9
BH/UFC A R T I G O UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS E ULRICH BECK INTRODUÇÃO arriscado confiar nela (Beck, 1992:19). Os estudos sobre ris- co individual, social e ambiental que eram restri- tos às subáreas da Ciência, tais como a Toxicologia, a Epidemologia, a Psicologia e as engenharias, passaram a constituir-se em temas políticos problemáticos com repercussão em agendas de políticas públicas de gover- no e em comportamentos socioculturais (Guivant, 1998:01). Beck assevera inclusive que as formas tra- dicionais e institucionais de se enfrentar riscos e perigos quanto ao casamento, aos papéis se- xuais, à consciência de classe, aos partidos e às demais instituições de governo perdem sen- tido na sociedade de risco. Exige-se dos indi- víduos que eles enfrentem medo e ansiedades. Cedo ou tarde, sempre novas exigências so- ciais (novos modelos de educação, novas te- rapias de comportamento) surgem desta intensa pressão para se saber lidar individual- mente com a insegurança. Na sociedade de risco, portanto, lidar com ansiedade e insegu- rança torna-se uma qualificação cultural es- sencial, e cultivar as habilidades demandadas torna-se também uma missão essencial das instituições pedagógicas (Beck, 1992:76). Neste artigo, procuramos oferecer uma reflexão crítica, a partir de uma leitura de textos das obras de Antony Giddens (como As conse- qüências da. Modernida.de) e Ulrich Beck (como Risk Soc1ety), destacando como a idéia de risco, projetada para o centro da Teoria Social Contemporânea, vem a ser uma chave para se AGRIPA FARIA ALEXANDRE- RESUMO Este artigo versa sobre uma análise crítica do pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck. Sobre o primeiro especialmente por este descrever a emergência das ilimitadas transformações ambientais e sociais como decorrente da enorme reflexividadenas práticassociais a que os cientistas estão induzindo. Sobre o segundo por este pressupor que já existe uma 'lógica' da sociedade de risco que subsíituiu a da sociedade de classe devido à irresponsabilidadedos mesmos cientistas. As diferenças mais importantes de pontos de vista entre os dois sociólogos em termos das mudanças em se analisar a sociedade tendo em vista a produção e a distribuição dos riscos sociais e ambientais são aqui apresentadas. • Mestrando em Sociologia Política! UFSC. V ivemos hoje numa sociedade de risco que pode ser defini- da pela incontrola- bilidade da produção do conhecimento perito e pela desorientação ou refle- xividade que essa falta de controle provoca nas práti- cas sociais. Teóricos da So- ciologia, como Antony Giddens e Ulrich Beck, ana- lisam os fenômenos resul- tantes desse tipo de sociedade e procuram não só destacar o aumento de reflexividade nas prá- ticas sociais mas também chamam a atenção para a necessidade de se tentar definir melhor qual o tipo afinal de sociedade que estam os construindo. A nova crítica à modernidade que emerge é então, por exemplo, a crítica de Beck ao poder da Ciência (Guivant, 1998:15), Na atualidade, para Ulrick Beck, cuja obra Risk Society é considerada, segundo Scott Lash e Brian Wynne (Introduction - Risk Society), um dos mais influentes trabalhos de análise social do final do século (foi publicada em 1986, na Alemanha, e em cinco anos alcançou o total de 60,000 cópias), vivemos não mais exclusivamente preocupados em transformar de forma utilitária a natureza, ou tentando livrar a humanidade dos tradicionais males e contingências, mas tam- bém temos agora de nos preocupar com os re- sultados, muitas vezes intransparentes, do desenvolvimento técnico e econômico. A mo- dernização (ou era da especulação ou ainda era vulcânica, como Beck a descreve) tem hoje que ser analisada continuamente, porque se tomou 88 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 30 N. 1/2 1999

UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

BH/UFC

A R T I G O

UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EMANTONV GIDDENS E ULRICH BECK

INTRODUÇÃO arriscado confiar nela (Beck,1992:19).

Os estudos sobre ris-co individual, social eambiental que eram restri-tos às subáreas da Ciência,tais como a Toxicologia, aEpidemologia, a Psicologiae as engenharias, passarama constituir-se em temaspolíticos problemáticos comrepercussão em agendas depolíticas públicas de gover-no e em comportamentossocioculturais (Guivant,1998:01).

Beck assevera inclusive que as formas tra-dicionais e institucionais de se enfrentar riscos eperigos quanto ao casamento, aos papéis se-xuais, à consciência de classe, aos partidos eàs demais instituições de governo perdem sen-tido na sociedade de risco. Exige-se dos indi-víduos que eles enfrentem medo e ansiedades.Cedo ou tarde, sempre novas exigências so-ciais (novos modelos de educação, novas te-rapias de comportamento) surgem destaintensa pressão para se saber lidar individual-mente com a insegurança. Na sociedade derisco, portanto, lidar com ansiedade e insegu-rança torna-se uma qualificação cultural es-sencial, e cultivar as habilidades demandadastorna-se também uma missão essencial dasinstituições pedagógicas (Beck, 1992:76).

Neste artigo, procuramos oferecer umareflexão crítica, a partir de uma leitura de textosdas obras de Antony Giddens (como As conse-qüências da. Modernida.de) e Ulrich Beck(como Risk Soc1ety), destacando como a idéiade risco, projetada para o centro da Teoria SocialContemporânea, vem a ser uma chave para se

AGRIPA FARIA ALEXANDRE-

RESUMOEste artigo versa sobre uma análise crítica dopensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck.Sobre o primeiroespecialmente por este descrevera emergência das ilimitadas transformaçõesambientais e sociais como decorrente da enormereflexividadenas práticassociaisa que os cientistasestão induzindo. Sobre o segundo por estepressupor que já existe uma 'lógica' da sociedadede risco que subsíituiu a da sociedade de classedevidoà irresponsabilidadedos mesmos cientistas.As diferenças mais importantes de pontos de vistaentre os dois sociólogos em termos das mudançasem se analisar a sociedade tendo em vista aprodução e a distribuição dos riscos sociais eambientais são aqui apresentadas.

• Mestrando em Sociologia Política! UFSC.

Vivemos hoje numasociedade de riscoque pode ser defini-da pela incontrola-

bilidade da produção doconhecimento perito e peladesorientação ou refle-xividade que essa falta decontrole provoca nas práti-cas sociais. Teóricos da So-ciologia, como AntonyGiddens e Ulrich Beck, ana-lisam os fenômenos resul-tantes desse tipo de sociedade e procuram nãosó destacar o aumento de reflexividade nas prá-ticas sociais mas também chamam a atençãopara a necessidade de se tentar definir melhorqual o tipo afinal de sociedade que estam osconstruindo. A nova crítica à modernidade queemerge é então, por exemplo, a crítica de Beckao poder da Ciência (Guivant, 1998:15),

Na atualidade, para Ulrick Beck, cuja obraRisk Society é considerada, segundo Scott Lashe Brian Wynne (Introduction - Risk Society),um dos mais influentes trabalhos de análise socialdo final do século (foi publicada em 1986, naAlemanha, e em cinco anos alcançou o total de60,000 cópias), vivemos não mais exclusivamentepreocupados em transformar de forma utilitáriaa natureza, ou tentando livrar a humanidadedos tradicionais males e contingências, mas tam-bém temos agora de nos preocupar com os re-sultados, muitas vezes intransparentes, dodesenvolvimento técnico e econômico. A mo-dernização (ou era da especulação ou ainda eravulcânica, como Beck a descreve) tem hoje queser analisada continuamente, porque se tomou

88 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 30 N. 1/2 1999

Page 2: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

entender as transformações sociais mais recen-tes no referente a conflitos sociais, relações deleigos e peritos, papel da Ciência e formas defazer e definir a política (Guivant, 1998:02-03).Ao final, apontamos para as diferenças mais evi-dentes de pontos de vista entre os dois teóri-cos, sublinhando como eles têm contribuídodecisivamente para a difusão de questionamentossobre o quanto urna sociedade de riscos vem-se estabelecendo e condicionando comporta-mentos culturais e sociais.

UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EMANTONY GIDDENS E ULRICH BECK

Na obra de Antony Giddens, As Consequên-cias da Modernidade, deparamo-nos com con-ceitos descritivos dos fenômenos sociaiscontemporâneos tais como risco, reflexividade ealta modernidade. Na obra de Ulrich Beck, RiskSociety, esses mesmos conceitos são dados quaseque da mesma forma, mas eles despertam noleitor algo mais: vemos que há neles uma maiorpreocupação denunciadora ao status atual damodernidade. Giddens parece não criticar O quechama de sistemas peritos diante do que Beckfaz. Este os responsabiliza por quase todos osproblemas ambientais e sociais existentes.

Em Giddens, grosso modo, vemos que areflexividade é uma característica própria de todaa ação humana. A diferença fundante damodernidade é que as práticas tradicionais dei-xam de ser recorrentes. O passado não mais éhonrado e as práticas sociais passam a ser "cons-tantemente examinadas e reformadas à luz deinformação renovada sobre estas próprias práti-cas, alterando assim constitutivamente seu ca-ráter" (Giddens, 1990: 45),

Diferente de urna época pás-moderna, paraGiddens hoje existe uma radicalização damodernidade, no sentido de que as práticassociais estão sendo mais recorrentes a novasinformações, o que faz com que haja uma insta-bilidade bem maior de referências sociais. ACiência está desencantada, de tal forma queparece não haver limites para a reflexividade(Guivant, 1998:20).

A posição de Giddens com referência àpercepção de riscos é de que eles assumiramuma posição de inevitabilidade e incontro-labilidade. Viver na modernidade passa a serarriscado. O risco tem um caráter social, do qualnão temos como escapar. São riscos invisíveis eglobais.

Atualmente, a modernidade vive seu li-mite. A isso Giddens denomina de altamodernidade: um estágio de modernização le-vado ao seu mais alto grau, e no qual os riscospossuem urna dimensão incalculável; por exem-plo, os riscos de um crescimento de poder tota-litário, de um colapso dos mecanismos decrescimento econômico, de um conflito nuclearou guerra de grande escala e os riscos de umadeterioração ou desastre ecológico. Na épocade Colombo o risco era algo individual - seescolhia qual risco que se desejava correr - ;hoje ele é um fato social global. Giddens escla-rece no entanto de que a humanidade já atra-vessou inúmeros temores, mas nunca apreocupação com a segurança e o futuro foramtão centrais para cientistas e leigos, estes últi-mos tendo que, na vida cotidiana, interpretarconstantemente uma carga incessante de infor-mações de forma a poder guiarem suas vidas(qual o melhor médico, qual a melhor educa-ção, qual a melhor dieta), ou seja a Ciência nãonos oferece mais nenhuma certeza.

Ainda em Giddens, um entendimento doque vem a ser risco na alta modernidade signi-fica uma consciência de existência de um ladosombrio da modernidade, coisa que os funda-dores da sociologia, Marx, Durkheim e Weberdeixaram de certa forma de considerar. Nestetrês autores, para Giddens, as conseqüências damodernidade em termos de uma preocupaçãocom os limites do uso da racionalidade científi-ca e dos danos ambientais resultados das práti-cas industriais não foram considerados. Marxaduzia claramente a uma superação das neces-sidades impostas pela natureza tomada a partirdo aperfeiçoamento do uso da técnica, de ma-neira tal que o incremento da industrializaçãosomente deveria libertar mais o trabalhador eque nesse rumo a luta de classes estaria comseus dias contados. Durkheim precisava que a

ALEXANDRE, AGRIPA FARIA. UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO •.. P. 88 A 96 89

Page 3: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

felicidade da sociedade moderna era alcançá-vel exatamente através do industrialismo, seaperfeiçoada a solidariedade orgânica com co-operativas e associativismos. Weber desprezavaa modernidade pela sua crueza racionalizante eburocratizante, porém ele nunca imaginou queessas duas caraterísticas da modernidade se so-mariam a uma perda de controle com riscossociais e ambientais.

Salientamos textualmente a leitura deGiddens sobre os três clássicos da Sociologia:

Tanto Marx como Durkeim viam a eramoderna como uma era turbulenta. Mas am-bos acreditavam que aspossibilidades benéfi-cas abertas pela era moderna superavam suascaracterísticas negativas. Marx via a luta declasses como fonte de dissidências fundamen-tais na ordem capitalista, mas vislumbrava aomesmo tempo a emergência de um sistema so-cial mais humano. Dureeim acreditava que aexpansão ulterior do industrialismo estabele-cia uma vida social harmoniosa egratifican-te, integrada através de uma combinação dadivisão do trabalho e do individualismo mo-ral. Max Weber era o mais pessimista entre ostrês patriarcas fundadores, vendo o mundomoderno como um mundo paradoxal onde oprogresso material era obtido apenas à custade uma expansão da burocracia que esmaga-va a criatividade e a autonomia individuais.Ainda assim, nem mesmo ele antecipou plena-mente o quão extensivo viria a ser o lado maissombrio da modernidade

Para dar um exemplo, todos os três au-tores viram que o trabalho industrial modernotinha conseqüências degradantes, submeten-do muitos seres humanos à disciplina de umlabor maçante, repetitivo.Mas não se chegou aprever que o desenvolvimento das 'forçasdepro-dução" teria um potencial destrutivo de largaescala em relação ao meio ambiente material.Preocupações ecológicas nunca tiveram muitoespaço nas tradições depensamento incorpo-radas na Sociologia, e não é surpreendente queos sociólogos hoje encontrem dificuldade emdesenvolver uma avaliação sistemática delas'(Giddens, 1990:16-17).

Giddens chama a atenção ainda para seteformas de se caracterizar os riscos. Primeiramen-te, ele chama a atenção para a globalização dorisco em termos de intensidade do mesmo. Oexemplo que oferece é o de uma guerra nucle-ar, a qual pode pôr fim a nossa sobrevivência.Em segundo lugar, ele identifica essa mesmaglobalização do fenômeno risco com respeito aexpansão da quantidade de eventos contingentesque afetam todos (Giddens, 199: 126); por exem-plo, os riscos referentes às rápidas mudanças glo-bais nas relações de trabalho: com o aceleradoincremento da tecnologia, as margens delucratividade na produção tenderam a diminuirnos últimos anos, de modo que a oferta de mãode obra diminuiu também. Depois, em terceirolugar, Giddens dá atenção aos riscos do que elechama como provenientes da socialização da na-tureza, a forma dada à natureza pelo homem (amanipulação genética de alimentos, por exem-plo, com riscos incalculáveis para a saúde huma-na). Os mercados de investimento financeiro sãoriscos que podem atingir a vida de milhões, comoquarto risco na classificação. Em quinto lugar, estáa certeza, por irônica que pareça, de uma sabe-doria de existência de risco: seriam as incertezasainda não decifradas no caminho do conheci-mento (o que o desconhecido ainda mais pode-ria nos proporcionar em termos de perigo). Emsexto lugar, está a popularidade do risco, o queGiddens diz ser a consciência bem distribuída dorisco (Giddens, 1990: 127), a coisa mais curiosae ambígua do ponto de vista da análise socioló-gica, mas que ele explica com duas justificatívas:permanência constante de um certo grau de con-trovérsia sobre as informações dadas (causandotambém uma curiosa forma de sentimento de'insensibilidade' perante o aspecto 'ameaçador'das circunstâncias em que vivemos) e umbombardeamento de informações que diftcultamum alarde em resposta a qual risco anunciadoque seria pior; a resposta a um deles só seriaefetiva caso houvesse uma segurança maior so-bre a sua imediata ocorrência. Por último,Giddens fala sobre o sétimo risco referente àslimitações das práticas de perícias, risco nãorevelado pelos operadores dessas práticas, poismesmo para eles nenhum sistema perito pode

90 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 30 N. 1/2 1999

Page 4: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

ser inteiramente perito em termos dasconseqüências da adoção de princípios peri-tos (Giddens, 1990:129).

Em suma, fica claro na abordagem desteautor que podemos falar de uma real existênciado risco socialmente construído. Disso resultaque os valores da modernidade podem ser ques-tionados partindo-se dessa só base de cons-tatações. Ou seja, a antiga crítica comum àmodernidade que passava pela constatação dainexistência de formas dignas de vida para amaioria das pessoas, hoje ressurge mais agrava-da com as revelações dos perigos criados pelosavanços científicos. A produção e distribuiçãode riquezas materiais significa a produção e dis-tribuição dessas mesmas riquezas materiais comos riscos correspondentes embutidos. Carnescontaminadas por radiação provenientes de aci-dentes em usinas atõmicas, por exemplo, pare-cem-nos muito mais como decorrentes dedesastres com conseqüências em larga propor-ção (riscos globais também), mas existem igual-mente os riscos invisivelmente embutidos naprópria produção de alimentos com largas do-ses de conservantes, estabilizantes, etc., passa-dos para os consumidores leigos e tidos comoriscos 'aceitáveis'pelas autoridades técnicas. Acrítica é intrínseca à lógica das sociedades in-dustriais baseada em valores materiais, uma vezque esses valores materiais não possuem mais osignificado de alcance de bem-estar, mas sim osignificado de mal-estar (o risco individual, so-cial e ambiental). E é exatamente nessa linhade pensamento que a abordagem de Ulrich Beckvai se mostrar mais crítica.

Antes porém de passarmos para a análisedo pensamento de Beck, gostariamos de subli-nhar a posição de Giddens com respeito às trans-formações das relações pessoais na sociedade derisco (na verdade Giddens identifica, em Asconseqüências da Modernidade, estas transfor-mações como resultantes do processo de moder-nização reflexiva ou da alta modernidade, oestágio em que a modernidade alcançou naconternporaneidade ), precisamente no tocante àconstituição da confiança e da identidade pessoal.

Já dissemos que a modernidade tem sidofreqüentemente caracterizada pelo apetite pelo

novo. Na sociedade de risco, o que é caracterís-tico da modernidade é agora não mais a adoçãodo novo por si só, mas a suposição dareflexividade indiscriminada. As reivindicaçõesda Ciência à certeza, hoje desacreditadas, ex-primem-se da forma como Karl Popper define aEpistemologia da Ciência, o fato de que ela repou-sa sobre areia movediça (Giddens, 1990:45-46).A constituição da confiança e da identidadepessoal parecem-nos também repousarem nes-te mesmo chão.

As relações sociais neste tipo de socieda-de precisam, como em qualquer outra, de pa-drões de normalidade para que os indivíduospossam estabelecer relações de confiança mú-tua e é comum que essas relações fundem-seem censos de continuidade de coisas e eventos,mas a diferença da sociedade de risco está nofato de que com os referenciais abstratos cria-dos pela Ciência instalam-se dificuldades parase estabelecer elos de ligação pessoal. Os siste-mas abstratos de que Giddens nos fala referem-seàs relações sociais possíveis e sem limites cria-das pela modernidade dentro de concepções deespaço-tempo alargadas e fugidias masdeterminantes para as relações sociais em even-tos localizados. Os sistemas peritos definidospor Giddens operam da mesma forma, ou sejaos atores sociais modernos 'confiam' (sem co-nhecimento) nas informações passadas pelosperitos (ou técnicos) (Gidens, 1990:85-102.).

As dificuldades para se estabelecer elospessoais de confiança em meio a existência desistemas abstratos e sistemas peritos fazem en-tão com que os atores sociais necessitem disputara confiança pessoal por meio de demonstraçõesde cordialidades trabalhadas. Instala-se assimum jogo para se ganhar a confiança do des-conhecido, não simplesmente porque essedesconhecido é parte constitutiva da moder-nidade, sendo aquele que Giddens identificacomo as pessoas com quem interagimos a mai-or parte do tempo sem que as conheçamos. emse trata também das relações efêmeras que aca-bam sendo criadas quando ocorrem aproxima-ções (Giddens, 1990:84).

O que constitui propriamente uma trans-formação das relações de confiança numa socie-

ALEXANDRE, AGRIPA FARIA. UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÁO ... P. 88 A 96 91

Page 5: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

dade de risco se deve ao fato de que a inti-midade deixou de ser tratada como espaçoamorfo, restrito às indeterminações e às sub-jetividades do ser social em seu contexto fa-miliar, de lazer, afetivo, etc. Ela ganha entãoconteúdo científico próprio, com direito adefinições estatísticas ou probabilísticas pro-porcionadas pelos estudos concebidos paradeterminar a vida íntima. Assim, por exem-plo, as decisões sobre as melhores dietas, so-bre os benefícios deste ou daquele exercíciofísico norteiam a esfera da vida privada de talmaneira que a melhor caracterização das nos-sas práticas sociais é a de que elas passarama ser reflexivas, porque passamos a abando-nar práticas tradicionais da própriamodernidade (Giddens, 1990:125).

E exatamente porque passamos a aban-donar práticas tradicionais da própria moder-nidade, tendo que refletir indiscriminadamentesobre as conseqüências de sermos modernos,é que corremos riscos mais intensos. Por exem-plo, na modernidade o conhecimento leigo es-tava sujeito ao conhecimento perito de umespecialista em nutrição ou em desporto, mashoje, com a modernização reflexiva, não sónos acostumamos a recorrer a esses peritos,mas também a outros de outras áreas afins.Inclusive quando nos sentimos de tal formaconfusos com tamanha a carga reflexiva deinformações, costumamos nos voltar para co-nhecimentos que se contrapõem frontalmenteàs informações científicas e que passam curio-samente a ganhar legitimidade, como os livrosde auto-ajuda e de mensagens religiosas.

A identidade pessoal passa também a serbuscada através de introjecções guiadas muitasvezes para a satisfação da auto-realização e dasexualidade. ão se trata aqui de um tipo deretomo ao mundo do amor romântico ou aomundo da liberalização empreendido pelos jo-vens revolucionários da década de 60 e 70. Oprocesso de criação da auto-identidade faz-seagora como uma leitura leiga do conhecimentoperito , ou seja daqueles cidadãos comuns que'descobrem' os supostos benefícios da Ciência.As diversas terapias espirituais, a auto-ajuda psí-quica e psiquiátrica, os processos abertos de

questionamento assumidos por parceiros sexuaisou ainda os autoquestionamentos existenciaisguiados à luz de sempre novas informaçõesoperam nos atores sociais mudanças reflexivas.A intimidade e a identidade pessoal passam porconseguinte a formar um campo de 'descobri-mento' sem limites para a Ciência. O 'admirá-vel mundo novo' (Brave new toorld), de AldousHuxley, hoje está banalizado.

Passando então para uma análise da obrade Beck, de saída percebemos que a crítica aocaráter atual da modernidade é inteiramentetomada tendo como razão de ser o fato de quese estimou sobremaneira a capacidade humanade predição e controle social. A crítica de Becké dirigida ao estatuto de verdade conferido àCiência (que não deveria ser então escrita comletra maiúscula ...).

Em linhas gerais, ele apresenta uma pro-posta diferente de se conceber as modernassociedades industriais, qual seja analisá-Ias a partirda ótica da produção e distribuição do risco.

Em Reflexive Modernization, obra es-crita em conjunto com Anthony Giddens e ScottLash, Beck caracteriza sinteticamente a diferen-ça entre uma sociedade moderna e uma socie-dade de risco:

Anyone who conceivesofmodernizationas a process of autonomized innovation mustcount on even industrial society becomingobsolete. The other side of the obsolescence ofthe industrial society is the emergence of therisk society. This concept designates adevelopmental phase of modern society inwhich the social, political economic and indi-vidual risks increasingly tend to escape theinstitutions for monitoring and protection inindustrial society.

Twophases can be distinguished here :first, a stage in which the effects and selfthreatsare systematically produced but do not becomepublic íssues or the centre of'political conjlicts.Here the selft-concept of industrial society stíllpredominates, botb multiplying and'legitimating' tbe threatsproduced by decision-making as 'residual risks' (tbe 'residual risksociety').

92 REVISTA DE CIÉNCIAS SOCIAIS V. 30 N. 1/2 1999

Page 6: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

Second, a completely different situationarises when the dangers of industrial societybegin to dominate public, polttical and priuatedebates and conflicts. Here the institutions ofindustrial society become tbe producers andlegitimators of threats they cannot controloWhat bappens here is that certain features ofindustrial society become socieally andpolitically problematic. On the one band,society still makes decisions and takes actionsaccording to tbe pattern of the old industrialsociety, but, on the otber, lhe interestorganizations, thejudicial system and politicsare clouded over by debates and conflitcs thatstemfrom tbe dynamism of risk society "( Beck,GiddensandLash, 1995:05)

Dito dessa forma, ao nosso ver, nada teriana atualidade maior poder de crítica à ordemfundante da modernidade. Mas antes vejamosmais detalhadamente as principais assertivasdeste autor na obra Risk Society.

Nos dois primeiros capítulos da sua obraRisk Society, "A lógica da distribuição da rique-za e da distribuição do risco" e "A política doconhecimento na sociedade de risco", Beck jáprenuncia que sua crítica é dirigi da àracionalidade científica que passa a determinara lógica da racionalidade social.

Para os téoricos da Escola de Frankfurt, opoder disciplinador, racionalizante e burocra-tizante capaz de levar ao desencantamento dauida' alcançou os espaços culturais. Issocorrespondeu ao fim de qualquer esperança, pormenor que fosse, no poder libertador da razão.Hoje, para Beck, esse poder é mais terrível,porque ele ao invés de ser distribuído atenden-do tão-somente aos interesses de uma estruturacapitalista de produção de mercadorias, ele passaa levar consigo também mais um conteúdo dis-simulado de segurança, sobre o qual nossa cons-ciência é algo por demais impotente para imporresistência. Tomando um exemplo comparativobastante simples e banal: se temos que ser cas-tigados pelo mau gosto cinematográfico, musi-cal, teatral e novelesco que o poder econômicoimpõe de forma mecanizada as nossas formasde lazer - isso não é nada se comparado ao fato

de que somos forçosamente envenenados pelaquímica dos alimentos de consumo diário. As-sim, a lógica diária da escassez de tempo, im-posta pelo ritmo frenético de nossas atividades,obriga-nos a delegar aos conhecimentos técni-cos uma confiança que está cedida para todosque detêm o conhecimento das mais variadasformas de operar com o risco: riscos alimenta-res, riscos do sistema de segurança de usinasatômicas, riscos de medicamentos, riscos deveículos, riscos de contaminação radioativa deequipamentos de uso doméstico, etc.

Para Beck a realidade social hoje parecenão mais exprimir-se através de uma clara divi-são de classes, cujas relações e conflitos explici-tamente manifestavam-se tendo em vista adistribuição da riqueza. Um elemento novo,muitas vezes imperceptível e implacável, criadopelo avanço científico sem limites, parece seimpor como norteador das condutas sociais: orisco. Na atualidade, as necessidades imediataspara serem satisfeitas necessitam competir como conhecimento do risco. A lógica da competi-ção das mercadorias carrega consigo a lógica dacompetição de um conhecimento prévio sobreo risco. Num exemplo banal: o melhor carronão é mais o mais caro, mais econômico ouluxuoso, mas o mais seguro também.

Noutro sentido ainda: parece que a preo-cupação econômica fundamental em lidar coma escassez é substituída pela preocupação soci-al em lidar com o risco. Dentro da certeza daescassez de recursos de um trabalhador queinveste suas economias em determinado negó-cio, está incorporada uma reflexão referente aquestão de conhecer qual risco social, ambientale individual ele pode correr.

Assim, na modernidade avançada, paraBeck, o debate sociológico em tomo da relaçãoentre distribuição da riqueza e produção (e re-produção) de desigualdades de classe não temcomo prescindir do debate em tomo da distri-buição do risco. Dessa forma, a preocupaçãocom as desigualdades sociais complexifica-se:mais do que redistribuição das riquezas materi-ais, outra preocupação surge no debate socioló-gico, qual seja saber como prevenir, rninimizar,dramatizar e canalizar a distribuição do risco.

ALEXANDRE, AGRIPA FARIA. UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO... P. 88 A 96 93

Page 7: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

A forma textual merece aqui serreproduzida:

Inequalities in classand risk society cantherefore ouerlap and condition one anotber;tbe latter can produce theformer. Tbe unequaldistribution of social wealth offers almostimpregnable defensive walls and justificationsfor tbe production of risks. Here a precisedistinction must be made between tbe culturalattention to risks and tbeir actual diffusion.

Classsocíetiesare societieswhere, acrossali tbe gaps between classes, the main concernis tbe visible satisfaction of material needs.Here, hunger and surplus or power andweakness confront each other.Misery needs noself-confirmation. It exists. Its directness andoisibiliiy correspond to the material evidence cfwealth and power. Tbe certainties of classsocieties are in this sense the certainties of aculture of visibility:emaciated hunger contrastsuiitb plump satiety, palaces uiitb bouels,splendor with rags.

Tbeseevident qualities of the tangible nolonger hold in risk societies. What escapesperceptibility no longer coincides uiitb theunreal, but can ínstead even possess a bigberdegree of hazardous reality. Immediate needcompetes untb tbe known element of risk. Tbeworld of oisible scarcity or surplus grows dimunder thepredominance of riks.

Tbe race betweenperceptible wealth andimperceptible riskscannot bewon by the latter.Tbe visible cannot compete with the invisible.Paradox decrees that for that very reason tbeinoisible riskswin the race (Beck, 1992:44-45),

Podemos dizer mesmo que existe umaarquitetura social e uma dinâmica política dasociedade de risco. A força dos fatos vem tor-nando imperativo de se considerar o risco comocategoria de discussão de agendas de políticaspúblicas.

A radioatividade, por exemplo, pode atin-gir a todos, mas em outros riscos é a posiçãosocial que conta. A produção de risco mais emais configura um cenário internacional de desi-gualdades. _ ão é por acaso que grandes labora-

tórios de indústria química procuram os paísespobres para instalarem suas fábricas. Seguindoessa mesma lógica, é comum governos e cientis-tas definirem absurdamente o que vem a ser'taxas de poluição aceitáveis' ou o 'risco médio'.Isso demonstra uma ausência efetiva de controlesobre a responsabilidade científica e a depen-dência de todos com relação a um conhecimentosobre o que pode ser ou não considerado risco.Na falta de certeza e responsabilidade científi-cas, vale a força dos argumentos: como o riscopode ser eliminado, negado, reinterpretado. Orisco é invariavelmente mate matizado ouproporcionalizado de forma que o indivíduo pos-sa ter alguma segurança. Quanto mais se de-senvolve a sociedade de risco, mais cresce onúmero de pessoas que são afetadas por ele. Eé porque justamente a lógica da produção deriqueza supera a necessidade de se afastar orisco que uma sociedade de risco funda-se commaior reconhecimento e importância.

Na sociedade de risco, Beck tambémnota, a importância social e econômica do sa-ber sobre risco e perigo é estruturada atravésdos veículos de comunicação. Nesse sentido,a sociedade de risco iguala-se à sociedade dosaber, da mídia e da informação. Prova maior éque governo e comunidade científica fixam ní-veis aceitáveis de risco e todos baseiam suasvidas a partir daí. Contudo, o controleinstitucional sobre o risco também foge aos li-mites do estado-nação.

Parece ficar claro assim, segundo Beck,que a insistência na idéia de existência de umasociedade de risco é para mostrar que a impor-tância atribuída ao desenvolvimento (produçãode riqueza) com base na Ciência vem nos levan-do à reflexividade cada vez maior. Estareflexividade ultrapassa em sentido àquela ex-pressa na crítica dos movimentos de contraculturaou mesmo nas expressões literárias, musicais ete.

Além disso, quanto mais reflexiva é a soci-edade mais ambígua ela se toma também, é oque parece que Beck tenta mostrar. Nossos co-nhecimentos sobre o risco que corremos podemser ampliados; até acreditamos saber bem comominirnizá-los, mas os dados de que dispomossão inúteis a maioria das vezes, de modo que

94 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 30 N. 1/2 1999

Page 8: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

sempre corremos algum risco. No caso do usode remédios ou alimentos, de que adianta ter-mos acesso aos elementos químicos que estãolistados nas bulas e embalagens? Em havendouma alta reflexividade social, como de fato há,isso não necessariamente é indicativo de queexistem mudanças de comportamento social, poisestamos presos às amarras dos laboratórios e àfalta de interesse das autoridades públicas quetêm o poder de polícia para empreender mu-danças significativas na produção e distribuiçãodos riscos. Mesmos as pessoas que sabem quecorrem determinados riscos e podem afastá-los,não estão dispostas a mudar, curiosamente. Amelhor hipótese que Beck levanta para explicaressas questões é de que com a crise do conheci-mento perito (com tamanha produção de conhe-cimentos contraditórios) advém naturalmente umadesorientação reflexiva no conhecimento leigo.

Diante de tudo isso que foi dito, pode-mos concluir que a inedicidade da reflexividadeque Beck tenta mostrar se deve à força dosimpasses criados pela racionalidade científicaque a racionalidade social não consegue explicar.

Textualmente, Beck chega a ser irônico:

Something similar applies to Karu's oietuthat 'tbings in themselves ' are by naturebeyond our knowledge C Beck, 1992:73).

Devido a manipulação científica de ali-mentos, remédios, o perigo da radioatividade,poluíção crescentemente incontrolável do ar,água e os efeitos sobre plantas e animais, hojea natureza não é mais simplesmente um ele-mento dado para a satisfação de nossas neces-sidades e construção de conforto. A natureza éum tema político que nos força a discutir sobreos fundamentos do nosso conhecimento e denossas posições morais. Curioso é que mesmoBeck, diante de tantas incertezas criadas pelorisco da produção científica, pondere ao finalque não está claro se é o risco que se intensifi-cou, ou nossa percepção sobre ele (Beck, 1992:55). Sabemos somente que a história da evolu-ção do conhecimento e reconhecimento dos ris-cos coincide com a história da desmístificaçãodas Ciências (Beck, 1992:59).

Mas Beck é apocalíptico. A Ciência está emcrise e precisa ser reformulada. A sociedade paraele é um grande laboratório, porque assinamosum cheque em branco para a Ciência. Sua idéiade reflexividade não é individual, mas social, exa-tamente pela razão de que os processos dereflexividade (recorrência incessante às informaçõesvinculadas) são de tal ordem necessários devido aidéia de risco estar tão presente nas nossas socie-dades industriais. Mas Beck imagina que a Ciênciaainda possa ser urna Ciência negociada, discutida:uma nova Ciência. Ele é catastrofista em relaçãoaos dados existentes, porém é otimista em relaçãoas alternativas possíveis de serem imaginadas.

CONCLUSÃO

Concluímos que a obra de Giddens con-sultada aqui, na parte que se refere aos riscos,mostrou que esses riscos (sociais e não individu-ais) são parte do defeito do projeto da modernidadede que o autor fala. Eles não derivam de defeitosou falhas operatórias propriamente ditas (erros hu-manos de operadores de usinas nucleares ou fa-lhas nos cálculos matemáticos de previsões deriscos, por exemplo), mas das conseqüênciasinvoluntárias e da rejlexividade ou circularidadedo conhecimento social (Giddens, 1990: 152) Emoutras palavras, Giddens enfatiza que o risco soci-al de hoje está incorporado na própria maneira deser da modernidade, devido à forma complexaque esta atingiu. Assim, a modernidade está sem-pre sendo reinventada e procurando autocorrigir-se. A modernidade é exatamente isso: um projetosendo sempre reexarninado.

A modernidade de Giddens é reflexiva; ade Beck deve ser reflexiva. Ao passo que a so-ciedade contemporânea de Giddens é reflexivaem decorrência da produção de sempre novasinformações ou em decorrência da necessidadedessas informações produzidas de virem emsocorro as conseqüências sociais imprevisíveisque são produzidas, a sociedade contemporâ-nea de Beck deve questionar o cheque em brancoque ela deu à Ciência para produzir exatamenteos meios para se chegar à produção dessas con-seqüências imprevisíveis.

ALEXANDRE, AGRIPA FARIA. UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO... P. 88 A 96 95

Page 9: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE RISCO SOCIAL EM ANTONV GIDDENS ...repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10080/1/1999_art_afalexandre.pdf · pensamento de Anthony Giddens e Ulrich Beck

BH/UfC

A diferença entre estes dois autores centra-se no fato de que Beck culpabiliza a Ciência (osgrandes laboratórios químicos, por exemplo) comoresponsável pela imensa produção de riscos soci-ais e ambientais. Giddens apenas consegue apre-ender o significado social de uma sociedade deprodução de riscos, mas não aponta para solu-ções. A sociedade para Beck deve parar. O poderconferido à eficiência da Ciência em produzir aquilode que precisamos (será que precisamos?) paranossas vidas deve ser revisto radicalmente.

Por fim, Beck propõe então que devem sercriados novos parâmetros para se medir as res-ponsabilidades sociais de produção de risco, mu-dando-se a responsablidade da prova de formaque os agentes industriais e os peritos devessempassar a estar obrigados a se justificar em público.

NOTAS

1 Em termos de influência herdada, não seria erra-do afirmar-se que Horkheimer e Adorno recebe-ram 'as dicas' da crítica de Max Weber àmodernidade. É ilustrativa a forma que Adornoescreve, quase antecipando um Ulrick Beck: "Con-siderando-se que o iluminismo tem como finali-dade libertar os homens do medo, tomando-ossenhores e liberando o mundo da magia e domito, e admitindo-se que essa finalidade pode seratingida por meio da ciência e da tecnologia, tudolevaria a crer que o iluminismo instauraria o po-der do homem sobre a ciência e sobre a técnica.Mas ao invés disso, liberto do medo mágico, ohomem tornou-se vítima de novo engodo: o pro-gresso da dominação técnica". A diferença do pen-samento de Adorno é que este apenas concentroumais suas críticas às transformações culturais. OsPensadores, Nova Fronteira, 1991. Página IX.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max.Textos escolhidos. Vida e obra. Coleção OsPensadores. Editora Abril, 1991.

BECK, Ulrich. Tbe risk society. Towards a newmodernity. Londres: Sage, 1992. Prefácio ecapítulos 1 e 2.

BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott.Reflexive Modernization. Politics, Traditionand Aesthetics in the Modern Social Order.London : Polity Press, 1995.

FERRElRA, Leila & VIOLA, Eduardo (Orgs.).Incertezas de Sustentabilidade na Globa-lização. Campinas: UNICAMP, 1996.

GIDDENS, Antony. As conseqüências damodernidade. São Paulo: Editora da UNESP,1990.

____ Para além da Esquerda e da Direita.São Paulo: Unesp, 1994.

GUIVANT, Julia S. A trajetória das análises derisco: da periferia ao centro da Teoria Social.Caderno de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, UFSC. n.14, julho de 1998.

LEIS, Héctor R. O Labirinto: ensaios sobreambientalismo e globalização. São Paulo -Blumenau : Gaia & Editora da FURB, 1996.

MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução. Hegel eo advento da Teoria Social. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1978.

MARX, Karl. Os Pensadores. São Paulo: NovaCultural, 1991.

SZERSZYNSKI, Bronislaw, LASH, Scott eWYNNE, Brian. Risk, environment andmodernity. Introduction: Ecology, realism andthe social sciences. Londres: Sage, 1996.

VIEIRA, Listz. Cidadania e Globalização. Rio deJaneiro - São Paulo: Record, 1997.

96 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 30 N. 1/2 1999