39
GUIA DE LEITURA UM DIÁRIO DO ANO DA PESTE

Guia - Um diário do ano da peste

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Guia - Um diário do ano da peste

GUIA DE LEITURAUM DIÁRIO DO ANO DA PESTE

Page 2: Guia - Um diário do ano da peste

Índice

Do autor _________________________________ 3

Resumo da obra ___________________________ 9

Introdução aos eventos ______________________ 10

Personagens _______________________________ 18

Chaves de leitura ___________________________ 20

Page 3: Guia - Um diário do ano da peste

3

Do autorComerciante, jornalista e clássico

Em 1702, Daniel Defoe publicou anonimamente o panfleto The

shortest way with the dissenters, obra em que expunha a maneira que

julgava mais adequada para solucionar os conflitos entre anglicanos

e dissidentes.

O escritor era partidário da tolerância e compôs seu panfleto em tom

satírico. Escrevendo como fosse um alto dignitário da Igreja Anglicana,

Defoe argumentou que a melhor maneira para lidar com os dissiden-

tes era o exílio ou a forca. A Igreja da Inglaterra, ele disse, era como o

Cristo crucificado entre dois ladrões: de um lado os católicos papistas

e os dissidentes de outro. Nada mais justo, portanto, que eliminar de

modo sumário estes inimigos. Figuras proeminentes do clero inicial-

mente levaram o texto ao pé da letra, mas logo perceberam a zombaria.

A identidade do autor foi descoberta rapidamente e pela informação

de seu paradeiro foi oferecida alta recompensa. Defoe escondeu-se nos

arredores de Londres, mas logo foi capturado. Enquanto era fugitivo,

publicou um texto em que se desculpava e tentava esclarecer a má in-

terpretação que se formara em torno de suas palavras. Pouco ou nada

Page 4: Guia - Um diário do ano da peste

4

adiantou: ele foi confinado na prisão de Newgate. A punição, além de

larga multa, era o pelourinho. Defoe apelou da sentença, implorando

por misericórdia, mas seu recurso não foi atendido.

O pelourinho era utilizado como punição para delitos como sedição,

pequenos golpes, homossexualidade e adultério. O condenado era ata-

do a uma coluna de pedra ou madeira em local de grande circulação,

para que sofresse, além do castigo físico, a humilhação pública. Em

julho de 1702, Defoe foi ao pelourinho. Sua pena não incluía chicota-

das, e sequer houve vaias e cusparadas dos seus concidadãos.

Durante seu período na prisão, Defoe compôs o Hymn to the pillory,

que zombava da sentença. Amigos imprimiram centenas de cópias do

poema e do panfleto e as distribuíram entre o povo na data cabal. Os

leitores, impressionados pelo humor das obras, foram tomados por

uma imensa simpatia pelo autor. Em vez de ovos podres, cusparadas e

vaias, jogaram flores aos seus pés, e o que seria uma humilhação, tor-

nou-se o momento de consagração pública do condenado.

Este episódio reúne em si todos os traços distintivos da biografia de

Daniel Defoe: fervor religioso, problemas econômicos, engajamento

político e mestria em prosa e poesia.

Daniel Foe (o ‘de’ seria acrescido posteriormente) nasceu em Londres,

em data desconhecida do ano de 1660. Filho de James Foe e Alice, o

escritor tornou-se órfão de mãe aos 10 anos de idade. Seu pai era açou-

gueiro, produtor de velas e dissidente, e passou ao filho as manhas das

lidas comerciais e o zelo pelas convicções religiosas.

Page 5: Guia - Um diário do ano da peste

5

Os dissidentes eram grupos que desejavam um aprofundamento da

reforma protestante, que afastasse tanto quanto possível a Igreja da

Inglaterra do catolicismo romano. Como não havia separação entre

Igreja e Estado, os que não reconheciam a autoridade anglicana tam-

bém não aceitavam a autoridade do Estado, e por isso eram tratados

como rebeldes. Entre os dissidentes havia presbiterianos, anabatistas,

puritanos, metodistas, quakers e diversos outros grupos que migraram

para as colônias na América.

Uma das expressões da intolerância religiosa era a separação radical do

convívio social entre os grupos concorrentes. Por esta razão, Defoe não

pôde ser matriculado nas escolas mais tradicionais e recebeu suas pri-

meiras letras, aos quatorze anos, na Reverend James Fischer’s School, ins-

tituição exclusiva para famílias não-conformistas. Ali, o jovem Daniel

foi educado nas artes liberais e na doutrina religiosa, sendo preparado

para, num futuro próximo, ser investido do sacerdócio.

A pregação do evangelho de Jesus Cristo não assentou bem à perso-

nalidade de Defoe, cujo espírito combativo e aventureiro estava mais

inclinado à política e ao comércio. Em 1685, Jaime Scott, 1º duque

de Monmouth e filho bastardo de Carlos II, reclamou o trono inglês e

tentou destronar Jaime II, monarca católico impopular entre os súdi-

tos protestantes. A rebelião fracassou e Defoe, que dela fizera parte, foi

condenado, mas perdoado.

Três anos depois, encontramo-lo comerciando lã em Londres. No ano

seguinte, ele esteve entre os partidários da Revolução Gloriosa que

enfim derrubou Jaime II. Graças à sua amizade com Guilherme III, o

Page 6: Guia - Um diário do ano da peste

6

novo monarca, Defoe obteve facilidades em exportações que o levaram

a viajar a negócios por França, Alemanha, Holanda e Espanha.

A viagem foi longa e bem-sucedida, mas intrigas políticas e problemas

com o fisco corroeram os lucros que foram obtidos. Defoe foi à ban-

carrota e condenado à prisão. Após negociar as dívidas, foi libertado e

viajou a Portugal para comerciar vinho do Porto. Retornou à Inglater-

ra em 1695. Privado da independência econômica, granjeou entre os

amigos poderosos um posto de coletor de impostos.

Nos anos seguintes, teve início sua militância política a favor de Gui-

lherme III. Em 1697, publica An Essay Upon Projects, obra sobre pla-

nos de desenvolvimento econômico. No mesmo ano, defende as ofen-

sivas militares do monarca contra a França em artigos jornalísticos.

Em 1701, publica The True-Born Englishman, em que defende o mo-

narca nascido na Holanda de ataques xenófobos e argumenta contra o

crescente sentimento anti-imigração.

Em 1703, Guilherme falece e Ana ascende ao trono. Há reviravol-

ta na política interna e se desencadeia nova onda de perseguição aos

dissidentes. Aqui se dá o caso da prisão e do pelourinho. Na semana

seguinte à sua libertação, Daniel Defoe testemunhou o Great Storm of

London, ciclone que vitimou mais de 8 mil pessoas e devastou a cida-

de. A experiência foi relatada em The Storm (1704), obra que em sua

forma muito se assemelha a Um diário do ano da peste.

Ainda em 1703, o escritor tornou-se redator na Review of the affairs of

France, periódico dedicado a prestar apoio à política de Robert Harley,

Page 7: Guia - Um diário do ano da peste

7

primeiro-ministro durante o reinado de Ana. A revista publicou três

edições por semana de 1703 a 1713.

À época discutia-se a união dos reinos da Inglaterra e Escócia. Como

a medida fosse controversa, todo o cuidado era pouco para levá-la a

cabo. Robert Harley, que estava satisfeitíssimo com os serviços pres-

tados por Defoe, convocou o escritor para uma missão inusitada: agir

como espião em território escocês.

Defoe circulava por Glasgow monitorando as movimentações polí-

ticas sobre a união das coroas, influenciava discretamente a opinião

pública e enviava quase diariamente relatórios ao rei. Para justificar sua

estadia, afirmava estar em processo de pesquisa para um futuro livro

sobre a história da Grã-Bretanha. Sua personalidade não era discreta, e

foram justamente seus modos expansivos que o auxiliaram a ganhar a

confiança de figurões e obter informações valiosas.

Até 1713, Defoe permaneceu em seu jornalismo chapa-branca na Re-

view of the affairs of France. A estabilidade política do reino e de suas

finanças pessoais deram tranquilidade ao escritor, que, já experimenta-

do, deu seus primeiros passos de maior ousadia na literatura.

São mais de 500 as obras cuja autoria é creditada a Defoe, assinadas

sob mais de 200 pseudônimos. Entre elas destacam-se os romances

Robinson Crusoe (1719) e Moll Flanders (1722). Nelas, pela primeira

vez o povo inglês surgiu como protagonista de grandes obras da sua

própria literatura, forjando um estilo mais original e menos influen-

ciado pelas culturas italiana e francesa.

Page 8: Guia - Um diário do ano da peste

8

Um diário do ano da peste veio a público em 1722. Dois anos antes,

Marselha foi atingida por uma epidemia que vitimou mais de 100 mil

habitantes. Por toda a Europa houve temor de que o surto se espalhas-

se. Em Londres, onde ainda ardia a lembrança de 1665, a população ia

aflita. Daniel Defoe decidiu, então, oferecer a seus conterrâneos uma

obra que relatasse o drama passado e ajudasse a preparar os ânimos

para enfrentar uma nova epidemia.

Como contava apenas cinco anos em 1665, Defoe não pôde basear o

relato apenas em suas lembranças. A crítica aponta que a obra foi ins-

pirada no diário de Henry Foe, tio do escritor que vivia no distrito de

Whitechapel e trabalhava como seleiro. O narrador da história assina

“H.F.” e exerce o mesmo ofício, tornando esta tese bastante crível.

A miscelânea de gêneros aliada à limpidez de estilo e ao caráter de

devotamento ao bem comum fazem de Um diário do ano da peste um

clássico não apenas da literatura, mas também do jornalismo e da his-

toriografia. Nós, do Clube de Literatura Clássica, temos a imensa sa-

tisfação de levar a nossos assinantes este clássico imprescindível para os

nossos tempos.

Page 9: Guia - Um diário do ano da peste

Resumo da obra

Page 10: Guia - Um diário do ano da peste

10

Introdução aos eventosOs londrinos acreditam que a peste retornará à cidade, pois há rumo-

res de uma epidemia na Holanda e o comércio entre os dois países é

intenso. O narrador (H.F.) observa que ocorreram algumas mortes

causadas pela peste nos meses seguintes. Os londrinos, porém, perma-

necem calmos, apesar de haver um aumento no número de enterros

entre dezembro de 1664 e fevereiro de 1665. A vida segue seu curso

normal até maio deste ano, quando o número de mortes aumenta de

modo alarmante.

H.F. mora em Aldgate, a leste do centro de Londres, e possui uma fábri-

ca de selaria. Ele observa que os ricos estão fugindo para o campo e se

pergunta se deve ou não fazer o mesmo. Seu irmão, um homem muito

religioso, crê que fugir é a decisão mais acertada, pois H.F. não tem mu-

lher nem filhos com quem se preocupar. H.F. lê uma passagem da Bíblia

que promete proteção contra a peste e se convence de que permanecer

na cidade e cuidar de seus funcionários é o correto a se fazer.

A peste começa a espalhar-se em julho. As mortes chegam à marca de

1700 por semana. H.F. teme pela cidade, que tem população grande e

condensada em pequeno espaço. No comportamento dos cidadãos, o

Page 11: Guia - Um diário do ano da peste

11

narrador observa que as pessoas passaram a permanecer em casa e de

portas fechadas.

A CHEGADA DA PESTE

H.F. dá alguns passos para trás a fim de melhor explicar o compor-

tamento dos londrinos. No outono de 1664, a passagem de um co-

meta pela cidade fez muitos acreditarem que uma desgraça estava por

vir; havia quem corresse pelas ruas gritando que a cidade seria logo

destruída. Astrólogos e videntes eram consultados por cidadãos que

buscavam respostas. As consultas custavam caro, e muitos charlatães

enriqueceram às custas do desespero alheio. O ápice das superstições

foi entre dezembro de 1664 e março de 1665.

O governo e diferentes denominações cristãs tentavam afastar o povo

das superstições, mas nem sempre eram ouvidos. Havia também outra

espécie de impostores: aqueles que prometiam curas milagrosas e afir-

mavam possuir remédios eficientíssimos contra a peste. Para H. F., um

cristão devoto, homens e mulheres que espalhavam o medo para obter

lucro através de mentiras eram manifestações do diabo.

O narrador torna sua atenção para a chegada da epidemia. As mortes

iniciaram-se em dezembro de 1664. Famílias inteiras foram infectadas

e morreram em suas casas. O pânico tomou conta da cidade. Ao co-

mentar sobre os médicos que fugiram, H.F. exalta aqueles que ficaram

e sacrificaram a vida para zelar pelos enfermos.

Page 12: Guia - Um diário do ano da peste

12

REAÇÃO DAS AUTORIDADES

Em 1º de julho de 1665, o Prefeito e os magistrados de Londres to-

maram medidas para mitigar a proliferação da peste. As deliberações

visavam isolar enfermos e suas famílias. Foram designados médicos,

enfermeiros, vigias e burocratas para cada paróquia. Os vigias eram

responsáveis por garantir que ninguém fugisse das casas isoladas, fazer

compras e auxiliar os doentes em caso de emergência.

As casas isoladas tinham de ser identificadas por uma cruz vermelha

acompanhada pela inscrição “Senhor, tende piedade de nós”. Reuniões

foram proibidas e casas de espetáculos, fechadas. O prefeito ordenou

que as ruas fossem limpas com frequência, que açougueiros e cervejei-

ros não deixassem seus produtos apodrecer e que animais domésticos

fossem retirados da cidade.

Muitos londrinos faleceram quando foram trancados em casa, pois

o diagnóstico de um só familiar obrigava toda a família a cumprir o

isolamento. Houve famílias que romperam a lei, chegando a ponto de

agredir vigias para poder fugir. Cerca de 18 vigias foram assassinados

durante o ano de 1665. Outros não usavam de violência, mas fugiam

por janelas e passagens secretas, muitas vezes abandonando parentes e

servos moribundos.

AS RUAS DE LONDRES

H.F. testemunha ou ouve falar de inumeráveis misérias ocorridas no

verão de 1665 e atenta-se para um caso em particular. Uma viúva mo-

Page 13: Guia - Um diário do ano da peste

13

rava com sua filha de dezenove anos e apenas uma criada. Embora ti-

vessem condições financeiras para ir ao campo, decidiram permanecer

em Londres durante a epidemia. As três mulheres tomavam todos os

cuidados possíveis para evitar a infecção, mas, como era preciso sair

para comprar suprimentos, acabaram expostas à doença. Um dia, logo

quando chegaram das compras, a filha sentiu febre. Ao examinar a

menina e descobrir nela os sintomas da peste, a mãe desesperou-se. A

menina morreu dali poucas horas; a mãe jamais voltou a si e faleceu de

tristeza após algumas semanas.

O narrador sente-se seguro para andar pela cidade. Em um de seus pas-

seios, observa uma grande vala comum durante o dia e decide sair para

visitá-la à noite. O vigia do cemitério é seu amigo e permite que ele

adentre o recinto. Os corpos eram recolhidos das esquinas durante o

dia e enterrados à noite. Enquanto os coveiros jogam os corpos na vala,

surge um homem desesperado. Todos creem tratar-se de um provável

suicida, mas não é este o caso. O homem havia perdido esposa e filhos.

Como velórios estavam proibidos, ele decidiu seguir a carroça fúnebre

para dar um último adeus aos seus. Porém, abalou-se ao ver o modo

pouco delicado dos coveiros, que arremessavam os corpos na cova devi-

do à pressa. H.F. fica impressionado pela cena que testemunhou.

A atenção é voltada às pessoas que fogem do isolamento. Estes fugi-

tivos aparentemente saudáveis acabavam infectando aqueles que lhe

davam guarida. O narrador é de opinião de que deveria haver mais

hospitais, para que todos os infectados e saudáveis pudessem viver

separadamente. Para proteger os empregados que moram consigo da

Page 14: Guia - Um diário do ano da peste

14

contaminação pelas ruas, H.F. compra grandes quantidades de cerveja,

farinha e queijo.

O narrador volta e meia passeia pela cidade. Nessas viagens, vê pessoas

correndo nuas e enlouquecidas, ouve o grito de doentes e testemunha

diversos suicídios. John Hayward, conhecido de H.F., conta a ele uma

história tragicômica. Um flautista, que fazia momices para arrecadar di-

nheiro para suas bebedeiras, caiu pela rua determinado dia. Como havia

o costume de empilhar os cadáveres pelas esquinas, ao redor do flautista

foram sendo depositados os corpos dos falecidos da vizinhança. Ele foi

recolhido pela carroça fúnebre e quase enterrado vivo na vala comum.

H.F. critica o governo por não haver assistência aos pobres. Porém,

também reconhece que as autoridades municipais estão coordenando

os esforços no combate à epidemia.

REAÇÕES AO CENÁRIO CAÓTICO

H.F. encontra um homem às margens do rio Tâmisa. Ele se chama

Robert. Sua esposa e filhos estão infectados pela peste. Robert trabalha

prestando pequenos serviços para as famílias londrinas que se refugia-

ram da epidemia em embarcações espalhadas pelo rio Tâmisa. H.F. vai

à casa de Robert e observa de longe sua família. O narrador comove-se

com sua situação, em que não pode sequer abraçar a esposa e os peque-

nos. H.F. doa grande quantia de dinheiro a Robert.

As estatísticas apontam um aumento de abortos, natimortos e da mor-

talidade infantil. Há boatos de que mães estão matando seus filhos in-

Page 15: Guia - Um diário do ano da peste

15

fectados. Algumas mães doentes e sem condições de pagar enfermeiras

preferem matar seus filhos a deixá-los morrer de fome.

A HISTÓRIA DOS TRÊS HOMENS

Thomas serviu na marinha inglesa e agora fabrica velas para navios.

John foi soldado e agora é padeiro. Thomas e John são irmãos. Quan-

do a epidemia recrudesce, eles não conseguem mais encontrar trabalho

em Londres. Mas no campo também há risco de não encontrar fonte

de renda. Como não têm escolha, decidem fugir. Richard, carpinteiro

e amigo de Thomas, junta-se a eles. Eles deixam Londres em julho de

1665, carregando ferramentas, alguns pertences e um cavalo.

O trio encontra-se com outro grupo de viajantes. Seu líder se chama

Ford. Eles decidem seguir o caminho juntos. Ao chegarem a uma ci-

dade que não aceita viajantes, John engana o guarda dando a entender

que o grupo está armado até os dentes. Os cidadãos se amedrontam

e entregam suprimentos aos viajantes. Espalham-se pelo interior ru-

mores de que grupos de saqueadores londrinos estão ameaçando as

cidades pequenas.

As cidades que entregam provisões a Thomas, John e Richard são atin-

gidas pela peste em setembro de 1665. Os cidadãos não mais entram

em contato com os grupos de viajantes. O trio volta a Londres em

dezembro de 1665.

Page 16: Guia - Um diário do ano da peste

16

LOUCURA

As cidades vizinhas começam a relatar números significativos de in-

fectados e mortos pela peste. Os moradores da periferia de Londres

tornam-se agressivos com os viajantes.

O número de doentes que buscam escapar do isolamento aumenta.

Há muitas casas vazias, que frequentemente são invadidas por ladrões.

As autoridades tentam, a muito custo, manter a ordem.

H.F. é nomeado responsável pelos vigias do leste de Londres. Durante

três semanas, tem liberdade de andar pelas ruas e observa casos in-

críveis. O tratamento oferecido aos pacientes era doloroso, e muitos

preferiam dar termo à própria vida do que se submeterem a tamanho

sofrimento.

Outros não suportavam a dor das chagas da peste, então corriam nus

pelas ruas e se lançavam nas águas do rio Tâmisa. Havia casas em que

os doentes eram atados à cama, medida que os familiares tomavam

para evitar fuga e suicídio do enfermo.

O ÁPICE

A epidemia atingiu seu ápice em agosto de 1665. Houve casos de pes-

soas que morriam subitamente. Assim que apresentavam algum sin-

toma, morriam, e muitas vezes no meio da rua. O doente sentava-se

na calçada ou em algum banco e esperava a morte, que chegava em

questão de minutos. H.F. argumenta que estes casos agudos e repenti-

Page 17: Guia - Um diário do ano da peste

17

nos aconteciam pois muitos londrinos já não tinham vontade de per-

manecer vivos.

O narrador, porém, alegra-se ao lembrar que os charlatães do início da

epidemia ou fugiram ou morreram. Segundo ele, a morte desses apro-

veitadores era sinal da justiça divina. A epidemia agrava-se cada vez mais

e H.F. suspeita que a culpa seja daqueles que, embora doentes, aparen-

tam saúde. Os países da Europa não mais permitem a entrada de navios

ingleses. Da mesma forma, navios estrangeiros não aportam na Ingla-

terra. O desemprego aumenta. O prefeito passa a impedir que certos

trabalhadores, como coveiros, médicos e padeiros, fujam da cidade.

O FIM DA EPIDEMIA

H.F. e Heat, seu médico, discutem a situação em agosto de 1665.

Segundo o médico, a epidemia está prestes a acabar, embora ainda

esteja matando milhares de londrinos semanalmente. A esperança aca-

ba refletindo em um relaxamento dos londrinos, que abandonam as

medidas de distanciamento. Os casos aumentam no mês de outubro.

John Cock foi um homem que fugiu no início da epidemia e retornou

por acreditar que o problema havia terminado. Ele e toda sua família

foram infectados e morreram. Os médicos que fugiram começam a

retornar, mas são lançados ao ostracismo pelos cidadãos que haviam

abandonado. A epidemia arrefece em fevereiro de 1666. H.F. crê pia-

mente que a peste foi um julgamento divino e se sente extremamente

grato por ter sobrevivido a uma epidemia que vitimou um quarto da

população londrina.

Page 18: Guia - Um diário do ano da peste

18

PersonagensH.F. - H.F. é um produtor de selarias. Ele emprega uma dúzia de tra-

balhadores em seu negócio. De início pensa em fugir da cidade junto

de seu irmão mais velho, mas muda de ideia ao ler o salmo 91. A con-

fiança no auxílio divino é acompanhada de precauções contra a peste.

H.F. passa a maior parte do ano de 1665 fazendo anotações sobre o

desenrolar da epidemia. Possui uma curiosidade mórbida, chegando a

ponto de arriscar-se pelas ruas para melhor se informar da situação dos

habitantes de Londres.

IRMÃO MAIS VELHO DE H.F. - É um homem, segundo o narrador,

muito religioso. Aconselha H.F. a escapar de Londres. Foge com toda

a sua família logo no início da epidemia.

JOHN COCK - John Cock é um londrino que partiu da cidade nos

primeiros dias da epidemia, mas retornou cedo demais e acabou infec-

tado e morto.

SOLOMON EAGLE - Solomon Eagle é um louco que perambula nu

pelas ruas de Londres enquanto afirma aos gritos que a peste é instru-

mento da justiça divina.

Page 19: Guia - Um diário do ano da peste

19

FORD - Ford lidera um grupo de andarilhos que vaga pelo interior da

Inglaterra. Seu grupo se une a Thomas, John e Richard.

JOHN HAYWARD - John Hayward é um antigo conhecido de H.F. Ele

relata o caso do flautista que quase foi enterrado vivo.

DOUTOR HEATH - Doutor Heath é o médico de H.F. Ele aconselha

seu paciente sobre como evitar o contágio da peste.

JOHN - John é soldado reformado, padeiro e irmão de Thomas. Tenta

fugir de Londres com seu irmão e Richard antes do ápice da epidemia.

THOMAS - Thomas é marinheiro reformado, fabricante de velas de

navio e irmão de John.

RICHARD - Richard é carpinteiro e leva suas ferramentas consigo na

fuga de Londres.

ROBERT - Robert trabalha prestando pequenos serviços às famílias

que estão morando em embarcações ancoradas no rio Tâmisa. Não

se aproxima de sua esposa e de seus filhos pois eles estão infectados.

Robert mora em uma pequena embarcação e todos os dias deposita

mantimentos para a família na porta de casa.

PREFEITO - É a autoridade executiva da cidade. Instituiu restrições no

início do verão para mitigar a propagação da doença.

O FLAUTISTA - O flautista faz apresentações musicais e brincadeiras

em troca de esmolas. Quase é enterrado vivo após adormecer bêbado e

ser confundido com um cadáver vitimado pela peste.

Page 20: Guia - Um diário do ano da peste

20

Chaves de leitura

PROPOSIÇÃO, INVOCAÇÃO E DEDICATÓRIA

Em Os Lusíadas, Luís de Camões traz ao leitor as chamadas proposição,

invocação e dedicatória do poema antes de iniciar a narrativa.

Na proposição, o português apresenta o assunto que abordará e os he-

róis que serão retratados. Na invocação, o poeta se dirige a divindades,

solicitando auxílio e inspiração para elaborar a obra. A dedicatória, por

sua vez, é o oferecimento do poema em homenagem a alguém em par-

ticular, seja por admiração, gratidão, dívida ou em busca de favores; no

caso de Os Lusíadas, a obra é dedicada a D. Sebastião.

Tal estrutura interna é seguida à risca nas epopeias, sejam elas clássicas

ou modernas. Conforme o gênero foi perdendo espaço na literatura,

esta maneira explícita de apresentar a obra foi sendo abandonada, dan-

do espaço a modos mais enredados de situar o leitor quanto à natureza

do livro que tem em mãos. Identificar e compreender esta estrutura,

que funciona como uma espécie de teaser para atrair a atenção e pro-

vocar a curiosidade do público, é um passo imprescindível na leitura

de qualquer obra.

Page 21: Guia - Um diário do ano da peste

21

Em Um Diário do Ano da Peste, o narrador apresenta no parágrafo

inicial o tema que abordará: a epidemia de peste bubônica que pairou

sobre Londres entre 1664 e 1665 e seu impacto nos indivíduos e na

coletividade. Para reconstituir vividamente a atmosfera da cidade sob

a devastação de uma doença, o narrador recorre não a musas ou enti-

dades mitológicas, mas a um emaranhado de recordações, estatísticas

oficiais, relatos de sobreviventes e causos que entraram para o anedo-

tário da memória coletiva.

A dedicatória é certamente o mais interessante dos pontos introdutó-

rios da obra: o narrador oferece seu diário a todos os leitores que por

ventura passarem pelos sofrimentos da vida sob uma epidemia. Esta

ideia é ressaltada diversas vezes durante a narrativa e, como sabemos

que a repetição é uma figura de estilo, devemos nos perguntar o por-

quê da ênfase sobre este ponto.

Contar histórias é uma das mais belas ocupações do gênero humano, e

esta ocupação pode ser instrumentalizada para diversos fins. Há obras

que buscam somente entreter; outras buscam, sob o manto da ficção,

convencer o leitor a aceitar alguma posição política ou religiosa; outras

dão alertas sobre problemas que hoje parecem marginais e fúteis, mas

num futuro próximo podem, conforme a crença do autor, tornar-se dra-

mas de grandes proporções; e muitas criações literárias, inclusive as indis-

cutivelmente clássicas, são erigidas com uma miscelânea destas intenções.

Há, porém, uma finalidade da literatura que se sobrepõe a todas as

outras: dar exemplos que ajudem o leitor a tomar as rédeas da pró-

pria vida. Não se trata, por óbvio, de prescrever o que deve ou não

Page 22: Guia - Um diário do ano da peste

22

ser feito, nem de buscar distinguir o bem do mal e o joio do trigo. Os

grandes clássicos da literatura examinam com riqueza de detalhes as

motivações de cada gesto do coração dos homens, não com intenção

de condená-los ou absolvê-los, mas de relatar o que viram aos futuros

leitores, para que estes possam, comparando-se com os exemplos que

têm em mãos, ter maior consciência de si.

Entre as vicissitudes que se repetem continuamente durante a história,

destacam-se guerras, desastres naturais – e epidemias. Quando a socie-

dade é assolada por uma doença, logo são acrescidos ao problema sa-

nitário diversos dilemas de caráter moral, político, religioso e íntimo.

Em meio a uma situação caótica semelhante à experimentada pelos

habitantes de Londres durante a Grande Peste, os cidadãos são obriga-

dos a tomar decisões gravíssimas sem que haja tempo para refletir com

frieza sobre as consequências individuais e coletivas de cada ato.

Como depositária da experiência humana, a literatura serve, nesta si-

tuação-limite, como estrela-guia para viajantes desorientados. Ao dar

forma inteligível ao caos londrino e oferecê-la aos que viverem tragédia

semelhante, Daniel Defoe legou à posteridade a oportunidade de repe-

tir os acertos no combate à uma epidemia, desviar dos erros causados

pelas ações irrefletidas e ponderar com prudência sobre os dilemas in-

solúveis que surgem durante uma tragédia sanitária.

LIBERDADE E HEROÍSMO

Aquiles, cuja ira é o tema central da Ilíada, era célebre antes mesmo

de nascer. Seu pai foi Peleu, rei dos mirmidões; sua mãe, Tétis, uma

Page 23: Guia - Um diário do ano da peste

23

ninfa. Tétis, quando solteira, era disputada por Zeus e Poseidon.

Houve, porém, profecia sentenciando que um dos filhos da ninfa

teria maior grandeza que seu pai. Os deuses, que não desejavam re-

bento que lhes disputasse a fama e o prestígio, desistiram da união e

obrigaram Tétis a casar-se com Peleu.

Temerosa de que o filho morresse precocemente, Tétis decidiu lavar o

pequeno Aquiles nas águas do Estige, rio que corria pelo Hades, para

torná-lo imortal. Ao mergulhá-lo na água, segurou-o pelo calcanhar,

deixando esta parte do corpo do futuro herói desprotegida.

Por ordem paterna, Aquiles foi entregue aos cuidados do centauro

Quíron. Este curioso preceptor educou o menino nas armas, na músi-

ca e na medicina, e o menino crescia e se robustecia em força e beleza.

Quando Helena foi capturada por Páris e seus pretendentes gregos

conjuraram-se para resgatá-la, dando início à guerra de Troia, surgiu

nova profecia. Segundo os oráculos, Troia só seria derrotada se Aquiles

tomasse o partido dos gregos na peleja. Como Tétis seguia temerosa

da morte precoce do filho, decidiu levá-lo à ilha de Ciros, onde reina-

va Licomedes. Lá, Aquiles foi disfarçado de menina e criado junto às

filhas do rei.

Quando a profecia chegou aos ouvidos dos gregos, Odisseu foi ao rei-

no de Licomedes em busca do imprescindível guerreiro. Disfarçado de

mercador, Odisseu mostrou as armas que trazia para vender a um gru-

po de meninas, e observou que uma delas tinha grande interesse pelos

artefatos e manuseava-os com desenvoltura: Aquiles foi descoberto.

Page 24: Guia - Um diário do ano da peste

24

O jovem guerreiro ouviu a proposta de Odisseu e aceitou ir à guerra.

Tétis tentou dissuadi-lo revelando-lhe novas profecias: se fosse a Troia,

Aquiles teria vida breve, mas seus feitos gloriosos seriam cantados pela

eternidade; se ficasse, teria vida longa e tranquila, mas de si ninguém

lembraria tão logo morresse. Como sabemos, Aquiles decidiu-se pela

primeira opção e seus feitos heroicos são até hoje cultuados.

Em Um Diário do Ano da Peste, o narrador se apresenta como um pe-

queno comerciante, responsável tão-somente pela manutenção e pros-

peridade do seu negócio. Ele contava com boas reservas financeiras e

não tinha esposa ou filhos com que se preocupar; nada impedia sua

fuga para uma cidade distante da epidemia, portanto. Havia, porém, a

preocupação com os funcionários: caso simplesmente fechasse as por-

tas e partisse rumo ao campo, um punhado de famílias ficaria sem

renda em um momento crítico.

Por dias o comerciante pesou prós e contras da fuga ou da perma-

nência, e não encontrava resposta que o tirasse da encruzilhada entre

o medo da morte e o cuidado com seus subalternos. Sem conseguir

resolver o problema por si, ele decidiu entregá-lo a instâncias superio-

res: abriu a Bíblia a esmo e decidiu seguir o conselho que a sorte lhe

apontava. Como seu dedo pousasse sobre o salmo 91, em que o sal-

mista afirma, por fé em Deus, não temer a peste, ele bateu o martelo

por ficar em Londres.

Quando a doença apresentou-se em toda sua crueldade, a primeira

reação dos cidadãos abastados foi correr desesperadamente para as ci-

dades interioranas. O raciocínio era simples e o tempo provou seu

Page 25: Guia - Um diário do ano da peste

25

acerto lógico: em pouco tempo a peste se espalharia ainda mais, o caos

se instalaria e nenhum município da Inglaterra permitiria a entrada

de egressos de Londres. As classes baixas seguiam o mesmo raciocínio,

mas não tinham opção. Era uma decisão entre a cruz e a espada: ou

ficar em Londres e correr risco de vida, ou fugir e morrer de fome.

Quando dividido entre Tétis e Odisseu, Aquiles tinha diante de si uma

questão grave, mas era plenamente livre para escolher o que bem en-

tendesse. Se fosse da sua vontade ficar em paz, longe de confusões que

não lhe diziam respeito, o herói grego poderia fazê-lo sem grandes di-

ficuldades. A liberdade, fruto das suas incríveis manhas de guerreiro, é

a marca distintiva do seu heroísmo.

O narrador de Um Diário do Ano da Peste certamente não goza das

proporções quase divinas de Aquiles, mas tomou uma decisão indubi-

tavelmente heroica. Naquele cenário, todos que tinham condições para

tanto fugiram sem pensar duas vezes, e aqueles que ficavam, faziam-no

por falta de opção. Permanecer em Londres para tomar conta de pes-

soas que sequer eram familiares foi um ato de abnegação extremada. O

pequeno comerciante pôs o amor ao próximo à frente do medo, pre-

ferindo expor-se à infecção do que entregar seus funcionários à sorte.

Aquiles, ao trocar a comodidade pela morte precoce, recebeu como

prêmio a glória de ser cantado por gerações e gerações. O comercian-

te-escritor, que escolheu ver de perto o drama da peste e nos legar seu

relato, não alcança as proporções do furioso herói grego, mas sua gló-

ria é inegavelmente extensa: ainda hoje, 299 anos após a publicação

de Um Diário do Ano da Peste, sua obra segue editada, lida e discutida.

Page 26: Guia - Um diário do ano da peste

26

O CAOS EM LONDRES

Escrita por Platão no séc. IV a. C., A República é um diálogo prota-

gonizado por Sócrates. Nesta obra, Sócrates expõe suas ideias sobre

os benefícios coletivos e individuais da prática da Justiça, os modos

de educar os cidadãos, as diferentes formas de organizar o Estado e os

meios de conservar o bem-comum.

Para além dos tópicos que se assemelham ao que hoje chamamos de

ciência política, A República aborda temas éticos, metafísicos, epis-

temológicos e psicológicos, em trechos clássicos como a alegoria da

caverna, a nau dos insensatos e o anel de Giges.

Ao longo dos séculos de filosofia que sobrevieram, surgiram as mais

variadas interpretações da obra-prima platônica. Cada leitura ressalta

este traço, omite aquele, e tantas visões contraditórias entre si fizeram

de A República, além de clássico da filosofia e da literatura, objeto de

vivas polêmicas.

Um ponto interessantíssimo deste diálogo é o paralelo traçado entre a

constituição da pólis e a alma de cada cidadão.

Para o filósofo grego, a alma do homem é dividida em três faculda-

des: racional, irascível e concupiscente. A primeira, de natureza divi-

na, possibilita o conhecimento e a reflexão. A segunda corresponde à

proteção do corpo e aos sentimentos propriamente humanos, como a

fúria e o amor. A terceira e mais animalesca das partes corresponde às

necessidades corporais, como a fome e o desejo sexual.

Page 27: Guia - Um diário do ano da peste

27

Sócrates traslada sua concepção da alma humana para o plano da pólis,

dividindo-a em três classes sociais diferentes. O governo deve ser dado

àqueles em que há predomínio da alma racional, isto é, aos filósofos.

Abaixo destes devem estar os guerreiros, em quem prevalece a alma

irascível. O comércio, por sua vez, é tarefa daqueles em quem predo-

mina a alma concupiscente.

Da Aristocracia, a mais perfeita organização da pólis, pois harmônica

com a disposição da alma, à Tirania, o pior de todos os regimes, há

alterações no comportamento das classes e na sua disposição na pirâ-

mide do poder. Conforme os governantes corrompem seus hábitos e

entregam-se ao vício, a pólis sente quase imediatamente os reflexos da

perturbação íntima dos seus líderes. Assim, problemas particulares dos

governantes tornam-se dramas públicos, e a desorganização da pólis

causa distúrbios na alma dos cidadãos.

Esta percepção de que há uma ligação umbilical entre a ordem social

e o estado de ânimo dos indivíduos provou-se verdadeira muitas vezes

ao longo da história, e a Grande Peste de Londres é exemplo disto.

Quando a epidemia tomou maior intensidade, alterando o curso das

atividades cotidianas, o caos instalou-se na cidade.

Defoe não traz relato detalhado sobre as biografias e carreiras dos man-

datários de Londres à época da peste, mas frisa diversas vezes que a

ignorância, o medo, o desespero e medidas ora precipitadas, ora pos-

tergadas, ajudaram a agravar uma situação que já era suficientemente

complicada. Segundo a narração, a má-condução do poder público foi

responsável por um grande número de mortes.

Page 28: Guia - Um diário do ano da peste

28

Os cidadãos londrinos, expostos à doença gravíssima e seguindo orde-

namentos ora demasiado brandos, ora demasiado autoritários, logo vi-

ram o caos que os cercava invadir suas próprias consciências. Há relatos

de aumento de crimes, excessos no consumo de bebidas alcóolicas, um

incrível alargamento no número de surtos psiquiátricos, além de uma

crescente indiferença diante da morte, da qual falaremos mais adiante.

Muitas vezes os sons da cidade são retratados na reconstituição do

cenário urbano em Um Diário do Ano da Peste. O narrador ressalta re-

petidamente os gritos desesperados e lancinantes que podiam se ouvir

pelas ruas vazias da cidade assolada pela epidemia.

Os cidadãos atingidos pela peste, temerosos da morte, desesperados de

tempos melhores e vendo ruir o contrato social a que estavam habitua-

dos, bradavam não por socorro nem tencionando atenuar seu próprio

sofrimento. Seus gritos antes expressavam a dissolução da ordem até

então vigente: a voz desarticulada era, na alma de cada indivíduo, a

expressão do caos da pólis londrina.

A IMPACIÊNCIA DOS RELIGIOSOS

A fé pode exigir de um homem sacrifícios incríveis, desobediência às

próprias vontades e contrariedade ao bom-senso. Mas atos insensatos

em nome da confiança em promessas longínquas sempre encontram

um grave obstáculo: a impaciência.

O crente não pode esperar por longos períodos o cumprimento das

promessas de seu Deus se não houver, nesse meio tempo, ao menos

Page 29: Guia - Um diário do ano da peste

29

um tira-gosto daquilo que o aguarda num futuro distante. Se a decep-

ção for contínua e não houver novo sinal de que o contrato religioso

será efetivado, os fiéis logo se tornam descrentes e trocam sua religião

por outra que dê respostas mais rápidas aos seus anseios.

Na narrativa do Êxodo há interessantes exemplos desta dinâmica. O

povo hebreu exigia continuamente novos sinais que confirmassem as

promessas divinas, ainda que tivesse viva na memória a lembrança dos

milagres operados na fuga do cativeiro egípcio. Eles puderam esperar

por quarenta anos sua libertação, mas, enquanto enfrentavam as difi-

culdades da peregrinação pelo deserto, não havia paciência que supor-

tasse mais do que alguns meses por novas mensagens divinas ou do

que alguns minutos por pão e água para seguir a caminhada.

Nos evangelhos a história se repete: Jesus Cristo muita vez censurou as

multidões que exigiam milagres, mas não deixou de operá-los aos mon-

tes, pois sabia que a fé dos homens era imperfeita e a paciência, curta.

As antecipações que animam a perseverança dos fiéis de determinada

religião surgem, portanto, de acordo com a capacidade que cada um

possui para suportar as dores da espera. Como diz o ditado, Deus dá o

frio conforme o cobertor.

Durante a epidemia londrina, não houve habitante da cidade que

escapasse a grandes provações. Doentes ou sãos, todos enfrentavam,

além do perigo da peste em si, a incerteza quanto ao futuro e a an-

gústia de pensar na própria morte. Era natural que em situação tão

delicada, para a qual aparentemente não havia solução humana, os

Page 30: Guia - Um diário do ano da peste

30

homens levantassem as mãos aos céus, implorando por socorro e

misericórdia.

Os cristãos que viveram sob a epidemia viram-se em uma sinuca de

bico: embora cressem nas promessas da sua religião, não tinham for-

ças para suportar a tribulação da peste. A impaciência manifestou-se

de diversas formas: alguns abraçaram o ateísmo; outros tornaram-se

blasfemadores; e ainda houve os que se tornaram seguidores de bruxos

e astrólogos.

Como se sabe, Daniel Defoe era um homem de firmes convicções reli-

giosas, capaz de levar suas crenças às últimas consequências. Certos da-

dos biográficos, como a infância em família dissidente e a condenação

ao pelourinho, indicam a grande ascendência do cristianismo sobre

vida e obra do autor. O tom de escândalo utilizado para narrar os atos

contrários à piedade religiosa é uma mensagem do escritor àqueles que

compartilham crença igual a sua: caso o cenário epidêmico se repita,

guardar a fé é tão importante quanto zelar pela saúde e sobrevivência.

RESISTÊNCIA AO SOFRIMENTO

No início da epidemia, cada notícia de novo enfermo ou falecido cau-

sava grande comoção. Quando algum doente sucumbia pelas ruas,

logo aglomeravam-se ao redor do cadáver dezenas de cidadãos, movi-

dos por um misto de espanto e curiosidade. As medidas que visavam

mitigar a propagação da doença eram seguidas, e mesmo os corações

mais duros se enterneciam pelos lamentos dos agonizantes e pela dor

dos enlutados.

Page 31: Guia - Um diário do ano da peste

31

Porém, conforme a epidemia recrudescia, arrefecia o sobressalto de

todos diante da morte. As estatísticas apontavam um desastre, mas os

londrinos não suportavam mais testemunhar tantas e tamanhas des-

graças. Para aliviar a tensão daquela situação-limite, muitos abandona-

vam as medidas de segurança sanitária em troca de alguns momentos

de prazer e diversão. Houve cidadãos que se entregaram a bebedeiras

e muitos enfermos rompiam o isolamento para espairecer em passeios

pela cidade.

À primeira vista, estas atitudes parecem sintoma de um grande egoís-

mo. De fato, é inegável que pensar apenas em si, colocando o próprio

bem-estar à frente da preservação da saúde pública, foi uma medida

insensata, que em nada contribuiu para a mitigação dos danos que a

epidemia trazia a todos os habitantes da cidade. Mas esta busca por

diversão revela um traço comum a todo ser humano: a incapacidade

de suportar dores por períodos longos e ininterruptos.

Busquemos em nossa memória a lembrança do velório de um ente que-

rido. No início da reunião, todos os presentes permanecem, naturalmen-

te, com semblantes fechados, tanto por tristeza quanto por respeito ao

finado. Com o passar das horas, vão se formando rodinhas de conversa,

encontram-se amigos e parentes que há muito não se viam, e por alguns

instantes a atmosfera fúnebre dá espaço a momentos de viva alegria.

Em muitos filmes de guerra vemos situações análogas. No intervalo

entre uma campanha e outra, os comandantes oferecem aos batalhões

espetáculos circenses, com enredos que em nada se aproximam de his-

tórias de coragem e heroísmo. Aos soldados são fornecidos momentos

Page 32: Guia - Um diário do ano da peste

32

de pura diversão, para que eles esqueçam das agruras da guerra por

algumas horas.

Estas três situações apontam para uma mesma realidade: a tensão tem

de ser entremeada por momentos de relaxamento. Quando pessoas

comuns são expostas a situações extremas, surge nelas uma necessida-

de irresistível de, de tempos em tempos, entregar-se a momentos de

brincadeiras e distrações, que exercem uma função análoga à do rela-

xante muscular aplicado no corpo de um atleta que acabou de praticar

exercícios intensos.

Na Londres de 1664-1665, médicos, enfermeiros, clérigos, cocheiros

fúnebres e coveiros destacaram-se por mostrar grande resiliência ao

caos epidêmico. Este profissionais, seja por inclinação natural, seja por

estudo e preparação, possuíam a capacidade de, mesmo em contato

próximo e contínuo com a morte, manter certa frieza em relação aos

dramas que presenciavam. Como havia milhares de mortos e enfer-

mos, eles não podiam chorar as dores de cada um. Auxiliando os ne-

cessitados, mas deles conservando um salutar distanciamento emocio-

nal, os homens e mulheres da linha de frente eram capazes de encarar

com maior resistência as dificuldades da vida sob a epidemia

Os cidadãos comuns, que até então raramente lidavam com a mor-

te e subitamente passaram a tê-la diante de si diuturnamente, não

suportaram o estresse contínuo ao qual foram submetidos. Ainda

que compreendessem os perigos a que se expunham ao percorrer a

cidade assolada pela peste, àqueles cidadãos as diversões, fossem em

bares, fossem em caminhadas, eram de extrema importância para a

Page 33: Guia - Um diário do ano da peste

33

manutenção de um mínimo de sanidade no enfrentamento de um

período de dificuldades extremas.

IMPORTÂNCIA DOS RITOS FÚNEBRES

Os ritos fúnebres têm a função de, além de prestar o devido respeito ao

indivíduo falecido, auxiliar familiares e amigos a elaborarem e supera-

rem a dor da perda de um ente querido.

Para seguir em frente após a perda de uma pessoa amada, é de suma

importância a organização de um evento em que o sofrimento seja

expressado publicamente, os enlutados sejam consolados, o falecido

seja homenageado e todos possam compartilhar boas lembranças do

convívio com o finado.

Em tempos de peste, é comum que os velórios e funerais sejam pronta-

mente suspensos, para evitar que a homenagem a um enfermo falecido

dê ocasião a aglomerações que propaguem ainda mais a doença que o

vitimou. Tal se deu na Grande Peste de Londres.

Em cenários de peste, guerra ou desastre natural, em que o número de

mortos aumenta significativamente, ultrapassando por muito a capa-

cidade de trabalho dos profissionais dos serviços funerários, é comum

que os funerais individuais sejam substituídos por enterros coletivos.

De uma só vez, dezenas ou centenas de cadáveres são enterrados, mui-

tas vezes sem caixões e em uma mesma cova. Assim, também, deu-se

na epidemia londrina.

Page 34: Guia - Um diário do ano da peste

34

O episódio do viúvo desesperado, talvez o mais comovente episódio da

história, aborda estas questões.

Seja qual for a situação, é de se esperar que um chefe de família fique

profundamente abalado pela perda súbita de esposa e filhos. Ao drama

por si só doloridíssimo, porém, foi acrescido o agravante circunstan-

cial da impossibilidade de realizar os ritos fúnebres costumeiros.

Para dar adeus aos seus, o viúvo seguiu até o cemitério a carruagem

que levava os corpos e sofreu outro grande baque. Como eram muitas

as mortes diárias, os coveiros tinham de realizar com o máximo de ve-

locidade seu serviço. Os cadáveres, então, eram retirados da carroça e

arremessados à fossa sem delicadeza alguma, como, infelizmente, exigia

a situação. Ao testemunhar o infeliz destino de seus familiares, o viúvo

decerto experimentou sofrimento tão doloroso quanto o da perda em si.

O viúvo e milhares de famílias londrinas não puderam se despedir dos

seus à maneira que a cultura em que estavam inseridos e a religião que

professavam indicavam. Sem esses ritos, que estão presentes em todas

as culturas de todas as civilizações, à dor da perda é acrescida uma sen-

sação de desorientação, que impede a compreensão do fechamento de

um ciclo e o vislumbre de algum sentido para o sofrimento passado.

Essa passagem foi relatada com riqueza de detalhes, e isto certamente

não foi sem razão. Enquanto lemos o diário, aos poucos vamos nos

acostumando à sucessão de histórias e números, e logo deixamos de

nos impressionar com a presença da morte. Ao lermos a triste história

do viúvo, somos arrancados do torpor em que estávamos mergulhados

Page 35: Guia - Um diário do ano da peste

35

e voltamos a nos comiserar dos lancinantes sofrimentos padecidos por

aqueles indivíduos.

EPIDEMIA

O tema principal da Ilíada, como mencionamos acima, é a ira de Aqui-

les. Mas essa ira jamais teria sido desencadeada e registrada pelos ver-

sos de Homero se uma peste não tivesse atingido o exército dos gregos.

Criseida, filha de Crises, sacerdote de Apolo, havia sido tomada como

escrava por Agamenon, o comandante das hostes gregas. Crises tentou

libertá-la, oferecendo ao sequestrador presentes de alto valor como res-

gate. Agamenon, entretanto, recusava-se a devolvê-la, pois a considerava

a mais bela das mulheres. Então Apolo enviou uma peste, que atingiu

violentamente o exército grego. Para cessar a maldição, Agamenon liber-

tou Criseida e preservou seus homens, que seguiram rumo a Troia.

Filoctetes, antigo argonauta e mestre de Hércules, não pôde se unir ao

exército grego por motivos de saúde. Ele havia sido um dos pretenden-

tes de Helena, e, assim como seus pares, prometera defender a honra

da filha de Zeus. Quando esta casou-se com Menelau e foi sequestra-

da por Páris, Filoctetes foi chamado para auxiliar no resgate, porém,

acabou ferindo o pé no meio do caminho. A ferida tornou-se infecção

e exalava um odor pútrido. Chegando ao acampamento do exército

grego, o argonauta foi expulso por Ulisses, que não desejava ver seus

homens expostos à enfermidade física e moral de Filoctetes.

Em Édipo Rei, a primeira entre as tragédias gregas, também há uma

aparição da peste. No primeiro ato da peça, Tebas está sendo devastada

Page 36: Guia - Um diário do ano da peste

36

por uma epidemia. O povo corre ao palácio real e implora nova salvação

a Édipo, que havia subido ao trono por desvendar o enigma da esfinge.

O rei envia Creonte ao oráculo de Delfos, segundo o qual a cidade só se

livraria da peste quando matasse ou banisse o assassino de Laio.

Na História da Guerra do Peloponeso, Tucídides narra com riqueza

de detalhes os efeitos de uma epidemia de peste que assolou Atenas

durante a guerra travada contra Esparta. Segundo o historiador, um

quarto da população foi dizimada, e entre os sobreviventes espalhou-

-se a desordem e a ilegalidade. Como havia a crença de que a doença

era castigo por alguma iniquidade, a explicação do autor enfatiza a

corrupção dos costumes e da moral da comunidade naqueles tempos.

Além destas e de outras menções na literatura grega, as doenças são

também assunto nas culturas judaica e cristã.

A lei enviada aos israelitas dá instruções claras sobre diagnóstico e tra-

tamento da lepra, e muitas vezes associa a doença à punição divina

para repreender o povo desobediente. Os leprosos deveriam ser excluí-

dos do convívio social e, como não houvesse cura, o diagnóstico equi-

valia à condenação a degredo perpétuo. Em um dos mais célebres epi-

sódios sobre o tema, Eliseu, sucessor do profeta Elias, devolve a saúde

ao leproso Naamã, tornando real o que parecia impossível e causando

grande impressão no reino de Israel.

Nos evangelhos, muitos dos milagres de Jesus Cristo são curas de en-

fermos. Cegos, mudos, surdos, leprosos e outros doentes que, segundo

a crença da época, padeciam por conta de seus pecados ou dos pecados

Page 37: Guia - Um diário do ano da peste

37

de seus pais, tinham suas chagas limpas pelo Messias, que prometia

curá-los a um só tempo das enfermidades do corpo e do espírito.

Esta ligação íntima entre doenças, deuses e moralidade marcou indelevel-

mente a cultura européia. O Decamerão, de Giovanni Boccaccio, é exem-

plo deste vínculo: não há conto da obra que não aponte a conexão entre

a tragédia sanitária, o desagrado dos céus e a corrupção dos costumes.

Durante sua reconstituição da Grande Peste de Londres, Daniel Defoe

traz esta percepção inúmeras vezes. O narrador reiteradamente associa,

por meio de citações e alusões a passagens bíblicas, a peste a punições

divinas pelos pecados dos homens, e dá grande espaço a relatos e co-

mentários sobre a atmosfera supersticiosa que encobria a cidade antes

e durante a epidemia.

Certamente o desconhecimento científico e a gravidade da situação

foram combustível para exaltação do ânimo dos fiéis londrinos. Po-

rém, como percebemos, as especulações que atribuem o surgimento

das doenças à ira divina antecedem e muito a tragédia vivenciada por

Daniel Defoe.

A Grande Peste de Londres, conforme a história nos conta, foi uma

epidemia, não uma pandemia. A princípio, a diferença entre os dois

termos está na escala de incidência de uma doença: as pandemias atin-

gem o mundo todo; as epidemias, uma região específica.

A etimologia de epidemia, entretanto, dá ao termo dimensões que ex-

trapolam definições geográficas e matemáticas. A palavra é composta

Page 38: Guia - Um diário do ano da peste

38

pelo prefixo ‘epí’, que significa ‘acima’, ‘sobre’, junto a ‘demos’, que sig-

nifica ‘povo’. Assim compreendido o vocábulo, o problema torna-se

mais grave: deixa de ser apenas um caso de saúde pública e torna-se

um castigo que o céu impõe aos povos.

É provável que apenas uma minoria letrada entre os cidadãos londrinos

tivesse consciência das raízes etimológicas da palavra do momento. Vale,

pois, a pergunta: que diferença faz dar este ou aquele nome à desgraça

que castigava a cidade? Como poderia uma palavra por si só conduzir

milhares de pessoas a uma mesma interpretação de fatos tão graves?

A linguagem humana é formada pela tríade língua-percepção-realida-

de. As palavras, portanto, não são traduções diretas da realidade, mas

um conjunto de significados construídos a partir de objetos e expe-

riências primárias que passaram pelas escolhas e preferências de cente-

nas de gerações. A investigação da raiz etimológica funciona, portanto,

como uma escavação arqueológica, que parte da superfície dos signifi-

cados atuais rumo ao abismo das experiências e objetos já esquecidos.

Lançando um olhar atento às palavras que usamos, podemos entender

melhor a nós mesmos e à cultura em que estamos inseridos.

A Inglaterra do século XVII já experimentava sinais da modernida-

de. O protestantismo solapava o catolicismo romano, era grande o

comércio com o novo mundo e, na filosofia, as primeiras fagulhas do

racionalismo iluminista ameaçavam a soberania da filosofia medieval.

Mas o período era de transição; a emergente civilização moderna ainda

competia com as milenares crenças e costumes que a precederam.

Page 39: Guia - Um diário do ano da peste

No diário, são citadas posturas, sobretudo por parte de alguns médi-

cos, que denotam um espírito, embora um tanto arcaico, científico,

que buscava explicar de modo racional as causas e possíveis soluções

para a visitação da peste. Em sentido contrário, surgiu aquilo a que

hoje chamamos de ‘crendice’, que é fruto de séculos e séculos de su-

premacia de uma cultura em que se misturavam influências católicas,

romanas e gregas.

Como notamos, o uso de doenças como metáfora da relação entre ho-

mens e deuses conta com um longo registro histórico. Embora seu uso

começasse a cair em desuso justamente no período da Grande Peste de

Londres, ainda havia resquícios seus semeados na cultura inglesa, como

indica o termo ‘epidemia’ e provam os atos ora piedosos, ora desespera-

dos dos cidadãos que criam viver sob a pena de um castigo celeste.