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GUIA DE LEITURAUM DIÁRIO DO ANO DA PESTE
Índice
Do autor _________________________________ 3
Resumo da obra ___________________________ 9
Introdução aos eventos ______________________ 10
Personagens _______________________________ 18
Chaves de leitura ___________________________ 20
3
Do autorComerciante, jornalista e clássico
Em 1702, Daniel Defoe publicou anonimamente o panfleto The
shortest way with the dissenters, obra em que expunha a maneira que
julgava mais adequada para solucionar os conflitos entre anglicanos
e dissidentes.
O escritor era partidário da tolerância e compôs seu panfleto em tom
satírico. Escrevendo como fosse um alto dignitário da Igreja Anglicana,
Defoe argumentou que a melhor maneira para lidar com os dissiden-
tes era o exílio ou a forca. A Igreja da Inglaterra, ele disse, era como o
Cristo crucificado entre dois ladrões: de um lado os católicos papistas
e os dissidentes de outro. Nada mais justo, portanto, que eliminar de
modo sumário estes inimigos. Figuras proeminentes do clero inicial-
mente levaram o texto ao pé da letra, mas logo perceberam a zombaria.
A identidade do autor foi descoberta rapidamente e pela informação
de seu paradeiro foi oferecida alta recompensa. Defoe escondeu-se nos
arredores de Londres, mas logo foi capturado. Enquanto era fugitivo,
publicou um texto em que se desculpava e tentava esclarecer a má in-
terpretação que se formara em torno de suas palavras. Pouco ou nada
4
adiantou: ele foi confinado na prisão de Newgate. A punição, além de
larga multa, era o pelourinho. Defoe apelou da sentença, implorando
por misericórdia, mas seu recurso não foi atendido.
O pelourinho era utilizado como punição para delitos como sedição,
pequenos golpes, homossexualidade e adultério. O condenado era ata-
do a uma coluna de pedra ou madeira em local de grande circulação,
para que sofresse, além do castigo físico, a humilhação pública. Em
julho de 1702, Defoe foi ao pelourinho. Sua pena não incluía chicota-
das, e sequer houve vaias e cusparadas dos seus concidadãos.
Durante seu período na prisão, Defoe compôs o Hymn to the pillory,
que zombava da sentença. Amigos imprimiram centenas de cópias do
poema e do panfleto e as distribuíram entre o povo na data cabal. Os
leitores, impressionados pelo humor das obras, foram tomados por
uma imensa simpatia pelo autor. Em vez de ovos podres, cusparadas e
vaias, jogaram flores aos seus pés, e o que seria uma humilhação, tor-
nou-se o momento de consagração pública do condenado.
Este episódio reúne em si todos os traços distintivos da biografia de
Daniel Defoe: fervor religioso, problemas econômicos, engajamento
político e mestria em prosa e poesia.
Daniel Foe (o ‘de’ seria acrescido posteriormente) nasceu em Londres,
em data desconhecida do ano de 1660. Filho de James Foe e Alice, o
escritor tornou-se órfão de mãe aos 10 anos de idade. Seu pai era açou-
gueiro, produtor de velas e dissidente, e passou ao filho as manhas das
lidas comerciais e o zelo pelas convicções religiosas.
5
Os dissidentes eram grupos que desejavam um aprofundamento da
reforma protestante, que afastasse tanto quanto possível a Igreja da
Inglaterra do catolicismo romano. Como não havia separação entre
Igreja e Estado, os que não reconheciam a autoridade anglicana tam-
bém não aceitavam a autoridade do Estado, e por isso eram tratados
como rebeldes. Entre os dissidentes havia presbiterianos, anabatistas,
puritanos, metodistas, quakers e diversos outros grupos que migraram
para as colônias na América.
Uma das expressões da intolerância religiosa era a separação radical do
convívio social entre os grupos concorrentes. Por esta razão, Defoe não
pôde ser matriculado nas escolas mais tradicionais e recebeu suas pri-
meiras letras, aos quatorze anos, na Reverend James Fischer’s School, ins-
tituição exclusiva para famílias não-conformistas. Ali, o jovem Daniel
foi educado nas artes liberais e na doutrina religiosa, sendo preparado
para, num futuro próximo, ser investido do sacerdócio.
A pregação do evangelho de Jesus Cristo não assentou bem à perso-
nalidade de Defoe, cujo espírito combativo e aventureiro estava mais
inclinado à política e ao comércio. Em 1685, Jaime Scott, 1º duque
de Monmouth e filho bastardo de Carlos II, reclamou o trono inglês e
tentou destronar Jaime II, monarca católico impopular entre os súdi-
tos protestantes. A rebelião fracassou e Defoe, que dela fizera parte, foi
condenado, mas perdoado.
Três anos depois, encontramo-lo comerciando lã em Londres. No ano
seguinte, ele esteve entre os partidários da Revolução Gloriosa que
enfim derrubou Jaime II. Graças à sua amizade com Guilherme III, o
6
novo monarca, Defoe obteve facilidades em exportações que o levaram
a viajar a negócios por França, Alemanha, Holanda e Espanha.
A viagem foi longa e bem-sucedida, mas intrigas políticas e problemas
com o fisco corroeram os lucros que foram obtidos. Defoe foi à ban-
carrota e condenado à prisão. Após negociar as dívidas, foi libertado e
viajou a Portugal para comerciar vinho do Porto. Retornou à Inglater-
ra em 1695. Privado da independência econômica, granjeou entre os
amigos poderosos um posto de coletor de impostos.
Nos anos seguintes, teve início sua militância política a favor de Gui-
lherme III. Em 1697, publica An Essay Upon Projects, obra sobre pla-
nos de desenvolvimento econômico. No mesmo ano, defende as ofen-
sivas militares do monarca contra a França em artigos jornalísticos.
Em 1701, publica The True-Born Englishman, em que defende o mo-
narca nascido na Holanda de ataques xenófobos e argumenta contra o
crescente sentimento anti-imigração.
Em 1703, Guilherme falece e Ana ascende ao trono. Há reviravol-
ta na política interna e se desencadeia nova onda de perseguição aos
dissidentes. Aqui se dá o caso da prisão e do pelourinho. Na semana
seguinte à sua libertação, Daniel Defoe testemunhou o Great Storm of
London, ciclone que vitimou mais de 8 mil pessoas e devastou a cida-
de. A experiência foi relatada em The Storm (1704), obra que em sua
forma muito se assemelha a Um diário do ano da peste.
Ainda em 1703, o escritor tornou-se redator na Review of the affairs of
France, periódico dedicado a prestar apoio à política de Robert Harley,
7
primeiro-ministro durante o reinado de Ana. A revista publicou três
edições por semana de 1703 a 1713.
À época discutia-se a união dos reinos da Inglaterra e Escócia. Como
a medida fosse controversa, todo o cuidado era pouco para levá-la a
cabo. Robert Harley, que estava satisfeitíssimo com os serviços pres-
tados por Defoe, convocou o escritor para uma missão inusitada: agir
como espião em território escocês.
Defoe circulava por Glasgow monitorando as movimentações polí-
ticas sobre a união das coroas, influenciava discretamente a opinião
pública e enviava quase diariamente relatórios ao rei. Para justificar sua
estadia, afirmava estar em processo de pesquisa para um futuro livro
sobre a história da Grã-Bretanha. Sua personalidade não era discreta, e
foram justamente seus modos expansivos que o auxiliaram a ganhar a
confiança de figurões e obter informações valiosas.
Até 1713, Defoe permaneceu em seu jornalismo chapa-branca na Re-
view of the affairs of France. A estabilidade política do reino e de suas
finanças pessoais deram tranquilidade ao escritor, que, já experimenta-
do, deu seus primeiros passos de maior ousadia na literatura.
São mais de 500 as obras cuja autoria é creditada a Defoe, assinadas
sob mais de 200 pseudônimos. Entre elas destacam-se os romances
Robinson Crusoe (1719) e Moll Flanders (1722). Nelas, pela primeira
vez o povo inglês surgiu como protagonista de grandes obras da sua
própria literatura, forjando um estilo mais original e menos influen-
ciado pelas culturas italiana e francesa.
8
Um diário do ano da peste veio a público em 1722. Dois anos antes,
Marselha foi atingida por uma epidemia que vitimou mais de 100 mil
habitantes. Por toda a Europa houve temor de que o surto se espalhas-
se. Em Londres, onde ainda ardia a lembrança de 1665, a população ia
aflita. Daniel Defoe decidiu, então, oferecer a seus conterrâneos uma
obra que relatasse o drama passado e ajudasse a preparar os ânimos
para enfrentar uma nova epidemia.
Como contava apenas cinco anos em 1665, Defoe não pôde basear o
relato apenas em suas lembranças. A crítica aponta que a obra foi ins-
pirada no diário de Henry Foe, tio do escritor que vivia no distrito de
Whitechapel e trabalhava como seleiro. O narrador da história assina
“H.F.” e exerce o mesmo ofício, tornando esta tese bastante crível.
A miscelânea de gêneros aliada à limpidez de estilo e ao caráter de
devotamento ao bem comum fazem de Um diário do ano da peste um
clássico não apenas da literatura, mas também do jornalismo e da his-
toriografia. Nós, do Clube de Literatura Clássica, temos a imensa sa-
tisfação de levar a nossos assinantes este clássico imprescindível para os
nossos tempos.
Resumo da obra
10
Introdução aos eventosOs londrinos acreditam que a peste retornará à cidade, pois há rumo-
res de uma epidemia na Holanda e o comércio entre os dois países é
intenso. O narrador (H.F.) observa que ocorreram algumas mortes
causadas pela peste nos meses seguintes. Os londrinos, porém, perma-
necem calmos, apesar de haver um aumento no número de enterros
entre dezembro de 1664 e fevereiro de 1665. A vida segue seu curso
normal até maio deste ano, quando o número de mortes aumenta de
modo alarmante.
H.F. mora em Aldgate, a leste do centro de Londres, e possui uma fábri-
ca de selaria. Ele observa que os ricos estão fugindo para o campo e se
pergunta se deve ou não fazer o mesmo. Seu irmão, um homem muito
religioso, crê que fugir é a decisão mais acertada, pois H.F. não tem mu-
lher nem filhos com quem se preocupar. H.F. lê uma passagem da Bíblia
que promete proteção contra a peste e se convence de que permanecer
na cidade e cuidar de seus funcionários é o correto a se fazer.
A peste começa a espalhar-se em julho. As mortes chegam à marca de
1700 por semana. H.F. teme pela cidade, que tem população grande e
condensada em pequeno espaço. No comportamento dos cidadãos, o
11
narrador observa que as pessoas passaram a permanecer em casa e de
portas fechadas.
A CHEGADA DA PESTE
H.F. dá alguns passos para trás a fim de melhor explicar o compor-
tamento dos londrinos. No outono de 1664, a passagem de um co-
meta pela cidade fez muitos acreditarem que uma desgraça estava por
vir; havia quem corresse pelas ruas gritando que a cidade seria logo
destruída. Astrólogos e videntes eram consultados por cidadãos que
buscavam respostas. As consultas custavam caro, e muitos charlatães
enriqueceram às custas do desespero alheio. O ápice das superstições
foi entre dezembro de 1664 e março de 1665.
O governo e diferentes denominações cristãs tentavam afastar o povo
das superstições, mas nem sempre eram ouvidos. Havia também outra
espécie de impostores: aqueles que prometiam curas milagrosas e afir-
mavam possuir remédios eficientíssimos contra a peste. Para H. F., um
cristão devoto, homens e mulheres que espalhavam o medo para obter
lucro através de mentiras eram manifestações do diabo.
O narrador torna sua atenção para a chegada da epidemia. As mortes
iniciaram-se em dezembro de 1664. Famílias inteiras foram infectadas
e morreram em suas casas. O pânico tomou conta da cidade. Ao co-
mentar sobre os médicos que fugiram, H.F. exalta aqueles que ficaram
e sacrificaram a vida para zelar pelos enfermos.
12
REAÇÃO DAS AUTORIDADES
Em 1º de julho de 1665, o Prefeito e os magistrados de Londres to-
maram medidas para mitigar a proliferação da peste. As deliberações
visavam isolar enfermos e suas famílias. Foram designados médicos,
enfermeiros, vigias e burocratas para cada paróquia. Os vigias eram
responsáveis por garantir que ninguém fugisse das casas isoladas, fazer
compras e auxiliar os doentes em caso de emergência.
As casas isoladas tinham de ser identificadas por uma cruz vermelha
acompanhada pela inscrição “Senhor, tende piedade de nós”. Reuniões
foram proibidas e casas de espetáculos, fechadas. O prefeito ordenou
que as ruas fossem limpas com frequência, que açougueiros e cervejei-
ros não deixassem seus produtos apodrecer e que animais domésticos
fossem retirados da cidade.
Muitos londrinos faleceram quando foram trancados em casa, pois
o diagnóstico de um só familiar obrigava toda a família a cumprir o
isolamento. Houve famílias que romperam a lei, chegando a ponto de
agredir vigias para poder fugir. Cerca de 18 vigias foram assassinados
durante o ano de 1665. Outros não usavam de violência, mas fugiam
por janelas e passagens secretas, muitas vezes abandonando parentes e
servos moribundos.
AS RUAS DE LONDRES
H.F. testemunha ou ouve falar de inumeráveis misérias ocorridas no
verão de 1665 e atenta-se para um caso em particular. Uma viúva mo-
13
rava com sua filha de dezenove anos e apenas uma criada. Embora ti-
vessem condições financeiras para ir ao campo, decidiram permanecer
em Londres durante a epidemia. As três mulheres tomavam todos os
cuidados possíveis para evitar a infecção, mas, como era preciso sair
para comprar suprimentos, acabaram expostas à doença. Um dia, logo
quando chegaram das compras, a filha sentiu febre. Ao examinar a
menina e descobrir nela os sintomas da peste, a mãe desesperou-se. A
menina morreu dali poucas horas; a mãe jamais voltou a si e faleceu de
tristeza após algumas semanas.
O narrador sente-se seguro para andar pela cidade. Em um de seus pas-
seios, observa uma grande vala comum durante o dia e decide sair para
visitá-la à noite. O vigia do cemitério é seu amigo e permite que ele
adentre o recinto. Os corpos eram recolhidos das esquinas durante o
dia e enterrados à noite. Enquanto os coveiros jogam os corpos na vala,
surge um homem desesperado. Todos creem tratar-se de um provável
suicida, mas não é este o caso. O homem havia perdido esposa e filhos.
Como velórios estavam proibidos, ele decidiu seguir a carroça fúnebre
para dar um último adeus aos seus. Porém, abalou-se ao ver o modo
pouco delicado dos coveiros, que arremessavam os corpos na cova devi-
do à pressa. H.F. fica impressionado pela cena que testemunhou.
A atenção é voltada às pessoas que fogem do isolamento. Estes fugi-
tivos aparentemente saudáveis acabavam infectando aqueles que lhe
davam guarida. O narrador é de opinião de que deveria haver mais
hospitais, para que todos os infectados e saudáveis pudessem viver
separadamente. Para proteger os empregados que moram consigo da
14
contaminação pelas ruas, H.F. compra grandes quantidades de cerveja,
farinha e queijo.
O narrador volta e meia passeia pela cidade. Nessas viagens, vê pessoas
correndo nuas e enlouquecidas, ouve o grito de doentes e testemunha
diversos suicídios. John Hayward, conhecido de H.F., conta a ele uma
história tragicômica. Um flautista, que fazia momices para arrecadar di-
nheiro para suas bebedeiras, caiu pela rua determinado dia. Como havia
o costume de empilhar os cadáveres pelas esquinas, ao redor do flautista
foram sendo depositados os corpos dos falecidos da vizinhança. Ele foi
recolhido pela carroça fúnebre e quase enterrado vivo na vala comum.
H.F. critica o governo por não haver assistência aos pobres. Porém,
também reconhece que as autoridades municipais estão coordenando
os esforços no combate à epidemia.
REAÇÕES AO CENÁRIO CAÓTICO
H.F. encontra um homem às margens do rio Tâmisa. Ele se chama
Robert. Sua esposa e filhos estão infectados pela peste. Robert trabalha
prestando pequenos serviços para as famílias londrinas que se refugia-
ram da epidemia em embarcações espalhadas pelo rio Tâmisa. H.F. vai
à casa de Robert e observa de longe sua família. O narrador comove-se
com sua situação, em que não pode sequer abraçar a esposa e os peque-
nos. H.F. doa grande quantia de dinheiro a Robert.
As estatísticas apontam um aumento de abortos, natimortos e da mor-
talidade infantil. Há boatos de que mães estão matando seus filhos in-
15
fectados. Algumas mães doentes e sem condições de pagar enfermeiras
preferem matar seus filhos a deixá-los morrer de fome.
A HISTÓRIA DOS TRÊS HOMENS
Thomas serviu na marinha inglesa e agora fabrica velas para navios.
John foi soldado e agora é padeiro. Thomas e John são irmãos. Quan-
do a epidemia recrudesce, eles não conseguem mais encontrar trabalho
em Londres. Mas no campo também há risco de não encontrar fonte
de renda. Como não têm escolha, decidem fugir. Richard, carpinteiro
e amigo de Thomas, junta-se a eles. Eles deixam Londres em julho de
1665, carregando ferramentas, alguns pertences e um cavalo.
O trio encontra-se com outro grupo de viajantes. Seu líder se chama
Ford. Eles decidem seguir o caminho juntos. Ao chegarem a uma ci-
dade que não aceita viajantes, John engana o guarda dando a entender
que o grupo está armado até os dentes. Os cidadãos se amedrontam
e entregam suprimentos aos viajantes. Espalham-se pelo interior ru-
mores de que grupos de saqueadores londrinos estão ameaçando as
cidades pequenas.
As cidades que entregam provisões a Thomas, John e Richard são atin-
gidas pela peste em setembro de 1665. Os cidadãos não mais entram
em contato com os grupos de viajantes. O trio volta a Londres em
dezembro de 1665.
16
LOUCURA
As cidades vizinhas começam a relatar números significativos de in-
fectados e mortos pela peste. Os moradores da periferia de Londres
tornam-se agressivos com os viajantes.
O número de doentes que buscam escapar do isolamento aumenta.
Há muitas casas vazias, que frequentemente são invadidas por ladrões.
As autoridades tentam, a muito custo, manter a ordem.
H.F. é nomeado responsável pelos vigias do leste de Londres. Durante
três semanas, tem liberdade de andar pelas ruas e observa casos in-
críveis. O tratamento oferecido aos pacientes era doloroso, e muitos
preferiam dar termo à própria vida do que se submeterem a tamanho
sofrimento.
Outros não suportavam a dor das chagas da peste, então corriam nus
pelas ruas e se lançavam nas águas do rio Tâmisa. Havia casas em que
os doentes eram atados à cama, medida que os familiares tomavam
para evitar fuga e suicídio do enfermo.
O ÁPICE
A epidemia atingiu seu ápice em agosto de 1665. Houve casos de pes-
soas que morriam subitamente. Assim que apresentavam algum sin-
toma, morriam, e muitas vezes no meio da rua. O doente sentava-se
na calçada ou em algum banco e esperava a morte, que chegava em
questão de minutos. H.F. argumenta que estes casos agudos e repenti-
17
nos aconteciam pois muitos londrinos já não tinham vontade de per-
manecer vivos.
O narrador, porém, alegra-se ao lembrar que os charlatães do início da
epidemia ou fugiram ou morreram. Segundo ele, a morte desses apro-
veitadores era sinal da justiça divina. A epidemia agrava-se cada vez mais
e H.F. suspeita que a culpa seja daqueles que, embora doentes, aparen-
tam saúde. Os países da Europa não mais permitem a entrada de navios
ingleses. Da mesma forma, navios estrangeiros não aportam na Ingla-
terra. O desemprego aumenta. O prefeito passa a impedir que certos
trabalhadores, como coveiros, médicos e padeiros, fujam da cidade.
O FIM DA EPIDEMIA
H.F. e Heat, seu médico, discutem a situação em agosto de 1665.
Segundo o médico, a epidemia está prestes a acabar, embora ainda
esteja matando milhares de londrinos semanalmente. A esperança aca-
ba refletindo em um relaxamento dos londrinos, que abandonam as
medidas de distanciamento. Os casos aumentam no mês de outubro.
John Cock foi um homem que fugiu no início da epidemia e retornou
por acreditar que o problema havia terminado. Ele e toda sua família
foram infectados e morreram. Os médicos que fugiram começam a
retornar, mas são lançados ao ostracismo pelos cidadãos que haviam
abandonado. A epidemia arrefece em fevereiro de 1666. H.F. crê pia-
mente que a peste foi um julgamento divino e se sente extremamente
grato por ter sobrevivido a uma epidemia que vitimou um quarto da
população londrina.
18
PersonagensH.F. - H.F. é um produtor de selarias. Ele emprega uma dúzia de tra-
balhadores em seu negócio. De início pensa em fugir da cidade junto
de seu irmão mais velho, mas muda de ideia ao ler o salmo 91. A con-
fiança no auxílio divino é acompanhada de precauções contra a peste.
H.F. passa a maior parte do ano de 1665 fazendo anotações sobre o
desenrolar da epidemia. Possui uma curiosidade mórbida, chegando a
ponto de arriscar-se pelas ruas para melhor se informar da situação dos
habitantes de Londres.
IRMÃO MAIS VELHO DE H.F. - É um homem, segundo o narrador,
muito religioso. Aconselha H.F. a escapar de Londres. Foge com toda
a sua família logo no início da epidemia.
JOHN COCK - John Cock é um londrino que partiu da cidade nos
primeiros dias da epidemia, mas retornou cedo demais e acabou infec-
tado e morto.
SOLOMON EAGLE - Solomon Eagle é um louco que perambula nu
pelas ruas de Londres enquanto afirma aos gritos que a peste é instru-
mento da justiça divina.
19
FORD - Ford lidera um grupo de andarilhos que vaga pelo interior da
Inglaterra. Seu grupo se une a Thomas, John e Richard.
JOHN HAYWARD - John Hayward é um antigo conhecido de H.F. Ele
relata o caso do flautista que quase foi enterrado vivo.
DOUTOR HEATH - Doutor Heath é o médico de H.F. Ele aconselha
seu paciente sobre como evitar o contágio da peste.
JOHN - John é soldado reformado, padeiro e irmão de Thomas. Tenta
fugir de Londres com seu irmão e Richard antes do ápice da epidemia.
THOMAS - Thomas é marinheiro reformado, fabricante de velas de
navio e irmão de John.
RICHARD - Richard é carpinteiro e leva suas ferramentas consigo na
fuga de Londres.
ROBERT - Robert trabalha prestando pequenos serviços às famílias
que estão morando em embarcações ancoradas no rio Tâmisa. Não
se aproxima de sua esposa e de seus filhos pois eles estão infectados.
Robert mora em uma pequena embarcação e todos os dias deposita
mantimentos para a família na porta de casa.
PREFEITO - É a autoridade executiva da cidade. Instituiu restrições no
início do verão para mitigar a propagação da doença.
O FLAUTISTA - O flautista faz apresentações musicais e brincadeiras
em troca de esmolas. Quase é enterrado vivo após adormecer bêbado e
ser confundido com um cadáver vitimado pela peste.
20
Chaves de leitura
PROPOSIÇÃO, INVOCAÇÃO E DEDICATÓRIA
Em Os Lusíadas, Luís de Camões traz ao leitor as chamadas proposição,
invocação e dedicatória do poema antes de iniciar a narrativa.
Na proposição, o português apresenta o assunto que abordará e os he-
róis que serão retratados. Na invocação, o poeta se dirige a divindades,
solicitando auxílio e inspiração para elaborar a obra. A dedicatória, por
sua vez, é o oferecimento do poema em homenagem a alguém em par-
ticular, seja por admiração, gratidão, dívida ou em busca de favores; no
caso de Os Lusíadas, a obra é dedicada a D. Sebastião.
Tal estrutura interna é seguida à risca nas epopeias, sejam elas clássicas
ou modernas. Conforme o gênero foi perdendo espaço na literatura,
esta maneira explícita de apresentar a obra foi sendo abandonada, dan-
do espaço a modos mais enredados de situar o leitor quanto à natureza
do livro que tem em mãos. Identificar e compreender esta estrutura,
que funciona como uma espécie de teaser para atrair a atenção e pro-
vocar a curiosidade do público, é um passo imprescindível na leitura
de qualquer obra.
21
Em Um Diário do Ano da Peste, o narrador apresenta no parágrafo
inicial o tema que abordará: a epidemia de peste bubônica que pairou
sobre Londres entre 1664 e 1665 e seu impacto nos indivíduos e na
coletividade. Para reconstituir vividamente a atmosfera da cidade sob
a devastação de uma doença, o narrador recorre não a musas ou enti-
dades mitológicas, mas a um emaranhado de recordações, estatísticas
oficiais, relatos de sobreviventes e causos que entraram para o anedo-
tário da memória coletiva.
A dedicatória é certamente o mais interessante dos pontos introdutó-
rios da obra: o narrador oferece seu diário a todos os leitores que por
ventura passarem pelos sofrimentos da vida sob uma epidemia. Esta
ideia é ressaltada diversas vezes durante a narrativa e, como sabemos
que a repetição é uma figura de estilo, devemos nos perguntar o por-
quê da ênfase sobre este ponto.
Contar histórias é uma das mais belas ocupações do gênero humano, e
esta ocupação pode ser instrumentalizada para diversos fins. Há obras
que buscam somente entreter; outras buscam, sob o manto da ficção,
convencer o leitor a aceitar alguma posição política ou religiosa; outras
dão alertas sobre problemas que hoje parecem marginais e fúteis, mas
num futuro próximo podem, conforme a crença do autor, tornar-se dra-
mas de grandes proporções; e muitas criações literárias, inclusive as indis-
cutivelmente clássicas, são erigidas com uma miscelânea destas intenções.
Há, porém, uma finalidade da literatura que se sobrepõe a todas as
outras: dar exemplos que ajudem o leitor a tomar as rédeas da pró-
pria vida. Não se trata, por óbvio, de prescrever o que deve ou não
22
ser feito, nem de buscar distinguir o bem do mal e o joio do trigo. Os
grandes clássicos da literatura examinam com riqueza de detalhes as
motivações de cada gesto do coração dos homens, não com intenção
de condená-los ou absolvê-los, mas de relatar o que viram aos futuros
leitores, para que estes possam, comparando-se com os exemplos que
têm em mãos, ter maior consciência de si.
Entre as vicissitudes que se repetem continuamente durante a história,
destacam-se guerras, desastres naturais – e epidemias. Quando a socie-
dade é assolada por uma doença, logo são acrescidos ao problema sa-
nitário diversos dilemas de caráter moral, político, religioso e íntimo.
Em meio a uma situação caótica semelhante à experimentada pelos
habitantes de Londres durante a Grande Peste, os cidadãos são obriga-
dos a tomar decisões gravíssimas sem que haja tempo para refletir com
frieza sobre as consequências individuais e coletivas de cada ato.
Como depositária da experiência humana, a literatura serve, nesta si-
tuação-limite, como estrela-guia para viajantes desorientados. Ao dar
forma inteligível ao caos londrino e oferecê-la aos que viverem tragédia
semelhante, Daniel Defoe legou à posteridade a oportunidade de repe-
tir os acertos no combate à uma epidemia, desviar dos erros causados
pelas ações irrefletidas e ponderar com prudência sobre os dilemas in-
solúveis que surgem durante uma tragédia sanitária.
LIBERDADE E HEROÍSMO
Aquiles, cuja ira é o tema central da Ilíada, era célebre antes mesmo
de nascer. Seu pai foi Peleu, rei dos mirmidões; sua mãe, Tétis, uma
23
ninfa. Tétis, quando solteira, era disputada por Zeus e Poseidon.
Houve, porém, profecia sentenciando que um dos filhos da ninfa
teria maior grandeza que seu pai. Os deuses, que não desejavam re-
bento que lhes disputasse a fama e o prestígio, desistiram da união e
obrigaram Tétis a casar-se com Peleu.
Temerosa de que o filho morresse precocemente, Tétis decidiu lavar o
pequeno Aquiles nas águas do Estige, rio que corria pelo Hades, para
torná-lo imortal. Ao mergulhá-lo na água, segurou-o pelo calcanhar,
deixando esta parte do corpo do futuro herói desprotegida.
Por ordem paterna, Aquiles foi entregue aos cuidados do centauro
Quíron. Este curioso preceptor educou o menino nas armas, na músi-
ca e na medicina, e o menino crescia e se robustecia em força e beleza.
Quando Helena foi capturada por Páris e seus pretendentes gregos
conjuraram-se para resgatá-la, dando início à guerra de Troia, surgiu
nova profecia. Segundo os oráculos, Troia só seria derrotada se Aquiles
tomasse o partido dos gregos na peleja. Como Tétis seguia temerosa
da morte precoce do filho, decidiu levá-lo à ilha de Ciros, onde reina-
va Licomedes. Lá, Aquiles foi disfarçado de menina e criado junto às
filhas do rei.
Quando a profecia chegou aos ouvidos dos gregos, Odisseu foi ao rei-
no de Licomedes em busca do imprescindível guerreiro. Disfarçado de
mercador, Odisseu mostrou as armas que trazia para vender a um gru-
po de meninas, e observou que uma delas tinha grande interesse pelos
artefatos e manuseava-os com desenvoltura: Aquiles foi descoberto.
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O jovem guerreiro ouviu a proposta de Odisseu e aceitou ir à guerra.
Tétis tentou dissuadi-lo revelando-lhe novas profecias: se fosse a Troia,
Aquiles teria vida breve, mas seus feitos gloriosos seriam cantados pela
eternidade; se ficasse, teria vida longa e tranquila, mas de si ninguém
lembraria tão logo morresse. Como sabemos, Aquiles decidiu-se pela
primeira opção e seus feitos heroicos são até hoje cultuados.
Em Um Diário do Ano da Peste, o narrador se apresenta como um pe-
queno comerciante, responsável tão-somente pela manutenção e pros-
peridade do seu negócio. Ele contava com boas reservas financeiras e
não tinha esposa ou filhos com que se preocupar; nada impedia sua
fuga para uma cidade distante da epidemia, portanto. Havia, porém, a
preocupação com os funcionários: caso simplesmente fechasse as por-
tas e partisse rumo ao campo, um punhado de famílias ficaria sem
renda em um momento crítico.
Por dias o comerciante pesou prós e contras da fuga ou da perma-
nência, e não encontrava resposta que o tirasse da encruzilhada entre
o medo da morte e o cuidado com seus subalternos. Sem conseguir
resolver o problema por si, ele decidiu entregá-lo a instâncias superio-
res: abriu a Bíblia a esmo e decidiu seguir o conselho que a sorte lhe
apontava. Como seu dedo pousasse sobre o salmo 91, em que o sal-
mista afirma, por fé em Deus, não temer a peste, ele bateu o martelo
por ficar em Londres.
Quando a doença apresentou-se em toda sua crueldade, a primeira
reação dos cidadãos abastados foi correr desesperadamente para as ci-
dades interioranas. O raciocínio era simples e o tempo provou seu
25
acerto lógico: em pouco tempo a peste se espalharia ainda mais, o caos
se instalaria e nenhum município da Inglaterra permitiria a entrada
de egressos de Londres. As classes baixas seguiam o mesmo raciocínio,
mas não tinham opção. Era uma decisão entre a cruz e a espada: ou
ficar em Londres e correr risco de vida, ou fugir e morrer de fome.
Quando dividido entre Tétis e Odisseu, Aquiles tinha diante de si uma
questão grave, mas era plenamente livre para escolher o que bem en-
tendesse. Se fosse da sua vontade ficar em paz, longe de confusões que
não lhe diziam respeito, o herói grego poderia fazê-lo sem grandes di-
ficuldades. A liberdade, fruto das suas incríveis manhas de guerreiro, é
a marca distintiva do seu heroísmo.
O narrador de Um Diário do Ano da Peste certamente não goza das
proporções quase divinas de Aquiles, mas tomou uma decisão indubi-
tavelmente heroica. Naquele cenário, todos que tinham condições para
tanto fugiram sem pensar duas vezes, e aqueles que ficavam, faziam-no
por falta de opção. Permanecer em Londres para tomar conta de pes-
soas que sequer eram familiares foi um ato de abnegação extremada. O
pequeno comerciante pôs o amor ao próximo à frente do medo, pre-
ferindo expor-se à infecção do que entregar seus funcionários à sorte.
Aquiles, ao trocar a comodidade pela morte precoce, recebeu como
prêmio a glória de ser cantado por gerações e gerações. O comercian-
te-escritor, que escolheu ver de perto o drama da peste e nos legar seu
relato, não alcança as proporções do furioso herói grego, mas sua gló-
ria é inegavelmente extensa: ainda hoje, 299 anos após a publicação
de Um Diário do Ano da Peste, sua obra segue editada, lida e discutida.
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O CAOS EM LONDRES
Escrita por Platão no séc. IV a. C., A República é um diálogo prota-
gonizado por Sócrates. Nesta obra, Sócrates expõe suas ideias sobre
os benefícios coletivos e individuais da prática da Justiça, os modos
de educar os cidadãos, as diferentes formas de organizar o Estado e os
meios de conservar o bem-comum.
Para além dos tópicos que se assemelham ao que hoje chamamos de
ciência política, A República aborda temas éticos, metafísicos, epis-
temológicos e psicológicos, em trechos clássicos como a alegoria da
caverna, a nau dos insensatos e o anel de Giges.
Ao longo dos séculos de filosofia que sobrevieram, surgiram as mais
variadas interpretações da obra-prima platônica. Cada leitura ressalta
este traço, omite aquele, e tantas visões contraditórias entre si fizeram
de A República, além de clássico da filosofia e da literatura, objeto de
vivas polêmicas.
Um ponto interessantíssimo deste diálogo é o paralelo traçado entre a
constituição da pólis e a alma de cada cidadão.
Para o filósofo grego, a alma do homem é dividida em três faculda-
des: racional, irascível e concupiscente. A primeira, de natureza divi-
na, possibilita o conhecimento e a reflexão. A segunda corresponde à
proteção do corpo e aos sentimentos propriamente humanos, como a
fúria e o amor. A terceira e mais animalesca das partes corresponde às
necessidades corporais, como a fome e o desejo sexual.
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Sócrates traslada sua concepção da alma humana para o plano da pólis,
dividindo-a em três classes sociais diferentes. O governo deve ser dado
àqueles em que há predomínio da alma racional, isto é, aos filósofos.
Abaixo destes devem estar os guerreiros, em quem prevalece a alma
irascível. O comércio, por sua vez, é tarefa daqueles em quem predo-
mina a alma concupiscente.
Da Aristocracia, a mais perfeita organização da pólis, pois harmônica
com a disposição da alma, à Tirania, o pior de todos os regimes, há
alterações no comportamento das classes e na sua disposição na pirâ-
mide do poder. Conforme os governantes corrompem seus hábitos e
entregam-se ao vício, a pólis sente quase imediatamente os reflexos da
perturbação íntima dos seus líderes. Assim, problemas particulares dos
governantes tornam-se dramas públicos, e a desorganização da pólis
causa distúrbios na alma dos cidadãos.
Esta percepção de que há uma ligação umbilical entre a ordem social
e o estado de ânimo dos indivíduos provou-se verdadeira muitas vezes
ao longo da história, e a Grande Peste de Londres é exemplo disto.
Quando a epidemia tomou maior intensidade, alterando o curso das
atividades cotidianas, o caos instalou-se na cidade.
Defoe não traz relato detalhado sobre as biografias e carreiras dos man-
datários de Londres à época da peste, mas frisa diversas vezes que a
ignorância, o medo, o desespero e medidas ora precipitadas, ora pos-
tergadas, ajudaram a agravar uma situação que já era suficientemente
complicada. Segundo a narração, a má-condução do poder público foi
responsável por um grande número de mortes.
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Os cidadãos londrinos, expostos à doença gravíssima e seguindo orde-
namentos ora demasiado brandos, ora demasiado autoritários, logo vi-
ram o caos que os cercava invadir suas próprias consciências. Há relatos
de aumento de crimes, excessos no consumo de bebidas alcóolicas, um
incrível alargamento no número de surtos psiquiátricos, além de uma
crescente indiferença diante da morte, da qual falaremos mais adiante.
Muitas vezes os sons da cidade são retratados na reconstituição do
cenário urbano em Um Diário do Ano da Peste. O narrador ressalta re-
petidamente os gritos desesperados e lancinantes que podiam se ouvir
pelas ruas vazias da cidade assolada pela epidemia.
Os cidadãos atingidos pela peste, temerosos da morte, desesperados de
tempos melhores e vendo ruir o contrato social a que estavam habitua-
dos, bradavam não por socorro nem tencionando atenuar seu próprio
sofrimento. Seus gritos antes expressavam a dissolução da ordem até
então vigente: a voz desarticulada era, na alma de cada indivíduo, a
expressão do caos da pólis londrina.
A IMPACIÊNCIA DOS RELIGIOSOS
A fé pode exigir de um homem sacrifícios incríveis, desobediência às
próprias vontades e contrariedade ao bom-senso. Mas atos insensatos
em nome da confiança em promessas longínquas sempre encontram
um grave obstáculo: a impaciência.
O crente não pode esperar por longos períodos o cumprimento das
promessas de seu Deus se não houver, nesse meio tempo, ao menos
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um tira-gosto daquilo que o aguarda num futuro distante. Se a decep-
ção for contínua e não houver novo sinal de que o contrato religioso
será efetivado, os fiéis logo se tornam descrentes e trocam sua religião
por outra que dê respostas mais rápidas aos seus anseios.
Na narrativa do Êxodo há interessantes exemplos desta dinâmica. O
povo hebreu exigia continuamente novos sinais que confirmassem as
promessas divinas, ainda que tivesse viva na memória a lembrança dos
milagres operados na fuga do cativeiro egípcio. Eles puderam esperar
por quarenta anos sua libertação, mas, enquanto enfrentavam as difi-
culdades da peregrinação pelo deserto, não havia paciência que supor-
tasse mais do que alguns meses por novas mensagens divinas ou do
que alguns minutos por pão e água para seguir a caminhada.
Nos evangelhos a história se repete: Jesus Cristo muita vez censurou as
multidões que exigiam milagres, mas não deixou de operá-los aos mon-
tes, pois sabia que a fé dos homens era imperfeita e a paciência, curta.
As antecipações que animam a perseverança dos fiéis de determinada
religião surgem, portanto, de acordo com a capacidade que cada um
possui para suportar as dores da espera. Como diz o ditado, Deus dá o
frio conforme o cobertor.
Durante a epidemia londrina, não houve habitante da cidade que
escapasse a grandes provações. Doentes ou sãos, todos enfrentavam,
além do perigo da peste em si, a incerteza quanto ao futuro e a an-
gústia de pensar na própria morte. Era natural que em situação tão
delicada, para a qual aparentemente não havia solução humana, os
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homens levantassem as mãos aos céus, implorando por socorro e
misericórdia.
Os cristãos que viveram sob a epidemia viram-se em uma sinuca de
bico: embora cressem nas promessas da sua religião, não tinham for-
ças para suportar a tribulação da peste. A impaciência manifestou-se
de diversas formas: alguns abraçaram o ateísmo; outros tornaram-se
blasfemadores; e ainda houve os que se tornaram seguidores de bruxos
e astrólogos.
Como se sabe, Daniel Defoe era um homem de firmes convicções reli-
giosas, capaz de levar suas crenças às últimas consequências. Certos da-
dos biográficos, como a infância em família dissidente e a condenação
ao pelourinho, indicam a grande ascendência do cristianismo sobre
vida e obra do autor. O tom de escândalo utilizado para narrar os atos
contrários à piedade religiosa é uma mensagem do escritor àqueles que
compartilham crença igual a sua: caso o cenário epidêmico se repita,
guardar a fé é tão importante quanto zelar pela saúde e sobrevivência.
RESISTÊNCIA AO SOFRIMENTO
No início da epidemia, cada notícia de novo enfermo ou falecido cau-
sava grande comoção. Quando algum doente sucumbia pelas ruas,
logo aglomeravam-se ao redor do cadáver dezenas de cidadãos, movi-
dos por um misto de espanto e curiosidade. As medidas que visavam
mitigar a propagação da doença eram seguidas, e mesmo os corações
mais duros se enterneciam pelos lamentos dos agonizantes e pela dor
dos enlutados.
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Porém, conforme a epidemia recrudescia, arrefecia o sobressalto de
todos diante da morte. As estatísticas apontavam um desastre, mas os
londrinos não suportavam mais testemunhar tantas e tamanhas des-
graças. Para aliviar a tensão daquela situação-limite, muitos abandona-
vam as medidas de segurança sanitária em troca de alguns momentos
de prazer e diversão. Houve cidadãos que se entregaram a bebedeiras
e muitos enfermos rompiam o isolamento para espairecer em passeios
pela cidade.
À primeira vista, estas atitudes parecem sintoma de um grande egoís-
mo. De fato, é inegável que pensar apenas em si, colocando o próprio
bem-estar à frente da preservação da saúde pública, foi uma medida
insensata, que em nada contribuiu para a mitigação dos danos que a
epidemia trazia a todos os habitantes da cidade. Mas esta busca por
diversão revela um traço comum a todo ser humano: a incapacidade
de suportar dores por períodos longos e ininterruptos.
Busquemos em nossa memória a lembrança do velório de um ente que-
rido. No início da reunião, todos os presentes permanecem, naturalmen-
te, com semblantes fechados, tanto por tristeza quanto por respeito ao
finado. Com o passar das horas, vão se formando rodinhas de conversa,
encontram-se amigos e parentes que há muito não se viam, e por alguns
instantes a atmosfera fúnebre dá espaço a momentos de viva alegria.
Em muitos filmes de guerra vemos situações análogas. No intervalo
entre uma campanha e outra, os comandantes oferecem aos batalhões
espetáculos circenses, com enredos que em nada se aproximam de his-
tórias de coragem e heroísmo. Aos soldados são fornecidos momentos
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de pura diversão, para que eles esqueçam das agruras da guerra por
algumas horas.
Estas três situações apontam para uma mesma realidade: a tensão tem
de ser entremeada por momentos de relaxamento. Quando pessoas
comuns são expostas a situações extremas, surge nelas uma necessida-
de irresistível de, de tempos em tempos, entregar-se a momentos de
brincadeiras e distrações, que exercem uma função análoga à do rela-
xante muscular aplicado no corpo de um atleta que acabou de praticar
exercícios intensos.
Na Londres de 1664-1665, médicos, enfermeiros, clérigos, cocheiros
fúnebres e coveiros destacaram-se por mostrar grande resiliência ao
caos epidêmico. Este profissionais, seja por inclinação natural, seja por
estudo e preparação, possuíam a capacidade de, mesmo em contato
próximo e contínuo com a morte, manter certa frieza em relação aos
dramas que presenciavam. Como havia milhares de mortos e enfer-
mos, eles não podiam chorar as dores de cada um. Auxiliando os ne-
cessitados, mas deles conservando um salutar distanciamento emocio-
nal, os homens e mulheres da linha de frente eram capazes de encarar
com maior resistência as dificuldades da vida sob a epidemia
Os cidadãos comuns, que até então raramente lidavam com a mor-
te e subitamente passaram a tê-la diante de si diuturnamente, não
suportaram o estresse contínuo ao qual foram submetidos. Ainda
que compreendessem os perigos a que se expunham ao percorrer a
cidade assolada pela peste, àqueles cidadãos as diversões, fossem em
bares, fossem em caminhadas, eram de extrema importância para a
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manutenção de um mínimo de sanidade no enfrentamento de um
período de dificuldades extremas.
IMPORTÂNCIA DOS RITOS FÚNEBRES
Os ritos fúnebres têm a função de, além de prestar o devido respeito ao
indivíduo falecido, auxiliar familiares e amigos a elaborarem e supera-
rem a dor da perda de um ente querido.
Para seguir em frente após a perda de uma pessoa amada, é de suma
importância a organização de um evento em que o sofrimento seja
expressado publicamente, os enlutados sejam consolados, o falecido
seja homenageado e todos possam compartilhar boas lembranças do
convívio com o finado.
Em tempos de peste, é comum que os velórios e funerais sejam pronta-
mente suspensos, para evitar que a homenagem a um enfermo falecido
dê ocasião a aglomerações que propaguem ainda mais a doença que o
vitimou. Tal se deu na Grande Peste de Londres.
Em cenários de peste, guerra ou desastre natural, em que o número de
mortos aumenta significativamente, ultrapassando por muito a capa-
cidade de trabalho dos profissionais dos serviços funerários, é comum
que os funerais individuais sejam substituídos por enterros coletivos.
De uma só vez, dezenas ou centenas de cadáveres são enterrados, mui-
tas vezes sem caixões e em uma mesma cova. Assim, também, deu-se
na epidemia londrina.
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O episódio do viúvo desesperado, talvez o mais comovente episódio da
história, aborda estas questões.
Seja qual for a situação, é de se esperar que um chefe de família fique
profundamente abalado pela perda súbita de esposa e filhos. Ao drama
por si só doloridíssimo, porém, foi acrescido o agravante circunstan-
cial da impossibilidade de realizar os ritos fúnebres costumeiros.
Para dar adeus aos seus, o viúvo seguiu até o cemitério a carruagem
que levava os corpos e sofreu outro grande baque. Como eram muitas
as mortes diárias, os coveiros tinham de realizar com o máximo de ve-
locidade seu serviço. Os cadáveres, então, eram retirados da carroça e
arremessados à fossa sem delicadeza alguma, como, infelizmente, exigia
a situação. Ao testemunhar o infeliz destino de seus familiares, o viúvo
decerto experimentou sofrimento tão doloroso quanto o da perda em si.
O viúvo e milhares de famílias londrinas não puderam se despedir dos
seus à maneira que a cultura em que estavam inseridos e a religião que
professavam indicavam. Sem esses ritos, que estão presentes em todas
as culturas de todas as civilizações, à dor da perda é acrescida uma sen-
sação de desorientação, que impede a compreensão do fechamento de
um ciclo e o vislumbre de algum sentido para o sofrimento passado.
Essa passagem foi relatada com riqueza de detalhes, e isto certamente
não foi sem razão. Enquanto lemos o diário, aos poucos vamos nos
acostumando à sucessão de histórias e números, e logo deixamos de
nos impressionar com a presença da morte. Ao lermos a triste história
do viúvo, somos arrancados do torpor em que estávamos mergulhados
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e voltamos a nos comiserar dos lancinantes sofrimentos padecidos por
aqueles indivíduos.
EPIDEMIA
O tema principal da Ilíada, como mencionamos acima, é a ira de Aqui-
les. Mas essa ira jamais teria sido desencadeada e registrada pelos ver-
sos de Homero se uma peste não tivesse atingido o exército dos gregos.
Criseida, filha de Crises, sacerdote de Apolo, havia sido tomada como
escrava por Agamenon, o comandante das hostes gregas. Crises tentou
libertá-la, oferecendo ao sequestrador presentes de alto valor como res-
gate. Agamenon, entretanto, recusava-se a devolvê-la, pois a considerava
a mais bela das mulheres. Então Apolo enviou uma peste, que atingiu
violentamente o exército grego. Para cessar a maldição, Agamenon liber-
tou Criseida e preservou seus homens, que seguiram rumo a Troia.
Filoctetes, antigo argonauta e mestre de Hércules, não pôde se unir ao
exército grego por motivos de saúde. Ele havia sido um dos pretenden-
tes de Helena, e, assim como seus pares, prometera defender a honra
da filha de Zeus. Quando esta casou-se com Menelau e foi sequestra-
da por Páris, Filoctetes foi chamado para auxiliar no resgate, porém,
acabou ferindo o pé no meio do caminho. A ferida tornou-se infecção
e exalava um odor pútrido. Chegando ao acampamento do exército
grego, o argonauta foi expulso por Ulisses, que não desejava ver seus
homens expostos à enfermidade física e moral de Filoctetes.
Em Édipo Rei, a primeira entre as tragédias gregas, também há uma
aparição da peste. No primeiro ato da peça, Tebas está sendo devastada
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por uma epidemia. O povo corre ao palácio real e implora nova salvação
a Édipo, que havia subido ao trono por desvendar o enigma da esfinge.
O rei envia Creonte ao oráculo de Delfos, segundo o qual a cidade só se
livraria da peste quando matasse ou banisse o assassino de Laio.
Na História da Guerra do Peloponeso, Tucídides narra com riqueza
de detalhes os efeitos de uma epidemia de peste que assolou Atenas
durante a guerra travada contra Esparta. Segundo o historiador, um
quarto da população foi dizimada, e entre os sobreviventes espalhou-
-se a desordem e a ilegalidade. Como havia a crença de que a doença
era castigo por alguma iniquidade, a explicação do autor enfatiza a
corrupção dos costumes e da moral da comunidade naqueles tempos.
Além destas e de outras menções na literatura grega, as doenças são
também assunto nas culturas judaica e cristã.
A lei enviada aos israelitas dá instruções claras sobre diagnóstico e tra-
tamento da lepra, e muitas vezes associa a doença à punição divina
para repreender o povo desobediente. Os leprosos deveriam ser excluí-
dos do convívio social e, como não houvesse cura, o diagnóstico equi-
valia à condenação a degredo perpétuo. Em um dos mais célebres epi-
sódios sobre o tema, Eliseu, sucessor do profeta Elias, devolve a saúde
ao leproso Naamã, tornando real o que parecia impossível e causando
grande impressão no reino de Israel.
Nos evangelhos, muitos dos milagres de Jesus Cristo são curas de en-
fermos. Cegos, mudos, surdos, leprosos e outros doentes que, segundo
a crença da época, padeciam por conta de seus pecados ou dos pecados
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de seus pais, tinham suas chagas limpas pelo Messias, que prometia
curá-los a um só tempo das enfermidades do corpo e do espírito.
Esta ligação íntima entre doenças, deuses e moralidade marcou indelevel-
mente a cultura européia. O Decamerão, de Giovanni Boccaccio, é exem-
plo deste vínculo: não há conto da obra que não aponte a conexão entre
a tragédia sanitária, o desagrado dos céus e a corrupção dos costumes.
Durante sua reconstituição da Grande Peste de Londres, Daniel Defoe
traz esta percepção inúmeras vezes. O narrador reiteradamente associa,
por meio de citações e alusões a passagens bíblicas, a peste a punições
divinas pelos pecados dos homens, e dá grande espaço a relatos e co-
mentários sobre a atmosfera supersticiosa que encobria a cidade antes
e durante a epidemia.
Certamente o desconhecimento científico e a gravidade da situação
foram combustível para exaltação do ânimo dos fiéis londrinos. Po-
rém, como percebemos, as especulações que atribuem o surgimento
das doenças à ira divina antecedem e muito a tragédia vivenciada por
Daniel Defoe.
A Grande Peste de Londres, conforme a história nos conta, foi uma
epidemia, não uma pandemia. A princípio, a diferença entre os dois
termos está na escala de incidência de uma doença: as pandemias atin-
gem o mundo todo; as epidemias, uma região específica.
A etimologia de epidemia, entretanto, dá ao termo dimensões que ex-
trapolam definições geográficas e matemáticas. A palavra é composta
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pelo prefixo ‘epí’, que significa ‘acima’, ‘sobre’, junto a ‘demos’, que sig-
nifica ‘povo’. Assim compreendido o vocábulo, o problema torna-se
mais grave: deixa de ser apenas um caso de saúde pública e torna-se
um castigo que o céu impõe aos povos.
É provável que apenas uma minoria letrada entre os cidadãos londrinos
tivesse consciência das raízes etimológicas da palavra do momento. Vale,
pois, a pergunta: que diferença faz dar este ou aquele nome à desgraça
que castigava a cidade? Como poderia uma palavra por si só conduzir
milhares de pessoas a uma mesma interpretação de fatos tão graves?
A linguagem humana é formada pela tríade língua-percepção-realida-
de. As palavras, portanto, não são traduções diretas da realidade, mas
um conjunto de significados construídos a partir de objetos e expe-
riências primárias que passaram pelas escolhas e preferências de cente-
nas de gerações. A investigação da raiz etimológica funciona, portanto,
como uma escavação arqueológica, que parte da superfície dos signifi-
cados atuais rumo ao abismo das experiências e objetos já esquecidos.
Lançando um olhar atento às palavras que usamos, podemos entender
melhor a nós mesmos e à cultura em que estamos inseridos.
A Inglaterra do século XVII já experimentava sinais da modernida-
de. O protestantismo solapava o catolicismo romano, era grande o
comércio com o novo mundo e, na filosofia, as primeiras fagulhas do
racionalismo iluminista ameaçavam a soberania da filosofia medieval.
Mas o período era de transição; a emergente civilização moderna ainda
competia com as milenares crenças e costumes que a precederam.
No diário, são citadas posturas, sobretudo por parte de alguns médi-
cos, que denotam um espírito, embora um tanto arcaico, científico,
que buscava explicar de modo racional as causas e possíveis soluções
para a visitação da peste. Em sentido contrário, surgiu aquilo a que
hoje chamamos de ‘crendice’, que é fruto de séculos e séculos de su-
premacia de uma cultura em que se misturavam influências católicas,
romanas e gregas.
Como notamos, o uso de doenças como metáfora da relação entre ho-
mens e deuses conta com um longo registro histórico. Embora seu uso
começasse a cair em desuso justamente no período da Grande Peste de
Londres, ainda havia resquícios seus semeados na cultura inglesa, como
indica o termo ‘epidemia’ e provam os atos ora piedosos, ora desespera-
dos dos cidadãos que criam viver sob a pena de um castigo celeste.