GUIVANT, Julia - A Teoria Da Sociedade de Risco de Ulrich Beck - Entre o Diagnostico e Aprofecia

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    Julia S. Guivant

    A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entreo diagnstico e a profecia*

    IntroduoUlrich Beck passou a ser um dos tericos sociais mais destacados do presentedepois da publicao de Risk Society (em alemo em 1986 e em ingls em 1992).1O argumento central desse livro que a sociedade industrial, caracterizada pela

    produo e distribuio de bens, foi deslocada pela sociedade de risco, na quala distribuio dos riscos no corresponde s diferenas sociais, econmicase geogrficas da tpica primeira modernidade. O desenvolvimento da cinciae da tcnica no poderiam mais dar conta da predio e controle dos riscosque contribuiu decisivamente para criar e que geram conseqncias de altagravidade para a sade humana e para o meio ambiente, desconhecidas alongo prazo e que, quando descobertas, tendem a ser irreversveis. Entreesses riscos, Beck inclui os riscos ecolgicos, qumicos, nucleares e genticos,

    produzidos industrialmente, externalizados economicamente, individualizados juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente.Mais recentemente, incorporou tambm os riscos econmicos, como as quedasnos mercados financeiros internacionais. Este conjunto de riscos geraria umanova forma de capitalismo, uma nova forma de economia, uma nova forma deordem global, uma nova forma de sociedade e uma nova forma de vida pessoal(Beck, 1999: 2-7).

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    O conceito de sociedade de risco se cruza diretamente com o de globalizao:os riscos so democrticos, afetando naes e classes sociais sem respeitarfronteiras de nenhum tipo. Os processos que passam a delinear-se a partir

    dessas transformaes so ambguos, coexistindo maior pobreza em massa,crescimento de nacionalismo, fundamentalismos religiosos, crises econmicas,possveis guerras e catstrofes ecolgicas e tecnolgicas, e espaos no planetaonde h maior riqueza, tecnificao rpida e alta segurana no emprego.

    A proposta de construir no apenas um novo conceito dentro da teoria social, masuma teoria da sociedade global de risco, apresentada por Beck de forma maisexplcita em seus ltimos quatro livros: The reinvention of politics Rethinkingmodernity in the global social order (1997); Qu es la globalizao? Falacias del

    globalismo, respuestas a la globalizacin (1998); World risk society (1999) e The bravenew world of work (2000). Nessas obras, o autor situa sua teoria no contexto deoutras anlises sobre riscos e globalizao, fugindo de seu estilo anterior, comlimitadas referncias produo acadmica. Beck pretende construir umateoria social que estabelea umparadigm-shift dentro da sociologia, para poderreinventar a sociedade e a poltica. Apesar de ter sido criticado como umterico catastrofista (ver Mol e Spargaaren, 1993), Beck manifesta significativootimismo em relao ao papel que devem e podem chegar a ter a sociologia e,

    em especial, a sua teoria.As pesquisas empricas altamente especializadas so objeto da crtica de Beckporque permaneceriam cegas ante transformaes que esto tendo lugar,ao pressupor a conservao de categorias e uma alta estabilidade social. Porexemplo, se, por um lado, lamenta-se o crescimento do desemprego, por outro,no se chega a questionar como uma sociedade baseada no trabalho est acabandocom os empregos, devendo-se mudar o prprio conceito para se pensar comoas identidades sociais e a segurana tornam-se possveis alm de suas relaesclssicas com o trabalho. Portanto, para Beck, no se pode continuar pensandoalternativas com velhas categorias. A sociologia como disciplina deveriatransformar-se, procurando novas teorias, hipteses e categorias, para evitar

    * Uma verso mais extensa deste trabalho foi apresentada no SymposiumSociological Reflections on Sustainability, IRSA, Rio de Janeiro, agosto 2000.

    [1] A ampla influncia das idias de Beck, no s nas cincias sociais mas em outrasdisciplinas assim como na esfera poltica, pode ser avaliada em diversas publicaes

    (Franklin, l999; Adam et al, 2000 e Spaargaren et al, 2000. Tambm Giddens (1994b, 1999)passou a utilizar este conceito, ainda que mantendo certas diferenas (Giddens, 1994a).

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    converter-se numa loja de antigidades especializada na sociedade industriale para poder orientar as transformaes dos fundamentos das instituies damodernidade. O conceito de sociedade de risco permitiria a compreenso da

    modernizao reflexiva e, por isto, tambm entender o caminho pelo qual assolues devem ser formuladas. 2

    Neste artigo me proponho discutir o alcance da teoria da sociedade global de risco,apresentando alguns questionamentos contextualizados no reconhecimentoda contribuio crucial de Beck, ao trazer o tema dos riscos para o centro dateoria social, colocando a sociologia ambiental como chave para interpretar aatual fase da modernidade (Guivant, 1998). Destaco fundamentalmente doisproblemas na sua teoria: 1) o evolucionismo/linearidade/ eurocentrismo na

    conceitualizao e descrio da dinmica da globalizao e 2) a imprecisoacerca de como pode ser implementada a sua proposta de subpoltica ou denovas formas de fazer poltica para lidar com os riscos de graves conseqncias.

    Argumento que a proposta terica de Beck, apesar de apresentar um agudodiagnstico da alta modernidade como sociedade de risco, no plano dasalternativas, s vislumbra algumas que permanecem, sobretudo, num terrenoproftico e bem-intencionado na direo de uma desmonopolizao doconhecimento cientfico. No final deste artigo, procuro mostrar brevemente

    como os limites que indicamos na conceitualizao da dinmica da globalizaoe da subpoltica comprometem a compreenso de um dos mais interessantesconflitos globais entre leigos e peritos a respeito dos riscos: o conflito relativos sementes transgnicas.

    Os limites da globalizaoNo livroRisk Society, Beck apresentava uma perspectiva bastante linear e evolutivaentre a sociedade de classes e a sociedade de risco, deixando de considerar queno mundo globalizado encontram-se sociedades com as duas caractersticas, oque daria uma dimenso diferente prpria sociedade de risco. Assim, faltavaa Beck analisar como se integram pobreza e riscos de graves conseqncias,

    2 A modernizao reflexiva, tambm denominada por Beck como segundamodernidade, a fase de radicalizao dos princpios da modernidade. Enquanto aprimeira modernidade caracterizou-se pela confiana no progresso e controlabilidadedo desenvolvimento cientfico-tecnolgico, pela procura de pleno emprego e pelocontrole da natureza, a modernidade reflexiva uma fase na qual o desenvolvimento

    da cincia e da tcnica no pode dar conta da predio e controle dos riscos que elecontribuira para criar.

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    como se potencializam os riscos com sistemas de controle e fiscalizao estataisprecrios, ou como se caracterizam sociedades com culturas democrticasfragmentadas. Beck parece ter assumido que o conceito de sociedade de classes

    implicava necessariamente considerar a classe social como sujeito polticoprivilegiado da transformao social. Separar esta relao relevante porqueas desigualdades de classe continuam existindo, apesar do enfraquecimento daclasse social como sujeito histrico.

    Em seus trabalhos mais recentes, Beck tem procurado explicitamente fugirtanto dessa limitada caracterizao da sociedade de classes como da decorrente

    viso linear e evolutiva entre sociedade de classes e sociedade de risco. Beckpassou a reconhecer que seria muito simplista afirmar que a ecologia teria

    suplantado a questo de classe, enfatizando que elas podem se sobrepor e seagravar mutuamente (Beck, 1999: 24) num contexto em que, simultaneamente,h pases menos industrializados, ainda em busca de atingir o que se entendecomo as vantagens da modernizao simples, ao lado de pases altamenteindustrializados nos quais diversos setores questionam os fundamentos e osobjetivos da modernidade industrial. Beck (1997:16) define esta situao comoa chaotic simultaneity of the non-synchronous, a qual, para ser evitada, precisade um intercmbio, em nvel global, para redefinir o que se entende ou se busca

    no desenvolvimento.Nesta simultaneidade, esto presentes trs tipos de ameaas globais, quepodem se complementar e acentuar entre si: 1) aqueles conflitos chamadosbads: a destruio ecolgica decorrente do desenvolvimento industrial, comoo buraco na camada de oznio, o efeito estufa e os riscos que traz a engenhariagentica para plantas e seres humanos; 2) os riscos diretamente relacionadoscom a pobreza, vinculando problemas em nvel de habitao, alimentao,perda de espcies e da diversidade gentica, energia, indstria e populao; 3)os riscos decorrentes de NBC (nuclear, biological, chemical), armas de destruiode massas, riscos que aumentam quando vinculados aos fundamentalismos e aoterrorismo privado. O relevante desta classificao mostrar que no existemriscos globais como tais, mas que eles esto permeados por conflitos em tornode questes tnicas, nacionais e de recursos, os quais tm lugar desde o fim doconfronto Oriente/Ocidente.

    Outro aspecto que Beck desenvolve para fugir de uma anlise linear e evolucionista

    o de considerar que os processos de modernizao no so irreversveis. Asociedade industrial apresenta-se para Beck como uma sociedade que no

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    conseguiu ser plenamente moderna, mas tornou-se semimoderna, porquesempre teria combinado simultaneamente elementos de contramodernidade. Oconceito de contramodernidade no inclui s o nazismo e o comunismo e tambm

    fenmenos como a opresso das mulheres, a industrializao generalizadada guerra, a militarizao de diversas formas da vida social, mas se refere sreformas potenciais baseadas no mundo das megatcnicas, como a engenhariae medicina genticas. A contramodernidade no definida, portanto, comouma sombra da modernidade, sendo ambas processos autnticos. A cincia e atecnologia, a educao, os meios de comunicao de massa e as prticas polticasteriam contribudo para o surgimento das tendncias da contramodernidade.

    Beck (1998, 1999, 2000) tem enfatizado que a contribuio da sua teoria da

    sociedade global de riscos consiste em demonstrar que tanto as sociedadesocidentais quanto as no ocidentais podem enfrentar, simultaneamente,os mesmos desafios da segunda modernidade. Haveria uma pluralidade demodernidades, numa sociedade global de riscos, na qual as sociedades noocidentais compartilham com as ocidentais os mesmos desafios da segundamodernidade, atravs de diferentes percepes culturais. Beck aponta aqui asimultaneidade das transformaes e a necessidade de definir as diferentessociedades em relao a suas prprias caractersticas e no apenas ao fato de

    apresentarem ou no traos de modernidade. A globalizao dos riscos nosignificaria a igualdade global frente a eles porque, segundo o que define comoa primeira lei dos riscos ambientais, a poluio segue os mais pobres. No seuaf de deixar de lado o vis evolucionista, Beck chega a reverter esse quadro,colocando as sociedades no-ocidentais como espelho do que sero no futuro associedades ocidentais, com implicaes tanto positivas quanto negativas. Entreas primeiras, Beck enumera o desenvolvimento de pluralismos religiosos,tnicos e culturais. Como exemplos negativos, ele menciona a difuso do setor

    informal e a flexibilizao do mercado de trabalho, a desregulao de amplasreas da economia e das relaes de trabalho, a perda de legitimidade doEstado, o crescimento do desemprego, a interveno cada vez mais forte dascorporaes multinacionais e o aumento dos ndices de violncia cotidiana,tomando o autor como modelo a sociedade brasileira (Beck, 2000).

    Como avaliar essas reformulaes da proposta terica de Beck a respeito dasociedade global de riscos? Em parte, ele corrige certos mal-entendidos acercade suas idias em Risk Society, mas h outros aspectos que Beck no considerae que limitam o alcance da sua teoria. Surpreende como ele mantm uma

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    viso empobrecida da globalizao, ao considerar como a maior diferenciaona simultaneidade da globalizao aquela que separa o bloco das sociedadesocidentais do das no-ocidentais, deixando de se referir aos diferentes tipos de

    sociedades ocidentais. Pases pobres no se encontram exclusivamente entreos pases no ocidentais, nem os pases altamente industrializados deixam deter as suas regies empobrecidas. O referencial destes ltimos leva Beck a noconsiderar as complexidades de combinaes possveis ao interior do blocoocidental, como pode observar-se no caso da sociedade brasileira. Esta estatravessada pelos problemas de escassez, na qual a distribuio da riquezaaltamente desigual entre as classes sociais coexiste com os problemas dasociedade de risco, sem estar organizada uma reflexividade ativa, como a que

    Beck identifica nas sociedades mais industrializadas, o que potencializa maisainda os riscos. Esta situao afeta no s o Brasil, mas tem conseqnciaspeculiares dentro da dinmica da globalizao dos riscos.

    Desse modo, a teoria global dos riscos ainda carece de uma abordagem commaior potencialidade explicativa das complexas relaes entre os processos deglobalizao dos riscos e as manifestaes especficas que estes podem adquirirem diferentes sociedades.

    A subpoltica difusaEm The Reinvention of Politcs (1997), Beck coloca como objetivo aprofundar asconexes entre sua teoria e as conseqncias que ela traz para a ao poltica.Depois da Guerra Fria, novas definies polticas se fariam necessrias para seentender os caminhos da modernidade e da contramodernidade. Todo o lxicopoltico e social (a mistura ocidental de capitalismo, democracia e governo dasleis) teria passado a ser obsoleto e, por isto, Beck levanta a necessidade de umareinveno da poltica que no pregaria revolues, crises, desintegraes ou

    conspiraes, mas uma renegociao, um redesenho, uma autotransformaoda sociedade industrial.

    O mundo das instituies polticas (parlamentos, partidos polticos, sindicatosetc.) simbolicamente rico, no qual se identifica poltica com Estado, sistemapoltico com carreiras polticas full-time, estaria coexistindo com o mundodas prticas polticas cotidianas, caracterizado por uma individualizao dosconflitos e interesses. Transformaes complexas estariam acontecendo noplano da individualizao conjuntamente com os processos de globalizao.

    Tal individualizao no seria equivalente a atomizao, isolamento ou solido,mas a processos em que os indivduos devem produzir suas biografias (algo

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    equivalente formulao de Giddens sobre a reflexividade). A esse tipo deindividualizao corresponde um tipo de poltica que ainda coexiste com aanterior, mas esta superposio no implica necessariamente dilogo entre as

    duas formas de fazer poltica.3

    A poltica convencional, de acordo com Beck, seenfraquecer cada vez mais medida que as categorias tradicionais de esquerdae direita ou conservador e socialista forem deixando de ter utilidade.

    Trs dicotomias substituiriam a metfora poltica esquerda-direita: seguro-inseguro, inside-outside e poltico-apoltico, correspondentes s perguntassobre quais atitudes adotar em relao incerteza, em relao aos estrangeirose possibilidade de desenhar a sociedade. O espao da subpoltica (entendidocomo subsistemas polticos) distingue-se da poltica (na acepo do sistema

    poltico oficial), por envolver atores que so outsiders desta ltima esfera(grupos profissionais e ocupacionais, a intelligentsia tcnica de companhias,institutos de pesquisa e administrao, trabalhadores qualificados etc.) e quepassam a participar do debate pblico sobre diversos tipos de assunto. Taisatores no participam apenas como agentes coletivos e sociais, mas tambmcomo indivduos no sentido da individualizao acima referida. A subpolticaseria uma forma de fazer poltica radical, que levaria a uma reconstruo dosistema poltico, por meio da delegao do poder a grupos diversos (deixa isto no

    plano da ambigidade, como veremos) e a agncias globais, combinando novoscontedos, formas e coalizes com um ingrediente de realismo maquiavlico, eno atravs de uma poltica de convico no sentido de Weber.

    Uma questo central como na subpoltica se lida com os riscos de gravesconseqncias. EmRisk Society, Beck havia evitado relacionar sua anlise comos trabalhos j existentes na teoria social e cultural dos riscos, particularmentecom a influente contribuio de Mary Douglas (1994). Beck oscilava entre umaposio realista sobre os riscos e uma posio construtivista. Cada uma destasposturas tem implicaes diferentes para a questo da subpoltica. Por exemplo,se consideramos os riscos reais, como lidar com as percepes dos leigos?

    3 The antagonism of the political world liberalism, socialism, nationalism,conservatism that still dominate peoples minds, parties, parliaments and institutionsof political education descend from the rising industrial age. However, when they speakof global environmental devastation, feminism, the criticism of experts and technology

    and scientific alternative views, that is to say, the remodernization of modernity, thesepolitical theories are like blind people discussing colours ( Beck, 1997: 137).

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    Continuamos dando o poder decisrio aos peritos? Mas, se consideramosos riscos produto de construes sociais, como lidar politicamente com asdiferentes percepes?

    Recentemente, Beck (1999) abriu o debate com outros tericos dos riscos eexplicitou sua posio de superar a dicotomia entre realistas e construtivistas,combinando ambas posturas. Beck, assim como Giddens, afirma compartilharcom a teoria cultural dos riscos a crtica dicotomia entre um conhecimentoperito que avalia os riscos e uma populao leiga que os percebe. A no-aceitaode uma determinada definio cientfica de um risco por um setor da populaono implica que este seja irracional, mas, o contrrio, indica que as premissasculturais acerca da aceitabilidade de riscos contidas nas frmulas cientficas

    so as que esto erradas. Mas, ainda que reconhea tanto as contribuies deDouglas quanto as de Wildavsky (1983), na compreenso de como os riscos noexistem independentemente de nossas percepes culturalmente definidas,para Beck seria pouco satisfatria a posio desses autores por eles ignorarem:1) o carter dual dos riscos, que combina a sua imaterialidade-definio sociale sua materialidade-produto de uma ao; e 2) a especificidade dos riscos doperodo de ps-guerra a capacidade de aniquilao ecolgica e nuclear.

    A confluncia entre a perspectiva realista e a construtivista estaria no cerneda teoria da sociedade global de riscos. Da posio realista, Beck resgatao reconhecimento de que o conhecimento cientfico pode identificar edemonstrar que as conseqncias e os perigos da produo industrialdesenvolvida so agora globais, exigindo polticas a serem formuladas porinstituies transnacionais. Mas a perspectiva construtivista chave para sepoder responder a questes acerca de como, por exemplo, se produz a auto-evidncia segundo a qual os riscos so reais, e sobre quais atores, instituies,estratgias e recursos so decisivos para sua fabricao (Beck, 1999: 24). Isto, os riscos existem e no so meramente uma construo social, mas a suatransformao depende de como so percebidos socialmente.

    Reconhecendo-se esta confluncia entre as duas perspectivas, poderiam seraceitos, com menores resistncias entre os peritos, os limites do conhecimentocientfico para estabelecer os standards de certos tipos de potenciais riscos,assim como a necessidade de que no mbito da subpoltica no s se devam tomardecises, mas tambm se restabelecer as regras e as bases em que se tomam

    tais decises, abrindo-se o dilogo e o processo decisrio e reconhecendo-se

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    a ambigidade e a ambivalncia dos processos sociais como inevitveis, sem seprocurar solues definitivas (Beck, 1994). A proposta de Beck vai na direo,por exemplo, de uma tecnologia autnoma, livre das determinaes e interesses

    econmicos e militares, o que possibilitaria um processo decisrio aberto edemocrtico acerca de suas aplicaes e usos.

    At aqui estamos ante a manifestao de Beck sobre a necessidade de umasubpoltica para encaminhar as transformaes que ele vislumbra comonecessrias. Mas Beck no tem avanado significativamente em precisar aimplementao desta subpoltica, apesar de incorporar exemplos recentes, comoo dos alimentos transgnicos e o debate na Inglaterra no incio de 1999. Nestecaso, Beck identifica o incio do caos normal do conflito sobre os riscos, no

    qual se manifestam desencontros e contradies entre peritos e contraperitos,que acabam estimulando a descrena dos consumidores nos sistemas peritos.Diante disso, Beck (1999: 108) prope que se criem governos e instituiesabertas, transparentes, que informem o pblico e alertem as indstrias, deforma que se possa conviver com os riscos da sociedade moderna, em lugar debani-los. Isto implicaria, em lugar de se esperar por um completo controle dosriscos, procurar formas de lidar democraticamente com as decises sobre osriscos que as sociedades escolhem enfrentar.

    Mas como implementar-se a subpoltica? Como controlar os riscos? Aalternativa seria a formao de fruns de negociao, envolvendo autoridades eempresas, assim como sindicatos, representantes polticos, peritos, ONGs etc.Tais fruns no necessariamente procurariam o consenso, mas possibilitariamtomar medidas de precauo e preveno, integrando as ambivalncias,mostrando quem so os ganhadores e perdedores, tornando isso assuntopblico e, desta forma, melhorando as precondies da ao poltica. Becksugere tambm que poderiam ser instaurados comits e grupos de peritos nasreas cinzas da poltica, da cincia e da indstria, incorporando representantesde diferentes disciplinas, de grupos alternativos de peritos e de leigos. Essesfruns de negociaes no seriam necessariamente mquinas de produzirconsenso com sucesso garantido nem eliminariam conflitos ou perigosindustriais fora de controle. Mas poderiam contribuir para prevenir riscos,garantir uma simetria de sacrifcios que no pudessem ser evitados, tornarmais transparentes quem so os vencedores e os perdedores.

    A cincia tpica da sociedade de risco, que opera por trs das portas fechadas doslaboratrios, seria assim superada por outra cincia, que seja, paradoxalmente,

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    mais racional do que aquela pretendia ser. Por este argumento, Beck est muitodistante do discurso da ps-modernidade e longe de qualquer possibilidadede cair na defesa do irracionalismo. Trata-se de uma cincia que efetivamente

    se coloca numa torre de marfim, mas s em relao aos interesses econmicose polticos. O mais preciso que Beck chega ao sugerir uma espcie de upperhouse ou corte tecnolgico, que deveria garantir a diviso de poderes entre odesenvolvimento tecnolgico e sua implementao, e um reconhecimentopblico das incertezas cientficas.

    Neste apelo aos fruns, participao do pblico e a uma democratizao dosprocessos decisrios/desmonopolizao do conhecimento perito, podemosidentificar um dos dois significados democratizantes da obra de Beck. O outro

    significado est relacionado com a abrangncia sem limites sociais e geogrficosdos riscos da alta modernidade. Enquanto esta forma de democratizao implicaque todos podemos nos ver afetados pelos riscos de graves conseqncias, aprimeira significa que todos podemos participar da tomada de decises arespeito dos riscos que queremos correr. A segunda coloca a populao como

    vtima; a primeira, como agente ativo da subpoltica. Com a democratizao dosriscos, Beck faz o diagnstico da sociedade de risco; com a democratizao dasdecises, faz a sua profecia.

    Algumas perguntas precisam ser colocadas frente a esses argumentos: 1) O que desmonopolizao da cincia? sua apertura desde seu interior e a filtragemde suas limitaes a partir do teste pblico de suas prticas; a politizao dosespaos de tomada de decises cientficas?; 2) Quem o pblico?, e 3) Quaisso os meios para se atingir a democratizao que prope?

    O conceito de pblico no bem especificado, permanecendo como sinnimode povo soberano, envolvendo leigos e peritos dissidentes As respostas deBeck tendem a enfatizar e a pressupor uma cega confiana no pblico, tratado

    como se formasse uma categoria homognea, incontaminada no sentidodas influncias dos peritos. Poderamos dizer que se trata de uma espcie demito da democracia popular. Um problema equivalente pode ser encontradonos excelentes trabalhos de Wynne (1996 a e b) e Irwin (1995), nos quais umasofisticada e rica crtica ao conhecimento cientfico no parece correspondercom o tipo de enfoque sobre conhecimento, percepes e prticas dos leigos.

    Consideramos que a desmonopolizao da cincia no implica necessariamentedemocracia das decises, porque nem os leigos nem os peritos se opem entresi como blocos homogneos (Guivant, 1997). H vrias respostas possveis

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    pergunta sobre como queremos viver, dadas por atores sociais e instituies,em alianas, redes diversas, altamente heterogneas envolvendo tanto leigosquanto peritos, instituies estatais, ONGs etc. , de carter parcial a respeito

    de um assunto , efmero no implicam adeses ou identidades duradouras ,com especificidades nacionais, regionais ou locais dentro de uma aliana globalem relao a um determinado assunto. Estas redes de alianas so heterogneastanto entre os que so a favor quanto entre os que so contra uma determinadatecnologia e seus potenciais riscos (Guivant e Miranda, 1999).

    Nesse ponto que radica a dificuldade de visualizar as alternativas propostaspor Beck. A complexidade de conflitos e tenses que ele identifica na sociedadede risco parece evaporar-se quando nos perguntamos o que haveria alm dela.

    As solues propostas permanecem num plano de alta generalidade e, portanto,mais parecem prximas da utopia do que de uma vivel reinveno da poltica.Em parte, isso chega a ser assumido pelo prprio Beck ao analisar as alternativasao modelo tecnolgico dominante, quando reconhece que sua proposta podeparecer contrria aos fatos e mais prxima do que Giddens chama a utopiarealista.

    Mas tambm pode se considerar que a idealizao dos leigos apia-se na limitada

    percepo que Beck tem das complexidades da dinmica da globalizao nasrelaes entre pases do Norte e do Sul e no interior de cada um destes pases,como vimos no item anterior. A sociedade global de riscos que Beck analisaest enraizada em sua experincia europia e talvez mais intimamente na suarealidade alem. Mesmo quando, no seu ltimo livro (Beck, 2000), focaliza oproblema da flexibilizao do trabalho e os efeitos do desemprego, e os identificacom a brasileanizao do Ocidente, encontramos uma viso simplista doBrasil, por no consider-lo atravessado de realidades diversas e coexistentes.

    Os transgnicos na sociedade global de riscosOs acontecimentos recentes em torno dos transgnicos colocam a teoria dasociedade de risco ante uma situao que pode ser interpretada com algumasdas categorias da teoria da sociedade global de riscos, particularmente no quese refere aos limites do sistema cientfico-tcnico de segurana alimentar(food safety) para lidar com o conhecimento incerto no longo prazo. O caso dostransgnicos aparece como um claro exemplo dos limites atuais dos mtodos

    tcnicos/estatsticos na anlise dos riscos que envolvem um alto grau de

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    incerteza. J Beck (ver Mol e Spaargaren, 1993) tem questionado tais mtodospor: 1) terem alcance limitado, pois nem mesmo todas as substncias podemser avaliadas no seu potencial de risco, nem podem ser avaliados os efeitos das

    combinaes nos nossos corpos e no meio ambiente; 2) no considerarem osefeitos cumulativos a longo prazo; 3) projetarem para os seres humanos, deuma forma controvertida, resultados estudados em animais; 4) ignorarem-seos fatores sociais que podem influenciar as peculiaridades da sensibilidade dosindivduos.

    Tambm podemos, a partir de Beck, dimensionar esse debate no contextoda crise de confiana nos critrios, regras, instituies e produo cientficaigualmente envolvidos na busca de garantia da seguridade dos alimentos que

    consumimos. A reflexividade mais ampla a respeito da sade e da qualidadede vida tem emergido apesar da falta de acordo cientfico sobre os riscos,inclusive justamente por sua causa. As freqentes marchas e contramarchasda pesquisa cientfica sobre a relao entre alimentos e sade acabam no sestimulando as incertezas do pblico consumidor como tambm provocandodvidas quanto confiabilidade das prprias informaes cientficas e dasinstituies que as emitem, acirrando os conflitos entre o conhecimento leigoe o perito. O consumidor deve navegar num mar de informaes difundidas

    nos meios de comunicao e transmitidas pelos mdicos, que podem seraltamente contraditrias e tambm desmentidas em tempo acelerado.Fischler (1980), muito antes da crise dos transgnicos, definiu esta situaocomo gastroanomia, referindo-se ao fato de que estamos cada vez maisdesorientados em relao ao que devemos consumir, sem cdigos nutricionaisprecisos, sem saber o que ou no seguro.

    No entanto, os eventos em torno dos transgnicos colocam a teoria global dosriscos diante do desafio de traduzir as crticas e propostas em procedimentosoperacionais, no s frente a um conflito entre leigos e peritos, visto que tambmenvolve influncias polticas, poder das corporaes, velocidade da mudanatecnolgica, problemas ticos, efeitos econmicos diversos, especialmente seconsideramos os pequenos produtores agrcolas e a ao dos grupos de interessepblico tentando mudar o ritmo e a trajetria do prprio processo de globalizao.Trata-se do cenrio de um conflito global em torno dos riscos.

    Sem poder entrar aqui nos detalhes do debate cientfico acerca das evidncias

    ou no dos riscos que os transgnicos importam para a sade da populao e parao meio ambiente, o que nos interessa focalizar o prprio debate e as alianas e

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    coalizes discursivas que se estabeleceram entre setores leigos e peritos (Hajer,1995). Argumentamos que a teoria da sociedade global de risco no permiteentender as complexas alianas que se estabelecem no plano internacional entre

    diversos atores e instituies, articulaes entre representantes de subpolticase de polticas diante de um mesmo risco.

    Nos pases altamente industrializados, encontramos sistemas governamentaiscada vez mais sofisticados tecnicamente na avaliao e manejo dos riscosalimentares, os quais estimulam uma expectativa de risco zero na populao.Esta se v abalada dramaticamente quando so difundidos eventos de riscosalimentares (contaminao por salmonela, doena da vaca louca, dioxina etc.),que expem as deficincias do sistema de controle de riscos. Pnicos alimentares

    se acumulam, estimulando a crise de confiana generalizada nos sistemasperitos, nas autoridades governamentais e nas instituies responsveis pelasegurana alimentar (Beardsworth e Keil, 1997). Neste contexto de saturao deriscos alimentares, os transgnicos no constituem apenas mais um exemplode problemas que podem ser ocasionados por vises reducionistas tanto doconhecimento leigo quanto do conhecimento perito. Eles tornaram-se a gotadgua que transbordou a confiana dos consumidores nos sistemas peritos. Asreaes de consumidores e das ONGs, primeiro na Inglaterra e depois no resto

    da Unio Europia, levaram a retroceder os governos e a prpria Monsanto, e amudar as estratgias dos supermercados.

    Outras facetas da crise gerada pelos transgnicos podem ser analisadas doponto de vista da sociedade global de riscos, acrescida de uma viso maiscomplexa da globalizao, como estamos propondo neste artigo. No Brasil,por exemplo, a reao contra os transgnicos surge de uma aliana entrediferentes setores leigos e peritos num contexto muito peculiar sobre os riscosalimentares. H muito menos denncias destes riscos e, portanto, menoscasos de pnicos na populao. Mas, obviamente, isto no implica afirmar queos riscos no existam porque os sistemas que procuram garantir a seguranaalimentar sejam mais eficientes, e sim que no existem recursos tcnicosnem funcionrios suficientes para analis-los e detect-los. Diante destageneralizada precariedade de controle e fiscalizao dos alimentos, o pblicoconsumidor est distante de uma expectativa de controle zero dos riscos. Hmais uma atitude de resignao ou indiferena frente aos possveis riscos juntocom o desconhecimento da sua dimenso. Estas atitudes dos consumidoresdevem ser avaliadas sem se desconsiderar as desigualdades sociais e a ameaa

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    de muitos outros graves riscos sade pblica (remdios falsificados, situaoprecria de atendimento hospitalar etc.), assim como os avanos significativosnos direitos dos consumidores a partir da vigncia do Cdigo do Consumidor.

    Dentro da aliana heterognea no Brasil contra os transgnicos encontramosatores sociais convencionais, como o PT (Partido dos Trabalhadores) e oMST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que incorporamo tema dos transgnicos em um discurso classista, contra a globalizao, oimperialismo, as multinacionais, os Estados Unidos, o Fundo MonetrioInternacional, etc. As denncias contra os transgnicos so justificadas emargumentos econmicos e polticos: quem se beneficia e quem se prejudica?Como defender a sobrevivncia dos pequenos produtores rurais e dos

    assentados contra a globalizao e mercados de excluso social? Apesar de umreferencial poltico marxista/socialista antiimperialista, tratam-se de atoressociais que estabelecem alianas com setores que assumem uma identificaomaior com novos discursos polticos e que tomaram a iniciativa na mobilizaocontra os transgnicos. Entre estes incluem-se ONGs internacionais, comoGreenpeace, e rgos que assumem a representao dos consumidores, comoos PROCONs, o IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e ospromotores pblicos federais. As aes legais so os eixos de sua interveno,

    com o objetivo de redefinir as competncias e decises da CTNbio (ComissoTcnica Nacional de Biossegurana), reivindicando a rotulagem e a aplicaodo princpio de precauo. Os argumentos voltam-se mais para os riscos paraa sade e ao meio ambiente e para defesa dos direitos dos consumidores, umacategoria significativamente ausente dos discursos do PT e do MST. Aliadosdiretos a este grupo, encontram-se agncias governamentais, como o IBAMA, egrupo de cientistas que focalizam sobretudo no nvel de incerteza existente emrelao aos riscos dos transgnicos e que recomendam tambm a aplicao do

    princpio de precauo.Na coalizo a favor, encontramos os cientistas que defendem os critrios edecises da CTNbio e representantes das empresas de biotecnologia, como aMonsanto. O argumento apresentado de carter cientfico convencional,identificando os setores contrrios como irracionais, desinformados,catastrofistas e contra o progresso. Tambm este discurso caracteriza-se pelapouca flexibilidade para reconhecer as limitaes do conhecimento cientficopara captar os nveis de incerteza e indeterminao das novas tecnologias.

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    Portanto, contra os transgnicos constituiram-se alianas entre diversosgrupos de leigos incluindo setores de produtores rurais setores de produtoresagrcolas 4 e peritos que convergem por diferentes interesses e motivaes e

    sobrepassam as fronteiras regionais e nacionais. Por sua vez, alianas dentrodesta rede podem intersectar-se com outras redes de alianas, mas nonecessariamente superpor-se. Por exemplo, as alianas dos setores crticos dosriscos dos transgnicos podem envolver ou no consumidores que fazem partede redes de produo orgnica, uma vez que o questionamento dos produtostransgnicos pode reforar a produo convencional, como, por exemplo, ocaso da soja, que tem alto uso de insumos qumicos.

    Se, por um lado, Beck permite entender o debate em torno dos riscos dos

    transgnicos a partir da combinao que ele faz das perspectivas realista econstrutivista sobre os riscos de graves e incertas conseqncias, por outro,este caso nos permite analisar os limites de sua teoria da sociedade global deriscos. Isso fundamentalmente em dois aspectos: 1) a necessidade de umaconceitualizao diferente da globalizao que considere as especificidadesdas dinmicas locais e regionais, no apenas confrontando pases ocidentais eno ocidentais ante os mesmos problemas, com alianas especficas e cruzadasentre grupos de leigos e de peritos, mas tambm articulando atores que

    representam diversas formas de subpoltica com os que representam as formasconvencionais de poltica; 2) a necessidade de definir mais precisamente o quese entende por subpoltica, por alternativas sociedade de risco, evitando-seabordagens idealizadas ou uniformizantes acerca das posies dos leigos.

    ConclusesEm defesa da sua proposta de uma teoria da sociedade global de riscos, Beck(1997) apela para o critrio de positive problem shift, formulado pelo tericoe historiador da cincia Irme Lakatos. O que importa no so unicamente osfatos individuais que comprovem ou refutem sua teoria, porque estes sempreexistem, como mostra a histria da cincia. O que decisivo, aponta Beck, mostrar at que ponto, ao ocupar o lugar dos velhos, novos argumentos tericostornam possvel outros projetos de pesquisa e novos debates pblicos medidaque trazem luz fatos, problemas, falsificaes e desenvolvem argumentos que

    4 Os benefcios das sementes transgnicas para os pequenos produtores rurais ainda assunto de debate internacional (Wilkinson e Castelli, 2000).

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    anteriormente tinham permanecido marginais para as teorias dominantes.Mas, como propomos neste artigo, se a teoria da sociedade global de riscospermite formular diagnsticos, estes no deixam de ser simplistas, uma vez que

    partem de um conceito de globalizao que meramente ope pases do Norte apases do Sul, sem considerar as complexidades no interior destes blocos e asconseqncias que elas tm para a dinmica global dos riscos. Vinculada a esteconceito limitado de globalizao, a proposta de subpoltica de Beck tambm caiem dicotomias entre leigos e peritos, tendendo a idealizar os primeiros, o quedificulta pensar os caminhos para se implementar a proposta de subpoltica.

    Ilustramos esses questionamentos com a crise provocada pelos transgnicos. A proposta de Beck permite identificar e caracterizar os conflitos em torno

    do modo como lidar com os riscos considerando as incertezas, as certezascontraditrias, as indeterminaes, os valores diferentes a respeito dasociedade que pretendemos. Mas tal teoria altamente imprecisa para entendera complexa dinmica de globalizao dos riscos, assim como as heterogneascoalizes entre leigos e peritos, tanto nos planos nacionais quanto a nivelinternacional.

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    Resumo: ( A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre o diagnstico e aprofecia). O objetivo deste artigo o de analisar os ltimos desenvolvimentosda teoria global dos riscos de Ulrich Beck e levantar questionamentos sobre a

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    mesma, partindo de um reconhecimento de suas significativas contribuies.Apesar de Beck afirmar que o conceito de sociedade global de riscos no excluique algumas pessoas, pases ou regies sejam mais afetados que outros pelos

    riscos ambientais e tecnolgicos, dois problemas centrais so aqui discutidos:a perspectiva evolucionista/linear/eurocentrista na descrio da dinmica daglobalizao dos riscos e a impreciso sobre como sua proposta de subpolticapode ser implementada. A autora argumenta que a teoria global dos riscos deBeck uma combinao de um agudo diagnstico da sociedade de risco comuma vaga proposta, quase uma profecia, acerca das alternativas sobre como lidarcom riscos de conseqncias incertas e do papel da subpoltica. Finalmente, otexto ilustra os limites e possibilidades da teoria de Beck atravs da anlise dos

    debates em torno dos organismos geneticamente modificados.Palavras-chave: teoria social, sociedade de risco, globalizao, organismosgeneticamente modificados.

    Abstract: (Ulrich Becks theory of global risk society: between diagnosis andprophecy).The purpose of this article is to discuss the latest developments inUlrich Becks theory of global risk society, questioning certain aspects of it,

    while recognising its distinctive contribution. Although Beck claims that the

    concept of risk society does not deny that some people, countries or regionsare more affected than others by environmental and technological risks, twomain problems with his approach are discussed: the evolutionism/linearity/Eurocentrism of his description of the dynamic of globalization of risks and theimprecision on how his proposal for subpolitics can be implemented. We arguethat Becks theory of global risk is a combination of a sharp diagnosis of the risksociety with a vague proposal, almost a prophecy, of the alternatives on how todeal with open-ended risks and the role of subpolitics. The article concludes

    with an illustration of the limits and possibilities of Becks theory through ananalysis of the debates related to genetically modified organisms.

    Key words: social theory, risk society, globalization, genetically modifiedorganisms.

    Julia S. Guivant professora da UFSC epesquisadora visitante no CPDA/UFRRJ.

    Estudos Sociedade e Agricultura, 16, abril 2001: 95-112.