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Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos Editado por Andreas Kopf e Nilesh B. Patel ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA O ESTUDO DA DOR (IASP) ®

Guia Para o Tratamento Da Dor

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  • Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

    Editado por Andreas Kopf e Nilesh B. Patel

    ASSOCIAO INTERNACIONAL PARA O ESTUDO DA DOR (IASP)

  • Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

    Material educativo escrito por uma equipe de autores multidisciplinar e multinacional,

    para distribuio geral aos prestadores de cuidados de sade

    Editores Andreas Kopf, MD

    Department of Anesthesiology Charit Medical University

    Berlin, Germany

    Nilesh B. Patel, PhD Department of Medical Physiology

    University of Nairobi Nairobi, Kenya

  • 2010 IASP International Association for the Study of Pain (Associao Internacional para o Estudo da Dor) Todos os direitos reservados. Este material s pode ser utilizado para propsitos educacionais e de treino com a meno da fonte de origem proibida a sua venda ou uso comercial

    Translated from the original English edition, published in 2009 under the titleGuide to Pain Management in Low-Resource Settings.

    Os tpicos da pesquisa e tratamento da dor foram selecionados para publicao, mas as informaes fornecidas e opinies expressas no envolveram qualquer verificao dos resultados, concluses e opinies por parte da IASP. Assim, as opinies expressas no Guia de Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos no refletem necessariamente as da IASP ou dos Diretores e Conselheiros. A IASP no assume nenhuma responsabilidade por qualquer dano e /ou danos a pessoas ou bens, em questes de responsabilidade civil, negligncia, ou qualquer uso de quaisquer mtodos, produtos, instruo ou ideias contidas no material aqui contido. Devido ao rpido avano da cincia mdica, a editora recomenda que deve haver uma verificao independente dos diagnsticos e dosagens de medicamentos. A meno de determinados produtos farmacuticos e qualquer procedimento mdico no implica o endosso ou recomendao por parte dos editores, autores ou IASP em favor de outros medicamentos ou procedimentos que no so abordados no texto. So esperados erros e omisses. Apoiado por uma bolsa educacional da International Association for the Study of Pain

    Uma verso preliminar deste texto foi impressa em 2009

    .

    A presente verso em lngua Portuguesa do Guia para Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos foi produzida no mbito de uma colaborao entre a Associao Portuguesa para o Estudo da Dor (APED) e a Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED), sob a coordenao de Jos Castro Lopes, elemento de ligao da IASP aos seus captulos na Amrica Latina. Agradece-se a valiosa colaborao de: Ana Marcos, Ana Valentim, Ananda Fernandes, Cristina Pinto, Daniel Pozza, Diamantino Pereira, Duarte Correia, Durval Campos Kraychete, Fabiola Peixoto Minson, Fani Neto, Filipe Antunes, Graa Carrapatoso, Isaura Tavares, Ivone Nabais, Joo Batista Garcia, Joo Mota Dias, Jorge Cortez, Jos Osvaldo Oliveira Jnior, Jos Tadeu Tisseroli Siqueira, Luis Agualusa, Manuel Pedro Ribeiro da Silva, Maria Jos Ramalho, Maria Rosa Fragoso, Rosrio Alonso, Susana Abreu e Teresa Sarmento. A traduo da obra original foi parcialmente financiada com o apoio da Fundao Grnenthal Portugal. Translated from the original English edition, published in 2010 under the title Guide to Pain Management in Low-Resource Settings.

    Published by:IASP PressInternational Association for the Study of Pain111 Queen Anne Ave N, Suite 501Seattle, WA 98109-4955, USAFax: 206-283-9403www.iasp-pain.org

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    ndice

    Prefcio vii

    Introduo viii

    Bases

    1. Histrico, Definies e Opinies Atuais 1

    Wilfried Witte and Christoph Stein

    2. Obstculos ao Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos 6

    Olaitan A Soyannwo

    3. Fisiologia da dor 9

    Nilesh B. Patel

    4. Fatores Psicolgicos na Dor Crnica 14

    Harald C. Traue, Lucia Jerg-Bretzke, Michael Pfi ngsten, and Vladimir Hrabal

    5. Influncias Etnoculturais e de Gnero na Dor 23

    Angela Mailis-Gagnon

    6. Farmacologia dos Analgsicos (Exceto Opioides) 30

    Kay Brune

    7. Os Opioides na Medicina da Dor 36

    Michael Schfer

    8. Princpios dos Cuidados Paliativos 44

    Lukas Radbruch and Julia Downing

    9. Teraputicas Complementares para a Gesto da Dor 57

    Barrie Cassileth and Jyothirmai Gubili

    Avaliao Fsica e Psicolgica do Doente

    10. Antecedentes de dor e Avaliao da Dor 65

    Richard A. Powell, Julia Downing, Henry Ddungu, and Faith N. Mwangi-Powell

    11. Exame Fsico: Neurologia 81

    Paul Kioy and Andreas Kopf

    12.Exame Fsico Msculo-Esqueltico 90

    Richard Fisher

    13. Avaliao Psicolgica do Paciente com Dor Crnica 97

    Claudia Schulz-Gibbins

  • iv

    Gesto da Dor Aguda

    14. Analgesia Ps-Operatria em Cirurgias Major 108

    Frank Boni

    15. Traumatismo Agudo e Dor Pr-Operatria 122

    O. Aisuodionoe-Shadrach

    16. O Tratamento da Dor em Cirurgia Ambulatria/de 24 Horas 127

    Andrew Amata

    17. Gesto Farmacolgica da Dor em Obstetrcia 131

    Katarina Jankovic

    Gesto da Dor Oncolgica

    18.Cancro Abdominal, Obstipao e Anorexia 145

    Andreas Kopf

    19. Metstases sseas com Dor Irruptiva 155

    M. Omar Tawfik

    20. Cncer de Pulmo com Plexopatia 164

    Rainer Sabatowski and Hans J. Gerbershagen

    21. Cncer de Pulmo com Problemas Respiratrios 172

    Th omas Jehser

    22. Cncer Hematolgico com Nusea e Vmitos 179

    Justin Baker, Paul Ribeiro, and Javier Kane

    Gesto da Dor Neuroptica

    23. Neuropatia Diabtica Dolorosa 187

    Gaman Mohammed

    24. Gesto da Nevralgia Ps-Herptica 193

    Maged El-Ansary

    25. Dor Neuroptica Central 201

    Maija Haanp and Aki Hietaharju

    26. Gesto da Dor em Adultos e Crianas com VIH/SIDA 208

    Glenda E. Gray, Fatima Laher, and Erica Lazarus

    Gesto da Dor Crnica No Oncolgica

    27. Dor nas Costas Crnica Inespecfica 221

    Mathew O.B. Olaogun and Andreas Kopf

    28. Cefaleia 229

    Arnaud Fumal and Jean Schoenen

  • v

    29. Dor Reumtica 238

    Ferydoun Davatchi

    Situaes Teraputicas Difceis e Tcnicas

    30. Dismenorreia, Dor Plvica e Endometriose 245

    Susan Evans

    31. Consideraes sobre o Tratamento da dor Durante Gestao e Aleitamento 252

    Michael Paech

    32. Dor na Anemia Falciforme 263

    Paula Tanabe and Knox H. Todd

    33. Sndroma Dolorosa Regional Complexa 267

    Andreas Schwarzer and Christoph Maier

    34. Tratamento da Dor em Crianas 274

    Dilip Pawar and Lars Garten

    35. Dor na Velhice e Demncia 291

    Andreas Kopf

    36. Dor do Tipo Breakthroug. Emergncia da Dor e Dor Incidental 299

    Gona Ali and Andreas Kopf

    37. Controlo da Dor em Unidades de Cuidados Intensivos 306

    Josephine M. Thorp and Sabu James

    38. Bloqueios Nervosos Diagnsticos e Prognsticos 317

    Steven D. Waldman

    39. Cefaleia Ps-Puno da Dura Mater 325

    Winfried Meissner

    40. Radioterapia Citosttica 329

    Lutz Moser

    41. A Funo da Acupuntura na Abordagem da Dor 333

    Natalia Samoilova and Andreas Kopf

    Planeamento e Organizao da Gesto da Dor

    42. Como Desenvolver um Plano de Tratamento da Dor 342

    M.R. Rajagopal

    43. Recursos para Garantir a Disponibilidade de Opioides 347

    David E. Joranson

    44. Configurando Diretrizes para Necessidades Locais 357

    Uriah Guevara-Lopez and and Alfredo Covarrubias-Gomez

  • vi

    Prolas de Sabedoria

    45. Tcnicas para Bloqueios Nervosos Usados com Frequncia 365

    Corrie Avenant

    46. Princpios Psicolgicos do Tratamento da Dor 369

    Claudia Schulz-Gibbins

    47. Insights da Fisiologia Clnica 372

    Rolf-Detlef Treede

    48. Suplementos Fitoterpicos e Outros 375

    Joel Gagnier

    49. Perfil Farmacolgico, Doses e Efeitos Adversos de Medicamentos Usados para o Tratamento da Dor 377

    Barbara Schlisio

    Apndice

    Glossrio 387

    Andreas Kopf

  • vii

    Prefcio

    A convico de que o tratamento da dor um direito humano tem sido aceite por muitos h muito tempo, mas em 2004, a afirmao de que "o alvio da dor deve ser um direito humano" foi considerada to importante que foi publicada aps o lanamento da primeira campanha global contra a Dor em 2004, em Genebra, pela IASP International Association for the Study of Pain (Associao Internacional para o Estudo da Dor), a EFIC European Federation of Chapters of the IASP (Federao Europeia dos Captulos da IASP), e a WHO World Health Organization (Organizao Mundial da Sade). Infelizmente, um grande nmero dos doentes que sofrem com dor e, especialmente, nos pases em desenvolvimento, no recebem tratamento para a dor aguda e, mais especialmente, para a dor crnica. Existem vrias razes para este problema, que incluem a falta de profissionais de sade adequadamente treinados, a indisponibilidade de frmacos, especialmente opiides, o receio da utilizao de opiides, devido crena errnea de que, inevitavelmente, o uso destas substncias causam dependncia. O primeiro grande passo na melhoria do tratamento dos doentes com dor nos pases em desenvolvimento proporcionar-lhes, profissionais treinados, no apenas mdicos e enfermeiros, mas tambm os demais profissionais de sade. Uma pesquisa realizada pela IASP em 2007 revelou que entre os seus membros nos pases em desenvolvimento, poucos reconheceram ter recebido uma educao adequada na compreenso e tratamento da dor enquanto universitrios. Na maioria das regies do mundo, menos de metade receberam formao no tratamento da dor, mesmo que fosse uma parte significativa do seu trabalho dirio. No de estranhar, portanto, que 91% relatassem que a falta de formao tenha sido a principal barreira para o tratamento da dor no seu pas. claro que em muitos pases em desenvolvimento, o alvio da dor no uma prioridade, e que a preocupao com doenas infeciosas como a malria, a tuberculose, e acima de tudo VIH/SIDA tem precedncia. De facto, 75% dos que responderam pesquisa da IASP, considerou a no prioridade ao controlo da dor um falha do governo e o segundo obstculo mais comum para a melhoria da qualidade do tratamento. Quase todos referiram que o medo da dependncia de opiides, entre mdicos, enfermeiros e

    profissionais de sade em geral, era uma barreira para a disponibilidade e uso desses frmacos, embora, de facto, esse medo seja principalmente uma consequncia da m formao. A produo deste manual oportuna porque ir preencher uma lacuna importante no conhecimento de quem lida com pessoas com dor nos pases em desenvolvimento. Abrange a cincia bsica da dor, e talvez seja o nico, a abordar o racional para o uso de medicamentos naturais. Tambm proporciona conhecimento aprofundado e conselhos sobre a gesto dos principais distrbios dolorosos que ocorrem nos pases em desenvolvimento, incluindo os dois grandes flagelos do presente, Cancro e VIH/SIDA. Este livro deve estar disponvel para todos os responsveis pelo tratamento da dor, seja aguda ou crnica, trabalhem em cidades, vilas, ou provncia, porque seguramente vo consider-lo uma ajuda inestimvel para a sua prtica.

    Professor Sir Michael Bond Glasgow, Esccia

    Agosto 2009

  • viii

    Introduo

    A dor amplamente subtratada, causando sofrimento e perdas financeiras aos indivduos e sociedade. Acredita-se que a sade de todos os doentes deve incluir a avaliao da dor e do seu impacto sobre os doentes, esforos especiais por parte dos profissionais de sade para controlar a dor, e desenvolvimento de programas de educao para especialistas no tratamento da dor. Alm disso, a investigao cientfica clnica e bsica deve ser incentivada a fornecer melhores cuidados no futuro. O objetivo desses esforos assegurar que o controle da dor seja alta prioridade no sistema de sade. Este livro, Guia de Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos, tem por objetivo incentivar a investigao sobre os mecanismos da dor e sndromes dolorosas e ajudar a melhorar o tratamento de doentes com dor aguda e crnica, reunindo cientistas, mdicos e outros profissionais de sade de vrias especialidades interessados em dor. O pblico-alvo so cientistas e pessoal pr-clnico, cirrgico e praticantes de medicina interna de todas as especialidades, anestesistas e anestesiologistas, toda a equipa de enfermagem, trabalhadores da sade em geral, bem como estudantes de medicina, enfermagem e autoridades da sade. Em contextos de poucos recursos, a maioria dos profissionais de sade tm pouco ou nenhum acesso informao bsica e prtica. Na verdade, muitos passaram a confiar na observao, na opinio dos colegas, e na construo emprica de experincias atravs dos sucessos e fracassos dos seus prprios tratamentos. A disparidade de informaes tericas e prticas deve-se a vrios fatores, incluindo a distribuio desigual de acesso Internet, e tambm ao fracasso das polticas de desenvolvimento e iniciativas internacionais, que tendem a concentrar-se em abordagens inovadoras para os profissionais de sade de nvel superior e cientistas, ignorando, relativamente falando, outras abordagens essenciais para a grande maioria dos profissionais de sade. A pobreza da informao dos profissionais de sade em ambientes de poucos recursos exacerba o que claramente uma emergncia de sade pblica. Os profissionais de sade bem como as autoridades devem estar no centro dos esforos para resolverem esta crise. A disponibilidade de informaes sobre a sade transmite confiana na tomada da deciso clnica, melhora as competncias prticas e atitudes nos cuidados.

    Informaes sobre a dor e o seu tratamento so cruciais. Todos os profissionais de sade iro tratar doentes que sofrem de dor. A dor o principal motivo para procurar ajuda mdica. Assim, qualquer mdico, enfermeiro ou outro profissional de sade necessita conhecimentos bsicos sobre a fisiopatologia da dor e deve ser capaz de usar, pelo menos, um simples tratamento de primeira linha. Ao contrrio de "tratamento especial da dor", que deve ser reservada para mdicos especialistas com formao ps-graduada especfica em sndromes dolorosas complexas, o conhecimento da "gesto geral da dor" uma obrigao para todos os outros profissionais de sade que devem estar aptos a tratar a maioria dos doentes com dor e sndromes dolorosas comuns. Os editores pretendem que, com a ajuda deste guia o leitor saiba identificar os doentes que sofrem de dor, compreender a natureza da sua dor e a sua influncia na vida do doente, conhecer os mtodos de analgesia que podem oferecer um tratamento eficaz da dor para a maioria dos doentes , saber como aplicar os mtodos e como classific-los em esquemas formados incluindo abordagens no farmacolgicas, e saber como avaliar a eficcia do tratamento da dor. O foco principal do Guia abordar os seguintes quatro sndromes de dor: dor aguda ps-traumtica ps-operatria, dor oncolgica, dor neuroptica, e dor crnica no oncolgica. Os editores entendem as barreiras e as necessidades futuras em matria do bom tratamento da dor. Estas barreiras incluem a falta de formao em dor e a falta de nfase no controle e pesquisa da dor. Alm disso, quando o tratamento da dor se torna numa prioridade governamental, h receios de dependncia de opiides, alto custo de determinadas substncias e, nalguns casos, baixa adeso do doente. Nos pases em desenvolvimento, os recursos disponveis para sade, concentram-se compreensivelmente, na preveno e tratamento de doenas "assassinas". No entanto, algumas dessas condies de doena so acompanhadas por dor no controlada, razo pela qual as questes do controle da dor so to importantes no mundo em desenvolvimento, segundo o Prof. Sir Michael Bond. A OMS recomenda que "uma vez que em muitas partes do mundo, a maioria dos doentes com cancro apresentam x estadio de doena avanada... a nica opo de tratamento realista o alvio da dor e cuidados paliativos." Devido aos recursos limitados

  • ix

    para a sade, a OMS prope ainda que, no futuro, devam ser incentivadas abordagens de tratamento paliativas, em vez de curativas. No entanto, uma triste realidade que os medicamentos que so essenciais para aliviar a dor, muitas vezes no esto disponveis ou acessveis. H inmeros relatos, alguns deles publicados nas principais revistas mdicas e cientficas, sobre os deficits do tratamento adequado da dor, principalmente nos pases em desenvolvimento em todas as regies do mundo. Acredita-se que, com relativamente menor investimento (referindo-se no a esforos para mudar a situao, mas disponibilidade de medicamentos essenciais e tcnicas), a qualidade do tratamento analgsico oncolgico e VIH/SIDA em pases de poucos recursos pode ser consideravelmente melhorada, como documentado por iniciativas locais em todo o mundo. A IASP produziu recentemente um atlas de treino e estruturas para o tratamento da dor nos pases em desenvolvimento. Mais informao sobre este atlas pode ser encontrada no site da IASP (www.iasp-pain.org). Para o especialista em dor nos pases desenvolvidos, esto disponveis informaes detalhadas, mas para o no-especialista em dor e outros profissionais de sade, incluindo enfermeiros e pessoal clnico em muitas outras regies do mundo, que tm de lidar com doentes com dor, no existe um guia bsico ou um manual sobre os mecanismos da dor, gesto e realidades do tratamento. Isto particularmente preocupante nas zonas do mundo onde, fora das principais zonas urbanas, no h acesso a informaes sobre a etiologia ou gesto da dor e no existe acesso a um especialista em dor. A IASP Developing Countries Task Force (agora Developing Countries Working Group) foi fundada para incentivar a educao mdica continuada e ensino clnico em pases com poucos recursos e est a apoiar os esforos locais para aumentar a perceo da dor. O programa de subveno educacional, a " Initiative for Improving Pain Education ", aborda a necessidade de melhoria da educao sobre a dor e seu tratamento nos pases em desenvolvimento, fornecendo bolsas de apoio educativo. Estas bolsas destinam-se a melhorar o alcance e disponibilidade da educao fundamental para os mdicos de dor de todas as especialidades, tendo em conta as necessidades locais especficas. Na sequncia de uma proposta conjunta da University of Nairobi (N. B. Patel) e do Charite University Medicine Berlin (A. Kopf)), a IASP atribuu um dos subsdios para um projeto de livro sobre o tratamento da dor em pases com poucos recursos. O resultado este Guia, que se destina a fornecer de forma concisa e atualizada informaes,

    numa estrutura curricular inovadora para o mdico em pases do mundo em desenvolvimento. Servir tambm faculdades de medicina, sugerindo temas curriculares fundamentais sobre a fisiologia e gesto da dor. Acredita-se que o projeto incentivar escolas de medicina a integrar estes objetivos educacionais nos seus currculos bem como em currculos de enfermagem. Ele ir fornecer ao no-especialista em dor informao base relevante de uma forma que seja facilmente compreendida, sobre a fisiologia da dor e as diferentes abordagens de gesto e tratamento para os diferentes tipos de sndromes dolorosos. Qualquer profissional que lida com problemas de dor deve estar ciente de toda a gama de problemas fisiopatolgicos e psicopatolgicos, comumente encontradas em doentes com dor ,e deve, portanto, ter acesso a uma gama razovel de teraputicas mdicas, fsicas e psicolgicas de forma a evitar a imposio de quaisquer custos adicionais financeiros e pessoais sobre os doentes e a sociedade. O objetivo destes esforos garantir que o controlo da dor recebe alta prioridade, especialmente no tratamento de doentes oncolgicos e de VIH/SIDA, bem como para dor aguda ps-operatria e dor relacionada com uma leso. Portanto, este livro vai incentivar o tratamento de doentes com dor aguda e crnica, percebendo-se a partir da literatura que, mesmo a educao bsica tem um impacto considervel na qualidade do tratamento analgsico para o doente. Os editores agradecem o entusiasmo e esforos investidos pelos autores voluntrios deste Guia, sem os quais este livro no teria sido possvel. Muitos tm conhecimento dos problemas enfrentados pelos prestadores de cuidados de sade no mundo em desenvolvimento. Eles tentaram projetar os seus pensamentos em situaes particulares e definies, tais como: "Posso lidar com o que esperado de mim, trabalhando como mdico, enfermeiro ou profissional de sade num pas em desenvolvimento e enfrentar uma ampla gama de problemas de dor?" Esta questo presumivelmente passou pelas mentes inquietas de muitos profissionais. O objetivo fornecer ao leitor vrias abordagens para a gesto de alguns problemas comuns com o tratamento da dor. E de modo nenhum pretende ser uma referncia definitiva. Os algoritmos de tratamento apresentados so baseados na reviso da literatura disponvel e experincia em clnicas de dor, com uma viso especfica sobre as potenciais limitaes em locais no mundo em desenvolvimento. Em vez de uma abordagem livro com captulos independentes escritos de uma forma sistemtica, o Guia tenta seguir um caminho de aprendizagem orientado para o problema. Pretende-se que todos os Captulos desde a Introduo sejam de fcil compreenso e de grande utilidade para os no-

  • x

    especialistas. A estrutura, incluindo perguntas e respostas, prolas de sabedoria, e relatos ilustrativos de casos, bem como sugestes valiosas da literatura para leitura posterior, ir, esperamos, fazer do Guia um companheiro til e de grande ajuda para o tratamento da dor. Todos os leitores so convidados a contribuir para a melhoria das edies seguintes, enviando os seus comentrios e sugestes aos editores. O Guia tem algumas deficincias. Embora o tratamento da dor tenha sido um tema de crescente interesse desde h pelo menos duas dcadas, os pases em desenvolvimento tm poucas iniciativas nesse sentido, e pouco se sabe sobre as necessidades, caractersticas e modalidades de tratamento no que respeita dor. Cursos de reciclagem, workshops, escolas mdicas e de anestesia geral, conferncias, no tm incorporado o tratamento da dor nos seus programas de treino para estudantes, internos, pessoal clnico e

    enfermeiros. Portanto, o conhecimento local sobre as caractersticas da dor e formas de tratamento escassa, o que tornou difcil para ns, determinar a relevncia de alguns dos tpicos, mas no vai, esperamos, limitar a utilidade do Guia. Os autores, com o seu conhecimento internacional, tm tentado fornecer uma viso ubqua do controle da dor. Os editores esperam que o Guia seja til para os leitores de vrias regies do mundo e para profissionais de sade de vrias especialidades. Dependendo do feedback dos leitores, os editores pretendem produzir um segundo volume, com nfase sobre os termos e normas gerais do bom tratamento da dor, bem como reviso das edies anteriores, e edies noutras lnguas.

    Andreas Kopf, Berlin, Germany Nilesh Patel, Nairobi, Kenya

    Setembro 2009

    Este guia dedicado ao Professor Mohammed Omar Tawfik, Cairo, Egito,

    cuja vida profissional foi dedicada ao ensino e desenvolvimento do tratamento da dor.

    Agradecimento Desde a sua fundao em 1973, a IASP tem consistentemente apoiado a investigao da dor e

    os esforos do seu tratamento nos pases em desenvolvimento. Os editores desejam expressar a sua gratido para com a IASP, que tem apoiado continuamente este projeto com conselhos e reviso do material bem como com uma bolsa de formao que permite a divulgao deste

    Guia para Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos.

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    Autores Participantes

    Comentrios e perguntas aos editores e autores, via e-mail, so bem-vindos

    Oseremen Aisuodionoe-Shadrach, MBBS Department of Surgery University of Abuja Abuja, Nigeria [email protected] Dr Gona Ali Faculty of Medicine University of Sulaymaniyah Sulaymaniyah, Iraq [email protected] Andrew O. Amata, MBBS Department of Anaesthesia and Intensive Care Georgetown Public Hospital Corporation Georgetown, Guyana [email protected] Corrie C. Avenant, MB ChB Fontainebleau, Randburg South Africa [email protected] Justin N. Baker, MD Department of Pediatric Medicine Division of Palliative and End-of-Life-Care St. Jude Childrens Research Hospital Memphis, Tennessee, USA [email protected] Dr Frank Boni Department of Anesthesiology University of Ghana Medical School Accra, Ghana [email protected] Kay Brune, MD Institute of Pharmacology and Toxicology Friedrich-Alexander University of Erlangen-Nurnberg Erlangen, Germany [email protected] Barrie Cassileth, PhD Integrative Medicine Service Memorial Sloan-Kettering Cancer Centre New York, New York, USA [email protected]

    Alfredo Covarrubias-Gomez, MD Vasco De Quiroga 15, Col. Seccion XVI Torelio Guerra, Tlalpan Mexico City 14000, Mexico [email protected] Ferydoun Davatchi, MD Rheumatology Research Center Division of Rheumatology Tehran University for Medical Sciences Tehran, Iran [email protected] Dr Henry Ddungu, MD African Palliative Care Association Kampala, Uganda [email protected] Julia Downing, PhD African Palliative Care Association Kampala, Uganda [email protected] Maged El-Ansary, MD Department of Anesthesiology Al-Azhar University, Cairo, Egypt [email protected] Susan Evans, MD Endometriosis Care Centres of Australia Adelaide, Australia [email protected] Richard C. Fisher, MD Orthopedic Overseas Division Health Volunteers Overseas Washington, DC, USA richard.fi [email protected]

    Arnaud Fumal, MD Neurology and Headache Research Unit University of Liege, Liege, Belgium [email protected]

    Joel Gagnier, ND, MSc, PhD Department of Epidemiology School of Public Health University of Michigan Ann Arbor, Michigan, USA [email protected]

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    Dr Lars Garten Otto Heubner Centre for Pediatric and Adolescent Medicine Charite University Hospitals, Berlin, Germany [email protected] Hans J. Gerbershagen, MD, PhD Department of Anesthesiology Division of Perioperative and Emergency Care University Medical Center Utrecht Utrecht, The Netherlands [email protected] Glenda E. Gray, MD Perinatal HIV Research Unit University of Witwatersrand, Diepkloof, South Africa [email protected] Jyothirmai Gubili, MS Integrative Medicine Service Memorial Sloan-Kettering Cancer Centre New York, New York, USA [email protected] Uriah Guevara-Lopez, MD, MSc Department of Pain Medicine and Palliative Care National Institute of Medical Sciences Mexico City, Mexico [email protected] Maija Haanp, MD, PhD Department of Neurosurgery Helsinki University Hospital, Helsinki, Finland [email protected] Aki Hietaharju, MD, PhD Pain Clinic Department of Neurology and Rehabilitation Tampere University Hospital Tampere, Finland [email protected] Vladimir Hrabal, Dr phil. Department of Medical Psychology University of Ulm, Ulm, Germany [email protected] Sabu Kumar James, MBBS Department of Anaesthesiology University ofGlasgow Glasgow, Scotland United Kingdom [email protected]

    Katarina Jankovic, MD Department of Anesthesiology MP Shah Hospital Nairobi, Kenya [email protected] Thomas Jehser, MD Pain and Palliative Care Department Havelhohe Hospital Berlin, Germany [email protected] Lucia Jerg-Bretzke, PhD Medical Psychology Department of Psychosomatic Medicine and Psychotherapy University of Ulm Ulm, Germany [email protected] David E. Joranson, MSSW Pain & Policy Studies Group University of Wisconsin Carbone Cancer Center School of Medicine and Public Health Madison, Wisconsin, USA [email protected] Javier R. Kane, MD Department of Pediatric Medicine Division of Palliative and End-of-Life Care St. Jude Childrens Research Hospital Memphis, Tennessee, USA [email protected] Paul G. Kioy, MBchB, MMed Department of Medical Physiology University of Nairobi Nairobi, Kenya [email protected] Andreas Kopf, MD Pain Unit, Department of Anesthesiology Charite University Hospitals Berlin, Germany Visiting Professor, Department of Medical Physiology University of Nairobi, Kenya [email protected] Fatima Laher, MBBCh Perinatal HIV Research Unit University of Witwatersrand Diepkloof, South Africa [email protected]

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    Dr Erica Lazarus Perinatal HIV Research Unit University of Witwatersrand Diepkloof, South Africa Christoph Maier, MD Department of Pain Management Clinic for Anesthesiology University Clinic Bergmannsheil Ruhr-University Bochum, Germany [email protected] Angela Mailis-Gagnon, MD Comprehensive Pain Program Toronto Western Hospital Toronto, Ontario, Canada [email protected] Winfried Meissner, MD Department of Internal Medicine University Medical Centre Jena, Germany [email protected] Dr Gaman Mohammed Diabetes Centre Avenue Healthcare, Nairobi, Kenya [email protected] Lutz Moser, MD Department of Radiology Charite University Hospitals Berlin, Germany [email protected] Faith N. Mwangi-Powell, PhD African Palliative Care Association Kampala, Uganda [email protected] Mathew O.B. Olaogun, PT Department of Medical Rehabilitation Obafemi Awolowo University Ife-Ife, Nigeria [email protected] Michael Paech, MBBS, FRCA, FANZCA, FFPMANZCA Division of Anaesthesiology University of Western Australia Crawley, Western Australia, Australia [email protected]

    Nilesh B. Patel, PhD Department of Medical Physiology University of Nairobi, Nairobi, Kenya [email protected] Dilip Pawar, MBBS Department of Anesthesiology All India Institute of Medical Sciences New Delhi, India [email protected] Michael Pfi ngsten, PhD Pain Clinic Department of Anaesthesiology University Medicine Gottingen, Germany michael.pfi [email protected] Richard A. Powell, MA, MSc African Palliative Care Association Kampala, Uganda [email protected] Lukas Radbruch, MD Palliative Care Unit University Hospital Aachen Aachen, Germany [email protected] M.R. Rajagopal, MD Pallium India (Trust) Trivandrum, Kerala, India [email protected] Dr. Raul Ribeiro, MD Department of Oncology International Outreach Program St. Jude Childrens Research Hospital Memphis, Tennesee, USA [email protected] Rainer Sabatowski, MD Interdisciplinary Pain Clinic University Hospital Carl-Gustav Carus Dresden, Germany [email protected] Dr Natalia Samoilova Department of Pain Medicine National Research Centre of Surgery B.V. Petrosky Russian Academy of Medical Science Moscow, Russia [email protected]

  • xiv

    Michael Schfer, MD, PhD Department of Anesthesiology Charite University Hospitals Berlin, Germany [email protected] Barbara Schlisio, MD Department of Anesthesiology University Medical Centre Tubingen, Germany [email protected] Dr Jean Schoenen Headache Research Unit Department of Neurology and GIGA Neurosciences Liege University Liege, Belgium [email protected] Claudia Schulz-Gibbins, Dipl.-Psych. Department of Anesthesiology Charite University Hospitals Berlin, Germany [email protected] Andreas Schwarzer, MD, PhD Department of Pain Management Clinic for Anesthesiology University Clinic Bergmannsheil Ruhr-University Bochum, Germany [email protected] Olaitan A Soyannwo, MB BS, MMed Department of Anesthesia Ibadan College of Medicine Ibadan, Nigeria [email protected] Christoph Stein, MD Department of Anesthesiology Charite University, Berlin, Germany [email protected] Paula Tanabe, RN, PhD Department of Emergency Medicine Institute for Healthcare Studies Northwestern University Chicago, Illinois, USA ptanabe2@nmff .org

    Mohamed Omar Tawfi k, MD, MBBCh (deceased, June 2009) Pain Unit National Cancer Institute Cairo University, Cairo, Egypt Josephine M. Th orp, MRCP, FFARCS Anaesthetic Department, Monklands Hospital Airdrie, Lanarkshire Scotland, United Kingdom [email protected] Knox H. Todd, MD, MPH Department of Emergency Medicine Beth Israel Medical Center New York, New York, USA [email protected] Dr Harald C. Traue Medical Psychology Department of Psychosomatic Medicine and Psychotherapy University of Ulm, Ulm, Germany [email protected] Rolf-Detlef Treede, MD Department of Neurophysiology Faculty of Medicine Mannheim, University of Heidelberg Mannheim, Germany [email protected] Steven Waldman, MD Th e Headache and Pain Centre Leawood, Kansas, USA sdwaldman@ptfi rst.org Wilfried Witte, MA Department of Anaesthesiology Charite University Hospitals Free University of Berlin Berlin, Germany [email protected]

  • Bases

  • Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos, editado por Andreas Kopf e Nilesh B. Patel. IASP, Seattle, 2010. Todos os direitos reservados. Esse material pode ser usado para fins educacionais e de treinamento com a citao adequada da fonte. Proibida a venda ou o uso comercial. A IASP no assume qualquer responsabilidade por qualquer leso e/ou dano a pessoas ou bens por responsabilidade do produto, negligncia, ou por qualquer uso de qualquer mtodo, produto, instruo ou ideias contidos nesse material. Devido aos rpidos avanos das cincias mdicas, o editor recomenda que deve haver verificao independente dos diagnsticos e das doses dos medicamentos. A meno de produtos farmacuticos especficos e de qualquer procedimento mdico no implica endosso ou recomendao dos editores, autores ou da IASP, em detrimento de outros produtos ou procedimentos mdicos no cobertos pelo texto.

    Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

    Captulo 1 Histrico, Definies e Opinies Atuais

    Wilfried White e Christoph Stein

    A experincia dolorosa fundamental e faz parte do

    desenvolvimento cultural de todas as sociedades. Na

    histria da dor, os poderes sobrenaturais tiveram

    um papel to importante quanto os fatores naturais.

    Considerar a dor como o resultado de uma

    comunicao entre os homens e os poderes

    divinos um pressuposto fundamental para muitas

    sociedades. Quanto mais as sociedades se

    distanciam da medicina ocidental, ou medicina

    moderna, mais prevalente essa viso da dor. Por

    outro lado, uma teoria puramente mdica baseada

    em fenmenos naturais independentes dos poderes

    divinos foi desenvolvida h muito tempo.

    Aconteceu muito na China antiga, enquanto que na

    ndia antiga a medicina foi fortemente influenciada

    pelo hindusmo e pelo budismo. A dor sentida no

    corao pressuposto comum dos antigos egpcios.

    Os praticantes da medicina dos tempos faranicos

    acreditavam que a composio dos fluidos corporais

    determinava a sade ou a doena, e no era possvel

    distinguir entre magia e medicina.

    A medicina da Grcia antiga baseou-se fortemente

    em seus predecessores asiticos e egpcios. A

    introduo do conhecimento mdico antigo na

    Europa medieval foi mediada principalmente pela

    medicina rabe que tambm deu suas contribuies.

    O latim era o idioma dos cultos na Europa medieval

    e a ideologia era orientada pelas crenas judico-

    crists. Apesar das vrias adaptaes, a teoria

    mdica permaneceu submetida aos modelos antigos

    por sculos. A dor tinha um papel importante. A

    bblia ilustra a necessidade de suportar catstrofes e

    dor na histria de J. A fora da f provada pela

    humildade de J com relao a Deus. A humildade

    ainda um ideal do cristianismo at hoje. No Novo

    Testamento, Jesus Cristo encerra sua vida na terra

    como um mrtir, pregado e morto na cruz. Seu

    sofrimento marca o caminho para Deus.

    necessrio suportar o sofrimento na vida para ser

    absolvido dos pecados. A mensagem da dor

    mostrar humanidade a insuficincia da vida na

    terra e a maravilha de estar no paraso. Portanto, o

    que quer que a cincia diga sobre a dor, uma

    abordagem baseada apenas no conceito fisiolgico

    no leva em considerao o significado religioso ou

    espiritual da dor.

    A teoria cientfica mais importante e radicalmente

    mecnica da dor no incio da idade moderna vem do

    filsofo francs Ren Descartes (1596-1650). Em

    seu conceito, o antigo pressuposto de que a dor era

    representada no corao foi abandonado. O crebro

    assumiu o lugar do corao. Apesar (ou por causa)

    de sua parcialidade, a teoria de Descartes abriu as

    portas para que a neurocincia explicasse os

    mecanismos da dor.

    A pergunta de como a dor deve ser tratada teve

    respostas diferentes ao longo do tempo. Se os

    poderes sobrenaturais tinham que ser agradados

  • 2 para a dor desaparecer, era preciso realizar certos

    rituais mgicos. Se os remdios inventados pela

    cincia no eram utilizados ou no estavam

    disponveis, era preciso usar ingredientes de plantas

    ou animais para aliviar a dor. Principalmente, o

    conhecimento dos efeitos analgsicos das sementes

    de papoula era amplamente divulgado nas

    sociedades antigas como o Egito. O pio foi usado

    por muito tempo em vrias preparaes, mas seus

    constituintes qumicos eram desconhecidos. O

    isolamento da morfina, um alcalide do pio, foi

    realizado pela primeira vez em 1803 pelo

    farmacutico alemo Friedrich Wilhelm Sertrner

    (1783-1806). A produo industrial da morfina

    comeou na Alemanha durante a dcada de 1820 e

    nos Estados Unidos na dcada de 1830. Durante o

    final do sculo XVIII e meados do sculo XIX, as

    cincias naturais assumiram a liderana da medicina

    ocidental. Esse perodo marcou o incio da era das

    teorias fisiopatolgicas da dor e o conhecimento

    cientfico da dor avanou passo a passo.

    A descoberta de medicamentos e gases mdicos foi

    um marco para a medicina moderna porque

    possibilitou melhoras no tratamento mdico.

    Particularmente, foi a anestesia moderna que

    promoveu o desenvolvimento da cirurgia. A

    anestesia geral com ter foi introduzida com sucesso

    em Boston em 16 de outubro de 1846 pelo mdico

    William Thomas Morton (1819-1868). A

    importncia de sua descoberta, no apenas para a

    cirurgia, mas tambm para o entendimento

    cientfico da dor em geral, destacada pela inscrio

    em seu tmulo: Inventor e Revelador da Anestesia

    Inalatria: Antes de Quem, em Todos os Tempos,

    Cirurgia era Agonia; Por Quem, a Dor da Cirurgia

    foi Impedida e Anulada; Desde Quem, a Cincia

    Tem o Controle da Dor. Essa frase sugere que a

    dor desapareceria da face da terra apenas pela

    aplicao da anestesia. A prpria cirurgia mudou

    para procedimentos que no estavam

    necessariamente ligados a um alto nvel de dor.

    Portanto, o papel da cirurgia mudou. Os cirurgies

    tinham mais tempo para fazer os procedimentos e

    os pacientes no eram mais obrigados a sentir dor

    nas mos dos cirurgies.

    Seguiram-se outras inovaes. Um ano depois, em

    1847, o clorofrmio foi usado pela primeira vez

    para anestesia ginecolgica pelo mdico escocs

    James Young Simpson (1811-1879). Em Viena, o

    mdico Carl Koller (1857-1944) descobriu as

    propriedades anestsicas da cocana em 1884. Mais

    ou menos na mesma poca, durante as duas ltimas

    dcadas do sculo XIX, o neurologista norte-

    americano James Leonard Corning (1855-1923) e o

    cirurgio alemo August Bier (1861-1949)

    realizaram estudos de raquianestesia com solues

    de cocana. A anestesia moderna possibilitou

    procedimentos cirrgicos mais longos e complexos

    com desfechos de longo prazo bem sucedidos. Esse

    avano promoveu o consenso geral de que a dor

    somtica era boa, mas era secundria terapia

    curativa: no era possvel tratar a dor sem cirurgia!

    Portanto, no mbito da prtica anestsica, o

    tratamento da dor como meta teraputica no

    existia na poca. A dor crnica no era importante.

    As primeiras dcadas do uso da morfina podem ser

    vistas como um perodo de altas expectativas e

    otimismo com relao capacidade de controlar a

    dor. O primeiro obstculo a esse otimismo foi a

    descoberta feita durante a Guerra Civil Americana

    (1861-1865), quando apareceram casos de

    dependncia e abuso da morfina. Como

    consequncia, comearam as restries quanto

    distribuio de opiceos. A viso negativa do uso da

    morfina foi aumentada por experincias na sia,

    onde um extenso comrcio de pio e morfina para

    fins no mdicos j estava estabelecido no sculo

    XIX. Portanto, no incio do sculo XX, a ansiedade

    social com relao ao uso da morfina se fortaleceu e

    se transformou em opiofobia (isto , medo de usar

    opiides), que foi um importante passo atrs para o

    tratamento da dor nas dcadas seguintes.

    As guerras estimularam a pesquisa sobre a dor

    porque os soldados voltavam para casa com

    sndromes dolorosas complexas que causavam

    problemas intransponveis para o repertrio

    teraputico disponvel. Aps sua experincia em

    1915 durante a Primeira Guerra Mundial, o

    cirurgio francs Ren Leriche (1879-1955)

    comeou a se concentrar na cirurgia da dor,

    abordando principalmente o sistema nervoso

    autnomo. Leriche aplicou mtodos de anestesia

    regional (infiltrao com procana, bloqueio

    ganglionar simptico) alm de cirurgia,

    principalmente simpatectomia periarterial. Ele no

    apenas rejeitou a ideia da dor como um mal

    necessrio, mas tambm criticou a abordagem

    cientfica reducionista de que a dor experimental era

  • 3 um fenmeno puramente neurocientfico. Ele via a

    dor crnica como uma doena por si s (douleur-

    maladie), no apenas um sintoma de doena.

    A anestesia regional foi o esteio da terapia da dor

    aplicada pelo cirurgio francs Victor Pauchet

    (1869-1936). Antes de suas experincias durante a

    guerra, ele j havia lanado a primeira edio de seu

    compndio LAnesthsie Regionale (Anestesia

    Regional), em 1912. Atravs de Louis Gaston Labat

    (1876-1934), um cirurgio parisiense que depois

    exerceu a medicina nos Estados Unidos, sua

    sabedoria ficou conhecida em todo o Novo Mundo

    e foi um estmulo importante para a disseminao

    da anestesia regional nos Estados Unidos entre as

    duas Grandes Guerras. Na dcada de 1920, a noo

    de que a anestesia regional poderia ser usada no

    apenas para cirurgias, mas tambm para dor crnica

    espalhou-se por todos os Estados Unidos.

    Aps a Segunda Guerra Mundial essas ideias foram

    retomadas por John Joseph Bonica (1914-1994), que

    havia emigrado com seus pais da Siclia para os

    Estados Unidos com 11 anos de idade. Como

    cirurgio do exrcito com a responsabilidade de

    administrar anestesia, ele notou que os cuidados

    para os soldados feridos eram inadequados. Os

    pacientes ficavam sozinhos com sua dor aps a

    cirurgia. Bonica observou que a dor se tornava

    crnica com frequncia e que muitos desses

    pacientes foram vtimas de abuso de lcool ou de

    distrbios depressivos. A resposta de Bonica a esse

    problema, que tambm afetava outros pacientes

    com dor, foi estabelecer clnicas de dor onde

    mdicos de diferentes disciplinas, psiclogos e

    outros terapeutas trabalham em equipe para

    entender a complexidade da dor crnica e trat-la

    adequadamente. A anestesiologia continuou sendo a

    especialidade de Bonica. Havia apenas poucas

    clnicas de dor nos Estados Unidos quando ele

    publicou a primeira edio de seu compndio Pain

    Management (Tratamento da Dor) em 1953. Esse

    marco pode ser considerado a data de nascimento

    de uma nova disciplina mdica.

    No entanto, passaram-se muitos anos at que um

    grupo maior se interessasse pela terapia da dor. Em

    1973, para tornar esse tpico mais popular, Bonica

    fundou a Associao Internacional para o Estudo da

    Dor (IASP). Nos anos seguintes, foram fundados

    captulos nacionais da IASP em todo o mundo. Em

    1979, a IASP cunhou a importante definio da dor

    como uma experincia sensorial e emocional

    desagradvel associada a dano real ou potencial de

    tecidos ou descrita em termos de tal dano, que

    ainda vlida. Essa definio foi importante porque

    pela primeira vez ficou implcito que dor nem

    sempre uma consequncia de dano tecidual, e

    pode ocorrer sem ele. A cincia ocidental ento

    comeou a perceber que fatores somticos (dano

    tecidual) no podem ser separados de fatores

    psicolgicos (aprendizado, lembrana, a alma e

    processos afetivos). Junto com o reconhecimento

    das influncias sociais na perceo dolorosa, esses

    fatores formam o ncleo do conceito biopsicolgico

    da dor.

    Vrias teorias da dor surgiram durante o sculo XX.

    A mais importante tambm aceita por Bonica

    do psiclogo canadense Ronald Melzack (1929-) e

    do psiclogo britnico Patrick D. Wall (1925-2001).

    Sua teoria foi publicada em 1965 e conhecida

    como a teoria de controle da porta da dor. O

    termo porta foi adotado para descrever os

    mecanismos da medula espinhal que regulam a

    transmisso dos impulsos dolorosos entre a periferia

    e o crebro. Essa teoria foi importante porque no

    mais considerava o sistema nervoso central como

    um simples meio passivo de transmisso de sinais

    nervosos. Implicava que o sistema nervoso central

    alterava ativamente a transmisso dos impulsos

    nervosos. No entanto, a teoria de controle da porta

    da dor enfatizava uma viso estritamente

    neurofisiolgica da dor, ignorando os fatores

    psicolgicos e as influncias culturais.

    A etnologia mdica leva em considerao as

    influncias culturais na perceo e expresso da dor.

    O estudo mais importante foi publicado em 1952 e

    foi financiado pelo Servio de Sade Pblica dos

    Estados Unidos. Baseados nas entrevistas com

    aproximadamente cem veteranos das duas Guerras

    Mundiais e da Guerra da Coreia, que estavam

    internados em um Hospital de Veteranos no Bronx,

    cidade de Nova Iorque, os pesquisadores

    verificaram como diferentes antecedentes culturais

    influenciam a perceo da dor. Os veteranos foram

    divididos em pessoas de origem italiana, irlandesa

    ou judia alm do grupo de Velhos Americanos,

    composto de norte-americanos de nascimento,

    caucasianos e a maioria de religio protestante. Um

    resultado dessa pesquisa foi que os Velhos

    Americanos tiveram o maior estoicismo na

  • 4 experincia dolorosa e sua atitude com relao dor

    foi caracterizada como ansiedade orientada para o

    futuro. De acordo com a interpretao dos

    pesquisadores, essa ansiedade demonstrou uma

    tentativa de estar consciente de sua prpria sade.

    Quanto mais os imigrantes italianos, irlandeses ou

    judeus eram assimilados pelo modo de vida

    americano, mais os seus comportamentos e atitudes

    se aproximavam daqueles dos Velhos

    Americanos. No entanto, a dor ainda era vista

    como apenas um sintoma e as culturas no

    ocidentais no eram foco de interesse.

    Foi preciso cerca de mais trs dcadas para mudar

    essa situao. Durante a dcada de 1990, estudos

    demonstraram que atitudes e crenas diferentes em

    grupos tnicos diferentes de todo o mundo tinham

    um papel na variao de intensidade, durao e

    perceo subjetiva da dor. Como consequncia, os

    profissionais de sade tiveram que admitir que os

    pacientes com dor (crnica) admiram terapeutas que

    reconhecem suas crenas culturais e religiosas.

    Outro aspeto importante que atraiu o interesse foi o

    alvio da dor em pacientes com doena avanada.

    Foi a enfermeira, assistente social, e depois mdica

    Cicely Saunders (1918-2005) que desenvolveu o

    conceito de dor total. A dor crnica na doena

    avanada muda totalmente a vida cotidiana e pe

    em cheque a vontade de viver. Esse problema est

    sempre presente, ento Saunders chegou

    concluso de que a dor constante precisa de

    controle constante. De acordo com esse conceito,

    a dor no pode ser separada da personalidade e do

    ambiente do paciente com doena avanada e fatal.

    A fundao do St. Christophers Hospice em Londres,

    Inglaterra, em 1967 por Saunders pode ser

    considerada o ponto de partida da medicina

    paliativa. Reflete uma mudana de interesse da

    medicina de doenas agudas (infeciosas) para cncer

    e outras doenas crnicas na primeira metade do

    sculo XX. O termo cuidados paliativos (ou

    terapia paliativa) vem da palavra latina pallium

    (coberta, casaco) e tem como objetivo aliviar a

    ltima fase da vida se a terapia curativa j no for

    mais possvel. Os cuidados paliativos, a priori, so

    dirigidos para a qualidade de vida. Suas razes esto

    nas sociedades no crists, mas so vistos

    principalmente como vindos das instituies

    medievais de cuidados paliativos. No entanto, os

    antecedentes histricos dessas instituies no eram

    iguais em todos os pases europeus nem o sentido

    da palavra pallium; s vezes ela era usada por

    curandeiros para disfarar sua incapacidade de tratar

    curativamente os pacientes.

    Os cuidados paliativos se tornaram ainda mais

    importantes quando outra pandemia totalmente

    inesperada irrompeu em meados da dcada de 1980

    HIV/AIDS. Principalmente na frica, essa nova

    praga se transformou em um enorme problema

    de sade que j no podia mais ser ignorado. Cncer

    e dor neuroptica tm um papel importante na vida

    de pacientes com HIV/AIDS. O desenvolvimento

    da medicina paliativa na frica comeou no

    Zimbbue em 1979, seguido pela frica do Sul em

    1982, pelo Qunia em 1989 e por Uganda em 1993.

    As instituies de Uganda se tornaram modelos na

    dcada de 1990, a partir da iniciativa da mdica

    Anne Marriman (1935-) que passou a maior parte de

    sua vida na sia e na frica. Uganda tinha um

    ambiente favorvel para seu projeto Hospice Africa

    Uganda porque na poca Uganda era o nico pas

    africano cujo governo havia declarado os cuidados

    paliativos para vtimas de cncer e AIDS uma

    prioridade do seu Plano Nacional de Sade. A

    taxa de tratamento curativo de cncer em Uganda

    baixa, assim como em quase todos os pases em

    desvantagem econmica. Essa situao torna os

    problemas associados ao cncer e AIDS ainda

    mais urgentes.

    A ampla aceitao do tratamento da dor crnica no

    sculo XX exigiu que a Organizao Mundial de

    Sade (OMS) assumisse a liderana, estimulada por

    Jan Stjernswrd da Sucia (1936-). Em 1982,

    Stjernswrd convidou um grupo de especialistas em

    dor, inclusive Bonica, para ir a Milo, Itlia,

    desenvolver medidas para a integrao do

    tratamento da dor ao conhecimento comum e

    prtica mdica. O cncer foi escolhido como ponto

    de partida. Naquela poca, os especialistas estavam

    preocupados com a crescente lacuna entre pesquisa

    bem-sucedida sobre dor, de um lado, e

    disponibilidade cada vez menor de opiides para os

    pacientes, principalmente de cncer, de outro.

    Houve uma segunda reunio em Genebra em 1984.

    Como resultado, foi publicada a brochura Cancer

    Pain Relief (Alvio da Dor Oncolgica) em 1986. Ao

    distribuir essa brochura, a OMS fechou a lacuna por

    obrigar os sistemas de sade a usarem opiides de

    acordo com a hoje amplamente conhecida escada

  • 5 analgsica de trs degraus. Infelizmente, o sucesso

    dessa iniciativa no foi igual em diferentes regies

    do mundo. Embora a disponibilidade e o consumo

    de opiides tenha se multiplicado nos pases anglo-

    americanos e na Europa Ocidental, outras regies

    do mundo observaram apenas pequenos aumentos

    ou at diminuio no nmero de prescries de

    opiides. preciso dizer, porm, que nos pases

    anglo-americanos e na Europa Ocidental, o acesso

    facilitado aos opiides promoveu um aumento do

    uso de opiides para pacientes com dor no

    oncolgica tambm. Esse uso pode ser justificado

    em casos de dor inflamatria neuroptica ou

    crnica, mas deve ser considerado uma aplicao

    errada em outras sndromes dolorosas no

    oncolgicas. Os opiides no devem ser usados

    como a panaceia (um remdio para todos os males),

    e a prtica atual em alguns pases pode ameaar a

    disponibilidade de opiides no futuro se as

    autoridades de sade decidirem intervir e restringir

    o uso de opiides ainda mais do que hoje.

    Em concluso, o entendimento da dor como um

    importante problema de sade progrediu bastante.

    Dos tempos antigos, quando a dor costumava ser

    vista como parte inevitvel da vida, que os homens

    s podiam influenciar parcialmente devido sua

    etiologia presumivelmente sobrenatural, foi

    desenvolvido um conceito fisiolgico onde o

    controle da dor agora possvel. Nas ltimas

    dcadas, o conceito de cincia natural foi revisto e

    expandido pela aceitao da influncia de fatores

    etno-culturais. Embora a pesquisa bsica tenha

    ajudado a desvendar os complexos mecanismos da

    dor e facilitado o desenvolvimento de novas

    estratgias para o tratamento da dor, os velhos

    opiides ainda so o esteio do tratamento da dor

    aguda, da dor oncolgica e da dor neuroptica.

    Embora a compreenso e o tratamento de outras

    dores no oncolgicas ainda sejam necessrios, a

    dor oncolgica, a dor aguda e a dor neuroptica

    podem ser aliviadas em um grande nmero de

    pacientes com algoritmos fceis de tratamento e

    analgsicos opiides e no opiides simples.

    Portanto, o futuro do tratamento da dor em

    ambientes com muitos e poucos recursos vai

    depender do acesso aos opiides e da integrao dos

    cuidados paliativos como uma prioridade dos

    sistemas de sade. O livro Tratamento da Dor em

    Instituies com Poucos Recursos pretende contribuir

    para essa meta em instituies onde o baixo

    financiamento dos sistemas de sade destaca a

    importncia do tratamento da dor nos cuidados

    paliativos.

    Referncias

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    palliativen Krankheitsbehandlung in der vormodernen Medizin (ca. 15001850). Medizinhist J 2007;42:729.

  • 6

    Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

    Captulo 2 Obstculos ao Tratamento da Dor em Contextos de

    Poucos Recursos

    Olaitan A Soyannwo

    Por que o tratamento eficaz da dor difcil em pases com poucos recursos?

    As economias de baixa e mdia renda do mundo

    so s vezes chamadas de pases em

    desenvolvimento, embora haja grandes diferenas

    em sua situao econmica e de desenvolvimento,

    na poltica, na populao e na cultura. No entanto, a

    pobreza um fator comum na situao da sade de

    pases com poucos recursos e a principal

    determinante das doenas, porque a maior parte da

    populao vive com menos do que US$ 1 por dia

    (abaixo da linha da misria). Desnutrio,

    infeces e doenas parasticas so prevalentes com

    altas taxas de morbidade e mortalidade,

    principalmente nas reas rurais e entre mulheres

    grvidas e crianas. A maioria dos pases, portanto,

    define e implementa um pacote essencial de sade

    (PES) que o pacote mnimo econmico de sade

    pblica e de intervenes clnicas para lidar com

    fontes importantes de doenas.

    Essas prioridades de sade foram abordadas na

    2000 United Nations Millennium Development Goals

    (MDG) (Metas de Desenvolvimento para o Milnio

    das Naes Unidas, 2000), que enfatizou a

    erradicao da pobreza e da fome, educao

    primria universal, igualdade de sexos, reduo da

    mortalidade infantil, melhora da sade materna,

    combate ao HIV/AIDS, malria e outras doenas

    graves, sustentabilidade ambiental, e parceria global

    para o desenvolvimento. Embora doenas

    contagiosas sejam a nfase, nota-se agora uma

    transio da epidemiologia das doenas medida

    que doenas no contagiosas, leses e violncia so

    to importantes quanto as doenas contagiosas

    como causa de morte e incapacidade. Muitas dessas

    condies vm acompanhadas de dor (aguda e

    crnica), que abordada e tratada inadequadamente.

    Embora haja consenso de que sistemas mais slidos

    de sade sejam o segredo para obter melhores

    resultados de sade, existe menos concordncia

    sobre como fortalec-los. Em pases onde a renda

    mdia est abaixo da linha da misria, existe

    pouca prioridade especfica para a dor, j que muitas

    pessoas se concentram em trabalhar para ter renda,

    independentemente de qualquer problema de dor.

    O tratamento da dor um problema em pases com poucos recursos?

    A dor o problema mais comum que leva os

    pacientes a procurar os profissionais de sade em

    pases com poucos recursos. Em um estudo da

    OMS, a dor persistente foi um problema de sade

    informado com frequncia pelos pacientes de

    cuidados primrios e foi consistentemente associada

    a distrbios psicolgicos. A dor aguda ou crnica,

  • 7 oncolgica ou no, subtratada, e os analgsicos

    podem at no estar disponveis em hospitais rurais.

    Como os pacientes lidam com seus problemas de dor?

    Em geral, a primeira tentativa de tratar a dor desses

    pacientes recorrer a remdios caseiros, inclusive

    fitoterpicos e remdios sem prescrio mdica

    (RSP). Eles podem ser simples analgsicos,

    fitoterpicos ou medicamentos complementares. A

    automedicao e as recomendaes de terceiros

    (amigos, parentes, outros pacientes, fornecedores de

    medicamentos e mdicos tradicionais) so comuns.

    Tais recomendaes podem ser eficazes para dor

    simples, sem complicaes, mas quando a dor

    forte ou persistente os pacientes vo ao hospital

    como ltimo recurso. No hospital, a maioria dos

    problemas de dor tratada pelo clnico geral,

    mdico de famlia ou especialistas de primeira linha

    como cirurgies ortopdicos, neurologistas e

    oncologistas. Os especialistas em tratamento da dor

    e os clnicos dedicados dor ou equipes de dor

    aguda so poucos e s vezes no existem em pases

    com poucos recursos. Portanto, embora o alvio da

    dor seja parte do direito fundamental ao mais alto

    padro possvel de sade, esse alvo difcil de

    atingir em pases com poucos recursos, onde a

    maior parte da populao vive na zona rural.

    Frequentemente, o servio de sade prestado por

    uma rede de pequenas clnicas algumas sem

    mdicos ou analgsicos essenciais. Mesmo quando

    existem mdicos, por exemplo para cirurgias, os

    pacientes aguardam a dor como parte inevitvel da

    interveno cirrgica e, apesar da alta incidncia de

    dor relatada, ainda classificam o alvio da dor

    como satisfatrio.

    Por que difcil tratar adequadamente a dor?

    Falta de conhecimento

    A falta de conhecimento entre os profissionais de

    sade em pases com poucos recursos um dos

    principais obstculos para o tratamento eficaz da

    dor. A avaliao abrangente da dor e os mtodos

    multimodais de tratamento no so bem entendidos

    porque a dor costuma ser ensinada como um

    sintoma da doena e no como uma experincia

    com dimenses fsicas, psicossociais e outras. A

    falta de treinamento e os mitos podem levar a

    medos descabidos dos efeitos adversos de

    analgsicos opiides e a crenas errneas sobre o

    risco de dependncia, mesmo em pacientes

    oncolgicos. Os pacientes tambm podem no

    entender seus prprios problemas mdicos, e

    podem esperar a dor, que eles acham que deve ser

    suportada como parte inevitvel de sua doena.

    Assim, a educao adequada essencial para todos

    os profissionais de sade envolvidos com o

    tratamento da dor, e uma equipe multidisciplinar

    essencial para o tratamento bem sucedido da dor. A

    dor deveria ser includa nos currculos e nos exames

    de estudantes graduados ou ps-graduados em

    cuidados de sade, e tambm incorporada a

    programas de educao continuada. Vrias

    organizaes produziram pacotes, protocolos e

    diretrizes educacionais abrangentes para a prtica

    clnica, inclusive a IASP (www.iasp-pain.org). No

    entanto, esses itens precisam ser adaptados para

    serem econmicos e culturalmente adequados.

    Atitudes inadequadas dos profissionais de

    sade

    Em geral, os pacientes no recebem os analgsicos

    adequados quando prescritos porque os

    profissionais de sade que deveriam administr-los

    esto muito ocupados, no esto interessados, ou se

    recusam a acreditar nas queixas do paciente.

    Recursos inadequados

    Devido ao pessoal, equipamentos e restries

    financeiras, as instalaes para os servios de dor

    so manifestamente inadequadas ou no existentes

    em vrios pases em desenvolvimento. Recursos

    inadequados impedem a organizao de equipes de

    dor aguda e de clnicas de dor crnica, que so

    largamente utilizadas em pases desenvolvidos para

    oferecer controle eficaz da dor atravs de mtodos

    baseados em evidncias, educao, aconselhamento

    sobre difceis problemas de dor, e pesquisa. No

    mundo em desenvolvimento, as melhoras no

    tratamento da dor aguda so mais provavelmente

    resultado de programas eficazes de treinamento, do

    uso de analgesia multimodal e do acesso a

    suprimento confivel de medicamentos.

  • 8

    Falta de analgsicos opiides

    A dor moderada ou grave precisa ser tratada com

    analgsicos opiides, conforme proposto pela

    escada analgsica da OMS, que tambm foi adotada

    pela Federao Mundial de Sociedades de

    Anestesiologistas (WFSA). Infelizmente, em vrios

    pases com poucos recursos, os medos (opiofobia),

    as preocupaes e os mitos sobre o uso de opiides

    se concentram mais em tolerncia, dependncia e

    vcio, que em geral no deveriam impedir o uso

    mdico adequado de opiides. Em 1996, o

    International Narcotics Control Board (INCB) (Agncia

    Internacional de Controle de Narcticos) fez

    recomendaes que levaram publicao das

    diretrizes da OMS Achieving Balance in National

    Opioid Control Policy (2000) (Como Obter Equilbrio

    na Poltica Nacional de Controle de Opiides). O

    manual explica a razo e a urgncia do uso de

    analgsicos opiides.

    Falta de prioridade do governo

    As polticas nacionais so a pedra angular para a

    implementao de qualquer programa de sade, e

    tais polticas no existem em vrios pases com

    poucos recursos. S possvel tratar eficazmente a

    dor se o governo incluir o alvio da dor no plano

    nacional de sade. Os fazedores de polticas e os

    legisladores precisam garantir que as leis e os

    regulamentos nacionais, embora controlando o uso

    de opiides, no restrinjam a prescrio em prejuzo

    dos pacientes necessitados. A estratgia de sade

    pblica, que teve como pioneiros os cuidados

    paliativos, a melhor para transformar novos

    conhecimentos e aptides em intervenes baseadas

    em evidncias e econmicas que possam atingir

    toda a populao.

    Concluso

    A dor no tratada causa muito sofrimento aos

    indivduos afetados, sejam ricos ou pobres.

    Portanto, todos os esforos devem ser feitos para

    promover o tratamento eficaz da dor, mesmo para

    pessoas que vivem abaixo da linha da misria.

    Referncias

    [1] Charlton E. The management of postoperative pain. Update Anaesth 1997;7:17. [2] Gureje O, Von Korff M, Simon GE, Gater R. Persistent pain and wellbeing: a World Health Organization study in primary health care. JAMA 1998;280:14751. [3] Size M, Soyannwo OA, Justins DM. Pain management in developing countries. Anaesthesia 2007;62:3843. [4] Soyannwo OA. Postoperative pain controlprescription pattern and patient experience. West Afr J Med 1999;18:20710. [5] Stjernsward J, Foley KM, Ferris FD. The public health strategy for palliative care. J Pain Symptom Manage 2007;33:48693. [6] Travis P, Bennett S, Haines A, Pang T, Bhutta Z, Hyder AA, Pielemeier NR, Mills A, Evans T. Overcoming health-systems constraints to achieve the Millennium Development Goals. Lancet 2004;364:9006. [7] Trenk J. The public/private mix and human resources for health. Health Policy Plan 1993;8:31526. [8] World Health Organization. Cancer pain relief: with a guide to opioid availability. 2nd ed. Geneva: World Health Organization; 1996. p. 1336.

    Stios na Web

    www.medsch.wisc.edu/painpolicy/publicat/oowhoabi.htm (INCB Guidelines)

  • 9

    Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

    Captulo 3 Fisiologia da Dor

    Nilesh B. Patel

    A dor no apenas uma sensao desagradvel, mas

    tambm uma modalidade sensorial complexa

    essencial sobrevivncia. Existem casos raros de

    pessoas sem sensao de dor. Um caso referido com

    frequncia o de F.C., que no apresentava uma

    resposta normal de dor face a danos tecidulares.

    Mordia repetidamente a ponta da lngua, queimava-

    se, no mudava de posio na cama nem transferia o

    peso do corpo quando estava de p e no

    demonstrava uma resposta autnoma aos estmulos

    dolorosos. Morreu aos 29 anos.

    O mecanismo do sistema nervoso de

    deteo de estmulos com potencial para causar

    leses nos tecidos muito importante para

    desencadear respostas comportamentais que

    protegem o organismo de danos atuais ou

    posteriores nos tecidos. Estas consistem em reaes

    reflexas e tambm em aes preventivas contra

    estmulos que podem causar danos nos tecidos

    como, por exemplo, foras mecnicas fortes,

    temperaturas extremas, falta de oxignio e

    exposio a determinados qumicos.

    Este captulo refere-se aos recetores

    neuronais que respondem a vrios estmulos

    dolorosos, a substncias que estimulam

    nociceptores, s vias nervosas e modulao da

    perceo da dor. O termo nocicepo (em latim nocere,

    doer) refere-se ao processo sensorial

    desencadeado, e dor refere-se perceo de um

    sentimento ou sensao que a pessoa designa como

    dor e descreve variavelmente como irritativa,

    dolorosa, pungente, persistente, pulstil ou

    intolervel. Ambos estes aspetos, a nocicepo e a

    dor, so separados e, tal como descrito na

    abordagem da modulao da dor, uma pessoa com

    leses tecidulares que deveriam produzir sensaes

    dolorosas pode no apresentar qualquer

    comportamento que indique dor. A nocicepo

    pode levar dor, a qual pode aparecer e

    desaparecer, e uma pessoa pode ter uma sensao

    de dor sem atividade nociceptiva evidente. Estes

    aspetos so abrangidos na definio da IASP:

    Experincia sensorial e emocional desagradvel

    associada a danos nos tecidos, efetivos ou

    potenciais, ou descrita em funo desses mesmos

    danos.

    Fisiologia da dor

    Nociceptores e a transduo dos estmulos dolorosos O sistema nervoso para a nocicepo que avisa o

    crebro quanto a estmulos sensoriais nocivos

    separado do sistema nervoso que informa o crebro

    quanto a estmulos sensoriais incuos.

    Os nociceptores so terminaes nervosas

    livres no especializadas, no mielinizadas que

    convertem (transduzem) uma variedade de

    estmulos em impulsos nervosos que o crebro

    interpreta para produzir a sensao de dor. Os

    corpos celulares dessas terminaes nervosas

    situam-se nos gnglios raquidianos, ou no caso do

    nervo trigeminal nos gnglios trigeminais, e enviam

    uma ramificao de fibra nervosa para a periferia e

    outra para a medula espinhal ou tronco cerebral.

  • 10 A classificao do nociceptor baseia-se na

    classificao da fibra nervosa que constitui a

    terminao nervosa desse nociceptor. Existem dois

    tipos de fibras nervosas: (1) nervos de pequeno

    dimetro, no mielinizados, que conduzem

    lentamente o impulso nervoso (2 m/seg. = 7,2

    km/h), designados fibras C, e (2) nervos de maior

    dimetro, ligeiramente mielinizados, que conduzem

    impulsos nervosos mais rapidamente (20 m/seg. =

    72 km/h) designados fibras A. Os nociceptores de

    fibra C respondem de forma polimodal aos

    estmulos trmicos, mecnicos e qumicos; e os

    nociceptores de fibra A so de dois tipos e

    respondem aos estmulos mecnicos e

    mecanotrmicos. amplamente conhecido o facto

    de que a sensao de dor constituda por duas

    categorias uma dor inicial rpida e aguda

    (epicrtica) e uma dor lenta mais retardada,

    moderada, de longa durao (protoptica). Este

    padro explica-se pela diferena na velocidade de

    propagao dos impulsos nervosos nos dois tipos

    de fibras nervosas descritos acima. Os impulsos

    neuronais em nociceptores de fibra A de rpida

    conduo produzem uma sensao de dor aguda e

    rpida, enquanto os nociceptores de fibra C, mais

    lentos, produzem uma sensao de dor moderada e

    retardada.

    A ativao perifrica dos nociceptores

    (transduo) modulada por uma srie de

    substncias qumicas que so produzidas ou

    libertadas quando existe leso celular(Tabela 1).

    Estes mediadores influenciam o grau de atividade

    nervosa e, por conseguinte, a intensidade da

    sensao de dor. A estimulao repetida causa

    normalmente uma sensibilizao das fibras nervosas

    perifricas, causando a reduo dos limiares de dor e

    dor espontnea, um mecanismo que pode ser

    sentido sob a forma de hipersensibilidade cutnea,

    por exemplo, em zonas da pele que sofreram

    queimaduras solares.

    Para alm disto, a libertao local de

    qumicos, como a substncia P, causa vasodilatao

    e a tumefao, bem como a libertao de histamina

    pelos mastcitos, aumentando ainda mais a

    vasodilatao. Esta complexa sinalizao qumica

    protege a zona lesionada, produzindo

    comportamentos que mantm essa rea afastada de

    estmulos mecnicos ou outros.

    A promoo da cura e a proteo contra a infeo

    so auxiliadas pelo maior fluxo sanguneo e pela

    inflamao (funo protetora da dor).

    Tabela 1

    Substncias qumicas selecionadas libertadas com estmulos suficientes para causar leses nos tecidos

    Substncia Fonte

    Potssio Clulas danificadas

    Serotonina Plaquetas

    Bradicinina Plasma

    Histamina Mastcitos

    Prostaglandinas Clulas danificadas

    Leucotrienos Clulas danificadas

    Substncia P Aferentes nervosos primrios

    A hipersensibilidade pode ser diagnosticada

    analisando o historial e atravs de um exame

    rigoroso. Podem ser distinguidas determinadas

    condies:

    a) Alodinia: dor provocada por um estmulo

    que normalmente no provoca dor, por ex. dor

    provocada pelo toque de uma pea de vesturio em

    doentes com nevralgia ps-herptica.

    b) Disestesia: sensao incmoda e anormal,

    seja espontnea ou evocada. (Nota: uma disestesia

    deve ser sempre incmoda, ao passo que a

    parestesia no o deve ser; por ex., em doentes com

    polineuropatia diabtica ou carncia de vitamina B1.)

    c) Hiperalgesia: resposta aumentada a um

    estmulo que normalmente doloroso. (Nota: a

    hiperalgesia reflete dor aumentada mediante

    estimulao supra-limiar; por ex., em doentes com

    neuropatias na sequncia de perturbaes do

    sistema nociceptivo com sensibilizao perifrica

    e/ou central.)

    d) Hiperestesia: maior sensibilidade

    estimulao, exceto dos sentidos especiais, por ex.,

  • 11 sensibilidade cutnea acrescida sensao trmica

    sem dor.

    Com o conhecimento das vias da dor e dos

    mecanismos de sensibilizao, possvel

    desenvolver estratgias teraputicas para interagir

    especificamente com os mecanismos de gerao da

    dor.

    Vias centrais da dor

    A via espinhotalmica e a via trigeminal so os

    principais percursos nervosos para a transmisso da

    dor e da informao de temperatura normal do

    corpo e do rosto ao encfalo. Os rgos viscerais

    possuem apenas nervos nociceptivos de fibra C,

    pelo que no h ao reflexa devido dor nos

    rgos viscerais.

    Via espinhotalmica

    As fibras nervosas dos gnglios raquidianos entram

    na medula espinhal atravs da raiz dorsal e enviam

    ramificaes para 1 a 2 segmentos para cima e para

    baixo na medula espinhal (trato dorsolateral de

    Lissauer) antes de entrar na substncia cinzenta da

    medula espinhal, onde estabelecem contactos

    (inervam) com os neurnios na lmina I (zona

    marginal) e na lmina II (substncia gelatinosa) de

    Rexed. As fibras A inervam as clulas na zona

    marginal e as fibras C inervam principalmente as

    clulas na camada de substncia gelatinosa da

    medula espinhal. Estas clulas nervosas, por sua

    vez, inervam as clulas do nucleus proprius, outra zona

    da substncia cinzenta da medula espinhal (camadas

    IV, V e VI de Rexed), as quais enviam fibras

    nervosas atravs da linha mdia espinhal e ascendem

    (na parte anterolateral ou ventrolateral da substncia

    branca da medula espinhal), atravessando o bolbo

    raquidiano e a ponte, e inervam neurnios situados

    em zonas especficas do tlamo. Isto constitua via

    espinhotalmica para a transmisso de informao

    sobre a dor e dos estmulos trmicos normais (

  • 12

    Patofisiologia da dor

    As sensaes de dor podem surgir na sequncia de:

    1) Inflamao dos nervos, por ex. nevrite

    temporria.

    2) Leses nos nervos e terminaes nervosas

    com formao de cicatriz, por ex. leses cirrgicas

    ou hrnia discal.

    3) Invaso do plexo nervoso por cancro, por

    ex. plexopatia braquial.

    4) Leses nas estruturas da medula espinhal,

    no tlamo ou nas zonas corticais que processam a

    informao da dor, que podem causar dor intratvel;

    desaferenciao, por ex. traumatismo da medula

    espinhal.

    5) Atividade anmala nos circuitos nervosos

    que apreendida como dor, por ex. dor fantasma

    com reorganizao cortical.

    Modulao da perceo da dor

    amplamente conhecido o facto de que existe uma

    diferena entre a realidade objetiva de um estmulo

    doloroso e a resposta subjetiva ao mesmo. Durante

    a Segunda Guerra Mundial, Beecher, um

    anestesiologista, e os seus colegas realizaram o

    primeiro estudo sistemtico deste efeito.

    Descobriram que, muitas vezes, os soldados que

    sofriam de ferimentos de guerra graves sentiam

    pouca ou nenhuma dor. Esta dissociao entre

    ferimento e dor tambm foi observada noutras

    circunstncias, como em eventos desportivos, e foi

    atribuda ao efeito do contexto no qual ocorre a

    leso. A existncia de dissociao indica que o

    organismo possui um mecanismo que modula a

    perceo da dor. Acredita-se que este mecanismo

    endgeno da modulao da dor garante a vantagem

    de uma maior sobrevivncia em todas as espcies

    (berlebensvorteil).

    Foram descritos trs mecanismos

    importantes: inibio segmentar, o sistema opiide

    endgeno e o sistema nervoso inibitrio

    descendente. Alm disso, as estratgias cognitivas e

    outras estratgias para lidar com a dor podem

    tambm desempenhar um papel fundamental na

    perceo da mesma, conforme descrito noutros

    captulos deste guia.

    Inibio segmentar

    Em 1965, Melzack e Wall propuseram a teoria do

    porto de controlo da dor, que foi modificada

    posteriormente, mas que permanece vlida na

    essncia. A teoria prope que a transmisso da

    informao atravs do ponto de contacto (sinapse)

    entre as fibras nervosas A e C (que transportam

    informao nociva a partir da periferia) e as clulas

    do corno dorsal da medula espinhal possa ser

    reduzida ou bloqueada. Assim sendo, a perceo da

    dor associada ao estmulo diminui ou no sentida

    de todo. O desenvolvimento da estimulao nervosa

    eltrica transcutnea (ENET) foi a consequncia

    clnica deste fenmeno.

    A transmisso do impulso nervoso atravs

    da sinapse pode ser descrita como se segue: a

    ativao das grandes fibras nervosas mielinizadas

    (fibras A) est associada aos mecano-recetores de

    baixo limiar, como o toque, que estimulam um

    nervo inibitrio na medula espinhal que inibe a

    transmisso sinptica. Esta uma explicao

    possvel para o facto de a sensao de dor diminuir

    quando se fricciona uma zona lesionada (Fig. 2).

    Sistema opiide endgeno

    Para alm do bloquear da transmisso de estmulos

    nocivos assumida na teoria do controlo do porto,

    outro sistema modula a perceo da dor. Desde

    4000 a.c., que se sabe que o pio e seus derivados,

    como a morfina, a codena e a herona, so

    analgsicos potentes, e continuam a ser atualmente a

    base da teraputica de alvio da dor. Nos anos 1960

    e 1970, foram descobertos os recetores para os

    derivados do pio, em particular nas clulas

    nervosas da substncia cinzenta periaquedutal e no

    bolbo raquidiano ventral, bem como na medula

    espinhal. Esta descoberta significava que o sistema

  • 13 nervoso devia produzir qumicos que constituam

    ligandos naturais destes recetores. Foram

    descobertos trs grupos de compostos endgenos

    (encefalinas, endorfinas e dinorfina) que se ligam

    aos recetores opiides e que so referidos como

    constituindo o sistema opiide endgeno. A

    presena deste sistema e o sistema de modulao da

    dor descendente (adrenrgico e serotoninrgico)

    fornece uma explicao para o sistema de

    modulao interna da dor e para a variabilidade

    subjetiva da dor.

    Sistema nervoso inibitrio descendente

    A atividade nervosa nos nervos descendentes de

    determinadas zonas do tronco cerebral (substncia

    cinzenta periaquedutal, bolbo raquidiano rostral)

    pode controlar a ascenso da informao

    nociceptiva ao crebro. A serotonina e a

    norepinefrina so os principais neurotransmissores

    desta via, podendo por conseguinte ser modulados

    farmacologicamente. Os inibidores seletivos de

    recaptao da serotonina (ISRS) e os

    antidepressivos tricclicos (por ex. amitriptilina)

    podem ento apresentar propriedades analgsicas

    (Fig. 3).

    Dor referida

    Os rgos viscerais no tm qualquer inervao

    nervosa A, mas as fibras C que transportam a

    informao relativa dor dos rgos viscerais

    convergem na mesma zona da medula espinhal

    (substncia gelatinosa) onde convergem as fibras

    nervosas somticas provenientes da periferia, e o

    encfalo localiza a sensao de dor como se tivesse

    origem nessa zona perifrica somtica em vez de no

    rgo visceral. Assim sendo, a dor dos rgos

    internos sentida numa localizao que no

    constitui a fonte da dor. Este tipo de dor chamado

    de dor referida.

    Reflexo espinhal autnomo

    Com frequncia, a informao de dor proveniente

    dos rgos viscerais ativa os nervos que provocam a

    contrao dos msculos esquelticos e a

    vasodilatao dos vasos sanguneos cutneos,

    produzindo vermelhido nessa zona da superfcie

    corporal.

    Concluso

    Os estmulos qumicos ou mecnicos que ativam os

    nociceptores originam sinais nervosos sentidos

    como dor pelo crebro. A investigao e a

    compreenso do mecanismo bsico da nocicepo e

    das percees da dor oferecem uma fundamentao

    lgica para as intervenes teraputicas e para

    potenciais novos alvos de desenvolvimento de

    medicamentos.

    Referncias

    [1] Westmoreland BE, Benarroch EE, Daude JR, Reagan TJ, Sandok BA. Medical neuroscience: an approach to anatomy, pathology, and physiology by systems and levels. 3rd ed. Boston: Little, Brown and Co.; 1994. p. 146-54.

    [2] Bear MF, Connors BW, Paradiso. Neuroscience: exploring the brain. 2nd ed. Lippincott Williams & Wilkins; 2011. p. 422-32.

    [3] Melzack R, Wall P. The challenge of pain. New York: Basic Books; 1983.

  • 14

    Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos

    Captulo 4

    Fatores Psicolgicos na Dor Crnica

    Harald C. Traue, Lucia Jerg-Bretzke, Michael Pfingsten e Vladimir Hrabal

    Todos sabemos o que a dor. Afeta

    geralmente o corpo, mas tambm influenciada por

    fatores psicolgicos e perturba sempre a conscincia

    humana. Esta ligao entre a mente e o corpo

    ilustrada atravs de muitas metforas e smbolos,

    que procuram resolver problemas e conflitos que

    nos torturam. Em alemo, o termo popular para a

    lombalgia (Hexenschuss tiro de bruxa) envolve a

    crena psicossomtica medieval de que um homem

    orgulhoso pode ser atingido nas costas pelos

    poderes mgicos de uma bruxa, sofrendo deste

    modo um tipo de dor agonizante capaz de o tornar

    invlido. Muitas culturas acreditam que poderes

    desta natureza (muitas vezes malvolos) esto na

    etiologia da dor. Esta ideia surge porque, nem

    sempre, fcil determinar a causa da dor. Por vezes,

    as estruturas somticas esto completamente

    intactas e no possvel identificar uma leso ou

    uma disfuno fisiolgica ou neuronal que possa

    constituir uma potencial fonte de dor. A crena em

    poderes mgicos funda-se tambm na experincia

    de que os fatores psicolgicos so to importantes

    para o controlo da dor quanto a anlise da sua

    etiologia fsica A investigao atual, com recurso ao

    placebo, tem vindo a confirmar a relevncia destes

    fatores de diversas formas.

    Mesmo algumas teorias leigas, como a lenda

    moderna do desgaste do disco, s conseguem

    descrever a causa real dos sintomas em muito

    poucos casos. Em mais de 80% de todo