmissores
desta via, podendo por conseguinte ser modulados
farmacologicamente. Os inibidores seletivos de
recaptao da serotonina (ISRS) e os
antidepressivos tricclicos (por ex. amitriptilina)
podem ento apresentar propriedades analgsicas
(Fig. 3).
Dor referida
Os rgos viscerais no tm qualquer inervao
nervosa A, mas as fibras C que transportam a
informao relativa dor dos rgos viscerais
convergem na mesma zona da medula espinhal
(substncia gelatinosa) onde convergem as fibras
nervosas somticas provenientes da periferia, e o
encfalo localiza a sensao de dor como se tivesse
origem nessa zona perifrica somtica em vez de no
rgo visceral. Assim sendo, a dor dos rgos
internos sentida numa localizao que no
constitui a fonte da dor. Este tipo de dor chamado
de dor referida.
Reflexo espinhal autnomo
Com frequncia, a informao de dor proveniente
dos rgos viscerais ativa os nervos que provocam a
contrao dos msculos esquelticos e a
vasodilatao dos vasos sanguneos cutneos,
produzindo vermelhido nessa zona da superfcie
corporal.
Concluso
Os estmulos qumicos ou mecnicos que ativam os
nociceptores originam sinais nervosos sentidos
como dor pelo crebro. A investigao e a
compreenso do mecanismo bsico da nocicepo e
das percees da dor oferecem uma fundamentao
lgica para as intervenes teraputicas e para
potenciais novos alvos de desenvolvimento de
medicamentos.
Referncias
[1] Westmoreland BE, Benarroch EE, Daude JR, Reagan TJ, Sandok BA. Medical neuroscience: an approach to anatomy, pathology, and physiology by systems and levels. 3rd ed. Boston: Little, Brown and Co.; 1994. p. 146-54.
[2] Bear MF, Connors BW, Paradiso. Neuroscience: exploring the brain. 2nd ed. Lippincott Williams & Wilkins; 2011. p. 422-32.
[3] Melzack R, Wall P. The challenge of pain. New York: Basic Books; 1983.
14
Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos
Captulo 4
Fatores Psicolgicos na Dor Crnica
Harald C. Traue, Lucia Jerg-Bretzke, Michael Pfingsten e Vladimir Hrabal
Todos sabemos o que a dor. Afeta
geralmente o corpo, mas tambm influenciada por
fatores psicolgicos e perturba sempre a conscincia
humana. Esta ligao entre a mente e o corpo
ilustrada atravs de muitas metforas e smbolos,
que procuram resolver problemas e conflitos que
nos torturam. Em alemo, o termo popular para a
lombalgia (Hexenschuss tiro de bruxa) envolve a
crena psicossomtica medieval de que um homem
orgulhoso pode ser atingido nas costas pelos
poderes mgicos de uma bruxa, sofrendo deste
modo um tipo de dor agonizante capaz de o tornar
invlido. Muitas culturas acreditam que poderes
desta natureza (muitas vezes malvolos) esto na
etiologia da dor. Esta ideia surge porque, nem
sempre, fcil determinar a causa da dor. Por vezes,
as estruturas somticas esto completamente
intactas e no possvel identificar uma leso ou
uma disfuno fisiolgica ou neuronal que possa
constituir uma potencial fonte de dor. A crena em
poderes mgicos funda-se tambm na experincia
de que os fatores psicolgicos so to importantes
para o controlo da dor quanto a anlise da sua
etiologia fsica A investigao atual, com recurso ao
placebo, tem vindo a confirmar a relevncia destes
fatores de diversas formas.
Mesmo algumas teorias leigas, como a lenda
moderna do desgaste do disco, s conseguem
descrever a causa real dos sintomas em muito
poucos casos. Em mais de 80% de todo