Upload
daniel-costa
View
340
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Trabalho académico no âmbito de phd em Sociologia.Não referenciar sem a permissão do autor.
Citation preview
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Doutoramento em Sociologia
Seminário sobre Teoria Sociológica Aprofundada
Professor Doutor Carlos Gonçalves
Relatório individual temático
Grupo A – Questão 2
Daniel Costa
Janeiro 2012
1
Introdução
Ulrich Beck é um proeminente sociólogo alemão nascido a 15 de Maio de 1944 em Pommern.
Obteve o seu doutoramento em Sociologia na Universidade de Munique em 1972, aí
leccionando desde então, em conjugação com a sua cátedra na London School of Economics.
Faz ainda parte do Conselho Consultivo Internacional do “British Journal of Sociology”, é
editor da “Soziale Welt” e director do centro de investigação “Forschungsgemeinschaft” (trad.:
“Modernização Reflexiva”). A sua ascensão no plano académico e mediático internacional deu-
se essencialmente a partir da publicação, em 1986, da sua obra “Risikogesellschaft - Auf dem
Weg in eine andere Moderne” (trad.: “A Sociedade do Risco – Rumo a uma nova
modernidade”). Naquele momento histórico particular associou-se a sólida e provocatória
construção intelectual de diversos fenómenos sociais sob os auspícios de uma tese acerca das
causas e efeitos dos riscos nas sociedades contemporâneas, ao malogrado evento em Chernobil
que viria a acontecer mais tarde no mesmo ano (Stevenson, 2001). A catástrofe nuclear de
proporções inéditas pareceu fornecer o mais aterrador e tangível exemplo dos postulados de
Ulrich Beck, aumentando significativamente o interesse global pelas suas obras e inscrevendo
as noções de risco no cânone e debates sociológicos, cujo vigor se estende até aos dias de hoje.
Contudo, a Sociedade do Risco está longe de esgotar o potencial heurístico da totalidade da
obra deste sociólogo. Com efeito, este autor tem trilhado o caminho do desenvolvimento de
uma teoria social de síntese, especialmente visível nas concepções que se reportam à dicotomia
estrutura – acção, capaz de fornecer novos conceitos e novas metodologias rumo à análise
teórica e empírica de um novo mundo, uma fase de “modernização da sociedade moderna”
(Beck et.al., 2003). No seu entender, existe uma descontinuidade, não uma ruptura, face à
Primeira Modernidade, também chamada de Industrial ou Simples (Beck and Zolo, 2002), no
sentido em que pode ser observada uma mudança ontológica na organização social, na
imaginação cultural, enfim, em todo o sistema de referências (Beck et.al., 2003), induzida por
uma série de processos globais que desafiam as atitudes e instituições modernistas. A conclusão
é a de que todas as sociedades ocidentais são ainda sociedades “modernas” porque não houve
um deslocamento do contexto moderno para o seu oposto, não houve uma quebra clara com os
princípios da Modernidade mas sim uma transformação das suas instituições básicas, pelo que
assistimos a uma Segunda modernidade (Beck and Lau, 2005).
Seguidamente, irá ser explorada, de forma sintética, o que se entende por Segunda
modernidade e em que medida esta se distancia do paradigma modernista original surgido do
Iluminismo. Posteriormente, serão descritos alguns dos efeitos e características dos processos
de modernização considerados mais influentes, bem como a sua possível aplicação ao contexto
português. Por fim, a totalidade do exercício será avaliada na sua pertinência, tendo em conta
algumas das críticas mais comuns, dirigidas às teses de Ulrich Beck.
2
Modernização Reflexiva: da Primeira Modernidade para a Segunda Modernidade
O apogeu da Primeira Modernidade foi concebido pelo autor como um sistema de
coordenadas estável, uma configuração de instituições sob a qual se dão os processos de
mudança social (Beck et.al., 2003; Beck and Lau, 2005). Este sistema poderia ser caracterizado
da seguinte forma: (1) Sociedades assentes no Estado-Nação e seus sistemas de Providência;
(2) Partidos políticos ancorados em tradições classistas; (3) Padrões de vida colectivos que
enquadram e moldam os processos de individualização; (4) Participação económica alargada
(não obstante a divisão sexual do Trabalho) ou sociedades de pleno-emprego; (5) Exploração
da Natureza como condição das dinâmicas industriais de crescimento contínuo, tributárias ainda
dos modelos Fordistas; (6) Preponderância da família nuclear e rigidez dos seus papéis de
género; (7) A ciência como baluarte inquestionável de progresso, racionalidade e de controlo
instrumental do Homem sobre a Natureza e os contextos; (8) Princípio da diferenciação
funcional através da especialização progressiva e contínuo crescimento do número de sub-
sistemas sociais e da complexidade que isto acarreta.
Estes corpos e relações institucionais mantinham-se mutuamente suportados ora por uma
segurança advinda dos mais variados mecanismos de regulação social e da tangibilidade da
integração económica pelo salário ou pelo consumo (Beck et.al., 2003), ora por uma clareza de
distinções entre as categorias que compunham a realidade. As fronteiras entre o que constituíam
os seres vivos ou as coisas, as sociedades ou o meio ambiente, os conhecimentos ou as crenças,
dotavam essas categorias de formas essenciais e auto-evidentes, tornando também a atribuição
da autoridade e da responsabilidade inequívoca (Beck and Lau, 2005). Tal configuração tinha
ainda na sua base o Estado-Nação – de tal forma que poderia ser sinónimo da Primeira
Modernidade (Beck et.al., 2003) – denotando que as redes, as comunidades e as relações
sociais eram, na sua essência, territorialmente inscritas (Beck and Lau, 2005). Estas premissas
foram então integradas como assunções tácitas através de processos de naturalização e
antropologização, isto é, eram vistas como inalteráveis e assentes em distinções naturais (Beck
et.al., 2003). Ora, uma das hipóteses centrais do autor prende-se com a noção de que está em
curso uma desmistificação e dissolução das certezas da Primeira modernidade, o que se traduz
numa mudança societal fundamental e de largo espectro. É na contemporaneidade que se
tornam patentes não só mudanças na estrutura social, mas também autênticas revoluções nas
coordenadas, categorias e concepções da própria mudança (Beck et.al., 2003).
Ao invés de conceptualizar uma teoria social de, progresso, declínio ou ascensão de Eras
civilizacionais, Beck toma como um imperativo metodológico e pragmático a tarefa de tornar
objecto de análise e reflexão as meta-mudanças que estão em curso e em vias de produzir novos
tipos de ordem social e de subjectividade, de Capitalismo e de Estado, de trabalho e de
quotidiano. Estas transformações estão, na sua perspectiva, a acontecer às estruturas sociais na
3
actualidade sob o signo da ambivalência, reflexividade e imprevisibilidade, podendo ser
concebidas sob o chapéu-de-chuva do construto Modernização Reflexiva (Beck et.al., 1994;
2003; Beck and Lau, 2005).
Porém, o adjectivo “reflexivo” deve ser alvo de uma clarificação face aos modos como é
utilizado por outras teorias sociais, filosóficas ou sociológicas. De facto, o termo “reflexivo”
tem mais a ver com “reflexo” do que com “reflexão”, no sentido em que os reflexos são
indeterminados e imediatos. Ou seja, não é tanto uma declaração da maior capacidade dos
sujeitos reflectirem ou tornarem-se mais conscientes acerca da sociedade que os rodeia, mas
sim de uma auto-confrontação, muitas vezes não-intencional, com as incertezas, ambivalências
e contingências de uma sociedade globalizada, a partir das quais se impõe o acto de escolher
(Stevenson, 2001; Beck et.al., 2003). O que Beck argumenta é que as próprias forças de
modernização, como a expansão dos mercados, o universalismo legal e as revoluções
tecnológicas, radicalizaram-se ao ponto de questionarem e dissolverem as anteriores fronteiras
dicotómicas, juntamente com suas bases cognitivas e normativas (Beck, et.al., 2003).
Se assistimos então a uma Modernização reflexiva, à transformação dos princípios, categorias
e instituições do passado, quais foram então os factores que a despoletaram? Que desafios
políticos, sociais e económicos lhes são subjacentes? De acordo com Beck (Beck and Lau,
2005; Beck and Zolo, 2002), estes factores são globais, sistémicos e interligados, não se
esgotando na seguinte enumeração, mas nela cabendo:
1. Riscos Globais (ou a Sociedade Global do Risco);
2. Globalização (ou Cosmopolitanização);
3. Individualização (Reflexiva);
4. Desemprego/Sub-Emprego;
5. Revolução de Género;
Com efeito, todas as sociedades modernas, na actualidade, são confrontadas com todos estes
processos de forma simultânea (Beck and Lau, 2005). Veremos então como Beck conceptualiza
cada um destes processos e de que forma eles podem ser aplicados a uma análise coerente da
sociedade portuguesa na actualidade.
Sociedade Global do Risco
Para Beck, a narrativa do risco é pejada de elementos irónicos e até fúteis, uma vez que se
refere aos esforços e tentativas que as instituições modernas devotam à antecipação do que não
pode ser antecipado (Beck, 2006). Isto é, as noções do risco referem-se, por um lado, aos
perigos associados ao desenvolvimento da racionalidade científica e do progresso económico
(Stevenson, 2001) e, por outro, às acções decorrentes da compulsão eminentemente moderna
4
para tornar previsíveis e controláveis as consequências da acção humana e do progresso
civilizacional (Beck, 2002)
Quanto ao primeiro aspecto, Beck tenta tornar explícita a constatação de que quanto mais a
ciência e a técnica progridem, mais e piores perigos descobrem, os quais tendem a situar-se
para lá de qualquer controlo humano, muito menos individual (Beck, 1999). Por outras
palavras, os processos de modernização têm produzido efeitos colaterais, essencialmente não-
intencionais, que têm como consequência a criação, assunção e gestão de riscos ou expectativas
de perigos com um potencial de destruição cada vez maior. Beck concretiza esta premissa,
afirmando que as decisões passadas quanto à energia nuclear e as decisões contemporâneas
quanto à manipulação genética, ao avanço das ciências informáticas e aos novos usos da
nanotecnologia, constituem exemplos de sub-sistemas cujo progresso inscreve consequências
imprevisíveis, incontroláveis e incomunicáveis que põe em perigo a vida no planeta (Beck,
2002). Este facto é o que torna a noção de risco central para a sociedade global contemporânea
e o que a torna consideravelmente distinta de todas as outras épocas anteriores (Beck, 1999).
Em resumo, o que o autor pretende salientar com esta proposta é: (1) Que as nossas decisões
civilizacionais conduziram a novos perigos e/ou riscos (Beck, 1999); (2) Os novos riscos
socialmente construídos são cada vez mais (potencialmente) catastróficos, não se
circunscrevendo a um determinado ponto geografica e temporalmente localizável (Beck, 1999;
Beck, 2006) e (3) Quanto mais avançada for uma sociedade, maior será a probabilidade de criar
perigos que estão para além da perspectiva de controlo, cálculo, socialização ou compensação
(Beck, 1999; Beck, 2006). Por exemplo, uma experiência de manipulação genética pode conter
em si a promessa de cura para uma determinada doença, mas também o perigo de um
determinado agente patológico ser libertado e causar uma pandemia, sem olhar a fronteiras e
com repercussões para as gerações seguintes. Mediante a possibilidade de um desastre global
eticamente inatribuível, a responsabilização colectiva torna-se uma miragem, e a
responsabilidade individual torna-se a norma (Beck, 1999).
Por outro lado, os riscos constituem o motivo primordial para a acção dirigida à sua
prevenção, gestão ou minimização dos potenciais danos (Beck, 1999), pelo que lhe são
inerentes os processos de tomada de decisão, isto é, os riscos pressupõem decisões
direccionadas para a transformação de perigos incalculáveis em riscos calculáveis (Beck,
1999). No entanto, sendo um presságio ou uma consciência de ameaça, a noção de risco vive
permanentemente num estado virtual, cuja forma etérea é socialmente construída e negociada
(Beck, 2006). Daqui decorre uma politização dos riscos, uma vez que competem entre si
diversas visões advindas da comunidade científica, dos grupos económicos, dos governos ou
das populações o que se traduz, inevitavelmente, num diferencial de poderes entre actores na
definição do que constitui um risco e de quais as medidas mais apropriadas que a serem
5
tomadas (Beck, 2006). Assim sendo, na perspectiva de Beck, as relações de definição do risco
devem ser análogas as relações de produção de Marx, onde os actores mais poderosos agem de
forma a maximizar os riscos para os outros e a minimizar os riscos para si próprios, concluindo
que, na actualidade, a exposição ao risco é a principal causa das desigualdades, não a classe
social (Beck, 2006).
Em concordância, face a um quadro parcial, politizado e relativamente independente do risco
real, bem como às pressões societais para a rápida tomada de decisões, a acção tem
normalmente como resultado a produção de riscos ainda mais consideráveis, daí a ironia (Beck,
2006). Esta proposta poderá ser mais evidente se considerarmos que as respostas
institucionalizadas da Primeira modernidade aos problemas por si produzidos – por exemplo,
mais e melhor tecnologia, mais crescimento económico, mais investigação científica ou maior
especialização – são cada vez menos persuasivos e parecem cada vez menos eficazes na
resposta àqueles desafios (Beck, et.al., 2003). Por outras palavras, as consequências não-
previstas da aplicação de princípios de racionalidade e de diferenciação funcional não podem
ser controladas pelo alargamento desses mesmos princípios (Beck and Lau, 2005), por um lado
porque a definição do risco tornou-se politizada e, por outro, porque a ineficácia dos anteriores
agentes está na base das acções correctivas futuras (Beck, 2006). Como corolário, a ideia
fundamentalmente moderna de mestria, certeza ou segurança entra em colapso (Beck and Lau,
2005), sendo substituída pela incorporação da máxima “espere o inesperado” nos processos de
decisão institucionais e individuais (Beck et.al, 2003), decorrentes de uma percepção cada vez
mais aguda de que o controlo é impossível (Latour, 2003, cit in Beck et.al., 2003).
Globalização/Cosmopolitanização
Para Beck, um dos resultados mais potentes da Primeira modernidade e da expansão dos
processos e sistemas dela tributários foi a Globalização. Para o autor, este é um fenómeno
multidimensional que, à escala global, quebra as antigas fronteiras e coloca um desafio aberto
às instituições modernas, especialmente a territorialidade simbolicamente contida na primazia
do Estado-Nação (Beck, 1999; Beck et.al, 2003; Beck and Lau, 2005). Com efeito, trata-se de
um fenómeno que contém dimensões políticas e culturais que, ao transformarem a relação entre
o local e o global, entre o doméstico e o estrangeiro, afectam o significado das fronteiras
nacionais e, com isso, o baluarte do Estado-Nação.
Especificamente, o advento da globalização mudou as estruturas económicas, simbólicas e
culturais da Primeira modernidade (Beck, 1999; Beck, et.al., 2003; Beck and Grande, 2007) na
medida em que (1) Reduz a sua autonomia dos Estados e a dos seus cidadãos para agir
unilateralmente ou de forma independente; (2) Expande a influência de actores e processos
transnacionais; (3) Compromete a autonomia do Estado e a sua soberania económica,
6
obrigando à adopção de políticas compatíveis com os caprichos de uma nova forma de
Capitalismo altamente móvel; (4) Cria padrões internacionais de concorrência para o
investimento estrangeiro e alarga as obrigações de mecanismos de accountability para fora de
uma circunscrição puramente doméstica. (5) Produz tensões entre as necessidades materiais do
Estado (que só podem ser realizadas através da interacção económica externa) e a sua fonte
primária de legitimidade que se mantém sob a forma da vivência de uma cidadania democrática
de índole interna; (6) Re-configura a estrutura de relações de cooperação e de conflitualidade
entre nações; (7) Transnacionaliza a memória histórica; (8) Exacerba os processos em curso de
Individualização e formação de uma Ética global; (9) Promove a passagem da Sociedade do
Risco à Sociedade Global do Risco; (10) Contribui para a diminuição do poder dos sindicatos,
alterando a configuração das relações laborais e industriais; (11) Concretiza uma vasta arena de
social onde vários tipos de relações e de sentimentos de pertença comunitária são imaginados e
experimentados.
Não desdenhando de todo a importância da já vasta literatura sobre a Globalização, Beck tem
tentado, nos últimos anos, deslocar a atenção teórica, empírica e metodológica das ciências
sociais para o conceito de Cosmopolitanização. Com a mobilização deste conceito, Beck
pretende ilustrar a ideia de que o “outro global” está no nosso meio, isto é, de que a experiência
mais relevante (do risco) global é a da ocorrência abrupta e consciente de um encontro com o
outro excluído, que assim deixa de o ser (Beck, 2006). Religiões, classes, nações e continentes
inteiros fundem-se na paisagem “cosmopolitanizada” dos indivíduos e da sua percepção (Beck,
2011). No entanto, a conexão entre os actores globalizados não é, na maior parte dos casos,
estabelecida de forma voluntária, pelo que se impõe uma distinção fundamental entre
Cosmopolitanização e Cosmopolitismo no sentido filosófico do termo (Beck, 2006; Beck,
2011). Este último liga-se à ideia de que uma cidadania global é possível, de que o orgulho pela
tradição nacional pode coexistir com a vivência de uma identidade colectiva e que esta pode ser
impeditiva de uma atitude sobranceira, competitiva ou hegemónica (Beck and Grande, 2007).
O que se passa actualmente, a seu ver, é completamente diferente, uma vez que assistimos à
imposição de um auto-confronto com o outro, aparentemente discreto e colado ainda a espaços
soberanos e a regras de etiqueta, que se reveste de aspectos involuntários, exploratórios e
agressivos (Beck, 2011). Assim, a Cosmopolitanização deverá ser o construto por excelência
das ciências sociais na sua análise ao mundo contemporâneo, uma vez que os seus efeitos se
difundem do nível micro, como o corpo humano, e nível meso, nas vilas ou nos postos de
trabalho, até ao nível macro das instituições e decisões de cúpula; Em suma, a
Cosmopolitanização perpassa todos os campos da comunicação, da interacção e da praxis
social e política na contemporaneidade pelo que deve ser estudada, exposta e combatida (Beck,
2011). Combatida em favor do seu conceito irmanado de Cosmopolitismo, mais puro ou
7
utópico, mas cuja formulação e disseminação é apontada como a solução para crises estruturais,
a alternativa para o “equívoco” do neo-liberalismo e, especificamente, a única saída que a
Europa tem para um futuro de paz e prosperidade (Beck and Grande, 2007; Beck, 2011).
Individualização (reflexiva)
Em alguns dos seus trabalhos, Ulrich Beck tem explorado a emergência de uma sociedade na
qual os indivíduos estabelecem uma relação ambígua com as instituições sociais, procurando
escapar aos quadros normativos para “viver a própria vida”, construindo o seu projecto
identitário e biográfico de forma reflexiva e singular mas também sendo obrigado a enfrentar os
riscos e tensões, de um modo mais individualizado (Beck et.al., 1994; Beck, 1999).
A individualização refere-se portanto não a um individualismo tout court mas ao “desencaixe”
dos modos de vida e tradições da Primeira modernidade e a reinvenção de novos laços
comunitários e percursos biográficos (Beck et.al., 1994). Parte então do pressuposto de que
quanto mais áreas da vida social deixam de estar sob a alçada da tradição, mais as biografias
requerem escolhas e planeamento, pelo que as pessoas são convidadas a constituírem-se como
indivíduos, a perceberem-se e a desenharem-se enquanto tal (Beck, 1999).
Para Beck, uma das instituições societais que mais contribuíram para a Individualização
parece ser a da provisão de bens e serviços públicos assentes nos sistemas “welfare”,
destacando-se a de uma socialização (cada vez mais) prolongada dos indivíduos no sistema de
ensino, desde logo devido à ruptura com o modelo tradicional de socialização no quadro
familiar e à abertura de novos campos de possibilidade de acção sobre o mundo (Beck et.al.,
1994). À imagem da advertência de Kant ao descrever o Iluminismo, também estes autores
preconizam que o conhecimento leva à ruptura com as estruturas tradicionais, liberta dos
constrangimentos culturais como a religião, família, moral convencional, classe social ou
género possibilita a adesão a novas práticas sociais e dota os indivíduos de uma maior
capacidade de intervenção nos seus percursos biográficos (Beck et.al., 1994).
Já o reverso da medalha é a imersão na Sociedade do Risco – a desintegração das certezas, a
possível paralisação face às numerosas oportunidades que parecem à distância de um gesto, a
angústia e ansiedade provocadas pelo falhanço do projecto pessoal que, sob todos os prismas
aparentes, poderia ter sido construído de todas as maneiras possíveis de serem imaginadas,
enfim, a compulsão para o encontro ou invenção de novas certezas para o “self” (Beck.et.al,
2004). De qualquer das formas, o indivíduo assume, e é levado a assumir, uma maior
responsabilidade pelas suas escolhas, pelos seus sucessos e fracassos, na medida exacta em que
se sedimenta a noção de que se é o que se escolhe ser (Beck, 1999).
Segundo o mesmo autor, o que se torna novidade na contemporaneidade é precisamente a
endogeneização do risco (Beck, 1999). A previsão, protecção, gestão, alerta ou monitorização
8
de riscos está presente em diversos sistemas, tendo dado origem a múltiplos departamentos ou
organizações exclusivamente criadas para estes fins. Mas esta tendência também se repercute
nos indivíduos, onde a antecipação dos riscos e consequentes comportamentos adaptativos,
entraram no seu quotidiano. Os processos de individualização são, desta forma, induzidos quase
que programaticamente pela modernização de variados sistemas interligados, ao longo dos seus
diferentes estádios evolutivos. Nomeadamente, o desequilíbrio que começou a ser patente entre
as instituições do Estado, do Capital e do Trabalho (cuja homeostasia anterior tinha
providenciado níveis de desemprego negligenciáveis, baixos riscos pessoais devido a políticas
de “welfare”, uma inflação controlada e uma produtividade crescente) teve como efeito o
alargamento da esfera da responsabilidade individual e o aumento dos riscos a que esta está
sujeita. Aliás, é através da rejeição apriorística da capa culturalmente moldada de libertação que
Beck argumenta que estes processos apenas libertam os indivíduos para a turbulência da
Sociedade Global do Risco, uma vez que as anteriores estruturas e mecanismos de suporte se
desvanecem em prole de uma configuração de sucesso/insucesso pessoal no estabelecimento de
relações propiciadoras de segurança económica (Beck et.al., 2004). Esta Individualização
assume-se como um catalisador dos efeitos colaterais da Sociedade Global do Risco, ao mesmo
tempo que alarga as suas assimetrias porque a nova distribuição de possibilidades para “um” é
concomitante com a nova distribuição de impossibilidades para o “outro” (Beck, et.al., 2003).
Desemprego/Sub-emprego
As questões laborais, especialmente o desemprego, podem ser percebidas como o exemplo
mais concreto desta nova distribuição de riscos e possibilidades a que os indivíduos estão
sujeitos nas sociedades da Segunda Modernidade. Sob o pano de fundo do desequilíbrio
estrutural e institucional atrás mencionado, os indivíduos estão agora mais expostos aos
“caprichos” do Capital transnacional e dos mercados laborais, bem como à flexibilidade e
casualidade das práticas laborais, ao mesmo tempo que o ónus recai sobre ele para
continuamente se qualificar e adaptar às mudanças e desafios que lhe são impostos (Beck,
2000). Esta constatação revela que os processos de individualização são os que mais facilmente
legitimam a retracção do papel e responsabilidades dos Estados-Nação perante os seus
constituintes. A integração social e económica de todos os cidadãos por via do pleno emprego
tornou-se uma miragem e da re-definição de princípios do contrato social resultou a
manutenção de níveis aceitáveis de crescimento económico e a vertiginosa escalada dos lucros
corporativos (Beck, 1999).
O reverso da medalha, de acordo com Beck (1999; Beck and Zolo, 2002) é composto por: (1)
Altos níveis de desemprego estrutural e situações de sub-emprego (trabalhos “part-time”,
inexistência de vínculos formais ou efectivos, trabalhos temporários ou por tarefas,
9
trabalhadores domésticos e outras categorias que não é fácil designar com as terminologias
tradicionais); (2) a instabilidade e flexibilidade do trabalho advinda da desregulação de amplos
sectores da economia e das relações de trabalho; (3) a maior vulnerabilidade que o desemprego
acarreta devido à crescente dificuldade de acesso a serviços de educação ou saúde, cada vez
menos públicos/universais e a funcionar em lógicas próximas dos seguros privados ou das taxas
de utilização; (4) a distinção/separação cada vez mais problemática da vida privada e do
trabalho.
Desta forma, concebe-se que também as formas anteriores do Capitalismo e dos seus modos
de produção ancorados na tradição Fordista estão a sofrer uma complexa transformação. Com
as regras e relações pautadas por uma radicalização das desigualdades (Beck and Zolo, 2002),
começa a sair da forja para a luz um “regime transitório pós-Fordista” que Beck e Grande
(2007) concebem a partir das seguintes premissas: (1) Torna-se efectiva e em contínua
expansão a separação da economia financeira face à economia produtiva; (2) Apesar das
limitações, prosseguem as tentativas de estabelecimento da empresa sem fronteiras, do trabalho
virtual e do trabalhador flexível; (3) As mudanças radicais começam a sobrepor-se às mudanças
incrementais, no que diz respeito aos modelos de racionalidade em vigor; (4) A interligação
entre globalização, individualização e informatização tornam-se cada vez mais estreitas; (5) As
formas de legitimação dos sistemas passam cada vez mais pela afirmação cultural do neo-
liberalismo.
Revolução do Género
Por fim, todos os processos de modernização atrás descritos têm contribuído para a
transformação da configuração tradicional de família nuclear bem como dos papéis de género,
ancorados cada vez menos em concepções essencialistas e cada vez mais em construções
deliberadas (Beck et.al, 1994; Beck et.al., 2003; Beck & Beck-Gernsheim, 1995).
Como já vimos, a construção das identidades pessoais é vista como sendo uma tarefa
eminentemente pessoal e única, cada vez mais livre dos constrangimentos normativos de uma
Modernidade em xeque. O ritmo de destruição de fronteiras e categorias sociais ou de
pensamento só é (provavelmente) suplantada pela criação de novas fronteiras, cuja profusão
pode muito bem ser um dos critérios de aferição empírica da Segunda modernidade (Beck,
et.al, 2003). Desta forma, os papéis de género, outrora dicotómicos, herméticos e legitimados a
partir do fatalismo das diferenças “naturais” entre os sexos, tornam-se, com a Modernização
Reflexiva, em projectos pessoais estabelecidos mediante a performance (Butler, 1990, cit in
Beck, et.al., 2003) competindo entre si na constelação dos estilos de vida, na profusão de
identidades e comportamentos sexuais tornados possíveis, tudo sob uma (aparente) igualdade
de oportunidades. Evidentemente, os padrões de comportamento anteriormente valorizados e
10
ambicionados (como a procura de uma relação heterossexual com um membro do sexo oposto,
o casamento e a procriação, por esta ordem) deixam de fazer parte dos cânones, no seguimento,
já não impõem as coordenadas da vida societal.
Os processos de Individualização afiguram-se, portanto, como a grande força impulsionadora
da “revolução do género”, abrindo novos campos de possibilidade para as mulheres –
especialmente devido à generalização no acesso às oportunidades educativas e laborais – ao
mesmo tempo submetendo-as às contingências da Sociedade do Risco (Beck, 1999).
Exemplificando, a dissolução da família nuclear e a inserção da mulher no mercado de trabalho
pode traduzir-se na vida de uma mulher divorciada sob um stresse emocional e financeiro
considerável, decorrente das tensões entre as exigências da carreira profissional e das
responsabilidades parentais (Beck et.al., 1994).
Em suma, as noções de família, bem como as relações e hierarquias que aí nascem encontram-
se, por isso, sob processos de mudança (Beck.et.al, 2003; Beck & Beck-Gernsheim, 1995). Os
ideais de emancipação e igualdade de direitos que já não se excluem dos assuntos domésticos, a
expansão da família nuclear ou o rearranjo decorrente da agregação de novos elementos, a
banalização dos divórcios e dos novos casamentos, as novas concepções de parentalidade…
Todas são consequências, não exaustivamente enumeradas, da colisão de interesses entre o
amor, a família e a liberdade pessoal conotada com a Individualização, todas são
problematizadas na obra de Beck com a sua companheira “O caos normal do Amor” (Beck &
Beck-Gernsheim, 1995).
Aplicabilidade das teses de Ulrich Beck à análise da sociedade portuguesa actual
Aqui, argumento que a descrição destes cinco grandes processos, enquanto motores de uma
Modernização Reflexiva que está a mudar a face da chamada Modernidade, pode ser relevante
para a análise sociológica, política e histórica do momento que a sociedade portuguesa vive
neste momento. Desde logo, a reflexão que Beck enceta acerca do Risco parece encontrar uma
tradução relativamente fiel na realidade portuguesa submergida na Crise Financeira (2008 - ?) a
qual, com origem na expansão insustentável do crédito primeiramente notada no mercado
hipotecário “subprime”, rapidamente irrompeu as suas fronteiras norte-americanas para
construir um padrão de economia mundial idêntico ao da Grande Depressão dos anos 1930
(Amaral, 2009). Ou seja, os efeitos aparentemente não-intencionais da complexificação dos
sub-sistemas económico-financeiros e suas ferramentas criaram riscos com uma envergadura
que não conhece fronteiras e que impele a acção dos líderes mundiais para a gestão e
evitamento dos seus perigos. Na sociedade portuguesa, como noutras, o presságio da crise foi
tornado real mediante a sua construção social. Só o eco constante da palavra CRISE, que parece
introduzir a discussão de qualquer tema, é sintomático da centralidade que assumiu na
11
sociedade. Fazendo jus à compulsão para tornar controlável o que não o é, os mais diversos
agentes começaram a construir a agenda mediática em torno das causas internas para o fracasso
anunciado: A década de crescimento económico estagnado, a imensa acumulação de dívida
pública e privada, a dimensão e “gorduras” de um Estado ineficiente e complacente, o modelo
de bem-estar ultrapassado e insustentável, a influência nefasta e ineficaz do líder político que
não soube lidar com a Crise (i.e. Ex-Primeiro-Ministro José Sócrates). As concepções
anteriores, nomeadamente o financiamento por meio do crédito a instituições e particulares,
antes tido como um instrumento de progresso e aumento de qualidade de vida, perdem grande
parte da sua validade.
A construção de novas fronteiras claramente demarcadas surge na sociedade como algo novo
mas imediatamente assimilável – Por exemplo, o número mágico dos 7% de juros em
obrigações tornou-se a fronteira intransponível e, a partir da qual, seria absolutamente
necessária a intervenção/”ajuda” externa1. A Crise torna-se então o centro da preocupação
mediática, política, intelectual e quotidiana, com o surgimento de imensos contributos advindos
dos mais variados espectros, para a sua compreensão e acção na minimização dos riscos. De
repente, ou, na linguagem de Beck, reflexivamente, os mecanismos de tomada de decisão são
obliterados face à emergência dos perigos, os agentes mais próximos da derrocada são
encarregues da sua correcção (i.e., Banqueiros, Economistas, Políticos, Tecnocratas, etc.),
decisões que afectam milhões de cidadãos são tomadas em tempo recorde e o caminho traçado
é imposto como uma inevitabilidade: Ou desta forma ou o caos.
Consuma-se então o quadro de acção socialmente gravoso mas necessário face a um risco já
plenamente politizado, onde os agentes mais poderosos agiram de forma a maximizar os riscos
para os outros, nomeadamente as franjas mais vulneráveis da população2 e a minimizar os
riscos para si próprios. Dá-se então a distribuição assimétrica do risco, legitimada a custo, mas
diligentemente, por intermédio de mecanismos de endogeneização dos próprios riscos. Nesse
sentido, os cidadãos são levados a acarretar com os custos de uma acção que só se tornou
necessária devido a desvios comportamentais passados. Os argumentos que vão neste sentido
prendem-se com uma suposta má gestão de recursos, com os gastos supérfluos em tempos de
“vacas gordas”, com uma vida “acima das possibilidades”. Seguem inclusivamente os métodos
1 Na edição de 27/02/2011, o Diário Económico noticiava que “As taxas de juro acima dos 7% estão a preocupar os
analistas que acreditam que recorrer a ajuda externa será inevitável.” (http://economico.sapo.pt/noticias/pedido-de-ajuda-de-portugal-e-inevitavel-dizem-analistas_112132.html). Sem surpresa, a 6 de Abril o Governo português oficializa o seu pedido de ajuda externa para o resgate da dívida soberana (http://pt.euronews.net/2011/04/06/portugal-pede-ajuda-para-resgate-da-divida-sobrerana/) 2 O artigo do Público de 9 de Janeiro de 2012 que titula “Austeridade induz aumento da desigualdade em Portugal” dá
nota do severo impacto das medidas impostas pelo memorando da troika sobre os mais pobres da sociedade portuguesa, mais violentos comparativamente a outros países europeus que também atravessam crises orçamentais, interpretando dessa forma os resultados do estudo da Comissão Europeia: “The distributional effects of austerity measures: a comparison of six EU countries”. (http://economia.publico.pt/Noticia/austeridade-induz-aumento-da-desigualdade-em-portugal-1528270)
12
de culpabilização, tão caros à tradição judaico-cristã, onde os defeitos de carácter como a
subsídio-dependência, a falta de atitude empreendora, o laxismo e o absentismo que destroem a
produtividade e competitividade das empresas: Tudo factores apontados à legitimação tanto da
culpa própria como das consequências. Nesta conjuntura, é provável que os indivíduos
assumam as responsabilidades que, ao que tudo indica, não podem ser assacadas a outros,
aceitando passivamente a progressiva privatização de riscos e a socialização dos prejuízos,
legitimando o que tão claramente se distingue nesta crise: O movimento colossal de
transformação de dívida privada em dívida pública.
Sob um outro prisma, o Mundo volta a olhar para Portugal e Portugal olha-o de volta. As
fronteiras físicas do nosso Estado-Nação deixaram definitivamente de fazer sentido, da mesma
forma que o modelo “welfare” afigura-se esgotado. Os receios de uma crise global e sistémica
estão já disseminados e a dívida soberana é considerada um investimento de alto risco para os
investidores internacionais3. A autonomia do Estado português encontra-se substancialmente
diminuída devido aos termos do resgate financeiro em vigor acordados com instituições
financeiras estrangeiras4. As relações externas, especialmente ao nível europeu, têm sido
pautadas pela falta de solidariedade e de um sentido único, sendo claras as referências
pejorativas5 tanto ao estado das economias mais frágeis como aos defeitos de carácter dos
povos em questão. Em vez de cooperação, assiste-se à impotência das instituições da União
Europeia para tomar acções eficazes, bem como ao distanciamento e aprofundamento de
tensões entre países.
Por outro lado, as soluções apresentadas como saída ou resolução da presente crise têm como
eixos fundamentais, para além do clássico crescimento económico, o incremento das
exportações, a captação de investimento estrangeiro e a melhoria dos índices de
competitividade. Ora, tais desígnios representam claramente a auto-confrontação dos
portugueses face a todos os outros cidadãos e sociedades do mundo. Entra-se claramente pela
via da competitividade internacional, onde o operário de Setúbal, o agricultor de Beja ou o
executivo de Lisboa definem os modos e ritmos do seu trabalho em função das expectativas e
percepções que possuem acerca dos seus pares, já não domésticos, mas internacionais. Da
mesma forma, estendem-se convites à entrada de capital financeiro e humano nas empresas e
empreedimentos nacionais, descartando-se qualquer resistência como sintoma reaccionário ou
preconceituoso. Os portugueses sentem-se hoje em competição com o mundo, não
3 Segundo um estudo da corporação CMA, considerando os riscos inerentes ao investimento em prole do financiamento
de dívidas públicas à escala global, Portugal figura como 2º país mais “arriscado” devido aos perigos associados ao potencial incumprimento (http://www.cmavision.com/) 4 MEMORANDO DE ENTENDIMENTO SOBRE AS CONDICIONALIDADES DE POLÍTICA ECONÓMICA (trad.
Português) Disponível em: http://aventadores.files.wordpress.com/2011/05/2011-05-18-mou_pt.pdf 5 http://pt.wikipedia.org/wiki/PIIGS
13
cosmopolitas mas cosmopolitizados, forçados ao confronto com outras nações e povos por via
de pequenas batalhas quotidianas.
Um dos factores com maior potencial “motivador” para a assunção plena da competitividade
global prende-se com o medo generalizado do desemprego, esse “flagelo social”. Com efeito,
os números totais do desemprego têm vindo a subir, dos 5,5% existentes num contexto de
moderado crescimento económico da década de 1990, passando pelos 6,6% existentes num
contexto de crescimento económico praticamente nulo da década de 2000, até aos 10,8% em
2010 (Fonte: PORDATA). Os dados mais recentes revelam 12,4% de desemprego total no 3º
trimestre de 2011 (Fonte: INE). As previsões (optimistas) do Governo apontam para uma taxa
de desemprego próxima dos 13% em 2013 atingindo novos máximos históricos6. Esta situação
não pode deixar de ser vista como propiciadora de níveis de desemprego estruturalmente altos,
o que colocará ainda maior pressão sobre o orçamento do Estado e sobre a justiça moral
associada às prestações sociais, especificamente o subsídio de desemprego.
Concomitantemente, as opções políticas tomadas recentemente7 vão no sentido de uma maior
precarização dos vínculos laborais, a uma maior facilidade de despedimento, a um aumento do
trabalho não-remunerado e outras formas de sub-emprego, à diminuição dos custos do trabalho,
entre outras grandes linhas programáticas desenhadas e construídas, mais uma vez, sob o signo
da politização reflexiva.
Por último, os sinais de uma revolução de género começam também a avolumar-se no
Portugal da Segunda modernidade. No que toca à inserção no sistema de ensino, as mulheres
apresentam números ligeiramente superiores aos dos homens, com particular destaque para o
Ensino Superior em que já representam 53,3% do total de alunos (Fonte: PORDATA). Uma
outra tendência interessante de analisar será a transformação da família nuclear e,
particularmente, da instituição Casamento: Comparando os dados disponíveis relativos ao
divórcio, verificamos que existia em 1970 um rácio de divórcios/casamentos de 0,6%, ao passo
que em 2010 esse valor subiu para uns estrondosos 68,9% (Fonte: PORDATA). Não obstante
as orientações e planos estratégicos advindos da União Europeia e do Estado português no
sentido de uma progressiva igualdade de género8, a verdade é que subsistem variadas
disparidades entre os sexos, que vão desde os salários ao número de horas de trabalho,
passando pelo acesso aos cargos profissionais de topo e os padrões de gozo da licença de
parentalidade (INE, 2010). Estes e outros dados deverão acautelar as visões mais optimistas no
6 Aquando da apresentação Programa de Ajuda Económico e Financeiro, o Ministro das Finanças assumiu
que A taxa de desemprego irá subir até 13% em 2013. Disponível em: http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1844840 7 “Concertação social: os pontos-chave do acordo” (Fonte: Público) Disponível em:
http://www.publico.pt/Economia/concertacao-social-os-pontoschave-do-acordo-1529607 8 Cf. III Plano Nacional para a Igualdade: Cidadania e Género, disponível em:
http://www.gep.msss.gov.pt/planeamento/pigualdade.php
14
que concerne a igualdade de oportunidades e tratamento entre pessoas de sexos diferentes por
evidenciar formas de organização social e categorias cognitivas que, neste contexto, se poderão
considerar de pré-modernistas.
Críticas
As teses de Beck têm colhido um grande interesse no mundo académico, especialmente
devido à sua ambição de enquadrar o processo de modernização como uma totalidade, e
também em virtude do repúdio relativamente aos cânones das teorias sociológicas e políticas,
considerando-os desactualizados face ao panorama da contemporaneidade (Beck et.al., 2003).
Naturalmente, tem igualmente suscitado críticas ao seu trabalho, vindas de autores e ângulos
diversos, que se encontram bem condensadas nos ensaios críticos de Stevenson (2001) e de
Elliott (2002), a partir dos quais destaco brevemente alguns dos pontos desenvolvidos.
O papel do Capitalismo na Modernidade
Ao propor que a Modernização Reflexiva tem como força motriz no seu âmago os efeitos
colaterais, secundários ou imprevistos da Industrialização, Beck pode ser justamente acusado
de não ter em suficiente linha de conta os princípios da produção e acumulação capitalista.
Neste sentido, a vocação maximalista dos mercados, as pressões para a angariação de novos
mercados mediante a privatização de bens e serviços, a tendência para tornar tudo em
commodities, a concentração do poder político e económico em algumas corporações ou a
distribuição assimétrica e cada vez mais desigual da riqueza, são constatações que para Beck
estão a jusante e não derivam de qualquer intencionalidade ou anomalia aparente.
Individualização enquanto arauto do fim das classes
Beck argumenta que as forças de Individualização têm erodido a consciência de classe (as
dificuldades pessoais já não culminam em causas grupais ou colectivas) e as classes em si
mesmo (os problemas contemporâneos são cada vez mais sofridos individualmente). Não
pondo em causa que temos vindo a assistir à transformação dos padrões e divisões das classes
sociais, alguns dos seus críticos apontam para a possibilidade da individualização ser a
manifestação de relações de poder sistematicamente assimétricas. Assim, a classe e suas
estruturas de poder e dominação continuam a afectar profundamente as possibilidades dos
indivíduos e os seus interesses materiais. Adicionalmente, as diferentes definições e
conceptualizações de classe continuam a ser de elevada pertinência para a compreensão dos
padrões de desigualdade social e económica.
O défice hermenêutico das noções de risco
15
A importância das noções de Risco nas obras de Beck não implica que estas representam a sua
construção mais potente ou heurística. De facto, elas têm sido contestadas a vários níveis.
Desde logo pela questionável centralidade que ocupa nas vidas dos indivíduos, grupos e
instituições ou ainda a dúvida sobre se será o conceito adequado para capturar a essência do que
é realmente novo acerca dos tempos que correm. Por outro lado, Beck é acusado de se
preocupar apenas com o lado da agenda tecnocrata de políticos, cientistas e burocratas e nunca
com a forma como o Risco é traduzido e re-interpretado pelas diferentes sociedades e culturas.
Este facto contribui para o que Elliott (2002) designa por défice hermenêutico do conceito, o
qual se tem mostrado incapaz de, considerando factores culturais, psicológicos, afectivos ou
estéticos, abarcar as distintas formas através das quais a subjectividade e a inter-subjectividade
constroem, percebem e agem sobre o risco.
Etnocentrismo assumido mas não contrariado
Aqui, expresso as minhas preocupações no que concerne ao etnocentrismo patente nas teses de
Beck, o qual é perfeitamente assumido mas nem por isso contrariado, no sentido em que não se
apontam eventuais défices teóricos decorrentes desse enviesamento. Na minha perspectiva, os
processos de modernização descritos por Beck correspondem a uma linearidade e a uma
generalização que não retrata um quadro congruente com nenhuma sociedade específica nem
com a totalidade das sociedades actualmente, tornando difícil a aplicabilidade empírica se a
tendência original, de certa forma elitista ou programática, não for atenuada. Negligencia
portanto os factores sócio-históricos que moldam os ritmos e fases de modernização por que
passam as diferentes sociedades, ignorando a magnitude da influência que tais disparidades
representam, ao mesmo tempo que indicia algum determinismo e primazia das sociedades no
seu estádio mais “avançado”, ignorando a ascensão de certos actores ao topo dos centros de
decisão sendo produtos de formas de modernização híbridas ou, dito de outra forma,
provenientes de sociedades dificilmente enquadráveis numa Segunda Modernidade. Por último,
a sua herança iluminista pode muito bem ser apontada como um resquício ou viés de um
passado que já não existe, tal como os contributos clássicos que o autor dispensa. A obra de
Niklas Luhmann poderá não só corroborar a necessidade de novas teorias e métodos de análise
social, mas também inviabilizar o ponto de partida cognitivo e moral de Beck, no sentido em
que considera que os sistemas actuais já não se regem nem são moldáveis pelas promessas
forjadas naquele período histórico.
Bibliografia
Amaral, L. (2009) Crises Financeiras – História e actualidade. Relações Internacionais 23:
119-138.
Beck, U., Giddens, A. & Lash, S. (1994) Reflexive Modernization: Politics, Tradition and
Aesthetics in the Modern Social Order. Cambridge: Polity Press
Beck, U. & Beck-Gernsheim, E. (1995). The normal chaos of love. Cambridge: Polity Press
Beck, U. (1999) World Risk Society. Polity Press, Malden.
Beck, U. (2000a). The Brave New World of Work. Cambridge: Polity Press.
Beck, U. (2000b). The Cosmopolitan Perspective: Sociology of the Second Age of
Modernity. British Journal of Sociology, (51) 1.
Beck, U. (2001a). Redefining Power in the Global Age. Dissent Fall: 83–9.
Beck, U. (2002). The Silence of Words and Political Dynamics in the World Risk Society.
Logos 1(4):1-18
Beck, U. & Zolo, D. (2002). A sociedade global do risco: Um diálogo entre Ulrich Beck e
Danilo Zolo. Prim@ Facie 1(1).
Beck, U., Bonss, W. & Lau, C. (2003).The Theory of Reflexive Modernization:
Problematic, Hypotheses and Research Programme. Theory Culture Society 20(1): 1-34
Beck, U. & and Lau, C. (2005). Second modernity as a research agenda: theoretical and
empirical explorations in the „meta-change‟ of modern society. The British Journal of
Sociology 56 (4)
Beck, U. (2006). Living in the world risk society. Economy and Society 35 (3): 329-345
Beck, U. & Grande, E. (2007). Cosmopolitanism: Europe's Way Out of Crisis. European
Journal of Social Theory 10(1):67 – 85
Beck, U. (2011). Cooperate or Bust - The existential crisis of the European Union.
Eurozine. Disponível em http://www.eurozine.com/articles/2011-09-29-beck-en.html
acedido a 5 de Janeiro de 2012.
Elliott, A. (2002). Beck's Sociology of Risk: A Critical Assessment. Sociology 36(2):293-
215.
INE (2010) Revista de Estudos Demográficos. 47.
Stevenson, N. (2001). Ulrich Beck. In A. Elliott and B.S. Turner (Eds.) Profiles in
Contemporary Social Theory (pp. 305 – 314). London: Sage Publications.