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dissertação saneamento baixada
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UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
IPPUR - INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL
SANEAMENTO E CIDADANIA:
Trajetórias e efeitos das políticas públicas de saneamento na Baixada Fluminense
Hélio Ricardo Leite Porto
Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e
Regional do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Titular
Luiz César de Queiroz Ribeiro
Rio de Janeiro, julho de 2001
UFRJ/IPPUR
Hélio Ricardo Leite Porto
SANEAMENTO E CIDADANIA:
Trajetórias e efeitos das políticas públicas de saneamento na Baixada Fluminense
Dissertação de mestrado submetida ao corpo docente do IPPUR – Instituto de Pesquisa
e Planejamento Urbano e Regional / UFRJ como parte dos requisitos necessários à
obtenção do grau de mestre em ciências.
Orientador: Professor Titular Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro
Rio de Janeiro
Julho de 2001
2
S222 PORTO, Hélio Ricardo Leite. Saneamento e Cidadania: trajetórias e efeitos das políticas
públicas de saneamento na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 2001, Tese (mestrado) – UFRJ/IPPUR, 2001 Bibliografia: Palavras Chaves: 1. Políticas Públicas. 2. Política de
Saneamento 3. Participação Social. 4. Cidadania 4. Tese (Mestrado – UFRJ/IPPUR) I. Título CDD 122.11
3
SANEAMENTO E CIDADANIA:
Trajetórias e efeitos das políticas públicas de saneamento na Baixada Fluminense
Hélio Ricardo Leite Porto
Dissertação submetida ao Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional do IPPUR/UFRJ
Aprovada por: ______________________________________________ Prof.º Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro (IPPUR/UFRJ) Orientador ______________________________________________ Profª Drª Ana Lucia Britto (FAU/UFRJ) ______________________________________________ Profº Dr. Sérgio de Azevedo (PUC/MG)
Rio de Janeiro Julho de 2001
4
Aos meus pais Lúcia Itamar e Hélio Porto
A minha companheira Cátia Cristina um grande amor.
Aos meus filhotes João Gabriel e Luiza Cristina.
Aos meus amigos Orlando Júnior e Jorge Florêncio.
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AGRADECIMENTOS
A produção dessa dissertação representou para mim uma volta ao passado, seja no
sentido da militância política muito forte na década de 80, seja do ponto de vista do encontro
de antigas lideranças políticas que contribuíram na produção de informações aqui reunidas.
Essa leitura histórica contextualizada foi importante, não apenas para melhor compreensão do
passado, mas, sobretudo, pelo fato de poder contribuir para o debate em torno de um tema tão
vital para as cidades brasileiras, que é o saneamento.
Nessa sentido, gostaria de inicialmente agradecer ao companheiro e amigo Orlando
Júnior que com muita dedicação contribuiu para a articulação das idéias e na construção de
alguns caminhos para este trabalho.
Ao meu orientador que a cada encontro proporcionava-me um verdadeiro aprendizado,
na medida que tem, como poucos, uma capacidade de formular questões que abrem
demasiadamente o horizonte da pesquisa. A minha co-orientadora Ana Lúcia Britto, uma
companheira de reflexão acerca dos (des)caminhos do saneamento, com quem experimentei
uma relação acadêmica de terá longa duração.
As minhas companheiras e companheiros de FASE, Tatiana Pereira, Mônica e Geane,
Delmar, Mauro e Cláudio, que souberam em grande estilo, segurar as demandas do Programa.
As lideranças das federações, Bartíria (MAB), Jandira (FEMAB), Joílson (MUB),
Alfredo e Cota (ABM), ao companheiro Steelberto, à companheira Dilcéia, aos companheiros
e companheiras da Rede da Cidadania, onde destacaria a companheira Angélica.
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RESUMO
O presente trabalho se constitui numa análise do padrão de políticas públicas de
saneamento que ao longo dos últimos trinta anos prevaleceu na Baixada Fluminense, em que
percebemos o surgimento e o crescimento da mobilização popular pelo saneamento,
articulada pelo Comitê Político de Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da Baixada
Fluminense. Nesta análise, destacamos as características que marcaram a relação entre Estado
e sociedade na concepção, na provisão e na gestão desse serviço.
A reflexão sobre o padrão da política pública de saneamento tem por base dois
modelos distintos: patrimonialista/clientelista e o democrático, que serão discutidos na
perspectiva de encontrar algumas explicações para a baixa eficiência e eficácia dos recursos
públicos na região.
Encerramos esse estudo produzindo uma discussão em torno do futuro das políticas
públicas de saneamento para a Baixada Fluminense e os novos desafios do movimento
popular para retomar a luta política pelo direito ao saneamento, articulada a conquista da
cidadania plena.
7
ABSTRACT
This paper analyses the pattern of sanitation public policies, that during the last thirty
years was hegemonic in Baixada Fluminense and through which we acknowledge the
increasing mobilization of grassroots/popular organizations for sanitation, organized by the
Comitê Político de Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da Baixada Fluminense. This
analysis aims at discussing the relationship between State and civil society featured by
differences in concepts, provision and management of this public service.
The debate regarding the pattem of sanitation public policy has two different concepts:
the first one, known as “patrimonialista” / “clientelista” and the second, democratic. Both will
be discussed in the perspective of finding explanations for the efficiency and efficacy for the
use of public resources at Baixada Fluminense.
Finally, we present an agenda for discussion about the future of sanitation public
policies for Baixada Fluminense e the new challenges for the grassroots movements to take
place at the political struggle for rights and citizenship.
8
SUMÁRIO Resumo..................................................................................................................... 07 Abstract..................................................................................................................... 08 Introdução................................................................................................................. 10 Capítulo 1 1.Baixada Fluminense: a formação histórica e a emergência do saneamento ambiental como uma questão social ............................................... 17 1.1. Antecedentes históricos: 1930-1960 e a retomada da política pública de saneamento pelo Estado Brasileiro .................................................................... 18 1.2. O Modelo Planasa: centralização e técnica reproduzindo desigualdades na periferia do Rio de Janeiro .......................................................... 20 1.3. O modelo PLANASA e a Baixada Fluminense ................................................ 24 1.4. A Baixada Fluminense em preto e branco: o retrato atual da região ............... 27 1.5. Saneamento da Baixada: uma questão de justiça ambiental ............................. 37 1.6. Baixada Fluminense: um território, novos atores ............................................. 43 Capítulo 2 2. A emergência de um ator público: a experiência do Comitê Político de Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da Baixada Fluminense ........................ 47 2.1. O contexto dos Novos Movimentos Sociais ..................................................... 47 2.2. A emergência dos MPU´s na Baixada Fluminense: a construção do em torno do saneamento básico ............................................................................... 51 2.3. A formação do Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense: um novo ator entra em cena ...................................................................................... 57 2.4. O saneamento Ambiental da Baixada Fluminense na agenda Política do Estado do Rio de Janeiro: uma história de conflitos, negociações e Conquistas................................................................................................................. 64 Capítulo 3 3. O Saneamento Ambiental da Baixada Fluminense na Agenda Política do Estado do Rio de Janeiro .................................................... 80 3.1. Política clientelista e política democrática ........................................................ 81 3.2. As políticas públicas entre os anos de 1975/1984 ............................................. 85 3.3. Projeto Especial de Saneamento Básico da Baixada Fluminense (1984/1987) ............................................................................................................... 88 3.4. Plano de Setorialização do Abastecimento de Água na Baixada Fluminense ................................................................................................ 103 3.5. Projeto Reconstrução Rio 1988-1996 ............................................................... 105 3.6. Programa de Despoluição da Baía de Guanabara – PDBG .............................. 116 3.7. Programa Nova Baixada: a focalização como novo padrão das políticas públicas nos anos 90? .............................................................................. 126 Considerações finais....................................................................................................... 146 Bibliografia e Fontes ....................................................................................................... 157
9
INTRODUÇÃO
Ao longo das três últimas décadas, a Baixada Fluminense, espaço da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro onde se encontra uma das maiores concentrações de pobreza
e baixos índices de qualidade de vida, foi palco de vários investimentos públicos em
saneamento os quais invariavelmente anunciavam mudanças substanciais na qualidade de
vida de população. Ao todo foram seis grandes projetos, que juntos realizaram na Baixada
Fluminense investimentos públicos de aproximadamente um bilhão de dólares.
Esse período foi marcado por grandes transformações sociais e políticas na sociedade
brasileira, em que assistimos ao processo de redemocratização do regime e,
conseqüentemente, à retomada das liberdades políticas e de organização partidária. Nesse
cenário, um dos aspectos mais relevantes apontados pela literatura diz respeito à entrada de
novos atores sociais na cena pública, com destaque para os chamados movimentos populares
urbanos.
No contexto de desigualdades sociais da Baixada Fluminense, uma política pública
ganhou especial relevância, a política de saneamento. Em torno dela, e compartilhando do
mesmo legado histórico dos movimentos populares urbanos, surgiu o Comitê Político de
Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da Baixada Fluminense, ator político que teve um
papel de grande valor na história e nos rumos das políticas de saneamento para a região.
Mesmo após o longo período em que se realizaram vários programas e investimentos
públicos na área do saneamento na Baixada Fluminense, nos deparamos com um cenário
ainda longe de expressar maior justiça social e ampliação dos direitos de cidadania. Na região
ainda vigoram fortes desigualdades sociais e ambientais, que se traduzem no baixo acesso a
bens e serviços urbanos. Enfim, em meio à perplexidade de um observador, podemos
perguntar por que as políticas implementadas e os investimentos realizados não foram capazes
de reverter o quadro social e econômico que marca esse espaço social.
Assim, cabe refletir sobre o padrão de política pública que regula, o acesso a bens e
serviços na Baixada Fluminense, marcadamente patrimonialista e clientelista. O presente
10
trabalho buscou analisar o padrão de políticas públicas de saneamento que prevaleceu nos
últimos 30 anos na Baixada Fluminense, em que constatamos o surgimento de uma forte
mobilização popular pelo saneamento, organizada em torno do Comitê Político de
Saneamento da Baixada Fluminense, destacando as características que marcaram a relação
entre Estado e sociedade na concepção, na provisão e na gestão desse serviço.
No ambiente em que esta relação se estabelece, temos especial interesse na reflexão
sobre a questão da cidadania, pois, a nosso ver, ela nos permite transcender a análise dos
limites técnicos e territoriais, caracterizados pelos baixos índices de eficiência e eficácia
verificados nas políticas de saneamento na Baixada Fluminense.
Analisar os últimos 30 anos da política de saneamento da Baixada Fluminense é de
grande importância para compreender a relação entre saneamento e cidadania. Essa afirmação
refere-se não apenas à vigência dos padrões anteriormente descritos, mas principalmente
também pela emergência e projeção de movimentos contraditórios, nos quais outras forças
sociais protagonizaram uma disputa pela construção de um padrão democrático e integrador
de política pública de saneamento – o qual objetivava através da ampliação das esferas
públicas e da participação social, alterar o padrão dominante que marca a região.
A estratégia de pasteurização da política pública através da anulação do diálogo e
desqualificação do conflito, é uma característica dos gestores de política pública de
saneamento na Baixada Fluminense. O fortalecimento de sujeitos históricos determinados e
portadores de direitos de cidadania, não é a tônica com que opera essa política. O indivíduo é
tido como um objeto da intervenção do poder público. Assim, em geral, as políticas
implementadas estiveram mais voltadas para o atendimento de necessidades vinculadas a
clientelas específicas do que para a promoção da cidadania e a ampliação dos direitos sociais
e políticos.
Nessa direção, nossa análise procurará demonstrar que as políticas públicas de
saneamento para a Baixada Fluminense em geral não criaram as condições institucionais
favoráveis à emergência da cidadania, na medida em que, ao longo desse processo, não
favoreceram mudanças substanciais na relação Estado/sociedade. Entre essas condições,
destacamos: (i) a democratização do poder; (ii) o estabelecimento de uma dinâmica
institucional baseada em regras claras e critérios objetivos, impessoais e universais, tanto para
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o acesso a recursos públicos estaduais e (iii) a criação de mecanismos de controle sociais das
políticas de saneamento.
Com esse objetivo, estruturamos nosso estudo na forma que se segue. Tendo em vista
nosso interesse estar centrado na questão do saneamento, já no primeiro capítulo buscamos
identificar a emergência do saneamento como uma questão social na Baixada Fluminense.
Nesse exercício, iniciamos com um movimento de caráter mais histórico, no qual
identificamos, de forma sintética, as fases por que passaram as políticas de saneamento no
Brasil, desde o início do século XX. Nesse movimento, temos interesse particular na reflexão
sobre o Plano Nacional de Saneamento – Planasa, uma vez que é a primeira política pública
de caráter nacional nessa temática. Devemos lembrar que o Planasa se constitui num marco
histórico da intervenção pública de saneamento no Brasil, anunciando metas que visavam
reverter o baixo índice de acesso aos serviços no país. Ao mesmo tempo, tentamos identificar
os impactos dessa política na Baixada Fluminense, o que, como veremos, nos possibilita
afirmar que o projeto desenvolvimentista que orientava as políticas urbanas e, dentro destas, o
próprio Planasa foi gerador de desigualdades estruturais entre os núcleos urbanos e as
periferias.
Conseqüentemente, na Baixada Fluminense, o Planasa esteve longe de atingir suas
metas de redução do déficit no acesso aos serviços de saneamento básico. As iniciativas
estiveram restritas ao abastecimento de água, o que não diferencia essa região do cenário
nacional, onde se alcançaram os mesmos resultados. Porém, na Baixada Fluminense, a
perversidade desse modelo encontra um agravante, na medida em que suas intervenções
foram desenvolvidas sob a égide das relações de poder ali vigentes, marcadas pelo
clientelismo e pela violência. Nesse sentido, nossa avaliação é que esse modelo centralizador
não apenas ficou distante das metas anunciadas, como também contribuiu para a ampliação
das desigualdades sociais na Baixada Fluminense, o que pode ser evidenciado no retrato
social que produzimos sobre a região.
Nas décadas de 80 e 90, assistimos ao início do processo de desconcentração dos
investimentos públicos em direção à Baixada Fluminense – concentrados até a década de 70,
no núcleo da metrópole fluminense –justificado pelos baixos índices de acesso aos serviços de
água e esgoto na região. Esse processo não pode ser compreendido se não levarmos em conta
a emergência de atores populares que colocaram na cena pública a reivindicação do
12
saneamento como um direito social. A Baixada se tornara um emblema das desigualdades
sociais na metrópole e o saneamento começa, nesse momento, a ganhar mais espaço na
agenda do poder público.
Constatamos, no entanto, que, mesmo após contínuo investimento do poder público, as
políticas de saneamento não conseguiram responder satisfatoriamente aos problemas sociais
decorrentes da ocupação desordenada dessa periferia chamada Baixada Fluminense. Essa
região continua sendo aquela onde os pobres são os que estão mais expostos aos riscos
ambientais, como enchentes, lixo tóxico, esgoto a céu aberto e desmoronamentos. É por essa
razão que achamos pertinente a introdução da noção de justiça ambiental para a análise
conceitual da política de saneamento implementada na região. Desse modo, podemos afirmar
que o cenário de injustiça socioambiental e a ausência de direitos de cidadania dominam a sua
paisagem. As desigualdades sociais que caracterizam a Baixada Fluminense se manifestam
como desigualdades ambientais, que são expressas no baixo acesso aos recursos
socioambientais coletivos necessários a uma vida digna, com água, esgotamento, coleta de
lixo, ar puro, mas também moradia, educação, saúde, emprego e renda.
Assim, para entender a importância atribuída à questão do saneamento pelos diferentes
atores sociais, bem como discutir os próprios projetos de política pública implementados
pelos diversos governos estaduais, achamos pertinente introduzir duas questões no nosso
debate. A primeira se refere às diferentes abordagens sobre o conceito de saneamento, já que
percebemos que o saneamento ora foi concedido de forma restrita, associada à noção de
saneamento básico, ora assumiu uma dimensão mais ampla, ligada à noção de saneamento
ambiental. A segunda diz respeito ao enfoque da justiça ambiental, por entendemos que este
permite identificar os limites e as possibilidades das políticas públicas implementadas na
Baixada Fluminense. Como dissemos, tal enfoque torna possível afirmar que uma das
expressões da desigualdade social que marca a Baixada fluminense desde a sua constituição é
a desigualdade ambiental.
Assim, nesse contexto de desigualdades socioambientais, entendemos que dois fatores
vão delimitar significativamente a história das políticas públicas na Baixada Fluminense no
decorrer das três últimas décadas. Primeiro, a Baixada Fluminense, até mesmo pela gravidade
dos seus indicadores sociais no contexto metropolitano, progressivamente passa a ser um
emblema nas disputas eleitorais dos diversos grupos políticos, com a finalidade de expressar o
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compromisso dos diversos governos com o social. Com efeito, constatamos que ao longo das
últimas três décadas várias foram as intervenções públicas na região, o que revela uma
desconcentração dos recursos em sua direção. Diante da grandeza dos investimentos, é
inegável a importância que as políticas de saneamento assumiram nas disputas políticas e
simbólicas travadas na região. Segundo, os grandes investimentos públicos na área de
saneamento que serão realizados na Baixada Fluminense vão ser acompanhados, e de certa
forma pode-se dizer que são condicionados, pela emergência de um ator político organizado
em torno dessa temática, o Comitê Político de Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da
Baixada Fluminense. Tendo sua origem nas federações de associações de moradores da
região, o Comitê vai se constituir em uma das mais principais organizações populares do
Estado do Rio de Janeiro.
Buscamos, então, fazer uma análise histórica e contextualizada do Comitê Político de
Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da Baixada Fluminense como um ator político que
produziu a respeito do tema saneamento um discurso de direitos sociais, capaz de vencer os
obstáculos de um tema técnico e desencadear mobilizações populares, constituindo-se num
interlocutor político privilegiado do Estado e intervindo de forma decisiva nas mais diversas
políticas públicas de saneamento que se desenvolveram na Baixada Fluminense nos últimos
20 anos. Como veremos no segundo capítulo, o Comitê construiu um discurso sobre
saneamento como um discurso de direito sociais, possibilitando a articulação regional e a
superação de uma visão fragmentada acerca dessa temática. A emergência desse sujeito
ampliou os atores que tradicionalmente negociavam as políticas para a região dentro de um
modelo clientelista; permitiu a constituição de canais de interlocução com o poder público
capazes de legitimar socialmente as demandas populares; gerou uma disputa na cena pública
pela formulação de uma nova agenda política de intervenções públicas e garantiu a
participação popular no processo de implementação das políticas de saneamento que se
desenvolveram na Baixada Fluminense entre 1984 e 2000.
Nosso argumento central é que houve uma conjunção de fatores para que esse novo
ator e o discurso sobre direitos sociais e de cidadania surgissem. Em primeiro lugar, devemos
assinalar que a ascensão de um novo grupo ao poder, com a eleição de Leonel Brizola para o
governo do Estado, possibilitou a formação de uma esfera pública, na qual o movimento
popular pôde legitimar socialmente as suas reivindicações e demandas. A progressiva
consolidação dessa esfera pública vai construir a identidade política do Comitê como um
14
movimento autônomo, e também vai reafirmar o papel decisivo que esse ator terá na definição
do padrão de políticas públicas de saneamento implementado na Baixada Fluminense pelo
poder público estadual até a primeira metade dos anos 90.
Enfim, no terceiro capítulo, tomamos como centro do nosso estudo as políticas
públicas de saneamento implementadas na Baixada Fluminense. Estaríamos diante de um
novo padrão de política pública de saneamento? Nosso objetivo é examinar a recente
intervenção governamental na provisão dos serviços de saneamento na região. Trata-se da
análise de um conjunto de ações desenvolvidas pelo governo estadual ao longo das três
últimas décadas, que nos permite identificar, primeiramente, se há uma reorientação de
recursos públicos em direção à Baixada Fluminense e, em seguida, a existência ou não de um
novo modelo de gestão da política de saneamento, mais democrático, socialmente mais justo e
promotor da cidadania. Nossa análise no decorrer deste capítulo vai tentar discutir as
características, os impasses e os limites da política de saneamento que foi implementada na
região, tendo como referência dois grandes padrões de política pública, que identificamos
como clientelista e democrático.
Esse debate se constitui num importante instrumento para a avaliação das políticas
públicas de saneamento que foram implementadas, na medida em que possibilita lançar luz
sobre algumas dimensões que julgamos fundamentais na discussão dos limites e desafios de
tais políticas, entre as quais destacamos a caracterização das desigualdades no acesso ao
saneamento como expressão das desigualdades sociais e ambientais; a articulação da política
de saneamento com as políticas socioambientais e o estabelecimento da relação entre direitos
civis e direitos ambientais. Deste modo, nossa análise dos projetos será desenvolvida com
base nos seguintes aspectos: (i) os objetivos expressos nos documentos oficiais dos órgãos
públicos responsáveis pela sua elaboração, coordenação e gestão; (ii) a concepção de
saneamento que orientava o planejamento da intervenção do Estado, de forma restrita –
saneamento básico, focado no esgotamento sanitário e no abastecimento d’água – ou
integrada – saneamento ambiental, articulando a intervenção às dimensões ambiental, urbana
e de saúde; (iii) sua efetividade no que se refere aos resultados alcançados com as
intervenções, tendo em vista seus próprios objetivos; e (iv) a participação social, por
intermédio dos canais de diálogo e interação com os atores sociais, em especial com o Comitê
Político de Saneamento da Baixada Fluminense. De forma especial, interessa-nos identificar
se a gestão desses projetos se manteve atrelada ao modelo clientelista que caracteriza a
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política da região, ou se, ao contrário, caminhou na direção de um novo padrão de gestão mais
democrático.
Como veremos, os anos 90 vão assinalar uma mudança profunda nas políticas de
saneamento da Baixada Fluminense, onde a participação social esteve inserida num contexto
sociopolítico de crise e reconfiguração do Comitê Político de Saneamento. Na verdade, essa
crise faz parte de um processo mais amplo dos próprios movimentos populares urbanos.
Assim, a identidade do Comitê como ator social foi duramente afetada e, com isso, assistimos
a um processo de redução substancial da participação popular no âmbito das políticas públicas
de saneamento desse período. A esfera pública, que vigorou por mais de uma década, é
esvaziada politicamente sendo substituída por encontros pontuais e pelo tratamento
fragmentado da política de saneamento. Esse período marca também uma guinada
conservadora no governo do Estado, alterando diretamente o padrão de política pública
vigente na região, não somente com o enfraquecimento da esfera pública, mas com um
retorno ao padrão de política de tipo clientelista.
Nesse novo cenário, cabe refletir sobre os dilemas da política de saneamento na
Baixada Fluminense. Tendo em vista a análise realizada em nosso estudo, buscamos na
conclusão discutir dois aspectos que julgamos fundamentais: (i) quais as condições para a
emergência de um novo ator social, capaz de mobilizar a sociedade, ocupar a cena pública e
se constituir em interlocutor do poder público? e (ii) quais os desafios para uma política de
saneamento ambiental que supere a histórica desigualdade social que marca a região e que
promova a cidadania social e política?
Nessa direção, buscamos discutir as condições que, a nosso ver, possibilitariam
avançar rumo a políticas públicas de saneamento voltadas para a cidadania. Ao propor esse
debate, esperamos contribuir para a construção de uma agenda de política de saneamento de
caráter redistributivo e democrático, objetivando o enfrentamento das fortes desigualdades
que caracterizam a Baixada Fluminense e a promoção da justiça ambiental.
16
Capítulo 1 – Baixada Fluminense: a formação histórica e a emergência do saneamento como uma questão social
O nosso objetivo principal neste capítulo é identificar o momento de emergência do
saneamento como uma questão social na Baixada Fluminense, por meio de um recorte
histórico que nos remete ao início do século XX, período no qual as intervenções na área de
saneamento voltam a se encontrar sob a responsabilidade do Estado brasileiro, destacando
neste processo os modelos de políticas públicas desenvolvidos. Nessa direção, vamos fazer
inicialmente uma breve recuperação histórica a cerca de cinco fases por que passaram as
políticas públicas de saneamento no Brasil, entre o período colonial e o Plano Nacional de
Saneamento - Planasa. O segundo momento se constitui numa abordagem sobre o Planasa,
descrevendo o conteúdo da política e seus efeitos mais imediatos na periferia da Cidade do
Rio de Janeiro. Não obstante, dois aspectos são importantes na reflexão sobre o modelo da
política levada a cabo pelo Planasa: a conjuntura política de centralização promovida pelos
governos militares e a própria evolução técnico-científica da abordagem sobre o saneamento,
que passa a abranger outras dimensões mais amplas e não apenas os serviços de
abastecimento de água e de coleta do esgoto. O terceiro momento se constitui na produção de
um retrato sobre a Baixada Fluminense nas décadas de 80 e 90, período em que o Estado
retoma os investimentos públicos nesta região, impulsionado pelos baixos índices de acesso
aos serviços de água e esgoto, assim como pela emergência de atores populares que colocam
em cena a necessidade de maior investimento para a região.
Por fim, faremos uma problematização a respeito do conceito de saneamento, tomando
como referência o debate da justiça ambiental na perspectiva de discutir o conflito existente entre
as diferentes abordagens produzidas no âmbito das políticas públicas, e que tem maior destaque
para aquelas em torno do saneamento básico e do saneamento ambiental. A nosso ver, a
concepção de justiça ambiental, baseada no debate sobre sustentabilidade e nas desigualdades
sociais do modelo de desenvolvimento vigente, permite identificar os limites e as possibilidades
de cada uma dessas abordagens, que se traduziram em políticas públicas no período histórico
recente na Baixada Fluminense. Um outro aspecto importante para essa reflexão diz respeito à
emergência da Baixada Fluminense como uma questão metropolitana. Neste sentido, queremos
ressaltar que a questão do saneamento emerge em meio a um processo de reconstrução simbólica
da Baixada Fluminense, inicialmente marcada por uma visão de território da violência e da
concentração da pobreza, no qual os diversos atores disputam os novos sentidos dados à região.
Neste processo, podemos destacar o conflito entre a visão dos novos atores populares que entram
17
na cena pública e a visão do poder público como promotor de diferentes projetos econômicos e
sociais, e das elites locais que historicamente detiveram o poder político e administrativo na
região.
1.1. Antecedentes históricos: 1930-1960 e a retomada da política pública de saneamento
pelo Estado brasileiro
Até a década de 30, a história das políticas públicas de saneamento no Brasil apresenta
duas características marcantes: uma forte presença dos serviços municipais e a delegação ao
setor privado. Segundo Najar (1991), “apesar da pouca disponibilidade de recursos, não se
pode afirmar que a razão exclusiva da limitação dos investimentos em saneamento, ao longo
dos anos, se deva exclusivamente a razões financeiras. É comum a literatura técnica que
precedeu a implantação do Planasa buscar em causas culturais a pouca atenção dada as ações
de saneamento”. Somente a partir de 1930, coma retomada dos serviços públicos de
saneamento por parte do governo federal é que essa temática passa a ter maior relevância,
assumindo desta forma o caráter de uma política nacional.
Neste processo de retomada da política de saneamento por parte do governo federal, o
ponto de inflexão é a criação da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense em 1933,
que em função de seu bom desenvolvimento foi transformada em 1936 em Departamento
Nacional de Obras de Saneamento, com jurisdição nacional. A criação em 1942 do Serviço
Especial de Saúde Pública e a sua posterior transformação em Serviços de Saúde Pública e
atualmente em Fundação Nacional de Saúde revelam a importância que este tema assumiria a
partir de 1930 (ibid.).
Numa rápida síntese, identificamos cinco fases distintas por que passaram as políticas
públicas de saneamento no Brasil entre o período colonial e o Planasa.
A primeira fase ocorre no período colonial, em que as políticas de saneamento estavam
restritas praticamente à drenagem de áreas urbanas.1 O Estado tinha uma participação muito
pequena, atuando na maioria dos casos por intermédio das câmaras municipais. Nesse cenário, o
acesso aos serviços é restrito, sendo viabilizado de forma individualizada tanto no que se refere
ao abastecimento de água, através de fontes públicas, como ao escoamento de águas usadas e
dejetos, realizado por meio do trabalho escravo.
1 O saneamento aqui está diretamente relacionado a eliminação de pântanos, pois os mesmos se constituíam num foco permanente de doenças.
18
A propagação de endemias como o cólera e a febre amarela, dando origem uma questão
de saúde pública vai, ser geradora da segunda fase – que se inicia em meados do século XIX e se
estende até o início do século XX –, na qual a ação pública foi mais presente. Porém, a pouca
capacidade técnica dos poderes públicos municipais para gerir os serviços de saneamento fez
com que as empresas privadas ampliassem suas atividades no Brasil, importando técnicas que
em muitos casos não estavam adequadas àquela realidade. Por outro lado, a situação de total
ausência de redes, sejam elas de abastecimento de água ou de escoamento de esgotos,
demonstrava a necessidade de grandes investimentos para a provisão destes serviços, o que não
foi realizado pela iniciativa privada. Os resultados foram pouco satisfatórios, uma vez que as
redes construídas estiveram restritas aos núcleos centrais das cidades, produzindo, portanto,
pouco impacto sobre a precária situação de saúde pública que se vivia neste período. A baixa
capacidade de resolução do problema por parte da iniciativa privada levou, então, os poderes
públicos municipais a iniciar um processo de encampação das empresas privadas e, a partir daí,
assumir a execução e a gestão dos serviços a partir da criação dos DAEs. Esse período se
caracteriza, por conseguinte, pelo descontrole e pela completa dispersão técnica e gerencial.
A terceira fase, que se inicia nesse momento, foi marcada pela retomada dos serviços
pelo poder público, e vai se prolongar entre as décadas de 40-50. A presença do Estado é
marcada pela ascensão dos técnicos – militares engenheiros e médicos – a cargos com poder de
decisão e, portanto, com a responsabilidade de prover e gerir políticas que assegurassem o
progresso urbano. Os centros universitários da Europa são os espaços de excelência para a
formação dessa burocracia técnica nascente, que tem a sua gênese na elite política brasileira.
Esse corpo técnico vai influenciar decisivamente a ação política do Estado nesse período, assim
como a “construção de um saber nacional sobre esta temática” (Costa, 1998:57). São desse
período a elaboração do Código de Águas e a instalação de várias repartições e inspetorias, assim
como a construção de diversos sistemas de água e esgotos.
O quarto momento, que se inicia na década de 50, se constitui na consolidação dos
serviços municipais e na ausência de uma política federal para o setor. Nesse período
identificamos apenas alguns instrumentos de regulação. No que se refere ao financiamento
público para o setor, poucas foram as iniciativas do governo federal voltadas para os serviços
autônomos2. Esse período marca também o início de um processo mais intenso de pulverização
2 Cabe ressaltar que oficialmente na década de 50, no âmbito do segundo governo Vargas, foi criado o Plano de Financiamento de Serviços Municipais de Abastecimento de Água. No entanto, este plano foi pouco efetivo na transferência de recursos do plano federal para os municípios.
19
das ações de saneamento, tendo sido criados vários órgãos com competências distintas operando
sobre o mesmo serviço.3
Nesse sentido, podemos destacar que esse período foi marcado por três princípios básicos
na gestão da política de saneamento que irão caracterizar o modelo do Planasa nas próximas duas
décadas: (i) gestão pública através de companhias estaduais; (ii) financiamentos internos e
externos de caráter retornável e (iii) auto-sustentação tarifária e autonomia dos serviços.
É exatamente a elaboração do Planasa em 1971 que marca o fim da quarta e o início
da quinta e última fase da nossa análise. Investindo na formação de companhias mistas
estaduais, o modelo concebido, ao contrário do que se poderia supor, não incorporou os
serviços municipais, pois sua gestão estava centrada num modelo empresarial e extremamente
dependente dos recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS. Pela
importância do Planasa para o nosso objeto de análise, vamos aprofundar algumas das
características desse período.
1.2. O modelo Planasa: centralização e técnica reproduzindo desigualdades na periferia
do Rio de Janeiro
Criado em 1971, o Planasa é formulado com o objetivo de enfrentar o enorme déficit no
acesso aos serviços de saneamento, que se acumulava desde os anos 50. O argumento central
para sua constituição era, portanto, a ausência de uma política nacional para o setor. Cabe
destacar que neste período 79% dos municípios brasileiros não dispunham de serviços de
abastecimento de água. (Fizson, 1990). As metas do Plano eram: (i) a eliminação do déficit do
setor de saneamento básico, produzindo, com base em um planejamento, um justo equilíbrio
entre a demanda reprimida e a capacidade de oferta dos serviços, no menor espaço de tempo
possível; (ii) o atendimento a todas as cidades brasileiras, atingindo inclusive os municípios
brasileiros mais pobres; (iii) o estabelecimento de uma política tarifária diferenciada, adequando-
a à realidade dos consumidores sem, no entanto, perder de vista a necessidade de equilíbrio entre
receita e despesas e (iv) o desenvolvimento de um programa de redução de custos de operação
do serviço visando o maior impacto positivo sobre as tarifas.
3 No final dos anos 60, 13 órgãos federais atuavam na área de saneamento, são eles: Departamento Nacional de Obras de Saneamento; Departamento Nacional de Obras Contra a Seca; Fundação Serviços de Saúde Pública; Departamento Nacional de Endemias Rurais; Divisão de Engenharia do Ministério da Saúde; Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia; Sudene; Comissão do Vale do São Francisco; Comissão de Fronteiras; Plano do Carvão; Departamento Nacional da Produção Mineral; Seção de Engenharia do Ministério da Guerra e Sudam. (Costa, 1998:59)
20
A política e o financiamento para o setor propostos pelo Planasa tinham por base o
conceito de saneamento básico, cunhado a partir da década de 50 e que restringia
substancialmente esta abordagem a ações ligadas diretamente ao abastecimento de água e ao
esgotamento sanitário. Para os formuladores dessa política, as razões para tal restrição eram a
escassez de recursos; a dificuldade de articular todas as atividades inerentes ao saneamento e o
seu maior impacto na saúde da população. Deve-se levar em conta que até esse momento, o
conceito de saneamento era demasiadamente abrangente, incorporando de forma fragmentada
serviços e políticas de naturezas muito diferenciadas4, apesar de manter uma destaque para as
questões da saúde, do desenvolvimento urbano e do meio ambiente:
“Em sentido lato, o termo saneamento abrange o conjunto de ações e relações que o homem estabelece para manter ou alterar o ambiente, no sentido de evitar ou controlar doenças, promovendo o conforto e o bem-estar. Reflete e condiciona diretamente a qualidade de vida, determinada historicamente por políticas de governo e aspectos sócio-econômico-culturais”. (Costa, 1998:50).
Todavia, mesmo com a orientação programática de investir em saneamento básico, as
ações do Planasa estiveram concentradas no abastecimento de água, fazendo com que esse
serviço tivesse nacionalmente índices maiores de cobertura do que o esgotamento sanitário.
Na década de 80, a partir da crítica a esse modelo feita por vários setores profissionais e
universitários, assistimos a uma ampliação do conceito de saneamento básico, na medida em que
o mesmo não era capaz de responder a questões como drenagem urbana, resíduos sólidos e
controle de vetores, que são aspectos fundamentais para a sustentabilidade das intervenções,
mesmo considerando apenas os serviços de água e esgoto. Neste sentido, os anos 80 vão
inaugurar um novo conceito de saneamento, incorporando duas novas dimensões: a questão
ambiental e a saúde pública. Essa construção conceitual não vai produzir rebatimentos imediatos
no plano das políticas públicas para o setor, mas vai trazer à tona a importância de acrescentar na
agenda do poder público esses importantes temas.
Em relação ao financiamento, este era sustentado por intermédio do extinto Banco
Nacional de Habitação - BNH. O instrumento de operação dessa política eram as CESB -
Companhias Estaduais de Saneamento Básico, que desde as duas décadas anteriores vinham
sendo estruturadas na perspectiva da gestão centralizada dos serviços – construção e operação
das redes e auto-sustentação financeira. O resultado dessa política pode ser verificado nos dados
4 Para se ter uma idéia dessa fragmentação, vale registrar que o conceito de saneamento, além de incorporar os serviços atualmente envolvidos nessa temática – como os serviços de água, esgotamento sanitário, resíduos sólidos, drenagem, educação sanitária e ambiental –, envolvia outras dimensões, tais como as condições de salubridade nas habitações, locais de trabalho, recreação, serviços de saúde e estabelecimento de ensino; aspectos diversos referentes ao saneamento do meio como cemitérios, ventilação, iluminação, insolação,etc.; saneamento dos alimentos; controle da poluição do ar e o planejamento territorial e urbano. (Costa, 1998:52)
21
atuais, onde as companhias estaduais são responsáveis pela operação de aproximadamente 75%
dos serviços de saneamento básico, ao passo que os 25% restantes são de responsabilidade das
prefeituras de forma autônoma, através de departamentos e autarquias e, em alguns casos
minoritários da iniciativa privada.
A auto-sustentação financeira era um princípio da política da qual o governo federal não
abria mão, em que pese a constituição de um fundo público em 1969, o Sistema Financeiro de
Saneamento - SFS, que alocava recursos públicos a fundo perdido para políticas e/ou projetos de
esgotamento sanitário e abastecimento de água, tendo o BNH como seu órgão normativo, de
controle e de assistência, enfim com a responsabilidade de coordenar as ações e os recursos nos
planos federal, estadual e municipal. Entre a sua criação no final da década de 60 e a primeira
metade dos anos 80 o SFS movimentou 5.7 bilhões de dólares, sendo 76,4% do BNH e 23,6%
dos Estados, através de seus fundos de água e esgoto (Najar, 1991).
Os financiamentos eram centralizados e obedeciam a uma lógica em que sua operação era
viabilizada por uma empresa de caráter estadual que fosse capaz de assegurar a sua auto-
sustentação, por meio de uma política tarifária condizente com os custos de produção do
serviço. Para os ideólogos do Planasa, nos municípios residiam os males que ocasionavam os
altos números do déficit no atendimento ao serviço de abastecimento de água e esgotamento
sanitário. Para eles, o município era por excelência o lugar do paternalismo, do clientelismo,
da incompetência técnica e da desarticulação institucional. Desta forma, o principal processo
de marginalização dos municípios na década de 70 se deu pela via da política de restrição do
acesso das prefeituras aos recursos do SFS e do BNH. A nosso ver, a não incorporação da
experiência acumulada pelos municípios ao longo de mais de duas décadas foi um dos
elementos responsáveis pelo fracasso do Planasa e revela o nível de centralização da política e
de prepotência quanto ao alcance das suas metas, pois nos municípios se desenvolveram nesse
período experiências significativas que demonstravam a viabilidade dos serviços pela via
local.
Ao chegar aos anos 80, o Planasa havia atingido 2.910 municípios brasileiros com serviços
de abastecimento de água e 343 com serviços de esgotamento sanitário. Seu recorte mais
acentuado na questão do abastecimento de água em detrimento do esgotamento sanitário é
evidente. Não obstante as iniciativas de corrigir tal distorção devemos assinalar que as
mesmas não saíram do papel (Fizson, 1990).
22
As marchas e contra marchas do Planasa comprometeram substancialmente as suas metas,
na medida em que (i) seu modelo de financiamento tinha as suas bases assentadas em recursos
provenientes do FGTS e na poupança privada, mas com a recessão econômica os saques
nesses fundos tornaram-se mais freqüentes inviabilizando esse padrão de financiamento; (ii)
tinha uma política tarifária incompatível com os custos operacionais, o que gerava
permanentes déficits na gestão do sistema; (iii) estava marcado por uma prática política
clientelista e pelo empreguismo pré-eleitoral, o que acarretava investimentos em áreas que
nem sempre eram as prioritárias sob o ponto de vista técnico gerando por vezes o crescimento
da dívida; e (iv) a inexistência de autonomia das empresas não possibilitava que estas
atuassem de forma independente dos programas e projetos elaborados de acordo com a
conjuntura federal que subordinava os interesses dos estados à União, o que, em alguns casos,
era gerador de conflitos (ibid.:74).
A crise desse modelo alterou a lógica do Planasa. Até 1980, quando os recursos eram
maiores, predominavam investimentos em grandes obras em consonância com o atendimento
das metas de eficácia definidas. Todavia, após esse período, com a redução dos recursos
públicos disponíveis, assistimos a uma transformação no discurso, onde a eficácia é
substituída por metas a serem atingidas pela eficiência e pela produtividade.
Em virtude desse processo de redução de recursos para os serviços de saneamento, emerge
uma discussão trazida pelos órgãos federais do setor em torno da utilização de tecnologias de
baixo custo para possibilitar a continuidade dos investimentos a serem realizados. Deve-se
destacar que essa tendência interna também sofria a influência dos organismos multilaterais,
que se constituíam em outro setor de fomento ao desenvolvimento dessas tecnologias, com
maior destaque para o Banco Mundial. A partir da década de 70 essa agência multilateral
passa a ter em sua carteira de financiamento no Brasil, uma presença cada vez maior de
empréstimos para abastecimento de água, esgotamento sanitário e o desenvolvimento urbano.
Após a Conferência das Nações Unidas sobre Água, realizada em Mar Del Plata em 1977 –
na qual se declarou a década de 80-90 como a Década Internacional da Água e do
Saneamento –, o governo definiu como prioridade: (i) a redução de custos de investimento,
operação e manutenção do sistema; (ii) a revisão das normas brasileiras relacionadas aos
sistemas de saneamento; (iii) a substituição do uso de tecnologias estrangeiras pelas nacionais
e (iv) a geração e o desenvolvimento de tecnologias adequadas à realidade e às peculiaridades
regionais (ibid.:80).
23
Em síntese, os principais problemas reconhecidos para a baixa eficiência dos investimentos
realizados pelo Planasa foram: (i) erros de cálculo da demanda no horizonte dos projetos o
que gerava a superestimativa dos investimentos per capita; (ii) a concepção de sistemas de
grande porte aliada a execução completa das necessidades identificadas, ao invés de se
planejar a implantação dos sistemas por etapas, e em alguns casos com prioridades
questionáveis fazendo com que os sistemas nem sempre fossem plenamente utilizados e (iii)
projetos de ampliação da oferta de serviços, não levando em consideração as perdas existentes
e nem mesmo a recuperação dos sistemas existentes.
Apesar disso, são evidentes os resultados da política implementada nesse período em
relação à ampliação da cobertura de água em todo o país. No que tange ao esgotamento
sanitário, como sabemos, a cobertura não avançou significativamente até o fim desse Plano.
Do ponto de vista da nossa análise, o que interessa sublinhar são os impactos dessa política
sobre as periferias das grandes cidades, em especial a Baixada Fluminense, nosso foco de
estudo. Efetivamente, constatamos que o Planasa, apesar de todos os avanços que possam ser
reconhecidos, foi produtor de enormes desigualdades nesta região.
1.3. O modelo Planasa e a Baixada Fluminense
Para discutir os impactos da política do Planasa na Baixada Fluminense é interessante
perceber o lugar dessa região no contexto urbano da metrópole fluminense. Desta forma
entendemos ser importante resgatar alguns traços da sua formação histórica.
A Baixada Fluminense, entre os séculos XVII-XX, viveu três grandes momentos de
transformação econômica do seu território. No início do século XVII assistimos a um processo
lento de ocupação do território, que se dá com a introdução da lavoura canavieira. Utilizando-se
dos recursos naturais que dispunha a região – solos férteis, revelo plano, circulação pluvial e,
sobretudo, a sua proximidade com o porto do Rio de Janeiro –, direcionaram-se para lá vários
engenhos de cana-de-açúcar.
Entre os séculos XVIII e XIX, será o café e não mais o açúcar o elemento dinamizador da
sua economia e da ocupação do seu espaço. As vias fluviais nesse período ligavam a região à
capital, como também a outras regiões do país, nesse caso Minas Gerais. As primeiras ocupações
urbanas se dão justamente ao redor dos entrepostos de Iguassú e Estrela, ambos situados no atual
município de Nova Iguaçu, e Pilar, situado em Duque de Caxias. O século XIX marca a
ampliação da produção cafeeira e a construção da ferrovia que asseguraria a importância do
24
entreposto comercial e a sua ligação à capital e à serra do mar. Desta forma, estaria resolvido o
problema de escoamento do café pela via fluvial (Bernardes, 1983).
O século XX assinala o terceiro momento das transformações econômicas da região.
Desta feita será a laranja o elemento dinamizador da ocupação do espaço. Ocupando terras agora
ociosas e pouco valorizadas (ibid.), a indústria de cítricos cresce no vácuo deixado pelo açúcar e
o café, e vai destinar-se aos mercados interno e externo. Mais uma vez a Baixada aparece com as
condições ideais para essa produção agrícola, contando, nesse momento, com um outro elemento
fundamental: a mão-de-obra disponível instalada na região.
Ao final da década de 40, a Baixada Fluminense já está diante de um processo de
ocupação urbana crescente, levado pela industrialização que se inicia no Brasil e facilitado pelo
baixo preço da terra urbana na região, o que proporcionava condições favoráveis à aquisição de
um lote de terras pela população de baixa renda. Essa característica de urbanização popular
periférica da Baixada Fluminense é fortalecida por vários investimentos importantes realizados
entre 1939 e 1960, articulados ao modelo econômico nacional desenvolvimentista característico
desse período. Datam dessa época: a Fábrica Nacional de Motores - FNM; a Refinaria de Duque
de Caxias; a construção da Estrada de Ferro Central do Brasil - EFCB e as rodovias Washington
Luiz e Presidente Dutra, além de várias industrias que se instalaram ao longo dessas vias, pela
disponibilidade de mão-de-obra de baixa qualificação e pela facilidade no escoamento da
produção. Esse processo impulsionava a transformação dos antigos laranjais em loteamentos que
foram oferecidos à população a preços baixos e sem qualquer infra-estrutura urbana, a princípio,
sobretudo, em Nova Iguaçu, estendendo-se posteriormente a toda região. O resultado foi uma
ocupação desordenada sob o ponto de vista urbano e predatória sob o ponto de vista ambiental.
Apesar desse acelerado processo de urbanização, percebemos que entre 1950 5 e 1970 a
Baixada Fluminense ficou sem receber investimentos significativos na área de saneamento.
Antes disso, os investimentos na região se concentravam em programas de enxugamento e
controle de enchentes, vinculados aos interesses econômicos que então vigoravam6. A
descontinuidade dos investimentos nesse longo intervalo tem como conseqüência o retorno das
graves enchentes que vão assolar a região entre os anos 60 e 80, desta vez com o agravante de
tratar-se de uma região com índices crescentes de ocupação urbana, com um perfil populacional
de baixa renda e migrantes de outras regiões e estados da federação.
5 Devemos ressaltar que esse período marca a transferência da capital do Estado da Guanabara para Brasília. 6 Entre 1894 e 1933 foram constituídas 12 comissões de trabalho na área de saneamento para a Baixada Fluminense, com objetivo de realizar intervenções concretas que partiam do enxugamento a limpeza e desobstrução dos rios da região. Em quase 40 anos foram investidos 68.711:206$331 (Góes, 1934:22).
25
Com esse crescimento populacional da Baixada, o problema de abastecimento de água e
esgotamento sanitário tornou-se eminente. A política pública desse período estava voltada para a
ampliação da adução de água para a região, mediante a construção da subadutora da Baixada
Fluminense, articulada a obras complementares de abastecimento (1977/1980). Cabe destacar
que esta obra foi a primeira intervenção pública que disponibilizava água diretamente do Guandu
para a região através do reservatório do Marapicu. Com efeito, a política pública desse período é
marcada, sobretudo, por intervenções de caráter estrutural e mobiliza um volume de recursos
bastante significativos. No entanto, o enorme déficit no acesso aos serviços gerado pela
ocupação desordenada da Baixada Fluminense não será reduzido durante o período do Planasa,
mesmo constatando que a região recebeu proporcionalmente mais recursos do que as áreas mais
ricas da Cidade do Rio de Janeiro, no período de 1975 a 1984 (Marques, 2000).
Além disso, os investimentos públicos não destinados para as obras de construção da
adutora foram concentrados na execução de pequenos projetos de construção de redes locais –
com destaque para o Plano de Setorização de Abastecimento de Água –, ampliando as
ligações físicas sem que houvesse aumento na capacidade de armazenamento de água, que
estava abaixo do necessário para a região. Nesse sentido, apesar da melhora nos índices de
cobertura do acesso aos serviços de abastecimento, verificadas nos Censos de 1980 e 1991
(IBGE), são explicáveis a constante falta de água e os rodízios no abastecimento que já fazem
parte do dia-a-dia da população (Marques, 2000). No que se refere aos serviços de coleta e
destinação final de esgotos, os investimentos nesse período foram praticamente nulos
(conforme veremos pela análise das Tabelas 5 e 6), gerando um quadro de déficit absoluto no
acesso a esse importante serviço para a região, notadamente se considerarmos suas
características físicas, de espaço sujeito a grandes alagamentos e inundações.
A ausência deixada pelo poder público estadual na prestação dos serviços nesse período
produziu uma forte relação de clientela no acesso aos serviços de saneamento. A distribuição de
canos de água e manilhas para esgotamento sanitário se traduz num dos elementos centrais da
dominação das elites políticas na Baixada Fluminense. As redes obedeciam, portanto, a uma
lógica política que fosse capaz de reproduzir as estruturas de poder na região, na maioria das
vezes com a conivência política do governo do Estado que cedia aos interesses da elite política
ansiosa por recursos e equipamentos para realização desse tipo de obra. Desta forma, as redes
foram sendo construídas e ampliadas sem qualquer racionalidade técnica, como preconizava o
Planasa. Atendendo aos interesses locais – políticos e moradores –, as redes eram em sua maioria
26
clandestinas, não sendo os serviços, portanto, passíveis de tributação enquanto os níveis de
perdas eram cada vez mais acentuados, em razão da precariedade das ligações.
Na verdade, podemos afirmar que, em geral, os preceitos técnicos definidos para a
execução do Planasa – relativos à racionalidade e ao planejamento – foram praticamente
colocados por terra na Baixada Fluminense. A primeira questão refere-se a sua incapacidade de
desenvolver uma política integrada que suprisse a crescente demanda pelos serviços na região,
como demonstra a desintegração apresentada entre a construção de adutoras e a necessária
provisão das redes domiciliares de abastecimento. A segunda questão relaciona-se ao papel do
poder municipal. O Planasa produziu a exclusão das prefeituras da gestão e do acesso aos
financiamentos públicos sob a argumentação de que no município era onde se produzia o
clientelismo, o desperdício e a não-cobrança de tarifas. Entretanto foi exatamente o agravamento
dessas características, inclusive alimentada pelos governos estaduais, que tivemos a oportunidade
de verificar na Baixada Fluminense, o que revela a contradição entre o discurso – técnico – e a
prática – política. A quantidade de redes clandestinas é apenas a expressão mais visível dessa
incapacidade de tornar o planejamento um instrumento efetivo da execução das políticas,
gerando, assim, um terceiro problema, relacionado à dificuldade de auto-sustentação dos
serviços. A quarta questão que devemos assinalar diz respeito às perdas do sistema. A ampliação
das redes de forma clandestina – os gatos – produz uma quantidade significativa de perdas de
água, o que acarreta maior custo de produção da água, não produzindo, portanto, um impacto
positivo nas tarifas como sugere o plano.
Deste modo, podemos perceber que as desigualdades sociais das grandes cidades,
geradas pelo modelo econômico desenvolvimentista desse período, encontram no saneamento da
Baixada Fluminense mais uma das suas perversas manifestações. O Planasa, como vimos, não
foi capaz de reverter esse quadro. A Baixada Fluminense, ao final dos anos 90, continuava a ser
um retrato em preto e branco da exclusão social da metrópole fluminense.
1.4. A Baixada Fluminense em preto e branco: o retrato atual da região 7
Composta por oito municípios – Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João
de Meriti, Nilópolis, Mesquita, Queimados e Japeri – a Baixada Fluminense8 é a parte da Região
7 Esta parte do texto tem por base um artigo escrito pelo autor desta dissertação, em co-autoria. Ver Oliveira, Porto e Santos Junior (1995). 8 Até 1991, a Baixada Fluminense era composta por quatro municípios: Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti e Nilópolis. Durante a década de 90, vão ser criados mais quatro municípios, através da emancipação de Belford Roxo, Japeri, Queimados e recentemente Mesquita.
27
Metropolitana do Rio de Janeiro onde se encontra uma das maiores concentrações de pobreza e
baixos índices de qualidade de vida. Em 1996, sua população era de 2.711.843 habitantes. Tendo
como referência os dados disponíveis para 1991, temos que, do total de famílias moradoras da
região, 22,95% viviam em condições de indigência, representando 33,48% dos indigentes da
RMRJ. A taxa de crescimento populacional da Baixada Fluminense na década de 80 foi de
1,22% a.a, superior a média de crescimento do município do Rio de Janeiro, de 0,82% a.a.
A comparação percentual entre o rendimento mensal domiciliar per capita da Região
Metropolitana – excetuando-se a capital – em 1980 e 1991, indica o evidente empobrecimento da
população na década de 80. Em 1981, 63,8% da população estava na faixa de renda de até um
salário mínimo; em 1990, aumentou para 68,1% o percentual de pessoas pertencentes a esse
segmento. Portanto, mais da metade da população vivia com rendimento per capita de até um
salário mínimo. Essa homogeneidade socioeconômica da população residente na Baixada
Fluminense é confirmada pela construção de tipologias socioespaciais que hierarquizam as
ocupações profissionais segundo sua incidência no espaço das cidades, conforme a metodologia
utilizada por Ribeiro (2000)9. Sem pretender fazer uma discussão aprofundada sobre as
tipologias socioespaciais da Baixada Fluminense, e tampouco sobre a metodologia nela
empregada, nos basta destacar, para o propósito do nosso estudo, que essa homogeneidade se
reflete no perfil socioespacial da população residente na Baixada Fluminense, na qual se verifica,
em termos percentuais, o predomínio de dois tipos socioespaciais em 1980: os tipos popular-
operário e popular-periférico, compostos majoritariamente pelas categorias socioocupacionais
de operários da construção civil, operários da indústria tradicional e operários de serviços, no
primeiro caso; e de biscateiros, ambulantes e empregadas domésticas, no segundo. Em 1991,
continuam a prevalecer esses tipos no perfil de ocupação da região, mas agora se percebe uma
maior heterogeneidade social, com o surgimento de núcleos urbanos onde predominavam outros
tipos socioespaciais, como o médio superior, médio, médio inferior e operário, agregando
categorias socioocupacionais, tais como profissionais empregados de nível superior,
profissionais autônomos de nível superior, pequenos empregadores, empregados de escritório,
empregados de supervisão e operários do setor moderno (Mapas 1 e 2).
9 A tipologia socioespacial foi construída tomando por base a combinação das variáveis de renda, ocupação profissional, posição na ocupação, setor de atividade e grau de instrução (Ribeiro, 2000)
28
Mapas 1 e 2 – Comparação entre a Estrutura Socioespacial da Baixada Fluminense 1980/1991 – Baixada Fluminense, RMRJ10
10 Para o aprofundamento da metodologia utilizada e uma descrição detalhada sobre as tipologias socioespaciais apresentadas, ver Ribeiro (2000).
29
A população da Baixada Fluminense recebe precário atendimento nos serviços de
infra-estrutura urbana. Apesar de os dados disponíveis apontarem para um aumento na
percentagem de residências atendidas pelos serviços de abastecimento de água, coleta de lixo
e esgotamento sanitário, verifica-se ainda uma grande diferença no atendimento dos mesmos
serviços quando se compara com os índices da Cidade do Rio de Janeiro. A maior parte das
vias públicas não tem pavimentação e os serviços de transporte, além de caros, são bastante
deficientes.
Os estabelecimentos de ensino público existentes na Baixada Fluminense, principais
espaços de socialização das crianças e adolescentes, são insuficientes para absorver a demanda
escolar. Mais da metade das escolas de pré-escolar e de segundo grau são particulares (63,59% e
57,97%, respectivamente). Esse quadro apresenta alterações quando analisamos o percentual de
estabelecimentos de ensino de primeiro grau, majoritariamente concentrados no setor público
(62,35%), apesar de ainda estarem longe de representar um bom nível de atendimento da
população em idade escolar. Não é demais afirmar que, juntamente com a inadequação do ensino
à realidade local, essa situação é uma das principais razões para o alto índice de analfabetismo da
região, em torno de 15%, bem superior ao índice de 8,7% encontrado na capital.
Do mesmo modo, observa-se que, no setor de saúde, a rede particular de clínicas e
hospitais supera a rede pública na região de forma acentuada (88,19% contra 11,81% e 93,48%
contra 6,52% respectivamente). Já no que diz respeito às unidades de atendimento básico
(centros de saúde), os dados revelam um domínio quase absoluto da rede pública (95,56% contra
4,44%). Controlado pelos interesses do setor privado, a gestão da política de saúde na Baixada
tem se revelado incapaz de atender às demandas básicas da população, traduzindo-se nos altos
índices de mortalidade infantil, nas enormes filas dos postos de saúde, no déficit de leitos e de
consultas e na baixa eficiência das unidades existentes.
Em relação aos indicadores econômicos, percebe-se que é no Município do Rio de
Janeiro que se concentra o maior número de estabelecimentos nos setores da indústria (71,26%),
comércio (64,16%) e serviços (66,58%). Da mesma forma, é a capital que fornece a maior
quantidade de empregos na Região Metropolitana (78,37% dos empregos na Indústria; 73,86%
no Comércio e; 85,86% nos Serviços). Do total da população ocupada na metrópole, a Baixada
Fluminense emprega apenas 11,42% na indústria; 13,79% no comércio e 6,44% no setor de
serviços. A falta de uma política pública de desenvolvimento para a região é responsável, entre
outros fatores, pela baixa qualificação profissional da população e, conseqüentemente, pelos
30
baixos salários, pela inexistência de empregos suficientes para absorver a população
economicamente ativa e pela baixa arrecadação de impostos por parte das administrações locais.
A situação financeira dos municípios da Baixada Fluminense também se mostra bastante
debilitada. Ao longo da década de 80, a receita per capita, em dólar, de todos os municípios da
região foi sempre inferior a US$ 50,00, não atingindo, em São João de Meriti e em Nilópolis, o
valor de US$ 30,00. É importante destacar que, nesse período, significativas mudanças
aconteceram no que diz respeito à situação financeira dos municípios brasileiros, que
gradualmente melhoraram de posição graças ao processo de crescente descentralização de
recursos federais, principalmente a partir da reforma constitucional de 1988. Tais mudanças
atuaram sobretudo com o intuito de dar maior autonomia aos municípios, tanto do lado das
receitas (aumento da capacidade de tributação local, crescimento da participação na arrecadação
de impostos federais e estaduais, e nas transferências constitucionais), quanto das despesas
(diminuição das transferências negociadas ou condicionadas – que favoreciam ainda mais o
clientelismo e a exigência de contrapartidas de teor meramente político), propiciando às
prefeituras maior liberdade no acesso e na aplicação dos recursos financeiros disponíveis.
Cabe ressaltar que a capacidade de arrecadação (e, portanto, de despesas) dos municípios
é bastante sensível aos movimentos de expansão e retração da economia do país, respondendo
favoravelmente no primeiro caso e negativamente no segundo. Assim ocorre com todos os
municípios da Baixada Fluminense, que apresentaram acentuada queda na arrecadação durante o
período de recessão no início da década, principalmente entre 83 e 85, seguida por uma
importante recuperação em 86, época do Plano Cruzado, em que o país apresentou um alto nível
de atividade econômica. Com a volta da recessão em 87 e 88, a arrecadação declina
vertiginosamente e, já em 89, possivelmente como fruto da nova Constituição Federal, as receitas
municipais começam a se recuperar, ganhando maior fôlego em 90, praticamente alcançando os
níveis apresentados no início da década, ainda que se mantendo muito aquém para os necessários
investimentos públicos demandados pela população local. Os dados mais recentes que estão
disponíveis demonstram essa situação: em 1996, o município com maior arrecadação da Baixada
Fluminense, Duque de Caxias, alcançava uma receita per capita em torno de US$ 100,00. Em
reais, a faixa de receita per capita desses municípios variava entre R$ 98,36 (São João de Meriti)
e R$ 237,38 (Duque de Caxias).
O grave quadro social que caracteriza atualmente a Baixada Fluminense pode ser
ilustrado por meio de alguns indicadores municipais selecionados na Tabela 1: a precariedade
dos serviços de saúde e de educação é evidenciada pelos índices de cobertura de leitos clínicos
básicos (em relação a 1.000 habitantes) e de matrículas no ensino básico (em relação à população
31
em idade escolar), assim como a débil situação financeira, pela estimativa do PIB municipal,
pelo orçamento municipal per capita e pela capacidade de investimento per capita.
Tabela 1 - Informações Municipais, Baixada Fluminense, 1998*
Municípios segundo o tamanho
Município População (1996)
Leitos em clínicas
básicas**
Matrículas no ensino básico***
PIB Municipal per capita (R$) ****
Orçamento municipal per capita 1996
(R$)
Capacidade de investimento
per capita (R$) *****
Nova Iguaçu 826.188 1,0 83,9 3.871 111,14 2,29Muito Grandes Duque de Caxias 715.089 1,1 84,1 6.009 237,38 10,29
São João de Meriti 434.323 1,4 73,1 3.349 98,36 6,78Belford Roxo 399.319 0,5 81,3 5.273 108,27 25,63Nilópolis 155.272 2,7 112,3 4.628 134,13 9,41
Grandes
Queimados 108.522 1,4 66,8 12.510 223,59 112,46Médios Japeri 73.130 2,3 74,1 710 135,25 39,06*Não há dados disponíveis para o Município de Mesquita, recém-emancipado de Nova Iguaçu. ** Para cada grupo de 1.000 habitantes e considerados apenas os leitos credenciados pelo SUS - 1998. *** Em relação à população em idade escolar -1996. **** Estimativa para 1996. ***** Despesas de Capital em Investimento per capita – (R$) - 1996. Fonte: Cide, Índice de Qualidade dos Municípios, 1999 / Tabulação: Observatório de Políticas Públicas e Gestão Municipal.
A análise do perfil político das administrações municipais da Baixada Fluminense aponta
para uma fragmentação de legendas partidárias. O PSB - Partido Socialista Brasileiro e o PFL -
Partido da Frente Liberal detém, cada um, duas administrações (Mesquita e Japeri, Nilópolis e
Queimados, respectivamente). O PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o PPS
- Partido Popular Socialista, o PL - Partido Liberal e o PSDB - Partido da Social Democracia
Brasileira detêm uma administração cada um (São João de Meriti, Belford Roxo, Nova Iguaçu e
Duque de Caxias, respectivamente), conforme mostra a Tabela 2.
Tabela 2 – Prefeitos Segundo o Partido Político, por Município Baixada Fluminense, 2000
Município Partido eleito nas eleições de 1996
Partido do prefeito em 1999
Indicador de mudança partidária 1996/1999
Partido eleito nas eleições
de 2000
Indicador de mudança partidária 1999/2000
Belford Roxo PPB PSDB 1 PPS 1 Duque de Caxias PSDB PSDB 0 PSDB 0 Japeri PMDB PMDB 0 PSB** 1 Mesquita* - - - PSB** - Nilópolis PDT PFL 1 PPB 1 Nova Iguaçu PSDB PSDB 0 PSDB 0 Queimados PFL PMDB 1 PMDB 0 São João de Meriti PFL PMDB 1 PMDB 0
* Emancipado de Nova Iguaçu em 1999. ** Essas prefeituras foram eleitas sob a legenda do PDT nas eleições de 2000, tendo seus prefeitos se transferido no início de suas respectivas administrações. Fonte: Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal (IPPUR/UFRJ - FASE), 1999.
32
Tendo em vista o nosso interesse na temática do saneamento, vale destacar alguns
indicadores do acesso a esse serviço na Baixada Fluminense, tomando como referência os
Censos Demográficos de 1980 e 1991 (IBGE). Antes porém, cabem algumas palavras sobre as
limitações nos dados disponíveis. A metodologia utilizada no Censo tem por base informações
fornecidas pelos moradores nas entrevistas domiciliares realizadas, o que ocasiona dois sérios
problemas sobre a confiabilidade e qualidade das mesmas.
O primeiro problema refere-se à suposição de que o morador tenha conhecimento de duas
informações fundamentais: se a rede de água do seu domicílio (se existir) está ligada legalmente
à rede de abastecimento da companhia estadual (Cedae) e se a canalização de esgoto sanitário do
seu domicílio (se existir) está ligada a uma rede pública de coleta de esgotos da companhia
estadual (Cedae). A primeira informação normalmente é de conhecimento do morador e, por
isso, mais fácil de ser captada pelos Censos. A segunda, todavia, pressupõe um mínimo de
conhecimento técnico, já que não basta existir canalização interna ligando o esgoto da residência
a uma tubulação na rua. Deve existir, sim, uma rede pública exclusiva para coleta de esgotos, na
forma de separador absoluto em relação às águas pluviais. Ou seja, a existência de manilhas na
rua às quais está ligada a rede de coleta de efluentes residenciais não é nenhuma garantia que
exista rede pública de esgotos, o que nem sempre é de conhecimento dos moradores. Nossa
experiência pessoal, pelo contrário, nos mostra que o resultado dos Censos normalmente
sobreestima os índices de cobertura de acesso aos serviços de esgotamento sanitário.
O segundo problema está relacionado ao fato de os dados do IBGE nada dizerem sobre a
qualidade dos serviços. Assim, uma residência pode ter rede de abastecimento de água ligada à
rede geral da companhia estadual e receber apenas água duas vezes por semana, isto é, não ter
acesso pleno aos serviços. No entanto, esta dinâmica não pode ser captada pela pesquisa na sua
forma atual, já que não existe nenhuma enquête sobre a freqüência do recebimento do serviço e
tampouco sobre a qualidade da água distribuída.
Feitas essas ressalvas, cabe registrar que, no que se refere às informações sobre a
cobertura dos serviços de saneamento, os dados do Censo Demográfico do IBGE são a fonte
mais ampla disponível, o que nos permite fazer comparações e análises da evolução histórica.
Como já dissemos, constatamos que ao longo da década de 80 houve uma
desconcentração dos investimentos públicos em direção à região (1975/1984), levada a cabo por
três administrações consecutivas por quase uma década. Entre os anos de 86 e 88 foram
realizadas intervenções na região que visavam a complementação do sistema de abastecimento
(Plano de Impacto – governos Faria Lima e Chagas Freitas), a construção de redes domiciliares
de esgotamento sanitário (Plano Especial de Esgotamento da Baixada e São Gonçalo – governo
33
Leonel Brizola) e a construção de redes domiciliares de abastecimento de água (Plano de
Setorialização da Rede de Abastecimento de Água – governo Moreira Franco).11
É inegável que esses investimentos contribuíram para elevar índices de acesso aos
serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário na Baixada Fluminense.
Todavia, em que pese a sua importância, não lograram êxitos maiores, pois o estoque de
demanda se construiu numa relação inversamente proporcional à intervenção pública, o que
implica dizer que somente na segunda metade dos anos 70 os recursos públicos são
redirecionados para a região, ao passo que a sua ocupação é crescente a partir da década de
50. Além disso, vale registrar a pouca efetividade dos arranjos institucionais e a baixa
qualidade das obras (Marques, 2000; Britto, 1998). Desta forma, se por um lado a comparação
entre os dados dos censos de 80 e 91 confirma um crescimento na provisão dos serviços, por
outro lado assinala a existência de uma enorme demanda, sobretudo no que se refere aos
serviços de esgotamento sanitário, conforme podemos verificar nas Tabelas 3 e 4
(abastecimento de água) e Tabelas 5 e 6 (esgotamento sanitário).
Em relação aos serviços de esgotamento sanitário, chamam a atenção os municípios de
Duque de Caxias e de São João de Meriti, que saíram do patamar de cobertura de 0% em rede
geral na década de 80, para patamares de 31% e 56% na década posterior, respectivamente.
Devemos assinalar que na Baixada Fluminense são poucas as áreas que têm instalação sanitária
adequada, sendo exceção o Município de São João de Meriti que apresenta os melhores índices
de ligação adequada. Este cenário é produto em larga medida de uma política governamental
levada a cabo pela Cedae, que privilegiou o abastecimento de água em detrimento da construção
de redes coletoras de esgoto.
Tabela 3 – Abastecimento de Água na Baixada Fluminense – 1981
Municípios Total de
domicílios % de
domicílios ligados a rede
geral
% de domicílios
abastecidos por poços
% de domicílios
abastecidos por outros meios
Duque de Caxias 133.252 44 48 8 Nilópolis 36.199 89 8 3
Nova Iguaçu 246.722 43 51 6 São João de Meriti 93.700 71 21 8
Fonte: Censo Demográfico do IBGE, 1980
11 Esses planos e outros que surgiram na década de 90 serão objeto de uma reflexão mais aprofundada no capítulo 3
34
Tabela 4 – Abastecimento de Água na Baixada Fluminense – 1991
Municípios e
Distritos
Domicílios com canalização
interna e rede geral
% de domicílios c/canalização interna e rede
geral
Domicílios servidos por outros meios
% de domicílios servidos por outros meios
Total de domicílios
Belford Roxo 59.110 69 26.535 31 85.645 Duque de Caxias 128.038 74 44.620 26 172.658
Duque de Caxias 77.82 89 9.612 11 87.494 Campos Elíseos 34.991 70 14.718 30 49.709 Imbariê 11.760 46 13.638 54 25.398 Xerém 3.405 34 6.652 66 10.057
Japeri 8.111 51 7.887 49 15.998
Nova Iguaçu
156.911
80
40.060
20
196.971 Nova Iguaçu 113.867 79 30.547 21 144.414 Vila de Cava 10.190 65 5.405 35 15.595 Mesquita 32.854 89 4.108 11 36.962
Nilópolis
40.484
96
1.505 4
41.989
Nilópolis 26.960 96 1.067 4 28.027 Olinda 13.524 97 438 3 13.962
Queimados
17.827
59
12.543
41
30.370
São João de Meriti
101.956
92
8.840 8
110.796
S. J.de Meriti 51.277 89 6.441 11 57.718 Coelho da Rocha 38.344 96 1.516 4 39.860 São Mateus 12.335 93 883 7 13.218
Fonte: Censo Demográfico do IBGE, 1991.
Tabela 5 – Esgotamento Sanitário na Baixada Fluminense – 1980
Municípios Total de domicílios
% de domicílios ligados a
rede
% de domicílios
servidos por fossas sépticas
% de domicílios servidos por fossas
rudimentares
% de domicílios servidos
por outros meios
% de domicílios sem
instalações sanitárias
Duque de Caxias
133.252 0 78 9 9 4
Nilópolis 36.199 70 18 4 7 1 Nova Iguaçu 246.722 33 44 10 10 3 São João de
Meriti 93.780 0 78 11 10 2
Fonte: Censo demográfico do IBGE, 1983
35
Tabela 6 – Esgotamento Sanitário da Baixada Fluminense – 1991
Municípios e
Distritos
% de domicílios com
rede geral
% de domicílios com fossa
séptica
% de domicílios c/ instalação
sanitária adequada
% de domicílios c/ outras formas
de instalação sanitária
% de domicílios sem instalação
sanitária
Belford Roxo 3 36 40 59 2 Duque de Caxias 31 26 56 41 3
Duque de Caxias 61 17 77 20 2 Campos Elíseos 0 34 34 64 3 Imbariê 0 41 41 56 3 Xerém 0 24 24 72 4
Japeri 4 20 24 72 3 Nova Iguaçu 4 46 51 48 2
Nova Iguaçu 6 54 60 39 1 Vila de Cava 7 27 34 62 4 Mesquita 2 63 66 34 1
Nilópolis 3 38 41 58 1 Nilópolis 4 43 47 52 1 Olinda 1 29 30 69 1
Queimados 3
39
41
57
2
São João de Meriti
56 8
64
35
1
São João de Meriti 55 10 64 35 1 Coelho da Rocha 64 6 70 30 1 São Mateus 35 10 44 54 2
Fonte: Censo Demográfico do IBGE, 1991
Os indicadores socioeconômicos sobre a Baixada Fluminense constituem um retrato
em preto e branco das desigualdades sociais que marcam a periferia da metrópole fluminense.
Numa leitura mais apurada dos periódicos da região, iremos encontrar uma grande quantidade
de situações que beiram a calamidade pública e, na sua maioria, têm estreita relação com as
condições socioeconômicas.
A reflexão sobre esse cenário abre a possibilidade de problematizar as abordagens
acerca do saneamento, na medida em que a crescente degradação ambiental tem maior
impacto sobre as populações de menor renda e que são, por conseguinte, as que estão mais
expostas aos riscos ambientais. Depósito de lixo tóxico, resíduos industriais cancerígenos
depositados a céu aberto em comunidades populares, poluição industrial avançada, grandes
afluentes poluídos e assoreados, lençóis freáticos comprometidos pela inexistência da rede de
esgoto, abastecimento de água irregular e intermitente, enchentes e coleta irregular de
resíduos sólidos demonstram o nível de exposição aos riscos ambientais a que estão
submetidas as populações dessa região. Para enfrentar a discussão sobre a questão ambiental,
propomos resgatar o debate sobre a abordagem de justiça ambiental por entender que este
enfoque permite identificar os limites e as possibilidades das políticas públicas implementadas
36
na região com base nos conceitos de saneamento básico e de saneamento ambiental. Como
veremos, tal enfoque nos permite afirmar que uma das expressões da desigualdade social que
marca a Baixada Fluminense desde a sua constituição é a desigualdade ambiental.
1.5. Saneamento da Baixada: uma questão de justiça ambiental
Ao longo da última década, percebemos que a questão ambiental tem adquirido
acentuado destaque no debate produzido no meio técnico e científico, sendo gerador de várias
abordagens, entre as quais destacamos quatro que julgamos de maior importância para nossa
discussão. São elas: (i) gerenciamento ambiental; (ii) ecologia profunda; (iii) modernização
ecológica - sustentabilidade e (iv) justiça ambiental. Tomando como referência à
sistematização produzida por Cardoso e Britto (2000) a respeito desse debate, procuramos
resgatar os elementos para nossa reflexão sobre as políticas de saneamento que se
desenvolveram na Baixada Fluminense nas três últimas décadas.
Inicialmente Cardoso e Britto (op. cit.) situam dois campos centralmente opostos: o
“gerenciamento ambiental” e a “ecologia profunda”. Em relação ao primeiro, os autores
identificam, entre outros fatores, “o princípio da intervenção pós-evento que se fundamenta
em uma visão dos problemas como ‘incidentes’ ou ‘equívocos’, a serem tratados caso a caso”.
Já em relação ao segundo, a questão central está situada na “crítica ao modo ‘industrial’ ou
‘capitalista’ de desenvolvimento, propondo alternativamente uma ‘revolução’ sobre os
hábitos, padrões de consumo e produção, modos de vida etc., fundados em uma ética
biocêntrica, que afirma os ‘direitos da natureza’ como limitadores da ação humana.”
Mais recentemente, percebemos o surgimento de uma nova abordagem sobre o meio
ambiente tendo como seu ponto de inflexão a “modernização ecológica”. As características
básicas desse modelo conceitual são:
“(i) uma concepção de que a atividade econômica sistematicamente produz problemas ambientais e que deveriam ser adotadas posturas pró-ativas em relação a regulação ambiental e controles ecológicos; (ii) (...) a irreversibilidade dos danos ambientais, da existência de situações de risco sistêmico e da imprevisibilidade da ação humana sobre o meio ambiente (...) e (iii) uma recusa de jogo zero pela adoção de práticas tipo win-win (onde todos ganham).” (Harvey apud Cardoso e Britto, 2000)
Na abordagem da modernização ecológica encontramos o conceito de sustentabilidade
que tem sua origem na Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento
(Commad) em 1984 e que, valendo-se de seus trabalhos, aponta para a necessidade de
37
formulação de um novo conceito de desenvolvimento que seja capaz de proporcionar um
equilíbrio entre o crescimento econômico e a preservação ambiental. Trata-se, antes de tudo
da construção da idéia do desenvolvimento sustentável, que fora assim definida no relatório
da Comissão:
“O desenvolvimento sustentável procura atender às necessidades e aspirações do presente sem comprometer a possibilidade de atendê-las no futuro. Longe de querer que cesse o crescimento econômico, reconhece que os problemas ligados à pobreza e ao subdesenvolvimento só podem se resolvidos se houver uma nova era de crescimento econômico no qual os países em desenvolvimento desempenhem um papel importante e colham grandes benefícios.” (Commad apud Cardoso e Britto, 1988:44)
Segundo Cardoso e Britto (op. cit.:4), as críticas ao relatório foram intensas e estavam
centradas em quatro aspectos centrais:
“desconsideração do valor da natureza e supervalorização do crescimento econômico; reconhecimento das conseqüências problemáticas do desenvolvimento, mas não de suas causas; proposta de um desenvolvimento econômico continuado em todos os lugares, tanto em países ricos quanto em países pobres, não reconhecendo a inter-relação entre pobreza e riqueza (...) e a pouca discussão sobre sistemas de poder, que mantém e agravam o crescimento econômico insustentável em todos os lugares (...)”
Desta forma, para Cardoso e Britto há uma passagem de uma abordagem com foco no
desenvolvimento sustentável para outra, tendo como centro a sustentabilidade, na medida em
que se produz uma ampliação do escopo conceitual para além daquele anteriormente definido
e que se restringia à dimensão ambiental. Na verdade, a nosso ver, a sustentabilidade adquire
aqui uma dimensão normativa, que qualifica a própria discussão sobre desenvolvimento.
Nesse sentido, identificamos, com base em Cardoso e Britto, cinco aspectos ligados à
sustentabilidade:
• sustentabilidade social, que se entende como a criação de um processo de
desenvolvimento que seja sustentado por um outro crescimento e subsidiado
por uma outra visão do que seja uma boa sociedade;
• sustentabilidade econômica, que deve ser tomada como possível através da
alocação e do gerenciamento mais eficiente dos recursos e de um fluxo
constante de investimentos públicos e privados;
• sustentabilidade ecológica, que pode ser melhorada utilizando-se das várias
ferramentas;
38
• sustentabilidade espacial, que deve ser dirigida para a obtenção de uma
configuração rural-urbana mais equilibrada e uma melhor distribuição
territorial dos assentamentos humanos e das atividades econômicas;
• sustentabilidade cultural, incluindo a procura de raízes endógenas de processos
de modernização e de sistemas agrícolas integrados que busquem mudanças
dentro da continuidade cultural.
Assim, a questão da sustentabilidade extrapola os limites do debate ambientalista
clássico e passa a ser formulada como um discurso sobre a sociedade. Desta forma, a
definição sobre sustentabilidade é produzida no âmbito do debate político que traz consigo
novos elementos, entre os quais podemos citar a distribuição desigual das condições de acesso
a recursos, sejam eles naturais, financeiros ou de poder, no interior das sociedades
contemporâneas.
O desenvolvimento desse debate faz surgir a mais recente abordagem sobre a questão
ambiental, expressa no tema da justiça ambiental. Tomando como referência David Harvey,
Cardoso e Britto (op. cit.:6) definem assim suas principais características:
(i) “uma crítica radical aos modos de distribuição do poder na sociedade, que levariam a
que determinados grupos raciais, étnicos, sociais ou culturais, fossem discriminados negativamente, ao superpor, às desigualdades a que estão submetidos originariamente, outras desigualdades no acesso aos recursos naturais ou à exposição aos problemas ambientais”;
(ii) “o enfretamento dos problemas de injustiça ambiental [que] se dá, ou através do
desenvolvimento de políticas públicas em que seja garantida a não-discriminação ou, principalmente, pelo empoderamento (empowerment) dos grupos em situação de desigualdade” e;
(iii) uma crítica a regulamentação ambiental que “não beneficiam igualmente a todos os
grupos da sociedade”, tendo em vista que “no trade-off entre o dano ambiental e compensação financeira tendem a ser reforçados os mecanismos de distribuição desigual dos custos ambientais e de acesso aos recursos naturais, ampliando as desigualdades ambientais.”
O tema da justiça ambiental vem sendo desenvolvido por vários movimentos sociais
de base local, que se articulam tanto para a defesa das condições ambientais de seus bairros
quanto pela ausência de regulamentações ambientais. Desta forma, essa abordagem acrescenta
novos contornos à dimensão social produzida no âmbito da sustentabilidade, uma vez que o
relatório da Commad, apesar de seus avanços, não reconhecia que a pobreza além de
associada ao crescimento econômico, estava também relacionada à desigualdade na
distribuição da riqueza, seja ela no âmbito nacional ou internacional. Assim, essa temática
39
contribuiu para o alargamento do debate a respeito da relação entre desigualdade e pobreza,
possibilitando a reflexão sobre a ação governamental como a principal responsável pelos
problemas ambientais, como afirmam os organismos multilaterais de desenvolvimento.
Valendo-se desse enfoque, propomos a utilização da abordagem da justiça ambiental
como referência à discussão sobre as políticas públicas de saneamento da Baixada
Fluminense, tendo em vista os seguintes elementos:
(i) a política de saneamento vista como uma política socioambiental, ou seja, o
saneamento deve ser encarado como um conjunto de ações articulado a política
ambiental, à política urbana, a política de saúde e à política cultural;
(ii) a relação entre direitos civis e preservação ambiental, o que nos leva a perceber
o saneamento como um direito de cidadania;
(iii) a desigualdade no acesso ao saneamento como expressão das desigualdades
sociais e ambientais da Baixada, de forma que os segmentos sociais mais
vulneráveis são também os que estão mais expostos aos riscos ambientais.
Assim, podemos dizer que o local onde se reproduzem as classes populares é
marcado pela degradação ambiental associada a um processo de injustiça
social;
(iv) a política de saneamento como expressão da inserção da Baixada no espaço
metropolitano e do modelo de desenvolvimento econômico e social da região.
De uma forma sintética, podemos dizer que esse enfoque nos permite identificar em
que medida as abordagens sobre saneamento na Baixada, expressas nas diversas políticas
públicas implementadas na região, conseguiram ampliar direitos, colocar na agenda a questão
das desigualdades sociais, articular-se com outras políticas de caráter socioambiental e
problematizar o modelo de desenvolvimento vigente, pensando a Baixada Fluminense
enquanto uma questão metropolitana.
Em se tratando de políticas de saneamento para a Baixada Fluminense, percebemos
que as intervenções públicas estiveram centradas em dois conceitos: saneamento básico e
saneamento ambiental. O primeiro, de caráter mais restrito, esteve no centro da ação pública
no Brasil, com mais notoriedade a partir da década de 50 quando o Estado brasileiro retoma
os serviços públicos. O conceito de saneamento básico opera com base numa intervenção
restrita ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário, não produzindo interfaces com
as demais políticas urbanas – saúde e meio ambiente, urbanização, transporte, cultura e lazer.
40
Esse enfoque se construiu, segundo seus formuladores, em decorrência da dificuldade de
articular todas as atividades inerentes ao tema, assim como pela escassez de recursos para
intervenção pública. Nesse sentido, a escolha da prioridade na água e no esgoto deveu-se aos
seus rebatimentos mais imediatos sobre os serviços de saúde (Costa, 1998:51). Na Baixada
Fluminense as intervenções de saneamento com este perfil nunca saíram definitivamente da
agenda do poder público, alternando momentos de crítica e de afirmação dessa concepção,
que teve grande presença em várias administrações, como é o caso dos governos Faria Lima,
Chagas Freitas e Moreira Franco.
Do ponto de vista da justiça ambiental, os limites dessa abordagem são claros. O
enfoque restrito aos serviços de água e esgoto do saneamento básico não é capaz de (i)
interagir com as demais políticas setoriais – principalmente com as políticas ambientais e
urbanas, (ii) colocar o saneamento no campo dos direitos de acesso ao meio ambiente,
objetivando a ampliação dos direitos civis e da cidadania; (iii) enfrentar o quadro de
desigualdades sociais que marca a região, fundado no acesso desigual aos recursos
ambientais, urbanos e sociais; portanto, a melhoria do acesso aos serviços de água e esgoto,
são alcançada em meio à reprodução de outras desigualdades, como por exemplo na qualidade
do serviço; (iv) problematizar a questão do desenvolvimento a partir da inserção da Baixada
no contexto metropolitano e induzir os atores públicos e privados a um novo modelo de
desenvolvimento para a região.
De caráter mais amplo, o segundo conceito, denominado saneamento ambiental, é
construído com base na relação entre os serviços de saneamento e as políticas ambientais,
urbanas e de saúde. A poluição dos solos, das águas e do ar, a redução dos cursos d’água, a
desestabilização dos solos e a proliferação de vetores são males causados pela ausência ou
precariedade do saneamento, encontrados freqüentemente nas cidades brasileiras
(Montenegro, 1995). Especificamente do ponto de vista do abastecimento de água e do
esgotamento sanitário, esta abordagem exige um enfoque baseado em bacias hidrográficas,
permitindo a compreensão articulada dos serviços e da geografia física e social existente,
assim como uma melhor identificação dos problemas a serem enfrentados. Como se sabe, as
carências de saneamento se abatem centralmente sobre as populações de baixa renda que, não
por acaso, vivem em habitações precárias localizadas em áreas de urbanização deficientes.
Assim, o conceito de saneamento ambiental opera com uma lógica mais ampla,
compreendendo, além do abastecimento de água e esgotamento sanitário, os resíduos sólidos,
a drenagem urbana e o controle de vetores. No contexto da Baixada, políticas públicas com
esse caráter aparecem no início dos anos 80 e vão se prolongar por mais de uma década.
41
Paradoxalmente, será também o período no qual percebemos a criação de canais de
participação, o fortalecimento dos atores populares, uma agenda pública de debates a respeito
das políticas e o impacto social mais significativo das intervenções públicas na região.
Percebemos uma grande identidade entre esse enfoque e a leitura da justiça ambiental,
principalmente no que se refere a seu ponto de partida, ligado as interfaces entre os serviços
de saneamento e as políticas ambientais, urbanas e de saúde, e sua abordagem sobre as
desigualdades sociais, possibilitando a afirmação de um discurso voltado para os direitos de
cidadania.
Enfim, o saneamento na Baixada Fluminense levou muito tempo para ser reconhecido.
Os atores sociais, em especial o Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense,
deram um passo importante para que essa questão assumisse lugar de destaque na agenda do
poder público. Entretanto, podemos afirmar que direitos civis e preocupações ambientais
ainda caminham separadamente, sendo incorporados de forma fragmentada à agenda pública,
criando assim situações de conquista parcial do acesso a bens e serviços. Se planejados com
base em uma outra lógica, poderiam criar um cenário de ampliação dos direitos e de
preservação do ambiente construído, ou seja, um cenário de justiça social, enfim, justiça
ambiental.
Tendo em vista o enfoque da justiça ambiental, a nosso ver é imprescindível, portanto,
conceber a política de saneamento como um conjunto integrado de ações que extrapolam o
plano da provisão de serviços de água, esgoto e coleta de lixo e que se inserem na política de
planejamento e gestão das cidades. Nesse sentido, cumpre destacar a carência dos serviços de
saneamento como reflexo da segmentação social e da segregação socioespacial que marca a
sociedade brasileira. Para reverter esse quadro de desigualdade social é preciso pensar um
novo modelo de gestão e de planejamento urbano, capaz de instituir um conjunto de ações que
articule a função social da cidade ao direito à cidadania, no qual a função social da cidade
deve ser pensada como o uso socialmente justo e equilibrado do espaço urbano e o direito à
cidadania, como direito de acesso a bens e serviços que garantam condições de vida digna,
culturalmente dinâmica e condizente com os valores éticos humanitários, mas também como
direito dos cidadãos à informação e à participação política nos destinos da cidade.
Ao mesmo tempo, essa abordagem nos leva a afirmar a necessidade de pensar a
Baixada Fluminense como uma questão metropolitana. De um lado, a região só pode ser
compreendida na sua complexidade se inserida nas relações sociais e econômicas que fundam
a metrópole fluminense, sofrendo os impactos de um modelo de desenvolvimento urbano que
é gerador de desigualdades no acesso a bens e serviços públicos. De outro, a Baixada como
42
território é também um espaço de disputas simbólicas, sociais e políticas que definem
diferentes projetos para a região. Não é sem razão que a Baixada foi palco de grandes
investimentos do Estado nos últimos 30 anos.
1.6. Baixada Fluminense: um território, novos atores
A Baixada Fluminense é um território em disputa, marcado pela ação dos atores públicos
– estadual e municipal –, econômicos e sociais que ali vivem e produzem o cotidiano dessa
região. Marcada pela ausência de uma cultura democrática, a região é palco de grande
concentração de pobreza, onde grupos sociais (como vimos nas categorias socioocupacionais, de
tipo popular operário e popular periférico) precisam suportar a convivência num ambiente de ar e
água poluídos, produtos em geral de aterros sanitários construídos sem preceitos técnicos
confiáveis, incineradores e industriais poluentes. A Baixada Fluminense é, então, um retrato das
desigualdades socioambientais que marcam a periferia da metrópole fluminense.
O cenário produzido em anos de ocupação urbana desordenada e sob a lei da violência e
do descaso público deu origem a uma gama diversificada de discursos sobre a Baixada
Fluminense, ora de lugar perigoso, ora de lugar da pobreza, e, igualmente, a ações distintas que
buscavam se legitimar no enfrentamento dos problemas identificados como principais. Aqui
devemos destacar o papel dos movimentos sociais, em especial das associações de moradores e
da Igreja Católica na construção de um novo discurso sobre a Baixada, que, partindo da
afirmação de direitos da cidadania, denunciava o abandono da região e ao mesmo tempo
reivindicava melhoria nas condições de vida da população mediante investimentos públicos.
O grau de exclusão e conflitos sociais que marcam esse território fará com que, por volta
da metade dos anos 70, a Baixada passe a integrar progressivamente as propostas dos principais
partidos e dos políticos, bem como a agenda pública do governo do Estado, que de forma
contínua começa a realizar investimentos na região. A desconcentração dos recursos públicos em
direção à periferia da metrópole fluminense se torna um fato.
Assim, no contexto de desigualdades sociais que descrevemos anteriormente, dois fatores
vão marcar significativamente a história das políticas públicas na Baixada Fluminense no
decorrer das três últimas décadas:
Primeiro, a Baixada Fluminense, até mesmo pela gravidade dos seus indicadores sociais
no contexto metropolitano, progressivamente passa a ser um emblema nas disputas eleitorais dos
diversos grupos políticos, com o objetivo de expressar o compromisso social dos diversos
43
governos com o social. Desta forma, a Baixada entra na agenda política eleitoral e passa a ser
palco de diversos investimentos e projetos, sobretudo na área da política de saneamento, objeto
do nosso estudo, mas também em outras áreas, tais como política urbana, de saúde, educação etc.
Com efeito, constatamos, que ao longo das três últimas décadas várias foram às intervenções
públicas na região, o que revela uma desconcentração dos recursos em sua direção, totalizando
investimentos numa ordem superior a um bilhão de dólares. Diante da grandeza desses
investimentos, é inegável a importância que as políticas de saneamento assumiram nas disputas
políticas e simbólicas travadas na região.
Estaríamos diante de um novo padrão de política pública de saneamento? Nossa
análise no decorrer do terceiro capítulo vai tentar discutir as características, os impasses e os
limites da política pública de saneamento que foi implementada na região, buscando
identificar seu padrão, se focalista ou universalista, e sua efetividade nos resultados
alcançados. Além disso, tendo em vista o enfoque da justiça ambiental, procuraremos discutir
se esta foi capaz de articular outras políticas setoriais e constituir esferas públicas nas quais os
diferentes atores interagiriam com o objetivo de pensar o modelo de desenvolvimento da
região. Nessa direção, caberia também refletir se estaríamos diante de um novo padrão de
política pública socialmente mais justo e promotor da cidadania. As mudanças em curso
estariam constituindo uma nova Baixada, mais heterogênea socialmente, rompendo com o
estigma de local de pobreza e miséria que a caracterizava? Sem dúvida, indagações de difíceis
respostas no âmbito deste trabalho, mas que iluminam nossas reflexões.
Antes de prosseguir, porém, cabe ainda chamar atenção para a relevância de um
segundo fato. Os grandes investimentos públicos na área de saneamento que serão realizados na
Baixada Fluminense vão ser acompanhados, e de certa forma pode-se dizer que são
condicionados, pela emergência de um ator político organizado em torno dessa temática, o
Comitê Político de Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da Baixada Fluminense. Tendo sua
origem nas federações de associações de moradores que marcam a região12, o Comitê vai se
constituir em uma das principais organizações populares do Estado do Rio de Janeiro.
Como veremos no próximo capítulo, o Comitê rompeu com o obstáculo de desencadear
mobilizações populares em torno de um tema que traz um conjunto de questões técnicas de
12 Na Baixada Fluminense existem sete entidades municipais, sendo seis federações municipais e um conselho de entidades: MAB - Federação das Associações de Moradores de Nova Iguaçu; MUB - Federação das Associações de Moradores de Duque de Caxias; ABM - Conselho de Entidades Populares de São João de Meriti; Femab - Federação das Associações de Moradores de Belford Roxo; Femanq - Federação das Associações de Moradores 12 Na baixada Fluminense existem sete entidades municipais, sendo seis federde Queimados; Famjep - Federação das Associações de Moradores de Japeri e Fammesq - Federação das Associações de Moradores de Mesquita.
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difícil apreensão popular, construindo um discurso sobre saneamento como um discurso de
direito sociais, o que possibilitou a articulação regional e a superação de uma visão
fragmentada a respeito dessa temática. A emergência desse sujeito ampliou os atores que
tradicionalmente negociavam as políticas para a região dentro de um modelo clientelista;
permitiu a constituição de canais de interlocução com o poder público capazes de legitimar
socialmente as demandas populares; gerou uma disputa na cena pública pela formulação de
uma nova agenda política de intervenções públicas e garantiu a participação popular no
processo de implementação das políticas de saneamento que se desenvolveram na Baixada
Fluminense entre 1984 e 2000.
O Comitê de Saneamento da Baixada emerge em meio a formação dos novos
movimentos sociais urbanos e se legitima socialmente não apenas pela justeza de suas
reivindicações, mas sobretudo pela sua capacidade de traduzir a luta pelo saneamento numa
luta por direitos de cidadania, articulando ao seu redor um leque cada vez mais amplo de
movimentos, que de forma particular – mobilizações de massa – expressavam a disputa pelo
sentido da Baixada Fluminense. O Comitê adquiriu grande parte de sua legitimidade ao
interagir propositivamente com os órgãos públicos estaduais na construção de políticas
públicas de saneamento para a região. Assim, conseguiu não apenas assegurar a construção de
uma agenda pública de saneamento, como também contribuir para a definição do modelo de
política a ser aplicado. O conceito de saneamento ambiental emerge na Baixada Fluminense
como produto da ação política desse ator que, com base nesse conceito, vislumbrava a
possibilidade de intervenções públicas mais amplas e, portanto, com maior capacidade de
enfrentamento dos bloqueios que impediam a construção da cidadania.
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Capítulo 2 – A emergência de um ator político: a experiência do Comitê Político de Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da Baixada Fluminense
O presente capítulo tem como foco o surgimento do principal protagonista da sociedade
no debate e na proposição de políticas públicas de saneamento para a Baixada Fluminense. Uma
articulação composta de entidades federativas municipais13, fundada em 1984 com o nome de
Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense – atualmente Comitê Político de
Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da Baixada Fluminense – se constitui no movimento
social urbano de maior destaque das duas últimas décadas na região.
Esse ator político é formado no contexto no qual vimos surgir na década de 70 um
conjunto de lutas urbanas que expressavam as contradições vividas no interior dos bairros,
oriundas de um modelo econômico gerador de desigualdades sociais no espaço da cidade. Tal
como nos grandes centros urbanos, na Baixada Fluminense, as associações de moradores, em
grande medida impulsionada pela Igreja Católica progressista, são as principais responsáveis
pela denúncia de abandono da região, assim como pelo surgimento de um novo discurso sobre a
Baixada, destacando o grande problema social que a caracteriza.
Assim, buscamos neste capítulo fazer uma análise histórica e contextualizada do Comitê
da Baixada como um ator político que produziu a respeito da temática de saneamento um
discurso de direitos sociais e coletivos, capaz de vencer os obstáculos de um tema técnico e
desencadear mobilizações populares, constituindo-se num interlocutor político privilegiado do
Estado e intervindo de forma decisiva nas mais diversas políticas públicas de saneamento que se
desenvolveram na Baixada Fluminense nos últimos 20 anos. A rigor, o Comitê Político de
Saneamento da Baixada Fluminense pode ser inserido no contexto dos movimentos populares
urbanos surgidos nas décadas de 70 e 80, que se tornaram referência para a reflexão teórica
identificada com o paradigma dos novos movimentos sociais, o que nos leva inicialmente a
recuperar a discussão sobre suas principais características, sem ter a pretensão de esgotar a longa
reflexão teórica a cerca dos mesmos.
Por fim, ainda neste capítulo buscaremos discutir dois aspectos relacionados ao Comitê
de Saneamento da Baixada. O primeiro diz respeito ao fato de o surgimento desse ator estar
marcado pela construção de um novo sentido simbólico e político para a Baixada Fluminense, no
qual se afirmam os direitos de cidadania e em que tiveram um papel de destaque alguns agentes
externos, em especial a Igreja Católica, os partidos políticos de esquerda e a assessoria da ONG 13 Atualmente o Comitê é composto pelas federações de associações de moradores de Nova Iguaçu (MAB), São João de Meriti (ABM), Duque de Caxias (MUB), Belford Roxo (Femab) e Queimados (Femanq).
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FASE. O segundo aspecto parte da hipótese de que a emergência da agenda política sobre
saneamento foi resultado da construção de uma esfera pública constituída tanto pela formação do
ator social – o Comitê de Saneamento – como pela intervenção do governo estadual, por meio de
um projeto de modernização promovido pelo seu corpo técnico e político que assume a
administração.
2.1. O contexto dos novos movimentos sociais
O final da década 70 é um momento de grande importância política para a sociedade
brasileira. Ainda sob um regime autoritário, vimos surgir na cena pública um vasto conjunto de
movimentos sociais, assumindo formas e conteúdos bastante diferenciados, mas que tinham em
comum a reivindicação de direitos (Sader, 1988). Esse comportamento era desafiador para os
padrões políticos vigentes, todavia, era a representação de práticas sociais que estavam sendo
construídas num cotidiano de desigualdades sociais que marcavam as cidades brasileiras. Os
movimentos que emergem nessa conjuntura apresentam uma nova identidade coletiva assim,
como uma leitura muito particular da realidade vivenciada, manifestando-se com o objetivo de
demonstrar o abandono ao qual estão submetidos e reafirmar a necessidade da organização como
instrumento de conquista de melhores condições de vida. Uma característica fundamental desses
movimentos é a manifestação do seu caráter coletivo, em que sua institucionalização não está
coloca a priori; ao contrário, o que se valoriza é a sua dimensão popular (Silva e Ribeiro, 1985).
Nessa perspectiva, identificamos como centro de sua intervenção três elementos básicos: (i) a
luta pela democratização da sociedade brasileira; (ii) a transformação de carências em
necessidades e (iii) a construção de novas identidades socioculturais nos espaços onde estão
inseridos. Nesse paradigma “o Estado é tomado como interlocutor privilegiado, e o
transformador das manifestações coletivas grandemente enfatizado.” (Ibid.:8)
Essa década também pode ser considerada um marco na produção teórica da sociologia
urbana, não só no Brasil, mas também na América Latina, com a emergência de uma nova
concepção, identificada como paradigma dos Novos Movimentos Sociais - NMS. A extensa
produção desse período demonstra não só novos atores em cena14, como também novas
dinâmicas sociais. Os novos movimentos populares trariam consigo novas práticas sociais
elaboradas com base em um cotidiano popular, que se traduziriam numa releitura dos modelos
14 O título do livro de Eder Sader (1988) “Quando Novos Atores Entraram em Cena” é bastante ilustrativo dessa produção. Nele, o autor chama a atenção para as novas características dos movimentos sociais emergentes nesse período.
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anteriores de organização popular marcados pela centralidade em um determinado sujeito, com
hierarquias internas claras e com muito pragmatismo nas suas ações. Essa forma clássica seria
então substituída por movimentos que apareceriam politicamente a partir de “suas linguagens,
pelos lugares onde se manifestavam, pelos valores que professavam, como indicadores da
emergência de novas identidades coletivas” (Sader, 1988:27).
Encontramos em Gohn (1997) uma boa sistematização acerca do debate sobre os novos
movimentos sociais, o que, para os nossos objetivos, nos leva a tomar seu estudo como
referência nesse tema. A autora parte da reflexão sobre os limites do paradigma tradicional
marxista, que, segundo ela, não tinha no seu referencial teórico elementos suficientes para
explicar a “ação dos indivíduos e, por conseguinte, a ação coletiva da sociedade contemporânea
como efetivamente ocorria.”15 (Ibid.:122) Para Gohn, o marxismo trabalha com a ação
coletiva valendo-se das estruturas e da ação de classe, portanto, operando com base em
questões de ordem macro da sociedade. Nesse sentido,
“ele não daria conta de explicar as ações que advém de outros campos, tais como o político e, fundamentalmente, o cultural; o que ocorre é uma subjugação desses campos ao domínio do econômico, matando o que existe de inovador: o retorno e a recriação do ator, a possibilidade de mudança a partir da ação do indivíduo independente dos condicionamentos das estruturas.” (Ibid.)
Partindo dessa premissa, os autores identificavam nos novos movimentos sociais a
eliminação do papel “de sujeito histórico redutor da humanidade, predeterminado, configurado
pelas contradições do capitalismo e formado pela ‘consciência autêntica’ de uma vanguarda
partidária.”(Ibid.) Nesse sentido, a política deixa de ser compreendida de forma linear, sendo
vistas como “em que há hierarquias e determinações” (ibid.).
A partir do estudo de Gohn, é possível destacar algumas das principais características
desse paradigma identificado como novos movimentos sociais (NMS). Em síntese, podemos
dizer que estava fundado: (i) em um modelo teórico que tem por base a questão da cultura, como
um instrumento articulador de um novo discurso acerca de novas práticas culturais; (ii) na
negação do marxismo como campo teórico capaz de explicar as novas práticas sociais; (iii) na
identificação de uma base social ampla e difusa, sem hierarquias, em constante mobilização de
massa, que denuncia as suas condições de vida e trabalha com valores comunitários e de
solidariedade; (iv) na valorização da política, que ganha centralidade na análise da ação
15 É necessário destacar que a autora se refere ao marxismo na sua corrente tradicional, ortodoxa, sublinhando que outras categorias básicas oriundas do marxismo, tais como a ideologia, tiveram forte influência sobre a fundamentação do conceito de cultura, central na reflexão dos novos movimento sociais. (Gohn, op. cit.:122)
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comunitária e que passa a ser compreendida como as relações de poder na sociedade e (v) na
valorização da dimensão coletiva manifestada nas ações desses movimentos que constituíam sua
própria identidade.
Essa corrente teórica identificava, assim, o surgimento de novas dinâmicas oriundas
dos movimentos sociais que estavam emergindo e ocupando a cena política. Tomando como
referência a obra de Enrique Laraña, Hank Johnston e Joseph R. Gusfield (apud Gohn, op.
cit.:127), Gohn assinala oito características básicas dos novos movimentos sociais. São elas:
1. Não há uma clara definição do papel estrutural dos participantes. Há uma
tendência para a base social dos NMS transcender a estrutura de classes.
2. As características ideológicas dos NMS apresentam nítido contraste com os
movimentos da classe trabalhadora e com a concepção marxista de
ideologia, como elemento unificador e totalizador da ação.
3. Os NMS abrangem a emergência de novas dimensões da identidade.
4. A relação entre o individual e o coletivo é obscurecida.
5. Os NMS envolvem aspectos pessoais e íntimos da vida humana.
6. Há o uso de táticas radicais de mobilização de ruptura e resistência que
diferem fundamentalmente das utilizadas pela classe trabalhadora, como a
não-violência, a desobediência civil etc.
7. A organização e a proliferação dos NMS estão relacionadas com a crise de
credibilidade dos canais convencionais de participação nas democracias
ocidentais.
8. Os NMS organizam-se de forma difusa, segmentada e descentralizada, ao
contrário dos partidos de massa tradicionais, centralizados e burocratizados.
Essa corrente chama a atenção para uma das características mais marcantes desse ator
social: os novos movimentos sociais se desenvolvem trilhando um caminho de grandes
mobilizações a fim de assegurar direitos sociais e de cidadania. Desta forma, a cena urbana deste
período será marcada por várias manifestações de massa e pela utilização de alguns espaços da
grande mídia para pressionar o Estado, visando à reversão do quadro de acesso a bens e serviços
públicos.
Um outro aspecto importante para o nosso debate diz respeito à construção da identidade
dos NMS. Tomando novamente como referência Gohn, veremos que a construção da identidade
coletiva se dá num processo que envolve três mecanismos: “a definição cognitiva concernente a
49
fins, meios e campo de ação; a rede de relacionamentos ativos entre os atores que interagem,
comunicam-se, e influenciam uns aos outros, negociam e tomam decisões; e finalmente a
identidade coletiva requer um certo grau de investimento emocional, no qual os indivíduos
sintam-se, eles próprios, parte de uma unidade comum.” (Melluci apud Gohn, op. cit.:159)
Ainda no debate sobre a identidade dos NMS, cabe destacar a contribuição teórica de Habermas
que “atribui dois papéis aos movimentos sociais: eles são vistos como elementos dinâmicos no
processo de aprendizado e formação da identidade social; e os movimentos com projetos
democráticos têm potencial para iniciar processos pelos quais a esfera pública pode ser revivida”.
(Habermas apud Gohn, op. cit.:139) A nosso ver, partindo dessa visão de Habermas, os NMS se
constituem em elementos dinâmicos do processo de criação e ampliação dos espaços de
participação da sociedade civil.
Quanto ao Estado, também podemos observar novas leituras. Os novos movimentos
sociais fariam a passagem de um estágio de cooperação para um de negociação política de seus
interesses com base em suas reivindicações. Desta forma, o Estado deixava de ser um ente
monolítico e opaco (Silva e Ribeiro, 1985), para se transformar num espaço de constante disputa
em relação ao seu sentido. Os NMS abririam a possibilidade de transformação e, ao mesmo
tempo, de ampliação do papel do Estado, na medida em que investiriam no sentido de sua
democratização. A visão desses movimentos seria mais ampla e inserida num processo político
marcado por relações que, até a sua formação e entrada em cena, estavam restritas a uma parcela
da sociedade, composta sobretudo pelas elites políticas locais. Ao mesmo tempo, a emergência
desse ator é fundada na luta pela ampliação da participação popular, fortemente influenciado
pelo ideário da democracia, e na construção de uma nova identidade social.
Dois outros aspectos são importantes nessa breve contextualização, a questão do
cotidiano e a da cultura. Duas categorias básicas, sendo freqüentemente utilizadas nas
abordagens sobre os NMS valendo-se de um recorte fenomenológico que, segundo Gohn (op.
cit.:136), tem os seguintes pressupostos: “(i) abordagem subjetivista dos fenômenos; (ii) a
importância da consciência dos indivíduos no questionamento cotidiano da vida social; (iii)
busca da intencionalidade da consciência e (iv) a importância da experiência na vida dos
indivíduos, gerando hábitos e atitudes cognitivas”. Em síntese, para a autora “a fenomenologia
tenta tornar explícita a consciência daquilo que está latente na vida cotidiana, mas que se
encontra dissimulado. O entendimento da vida cotidiana não deve ser a mera aceitação do senso
comum, mas a busca dos significados sociais dos fenômenos que servem para configurar os fatos
cotidianos.” (Ibid.:137)
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A nosso ver, os elementos teóricos dos NMS nos possibilitam entender o surgimento e as
principais características do Comitê Político de Saneamento da Baixada. Como veremos, o
Comitê é um movimento social marcado: (i) por uma base social plural, organizada em torno dos
movimentos de associações de moradores, mobilizada por uma problemática do cotidiano, qual
seja, a ausência dos serviços e equipamento de saneamento; (ii) pela construção de uma
identidade fundada na união dos moradores e no direito à cidadania, ressaltando e valorizando a
cultura popular e o surgimento de um ator coletivo; (iii) por uma concepção de autonomia do
movimento social em relação ao Estado e pela necessidade de representar os interesses populares
na esfera pública, mediante a definição das políticas de saneamento e (iv) pelo ideário da
participação popular na construção de uma sociedade justa e democrática.
2.2. O surgimento dos MPUs na Baixada Fluminense: a construção do discurso em torno do saneamento básico
Tendo como referência temporal a década de 70, identificamos um aumento crescente
da organização popular, o surgimento de novos movimentos populares urbanos e a
emergência de um discurso sobre a Baixada Fluminense que denunciavam o abandono da
região. Até o golpe militar de 64, as categorias mais comuns de movimentos sociais existentes
na Baixada Fluminense eram de base operária (movimento sindical) e popular (associação de
moradores). Em ambos os casos, sua existência estava diretamente ligada à conjuntura
política marcada por uma democracia populista de massa, em que as organizações populares
estavam sob controle do Estado (Bernardes, 1983). Os centros pró-melhoramentos e as
associações de moradores cresciam como forma de organização popular, na medida em que se
transformavam em canais efetivos de reivindicação de demandas por equipamentos e serviços
urbanos para os bairros populares. Em 1960, o 1º Congresso de Associações de Moradores
que se tem registro é realizado no município de Nova Iguaçu, tendo como tônica dos debates
o abandono da região, manifestado na ausência de serviços básicos, além da necessidade de
organização da população como forma de melhorar as suas condições de vida. Para
Bernardes, nesse período a organização popular ainda era muito frágil e muitas vezes
cooptada pelos políticos da região.
Com o advento do golpe militar de 1964, há uma ruptura com o cenário político anterior,
uma vez que a experiência populista em curso na região é suplantada por um modelo político que
tinha como característica central o autoritarismo. Não obstante, a Baixada Fluminense continua
crescendo, na medida em que os fluxos migratórios caminham em direção dessa periferia que, no
contexto de empobrecimento do proletariado, aparece como espaço possível para sua
51
reprodução. Nesse sentido, a região vai aos poucos se caracterizando como um espaço
metropolitano que concentra uma mão-de-obra barata, capaz de atender aos interesses da
indústria e da construção civil, além da área de serviços que crescia na capital (ibid.).
O golpe militar desarticulou uma parcela significativa da organização de base que estava
sendo construída na região, pois, em razão de seu caráter repressivo, perseguiu várias lideranças
populares e sindicais, reprimiu movimentos de caráter reivindicatório com inserção popular e
cassou as liberdades civis de organização. O resultado mais imediato no que tange à organização
de base na Baixada Fluminense foi a desarticulação dos centros pró-melhoramentos de bairros
(Oliveira, 1988).
A partir da segunda metade da década de 70 assistimos ao ressurgimento dos
movimentos populares, quando o cenário urbano sofre uma alteração em relação à década
anterior. O crescimento populacional, aliado à falta de investimentos públicos, gera um quadro
de agravamento dos problemas sociais na região. Os recursos públicos continuam nesse período
concentrados no principal núcleo da metrópole fluminense. A Baixada Fluminense, na qualidade
de espaço periférico, tem intervenções pontuais, geralmente concentradas nos centros de seus
municípios e capturadas pelos interesses políticos e eleitorais que dominam essas cidades.
Nesse cenário de aprofundamento das contradições urbanas, os movimentos sociais
retomam a sua articulação com base na ação política de dois atores externos, a Igreja Católica e
os partidos comunistas, onde se destacam o PCB e o PC do B. É nesse período que se inicia a
elaboração de um discurso sobre a Baixada Fluminense. Diante da necessidade de denunciar o
abandono da região e fortalecer a organização popular como um instrumento de pressão política
contra o regime autoritário, o discurso da Igreja Católica e dos partidos de esquerda, apesar das
suas diferenças internas, realçavam a Baixada como lugar de moradia dos trabalhadores e
expressão da exploração de classe responsável pela produção da pobreza e da miséria. A
alternativa proposta estava centrada na construção de uma identidade social de classe que
possibilitasse a organização dos trabalhadores no lugar de moradia objetivando a transformação
dessa realidade. Deste modo, esses agentes se lançam na ação de impulsionar a organização de
associações de moradores por bairros, centrando sua luta nas demandas concretas,
principalmente no que se refere à saúde e ao saneamento básico.
Em que pese a importância desempenhada pelos partidos de esquerda, a nosso ver a
Igreja Católica progressista na Baixada Fluminense teve papel preponderante na mobilização da
população, contribuindo para que surgissem na região várias mobilizações urbanas que se
traduziam em resistência e denúncia ao regime autoritário. O discurso baseado na fé e política e
as comunidades eclesiais de base - CEBs merecem destaque nesse processo, engajando padres
52
progressistas, leigos e militantes de esquerda que encontraram na igreja um espaço de reunião
com o “povo”, uma vez que os outros canais de contestação ao regime autoritário estavam
desmantelados, com suas lideranças presas ou exiladas. É nesse contexto que emergem uma
prática de organização de base e um “discurso popular” na Baixada, na contra-mão das estruturas
de poder que se estabelecem na região a partir das elites locais que dominam o espaço público
por meio da coação, da violência e do clientelismo (Kowarick, 1987).
Na verdade, podemos identificar na história do movimento popular urbano da Baixada
Fluminense desse período traços e características similares ao surgimento daquilo que a literatura
denominou como os novos movimentos sociais urbanos (Sader, 1988; Gohn, 1997), que se
difundiam em outras cidades brasileiras16. Para Sader (op. cit.), nesse contexto, o caráter da ação
proposta interagia com um cotidiano marcado pela ambigüidade entre o conformismo e a
resistência, o que vai gerar uma “consciência fragmentada” da cultura popular. Novas
elaborações e novas matrizes discursivas sobre as estruturas de poder vigentes na sociedade vão
gerar novos lugares e, conseqüentemente, novos atores. Assim, na Baixada Fluminense,
podemos dizer que a busca em construir uma percepção crítica das causas e conseqüências dos
problemas sociais e da dominação política que marcam a região foi a tônica da ação da Igreja
Católica progressista.
O resultado da mobilização da estrutura da Igreja nesse processo foi a disseminação em
larga escala de organizações de base que, no âmbito do bairro, engendraram processos políticos
novos, valendo-se de uma identidade sociocultural renovada, que se traduzia na sua capacidade
de ler e interpretar a realidade na qual estava inserido e, a partir daí, desenvolver no âmbito local
ou regional ações que tivessem por objetivo transformá-la.
Em relação ao papel dos partidos políticos no ressurgimento do movimento social na
Baixada Fluminense, vale destacar sua participação ativa em São João de Meriti, na formação de
algumas associações de moradores (Oliveira, 1988), e em Nova Iguaçu, no trabalho de saúde
desenvolvido por quatro médicos comunistas, por intermédio da Cáritas Diocesana de Nova
Iguaçu, objetivando realizar “pesquisas sobre as condições de saúde, água e saneamento e
discutir com os moradores esses problemas.” (Bernardes, 1983) No distrito de Belford Roxo,
vamos encontrar um outro pequeno grupo de médicos ligados ao PC do B que vai desenvolver
um trabalho mais diretamente relacionado à temática de saneamento, articulando-se com as
associações de moradores e as igrejas da região.
16 Para uma análise mais aprofundada dos movimentos populares urbanos no período de 1964 a 1988 no Estado do Rio de Janeiro, ver Porto (1995).
53
Nesse contexto, o tema do saneamento vai aos poucos sendo elaborado pelos atores
populares desse período – associações de moradores, CEBs e partidos comunistas –, na medida
em que as enchentes eram entre os problemas urbanos (i) o que mais afligia a população da
Baixada Fluminense17; (ii) o que melhor traduzia, ao lado da saúde, a crítica à espoliação urbana
(Kowarick, 1979) e seus impactos na cidade e; (iii) o que mais gerava descontentamento e as
mobilizações de massa. As enchentes eram nesse período a calamidade pública que denunciava a
ausência de serviços de saneamento que atingia o conjunto dos moradores da região.
Desta forma, as enchentes se traduziam no problema mais sensível ao conjunto da
população que ficava vulnerável diante das chuvas que se abatiam na região e que inundavam
suas residências danificando seus utensílios, além de lhe causar problemas de saúde, tendo em
vista que, junto com as águas das chuvas, entrava nas suas residências o esgoto sanitário, já que
não havia rede de esgoto. Neste sentido, combater as enchentes era a forma que a população
entendia para evitar que suas residências, e conseqüentemente seus bairros, fossem
cotidianamente afetados pelas chuvas.
A passagem de uma ação política centrada nos efeitos – as enchentes – para o
enfrentamento das causas – a ausência de saneamento – é um processo que se estende por mais
de uma década de politização das lideranças que experimentaram diversas formas de diálogo e
de pressão tendo por objetivo a solução dos problemas, ainda recortados por uma leitura muito
limitada da solução: “Nos movimentos de bairros, a reivindicação saneamento/saúde se
explicitava enquanto ‘manilhamento’ e ‘posto de saúde/hospital público’ (...) em meados da
década de 70”. (Oliveira, 1988:78) Várias foram as reuniões na extinta Sanerj, ofícios e abaixo-
assinados, assim como manifestações locais que denunciavam a situação a que estavam
submetidos. Essa experiência de luta, de poucos sucessos do ponto de vista da intervenção do
Estado ou das prefeituras municipais, aos poucos foi encontrando espaços mais amplos onde
poderia ser refletida e, sobretudo, fortalecida sob a ótica de sua organização. Assim, novas arenas
foram sendo produzidas e com elas novos elementos foram sendo incorporados a fim de se
pensar o conteúdo da ação política proposta. Na Baixada Fluminense vimos surgir o MAB -
Movimento de Amigos de Bairros, de Nova Iguaçu; a ABM - Amigos de Bairros de Meriti, de
São João de Meriti e o MUB - Movimento União de Bairros, de Duque de Caxias, que foram
iniciativas das associações de moradores com o intuito de ampliar a sua organização e,
conseqüentemente, a sua força de pressão junto ao poder público. 17 A hierarquização dos problemas urbanos mais sentidos pela população de Nova Iguacu entre 1964 e 1980, produzida por Bernardes através do Jornal Correio da Lavoura, indica-nos a densidade do problema, onde dos178 bairros existentes em Nova Iguaçu, 101 (57%) assinalavam o saneamento como o principal problema urbano do município. (Bernardes, 1983:70).
54
As federações de associações de moradores foram na década de 80 os principais pólos de
aglutinação da crescente politização da temática do saneamento – ainda que fragmentada
conceitualmente e dispersa nas suas ações – verificada na década anterior, bem como as
principais responsáveis pela construção de uma nova leitura sobre o problema. Nesse processo
de construção de um novo discurso que vai emergindo de baixo para cima, cabe destacar o papel
desempenhado pela assessoria de organizações não-governamentais. Destaca-se aqui o papel da
ONG FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), que a partir do final
da década de 70 inicia seu trabalho na região, sendo uma das principais organizações no fomento
da articulação das federações em torno do Comitê de Saneamento, e na capacitação das suas
lideranças, papel este que será desempenhado até o presente momento.
Crescentemente para as federações, o saneamento passa a ser um conjunto integrado de
ações nas áreas de abastecimento de água, coleta de esgoto e coleta de lixo articulando toda a
região, na medida em que o problema atingia indiscriminadamente todos os municípios da
Baixada Fluminense. Esses novos atores não apenas ampliam o conceito de saneamento, como
buscam, por meio de seu discurso, colocar no debate dois elementos até então distantes do seu
cotidiano, o direito à participação nas decisões governamentais e o saneamento como um direito
fundamental para a população, enfim, como um direito de cidadania..
As federações das associações de moradores tiveram, nesse sentido, um papel importante
na transformação da necessidade sentida pelo conjunto da população em reivindicação, conforme
apontado por Silva e Ziccardi (1979:11): “a reivindicação é somente um indicador de
necessidades sociais historicamente determinadas, e se convertem em reivindicações justamente
quando algum agente social as transforma em problema social – sejam agentes da sociedade
civil, seja o próprio poder público, sejam seus próprios protagonistas.”
A consolidação desse processo vai ocorrer com a criação em 1984 do Comitê Político de
Saneamento da Baixada Fluminense. A mês de novembro de 1983 se revelaria de grande
importância no processo de inserção desse novo ator no debate sobre as políticas de saneamento
na Baixada Fluminense, com a organização de duas passeatas em torno da palavra de ordem
“Saneamento Já”. Nos referimos à passeata de Vilar dos Teles até o Centro de São João de
Meriti, com aproximadamente 1.000 pessoas, e à manifestação da Central do Brasil até o Palácio
Guanabara, além do encontro marcado com o governador Leonel Brizola em Nova Iguaçu com a
presença de mais de 5.000 pessoas. Apesar da ausência do governador, esse encontro serviu de
elemento mobilizador e de construção da unidade sobre o movimento que se constituía. Esses
dados apontam para um cenário de alargamento da participação popular e unidade de ação
política a respeito do tema saneamento. A luta pelo saneamento começa a ganhar as ruas e um
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contingente cada vez maior de entidades de moradores começa a ver nessa temática uma
possibilidade de ampliar seus espaços de organização e conquista para as suas demandas.
Essas primeiras incursões públicas e interlocução com o poder público produziram uma
animação ainda maior na base dos movimentos. Ficou evidente a importância da mobilização e
da organização popular como instrumentos fundamentais para a conquista de melhores
condições de vida. A resposta do governo estadual às reivindicações consubstanciadas na palavra
de ordem “Saneamento Já” foi o Plano Especial de Saneamento para Baixada Fluminense,
também conhecido como Plano Global de Saneamento.
Assim, a história da luta pelo saneamento até o início dos anos 80 foi marcada pela
construção de um discurso sobre a Baixada Fluminense, que se traduzia na apresentação da
região como um problema social, manifesto da espoliação urbana e da desigualdade social. Um
outro traço importante foi a construção coletiva de uma percepção crítica do cotidiano,
impulsionada sobretudo pela Igreja Católica, que acabou por fomentar a organização de um
amplo conjunto de movimentos, que na Baixada Fluminense assumiram a forma de associação
de moradores. A nosso ver, a participação social organizada altera a lógica de relação do
cotidiano com o espaço, na medida em que pouco a pouco vai se construindo uma visão de que
os problemas não poderiam ser mais respondidos tomando-se por base as reivindicações
localizadas nos próprios bairros e que, portanto, seria necessário inseri-los em contextos mais
amplos – a idéia da Baixada – articulando a intervenção à ação política junto ao Estado.
A formação das federações municipais de associações de moradores encerra um primeiro
ciclo do movimento social acerca da luta de saneamento, onde três aspectos são importantes: (i)
os passos dados em direção à transformação das necessidades em reivindicações e/ou carências
em necessidades, fortalecendo as organizações de base e criando uma unidade de ação política na
região por meio de amplas mobilizações de massa; (ii) a demonstração da necessidade de pensar
políticas públicas para a Baixada que fossem capazes de reverter o baixo padrão de acesso aos
serviços de saneamento na região e (iii) a incorporação da temática de saneamento numa
perspectiva mais abrangente e, conseqüentemente, mais articulada: abastecimento de água,
esgotamento sanitário e coleta regular de lixo, formando o tripé do conceito de saneamento
trabalhado inicialmente pelas federações municipais. Esse contexto é gerador do segundo ciclo
de politização e ampliação do conceito de saneamento. A luta social cresce substancialmente na
Baixada Fluminense e com ela vimos surgir o Comitê Político de Saneamento como
protagonista, o que inaugura um segundo ciclo do movimento pelo saneamento na região.
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2.3. A formação do Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense: um novo ator entra em cena
Tomando como referência a análise sobre os movimentos populares urbanos realizada
por Gohn (1982), podemos dizer que a formação do Comitê de Saneamento da Baixada
Fluminense é o resultado do legado histórico da luta social no país, que articulava a construção
de uma consciência crítica sobre as condições de vida à formação de espaços de solidariedade e
participação política que fossem capazes de contribuir para a transformação da realidade
concreta. Seguindo a autora, diríamos que esse movimento é articulado em torno de uma luta
social, o saneamento básico, tipicamente da sociedade civil, com uma base social bastante
heterogênea e com seus conteúdos mais diretamente relacionados à esfera do consumo.
O Comitê Político de Saneamento é o elemento catalisador de um conjunto de ações e
movimentos espontâneos, que ao longo da década de 70 realizaram várias manifestações
coletivas de reivindicação por um serviço público fundamental para a região. Compartilhando
dos mesmos objetivos que marcam os novos movimentos sociais urbanos, podemos perceber que
o Comitê de Saneamento tem o seu desenvolvimento assinalado pela transformação de
problemas locais e imediatos em “reivindicações para esferas mais amplas da realidade social”
(Gohn, 1982). É esse papel que marca o início do segundo ciclo da luta de saneamento na
Baixada Fluminense, na medida em que foi gerador de uma nova consciência sobre a
problemática do saneamento (conjunto integrado de ações) e de uma nova elaboração a respeito
das necessidades coletivas, compreendidas como comuns a todos os movimentos envolvidos
(articulação regional em torno da Baixada Fluminense).
Antes de iniciarmos a falar sobre a formação do Comitê de Saneamento, cabe ressaltar
que nos vários documentos pesquisados não encontramos registros formais (atas) indicando a sua
constituição. Todas as fontes de caráter secundário aqui utilizadas tratam desse ator como uma
articulação política de luta e representação popular em âmbito regional.
Como vimos no primeiro capítulo, o local de intervenção do Comitê de Saneamento, a
Baixada Fluminense, é um espaço metropolitano marcado por enormes desigualdades sociais,
típicas de um espaço periférico, de baixo padrão no acesso a bens e serviços urbanos. Essa
precariedade das condições de vida é um dos elementos que vai marcar os movimentos sociais
urbanos que aí surgem e exercer um papel de grande relevância nos embates políticos na região.
A emergência do Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense como um ator político
é o resultado de um processo de luta social e política travada com o poder público, em espaços
definidos por um padrão de autoridade, baseado no particularismo de procedimentos, num
contexto social de frágil articulação e mobilização, enfim, de baixo associativismo. Nesse
57
sentido, podemos dizer que a cena política desse período na região era dominada por um sistema
político de base clientelista, que estruturava a organização e o funcionamento das máquinas
públicas municipais (prefeituras) segundo seus interesses. Clientelismo, aqui entendido nos
termos propostos por Fedozzi (1997:49), “como um modo de regulação da transferência de
recursos e formas de estruturação das desigualdades sociais”, baseado em uma rede de
fidelidades pessoais e no acesso privilegiado aos centros de poder.
O Comitê surgiu com o nome de Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense. Em
1990, incorporou a dimensão ambiental, passando a chamar-se Comitê Político de Saneamento e
Meio Ambiente da Baixada Fluminense e, a partir de 1994, muda de nome pela última vez,
introduzindo a temática de habitação, chamando-se doravante Comitê Político de Saneamento,
Habitação e Meio Ambiente da Baixada Fluminense. Conhecido publicamente como Comitê de
Saneamento da Baixada, ou simplesmente como Comitê, sua composição interna era
inicialmente de representação por federação municipal de associações de moradores, sendo
posteriormente aberta à participação de outros setores organizados, inclusive partidos políticos e
parlamentares18. O Comitê se definia como:
“uma expressão viva do movimento popular na busca do reconhecimento da cidadania da população da Baixada Fluminense. São os objetivos do Comitê: (i) articular as entidades representativas dos interesses populares em torno da discussão do saneamento, habitação popular, cidadania e gestão democrática da cidade; (ii) lutar pelo saneamento entendido com um conjunto de serviços integrantes de um sistema de saúde. Este sistema é composto por: abastecimento de água, esgotamento sanitário, micro drenagem (coleta de águas pluviais), meso e macro drenagem (dragagem dos rios e canais), coleta de lixo, urbanização, reflorestamento e controle de vetores; (iii) lutar pela habitação popular e pela reforma urbana, entendidas como direito a habitar na cidade, com todos os serviços e equipamentos urbanos fundamentais para o exercício de uma vida digna e prazerosa; (iv) lutar pelo meio ambiente, entendido como o direito de acesso aos recursos naturais e construídos pela humanidade, bem como por sua preservação para as futuras gerações e (v) lutar pela gestão democrática da cidade, entendida como direito à participação popular e a criação de mecanismos de controle social das decisões governamentais.” (Comitê Político de Saneamento e Meio Ambiente da Baixada Fluminense. Tese para Plenária)19
Os vários documentos do Comitê e as entrevistas realizadas com as lideranças que
participaram desse período indicam-nos que as mobilizações de massa eram, na compreensão
dos seus protagonistas, o único caminho possível de ampliação do acesso aos serviços de
18 Para melhor compreensão desse processo organizativo, ver anexo sobre documento históricos do Comitê de Saneamento da Baixada. 19 Comitê Político de Saneamento e Meio Ambiente da Baixada Fluminense. Tese para Plenária do Comitê Político de Saneamento e Meio Ambiente da Baixada Fluminense. Nova Iguaçu, 08 junho de 1993.
58
saneamento. Essa estratégia inicia-se com manifestações públicas, em geral em frente à sede dos
governos, inicialmente municipais e, posteriormente do estado. No plano local, pelo que
pudemos perceber, as relações eram mais complexas na medida em que as prefeituras
estabeleciam um duplo movimento: primeiro, pela intervenção pública nas áreas ligadas às redes
pessoais de aliança e fidelidade ao núcleo de poder (relações de favor e clientela) e, segundo,
pelo não reconhecimento das demandas mais qualificadas que representassem a perda dos
mecanismos de exercício e controle do poder. Tais práticas são, exercidas no contexto de
malversação dos recursos públicos, comum na região.20 Diante das dificuldades apresentadas no
relacionamento entre os diferentes movimentos e as prefeituras municipais, o Comitê vai
perceber no âmbito estadual um novo espaço de interlocução, que, além de mais aberto,
propiciava um novo discurso em torno da região. Na verdade, a própria política de saneamento
era de responsabilidade do governo estadual e os problemas que afligiam a Baixada Fluminense
eram, em grande medida, de caráter supramunicipal. Estavam dados, portanto, os ingredientes
para uma ação articulada do Comitê em âmbito estadual.
A nosso ver, a fundação do Comitê Político de Saneamento é o resultado de um processo
de crescente legitimidade social conquistada pelos movimentos de massa na luta pelos serviços
de saneamento (onde mais uma vez devemos ressaltar o papel da Igreja, da FASE e dos partidos
políticos de esquerda, com destaque para o PT, PDT e Pc do B) e pela constituição de uma
aliança implícita entre o governo do estado e o movimento popular. Essa aliança tem como
marco o encontro do Comitê com o Secretário de Estado de Obras e Meio Ambiente (governo
Brizola), em 1984. As federações municipais de moradores, de forma articulada, apresentaram
um documento com várias reivindicações, onde se destacavam “maior aplicação das verbas
públicas em saneamento básico para a Baixada; prioridade dos orçamentos municipais e
estaduais para saneamento básico; participação das associações de moradores através de suas
federações nos planejamentos e projetos de obras, e aplicação de recursos de maneira integrada,
oriundos do governo municipal, estadual e federal” (Oliveira, Santos Júnior e Martinez,
1991:20).
Em relação ao governo do estado, é preciso levar em consideração a nova conjuntura
iniciada com a abertura democrática e o sufrágio universal direto para os governos estaduais e a
eleição de Leonel Brizola (PDT) para governador. Uma nova burocracia estatal, com formação
técnica e oriunda da luta contra o regime autoritário, assume a gestão da política de saneamento
com um projeto político de caráter reformista, marcado pela inversão de prioridades nos
20 Só na década de 80, dois prefeitos da região foram cassados por motivo de corrupção: Manuel Valença, de São João de Meriti, em 1985; e Paulo Leoni, de Nova Iguaçu, em 1988.
59
investimentos públicos; pela ampliação do acesso aos serviços públicos com vistas à sua
universalização e pela abertura de canais de participação democrática, ampliando a interlocução
com novos atores sociais e políticos. Tal projeto era claramente ameaçado pela dinâmica e pelos
interesses clientelistas que fundavam as relações de poder vigentes na Baixada Fluminense. Por
esse motivo, também interessava ao governo a relação com os setores organizados da população,
muitos deles ligados ao próprio partido do governador. Desta forma, podemos dizer que se
estabelece uma aliança entre essa nova burocracia técnica do estado e os novos movimentos
sociais, articulados em torno do Comitê de Saneamento da Baixada.
Essa aliança pode ser expressa no compromisso assumido pelo Secretário Estadual de
Obras e Meio Ambiente junto ao Comitê21, de elaborar um plano global de saneamento para a
região, que, em 1985, começa a ser executado com o nome de Projeto Especial de Saneamento
para Baixada Fluminense e São Gonçalo.
O Comitê Político de Saneamento propõe não apenas uma pauta de demandas, mas
também, como descreve seus próprios documentos, “canais de participação das associações de
moradores, através das federações, no planejamento e na execução das obras”, assegurando desta
forma canais de interlocução sobre a política pública na região. Em nossa opinião, esse papel do
Comitê foi instituidor de canais de negociação entre Estado e sociedade, e responsável pela
criação de uma esfera pública (O’Donnell, 1999) na qual os atores da cena local estariam se
confrontando, conflitando, negociando e disputando o padrão de política pública da região.
Nessa dinâmica, inicia-se um processo em que as demandas do movimento popular passam a ser
crescentemente incorporadas, gerando um novo discurso sobre o saneamento ambiental, não
mais legitimado apenas por seu aspecto técnico na forma de um discurso competente (Chaui,
2000), imposto de cima para baixo, sem levar em consideração os elementos do cotidiano.
Essa nova esfera se constituiu em um verdadeiro espaço de formação para as lideranças
do Comitê, que articulavam a experiência do cotidiano aos modelos técnicos que orientavam os
projetos. Nesse sentido, segundo as próprias lideranças do Comitê, em vários momentos foi
possível reorientar os investimentos públicos para que os mesmos não se perdessem segundo a
lógica de poder da região.
Com a formação do Comitê a luta pelo saneamento básico ganhou uma centralidade no
movimento organizado da Baixada Fluminense, sendo um dos elementos dinamizadores da
21 Em dezembro de 1984, realizou-se o “encontro das federações da Baixada com o Secretário Estadual de Obras e Meio Ambiente, Luiz Alfredo Salomão, na Catedral de Santo Antônio, em Duque de Caxias. Nesse encontro o Secretário se compromete com o movimento a elaborar um plano global de saneamento, e se reunir com todas as federações da Baixada.” (Oliveira, Santos Junior e Martinez, op. cit.:20)
60
organização popular na região, uma vez que trazia consigo três elementos que se articulavam
com o objetivo mais geral dos movimentos sociais desse período: melhoria nas condições de
vida; participação popular nas decisões governamentais e organização da população
considerando suas demandas como direitos de cidadania. O papel fundador e instituidor de uma
nova prática pelo Comitê merece novamente ser destacado, na medida em que soube apresentar a
reivindicação não apenas como um conjunto de demandas fragmentadas (obras), mas como uma
política pública envolvendo uma concepção de saneamento ambiental, diretrizes a respeito do
direito à universalização do acesso aos serviços como forma de combate às desigualdades sociais
e um modelo de gestão participativa e democrática. A carta enviada ao Governador Leonel
Brizola solicitando uma audiência em 1991 é ilustrativa do caráter que a luta pelo saneamento
tinha para o Comitê na perspectiva do combate as desigualdades e da ampliação dos direitos de
cidadania. Intitulado “Saneamento Básico na Baixada: direito à cidade, direito à vida”, o
documento ressalta que:
“a luta pelo saneamento básico da Baixada significa para sua população sofrida melhores condições de vida. Significa diminuir os índices de mortalidade infantil e os números de doentes; ter mais segurança no seu local de moradia; ter direito a morar com dignidade, com espaços de lazer e um meio ambiente ecologicamente saudável. Enfim, a luta pelo saneamento altera consideravelmente as desigualdades sociais impostas ao povo da Baixada Fluminense”.22
A dimensão de “direito” orienta o conjunto da ação política do Comitê na esfera pública.
Seu posicionamento manifesto em vários documentos enviados para o Estado, é afirmativo no
sentido de rompimento com a lógica clientelista, marcada pelas relações de favor que
caracterizavam a reivindicação pelo saneamento na região. Afirma-se, agora, a conquista por um
direito à cidade, um direito à vida.
O Comitê tem desde logo, em consonância com os novos movimentos sociais, o Estado
como interlocutor privilegiado da sua atuação. A negociação direta dos interesses das classes
populares junto ao Estado foi para o movimento popular da Baixada Fluminense um importante
aprendizado, pois se começou a criar uma consciência política sobre o papel que teriam os
movimentos populares, assim como esse novo ator significou uma redução da força política dos
“chefes locais”, na medida em que os movimentos e suas lideranças encontraram arenas para
apresentação e legitimação das suas reivindicações.
22 Comitê Político de Saneamento e Meio Ambiente da Baixada Fluminense. Saneamento Básico na Baixada: direito à cidade, direito à vida. Baixada Fluminense, 14 de abril de 1991.
61
No entanto, essas arenas de participação eram permeadas de muitas tensões e conflitos
ocasionados pelas diferenças políticas, pelos interesses e pelos modelos propostos. Em geral, a
tática de participação utilizada pelo Comitê era a de negociação política combinada com a
mobilização e pressão popular.
Nesse sentido, vimos ao longo da década de 80 uma sucessão de grandes eventos de
mobilização produzidos pelo Comitê combinados com encontros e seminários que amarravam as
decisões políticas na perspectiva da negociação com o Estado.23 No que tange às manifestações
de massa, estas tinham como objetivo denunciar a precariedade dos serviços na Baixada
Fluminense, mas também pressionar o poder público tendo em vista a ampliação dos
investimentos na região. Essa sucessão de eventos assume formas distintas, dependendo do
movimento popular protagonista da ação, uma vez que, muito embora o Comitê fosse o ponto de
unidade da luta e da interlocução com o poder público, as ações políticas de massa ocorriam de
forma descentralizada pelos municípios, onde as federações de associações de moradores e, em
alguns casos, a Igreja Católica realizavam manifestações com base na problemática local. Apesar
de distintas, as mobilizações de massa promovidas pelo Comitê e seus parceiros tinham em
comum a reivindicação pela ampliação da participação popular.
O primeiro espaço efetivo de participação popular no âmbito da política de saneamento do
Estado foi o GTBS - Grupo de Trabalho sobre Baixada Fluminense e São Gonçalo, que
funcionava na Cedae e era o responsável pela execução do Plano Especial de Saneamento
para Baixada Fluminense e São Gonçalo. Em 1985, esse projeto vai ser inaugurado com a
presença do Governador do Estado, de representantes do BNH e do Banco Mundial e das
lideranças do Comitê que distribuem um documento onde se assinala a importância da
participação popular.
Ao completar uma década de sua fundação, o Comitê de Saneamento já tinha se
consolidado como um protagonista de grande importância na luta pela transformação da
qualidade de vida da população da região, diante de um cenário marcado pela ausência de
canais institucionalizados de participação popular. A luta pelo saneamento, originalmente
centrada no combate às enchentes, avança em direção do saneamento ambiental, num claro
movimento de politização dessa temática, visando à superação da forma fragmentada e
dispersa como era tratada a luta pela “bica d’água e manilha” e a denúncia de uma situação de
injustiça social. Este cenário marcava o primeiro ciclo da luta pelo saneamento na Baixada
Fluminense, que avança substancialmente com a formação das federações municipais e, 23 Para um histórico dessas atividades, ver Oliveira, Santos Junior e Martinez (op. cit.).
62
sobretudo, do Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense, gerando o que
chamamos de segundo ciclo. A luta social ganha em qualidade e densidade política, na
medida em que reúne em torno de um único ator político os melhores quadros políticos e
dirigentes populares que foram forjados no ambiente da luta popular. Assinalamos a
qualificação deste segundo ciclo tendo em vista que a emergência do Comitê de Saneamento
foi capaz de reunir energias dispersas e fragmentadas para a transformação das necessidades
em reivindicações enquanto direitos (Silva e Ziccardi, 1979).
A gestão democrática da cidade era a tônica da participação, pois somente dessa forma
seria possível continuar assegurando que os investimentos públicos não fossem totalmente
capturados pelo sistema político clientelista que funda as relações de poder na região. As
mobilizações de massa, os atos públicos, caravanas e carreatas só podem ser entendidas nesse
contexto. As políticas públicas de saneamento para a Baixada Fluminense somente seriam
eficazes se fossem desenvolvidas segundo um modelo conceitual, fundado nos princípios do
saneamento ambiental, e, portanto, onde as ações estivessem integradas numa perspectiva
mais abrangente; a participação deveria ser um princípio básico onde a população deveria ser
fortalecida e o modelo técnico teria que corresponder à realidade dos sistemas instalados na
região. Na verdade, é interessante perceber a própria consciência dos atores reunidos no
Comitê sobre as formas de luta utilizadas: “as carreatas, passeatas, atos públicos, somados aos
seminários, plenárias, debates, reuniões, relatórios, documentos, cartas públicas, panfletos,
foram apenas alguns dos mecanismos utilizados em profusão na busca da conquista do
saneamento e, por conseguinte, de uma vida com dignidade.”24
Em 1986, o Comitê introduz a agenda da política pública de saneamento da Baixada na
agenda política eleitoral. A cultura da participação foi disseminada na Baixada Fluminense
como uma conquista a partir de uma dimensão de direito e, para que pudesse continuar sendo
um instrumento importante na produção da política pública, era necessário que a perspectiva
de mobilização de massa não acabasse com as primeiras conquistas junto ao governo do
Estado. Desta forma, na segunda metade da década de 80, o Comitê aprofunda as
mobilizações, fazendo uma mediação entre ações políticas de caráter geral e suas
reivindicações na política de saneamento. Nessa direção, foi um marco o debate com os
candidatos a governador do Estado do Rio de Janeiro, promovido em 1986 em conjunto com a
Famerj - Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro e realizado
24 Comitê Político de Saneamento e Meio Ambiente da Baixada Fluminense. Saneamento Básico na Baixada: direito à cidade, direito à vida. Baixada Fluminense, 14 de abril de 1991.
63
em Nova Iguaçu. O saneamento ambiental definitivamente entrava na agenda política do
Estado.
2.4. O saneamento ambiental da Baixada Fluminense na agenda política do Estado do Rio de Janeiro: uma história de conflitos, negociações e conquistas
Ao trabalharmos com a idéia de agenda política, estamos nos referindo aos temas,
concepções e posições incorporados nas políticas e projetos do Estado, resultado da sua
interação com os agentes sociais (rede de organizações sociais) e políticos (partidos,
lideranças e dirigentes públicos e privados). Tendo como referência o modelo de gestão
democrático, argumentamos que a agenda política deveria ser resultado da interação dos
diversos agentes em torno de esferas públicas articuladas ao Estado. Aqui, utilizamos o
conceito de esferas públicas apresentado por O’Donnell,qual seja de constituição de uma
multiplicidade de espaços sociais articulados pelo sistema legal, que cria um feixe de direitos
sociais e civis vinculados ao sistema político, através de uma diversidade de relações com as
diferentes arenas de lutas sociais e políticas, mobilizadas nas reivindicações, reuniões,
conflitos e negociações utilizadas nas lutas políticas. Mesmo com uma abordagem
diferenciada, Habermas (1997:92), discutindo os procedimentos da política deliberativa,
também argumenta que “a esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a
comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões”, ou seja, arena de interação entre
diferentes agentes produzindo uma agenda política. Compartilhando dessa concepção, vamos
tomar o conceito de esfera pública como uma referência na análise da relação entre o Comitê
e o Estado a respeito das políticas de saneamento para a Baixada Fluminense.
O cenário de construção de uma agenda política não pode deixar de levar em consideração
o contexto de poder da Baixada Fluminense, na medida em que se constata a existência de
elites locais que historicamente se mantêm no poder, mesmo após o processo de
redemocratização. São prefeitos, ocupam cargos públicos na máquina do Estado, dominam a
maioria das câmaras municipais e têm representação na Assembléia Legislativa e Câmara
Federal, têm vínculos estreitos com os principais grupos econômicos locais e regionais,
articulando um sistema de poder que lhes confere legitimidade política e eleitoral para
disputar os recursos públicos provenientes da intervenção do Estado na Baixada Fluminense.
Devemos destacar que a dinâmica política estadual se constitui num outro campo de forças
que, dependendo dos grupos em disputa, da correlação de forças, das alianças e do projeto
64
político de seu governante, estará mais ou menos permeável aos interesses das elites locais ou
da organização popular. Na qualidade de gestor do consumo coletivo (Nunes, 1986), torna-se
um alvo permanente de disputa pelo sentido de sua ação. Nesse sentido, as intervenções
públicas de saneamento na Baixada Fluminense, independente do perfil político do
governador, estiveram sempre recortadas por essas tensões. Além disso, devemos ressaltar o
potencial eleitoral da região, que pela sua taxa de ocupação, se constitui em um dos maiores
colégios eleitorais do Estado.
Nesse contexto, podemos dizer que a agenda política do saneamento no Estado do Rio de
Janeiro é resultado de uma clara disputa travada entre alguns atores-chave: as elites locais
que, pelos seus lugares de representação, tinham um acesso privilegiado aos núcleos de
decisão política; o movimento popular organizado em associações de bairros, federações de
associações de moradores e principalmente em torno do Comitê Político de Saneamento; e,
por fim, o próprio Estado, tanto no que se refere ao seu núcleo dirigente e ao projeto político
que este encarna, quanto à burocracia estatal que representa um papel importante nos rumos
que essas políticas assumiram concretamente. Tomando como referência esses atores,
tentamos produzir um quadro sintético (Quadro 1) que identifique as principais características
da participação social, com destaque para a atuação do Comitê na produção da política de
saneamento na agenda do Estado do Rio de Janeiro.
Como veremos no terceiro capítulo, até 1980, na Baixada Fluminense o modelo de política
de saneamento era o Planasa que estava focado em grandes intervenções de infra-estrutura –
construção da adutora da Baixada e ampliação da rede de abastecimento de água –, ao passo
que paralelamente se desenvolvia uma ampla rede clientelista de oferta de ligações
domiciliares à rede pública e manilhamento das valas a céu aberto, alimentando o sistema de
poder das elites políticas locais. Em suma, como já dissemos, esse foi o modelo clientelista de
produção da política da “bica d’água” na Baixada Fluminense. Como esse legado histórico
aliado à fragilidade dos movimentos sociais existentes até os anos 80, podemos inferir que os
investimentos na região eram em sua maioria capturados pelos interesses das elites políticas
locais, que se fortaleciam interna e externamente na medida em que conseguiam traduzir o
sistema de trocas generalizadas na região em votos. Portanto, do ponto de vista da nossa
análise, a questão é a inexistência de uma esfera pública de interação entre o Estado e os
atores sociais na definição das concepções, diretrizes, projetos para a política de saneamento
ambiental.
65
O processo de fundação das federações municipais de moradores e de articulação do
Comitê de Saneamento marca o início de um novo padrão de relacionamento entre o governo
estadual e a sociedade. No plano dos atores sociais, devemos assinalar as principais mudanças
que estão em curso nesse momento na região: (i) é o início da articulação do movimento
social no plano municipal (as federações) e regional (articulação das federações), o que gera o
embrião de um novo ator social; (ii) esse novo ator, articulado nas federações de associações
de moradores, é caracterizado pela afirmação de uma identidade política marcada pela
autonomia e pelo ideário de cidadania; (iii) esse ideário permite a formulação das
necessidades como direitos de cidadania (direito à cidade), em que as desigualdades sociais na
Baixada começam a ser elaboradas como uma questão social e (iv) a concepção de autonomia
deste ator combina uma prática de representatividade social, com ações de organização e
mobilização de massa em torno das reivindicações, com abertura e capacidade de negociação
com o poder público, para onde são dirigidas as suas propostas.
No plano do Estado, já assinalamos a mudança ocorrida com a eleição de Leonel Brizola
para governador, o que representou, entre outros fatores, a chegada ao poder de uma nova
burocracia com um projeto modernizador de Estado, marcado por uma perspectiva
integradora socialmente, universalista no acesso aos serviços e equipamentos públicos e
democratizadora das relações de poder. Formulado por lideranças do campo da esquerda, esse
projeto modernizador dependia de uma clara aliança com os setores populares desvinculados
das elites políticas que dominavam as máquinas clientelistas na Baixada Fluminense. Mesmo
reconhecendo que não houve, de fato, uma ruptura total desse governo com as elites locais, a
questão é que o campo de aliança que interessava a esse projeto estava relacionado aos setores
de representação das classes populares, onde se encontravam muitas das lideranças do próprio
partido.
Esse período de efervescência do movimento social que antecede a formação do Comitê e
a chegada ao poder do PDT - Partido Democrático Trabalhista é o período que se pode falar
na origem do Comitê de Saneamento, que tem seu surgimento confundido com a própria
formação de uma esfera pública que reflete essa aliança. É interessante notar que o Comitê foi
fundado com base no primeiro programa mais global de saneamento da Baixada (PEBS),
composto pelas federações de associações de moradores e representantes do governo do
Estado. Assim, os primeiros documentos do governo do Estado não tratavam o Comitê como
66
um ator, mas como uma esfera de articulação entre poder público e sociedade, se incluindo
aí25. Estava formalizada essa aliança.
A identidade de ator político do Comitê é algo que vai ser construído nesse processo de
conflito e negociação com o Estado. Primeiro, o Comitê expressava uma ambigüidade: tanto
significava a articulação das federações de associações de moradores da Baixada na luta do
saneamento, como representava o encontro das federações com os órgãos públicos envolvidos
nesta temática, constituindo o embrião de uma esfera pública acionada como lugar de debates,
pressões, protestos, tomadas de opiniões e deliberações.
A nosso ver, é exatamente o surgimento dessa esfera pública que caracteriza um novo
padrão de relacionamento entre Estado e sociedade a respeito da política de saneamento, o
que justifica falarmos em um terceiro ciclo do movimento social em torno da luta de
saneamento, marcado pela relação estabelecida entre o Comitê e o governo. Antes, como
vimos, inexistiam espaços com tais características.
A partir do governo Moreira Franco (PMDB), a questão da identidade do Comitê vai se
tornando cada vez mais ligada aos atores populares. Esse novo governo expressava um novo
perfil político, não mais ligado ao ideário reformista da esquerda democrática. Formava-se
uma nova aliança, desta vez não mais prioritariamente com os movimentos sociais, mas com
setores do empresariado moderno do Estado, apesar de contar com o apoio minoritário de
parte da esquerda26. Esse novo núcleo no poder não tinha os compromissos assumidos com as
federações de associações de moradores da Baixada e, portanto, não se sentia identificado
com a esfera pública estabelecida na gestão anterior. A ambigüidade que existia vai ser
dissolvida exatamente nesse processo, já que o Comitê mantinha sua dinâmica constituída
pela articulação das federações. Assim, cada vez mais se evidenciava a identidade dos atores
em disputa: de um lado, o Comitê Político de Saneamento expressando o movimento popular;
de outro, o Estado.
Essa mudança também se expressa na concepção da política pública de saneamento. A
abordagem universalista e integradora vai dar lugar a um recorte mais restrito de
competências entre Estado e prefeituras, centrado no saneamento básico. Com essa opção, o
25 Conforme relatório de atividades da Cedae sobre o PEBS, “o processo de participação foi aprimorado com a instalação do Comitê Político de Saneamento integrado pela Soma (Secretaria de Obras e Meio Ambiente), Cedae, Famerj e as federações das associações de moradores (MUB, MAB e ABM), com o objetivo de discutir e acompanhar todas as etapas de desenvolvimento do programa de saneamento da Baixada.” (Cedae, 1987) 26 O governo Moreira Franco foi apoiado pelo PCB e pelo PC do B e tinha como vice-governador o advogado Francisco Amaral, histórico militante da esquerda na Baixada Fluminense (Nova Iguaçu), ligado a defesa dos direitos humanos.
67
governo estadual vai focar sua atuação no esgotamento sanitário e no abastecimento de água,
responsabilizando as prefeituras pela microdrenagem e urbanização. Pode-se dizer que esse
governo fez um duplo movimento: de um lado, manteve um projeto de modernização do
Estado, mas este não implicava mais em uma aliança com os movimentos populares no
enfrentamento das elites locais. A Sedur passa a ser dirigida pelo engenheiro Haroldo de
Mattos Lemos e por uma equipe que propõe uma política de saneamento baseada em critérios
técnicos, esvaziando o conteúdo político do significado desta temática na região. Para isso, a
universalização dos serviços vai ter um enfoque restrito aos serviços de água e esgoto, ambos
de competência estadual. Neste plano havia espaço para a continuidade da relação com o
movimento social, o que levou a manutenção da esfera pública anteriormente constituída, mas
com outro caráter. Sem a aliança política, essa esfera pública se constituiu reunindo o Estado
e o Comitê (agora com clara identidade na articulação das federações de associações de
moradores) em torno de dois grandes planos de saneamento – o PEBS e o Plano de
Setorialização do Abastecimento de Água – coordenados pela Sedur.
De outro lado, o novo governo retorna a estabelecer alianças com as elites locais. No que
tange à política de saneamento, essa aliança tem sua maior expressão na dicotomia entre a
dimensão técnica (planos e projetos com critérios técnicos, não subordinados, pelo menos do
ponto de vista formal, à lógica política das elites) e a dimensão política (não-interferência na
esfera de competência das prefeituras locais, subordinadas à lógica dos interesses das elites).
Com efeito, as intervenções do governo estadual nas redes de abastecimento de água e coleta
de esgoto nunca foram acompanhadas por um projeto de pavimentação e urbanização por
parte das prefeituras e tampouco por um projeto de macrodrenagem do próprio estado. Em
suma, tínhamos uma concepção de saneamento integrada, mas um projeto de intervenção
desarticulado, com ações fragmentadas entre os diferentes órgãos e níveis de governo.
As enchentes de 1988 e o estado de calamidade da região reorientam a agenda política do
Comitê na reivindicação de um plano emergencial de saneamento para a Baixada. Será nesse
contexto que se realiza o encontro entre o governo do Estado (representado pelo vice-
governador e por vários secretários), as prefeituras da região e o movimento popular. Em que
pese a ausência do governador, compareceram 3.000 pessoas mobilizadas pelo Comitê de
Saneamento, que reivindicava duas questões básicas: no saneamento, um plano de intervenção
na drenagem e na construção de barreiras nos rios e afluentes que cortam a Baixada e, na
habitação, a reconstrução das casas destruídas pelas enchentes e o reparo daquelas afetadas
(Oliveira, Santos Júnior, Martinez, op. cit.). Nesse período são retomadas as mobilizações de
68
massas – conforme pode ser observado no – que, segundo as próprias lideranças do Comitê
de Saneamento, foram fundamentais para que o Estado elaborasse um projeto de intervenção
de macro e mesodrenagem buscando enfrentar as questões estruturais que ocasionavam
freqüentemente as enchentes na região. Assim, foi elaborado o Projeto Reconstrução Rio, que
muito embora fosse aprovado pelo Banco Mundial em tempo recorde, levou mais de dois anos
para ter início, sendo necessária a interferência política do Comitê que organizou uma
caravana a Brasília com mais de 20 ônibus para pressionar o governo federal a liberar a
contrapartida exigida pelo Banco Mundial.
O que nos interessa reter nessa história diz respeito aos seguintes aspectos: (i) é a
existência de uma esfera pública de discussão da política de saneamento em torno da Sedur
que legitima o Comitê como ator protagonista da política de saneamento; (ii) esta legitimação
exige do Comitê uma qualificação técnica que leva seus quadros a estudarem e buscarem
informações para intervir no diálogo com o governo do Estado, ainda mais tendo em vista o
perfil acentuadamente técnico da Sedur; (iii) a qualificação do Comitê o leva a ter uma visão e
fazer propostas de políticas públicas cada vez mais integradas na perspectiva do saneamento
ambiental; (iv) é essa concepção que faz com que o Comitê se antecipe à calamidade
ocasionada pelas enchentes anunciando os limites das intervenções focadas no saneamento
básico e apontando para a necessidade de intervenções estruturais; (v) esse processo de
diálogo, conflito e negociação legitima a proposta do Projeto Reconstrução Rio, que incorpora
parte das propostas e concepções do Comitê.
A mudança do órgão responsável pela coordenação da política de saneamento no governo
estadual – da Sedur no governo Moreira Franco para o Geroe no segundo governo Brizola –
não reduz o papel de interlocutor do Comitê de Saneamento, apesar de as obras terem sido
interrompidas por cerca de um ano, tempo no qual todos os componentes do Programa
Reconstrução Rio foram reestruturados e detalhados, passando de um enfoque emergencial
para um programa mais integrado de saneamento para a região. Na verdade, a maior crítica ao
governo Moreira Franco se refere à captura das grandes intervenções pelos interesses das
empreiteiras. Segundo o próprio relatório do Geroe, “as firmas projetistas definiram
necessidades de obras numa relação direta com as empreiteiras, sem interveniência
significativa da Serla, o que levou à completa privatização de definições fundamentais que
deveriam caber em primeiro lugar ao poder público representado pela Serla.” (Geroe, 1992)
Superado o contexto de reestruturação do projeto, o Comitê e o governo estadual retomam
o diálogo acerca da política de saneamento da Baixada, mantendo o espaço de uma esfera
69
pública estruturada em torno do Geroe e de uma agenda de saneamento que buscava integrar
as ações desenvolvidas na perspectiva da concepção ambiental. Foi um período de intenso
diálogo e de realização de inúmeros seminários conjuntos entre o Comitê e o Geroe. A nosso
ver, este é o momento de maior força política do Comitê como ator político na região,
interferindo concretamente no desenvolvimento dos diferentes componentes do projeto –
drenagem, reassentamento e educação ambiental – como podemos constatar na análise dos
seus resultados (Capítulo 3). É interessante destacar que a nova administração retoma a
aliança prioritária com o movimento popular, que neste momento desloca sua ação das
atividades de mobilização de massas para uma interferência por meio do diálogo e da
negociação com o governo estadual. É neste quadro que vai ser elaborado o Programa
Despoluição da Baía de Guanabara, correspondendo a essa visão global de saneamento
ambiental e buscando responder as lacunas existentes no Programa Reconstrução Rio, que,
como dissemos, foi pensado no contexto de uma emergência e centrou sua intervenção na
prevenção das enchentes.
A eleição de Marcelo Alencar (PSDB) para o governo do Estado representou o surgimento
de um quarto ciclo na história da relação do Comitê com o governo estadual. Se inicialmente
os canais de participação foram mantidos, nesse governo estes foram pouco a pouco sendo
esvaziados e desarticulados, na direção de uma nova concepção de política. A visão
integradora e universalista da política de saneamento vai dar lugar a uma concepção
fragmentada e focalista, com o retorno das alianças com as elites dirigentes locais. De uma
forma geral, é preciso destacar o seguinte contexto:
(i) O movimento social passa por um processo de crise e reconfiguração (Gohn,
1997), no qual as associações de moradores deixam de ser a forma hegemônica
de organização dando lugar a uma diversidade de movimentos sociais
fragmentados, sem uma articulação entre si. Diante deste cenário, o Comitê
não foi capaz de renovar sua base organizativa, mantendo as federações de
associações de moradores – cada vez mais fragilizadas – como sua principal
base de sustentação. Com efeito, a própria capacidade de mobilização do
Comitê foi significativamente reduzida.
(ii) Constata-se uma mudança no paradigma de gestão pública, ganhando força a
concepção identificada com o ideário neoliberal, que defende a privatização do
setor de saneamento. Tal posição vai ser sustentada pelos organismos
70
multilaterais que financiam a política pública de saneamento no Estado do Rio
de Janeiro, com destaque para o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Assim, no âmbito dos programas desenvolvidos no Estado, terá ênfase a
modernização institucional, na perspectiva de privatização do setor.
Concretamente, este será o caso da política de saneamento básico, sob a
responsabilidade da Cedae, e da política de resíduos sólidos27, sob a
responsabilidade das prefeituras. Em ambos os casos, serão realizados
programas nesta direção.
(iii) É desenvolvido um novo grande projeto, Baixada Viva, cujo recorte não é mais
o saneamento ambiental sob a ótica universalista e integradora que vigorava
anteriormente, mas ações sociais focalizadas em bairros concentradores de
pobreza, com intervenções de caráter global, envolvendo saneamento,
pavimentação, urbanização, saúde, educação e geração de trabalho e renda.
Projetado para atingir 12 bairros, o programa inicialmente se realizou em
apenas quatro.
A questão central na nossa análise é a adoção pelo governo Marcelo Alencar de um
padrão de política que se estruturou enfraquecendo e desmontando a esfera pública
constituída em torno da política de saneamento. Com efeito, o Comitê deixa de ser o
interlocutor privilegiado, sendo substituído pelas máquinas partidárias clientelistas locais. Ao
mesmo tempo, a política de participação é reduzida para o âmbito dos bairros objeto de
intervenções do Programa Baixada Viva - PBV, fragmentando a capacidade de interferência
do movimento social na concepção da nova política de saneamento que passa a vigorar.
A participação social com base nos princípios que deram origem ao Comitê de
Saneamento é excluída nesse modelo, sobretudo, porque na Baixada Fluminense a agenda do
saneamento público tinha seu foco na ampliação dos serviços como um direito de cidadania e
deveriam ser extensivos a toda população da região. A atuação do Comitê Político de
Saneamento estava centrada numa perspectiva reformista em que as políticas de saneamento
deveriam ser orientadas com base no princípio da universalidade do acesso e da instituição de
canais de participação e controle social. Não resta dúvida de que, com essas diretrizes, a
participação popular iria contrariar o ambiente político no qual estava sendo elaborada a
política de saneamento no governo Marcello Alencar.
27 Para uma análise do modelo de gestão proposto para a política de resíduos sólidos, ver Marques (1995).
71
As iniciativas do Comitê com a finalidade de ampliar o espaço não foram bem
sucedidas. A realização de uma reunião com o vice-governador e todos os secretários ligados
às políticas de saneamento no início do governo e, logo depois, de um encontro com o
governador não foi suficiente para que a esfera pública construída ao longo dos últimos dez
anos se mantivesse como um instrumento efetivo de avaliação, proposição e negociação de
novas políticas para a Baixada Fluminense. O diálogo, acentuadamente pontual com o
Comitê, não conseguiu ultrapassar o segundo ano de governo, quando, coincidentemente ou
não, é o período em que a UERJ começa a desenvolver uma série de estudos e reuniões nos
bairros que seriam objeto de intervenção do programa Baixada Viva.
O padrão de política de saneamento que emerge com Marcello Alencar é do tipo
clientelista e patrimonialista, é excludente da participação, e, portanto, de esvaziamento da
esfera pública que legitimava as políticas de saneamento e seus atores. A interlocução seria
feita de forma direta com os beneficiários da política, devendo a população local eleger seus
representantes a partir das organizações de base e formar um Comitê de Acompanhamento
Local - CAL. Este movimento, como sugere o próprio nome, teria um papel restrito às
intervenções que seriam processadas no bairro, não estabelecendo sequer um diálogo sobre o
conjunto do programa na Baixada Fluminense. Após muita luta política, as federações da
Baixada em conjunto com alguns comitês conseguiram fazer com que o governo instituísse
uma Comissão Estadual de Acompanhamento do Programa Nova Baixada com representantes
das secretarias estaduais envolvidas e com cinco representantes dos CALs. Nesta composição,
chama a atenção o fato das federações municipais que articulavam o Comitê de Saneamento
terem sido excluídas.
Assim, a nosso ver, a retomada do padrão patromonialista e clientelista da política
pública de saneamento, foi acompanhada de um modelo de participação onde os agentes da
ação política, desprovidos de um discurso articulador da região e da identidade que fundava o
novo ator social, tinham pouco domínio sobre as relações de poder que se estabeleciam no seu
local de moradia, além de estarem fragilmente organizados. Estava criado o ambiente para o
desenvolvimento desse padrão.
O governo Garotinho, em andamento, assume em 1999, o que impede uma análise
mais profunda acerca da relação com a sociedade no âmbito do programa. Entretanto,
podemos afirmar que pelo simples fato de não haver alteração da lógica estabelecida pelo
governo Marcelo Alencar, seja na concepção do programa, seja relação com a sociedade, tudo
leva a crer que se aprofundam as alianças com as velhas máquinas partidárias, na perspectiva
de um neoclientelismo na Baixada Fluminense. O mais grave, na manutenção desse cenário, é
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que constatamos a presença de setores identificados como progressistas à frente desse
programa, sem produzir qualquer alteração substancial na sua lógica de gestão, inclusive no
que tange à participação popular.
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Quadro 1 – Periodização da Relação entre o Poder Público e os Atores Sociais em torno da Política de Saneamento na Baixada Fluminense
Período Características da Agenda Pública de Saneamento
Estágio da Organização Popular
Principais Fatos
1º ciclo – até 1980 • Ausência de esfera pública • Pacto com as elites locais • Atendimento fragmentado das reivindicações • Reivindicações centradas na bica d’água e no manilhamento
• Movimento popular fraco e fragmentado • Organização populaatravés de associações de bairros e centros pró-melhoramentos
r • Luta pela redemocratização
• Mobilizações relacionadas à atuação da igreja progressista • Abaixo-assinados
• Reivindicações dirigidas às prefeituras municipais
1º ciclo – de 1981 até 1986
• Emergência de uma esfera pública em torno do GTBS e da CEDAE • Elaboração de um novo projeto, pelo grupo político que assume o governo • Aliança prioritária com os setores populares • Ampliação da concepção de saneamento básico, passando-se para uma abordagem integrada (início de uma concepção de saneamento ambiental)
• Difusão de associações de moradores • Formação das federações municipais das associações de moradores • Formação do Comitê de Saneamento da Baixada. • Fortalecimento do movimento popular • Papel protagonista da Igreja e dos partidos de esquerda e da assessoria FASE
• A ABM (São João de Meriti) promove a passeata pelo saneamento, de Vilar dos Teles até o Centro de São João com 2.000 pessoas (novembro de 1984), com o slogan Meriti tem jeito depende da gente • Encontro das federações com o governo estadual e as prefeituras municipais, reunindo 5.000 pessoas em Nova Iguaçu, com o tema Baixada Exige: saneamento já (novembro de 1984) • Passeata das federações da Central do Brasil até o Palácio Guanabara, com 2.000 pessoas e mais uma vez o slogan Baixada Exige: saneamento já (novembro de 1984) • Encontro das federações de associações da Baixada com o Secretário de Estado de Obras e Meio Ambiente, em Duque de Caxias, onde é firmado o compromisso de elaboração de um plano global de saneamento para a Baixada e de formar um comitê de negociação, o Comitê Político de Saneamento da Baixada • É inaugurado o Projeto Piloto de Saneamento de Vilar dos Teles, no âmbito do plano global (julho de 1985) • Inicia-se as obras do plano global de saneamento (setembro de 1985) • Debate com os candidatos ao governo do Estado, promovido pela FAMERJQuadro 1 e pelo Comitê de Saneamento (outubro de 1986)
74
Período Características da Agenda Pública de Saneamento
Estágio da Organização Popular
Principais Fatos
2º ciclo – de 1987 até 1994
• Ampliação da esfera pública, primeiramente por intermédio da SEDUR (1986 a 1990) e posteriormente do GEROE (1991 a 1994) tendo como interlocutores o Comitê e órgãos do governo do Estado.
• Comitê consolidado como ator protagonista da política de saneamento ambiental da Baixada Fluminense • Forte base associativa no contexto da região (cerca de 350 associações de moradores na Baixada) • Papel protagonista da assessoria FASE na organização e capacitação do Comitê
• Calamidade pública na Baixada Fluminense, as enchentes fazem milhares de desabrigados na região (fevereiro de 1988) • Ato de protesto realizado nas margens do rio Sarapuí, em Duque de Caxias, com a presença de 2.000 pessoas do Bispo Dom Mauro Morelli (fevereiro de 1988) • O Comitê Político de Saneamento da Baixada realiza em Duque de Caxias um encontro com o governo do Estado e as prefeituras municipais para discussão sobre os efeitos das enchentes e a intervenção pública na região (abril de 1998) • Uma carreata por toda a Baixada chama a atenção da população para o descaso do governo do Estado com as famílias desabrigadas e a ausência de obras emergências (julho de 1988)• O Comitê organiza uma manifestação na porta da Caixa Econômica Federal no Centro do Rio de Janeiro, pela liberação dos recursos para início das obras do Projeto Reconstrução Rio (julho de 1989) • Caravana a Brasília com mais de 20 ônibus para pressionar o governo federal a liberar a contrapartida exigida pelo Banco Mundial no Projeto Reconstrução Rio (julho de 1989) • Reuniões mensais na SEDUR de acompanhamento do Projeto Reconstrução Rio • Vários seminários municipais de discussão sobre o Projeto Reconstrução Rio na Baixada Fluminense, promovidos pelo Comitê e GEROE (1992) • Reuniões mensais do Comitê com o GEROE • Início das obras do Projeto Reconstrução Rio (julho de 1992) • Inauguração do escritório do GEROE na Baixada (setembro de 1993) • Encontro com o Banco Mundial para discutir o Projeto Reconstrução Rio (agosto de 1994)
75
Período Características da Agenda Pública de Saneamento
Estágio da Organização Popular
Principais Fatos
3º ciclo – de 1995 até os dias atuais
• Redução da esfera pública • Retorno às políticas focalizadas
• Crise e reestruturação dos movimentos populares urbanos • Enfraquecimento das associações de moradores e de suas federações • Surgimento de uma diversidade de movimentos associativos desarticulados: movimentos culturais, ecológicos, de mulheres, negros, ONGs locais et.
• Encontro do Comitê com o governo do Estado (1995) • Reuniões mensais com o GEROE no Palácio Guanabara até 1996 • Reuniões mensais do Comitê com a SOSP para discussão do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (1995) • Fim do GEROE e diálogo fragmentado e intermitente com os órgãos do governo do Estado, com a ausência de um canal permanente de diálogo entre o Comitê e o governo estadual (de 1997 em diante) • Canais de participação fragmentados, em torno de Comitês Locais de Acompanhamento (CALS) organizados no interior do Programa Baixada Viva, focados nas intervenções dos bairros e sem uma discussão global no âmbito da Baixada
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Sobre a emergência do Comitê Político da Baixada como um novo ator político na Baixada
Fluminense, cabe, neste momento da nossa análise destacar alguns pontos:
a) Podemos afirmar que todo o processo que levou o Estado a incorporar o conceito de
saneamento ambiental universalista e integrador se fez diante de marchas e contra marchas,
conflitos, negociações e conquistas, a partir da constituição de uma esfera pública voltada
para a política de saneamento. Foi esta esfera pública que possibilitou a ampliação dos
atores envolvidos, antes restritos às elites, em espaços publicizados, abertos à participação
das camadas populares. O clientelismo deixa de ser a única forma de acesso a bens e
serviços de saneamento na região depois da formação do Comitê de Saneamento.
b) A competência técnica do Comitê Político de Saneamento é um aspecto importante
nessa reflexão, pois as suas lideranças, em geral com uma formação de nível médio,
construíram um conhecimento sobre saneamento com base no acompanhamento das obras
na região, em pequenos cursos de formação desenvolvidos por assessoria – sobretudo pela
ONG FASE – e em espaços de negociação com os órgãos de governos nas esferas públicas
constituídas. O Comitê mostrou uma força inaugural de novas relações que lhe possibilitou
dialogar com o poder público e com a sociedade, sem que para isso tivesse de incorporar o
discurso pronto e acabado, elaborado nas agências estatais, que, em geral, submete a
participação social à lógica de um Estado privatizado pelos interesses econômicos.
Desembrulhou na história das políticas de saneamento pacotes técnicos que estavam
reservados aos cidadãos considerados de segunda categoria, mostrando toda a perversidade
de um modelo excludente e segregador. Colocou por terra o discurso do conhecimento
técnico como condição para dialogar acerca dos investimentos públicos realizados na
região. Em suma, podemos dizer que o Comitê rompeu com o que Chaui (2000) chama de
discurso competente, na medida em que não se deixou reduzir à condição de “objeto
socioeconômico” ou “sociopolítico” da estrutura do poder dominante. Tomou a iniciativa, foi
a luta, articulou-se política e tecnicamente e adquiriu a qualidade de sujeito político das
transformações sociais que se processam na Baixada Fluminense desde a sua fundação.
c) A experiência política forjada em anos de luta social conferiu ao Comitê uma
acentuada consciência do seu papel de ator, do lugar que ocupa no debate e na construção da
política, assim como dos elementos que orientam a sua prática social. Essa história é geradora
77
de um capital social, nos termos elaborados por Putnam (1996), articulado em mais de 15 anos
de experiência social, que foi imprescindível na elaboração da política pública de saneamento
para a região. Não obstante a manutenção de um viés ainda fragmentado das ações do Estado,
o Comitê teve o papel de colocar o debate de forma articulada e integrada regionalmente,
trabalhando todas as dimensões que envolvem a Baixada e mantendo no centro de sua ação
política dois elementos básicos: (i) a noção de direitos sociais como elemento fundador da
política e (ii) o enfrentamento das desigualdades sociais que marcam historicamente a região,
propondo políticas públicas alternativas com capacidade efetiva de ampliar o acesso aos
serviços de saneamento na Baixada Fluminense.
Seguindo nossa análise conceitual do primeiro capítulo, podemos dizer que na prática
política do Comitê já estão presentes vários elementos que fundamentam o recente debate em
torno da abordagem de justiça ambiental produzido pelos movimentos ambientalistas. A
relação entre direitos civis e políticos e a questão ambiental, esteve sempre muito presente,
sendo recortada no caso da Baixada pela questão do saneamento. Ao qualificar a Baixada
como um espaço de concentração de pobreza e o lugar onde a população está mais exposta aos
riscos ambientais, o Comitê demonstrou que as desigualdades sociais apresentam um outro
traço importante para a reflexão, a desigualdade ambiental, manifesta no acesso desigual aos
serviços de saneamento, fundamentais para a existência de uma vida digna e prazerosa.
Como vimos, o Comitê de Saneamento é um movimento social que funda sua ação
política valendo-se de problemas locais e imediatos, e que, mesmo tendo tem uma base
heterogênea soube historicamente construir unidade para apresentar suas reivindicações em
arenas políticas mais amplas. Produziu o conflito urbano com base numa realidade de grande
precariedade nas condições de vida e se legitimou política e socialmente pela sua capacidade
de transformar necessidades em reivindicações por direitos de cidadania, desenvolvendo com
isso uma nova trama social. Em suma, a presença do Comitê foi fundamental para a mudança
no padrão de política pública de saneamento na Baixada Fluminense. Cabe, portanto,
verificarmos se as políticas desenvolvidas se mantêm atreladas ao modelo clientelista que
marcam a região, ou se, pelo contrário, é fundado um novo padrão funda-se um novo padrão
mais democrático. Tomando por base seus objetivos, a concepção de saneamento presente em
cada intervenção cada intervenção, sua efetividade em relação aos seus resultados e a questão
78
da participação social, buscaremos analisar cada projeto do ponto de vista do seu modelo de
gestão – clientelista ou democrático – de política pública.
79
Capítulo 3 - O saneamento ambiental da Baixada Fluminense na agenda política do Estado do Rio de Janeiro
Este capítulo tem por objetivo examinar a recente intervenção do poder púbico na área
de saneamento na Baixada Fluminense, identificando o padrão de política pública que foi
adotado por diferentes administrações estaduais. Como vimos, ao longo das três últimas
décadas a Baixada Fluminense foi palco de seis grandes projetos de saneamento: a) Plano de
Impacto (1975); b) Projeto Especial de Saneamento para Baixada Fluminense e São
Gonçalo (1984); c) Plano de Setorialização da Rede de Abastecimento de Água da
Baixada (1986); d) Projeto Reconstrução Rio (1988); e) Programa de Despoluição da
Baía de Guanabara (1992); f) Programa Nova Baixada28 (1995). Somam-se a esses
projetos dois estudos que visavam orientar a ação pública estadual e municipal na
complementação do PEBS e do Projeto Reconstrução Rio, são eles: Projeto de Urbanização
de Vias na Bacia do Sarapuí (1987) e o Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia do
Rio Iguaçu/Sarapuí (1994). Esses seis projetos juntos somam um montante de investimentos
aplicados na região que ultrapassa a cifra de US$ 1 bilhão.
Desta forma, o que nos interessa é realizar a análise desse conjunto de programas e
projetos desenvolvidos pelo governo estadual, com base nos seguintes aspectos: (i) os
objetivos expressos nos documentos oficiais dos órgãos públicos responsáveis pela sua
elaboração, coordenação e gestão; (ii) a concepção de saneamento que orientava o
planejamento da intervenção do Estado, em termos restritos – saneamento básico, focado no
esgotamento sanitário e no abastecimento d’água – ou integrado – saneamento ambiental,
articulando a intervenção às dimensões ambiental, urbana e de saúde; (iii) sua efetividade a
partir dos resultados alcançados com as intervenções, tendo em vista seus próprios objetivos e
(iv) a participação social, no que se refere aos canais de diálogo e interação com os atores
sociais, em especial com o Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense.
Particularmente, nos interessa identificar se a gestão desses projetos se manteve
atreladas ao padrão clientelista e patrimonialista que caracteriza a política da região, ou se, ao
contrário, caminhou na direção de um novo padrão de gestão mais democrático. Buscamos,
assim, discutir as características, os impasses e os limites da política pública da política de
28 Este Programa quando se iniciou no Governo Marcello Alencar, chamava-se Programa Baixada Viva. No Governo Garotinho, alterou-se o nome, sem que houvesse nenhuma alteração no seu escopo original.
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saneamento que foi implementada. Parta tanto, nos parece pertinente discutir inicialmente
esses dois modelos de gestão – clientelista e democrático – que irão servir de referência na
nossa análise.
3.1. Política clientelista e política democrática
Tomando como base a sistematização produzida por Cardoso (1999)29, sintetizamos as
principais características das políticas públicas de tipo clientelista e democrática, a fim de
avaliar as políticas de saneamento na Baixada Fluminense nas três últimas décadas.
Cardoso opõe dois tipos de política pública que marcam a relação entre o Estado e a
sociedade brasileira contemporânea, de tipo clientelista e de tipo poliárquico. Tendo em
vista a identidade conceitual entre democracia e poliarquia, nos termos proposto por Dahl30
e que serve de referência para Cardoso, utilizaremos no âmbito desse trabalho o conceito de
democracia como referência analítica, já que este se insere no ambiente político e cultural
das políticas públicas no Brasil e, portanto, é mais adequado no contexto do nosso debate.
Em síntese, Cardoso (op. cit.) identifica os seguintes aspectos na caracterização do padrão
clientelista de política pública:
• “Um padrão de autoridade baseado no particularismo de procedimentos”, isto é
um padrão de ação social baseado no personalismo que repousa na inexistência de
expressão política da diversidade de frações de classe e grupos de interesse.
• “Um sistema de trocas generalizadas baseado na transferência pessoal de bens e
recursos, onde as trocas dependem essencialmente das características pessoais dos
indivíduos envolvidos”.
• A “inexistência ou mau funcionamento da esfera pública”, sem controle social
sobre a ação do Estado e “sem uma lógica de direitos aos quais corresponde uma
responsabilidade pública”, ou seja, onde as necessidades encaminhadas ao poder
público não se transformam em reivindicações por direitos, mas se revestem em
29 A análise de Cardoso (1999) teve por objetivo desenvolver uma referência teórica que possibilitasse “a caracterização de modelos metodológicos disponíveis para avaliação de políticas públicas, buscando identificar suas potencialidades e limites.” 30 Dahl prefere utilizar o termo poliarquia para denominar os sistemas democráticos no mundo real, já que para o autor nenhum grande sistema mundial real é plenamente democratizado (Dahl, 1997:31).
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trocas, marcadas por relações de favor, que normalmente envolvem o voto daqueles
demandantes.
• Um contexto marcado por “uma sociedade dispersa, fracamente articulada e
desmobilizada, com baixo índice de vida associativa”, ou, nos termos colocados por
Putnam (1996), uma sociedade marcada por baixo capital social.
• O encaminhamento “das demandas através dos contatos e vínculos pessoais, que
as processam e transmitem, de forma não agregada, aos políticos e detentores de
cargos públicos”
• A “constituição das agendas a partir de demandas tópicas, específicas, restritas e
de bens divisíveis, submetidos a um tratamento parcial, e de impacto localizado,
configurando uma política ‘distributiva’”.31
No que se refere ao padrão democrático, o universalismo de procedimentos é a
característica fundamental. O universalismo de procedimentos se insere num contexto de
complexificação e modernização da sociedade, onde a “dinâmica da estratificação da
estrutura de classes deixa espaço para uma multiplicidade de grupos de interesses”
(Edson Nunes apud Cardoso, 1999). Entretanto, a emergência desses grupos está
diretamente ligada à existência de esferas públicas, que se constituem num espaço de
domínio público em que seu funcionamento é regulado por um conjunto de normas e
instituições que são utilizadas pelos indivíduos através de seus grupos de interesses.
Assim, este espaço pode ser entendido como o lugar em que os cidadãos se protegem
contra os abusos do Estado e, ao mesmo tempo, apresentam formal e politicamente as
suas demandas ao Estado. Da mesma forma, o universalismo de procedimentos depende
de condições políticas que só podem ser asseguradas no âmbito do sistema democrático
ou poliárquico de governo. Entre essas condições, Cardoso (op. cit), com base em
Guillermo O’Donnell, destaca:
31 Cardoso (1999) utiliza a distinção feita por Lowi, entre políticas distributivas, regulatórias e redistributivas. As primeiras são “caracterizadas por não estarem constrangidas por limitações de recursos e pela facilidade com que podem ser desagregadas e seus recursos dispensados de forma atomizada a unidades isoladas, sem obediência a qualquer critério mais geral e universalista.” As segundas, regulatórias, são caracterizadas “por apresentarem impactos específicos e individualizados, elevando custos ou reduzindo a possibilidade de ação de agentes privados, embora as decisões alocativas baseiem-se em leis e regulamentos que sejam estabelecidos em termos gerais.” Por fim, as terceiras, redistributivas, “envolvem relações entre amplas categorias de indivíduos, atingindo grandes agregados sociais”.
82
“eleição dos governantes, eleições livres e limpas, liberdade de expressão, pluralismo de fontes de informação e liberdade de associação. Esses critérios segundo esse autor são os que asseguram as condições políticas para o universalismo de procedimentos.”
Em suma, as principais características do padrão democrático, segundo Cardoso, são:
• Um padrão distinto de autoridade personalizada baseado no universalismo de
procedimentos. Isto é, um padrão de ação social baseado “no impersonalismo de
procedimentos que repousa em uma multiplicidade de frações de classe, grupos de
status, partidos políticos e cidadania”.
• “Uma economia de mercado baseada na transferência impessoal de recursos
econômicos, onde as trocas que ocorrem independem das características pessoais
dos indivíduos envolvidos.”
• “Existência e funcionamento de uma esfera pública”, onde os indivíduos são
cidadãos, portadores de direitos políticos, que atuam como eleitores que controlam o
poder do Estado. Portanto, essas esferas são “espaço da cidadania e do sufrágio,
equivalentes políticos do mercado econômico.”
• “Alto grau de vida associativa, com um sistema de grupos de interesse
solidamente organizado, agindo de forma autônoma.” Mais uma vez, tomando como
referência Putnam (op. cit.), podemos dizer que se constitui em uma sociedade
caracterizada por alto capital social.
• Encaminhamento “das demandas através da agregação e intermediação de
interesses realizadas principalmente pelos partidos políticos” e, diríamos nós, pelos
diferentes grupos de interesses organizados de forma autônoma através de uma rede
de associações e movimentos sociais.
• “Constituição das agendas a partir de pautas programáticas amplas, combinando
políticas regulatórias e redistributivas, bens divisíveis e benefícios difusos”
Com base mais uma vez em Cardoso, apresentamos de forma esquemática uma
comparação entre as características fundamentais das políticas clientelistas e democráticas,
83
que servirão de referência para a nossa análise dos diversos programas de saneamento ao
longo das últimas três décadas (Quadro 1).
Quadro 1 – Comparação entre as características fundamentais das políticas clientelistas e democráticas
CLIENTELISMO DEMOCRACIA
CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS
Um padrão de autoridade baseado no particularismo de procedimentos
Um padrão de autoridade racional baseado no universalismo de procedimentos
Inexistência ou mau funcionamento da esfera pública, sem controle sobre a ação do Estado
Existência e funcionamento de uma esfera pública, onde os diferentes grupos de interesses se representam, conflitam e negociam políticas públicas
Baixo índice de vida associativa (baixo nível de capital social)
Alto grau de vida associativa (alto nível de capital social)
Encaminhamento das demandas através dos contatos e vínculos pessoais
Encaminhamento das demandas através da agregação e intermediação de interesses
AGENDA
Constituição das agendas a partir de demandas tópicas, específicas, restritas e de bens divisíveis, configurando uma política distributiva
Constituição das agendas a partir de pautas programáticas amplas, combinando políticas regulatórias e redistributivas, bens divisíveis e benefícios difusos
Na provisão de serviços, desenvolve ações pontuais, segundo critérios pessoalizados e em troca de fidelidade ou benefícios políticos
Na provisão de serviços, desenvolve políticas universalistas, com caráter redistributivo
Na regulação, atua principalmente na permissividade à transgressão
Na regulação, estabelece normas e, mesmo quando as flexibiliza, procura criar mecanismos institucionais e impessoais de tratamento da flexibilização
IMPLEMENTAÇÃO
Baixo nível de institucionalidade Alto nível de institucionalidade
Gestão centralizada e controlada pelo partido ou pela máquina política
Gestão via órgão técnico especializado
Pouca burocracia – Corpo técnico inexistente ou pequeno e pouco qualificado
Muita burocracia – Corpo técnico qualificado e numeroso
Fonte: Cardoso (1999). Essa é uma versão adaptada do quadro produzido por Cardoso (1999).
84
3.2. As políticas públicas entre os anos de 1975 e 1984
Como vimos anteriormente, até o final da década de 70 a Baixada Fluminense ainda
não contava com um sistema próprio de adução. A água que abastecia a região era do
sistema Acari, projetada para abastecer uma parte da Cidade do Rio de Janeiro. A demanda
pela provisão dos serviços crescia numa ordem proporcionalmente superior à oferta dos
mesmos, o que levou o governo Faria Lima a propor a criação de um sistema que fosse
capaz de ampliar o fornecimento de água para a região. Nesse sentido, foi concebido o
Plano de Impacto, elaborado em 1975 e implementado no período de 1977/1980,
estruturado em duas fases. A primeira fase, de curto prazo, visava aumentar a capacidade
de abastecimento da Baixada em aproximadamente 50% e a segunda fase, de médio prazo,
tinha por objetivo ampliar a capacidade de adução da região, pois o sistema Acari –
fornecedor de água para o Rio de Janeiro e a Baixada – não seria capaz de dar conta da sua
crescente demanda. De fato, os investimentos realizados por Faria Lima elevaram a
capacidade de cobertura do serviço em torno de 53%. Essa obra teve um custo aproximado
de R$ 20 milhões e se inscreve na história das políticas de saneamento da Baixada
Fluminense como a primeira a disponibilizar água diretamente do Guandu para a região
(Britto 1996 e Marques, 2000).
O início dos anos 80 consolida os investimentos iniciados no governo Faria Lima
(1975/1978). Como assinala Britto, houve uma elevação real na cobertura dos serviços de
abastecimento de água, porém, em que pese o volume de recursos investidos, estes ainda não
foram suficientes para dotar a região de serviços que fossem compatíveis com a demanda
instalada. Os investimentos na construção de redes de abastecimento estiveram abaixo do
necessário, fazendo com que ao longo do plano, as redes e os reservatórios fossem sendo
construídos muito lentamente no decorrer do tempo32. O governo Chagas Freitas (1979/1981)
inaugura a década de 80 sem produzir alterações substanciais no modelo da política pública
para a região. São grandes investimentos – adução do Guandu e construção do reservatório de
Marapiaçu, que ficava 50 km de distância da região – que permitiram construir uma linha de 32 Segundo dados da Cedae, disponíveis no Plano de Setorialização do Abastecimento de Água da Baixada Fluminense, em 1982 ficou pronta a adutora da Baixada Fluminense o que produziu um aumento de 200% na oferta de água para a região. Entre 1975 e1982 foram construídos alguns reservatórios de água e 1.500 km de rede de distribuição de água.
85
abastecimento para a Baixada Fluminense. Não obstante o montante de investimento
disponibilizado, a questão do esgotamento sanitário esteve completamente ausente da ação
pública até a primeira metade da década de 80.
Diante desse quadro, a população, para assegurar o atendimento mínimo às suas
necessidades de moradia – seja o fim das valas a céu aberto que se espalham por toda
paisagem, seja o abastecimento de água nos núcleos urbanos mais distantes, ainda não
atendidos –, tinha que fazer uso de seus recursos próprios na compra de equipamentos
(instalados clandestinamente na rede, no caso da água) ou recorrer a relações clientelistas
através dos políticos tradicionais da região que exerciam o controle sobre os investimentos e a
máquina pública. No contexto de grandes carências da região, é evidente que este último era o
caso mais freqüente. A reivindicação do serviço gerava uma relação de dependência do
morador ao político local, que exigia o compromisso de voto do atendimento de sua demanda,
seja através da provisão direta da mesma pelo poder público, seja limitado à cessão de
equipamentos para que os próprios moradores fizessem a sua instalação.
Baseadas numa relação de troca de favores, as relações clientelistas, segundo Castro
(1988:62), estruturam as desigualdades sociais através das funções de proteção e mediação,
limitando “o direito de acesso de todos os cidadãos aos recursos privados e públicos”. Para a
autora, o clientelismo deve ser visto como um “modo de regulação da transferência de
recursos numa dada sociedade” que depende de uma série de fatores: “acesso aos centros de
poder político; acesso aos centros decisórios que definem e implementam serviços e bens
públicos e acesso à distribuição pública de bens privados” (ibid.:63). Assim, no caso em
questão, o acesso aos serviços de saneamento não era percebido como um direito de cidadania,
mas como uma concessão às classes populares. Com efeito, enquanto a rede oficial da Cedae
crescia a passos lentos, a expansão da rede de saneamento da Baixada Fluminense foi
impulsionada de fato com base nas relações de clientelismo político – distribuição de canos e
manilhas em troca de voto – produzindo a construção de redes sem nenhum padrão técnico.
Cabe destacar que, no caso do esgotamento sanitário, a necessidade do morador era
identificada de forma objetiva pelo desejo de resolver o problema da vala aberta diante da sua
casa, o que era respondido com a colocação de manilhas que coletavam conjuntamente águas
pluviais e de esgotos residenciais. O resultado perverso dessa intervenção pode ser assinalado
por dois aspectos. O primeiro, de caráter técnico, é a inexistência de uma verdadeira rede de
86
esgotamento sanitário, já que não houve nenhuma intervenção na construção de redes
específicas para esse fim, separando as águas pluviais do esgoto residencial, como já definiam
os padrões técnicos33. Nesse sentido, pode-se dizer que nesse período temos mais um
“manilhamento” do que uma rede de esgotamento sanitário. O segundo aspecto diz respeito à
cultura política. De um lado, os moradores, convivendo com inúmeros problemas gerados pela
ausência de canalização – principalmente relacionados ao mau cheiro, ao aspecto paisagístico,
às doenças infecto-contagiosas e às enchentes –, tinham como objetivo afastar as valas abertas
da porta das suas residências e centravam sua reivindicação na resolução imediata da questão.
De outro, a colocação de manilhas era a resposta mais imediata e econômica apresentada pelo
poder público. Esse encontro de interesses possibilitou a disseminação dessa política de
“manilhamento” pelas prefeituras na Baixada Fluminense como resposta à crescente demanda
da população.
Nesse período, como já dissemos, a política pública estava consubstanciada num
modelo técnico-científico concebido pelo Planasa, que preconizava a ampliação do acesso
aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário através de ações que
deveriam buscar uma racionalidade técnica que reduzisse as enormes demandas verificadas
nos municípios brasileiros. Os preceitos técnicos definidos para a execução do plano foram
colocados por terra na Baixada Fluminense, na medida em que ele não conseguiu
desenvolver uma política integrada capaz de suprir a crescente demanda pelos serviços na
região. Apesar de a política de saneamento estar fundada no conceito de saneamento
básico, a dicotomia apresentada entre a adução e a provisão das redes de abastecimento
demonstra total incapacidade de resolução da problemática social, o que,
conseqüentemente, produziu a manutenção do quadro de desigualdade no acesso aos
serviços. Por fim, a política pública desse período foi capturada pelas elites locais
clientelistas que dominaram os investimentos e as intervenções públicas que eram
objetivando a reprodução do seu poder político, bem expresso na lógica da troca do voto
pela manilha. Sem uma esfera pública constituída, a política de saneamento se restringia ao
atendimento fragmentado das demandas pontuais, segundo a lógica dos contatos e vínculos
pessoais. É evidente que nesse modelo não há espaço para a participação social.
33 Os padrões técnicos vigentes já propugnavam a construção de redes com separadores das águas pluviais dos esgotos sanitários. Este padrão ficou conhecido como sistema convencional de coleta de esgotos.
87
Com efeito, a infra-estrutura de saneamento da Baixada Fluminense continuaria
sendo muito precária, em que pese os investimentos realizados pelos governos Faria Lima e
Chagas Freitas. O abastecimento de água era bastante irregular, sobretudo nos pontos mais
altos das cidades, e, no que tange ao esgotamento sanitário, as poucas ligações existentes
estavam conectadas à rede de águas pluviais construída pelas prefeituras. As valas a céu
aberto e a quantidade de lixo nas ruas faziam parte da paisagem dos bairros da região e
denunciavam o baixo nível de acesso aos serviços de saneamento. A ausência de redes de
drenagem e o baixo percentual de coleta de lixo eram elementos diretamente responsáveis
pelas inundações freqüentes nas áreas de grande concentração populacional. Soma-se a isso
a influência da maré no comportamento da linha d’água dos rios assoreados
(Pavuna/Meriti, Sarapuí e Botas), agravando o quadro de enchentes na região.
3.3. Projeto Especial de Saneamento Básico da Baixada Fluminense e São Gonçalo
(1984/1987)
Entre 1983-1986, no primeiro governo Leonel Brizola, a política pública para o
setor de saneamento na Baixada Fluminense esteve inserida num amplo programa de
esgotamento sanitário para 13 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, no
qual as metas apontavam para resultados que elevassem os níveis de acesso aos serviços
nessas áreas aos índices das áreas mais bem servidas do Estado (Cedae/GTBS, 1987)34.
Esse programa seria realizado com financiamento do Banco Nacional de Habitação em
convênio com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, assinado em 2 de junho de 1985, no
valor de aproximadamente US$ 600 mil dólares.35 O modelo utilizado era inovador, já que
propunha uma intervenção integrada do ponto de vista técnico e metodológico, na medida
34 Segundo o próprio documento da Cedae, “o projeto tinha por base a construção de sistemas e redes; elevatórias e tratamento dos esgotos. A estratégia de ação estava centrada num projeto global onde as intervenções seriam feitas de forma descentralizada por sistemas, caracterizando-se as diversas sub-bacias como sistemas isolados, evitando-se a construção, pelo menos numa primeira etapa, das obras de transporte (grandes interceptores e emissários) que juntos representavam aproximadamente 60% do valor total das obras. Desta maneira, os projetos foram implantados setorialmente em áreas prioritárias” (Cedae, 1987). Os municípios beneficiados seriam: Nova Iguaçu, São João de Meriti, Duque de Caxias, Nilópolis, São Gonçalo, Itaboraí, Itaguaí, Magé, Mangaratiba, Marica, Niterói, Paracambi e Rio de Janeiro (especificamente Zona Oeste). 35 Os valores cotados em moeda corrente em fevereiro de 1986 foram atualizadas para a moeda corrente em julho/2001 com base no IGP/FGV.
88
em que as ações de saneamento iriam além dos serviços básicos, abrangendo ainda a
questão da drenagem, sobretudo em suas situações mais críticas, e da urbanização dos
logradouros (ibid.). A inovação no plano técnico diz respeito à substituição dos sistemas
convencionais de esgotamento sanitário, que representavam um custo per capita de 20
ORTN/habitantes, por uma outra solução técnica denominada sistemas condominiais que
além, de ter um custo per capita menor, em torno de 5 ORTN/habitantes, incluía pequenas
obras de microdrenagem nas áreas que apresentassem problemas de maior gravidade
(Cedae, 84). Quanto ao aspecto metodológico, as prefeituras e a sociedade civil organizada
aparecem como atores fundamentais na execução do programa, além da participação de
outras esferas do poder público estadual, tais como as secretarias estaduais de Saúde, de
Obras e Meio Ambiente – incluindo Cedae e Serla – e de Desenvolvimento da Região
Metropolitana, por intermédio da Fundrem.
As intervenções na Baixada Fluminense no âmbito desse programa estavam
consubstanciadas no Projeto Especial de Saneamento Básico da Baixada Fluminense e São
Gonçalo (PEBS), cujo objetivo central era construir 1.500 km de rede coletora de esgotos,
beneficiando uma população de aproximadamente 1 milhão de habitantes residentes na área
da Bacia do Rio Sarapuí36. Com um orçamento US$ 79 mil dólares,37 estavam previstas
duas etapas38, sendo destinados US$ 24 mil dólares para primeira e US$ 39 mil dólares a
segunda. Sob a coordenação da Secretaria de Obras, o projeto tinha prazo de duração de
quatro anos e teve seu financiamento firmado num convênio entre o Governo do Estado do
Rio de Janeiro e o Banco Nacional de Habitação, em 02 de junho de 198539 (Cedae/GTBS,
1987).
36 Na Baixada, a estimativa de população beneficiada por município era a seguinte: Nilópolis, 120 mil habitantes; São João de Meriti, 290 mil; Nova Iguaçu, 260 mil e Duque de Caxias, 200 mil. 37 Para a Baixada Fluminense estavam previstos 75% dos recursos, os demais 25% seriam aplicados em São Gonçalo. Aqui estou apenas assinalando os recursos para a Baixada Fluminense. 38 As duas etapas se referem a divisão das intervenções segundo componentes técnicos assim descritos: Primeira etapa – rede coletoras, troncos, estações elevatórias e dispositivos de tratamento em nível secundário, além de sistemas de drenagem pluvial em áreas críticas; segunda etapa – interceptores, estações elevatórias e unidades complementares de tratamento. 39 Apesar de o convênio só ter sido assinado em junho de 1985, o projeto teve início em janeiro de 1985 com recursos próprios do Governo do Estado, que foi ressarcido logo após o recebimento dos mesmos.
89
Não obstante esse projeto ter se desenvolvido no âmbito de duas administrações
estaduais, apresentando em linhas gerais traços de continuidade, identificamos mudanças na
segunda administração que justificam, a nosso ver, um tratamento analítico diferenciado.
Por essa razão, vamos denominar sua implementação pelo governo Brizola de PESB I e
pelo governo Moreira de PESB II.
a) O PEBS I no governo Brizola: uma nova concepção de saneamento
O Projeto Especial de Saneamento Básico da Baixada Fluminense e São Gonçalo
(PEBS) é elaborado por uma administração de esquerda, que demonstra o desejo de realizar
projetos na Baixada Fluminense considerados prioritários, com resultados de curto prazo e
com a participação efetiva das comunidades nas mais diversas fases do projeto. O Governo do
Estado justificava assim a necessidade de investimentos na região:
[...nas] áreas como a Baixada Fluminense, as doenças carenciais e infecciosas representam ainda a principal causa da mortalidade infantil. Por outro lado, a Baía de Guanabara, ao mesmo tempo se constituindo em ecossistema extremamente importante no contexto ambiental da RMRJ do Estado, é também o corpo receptor natural dos esgotos produzidos nas cidades que pertencem à sua Bacia. Diante dessa triste realidade, impõe-se um conjunto de ações visando melhorias ambientais na região destacando-se a implantação de sistemas adequados de esgotamentos sanitários, [... e a] orientação quanto a higiene pessoal, além de drenagem pluvial. Trata-se de um desafio desta década (...) pôr o saneamento básico à disposição de todos, de modo a contribuir concretamente para eliminação de doenças fecais que figuram entre os principais flagelos da maior parte da população brasileira (...) (Cedae/84).
Para levar a cabo a sua execução, foi criado no âmbito da Cedae o Grupo de
Trabalho da Baixada Fluminense e São Gonçalo – GTBS (Cedae/GTBS/87). O PEBS,
como vimos, visava o equacionamento dos problemas relativos ao esgotamento sanitário,
intervenções no sistema de drenagem em situações mais críticas e a urbanização dos
logradouros, segundo seu uso. Do ponto de vista técnico, o projeto inovou ao adotar o
sistema condominial de esgotos.40 Com base nesse preceito, a quadra, e não o lote, é a
unidade a receber os serviços de esgotamento sanitário. Desta forma, na fase inicial do
40 O sistema condominial consiste na implantação de caixas coletoras de dejetos no interior dos lotes, que são interligados, formando a rede de esgotamento da quadra que despejará na rede básica.
90
projeto as ações estariam concentradas na construção da rede básica – os troncos coletores
– capaz de esgotar todas as quadras e, posteriormente, na construção das redes de
esgotamento das quadras. Para o êxito dessa operação, era de fundamental importância a
participação da comunidade, outro elemento inovador na metodologia de implantação do
programa.
No que concerne ao tratamento de esgotos, a política adotada tinha como critérios a
localização e o dimensionamento das instalações, visando evitar que os esgotos fossem
lançados in natura nos grandes afluentes que cortam a região. Segundo os técnicos que
elaboraram o projeto, a solução global, realizada com base em ações descentralizadas,
asseguraria a futura interligação das diversas sub-bacias no momento em que a totalidade
das redes de esgotos estivessem implantadas. Todos os esgotos deveriam fluir para um
ponto a jusante, definido previamente, onde seria então tratado. O projeto previa o
tratamento de 3608 l/s. A escolha do processo de tratamento estava assentada em três
critérios: (i) eficiência adequada; (ii) economia e (iii) compatibilidade com sua implantação
em área densamente povoada. As lagoas de estabilização aparecem como a solução ideal
por sua elevada eficiência e reduzidos custos de construção e operação. Todavia, os únicos
empecilhos eram a extensão em toda a bacia e a grande área necessária para a sua
instalação, pois na região elas não estão tão disponíveis.
Partindo da premissa de que esse sistema condominial era inovador, pouco
experimentado em outros programas de saneamento, o primeiro passo foi a realização de
um plano piloto em um bairro para que se pudesse comprovar sua viabilidade no contexto
da região, sendo, então, escolhido o bairro Vilar dos Teles em São João de Meriti.41 O
plano piloto foi concebido dentro de uma concepção mais ampla, abrangendo, para além do
esgotamento sanitário, intervenções de drenagem de águas pluviais, regularização de
logradouros e arborização (Oliveira, 1988:94). As obras nesse bairro tiveram a duração de
seis meses, de janeiro a junho de 1985, e apresentaram os seguintes resultados: (i) 8.296 m
de coletores condominiais; (ii) 3.165 m de rede básica (coletor tronco); (iii) 492 m de rede
de apoio para águas pluviais (microdrenagem) e (iv) 592 ligações prediais. A população
41 Segundo Oliveira (1988), a escolha, proposta por técnicos da própria Cedae, se deu pelo fato de ali existir uma associação de moradores bem organizada e o bairro estar situado dentro da sub-bacia do Rio Sarapuí, numa área de grande riscos de enchentes.
91
beneficiada foi cerca de 3.500 habitantes, ou seja, 0,79% da população do município neste
período (ibid.)
Terminado o plano piloto, o programa de implantação da rede de esgotos sanitários
iniciou-se pela Bacia do Rio Sarapuí, considerada prioritária em virtude de sua grande
densidade populacional e total carência de infra-estrutura urbana. Na primeira etapa das
obras, com início em 1985, foram instalados 70 km de redes de esgotamento sanitário, com
o objetivo de atender à demanda em áreas críticas, caracterizadas pela ausência total de
pavimentação e microdrenagem, e por valas a céu aberto, onde certamente os investimentos
públicos proporcionariam maior impacto social sobre as famílias.
A extinção do BNH em 1986 e a transição do governo estadual são dois fatores que
tiveram impacto sobre a evolução do PEBS. Concebido na segunda metade do governo
Brizola, o projeto teve nessa administração somente um ano de execução (1985). O ano de
1986 foi marcado pela reforma administrativa e econômica realizada pelo governo federal
(gestão Sarney 1985/1989) e mexeu substancialmente com o arranjo institucional e
financeiro que sustentava a implementação do PEBS. Com efeito, os resultados concretos
na implementação do projeto ficaram muito aquém das metas estabelecidas.
Em relação ao esgotamento sanitário, os resultados mais significativos estão
restritos à Bacia do Rio Sarapuí onde, dos 576 km projetados, foram realizados 70 km de
rede de esgotos e 7 km de drenagem pluvial, sendo 18,4 km em Duque de Caxias; 35 km
em São João de Meriti e 16,6 km em Nova Iguaçu, beneficiando aproximadamente 106.000
habitantes nesses três municípios e totalizando 17.000 ligações prediais. No que tange à
Bacia do Rio Pavuna Meriti, dos 233 km projetados, nenhuma intervenção foi efetivamente
realizada nesse governo (Tabelas 1 e 2).
Não obstante o PEBS apresentar baixa efetividade no que diz respeito às suas metas,
a nosso ver o mais significativo não está relacionado aos seus resultados concretos, mas à
concepção que o fundamenta. Pela primeira vez, a Baixada experimentou uma intervenção
integrada dentro de uma concepção de saneamento ambiental, já que as intervenções
envolveram esgotamento sanitário com tratamento, microdrenagem, arborização, além de
expressarem uma preocupação com a questão ambiental. Pela primeira vez, a questão das
desigualdades socioambientais vai orientar as diretrizes e prioridades da política pública de
saneamento na Baixada Fluminense. Tomando como referência o debate da justiça
92
ambiental (Capítulo 1), percebemos que essa abordagem permitia avançar em direção à
compreensão das interfaces entre a política de saneamento e as políticas urbanas,
ambientais e de saúde para a região.
Na questão da participação social, a concepção do projeto é expressa no relatório
produzido pelo GTBS/Cedae onde está descrito que
“o desenvolvimento de todo o programa de saneamento da Baixada Fluminense e
São Gonçalo apóia-se fundamentalmente na participação efetiva da
comunidade, através de suas entidades representativas, em todas as suas
fases.” (Cedae, 1987, grifos nossos).
Era a primeira vez, na história das políticas públicas de saneamento da Baixada
Fluminense, que uma política governamental adotava critérios universalistas, de claro
caráter redistributivo, instituindo um embrião de esfera pública que incorporava a
participação social como seu elemento estratégico. Assim, a participação deixava de ser
algo difuso para ser qualificada a partir das organizações populares que emergiam,
sobretudo ligadas às associações de moradores e as suas federações (ver Capítulo 2).
Efetivamente, a participação comunitária foi um fato significativo, sendo reconhecida por
todos os atores populares, conforme verificamos nas publicações e documentos dessas
organizações (ver Oliveira, Santos Junior e Martinez, 1991; e Oliveira, 1988). Nesse
processo, cabe destacar o papel exercido pelo Comitê de Saneamento da Baixada, assim
destacado pela própria Cedae (1987):
“O processo de participação comunitária foi aprimorado com a instalação do
Comitê Político de Saneamento integrado pela Soma - Secretaria de Obras e Meio
Ambiente, Cedae, Famerj, MUB, MAB e ABM, com o objetivo de discutir e
acompanhar todas as etapas de desenvolvimento do programa de saneamento da
Baixada Fluminense. Aos comitês de saneamento locais, criados no âmbito de cada
federação, coube o encaminhamento das questões pertinentes à sua área de
atuação.”
93
Tabela 1 - Sistema Sarapuí – Comparação entre a Rede Projetada e a Executada pelo PEBS Baixada Fluminense, RMRJ - 1987
Projetado Executado Município Principais Bairros Extensão
da Rede (km)
População Atendida
Principais Bairros Extensão da Rede
(km)
Micro-drenagem
(km)
População Atendida
Duque de Caxias Centro, Vila São Luiz, Centenário, Itatiaia, Leopoldina IV, Gramacho, Jardim Guairá, Dr. Laureano, Parque Santo Antônio, Bananal, Jardim Leal e Olavo Bilac
114 185.200 Vila Leopoldina IV, Vila Leopoldina V, Jardim Gramacho e Parque Santo Antônio
18.400 0 34.300
Nilópolis Chatuba, Centro, Olinda, Nova Cidade e Cabuis
60 96.800 Nenhum bairro beneficiado 0 0 0
Nova Iguaçu Chatuba, Edson Passos, Mesquita, Vila Emil, Belmont, Vila Fátima, Vila Catolina, Presidente Juscelino, Santa Branca, Vila Itaci, Imperador, Santa Clara, Santo Elias, Rocha Sobrinho, Parque Prata, Santo Antônio da Prata, Grande Rio, Jardim Gláucia, Bom Pastor, Jardim Redentor, Belford Roxo e Graças
216 271.500 Jardim Redentor e Chatuba 16.600 2.500 23.700
94
São João de Meriti Agostinho Porto, Coelho da Rocha, Vila Norma, Tiradentes, Parque Fluminense, Vila Zulmira, Vila Jurandir, Bairro Fronteira, Grande Rio, Éden, Vilar dos Teles, Vila Farrula, Jardim Eucaliptos, Jardim Heliópolis, Jardim Nóia, Parque Santa Rita de Cássia, São João II, Parque Boa Esperança, Praça da Bandeira, Parque Rio Branco, Jardim Meriti, Vila Araújo, Jardim Paraíso, Parque Vitória, Jardim Califórnia, Jardim Metrópolis e Olavo Bilac
186 227.900 Praça da Bandeira, Coelho da Rocha, Éden e Vila Norma
35.050 4.500 48.300
Totais 576 781.400 70.050 7.000 106.300 Fonte: Cedae, 1984 e 1987
Tabela 2 - Sistema Pavuna/Meriti – Comparação entre a Rede Projetada e a Executada pelo PEBS
Baixada Fluminense, RMRJ – 1987
Projetado Executado Município Principais Bairros Extensão da
Rede* (km)
População Atendida
Principais Bairros Extensão da Rede (km)
População Atendida
Duque de Caxias Parque Fluminense, Parque Brasil, Vila Operária 25 de Agosto, Parque Duque, Parque Beira Mar, Vila São Luiz, Dr. Laureano, Jardim Gramacho, Vila Bela Vista, Lafaiete, Vila Centenário, Parque Senhor do Bonfim, Mangueira, Jardim Sumaré
74 163.059 Nenhum bairro foi atendido
0 0
95
Nilópolis Olinda, Cabral e Paiol 12 26.103 Nenhum bairro foi atendido
0 0
São João de Meriti
São Matheus, Tomazinho, Vila União, José Peixoto, Vila Esmeralda, Cidade Corrêa do Lago, Beira Rio, N. S. de Fátima, Parque Juriti, Parque Baneto, Parque São Roque, Parque Novo Rio, Parque Araruama, Parque Analândia
75 246.502 Nenhum bairro foi atendido
0 0
Totais 233 672.204 Nenhum bairro foi atendido
0 0
Fonte: Cedae, 1984 e 1987 * 72 km eram destinados a cidade do Rio de Janeiro.
96
b) O PEBS II no governo Moreira Franco: restrição ao enfoque do esgotamento
A partir de 1987, agora no governo Moreira Franco (1987/90), a política pública de
saneamento apresenta, no geral, traços de continuidade. O Projeto Especial de Saneamento
Básico da Baixada Fluminense e São Gonçalo - PEBS é retomado, porém são produzidas
alterações no seu escopo pela nova administração. São elas: a volta ao sistema convencional
de esgoto, após a conclusão das obras que haviam se iniciado com o modelo condominial; a
decisão de não realizar mais as obras de urbanização e microdrenagem, pois o governo
estadual entendia que as mesmas eram de responsabilidade das prefeituras, e o deslocamento
da coordenação do projeto da Cedae para a Secretaria de Desenvolvimento Urbano - Sedur,
que absorve as atribuições da Secretaria de Obras e Meio Ambiente, para onde também são
transferidas as reuniões com a comunidade (Oliveira, Santos Júnior e Martinez, 1991).
Promovendo alterações nos objetivos originais do programa, as obras tiveram reinício
na segunda metade de 1987, com uma concepção que se diferenciava daquela que orientou o
projeto no governo anterior. No governo Moreira Franco as intervenções foram restringidas ao
componente esgotamento sanitário, somente integrando outras dimensões da política de
saneamento quando estas poderiam comprometer seu objetivo manifesto. Nesse sentido,
identificamos uma ruptura com o modelo anterior, em que a dimensão ambiental era um
princípio norteador da ação pública. Aqui, estamos diante do retorno ao conceito de
saneamento básico, tendo as intervenções do governo estadual o foco no abastecimento de
água (com o plano de setorialização de água para a região) e no esgotamento sanitário (com o
PEBS). Os demais componentes, que envolvem a micro drenagem, a coleta de lixo, a
urbanização e a política ambiental eram afirmados como de responsabilidade das prefeituras
municipais, que evidentemente não tinham condições de acompanhar as intervenções do
governo estadual complementando as obras de canalização de esgotos com a construção de
redes de microdrenagem e urbanização.
A conseqüência deste enfoque restrito foi a ampliação significava das redes de
esgotamento sanitário na região que, em termos efetivos, alcançaram resultados
surpreendentes em relação às metas estabelecidas, considerado o curto período da sua
execução (1987 a 1988). Assim, no que concerne ao esgotamento sanitário, dos 576 km
inicialmente projetados no programa, foram construídos 251 km de rede, mais uma vez
97
restritos à Bacia do Sarapuí, sendo 31,5 km em Duque de Caxias; 160,5 km em São João de
Meriti e 59 km Nova Iguaçu, beneficiando aproximadamente 364.000 habitantes nesses três
municípios e totalizando cerca 30.000 ligações prediais (Tabela 3). Não obstante o
impressionante aumento da cobertura dos sistemas de esgotamento sanitário e de
abastecimento de água (como veremos a seguir na análise do plano de setorialização da
Baixada), “as obras, especialmente de esgotamento, foram incompletas, de péssima
qualidade e, em alguns casos, foram perdidas.” (Marques, 2000:154).
A decisão do Governo Moreira Franco de não investir em microdrenagem e
urbanização, comprometeu os recursos aplicados em esgotamento sanitário. Em geral, os
bairros objeto de intervenção pública não dispunham de qualquer infra-estrutura, além da
ausência regular da coleta de lixo, o que inviabilizaria a rede de esgoto construída. Deixar
essa responsabilidade para as prefeituras – de fato entes responsáveis pela provisão desses
serviços – é um equívoco se não houver acompanhamento, no mínimo, de um plano
municipal e/ou regional de urbanização com recursos assegurados para sua execução. A
não conformação desse quadro levou invariavelmente à perda dos investimentos públicos
realizados na região no âmbito desse projeto, já que as redes instaladas não contavam com a
pavimentação – necessária para a sua proteção –, acarretando a sua deterioração em função
da quantidade de lama produzida pelas chuvas e pela ausência regular da coleta de lixo, o
que levava invariavelmente ao entupimento da rede instalada.
98
Tabela 3 - Sistema Sarapuí – Comparação entre a Rede Projetada e a Executada pelo PEBS Baixada Fluminense, RMRJ - 1988
Projetado Executado Município Principais Bairros Extensão da
Rede (km)*População Atendida
Principais Bairros Extensão da Rede (km)
População Atendida
(estimada) Duque de Caxias Centro, Vila São Luiz,
Centenário, Itatiaia, Leopoldina IV, Gramacho, Jardim Guairá, Dr. Laureano, Parque Santo Antônio, Bananal, Jardim Leal e Olavo Bilac
114 185.200 Vila Leopoldina IV, Vila Leopoldina V, Jardim Gramacho, Fronteira, Parque Santo Antônio, Sarapuí, Jacatirão e Dr. Lauriano
31,5 58.700
Nilópolis Chatuba, Centro, Olinda, Nova Cidade e Cabuis
60 96.800 Nenhum bairro beneficiado 0 0
Nova Iguaçu Chatuba, Edson Passos, Mesquita, Vila Emil, Belmont, Vila Fátima, Vila Catolina, Presidente Juscelino, Santa Branca, Vila Itaci, Imperador, Santa Clara, Santo Elias, Rocha Sobrinho, Parque Prata, Santo Antônio da Prata, Grande Rio, Jardim Gláucia, Bom Pastor, Jardim Redentor, Belford Roxo e Graças
216 271.500 Jardim Redentor, Chatuba, Bom Pastor, Jardim Gláucia, Jardim Ideal, Jardim Nova Esperança.
59 84.300
99
São João de Meriti Agostinho Porto, Coelho da Rocha, Vila Norma, Tiradentes, Parque Fluminense, Vila Zulmira, Vila Jurandir, Bairro Fronteira, Grande Rio, Éde, Vilar dos Teles, Vila Farrula, Jardim Eucaliptos, Jardim Heliópolis, Jardim Nóia, Parque Santa Rita de Cássia, São João II, Parque Boa Esperança, Praça da Bandeira, Parque Rio Branco, Jardim Meriti, Vila Araújo, Jardim Paraíso, Parque Vitória, Jardim Califórnia, Jardim Metrópolis e Olavo Bilac
186 227.900 Praça da Bandeira, Coelho da Rocha, Éden, Vila Norma, Grande Rio, Agostinho Porto, Vila Zulmira, Tomazinho, Vila Jurandir, Vila Tiradentes, Parque Alian, Parque Barão do Rio Branco, Vilar dos Teles, Jardim Meriti, Vila Rosali e Jardim Nóia
160,5 221.300
Totais 576 781.400 251 364.300 Fonte: Cedae, 1988 * A extensão da rede indicada se refere ao que foi projetado na primeira etapa do projeto, ainda no governo Brizola, não computado o executado neste governo.
100
O governo Moreira Franco, diante das críticas formuladas pelo Comitê Político de
Saneamento da Baixada – que já reclamava da baixa qualidade das obras e da conseqüente
perda dos investimentos devido às chuvas42 que danificavam a rede instalada –, elaborou
como resposta o Plano de Urbanização das Vias da Bacia do Sarapuí. A justificativa
apresentada para a sua elaboração era a de que a intervenção pública centrada no
saneamento básico levava ao desperdício de recursos públicos se não fosse acompanhada
de obras de microdrenagem e urbanização, mas que, no entanto, esses serviços deveriam ser
assumidos pelas prefeituras.
O Projeto de Urbanização das Vias da Bacia do Sarapuí43 tinha como finalidade
oferecer às prefeituras um plano de urbanização que complementasse os investimentos
realizados pelo governo estadual na rede de esgotamento sanitário, cabendo ao Estado
elaborar e assessorar os municípios e as prefeituras na execução dos planos:
“A título de cooperação com os municípios da Baixada Fluminense, o Estado doará os projetos às prefeituras municipais, podendo assessorá-las na medida de seu interesse, através da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano - Sedur, no encaminhamento de solicitações de financiamento à Caixa Econômica Federal para sua execução”.44
42 Sem rede de microdrenagem, as águas das fortes chuvas que assolam a região escoavam pela rede de esgotos causando danos e perdas dos investimentos realizados. 43 O Projeto de Urbanização de Vias da Bacia do Sarapuí tinha por objetivo oferecer às prefeituras um plano urbanístico capaz de (i) promover o aumento da qualidade de saúde da população nas áreas objeto de intervenção do PEBS; (ii) criar espaços coletivos, de uso comum como áreas de lazer, ao longo das vias públicas; (iii) incentivar a melhoria das habitações e a elevação dos padrões urbanísticos dos bairros do PESB; (iv) melhorar as condições da malha viária, com isso ampliando o acesso da população aos serviços de transporte, coleta de lixo, gás, educação, como também dinamizar o comércio local e (v) propor soluções que otimizem a utilização da infra-estrutura física existente na aplicação em curto prazo de tipologias de vias, segundo estudo do Ibam. O projeto, de responsabilidade da Sedur, tinha duas premissas: (i) adequação às diretrizes fixadas para a macroestruturação urbana da Baixada Fluminense e (ii) recuperação das experiências anteriores de urbanização desenvolvidas pela extinta Fundrem. Em síntese, o projeto previa a urbanização de 160 km de vias, todas situadas na Bacia do Sarapuí, que estavam assim distribuídas: Nova Iguaçu (Chatuba e Redentor) – 37 km; São João de Meriti (Éden, Vila Norma, Praça da Bandeira, Trio de Ouro, Morro das Pedras, Coelho da Rocha e Parque Alian) – 78 km e Duque de Caxias (Parque Santo Antônio e Leopoldina) – 47 km. As intervenções urbanísticas foram elaboradas levando em consideração: (i) a escassez de recursos; (ii) a melhoria do escoamento das águas pluviais, em áreas consideradas de inundações; (iii) as caixas de rua, de forma a permitir a passagem em mão dupla; (iv) a drenagem superficial; (v) a topografia dos bairros e a oestado geral das vias; (vi) a estrutura viária existente e seus principais eixos viários; (vii) o uso e a ocupação do solo urbano e (viii) as áreas com potencial de lazer (Sedur, s/d). 44 Ibid.
101
Sem compromisso com esse projeto e com recursos orçamentários insuficientes para
sua execução, as prefeituras jamais chegaram a executá-lo, mantendo-se mais uma vez à
margem de todo o processo de investimentos realizados na região. Assim, esse projeto de
urbanização foi, na verdade, uma frágil resposta do governo Moreira Franco à redução do
conceito de saneamento ambiental operada por esse governo no âmbito do PEBS.
Quanto a participação comunitária, pode-se dizer que não houve uma mudança de
orientação com a troca de governo. O governo Moreira Franco continuou a reconhecer o
Comitê Político de Saneamento como seu interlocutor privilegiado nas políticas de
saneamento para a Baixada Fluminense. Assim, entre 84 e 90, o Comitê teve a
oportunidade de participar de dois espaços onde as políticas de saneamento estavam sendo
elaboradas: (i) no GTBS - Grupo de Trabalho sobre Baixada Fluminense e São Gonçalo,
que funcionava no âmbito da Cedae durante o governo Brizola e (ii) na Sedur, responsável
pela execução do PEBS no governo Moreira Franco onde aconteciam as reuniões regulares.
Em ambos os momentos, o diálogo foi reconhecidamente importante e contribuiu
decisivamente para que o Comitê de Saneamento se transformasse num ator político de
grande referência no debate sobre as políticas de saneamento para região.
No que se refere à relação com o Comitê de Saneamento, a diferença entre o
governo Moreira Franco e o primeiro governo Brizola está, sobretudo no fato deste último
ser parte da própria criação do ator popular constituído pela articulação das federações de
associações da Baixada, o que, como vimos no segundo capítulo, gerava uma ambigüidade
na sua identidade. No governo Moreira essa ambigüidade se desfaz, na medida em que o
poder público passou a se relacionar com o Comitê enquanto um ator político autônomo.
Não obstante, o governo manteve a esfera pública em torno da política de saneamento,
articulada agora na Sedur, que passou a ser o órgão técnico responsável pela integração de
todas as intervenções do poder público nesse setor. Assim, a Sedur tinha ascendência sobre
os demais órgãos públicos estaduais que operavam com os diferentes componentes ligados
ao saneamento, mesmo quando estes coordenavam projetos específicos, como foi o caso do
Plano de Setorialização do Abastecimento de Água para a região, gerido pela Cedae. É este
papel técnico e político que possibilitou a ampliação da esfera pública constituída em torno
da política de saneamento da Baixada Fluminense. Foi nessa esfera que se travaram todos
102
os debates envolvendo as intervenções de saneamento do Estado, o que implicou não só o
PEBS, como também o Plano de Setorialização e o Projeto Reconstrução Rio.
Ao mesmo tempo, essa dinâmica impulsionou o Comitê em direção a sua maior
qualificação técnica e política para intervir nessa esfera. Aqui cabe destacar o papel
imprescindível da FASE, que se constitui na organização não governamental de assessoria
permanente ao Comitê, desempenhando dois papeis fundamentais na atuação desse ator na
sua relação com o Estado: (i) a tradução da linguagem técnica de forma a ser acessível às
lideranças do Comitê, o que era realizado mediante a produção de subsídios e atividades de
capacitação, e (ii) a formulação das demandas populares em proposições de políticas
públicas de forma que estas fossem agregadas aos planos e projetos do poder público.
Paralelamente ao debate sobre a importância da microdrenagem e da urbanização,
emergia uma outra questão de grande relevância para a Baixada Fluminense, trazida pelo
Comitê de Saneamento: a dragagem dos rios e canais das Bacias dos rios Sarapuí e Pavuna,
que se encontravam em situação de assoreamento, comprometendo o escoamento das águas
e produzindo inundações a cada chuva de grande densidade pluviométrica, o que é
recorrente na região. Em 1988, as fortes chuvas trazem em definitivo esse tema para a
agenda política do Estado. Essa calamidade geraria protestos e mobilizações sociais,
levando o Governo do Estado a elaborar e implementar um projeto emergencial, chamado
Projeto Reconstrução Rio, que será analisado após o Plano de Setorialização do
Abastecimento de Água na Baixada Fluminense, cujo desenvolvimento foi concomitante ao
PEBS.
3.4. Plano de Setorialização do Abastecimento de Água na Baixada Fluminense O Plano de Setorialização do Abastecimento de Água da Baixada Fluminense foi
desenvolvido no âmbito da administração do governador Moreira Franco, sob a
responsabilidade da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur) e da Cedae. Esse plano
tinha por objetivo “dividir a região em 48 áreas de influência e criar um sistema próprio de
abastecimento, com uma subadutora ligando a adutora mais próxima a um reservatório de
água, para cada uma delas” (documento interno da Sedur, s/d) Nesse sentido, seriam
assentados na Baixada Fluminense aproximadamente 3.400 km de tubulações, distribuídas
103
entre tronco alimentadores e redes de abastecimento (distribuição), além de construídos 31
novos reservatórios de água e a reforma de outros 17.
O projeto foi dividido em duas etapas: a primeira, prevista para ser concluída em
1990, pretendia elevar os índices de abastecimento da região a 95% da população e a
segunda, universalizar o acesso aos serviços até o ano 2010.45 A justificativa do governo do
Estado era a de que, desde a fusão dos antigos Estado da Guanabara e Estado do Rio de
Janeiro (1975), os investimentos na região sempre assumiram um caráter emergencial e
que, portanto, as intervenções em geral prescindiram de diagnóstico apropriado e
planejamento adequado à realidade local. Assinala o plano que a utilização inadequada da
água e as perdas substanciais, algo em torno de 40%, eram males que deveriam ser
enfrentados. O abastecimento de água seria ampliado em 23% em relação ao padrão
vigente, o que significaria um aumento de 2.000 l/s. (Cedae, s/d)
O total de investimentos previstos era de CZ$ 213 milhões de cruzados, com
intervenções concentradas no assentamento de troncos alimentadores, subadutoras e redes
nos quatro municípios da Baixada: Duque de Caxias (Centenário e Vila Saudade); Nilópolis
(zonas altas e baixas da cidade); Nova Iguaçu (Brasília, Graça e parte do Lote XV, Jardim
Meu Retiro, Juscelino Kubitschek e Austin) e São João de Meriti (Vilar dos Teles).
A execução do projeto, efetivamente implantado somente na sua primeira fase,
ampliou o acesso ao abastecimento de água na Baixada Fluminense com a construção de 89
km de rede46, correspondendo a implantação de rede nos municípios de Nova Iguaçu (61
km), Nilópolis (9 km), Duque de Caxias (15 km) e São João de Meriti (4 km), beneficiando
860 mil moradores.
Como já assinalamos, esse plano, tal como o PEBS, se enquadra na concepção de
saneamento básico do governo Moreira Franco, continuando portanto, a dimensão
45 As obras realizadas nos municípios estariam assim distribuídas: Nilópolis (redes de distribuição, 28.200 m. troncos alimentadores, 16.200 m - subadutora, 1.800 m e um reservatório de 5.000 m³); São João de Meriti (redes de distribuição, 105.010 m - troncos alimentadores, 65.511 m - subadutoras, 8.050 m e cinco reservatórios com capacidade variando entre 2.500 e 17.500 m³); Duque de Caxias (redes de distribuição, 439,110 m - troncos alimentadores, 407.390 m - subadutoras, 12.550 m e dez reservatórios com capacidade variando entre 5.000 e 25.000 m³) e; Nova Iguaçu (redes de distribuição, 1.595 km - troncos alimentadores, 750.854 m - subadutora, 43.950 m e 27 reservatórios com capacidade variando entre 5.000 e 37.500 m³). Cedae,s/d. 46 O documento da Sedur cita 100 km de rede instalada e inclui o município de São Gonçalo.
104
ambiental ausente nessa intervenção produzida na Baixada Fluminense. O Comitê de
Saneamento permaneceu nesse período sendo o principal interlocutor da Sedur para o
debate sobre as principais políticas de saneamento para região. Todavia, no que tange ao
Plano de Setorialização, devemos ressaltar que o mesmo teve a sua execução sob a
responsabilidade direta da Cedae, que não disponibilizava de forma regular as informações
necessárias para que os movimentos pudessem interferir. A participação nesse projeto era
restrita à esfera pública coordenada pela Sedur, quando, então, a Cedae era demandada a
prestar informações e a articular suas intervenções às discussões travadas nesse âmbito.
Tomando como referência as entrevistas realizadas e a análise dos documentos da Cedae,
constatamos que este plano foi, no contexto das intervenções públicas na Baixada
Fluminense, o que menor interação teve com os movimentos populares articulados em
torno do Comitê Político de Saneamento.
3.5. Projeto Reconstrução Rio 1988-1996
Em fevereiro de 1988 a Baixada Fluminense vive uma situação de calamidade
pública: a região é surpreendida por uma das piores enchentes da sua história, causada pelas
fortes chuvas do verão desse ano. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro está diante de
um cenário de milhares de desabrigados e dezenas de mortos, em vários bairros. A situação
é de grande perplexidade, pois a perda material e, em alguns casos, humana é real. Somente
na Baixada Fluminense foram 4.150 desabrigados com 18 mortos. A resposta do governo
estadual foi a elaboração de um projeto de emergência que pudesse enfrentar a frágil infra-
estrutura urbana existente na região, em que pese os investimentos públicos já realizados
nos anos anteriores. Nesse sentido, foi elaborado e aprovado em 1988 o Projeto
Reconstrução Rio que previa intervenções na Baixada Fluminense e em dois outros
municípios atingidos pelas fortes chuvas, Rio de Janeiro e Petrópolis. Ao longo de quase
uma década, este projeto marcará as intervenções públicas de saneamento na região. Mas,
em linhas gerais, seus resultados e impactos mais significativos estão contidos no período
do governo Brizola, o que justifica, a nosso ver, uma análise com maior ênfase nessa
administração. Os investimentos ali realizados foram da ordem de US$ 298 milhões e
105
tiveram financiamento do Banco Mundial (BIRD), da Caixa Econômica Federal (CEF) e do
governo do Estado do Rio de Janeiro.47
Os objetivos gerais descritos no contrato de financiamento eram:
(i) reconstruir e recuperar a infra-estrutura básica na área do Projeto, danificada pelas enchentes de fevereiro e março de 1988; (ii) implementar medidas preventivas de ordem física e institucional para reduzir os efeitos de futuras enchentes e (iii) dar assistência ao Estado e ao [Município do] Rio no desenvolvimento de um programa de superação de futuras emergências e calamidades naturais.48
Em relação aos seus objetivos específicos, o contrato de financiamento previa as
seguintes ações:
(i) repavimentação de cerca de 110 km de estradas e construção de aproximadamente
de 7,5 km de muros de contenção e respectiva drenagem, assim como
reconstituição e reparo de cerca de 17 pontes;
(ii) execução de subprojetos elegíveis para reconstrução, reparo e recuperação de
drenagem primária, secundária e terciária em oito bacias de rios, realizando, entre
outros, a dragagem de canais e rios e a construção de diques, vazadouros e obras
civis correlatas ao longo dos canais e rios;
(iii) execução de subprojetos elegíveis para instalação de cerca de 370 km de esgoto,
14.630 ligações de esgoto, cinco estações de bombeamento e duas estações de
tratamento biológico e filtragem de esgoto;
(iv) execução de subprojetos elegíveis para a construção de seis usinas para
transformação de resíduos sólidos em adubo;
(v) reflorestamento de 30 encostas, compreendendo em média 1.200 hectares, através
do plantio de mudas;
47 O Projeto Reconstrução Rio foi orçado em US$ 355 milhões, sendo destinados para a Baixada Fluminense US$ 298 milhões. Na região, esses recursos estavam distribuídos da seguinte forma por fonte de financiamento: BIRD (US$ 125 milhões), Caixa Econômica Federal (US$ 153 milhões) e Governo do Estado do Rio de Janeiro (US$ 10 milhões). 48 Acordo de Empréstimo (Projeto de Reconstrução e Prevenção contra Inundações no Rio) entre Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD e Caixa Econômica Federal - CEF, Empréstimo nº 2975 – Brasília, setembro de 1988.
106
(vi) construção de cerca de 4.000 lotes urbanizados com serviços mínimos variando de
40 a 70 m² cada para beneficiários elegíveis, e programa de reassentamento de
aproximadamente 16.000 pessoas residentes nas áreas afetadas pelas enchentes;
(vii) recuperação de cerca de 37 escolas no Estado e cerca de outros seis prédios
públicos, bem como recuperação e execução de medidas preventivas de futuros
danos no sistema de abastecimento de água em 22 localidades, incluindo uma
estação de bombeamento, 16 pequenos reservatórios e cerca de oito seções de
tubulação;
(viii) aquisição e utilização de aproximadamente 21 veículos e equipamentos para
salvamentos em emergência, ampliando a capacidade da Secretaria de Estado em
lidar com emergências futuras.
O projeto previa também um conjunto de ações que se situavam no campo da
assistência técnica. São elas: (i) preparação de um plano de defesa civil para a Região
Metropolitana do Rio de Janeiro; (ii) preparação de plano de reflorestamento de médio e
longo prazo para a RMRJ; (iii) preparação de um plano de contenção de encostas para
RMRJ; (iv) desenvolvimento e implementação de um programa de melhoria do tratamento
e destinação de resíduos sólidos; (v) preparação e implementação de um programa de
educação ambiental e conscientização sobre o meio ambiente e (vi) preparação e
implementação de um programa de aprimoramento da administração fiscal dos municípios.
O Projeto Reconstrução Rio apresenta uma particularidade em relação aos demais
projetos realizados na Baixada Fluminense em razão do seu caráter emergencial, que é a
inexistência de um documento que contenha o conjunto das intervenções previstas na
região. O contrato de financiamento apresenta as linhas gerais da proposta de intervenção
como descrito anteriormente e o governo do Estado produzia o detalhamento das ações, que
eram submetidas às agências de financiamento – CEF e BIRD – para aprovação e
conseqüente liberação dos recursos.
Buscando otimizar as ações e criar um núcleo de referência para a execução do
projeto, foi criado em 1988 o Geroe - Grupo Executivo para Recuperação e Obras de
Emergência com o objetivo de “garantir a captação de recursos nacionais e internacionais
107
necessários, bem como tornar ágeis os procedimentos administrativos para a gestão e
controle de recursos significativos a serem negociados e contratados pelo governo estadual”
(Geroe, 1992:8).
Apesar do seu caráter emergencial e da aprovação do projeto em tempo recorde
(agosto de 1988), as primeiras intervenções só começariam a ser realizadas em julho de
1990, quando o governo federal (Collor de Mello) aprovou a liberação dos recursos que
faziam parte da contrapartida exigida pelo Banco Mundial, no montante de US$ 66,2
milhões (através da Caixa Econômica Federal), assegurando assim o início das obras.
Em um contexto de pressão do movimento social pelo início imediato das obras, em
razão da conjuntura eleitoral daquele ano, o final do governo Moreira Franco foi marcado
pela utilização dos recursos liberados em intervenções pontuais e desarticuladas, não
atingindo os objetivos descritos no projeto. Devemos sublinhar que a concepção de
saneamento desse governo – centrada no saneamento básico – fez com que o governo
estadual não preparasse um plano global de saneamento ambiental para a região.
O segundo governo Brizola (1991-1994) tem como traço distintivo a ruptura com o
modelo anterior, retornando com a concepção de saneamento ambiental que já marcara sua
primeira administração. Com um novo papel, o Geroe propõe uma reformulação conceitual
e metodológica, conferindo ao projeto um modelo técnico baseado na integração das ações
que deveriam ser realizadas de forma a atacar os problemas estruturais da região,
evidentemente centrada, nesse momento, na questão da prevenção das enchentes, com foco
nas intervenções de macrodrenagem dos grandes afluentes da região e na construção da
Barragem do Gericinó, que seria responsável pela retenção das águas do Rio Sarapuí. Essa
nova orientação assegurava a participação popular nas discussões em torno do projeto, onde
o Comitê Político de Saneamento continuaria sendo o principal interlocutor no debate sobre
as macropolíticas de saneamento para a Baixada Fluminense.
A seguir, apresentamos uma síntese dos componentes do Programa Reconstrução
Rio, identificando seus principais resultados a partir das intervenções previstas para a
Baixada Fluminense.
108
• Componente Macrodrenagem
Este componente era o que tinha maior peso no âmbito do programa, representando
43% de todos os recursos utilizados, algo em torno de US$ 130 milhões. As intervenções
estiveram concentradas na dragagem dos grandes afluentes da região, quais sejam os rios
Sarapuí, Iguaçu-Botas, Pavuna-Meriti e seus canais e na construção da Barragem do
Gericinó. A macro drenagem seria realizada com base em três tipos: (i) aperfeiçoamento da
capacidade de escoamento dos rios e canais; (ii) construção de duas barragens de contenção
de cheias e; (iii) remoção de obstáculos que impediam o escoamento natural dos rios. Nesse
componente os resultados foram efetivamente alcançados, representando uma redução da
incidência dos atingidos diretamente pelas inundações, segundo cálculos do próprio
governo, de 350 mil pessoas para 189 mil, somente na Bacia do Iguaçu/Sarapuí.
• Componente Reassentamento
O projeto previa o reassentamento de 3.200 famílias, sendo 2.400 residentes em
áreas objeto de intervenção direta da Serla e outras 800 que residiam em áreas consideradas
de risco dentro no perímetro de intervenção do projeto49. Para atender a essa demanda, o
projeto previu a construção de quatro conjuntos habitacionais na Baixada Fluminense –
Campo do América (425 unidades – Nova Iguaçu)50; Barro Vermelho (1.500 unidades –
Belford Roxo), Missões (400 unidades – Duque de Caxias) e Sítio do Livramento (630
unidades – Nova Iguaçu). O resultado mais concreto deste componente foi o
reassentamento de 3.115 famílias51 que moravam nas margens dos rios e canais que cortam
a Baixada Fluminense e foram objeto de intervenção por parte da Serla.
49 Inicialmente, conforme constava no contrato de financiamento, o reassentamento se daria através de 4.000 lotes urbanizados que seriam destinados às famílias pelo governo estadual. Essa proposta, segundo o Relatório do Geroe para a missão do Banco Mundial, demonstrou-se inviável na medida em que as famílias não possuíam recursos para construir suas unidades habitacionais, o que levou o governo a mudar a proposta original, incorporando a construção das unidades habitacionais (Geroe, 93 – Plano Geral de Reassentamento). 50 O campo do América está situado hoje no município de Mesquita, pois o mesmo foi emancipado de Nova Iguaçu. 51 Precisamente, os números por cada conjunto habitacional são os seguintes: Sítio do Livramento (630 famílias); Barro Vermelho (1500 famílias); Campo do América (425 famílias); Botas (300 famílias); Missões
109
• Componente Esgotamento Sanitário
Neste item, o escopo do projeto previa: (i) implantação de 60 km de rede de esgoto
e 12 km de coletores tronco; (ii) construção da elevatória de Coelho da Rocha – São João
de Meriti; (iii) construção da elevatória do Jardim Metrópole – São João de Meriti; (iv)
construção da elevatória final do Sistema Gramacho; (v) execução de 10.400 ligações
prediais e (vi) construção da lagoa de estabilização do Sistema Gramacho (Barros, 1995).
Este componente concentrou suas intervenções na Bacia do Rio Sarapuí e seus resultados
mais significativos, até 1995, foram: 400 km de rede coletora de esgotos; cinco elevatórias,
uma estação de tratamento e a lagoa de estabilização construída em Gramacho para atender
a 130.000 habitantes. O impacto das obras pode ser percebido pelos números que se
seguem: Duque de Caxias – 60 km de rede, 2 elevatórias, 1 estação de tratamento e 4.000
ligações domiciliares; Belford Roxo – 40 km de rede, 1 elevatória e 1.500 ligações
domiciliares; Nova Iguaçu, 30 km de rede, 1 elevatória e 1.200 ligações domiciliares e São
João de Meriti – 252 km de rede, duas elevatórias e 7.500 ligações domiciliares. Sendo, a
população total beneficiada de aproximadamente 240.000 habitantes.
• Componente Resíduos Sólidos
A questão dos resíduos sólidos aparece no Projeto Reconstrução Rio, tomando-se
por base uma estratégia de recuperação de 6 a 13% do lixo bruto. Nesse sentido, seriam
construídas três usinas de reciclagem de lixo nos municípios de Nova Iguaçu, Belford Roxo
e Queimados. Este componente se subdivide em três subprojetos: (i) obras e aquisição de
equipamentos e veículos; (ii) modelo institucional e (iii) programas de treinamento das
prefeituras. Em setembro de 1996, data dos últimos documentos que dispomos, havia uma
única usina construída (Belford Roxo) e fora de operação, já que os materiais necessários
para seu funcionamento foram transferidos para a prefeitura municipal por solicitação do
Prefeito de Belford Roxo, Mair Rosa. As demais usinas tiveram seus projetos paralisados,
com a promessa de serem retomados no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara.
(260 famílias). Além dessas famílias reassentadas, este componente ainda reconstruiu 200 residenciais que foram parcialmente destruídas e indenizou 120 famílias que não desejam novas casas.
110
• Componente Educação Ambiental
Este componente tinha por meta constituir-se num elemento de integração de todas
as áreas de ação envolvidas no Projeto Reconstrução Rio. Para tanto, visava a mobilização
dos órgãos ligados ao meio ambiente e à educação. O projeto tinha um enfoque claramente
comportamental, expresso já no seu objetivo de promover a adoção de atitudes e
comportamento que possibilitem a valorização de medidas preventivas visando a redução
dos riscos ambientais ora enfrentados pela população nas áreas atendidas pelo projeto
Reconstrução Rio. Este componente não produziu efeitos práticos concretos, na medida em
que não foi capaz de integrar o conjunto das lideranças e entidades que mantinham uma
relação direta com o projeto. Em meio a problemas jurídicos de licitação, a empresa
vencedora não fez mais do que distribuir centenas de milhares de cartilhas, em poucas
atividades de impacto bastante discutível sob o ponto de vista político-pedagógico.
Em síntese, os resultados mais significativos do Projeto Reconstrução Rio foram os
seguintes: (i) a construção da Barragem do Gericinó; (ii) os principais afluentes da região
dragados e /ou canalizados; (iii) o reassentamento de 3.115 famílias em casas de 44 m²; (iv)
a construção de 400 km de rede coletora de esgotos, cinco elevatórias, uma estação de
tratamento (a lagoa de estabilização construída em Gramacho) e (v) a elaboração de um
programa de reestruturação dos serviços de limpeza urbana para as prefeituras da Baixada
(Oliveira, Porto e Santos Júnior, 1995). No entanto, apesar do seu caráter integrador e da
incorporação do conceito de saneamento ambiental, o projeto não foi capaz de produzir
uma nova cultura de gestão das políticas de saneamento ambiental para as cidades nele
envolvidas. Neste sentido, o debate sobre a universalização do acesso aos serviços de
saneamento não teve centralidade no seu desenvolvimento, bem como não foram
impulsionados canais de participação da sociedade nas prefeituras com vistas a elaboração
e gestão dessas políticas. Desta maneira podemos compreender alguns dos insucessos do
projeto.
O projeto emergencial de resposta às enchentes provocadas pelo assoreamento dos
rios não incorporava uma visão sistêmica do saneamento na Baixada Fluminense. (Oliveira,
Porto e Santos Júnior, 1995). Assim, a reconhecida constatação da ausência de serviços de
111
esgotamento sanitário, abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, coleta e
destinação final dos resíduos sólidos, além de políticas públicas ambientais e de uso e
ocupação do solo, deveria ser geradora de um novo modelo de gestão das políticas e/ou
projetos, no qual a dimensão ambiental estivesse totalmente integrada ao conjunto das
ações de saneamento, objetivando o enfrentamento das desigualdades socioambientais,
como vimos na abordagem da justiça ambiental.
Mesmo incorporando o conceito de saneamento ambiental e buscando maior
integralidade nas ações, o Geroe esteve diante de uma contradição. Enquanto o projeto
financiado tinha caráter emergencial com focos bem definidos na macrodrenagem e na
prevenção às enchentes, seu desenvolvimento ao longo de quase uma década esbarrava na
necessidade de investimentos em outras prioridades se tomarmos como referência a
dimensão do saneamento ambiental, o que, entretanto não foi viabilizado por não fazer
parte do escopo original do projeto. Concretamente, redes de esgotamento sanitário,
tratamento de esgotos, microdrenagem e urbanização, e modernização administrativa das
prefeituras para a gestão do saneamento ambiental eram componentes praticamente
ausentes do projeto, apesar da abordagem adotada pelo governo do Estado e compartilhada
pelos atores sociais do Comitê Político de Saneamento. Essa contradição é sentida pelo
governo estadual que toma a iniciativa de elaborar um novo projeto ao final dos anos 90: o
Projeto de Despoluição da Baía de Guanabara, enfrentando a questão do esgotamento
sanitário e do abastecimento de água. Posteriormente, já no governo Marcelo Alencar
(1995-1998), um outro projeto vai ainda trabalhar a dimensão da urbanização integrada aos
serviços públicos (principalmente saúde e educação) e de saneamento, o Projeto Nova
Baixada.
Porém mesmo no que se refere às ações de macrodrenagem e combate às enchentes,
o Projeto Reconstrução Rio demonstra claras lacunas, identificadas pelo próprio governo e
relacionadas, sobretudo, ao alcance das intervenções emergenciais e à ausência de um
planejamento de gestão dos recursos hídricos para a região. Nesse sentido, por iniciativa da
Serla - Superintendência Estadual de Rios e Lagoas, foi elaborado o Plano Diretor de
112
Recursos Hídricos da Bacia do Rio Iguaçu/Sarapuí52. O plano foi elaborado como um
instrumento de capacitação da própria Serla e demais atores estaduais para a gestão
integrada da Bacia do Rio Iguaçu/Sarapuí. Segundo Kelman (1995), esta bacia é uma das
mais problemáticas do Estado, apresenta áreas de grande densidade urbano/industrial e
contém mananciais importantes para o abastecimento de água para a região. Neste sentido,
o plano diretor assumia o papel de orientar o Estado na complementação das ações
propostas pelo Projeto Reconstrução Rio, sem o qual os seus resultados estariam
comprometidos. Apesar da sua relevância, o plano não se transformou em um programa de
intervenção e tampouco vem orientando a ação dos sucessivos governos estaduais e
municipais.
A descontinuidade administrativa foi outro fator de relevância geral no âmbito do
Projeto Reconstrução Rio que produziu impactos muito negativos. Este projeto atravessou
três governos estaduais, com linhas programáticas totalmente diferentes uma das outras. O
governo Moreira Franco (PMDB), responsável por sua concepção e formatação, executou o
projeto por apenas seis meses durante período de liberação dos recursos e o final de seu
mandato; o governo Brizola (PDT) assume em meio a uma crise e, no bojo da auditoria do
Banco Mundial, o governo decide retirar o caráter de emergência do projeto, conferindo-lhe
uma dimensão mais permanente e ambiental, mesmo com os constrangimentos dados pelas
52 O Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia do Rio Iguaçu/Sarapuí se constitui em um estudo de referência para o planejamento das ações públicas, capaz de identificar problemas estruturais de inundações ao longo da Bacia, assim como compreender suas causas e conseqüências, de forma a orientar o conjunto de políticas públicas para a região. Desta forma, seus objetivos eram: (i) elaborar, no prazo de um ano, um Plano Diretor de Controle de Inundações para a Bacia do Iguaçu, com uma visão integrada de gestão, visando o Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia e (ii) construir as bases para que a Serla se transforme numa Agência de Gestão de Recursos Hídricos do Estado do Rio de Janeiro (Serla, 1996). No estudo, propõe-se que as políticas públicas sejam organizadas em três categorias distintas: (i) obras ou ações estruturais, que se constituem num conjunto de intervenções voltadas para o combate direto aos problemas de inundação; (ii) ações de implementação, voltadas para garantir a implantação das obras e (iii) ações de apoio, de longo prazo, voltadas para obtenção de dados, estudos preliminares, desenvolvimento de modelos demonstrativos e elaboração de projetos de lei, que devem servir de referência para as prefeituras municipais. Segundo esse estudo, seria ainda necessário o investimento de cerca de US$ 198 milhões de dólares na região para a complementação das obras de macrodrenagem e prevenção às enchentes.
113
linhas de financiamento53. A retirada do caráter emergencial e a abordagem mais global
adotada pelo governo Leonel Brizola foram reconhecidas como um avanço, que,
“no entanto, mostrou-se incapaz de elaborar um plano estratégico para a Baixada em parceria com os atores locais. Esse foi o grande limite da gestão do projeto, e o que impediu de se mobilizarem as prefeituras, os agentes políticos, os movimentos populares e os setores privados, em torno de metas e políticas construídas de forma negociada no tratamento do saneamento ambiental. A ausência de um órgão metropolitano responsável pelo planejamento regional, pela elaboração de diagnósticos, pela implementação de políticas de desenvolvimento econômico e pela capacitação técnica das prefeituras tornou ainda mais difícil atingir esse objetivo.” (Oliveira, Porto e Santos Junior, 1995:23)
No que tange à participação social na gestão do Projeto Reconstrução Rio, o
governo Brizola só começou efetivamente o diálogo com o Comitê Político de Saneamento
da Baixada Fluminense após a reestruturação do projeto, ou seja, após o primeiro ano de
seu governo. Mesmo reconhecendo a importância da participação popular, devemos
ressaltar que o formato assumido nessa administração foi diferente daquele imprimido pelo
governo Moreira Franco, onde os espaços de participação, assim como seus interlocutores
já estavam definidos.
Na administração Brizola, o processo de incorporação da participação foi mais lento
e a dinâmica de reuniões, quase que totalmente reconstruída, sendo necessário reconhecer
quais eram os novos interlocutores do poder público para o debate sobre as demandas
trazidas pelo Comitê Político de Saneamento. Nesse contexto, um aspecto de grande
relevância foi a realização dos seminários temáticos na Baixada, promovidos pelo Comitê
de Saneamento em parceria com o Geroe, ampliando a participação de lideranças
comunitárias na discussão que não se restringia apenas as obras em si, mas, sobretudo, à
concepção que orientava o Projeto Reconstrução Rio. Esses seminários, num total de seis,
foram fundamentais para que a participação popular fosse consolidada no âmbito dessa
administração; aproximou o governo da comunidade e constituiu-se num importante espaço
de formação para as lideranças comunitárias. Com efeito, podemos dizer que nesse governo
53 Ainda assim, as principais ações de macrodrenagem que estavam previstas, centradas nos grandes afluentes que cortam a região – Sarapuí, Pavuna-Meriti e Iguaçu-Botas –, somente foram realizadas no biênio 94/95, já que no governo Moreira Franco essas intervenções se dirigiam para canais de pequeno e médio portes.
114
se manteve a dinâmica de gestão da política de saneamento referenciada em torno da esfera
pública iniciada no seu primeiro governo.
Os efeitos da participação popular no Projeto Reconstrução Rio podem ser sentidos
na reorientação de três importantes componentes: na macrodrenagem, onde seus impactos
seriam menores caso não fossem realizadas intervenções (mesodrenagem) nos rios e canais
de menor porte; no reassentamento das famílias ribeirinhas, que passaram a morar em casas
de 44 m², pagando 15% do valor do salário mínimo e residindo próximo de suas antigas
residências, quando no projeto original teriam acesso a moradias de 22 m² em locais
distantes que proporcionariam uma ruptura com os seus laços de vizinhança e solidariedade
historicamente construídos em seus antigos locais de moradia; e na educação ambiental,
quando pela primeira vez na história de programas dessa natureza na Baixada Fluminense,
um representante do movimento popular participou da Comissão de Licitação, levando a
fortes denúncias e conflitos em torno da implementação desse componente.
Apesar de todos os problemas, o Projeto Reconstrução Rio proporcionou um dos
momentos de maior debate e reflexão social sobre as políticas públicas de saneamento para
a Baixada Fluminense. A centralidade da participação popular no contexto da
democratização do país e a densidade política dos movimentos populares urbanos
consolidaram um perfil de atuação política por parte do principal ator social na região – o
Comitê Político de Saneamento, Habitação e Meio Ambiente da Baixada Fluminense –,
como um interlocutor capaz de interagir política e socialmente na construção de propostas
alternativas. A referência pública no debate e na construção dessa política, bem como a
capacidade de articulação temática e de mobilização de massa, fez com que esse ator
colocasse no centro do debate das políticas públicas três elementos fundamentais: (i) o
controle social e a questão da participação popular; (ii) a questão do saneamento como
expressão das desigualdades socioambientais que marcam a região e como direito de
cidadania; (iii) o planejamento integrado das ações, uma vez que as ações em geral eram
pautadas por projetos localizados e/ou focalizados, incorporando a contribuição dos atores
envolvidos com a temática nos espaços objeto de intervenção pública. Por mais paradoxal
que seja foi na difícil experiência de interlocução com três governos – Moreira Franco,
Leonel Brizola e Marcello Alencar – com seus contraditórios movimentos de abertura e
115
fechamento ao diálogo, autoritarismo e respeito em relação às concepções em disputa,
transparência e manipulação nas informações estratégicas, que o Comitê Político de
Saneamento da Baixada Fluminense amadureceu na sua ação pública vivendo o auge da
referência popular como ator político e social.
3.6. Programa de Despoluição da Baía de Guanabara - PDBG
O Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) foi concebido durante a
Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de
Janeiro em 1992 e posteriormente denominada Rio-92. Essa foi a segunda de um ciclo de
conferências realizadas pela ONU na década de 90, porém, foi a primeira a ganhar uma
dimensão global, na medida em que, em torno dessa temática, havia um grande número de
atores organizados em todo o mundo. Esse ambiente externo vai influenciar o Governo do
Estado do Rio de Janeiro na elaboração do programa, centrado na despoluição da Baía de
Guanabara, considerada um dos cartões postais da Cidade do Rio de Janeiro.
Elaborado durante a segunda administração de Leonel Brizola, o PDBG apresenta-
se com o maior conjunto de obras de saneamento dos últimos 20 anos no Estado do Rio de
Janeiro, obras estas que visavam melhorar a qualidade de vida na Baixada Fluminense, na
medida que ampliariam cobertura e a qualidade dos serviços na região. Assim, o PDBG
tinha por objetivo central recuperar os ecossistemas ainda presentes no entorno da Baía de
Guanabara e resgatar gradativamente a qualidade das águas dos rios que nela deságuam,
através da construção de sistemas de saneamento adequados. Assim como na segunda fase
do Projeto Reconstrução Rio, o PDBG trabalhava com uma concepção de saneamento a
partir de uma perspectiva ambiental, envolvendo diversos componentes: esgotamento
sanitário e tratamento de efluentes, abastecimento d'água, resíduos sólidos,
macrodrenagem, controle da poluição industrial e educação ambiental. O Programa
envolvia, portanto diferentes organismos de governo: A Cedae era responsável pelos
116
componentes esgotamento sanitário e abastecimento d'água; a Serla, pela macrodrenagem;
a Sosp - Secretaria de Obras e Serviços Públicos, pelo componente resíduos sólidos; e a
Feema, pelos programas ambientais complementares.
Em termos de recursos o PDBG mobiliza inicialmente 793 milhões de dólares,
sendo este valor posteriormente corrigido para. 860,5 milhões de dólares. A distribuição
dos recursos por fonte de financiamento é a seguinte: US$ 236,7 milhões do JIBIC (Japan
Bank for International Cooperation); US$ 350 milhões do BID e US$273,80milhões do
Governo do Estado do Rio de Janeiro/Cedae. A distribuição dos recursos mobilizados pelo
programa por fonte de financiamento encontra-se no Quadro 2:
Quadro 2 –Tipo de custos por fonte de recursos (US$ milhões) – Custos iniciais em Abr/94
Tipo/Fonte Engenharia/
Adm.
Custos Diretos Custos Concorrentes
Juros e Imprevistos
Total
Op. Crédito 220,9 8,3 70,8 300,0 BID
Op. Especiais 10,3 35,0 4,0 0,7 50,0
OECF 13,5 169,7 53,5 236,7
Governo 8,5 128,8 1,9 10,2 149,3 Estado
Cedae 22,0 30,8 5,8 65,9 124,5
Total 48,2 568,5 20,0 155,7 860,5
Fonte: Grupo Executivo para a Despoluição da Guanabara – 1996
No seu escopo, o PDBG trabalha com uma concepção ampla de saneamento, que
podemos considerar próxima a uma perspectiva de saneamento ambiental, englobando
diferentes componentes: esgotamento sanitário e tratamento de efluentes, abastecimento de
117
água, resíduos sólidos, macrodrenagem, controle da poluição industrial e educação
ambiental.
O centro do programa é o esgotamento sanitário, componente que concentra a maior
parte dos investimentos (51,2%), onde estão previstas ações que viriam a criar o cordão
sanitário no entorno da Baia de Guanabara, através da construção de cinco novas de
estações de tratamento de esgotos (Sarapuí, Pavuna, Alegria, Paquetá, e São Gonçalo), da
reforma e ampliação das estações de tratamento da Penha, (da Ilha do Governador e Icaraí)
da ampliação da rede de coleta e das ligações domiciliares (1.200km de rede e 139.000
ligações domiciliares), notadamente nos municípios da Baixada e São Gonçalo, onde os
sistemas de esgotamento eram até o início do programa praticamente inexistentes (Tabela
4).
No que diz respeito a dimensão técnica, isto é às escolhas relativas à concepção, à
construção, à manutenção, dos sistemas verificamos que o PDBG não introduz grandes
inovações. O componente esgotamento sanitário trabalha essencialmente com sistemas
tradicionais, propondo estações de tratamento primárias de grande porte. A concepção
original do programa previa a construção de estações de tratamento de nível secundário, de
maior eficiência com relação a remoção de carga orgânica, mas que implicam maiores
custos de implantação e manutenção. No entanto foi priorizada a aplicação dos recursos
financeiros disponíveis na construção de uma extensão maior de rede de coleta, o que traria
um benefício mais imediato a um numero maior de população. Os projetos executivos das
estações de tratamento foram elaborados considerando a possibilidade do tratamento
secundário, que poderá ser alcançado em uma segunda fase do programa.
Concluída a primeira fase do programa, chegaríamos a uma redução pela metade
dos quase 20 mil l/s de esgotos lançados nas águas da baía. Cabe ressaltar que o programa
118
quando concluído não vai efetivamente despoluir a Baía de Guanabara, mas reduzir a carga
de poluentes lançados na mesma. Não estão previstas nesta fase ações específicas para
limpeza do espelho d'água.
Ainda no componente saneamento, o PDBG visa também equilibrar a oferta e a
demanda de água na Baixada Fluminense e São Gonçalo, através da construção de
reservatórios e novas linhas de distribuição, e da adoção de mecanismos para o controle de
gastos e perdas de água, entre os quais destaca-se a hidrometração. Nestas áreas,
notadamente na Baixada, o sistema funciona de forma precária, pois não existe uma
separação física entre adução e distribuição. Uma série de usuários capta água diretamente
das linhas de adução, sendo estas ligações, em grande parte clandestina. Isto provoca falta
de água ou distribuição irregular em diversos pontos, e ainda ocasiona pressão excessiva
em outros. Essa situação conduz ao aumento de vazamentos provocando danos às
tubulações e grande desperdício. As sucessivas ampliações da produção e da adução de
águas, não chegaram a gerar um volume suficiente para abastecer a região da Baixada
Fluminense. Ressaltamos ainda que tanto na região da Baixada como em São Gonçalo estas
ampliações forma sem a definição de suas áreas de influência, levando a um sistema com
alto grau de incertezas, que funciona precariamente, baseado em permanentes manobras de
água. Cabe lembrar que a questão da setorialização do abastecimento de água na Baixada já
havia sido prevista no governo Moreira Franco quando foi elaborado o Plano de
Setorialização de Abastecimento de Água da Baixada Fluminense, que no entanto só foi
implantado apenas parcialmente. Este componente envolve 37% dos recursos mobilizados
pelo programa (Tabela 5).
No campo dos resíduos sólidos, componente a ser desenvolvido pela Sosp, o
programa previa a melhoria da qualidade dos serviços prestados pelos municípios, através
de apoio institucional às prefeituras, e de do fornecimento de equipamentos visando a
119
melhoria dos serviços de coleta, e a recuperação de aterros existentes, com o controle e
tratamento de chorume produzido no aterro de Gramacho em Caxias, que é um dos fatores
de poluição da Baía de Guanabara.
Estavam também previstas a construção de três complexos de destinação final de
resíduos, cada qual dotado de uma usina de reciclagem e compostagem, um aterro sanitário
e um incinerador de lixo hospitalar em São Gonçalo, Niterói e Magé. Essas obras viriam a
complementar ações do projeto Reconstrução Rio que previa a construção de três
complexos de destinação final. Estes deveriam se localizar em Nova Iguaçu (Vila de Cava),
em Queimados (Santo Expedito) e em Belford Roxo (Nova Aurora).
No que se refere ao apoio institucional à prefeituras, as ações desenvolvidas visam:
a modernização do sistema de coleta de lixo atual, com ênfase na tercerização dos serviços
nas áreas urbanizadas, onde o acesso com caminhões coletores e compactadores é possível;
orientação para a implantação de sistemas alternativos de coleta em áreas onde as vias de
acesso são precárias; treinamento de equipes locais de gerenciamento e operação de
sistemas de coleta e também das usinas e aterros sanitários; apoio às equipes técnicas das
prefeituras no detalhamento da política tarifária a ser implantada, visando compatibilizar
custos reais dos serviços implantados e capacidade de pagamento da população.
O PDBG inclui ainda no componente resíduos sólidos o Programa de Promoção
Social dos Catadores de Lixo em Niterói e São Gonçalo, que tem por objetivos integra
formalmente os catadores no mercado de trabalho, aproveitando-os na operação de usinas e
aterros. Ao final do programa espera-se alcançar um percentual de 90% do volume de
resíduo produzido adequadamente e recolhido; dar solução à destinação final do lixo
coletado e equacionar a questão dos resíduos hospitalares.
O PDBG inclui ainda um componente drenagem, de responsabilidade da Serla, que
mobiliza 2,14% dos recursos, com obras de canalização e retificação de cursos de água na
120
bacia do rio Acari, que complementam as ações desenvolvidas pelo Projeto Reconstrução
Rio. O programa prevê ainda a implantação de uma rede hidrometereológica, que se
constitui na instalação de uma Central de Informações conectada a 30 estações de medição
e transmissão automática de dados climatológicos, que ficarão em pontos estratégicos da
bacia da Baía de Guanabara. Com isso será possível manter informados os órgãos
competentes a respeito das variações dos níveis de precipitação pluviométria, dos níveis
dos rios e dos canais, possibilitando a previsão de riscos de enchentes.
Por último, o programa propunha ações nas áreas de arrecadação tributária, controle
e monitoramento da qualidade ambiental da bacia hidrográfica, mapeamento digital,
educação ambiental, e apoio institucional.
O componente mapeamento digital e apoio institucional, de responsabilidade da
Fundação Cide, compreende a implantação de um Sistema de Informações
Georreferenciadas em prefeituras de 12 municípios localizados na Bacia hidrográfica da
Baía de Guanabara, o que vai possibilitar às prefeituras um conhecimento mais detalhado
do território, possibilitando um aumento da arrecadação tributária referente a IPTU, ISS e
tarifas de serviços públicos, e também um melhor planejamento urbano-ambiental, através
de um maior controle e conhecimento do uso do solo.
Os programas ambientais complementares envolvem reforço institucional do
Sistema Ambiental para tornar mais eficiente o controle da poluição ambiental e o
monitoramento da qualidade ambiental da área de abrangência da bacia da Baía de
Guanabara, sob responsabilidade da Feema. Neste componente o aspecto central é o
controle da poluição industrial.
No que concerne aos dejetos industriais, verificamos que existem na região da Bacia
hidrografia 14.304 mil empresas industriais, sendo os tipos predominantes as indústrias
alimentícias, químicas e metalúrgicas. Do total de indústrias, 6 mil são poluidoras, sendo
121
responsáveis pelo lançamento de 64t/dia de carga orgânica além de óleos e metais pesados.
Entre as industrias poluidoras destacam-se 455 empresas, responsáveis por 90% da
poluição industrial. Destas 455, 50 empresas, das quais 18 localizadas no município do Rio
de Janeiro, 13 em Duque de Caxias, 7 em São Gonçalo, 4 em Niterói e 3 em Nova Iguaçu,
2 em Magé, 1 em Itaboraí, 1 em Nilópolis e 1 em São João de Meriti, são responsáveis por
60% da carga poluente. Estima-se que 7 t/dia de óleo são lançadas na Baía pela refinarias de petróleo, pelos
terminais marítimos, portos comerciais, postos de serviços de combustíveis estaleiros e
outras fontes. A maior responsável pela poluição por óleo é a Reduc, refinaria de Duque de
Caxias.
O PDBG tem a peculiaridade de estar atravessando três governos estaduais
consecutivos. Até o final do governo Brizola o projeto encontrava-se em fase de licitação
da primeira etapa. Na realidade, o programa já começou com uma polêmica sobre o
processo de licitação que resultou na demissão, em abril de 1993, do presidente do Grupo
Executivo de Despoluição da Baía de Guanabara, pelo governador Leonel Brizola. Este
afirmou ter sido exonerado por não aceitar a dispensa de licitação na escolha da empresa
consultora e gerenciadora do projeto. Entretanto, a licitação exigida pelo BID foi feita.
Todavia as idas e vindas do processo de licitação fizeram com que até o final do governo
Brizola, nenhuma obra tivesse começado.
Em março de 1995 Marcelo Alencar assume o governo do estado. Iniciam-se as
primeiras obras, mas em ritmo extremamente lento. De fato até esta data algumas obras que
pelo cronograma já deveriam estar concluídas nem haviam sido iniciadas. Em dezembro de
1995 o BID passa a cobrar do governo do estado uma multa por este não ter usado toda a
verba disponível. Já em 1996, um ano depois do início das obras, o governo do Estado tinha
pouco a comemorar. O atraso no cronograma de obras do PDBG custou caro ao Estado a
medida que era obrigado a pagar um percentual sobre a quantia emprestada e não utilizada.
A soma chegou a R$ 2,8 milhões ao BID. Face às pressões do BID, o governo do estado
decide acelerar as obras. No final deste governo (dezembro de 1998) haviam sido aplicadas
no PDBG cerca de US$ 400 milhões, dos recursos previstos.
122
O contrato com o BID, assinado em novembro de 1993, liberado a partir de 1994 se
desenvolveu quase que completamente ao longo dos anos entre 1995 e 1998, cobrindo
todos componentes, as obras relativas ao abastecimento de água e parte do tratamento de
esgotos.
No que tange o abastecimento de água, estavam previstas para serem realizadas na
primeira fase as subadutoras e rede tronco e reservatórios, visando a setorização e a
regularização da oferta de água na Baixada Fluminense dentro dos sistemas Lote XV,
Retiro Feliz, Palmira, Parque 25 de Agosto, Coelho da Rocha e Éden. Até outubro de 1998
haviam sido instaladas 220.282 metros de rede, 8 mil das 30 mil ligações domiciliares
previstas (26,6%). As obras de construção dos reservatórios foram dadas como concluídas
no final de 1998. No entanto devido a problemas no sistema de adução para a Baixada os
reservatórios permanecem vazios e as redes instaladas não levam efetivamente água à
população. Este problema é crucial, pois sem a solução da questão da reservação, não se
resolve o problema da descontinuidade do abastecimento. Hoje o abastecimento da região
se faz através de manobras no sistema, o que implica que determinadas áreas nunca têm um
abastecimento contínuo. A solução passa necessariamente por uma ampliação do sistema de
adução para Baixada, articulada a um controle efetivo das perdas do sistema.54
No campo dos resíduos sólidos, na Baixada Fluminense, estavam previstas obras de
reforma e adequação de duas estações de transferência de lixo localizadas em Nilópolis e
São João de Meriti e a construção de postos de apoio a coleta de lixo (9 em Duque de
Caxias, 6 em São João de Meriti). A questão da destinação final dos resíduos, no entanto
não foi resolvida, pois as usinas de Queimados, Belford Roxo e Nova Iguaçu, projetadas
pelo Programa Reconstrução Rio, para onde deveria ser levado o lixo coletado encontram-
se desativadas. É importante notar que a operação das usinas cabe aos municípios, que
54 O presidente da Cedae, Alberto Gomes divulgou que a empresa vai investir R$ 342 milhões em obras de tratamento de esgoto, construção de uma nova adutora e tubulação na Baixada Fluminense, o que viria a solucionar o problema de falta na rede e resolver o problema de abastecimento nos reservatórios. De acordo com Alberto Gomes, a Baixada Fluminense deveria receber atualmente sete mil litros de água por segundo. No entanto, segundo ele, dos sete mil litros que saem do Guandu, somente dois mil chegam de fato à região – devido aos vazamentos e às ligações clandestinas. A nova adutora a ser construída pela Cedae terá uma tubulação com cerca de 20 quilômetros de extensão. A previsão é de que as obras estejam concluídas em 10 meses.
123
consideram o custo operacional muito alto. De fato cada tonelada de lixo tratado custa
quatro vezes mais que o despejo feito em aterro sanitário
O mapeamento digital foi concluído, com o levantamento aerofotogamétrico, a
elaboração de cartas digitais, a distribuição do material e de equipamento de informática às
prefeituras dos municípios situados na área da bacia e o treinamento de técnicos das
prefeituras para trabalhar com os programas fornecidos. Este componente deveria tornar os
municípios capazes de operar um sistema de mapeamento informatizado com informações
sobre a cobertura de serviços nos municípios da Baía de Guanabara, o que viria a subsidiar
ações das prefeituras referentes a desenvolvimento urbano municipal. No entanto segundo
avaliação da direção do Cide, órgão que coordenou o desenvolvimento deste componente
do programa está havendo um desperdício do investimento pela maior parte das prefeituras
que não estão utilizando os equipamentos fornecidos, que permanecem ociosos e parte dos
técnicos que foram treinados para operar os equipamentos já foram deslocados para outras
funções.
O outro contrato, com a OECF, assinado em 1994, e iniciado em 1995, incluía
apenas o tratamento de esgotos com a construção dos sistemas (estação, interceptores,
troncos e elevatória) da Alegria, Sarapuí e Pavuna-Meriti, e a ampliação do sistema da
Penha. Este contrato encontrava-se ainda em desenvolvimento no final de 1998. No final do
governo Marcelo Alencar as estações de tratamento previstas localizadas na Baixada
(Pavuna e Sarapuí) em São Gonçalo e no Rio de Janeiro (Alegria) estavam com o
cronograma de obras atrasado e apresentando problemas técnicos.
Em 1999 com o início do governo Garotinho, ocorreram mudanças na gestão no
programa e as obras sofreram paralisações. Depois de marchas e contramarchas, diante da
ameaça de cancelamento do programa por inadimplências do governo anterior que
impediam que o Ministério Público desse o aval para o governo do Estado solicitar a
prorrogação do contrato com o BID, as obras relativas às estações de tratamento com
financiamento do OECF, e as ações com financiamento do BID foram retomadas.
O último pedido de prorrogação data de outubro de 2000 e prevê o término da
primeira fase do programa entre 2000 e 2002, que seria seguida de uma segunda,
124
constituindo o PDBG II. Observa-se uma diferença de praticamente três anos com relação
ao cronograma inicialmente previsto.
Diante do atraso nas obras e da ausência dos investimentos previstos pelo governo
do Estado no programa chegamos ao final de 1999 e concluímos que o PDBG teve uma
efetividade muito baixa, sobretudo se considerarmos o volume de recursos investidos pelos
agentes financiadores externos. Verificamos, portanto que, em áreas de extrema carência de
serviços de saneamento como a Baixada Fluminense tanto no que concerne o abastecimento
de água, quanto no que concerne o esgotamento sanitário, o PDBG ainda não logrou seus
objetivos de ampliar o acesso e melhorar significativamente a qualidade desses
serviços.Isso se deve ao atraso no andamento das obras, mas, sobretudo ao fato do governo
do estado não ter realizado os investimentos que lhe cabiam no programa.
No aspecto relativo à participação social, é importante lembrar que em 1995, foi
aprovada a lei estadual que prevê a instalação do Fórum de Acompanhamento do PDBG
(Fadeg), cujo objetivo era garantir a transparência do programa. O fórum teria a
participação de 15 prefeitos, empresários, ecologistas, ONGs, governos estadual e federal.
Este Fórum, no entanto nunca chegou a funcionar. O fato é que não existem canais de
interlocução com a sociedade, nem no âmbito estadual, nem no local. Da mesma forma, não
se constata nenhum mecanismo de integração institucional do programa com as prefeituras
municipais. Mesmo no que se refere às informações fundamentais sobre o andamento do
projeto, não se têm um órgão público coordenador que estabeleça relações com a
sociedade. Por vias de regra, o que se sabe são informações que circulam na grande
imprensa ou em eventos esporádicos promovidos pela coordenação do programa, que em
geral tem uma atuação mais burocrática do que articuladora das ações desenvolvidas pelos
diversos órgãos. Em suma, estamos diante do retorno à concepção dos velhos programas de
saneamento marcados pela abordagem tecnocrática e centralizadora, que abrem poucos
espaços à participação social e que, pelo seu caráter pouco integrador, freqüentemente são
reprodutores das desigualdades.
125
Tabela 4 - Resultados das Intervenções no Componente Esgotamento Sanitário Executadas pelo PDBG - Baixada Fluminense, RMRJ – 2000
Sistemas Esgotos*
Município Vazão l/s Situação Atual
Elevatórias Rede e Coletores (km)
População Beneficiada
Emissário Ligações Domiciliares
ETE Sarapuí
Nova Iguaçu
B. Roxo D. Caxias
1.000 Concluída Construção de 6
337 431.000 * 63.134
ETE Pavuna
Rio de Janeiro B. Roxo
S.J. Meriti
1.000 Concluída Construção de 8
448 410.000 * 71.400
Total 2.000 Concluída 14 785 841.000 Não tem 134.534 * O sistema é composto por cinco estações de tratamento, sendo além das duas descritas na tabela, as da Alegria, Paquetá e São Gonçalo II e mais a reforma nas estações da Ilha do Governador, Penha e Icaraí. Fonte: Secretaria de Estado de Saneamento e Recursos Hídricos/ Cedae, 2000
Tabela 5 - Sistema Sarapuí – Resultados das Intervenções no Componente Abastecimento d’Água Executadas pelo PDBG - Baixada Fluminense, RMRJ – 2000
Sistemas de água Município Volume
(litros) Subadutora
(km) Rede e Tronco
(km)
População Beneficiada
Ligações domiciliares
Éden* S.J. Meriti 7.500.000 2,3 1,9 57.400 0 Coelho da Rocha* S.J. Meriti 10.000.000 0,35 0,6 117.400 0
Belford Roxo B. Roxo 10.000.000 0,52 0,35 131.000 0 Olavo Bilac* D. Caxias 5.000.000 3,9 33.600 250 Retiro Feliz* B. Roxo 5.000.000 0,85 57,8 27.300 9.860
Parque Fluminense* D. Caxias 10.000.000 5,7 51,4 59.300 7.800 25 de Agosto D. Caxias 18.500.000 33 150,3 188.000 8.450
Lote XV* B. Roxo 10.000.000 0,38 133,6 92.400 14.596 Total 76.000.000 43,1 399,85 706.400 40.956
* Em fase de finalização, com conclusão prevista para o primeiro semestre de 2001 Fonte: Governo do Estado do Rio de Janeiro/Secretaria de Estado de Saneamento e Recursos Hídricos/ Cedae S/D
3.7. Programa Nova Baixada: a focalização como novo padrão das políticas públicas no
anos 90?
O Programa Nova Baixada, inicialmente denominado de Programa Baixada Viva -
PBV, foi elaborado pelo governo Marcello Alencar (1995-1998) em meio ao debate sobre
estratégias de combate à pobreza, produzido por organizamos nacionais e internacionais e
que vai marcar a agenda pública do final do milênio com programas de diversos tipos. No
126
Rio de Janeiro, esse projeto teve por base uma metodologia que visava identificar
populações e áreas com necessidades básicas não atendidas em matéria de urbanização,
serviços de saúde, saneamento e serviços sociais. Essas áreas foram identificadas valendo-
se dos dados dos setores censitários do Censo de 1991 (IBGE), sendo considerados, para a
seleção dos bairros integrantes do programa, os seguintes critérios: renda média do chefe da
família de até três salários mínimos, melhores relações de custo-eficiência (custo da obra/
população atendida), compatibilidade entre os cronogramas do PDBG e do Baixada Viva, e
a densidade populacional até 80 hab/ha. Na implementação do programa, quatro bairros
pilotos foram selecionados para sua primeira fase: Chatuba, Mesquita; Olavo Bilac, em
Duque de Caxias; Lote XV, em Belford Roxo; e Jardim Metrópole, em São João de Meriti,
beneficiando aproximadamente 130.778 habitantes55. No total foram realizados
diagnósticos e projetos para 16 bairros. Todos os bairros selecionados estavam situados na
bacia dos rios Sarapuí/Botas, a mesma que já fora objeto de intervenção de outros
programas, no qual podemos destacar o Projeto Reconstrução Rio. O objetivo geral do PBV
era assim definido:
Melhoria da qualidade de vida de parte da população da Baixada Fluminense, e em particular dos habitantes nos bairros selecionados dos municípios de Nova Iguaçu, Belford Roxo, Duque de Caxias e São João de Meriti. A definição dos bairros obedeceu aos diversos critérios apontados no Regulamento Operacional do Programa e, em linhas gerais, busca a solução do problema regional através de uma visão integrada, com ações nos setores sociais e de infra-estrutura, de forma a alcançar o desenvolvimento sustentável no meio ambiente, a urbanização integrada de bairros e o resgate da cidadania.(Banco Interamericano de Desenvolvimento, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secplan, 1999:7)
Do ponto de vista do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, o projeto é
definido como de “melhoria das condições do bairro” e visando: (i) um modelo de gestão
55 Na segunda fase, o programa será realizado nos bairros Xavantes (Belford Roxo), Mesquita (Mesquita), Centenário (Duque de Caxias) e Coelho da Rocha (São João de Meriti), beneficiando uma população aproximada de 112.000 habitantes.
127
urbana municipal com envolvimento da comunidade, melhorando a coleta de lixo e a
manutenção urbana e outros serviços; (ii) melhoramentos nas condições sanitárias e nos
serviços de saúde, levando a uma redução das doenças de contaminação hídrica,
mortalidade infantil e melhoras de outros indicadores de saúde; (iii) uma abordagem de
desenvolvimento urbano integrado, de forma a expandir a infra-estrutura física e social.
A concepção do programa estava fundada na perspectiva de que as obras realizadas
produzissem um impacto social sobre a população, sobretudo porque seriam acompanhadas
de programas sociais ligados às políticas ambientais, de saúde, de creche e de geração de
trabalho e renda. O programa ainda destaca dois aspectos que seriam relevantes, sendo o
primeiro relativo à valorização dos imóveis após os investimentos públicos realizados e o
segundo seria a ação contínua do Estado no monitoramento do programa que seria
realizado pela Fundação Cide - Centro de Informação e Dados do Estado do Rio de Janeiro.
O PBV confere especial atenção às áreas de saneamento e saúde, buscando articular
suas ações às intervenções do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara. Seus
objetivos específicos estão assim anunciados:
“Implantação de redes de distribuição de água, de coleta e tratamento de esgoto sanitário, implantação e melhoria do sistema de drenagem, pavimentação de vias, limpeza urbana, áreas de lazer e melhoria dos serviços de saúde. Estas intervenções locais demandam ações complementares, que são as obras estruturais como a dos reservatórios dos sistemas de abastecimento de água, de macro drenagem, para dar destino final às águas pluviais captadas no sistema de micro drenagem, ou de estações de tratamento de esgoto sanitário para dar destino final às águas servidas e captadas no nível micro. (Ibid.:8)
O modelo técnico utilizado no PBV está consubstanciado na idéia da urbanização
integrada a partir de ações sociais, de infra-estrutura e de meio ambiente, envolvendo
intervenções de diferentes naturezas: implantação de redes de distribuição de água, sistemas
de coleta e tratamento de esgoto sanitário, melhoria do sistema de drenagem, limpeza
urbana, melhoria dos serviços de saúde, pavimentação de vias, implantação de áreas de
128
lazer e desenvolvimento de projetos urbanísticos. Assim, o PBV assumiria um caráter local
de complementação das ações do PDBG e do Reconstrução Rio, a por meio de (i) obras
estruturais no caso do abastecimento d'água; (ii) ações de macrodrenagem, para dar destino
final às águas pluviais captadas pelo sistema de microdrenagem; (iii) construção de
estações de tratamento de esgoto sanitário, para dar destino final às águas servidas captadas
no nível micro e (iv) obras de pavimentação. Os recursos para desenvolvimento do
Programa foram da ordem de US$ 300 milhões, sendo esperado o aporte de 60% deste
valor por parte do BID, com a contrapartida de outros 40% do governo estadual. No setor
de resíduos sólidos o programa tratava somente da coleta no bairro, atuando, mais uma vez,
de forma complementar ao PDBG, que procura equacionar a questão do destino final do
lixo.
Nos bairros selecionados, o programa previa diferentes ações. Primeiramente, a
extensão das redes de água, de esgotamento sanitário e drenagem a todo o bairro, que devia
ser acompanhada da execução das obras estruturais já descritas. Por fim, as obras de
implantação de redes tinham que ser acompanhadas de urbanização e pavimentação, que
devendo, segundo o escopo do projeto, atingir, de 50% a 60% das ruas de cada bairro.
Os componentes sociais do PBV estavam distribuídos em ações nas áreas de saúde,
educação ambiental, cidadania, geração de trabalho e renda, e construção e reforma de áreas
de lazer. Por último, cabe ainda destacar que o programa apresentava um componente ligado
ao desenvolvimento institucional e comunitário, objetivando capacitar as administrações
municipais da região e as lideranças comunitárias dos bairros para a gestão dos
equipamentos instalados.
129
No que se refere a gestão do programa, o mesmo era de responsabilidade da
Secretaria de Estado e Planejamento, que executava o programa através da Subsecretaria de
Projetos e Captação de Recursos.
O modelo de participação definido no escopo do projeto foi profundamente
diferente do que vinha sendo desenvolvido na Baixada Fluminense desde a implantação do
PEBS. O diálogo foi estabelecido com base em um Comitê de Acompanhamento Local
(CAL) que se organizava no início da obra e tinha por objetivo acompanhar a sua execução.
A participação direta local é a tônica, substituindo o diálogo preferencial com as entidades
de moradores (federações) e o Comitê Político de Saneamento da Baixada Fluminense, que
marcaram os modelos de participação anteriores.
Tal qual o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, o Programa Baixada Viva
ainda está em andamento, o que dificulta uma avaliação definitiva dos seus resultados. Não
obstante faremos uma reflexão crítica parcial levando em consideração os dados
disponibilizados pela Sepdet, assim como algumas informações obtidas junto aos engenheiros
de bairro do programa. Esta reflexão se fará com base em dois eixos básicos: (i) a concepção
do programa e (ii) os problemas ocasionados na sua execução.
O primeiro problema que podemos mencionar a respeito da concepção do Programa
Baixada Viva (PBV), diz respeito a sua integração com as demais intervenções públicas na
bacia dos rios Sarapuí/Botas, notadamente aquelas realizadas pelos projetos Reconstrução Rio
e Despoluição da Baía de Guanabara, este último em andamento. Cabe destacar que, para o
êxito dos investimentos em urbanização executada pelo PBV era fundamental que fossem
realizados em locais onde já havia um patrimônio de infra-estrutura instalado. (Observatório
de Políticas Públicas e Gestão Municipal, IPPUR-UFRJ/FASE, 2001:17)
Uma segunda ordem de problema se relaciona com o padrão de intervenção localizada
em bairros. A Baixada Fluminense segundo os estudos produzidos sobre a região, demonstram
que haver uma grande homogeneidade nas condições de vida da sua população, não existindo,
130
portanto, diferenças substanciais de renda e saneamento entre os seus bairros. Neste sentido,
cabe destacar que,
“a adoção de uma concepção de intervenção que leva a investimentos de melhorias pontuais produz efeitos perversos. Em primeiro lugar, e considerando o caráter sistêmico da infra-estrutura, sem a realização de grandes obras estruturais (troncos de distribuição de água com pressão adequada, coletores tronco de esgotos e estações de tratamento e, principalmente sistemas de macro-drenagem), as intervenções localizadas têm muito pouca efetividade na melhoria da qualidade dos serviços prestados à população, uma vez que as redes daquele espaço contemplado [tem baixa] conectivadade com o resto dos sistemas. Assim sendo, os resultados, em termos de melhoria da qualidade do meio ambiente, são ínfimas.” (Ibid.:19)
Uma terceira ordem de problema relacionada à questão da concepção do programa diz
respeito a “ampliação pontual da oferta de infra-estrutura, equipamentos urbanos e serviços a
alguns bairros de forma isolada” (ibid.:19). Não resta dúvida que pela precariedade no acesso
a serviços essenciais, aqueles poucos espaços implantados que tiveram benefícios implantados
pelo programa, logo terão sua capacidade de atendimento aumentada, levando ao colapso o
serviço, sobretudo, os serviços de Saúde Local e Creche.
Em relação à execução, o governo Marcello Alencar alega que os resultados
alcançados proporcionaram a
“melhoria dos sistemas de abastecimento de água, com a construção de reservatório
próprio e ampliação e troca de redes; tratamento de esgotos com a implantação de
estações elevatórias, estação de tratamento e redes de esgoto, obras de drenagem,
tratamento de vias urbanas locais com pavimentação, iluminação pública, arborização
e construção e recuperação de praças e calçadas.” (Sepdet, 1998)
Ainda segundo o governo, os resultados só não foram maiores por que o BID não
liberou os recursos solicitados em razão de problemas técnicos no refinanciamento da
dívida do Estado junto a União, levando o próprio governo a desembolsar todos os recursos
necessários para a execução da primeira fase do programa.
131
Embora a fase 1 do programa tenha sido dada como encerrada pelo governo
Marcello Alencar, tivemos a oportunidade de verificar, de acordo com o quadro de
evolução das obras nesta administração, que os principais problemas ocasionados estiveram
diretamente ligados ao modelo técnico escolhido que não foi capaz de integrar o conjunto
das ações públicas na região e que acabou por fragmentar ainda os recursos disponíveis
(US$ 120 milhões) não assegurando para sequer 1/3 da população total do projeto os
serviços propostos, ainda que para isso tenha gasto 40% do valor total do projeto em pouco
mais de um ano.
O Programa Baixada Viva é, a nosso ver, a expressão do estabelecimento do padrão
patrimonialista e clientelista leva à cabo pelo governo Marcelo Alencar em busca da
sustentação do seu projeto político partidário. Sua concepção fragmentada e focalista traz,
além dos graves limites em seus resultados concretos, um efeito perverso de caráter
simbólico e político: assiste-se a uma ruptura com uma intervenção de impacto regional,
legitimada em um processo de construção do discurso em torno da denuncia das
desigualdades sociais da Baixada Fluminense e da reivindicação dos direitos de cidadania,
e passa-se a operar com um padrão de política pública particularista, sem a mediação de
uma esfera pública, sem políticas regulatórias de caráter redistributivo.
A análise sobre a intervenção pública no saneamento no governo Marcello Alencar
é, em relação aos demais governos, um pouco mais complexa, já que ela se desenvolve em
meio a uma conjuntura de intensificação da integração do Brasil ao movimento da
globalização e da implementação das reformas estruturais pelo governo federal, o que
envolvia uma profunda transformação do papel do Estado. Assim, no país, o novo centro da
política social passa a ser a “reforma do Estado” (Ribeiro, 1994). No governo Marcello
Alencar, assistimos a dois movimentos que caminharam nessa direção: (i) um intenso
processo de privatização de vários serviços públicos de responsabilidade do Estado, onde se
destaca o de transportes e de energia56, que passaram ao controle da iniciativa privada, sem
56 Os serviços de saneamento não foram privatizados, visto que este foi um período de grande conflito em torno da titularidade dos serviços, o que implicava em questões de ordem constitucional. Devemos ainda
132
que para isso houvesse um processo claro e transparente de venda e de regulação e; (ii) a
elaboração de projetos focalizados de caráter social, voltados ao atendimento a populações
em espaços de maior concentração de pobreza urbana.
Na Baixada Fluminense as premissas desse novo modelo estiveram presentes na
elaboração do Programa Baixada Viva, que tem a sua concepção marcada pela focalização
da ação com o objetivo de redução da pobreza.57 A rigor, podemos dizer que essa
construção esta diretamente articulada a estratégia das agencias multilaterais que definem o
mesmo perfil de financiamento para a sua carteira de projetos nos países em
desenvolvimento.
Para as agências multilaterais, as políticas públicas deveriam assumir um caráter
compensatório, sendo dirigidas, portanto, para as camadas mais pobres da população. Nesse
sentido, perderiam o caráter universalista anteriormente atribuído às mesmas, sendo
doravante focalizadas, visando o atendimento às populações em situações de maior
vulnerabilidade social. O argumento central dessa concepção está fundado na incapacidade
do Estado em atender a todos os setores sociais, frente aos crescentes déficits públicos.
Desta forma, a orientação das agências multilaterais na focalização decorre das teses sobre
a ineficiência das políticas sociais, que tenderiam inercialmente a beneficiar os extratos de
maior renda da população, capazes de capturar os investimentos realizados pelo Estado.
Entendemos que a implementação dessas premissas na Baixada Fluminense produz
um efeito de enorme perversidade. O governo Marcello Alencar apresenta o Programa
Baixada Viva como o contra-ponto da política de privatização de seu governo, buscando assinalar que foi realizado um estudo de modelagem do setor, no âmbito do Programa de Modernização do Setor de Saneamento - PMSS, buscando estruturar a empresa estadual (Cedae) para a privatização. 57 Em virtude de suas características começamos a refletir acerca do conteúdo da ação proposta pelo Programa Baixada Viva. Não será descabido afirmar que este programa tem a sua característica mais centrada num programa de caráter social e não propriamente de saneamento. Esta dimensão está colocada no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, que não alterou o seu escopo em função do Programa Baixada Viva. Ao retiramos o saneamento dos componentes do PBV, resta-nos dialogar com um conjunto de ações restritas ao campo das políticas sociais. Essa reflexão não tem por objetivo tornar inválida a análise até então realizada, mas apenas refletir acerca do conteúdo da ação política proposta pelo então governador Marcello Alencar.
133
criar um espaço ideológico e simbólico de compromisso com as camadas populares que não
teriam condições de obter serviços através do mercado. No entanto, este programa cria, na
verdade, uma linha imaginária querendo separar o inseparável: os pobres dos mais pobres.
Na nossa opinião, a situação social da região não possibilita esse tipo de visão, pois as
fronteiras sociais são muito tênues e homogêneas, produzidas pelos mesmos fenômenos
sociais e econômicos que resultaram na formação dessa periferia. Os bairros objeto de
intervenção do Programa Baixada Viva são os mesmos que já, em 1984, estavam
assinalados como prioritários nos investimentos públicos através do PEBS. A racionalidade
técnica do modelo de intervenção proposta por esse programa, ao privilegiar o local,
despreza a realidade municipal e o contexto social da Baixada, que, dada à sua
homogeneidade socioocupacional, tem as mesmas carências. Equipamentos sociais, como
os postos de saúde e as creches, muito provavelmente serão disputados por todos as
famílias dos bairros do entorno.
A nosso ver, é o caráter neoconservador desse governo que marca a retomada do
velho padrão clientelista e patrimonialista da política pública de saneamento para a Baixada
Fluminense, sendo que desta feita, o faz com base num discurso de caráter social, voltado
para o atendimento das camadas populares concentradas nos bairros objeto de intervenção
do PBV. Esta em curso a criação de um sistema estatal baseado na neobeneficiência,
(Ribeiro,1994) estabelecendo uma ruptura com o padrão de política pública em emergência,
fundado numa agenda reformista de direitos de cidadania (direitos sociais) e na constituição
de uma esfera pública que incorpora os atores sociais. Com efeito, a política pública levada
a cabo pelo governo Marcello Alencar, e como veremos a seguir, em larga medida
continuada por Garotinho significa, de fato, o risco de consolidação das desigualdades
sociais na Baixada Fluminense.
O governo Garotinho (1999) assume a administração estadual mantendo a mesma
concepção do programa, embora tivesse sido elaborado um relatório minucioso pela
Secretaria de Planejamento, analisando os limites da intervenção produzida pelo governo
134
anterior. Ainda assim, a mudança mais significativa produzida por esse governo se refere
ao nome do programa que passa a ser denominado Programa Nova Baixada - PNB.
Embora o PNB esteja em plena execução, o que dificulta uma leitura um pouco
mais profunda do que fizemos em relação ao governo Marcello Alencar, vamos aqui
sinteticamente tecer alguns comentários acerca das limitações verificadas através de um
exercício comparativo entre os objetivos manifestos e a sua realização em pouco mais de
quatro anos de execução, somados os períodos das duas administrações.
A primeira questão que devemos levar em consideração diz respeito ao
abastecimento de água. Um dos objetivos do PNB é assegurar o abastecimento a todos os
bairros objeto de intervenção do programa. Entretanto, o que se observa até o momento são
oito reservatórios de água, com uma capacidade de armazenamento em torno de 80 milhões
m³, sem reservar nada: as obras de duplicação da adutora, tão propaladas como solução
para o abastecimento da região, ficaram longo tempo para serem licitadas e mesmo com a
publicação do edital de licitação não se tem publicamente uma previsão. Além disso,
devemos destacar que a ampliação da adutora levaria a um aumento do acesso, mas não
seria a solução definitiva para este grave problema na região, na medida em que
“não há volume de água suficiente para encher os reservatórios, nem uma política clara
que enfrentes os altos índices de perdas no sistema, o que faz com que o abastecimento
na Baixada seja realizado através de manobras”.58
Em relação ao esgotamento sanitário, a situação é um pouco mais complexa uma
vez que as estações de tratamento foram construídas e inauguradas, mas se encontram
funcionando bem abaixo de sua capacidade, pois em boa parte dos casos faltam as redes
coletoras que permitam o bombeamento pela elevatória até a estação de tratamento ou,
então, faltam condições básicas para o funcionamento das elevatórias – como, por exemplo
58 Depoimento do engenheiro José Steelberto Porto Soares.
135
em Jardim Metrópole, onde se constata a ausência de energia elétrica para fazer funcionar
as bombas.
Na área social, o PNB enfrenta um problema de natureza política, em razão de ter
sido elaborado e desenvolvido sem a necessária articulação com as administrações
municipais, prevendo que as prefeituras passariam a ter o papel de administrar, com ônus
da sua manutenção, todos os equipamentos e serviços sociais instalados pelo governo
estadual. O resultado desse impasse pode ser verificado tanto no caso dos postos de saúde e
creches construídos, que ainda não estão em funcionamento, como no das praças de lazer e
da arborização realizada, que não contavam com qualquer estratégia de conservação por
parte da municipalidade até o início de 2001.
No entanto, o mais grave, a nosso ver, está relacionado à concepção que funda o
Programa Nova Baixada, onde percebemos uma ruptura com o enfoque de bacia
hidrográfica, que balizava os projetos e as intervenções públicas na região desde 1984.
Nesse enfoque os investimentos públicos se realizavam tendo como ponto de inflexão a
abordagem técnica, em que os problemas de saneamento devem ser compreendidos a partir
da bacia hidrográfica a qual estão ligados, isto é, as bacias do Sarapuí/Botas e do
Pavuna/Meriti, atingindo o conjunto da população que reside no seu entorno, independente
do município. Essa abordagem permite uma leitura da problemática do saneamento
tomando-se por base a noção de região, conformada no espaço de abrangência de
determinada bacia ou bacias, exigindo que as políticas, projetos e intervenções do poder
público sejam desenvolvidos no contexto da Baixada Fluminense como uma região que
compreende duas bacias hidrográficas e municípios com características físicas e sociais
semelhantes.
Em sentido oposto, o PNB procurou enfrentar os problemas a partir de um enfoque
geográfico localizado em bairros ou lotes de bairros, produzindo, portanto, intervenções em
espaços menores, tentando resolver todos os problemas particulares de determinado espaço.
136
Sem perceber as relações intra-regionais, as soluções apresentadas vêm se mostrando de
curta duração.
Do ponto de vista do padrão de políticas públicas, o Programa Nova Baixada
continua a expressar o modelo focalista levado a cabo pela gestão anterior, já que mantém a
focalização da sua intervenção em áreas críticas de concentração de pobreza (Ribeiro,
1994a, 1994b). O problema desse modelo, como já destacamos, está na impossibilidade da
constituição de uma esfera pública de negociação com a sociedade, o que impede a geração
de um padrão integrador e universalista de política pública. No que tange a participação
popular, essa também não passa imune ao retrocesso apresentado no programa. Há um retorno
a um padrão instrumental, no qual a participação é tida mais como um meio de assegurar
maior eficácia às ações governamentais do que na perspectiva de fortalecimento dos atores
sociais e das arenas públicas, o que se reflete na desarticulação dos atores historicamente
constituídos e na interlocução fragmentada com a população em cada bairro. O resultado foi a
produção de um discurso também fragmentado, que reduz as possibilidades de pressão dos
atores sobre os investimentos para a região. Na verdade, é como se não houvesse mais sentido
falar de Baixada, e sim de bairros. No entanto, a fragilidade institucional das prefeituras locais
que não conseguem ter o mesmo padrão de investimento do Estado, e a homogeneidade social
apresentada na região revelam-se como grandes limites ao êxito desse programa. Com efeito,
assistimos ao risco eminente tanto de uma deterioração dos equipamentos instalados (pela
incapacidade das prefeituras em geri-los), como da reprodução das desigualdades e da
exclusão social no acesso a bens e equipamentos públicos fundamentais.
Cabe agora, com base em uma visão comparativa dos diversos programas, fazermos
uma síntese, buscando discutir criticamente as possibilidades e desafios da política de
saneamento na Baixada Fluminense. Particularmente, duas questões nos interessam de
forma particular: quais as condições para a emergência de um novo ator social, capaz de
mobilizar a sociedade, ocupar a cena pública e se constituir em interlocutor do poder
público? Quais os desafios para uma política de saneamento que supere a histórica
desigualdade social que marca a região, na perspectiva da justiça ambiental? Discutindo os
137
avanços e os recuos apontados ao longo desse trabalho, buscamos contribuir com esse
debate na conclusão. Antes, porém, apresentamos um quadro síntese (Quadro 3), nas
páginas seguintes, do padrão de políticas públicas que orientou a implementação dos
diferentes projetos aqui analisados.
138
Quadro 3 – Quadro Síntese do Perfil das Políticas Públicas de Saneamento no Período 1975/2000 – Baixada Fluminense
Período Principais Projetos de
Saneamento Efetividade em termos
dos principais resultados alcançados
Modelo Conceitual
Participação Social Características da Política Pública
1975 a 1982 – governo Faria Lima e governo Chagas Freitas
• Plano de Impacto – Objetivo: aumentar a capacidade de abastecimento da Baixada em aproximadamente 50%, construindo a adutora da região – Custo aproximado de R$ 20 milhões
• Construção da adutora da Baixada Fluminense, produzindo um aumento de 200% na oferta de água para a região. Entre 1975 e 1982 foram construídos alguns reservatórios de água e 1.500 km de rede de distribuição de água (dados Cedae)
• Saneamento básico centrado no abastecimento de água (referenciado no modelo técnico do Planasa)
• Inexistente • Clientelista • Ausência de esfera pública • Pacto com as elites locais • Atendimento fragmentado das reivindicações • reivindicações centradas na bica d’água e no manilhamento
139
Período Principais Projetos de Saneamento
Efetividade em termos dos principais resultados
alcançados
Modelo Conceitual
Participação Social Características da Política Pública
1983 a 1986 – governo Leonel Brizola
• Projeto Especial de Saneamento para a Baixada Fluminense e São Gonçalo – PEBS I (Plano Global) – Objetivo: construir 1.500 km de rede coletora de esgotos de forma integrada a ações de urbanização, beneficiando uma população de aproximadamente 1 milhão de habitantes residentes na área da Bacia do Rio Sarapuí - Orçamento total: US$ 600 mil dólares.
• Construção de 70 km de rede de esgotos e 7 km de rede de microdrenagem em três municípios da Baixada Fluminense: São João de Meriti, Nova Iguaçu e Duque de Caxias
• Ampliação da concepção acerca do saneamento básico, passando-se para uma abordagem integrada (inicio de uma concepção de saneamento ambiental)
• Incorporada através das federações de associações de moradores da Baixada • Fortalecimento do associativismo e surgimento de um novo ator, mediante a articulação regional constituída pelo Comitê de Saneamento • Reconhecimento e diálogo com o movimento social constituindo uma esfera pública em torno do Comitê Político de Saneamento
• Emergência de uma esfera pública em torno do GTBS e da Cedae • Constituição de uma nova agenda sobre o saneamento, na perspectiva da integração com outras políticas públicas • Caráter redistributivo da política de saneamento com a desconcentração dos recursos públicos em direção à Baixada Fluminense • Gestão via órgão técnico especializado – GTBS
1987 a 1990 – governo Moreira Franco
• Projeto Especial de Saneamento para a Baixada Fluminense e São Gonçalo – PEBS II (Plano Global) – Objetivo: construir 1.500 km de rede coletora de esgotos
• Construção de 251 km de rede, restrita à Bacia do Sarapuí, e 30.000 ligações prediais
• Concepção ampliada de saneamento ambiental, mas restrita nas intervenções segundo as atribuições dos distintos níveis de governo (estadual – água, esgoto
• Manutenção dos canais de discussão com o Comitê de Saneamento da Baixada em torno da Sedur. • Constituição da identidade do Comitê
• Ampliação da esfera pública, constituída em torno da Sedur (1987 a 1990), tendo como interlocutores o Comitê e órgãos do governo do Estado.
140
Período Principais Projetos de Saneamento
Efetividade em termos dos principais resultados
alcançados
Modelo Conceitual
Participação Social Características da Política Pública
• Plano de Setorialização do Abastecimento de Água na Baixada Fluminense – Objetivo: criar um sistema próprio de abastecimento, construir 3.400 km de tubulações, reformar 17 reservatórios de água e construir 31 novos. Valor U$ 35 mil dólares.
• Construção de 89 km de rede de abastecimento de água
• Projeto Reconstrução Rio 1988-1996 – Objetivo: reconstruir e recuperar a infra-estrutura básica, danificada pelas enchentes de fevereiro e março de 1988, e implementar medidas preventivas às futuras enchentes. Valor: US$ 298 milhões
• Intervenções pontuais e desarticuladas, não alcançando os objetivos propostos
dragagem; municipal – microdrenagem e urbanização)
Político de Saneamento da Baixada como ator político autônomo ao Estado
• Adoção de uma agenda pública mais restrita acerca do saneamento, mas com a manutenção do caráter redistributivo e da desconcentração dos recursos públicos em direção à Baixada Fluminense. • Gestão via órgão técnico especializado – Sedur
141
Período Principais Projetos de Saneamento
Efetividade em termos dos principais resultados
alcançados
Modelo Conceitual
Participação Social Características da Política Pública
1991 a 1994 – governo Leonel Brizola
• Projeto Reconstrução Rio 1988-1996 – Objetivo: atacar os problemas estruturais da região, centrados na questão da prevenção das enchentes, com foco nas intervenções de macrodrenagem dos grandes afluentes da região e na construção da Barragem do Gericinó
• Dragagem e canalização dos principais afluentes da região • Construção da Barragem do Gericinó • Reassentamento de 3.115 famílias que moravam nas margens dos rios • Construção de 400 km de rede coletora de esgotos; cinco elevatórias, uma estação de tratamento (a lagoa de estabilização construída em Gramacho)
• Incorporação do conceito de saneamento ambiental, com a reformulação conceitual e metodológica do projeto, passando para um modelo técnico baseado na integração das ações que deveriam ser realizadas de forma a atacar os problemas estruturais da região
• Manutenção dos canais de discussão com o Comitê de Saneamento da Baixada em torno do Geroe • Auge da história do Comitê de Saneamento, com o fortalecimento da base associativa das federações, que atingem cerca de 350 associações de moradores a elas filiadas.
• Esfera pública, constituída em torno do Geroe (1991 a 1994), tendo como interlocutores o Comitê e órgãos do governo do Estado • Adoção de uma agenda pública mais ampla sobre o saneamento, mantendo o caráter redistributivo e a desconcentração dos recursos públicos em direção à Baixada Fluminense • Gestão via órgão técnico especializado –
142
Período Principais Projetos de Saneamento
Efetividade em termos dos principais resultados
alcançados
Modelo Conceitual
Participação Social Características da Política Pública
• Projeto de Despoluição da Baía de Guanabara – Objetivo: recuperar os ecossistemas presentes no entorno da Baía de Guanabara e resgatar gradativamente a qualidade das águas dos rios, através da construção de sistemas de saneamento adequados. Valor: US$ 860,5 milhões
• O projeto foelaborado e negociado com as agências financiadoras, mas não foi efetivamente executado nesse governo.
i Geroe
• 1995 a 1998 – governo Marcelo Alencar
• Projeto Reconstrução Rio 1988-1996 – Objetivo: atacar os problemas estruturais de saneamento da região
• Término das obras em fase de conclusão
• Concepção original do programa de despoluição ampliada em torno do conceito de saneamento ambiental
• Contexto de crise e reestruturação dos movimento sociais urbanos • Enfraquecimento
• Redução da esfera pública • Retorno às políticas focalizadas • Concepção
143
Período Principais Projetos de Saneamento
Efetividade em termos dos principais resultados
alcançados
Modelo Conceitual
Participação Social Características da Política Pública
• Projeto de Despoluição da Baía de Guanabara – Objetivo: recuperar os ecossistemas presentes no entorno da Baía de Guanabara e resgatar gradativamente a qualidade das águas dos rios, através da construção de sistemas de saneamenadequados
to
• Implantação de duas estações de tratamento de esgoto; 785 km de redes coletoras de esgotos; 134.534 mil ligações domiciliares e 14 estações elevatórias de esgotos
• Construção de 400 km de rede distribuidora
• Projeto Nova Baixada. Valor: US$ 300 milhões
• Intervenção em quatro bairros da Baixada Fluminense, realizando obras de abastecimento d'água, coleta de esgotos, drenagem e pavimentação das vias
• Intervenção fragmentada, sem a necessária coordenação por órgão técnico • Concepção de gestão da política de saneamento focalizada
das federações de associações de moradores e do próprio Comitê • Inexistência de canais regulares de participação do Comitê nos programas e projetos de saneamento desenvolvidos
instrumental da participação popular • Gestão fragmentada, sem um órgão técnico fazendo a necessária coordenação e articulação das intervenções
• 1999 até o presente – governo Garotinho
• Projeto de Despoluição da Baía de Guanabara – Objetivo: recuperar os ecossistemas presentes no entorno da Baía de Guanabara e resgatar gradativamente a qualidade das águas dos rios, através da construção de sistemas de saneamento adequados
• Obras em andamento, com resultados ainda parciais, não passíveis de avaliação
• Intervenção fragmentada, sem a necessária coordenação por órgão técnico • Concepção focalizada da política de saneamento
• Aprofundamento do contexto de crise do Comitê de Saneamento • Contexto de redefinição do futuro • Inexistência de canais regulares de participação do Comitê nos programas e projetos de saneamento desenvolvidos. • Canais locais (nos
• Inexistência de esfera pública • Retorno às políticas focalizadas • Gestão fragmentada, sem um órgão técnico fazendo a necessária coordenação e articulação das intervenções
144
Período Principais Projetos de Saneamento
Efetividade em termos dos principais resultados
alcançados
Modelo Conceitual
Participação Social Características da Política Pública
• Projeto Nova Baixada
• Obras em andamento, com resultados ainda parciais, não passíveis de avaliação.
bairros objeto de intervenção do projeto) de participação difusa no âmbito do Programa Nova Baixada
145
Considerações Finais: o futuro do saneamento ambiental na Baixada Fluminense
A análise desenvolvida no decorrer deste trabalho nos permite afirmar que o padrão
de políticas públicas de saneamento para a Baixada Fluminense que prevaleceu nos últimos
30 anos foi marcadamente patrimonialista e clientelista. Patrimonialista porque fundado na
apropriação privada dos recursos públicos, que são orientados na perspectiva de atender
tanto aos interesses das elites locais como das grandes empreiteiras que, ao longo desse
período, se sucedem na execução das obras de saneamento na região. Clientelista por
reproduzir a dominação dos políticos locais, negando direitos e subordinando os interesses
gerais da população aos seus interesses particulares. É exatamente a lógica desse padrão
que explica porque um bilhão de dólares de investimentos públicos não foram suficientes
para produzir alterações mais substanciais na qualidade de vida da população da Baixada
Fluminense.
Numa breve passagem pela nossa formação social e política, tomando como
referência os estudos clássicos, podemos identificar que o padrão de dominação que
vigorava era de caráter patrimonialista, o que deu origem a nossa histórica negação da
cidadania, ainda presente nos dias atuais. O papel que o poder público joga nessa questão é
determinante, na medida em que, ao longo de nossa história, o que temos assistido é a sua
dominação pelas elites, transformando o Estado numa presa fácil dos seus interesses e
estabelecendo uma ampla e complexa rede particular de distribuição clientelista de bens
públicos. Essa matriz autoritária e antidemocrática produz um cenário onde, entre outros
aspectos, destacamos: (i) a pouca diferença entre o que é “público” e o que é “privado”; (ii)
a ausência da noção de contrato social, que se traduz na tutela do Estado sobre a sociedade,
como também no estabelecimento de mecanismos de cooptação, exclusão social e política
e; (iii) a manutenção da dualidade entre o país real e o país formal.
Esse padrão patrimonialista e clientelista determina os resultados da política pública
de saneamento, apontando para a sua pouca efetividade, consubstanciada na sua baixa
racionalidade técnica, num conjunto de redes de abastecimento de água e esgotamento
sanitário que foram perdidas ou mesmo redes que foram implantadas em áreas onde já
existiam outras. Há mesmo casos absurdos, como por exemplo o caso do bairro Lote XV
146
(Belford Roxo) onde a população possui o “privilégio” de ter duas redes de água e a
infelicidade de continuar sem água na torneira. O problema mais grave, a nosso ver, é que a
racionalidade dessa política não tem como premissa assegurar a cidadania plena, pensada
como um conjunto articulado de direitos civis, políticos e sociais.
Assim, com base no referencial teórico utilizado, centrado no debate sociológico
acerca das desigualdades sociais que marcam a sociedade brasileira, postulou-se responder
até que ponto as intervenções públicas na provisão dos serviços de saneamento na Baixada
Fluminense foram capazes de reconhecer e ampliar direitos sociais inerentes à cidadania,
criar espaços públicos de debates em torno da política a ser implementada, fomentar a
criação de sujeitos livres e autônomos, enfim, portadores de direitos de cidadania.
Tomando como referência a definição de cidadania produzida por Carvalho (2001),
podemos afirmar, a princípio, que a política de saneamento que prevaleceu na Baixada
Fluminense assegurou algumas conquistas, sobretudo aquelas que estão diretamente
relacionadas à integração das pessoas na sociedade pela garantia de direitos sociais. No
entanto, é preciso avançar nesta reflexão. Nesse sentido, o ponto de reflexão que encerra
este trabalho se relaciona com a questão da cidadania, na medida em que esta permite
transcender a análise dos limites técnicos e territoriais, caracterizados pelos baixos índices
de eficiência e eficácia das políticas de saneamento na Baixada Fluminense. Assim como
definido por Carvalho (op. cit.), entendemos a cidadania como a integração da população
através da participação política; à sociedade, através da garantia dos direitos individuais; e
ao patrimônio coletivo, através da justiça social. Desta forma, queremos com base nesse
debate refletir sobre a seguinte questão: até que ponto as conquistas sociais estão ou não
produzindo rupturas com o padrão patrimonialista e clientelista que historicamente marca a
relação entre Estado e sociedade na Baixada Fluminense.
A reflexão acerca da política de saneamento com base nesse referencial é
importante, uma vez que identificamos no seu desenvolvimento uma baixa capacidade de
estabelecimento de rupturas com os padrões patrimonialistas e clientelistas que as orientam.
Apesar disso, percebemos, nessas três últimas décadas da política de saneamento da
Baixada Fluminense, uma rica história para o entendimento da relação entre saneamento e
cidadania, não somente pela vigência dos padrões anteriormente descritos, mas também
147
pela existência de movimentos contraditórios, nos quais outras forças sociais buscaram
construir um padrão democrático e integrador de política, que procurava, na ampliação das
esferas públicas e na participação social, alterar o padrão dominante que marca a região.
Esse contencioso histórico é marcado por contradições e ambigüidades geradoras de
movimentos sociais e políticos que buscaram ampliar direitos de cidadania. Nesse sentido,
a relação entre saneamento e cidadania se estabelece num contexto onde podemos pensar
que o saneamento, dada a sua vital importância para a vida nas cidades, é o patamar
mínimo de reconhecimento de necessidades sociais inerentes à cidadania. Para ser incluído
na polis, no contexto urbano, é necessário que seja resolvido o problema do saneamento,
sem o qual a vida coletiva na cidade é espoliada e alienada. Assim, para o estabelecimento
de uma política de saneamento cidadã é fundamental o reconhecimento, a priori, do direito
de cidadania, para que seu resultado seja a garantia e o exercício efetivo da própria
cidadania. A ausência desse reconhecimento é responsável pelos limites nos resultados
efetivos da política de saneamento no que concerne à ampliação e ao exercício da cidadania
na Baixada Fluminense.
No caso do saneamento da Baixada Fluminense, como dissemos, a dimensão da
cidadania esteve recortada pela integração das pessoas mediante o maior acesso aos direitos
sociais. Porém, no campo dos direitos políticos e civis, a cidadania permaneceu bloqueada,
na medida em que o patrimonialismo vigente manteve a subordinação dos interesses
públicos à lógica privada, através da negação da esfera pública e da ampla participação da
sociedade na determinação da política de saneamento.
Não obstante a vigência do padrão patrimonialista, a importância política da análise
sobre os atores populares nos permite perceber que, em alguns momentos, esses
movimentos foram capazes de provocar pequenas alterações nesse padrão, com isso
diminuindo a força da lógica patromonialista e, conseqüentemente, do poder clientelista na
região.
A nosso ver, os movimentos populares podem ser concebidos como os novos atores
que emergem na cena pública, num ambiente de conflito com a estratégia dominante de
anulação da cidadania política. Podemos ver aqui um esforço de democratização da gestão
do saneamento na Baixada Fluminense por parte desses atores, que começam a exercitar a
148
esfera da política como espaço da fala, do dissenso e da reivindicação. Dessa forma,
poderíamos dizer que a própria dinâmica política começa a ser reinventada, com o objetivo
de ganhar um novo conteúdo, voltado para a incorporação da população organizada nas
esferas de decisão ligadas à política de saneamento. É esse exercício que capacita parcela
desses atores a reivindicar a participação política na gestão da cidade, gerando um
desequilíbrio entre as forças dominantes que até então ocupavam sozinhas a cena política
local. Enfim, esses novos atores, com a sua capacidade de pressão e reivindicação,
colocaram em questão as desigualdades sociais traduzidas no acesso restrito a bens e
serviços pela população mais pobre. É interessante perceber que o saneamento deixava de
ser um favor, para se transformar num direito.
Analisando esse movimento, podemos dizer que na história da luta pelo saneamento
da Baixada Fluminense são inseparáveis os direitos sociais e os direitos políticos. O Comitê
não apenas reivindicava o acesso aos serviços de saneamento, mas o direito à participação
nas decisões. Havia, mesmo que subliminarmente, uma consciência de que conquistas
restritas aos direitos sociais não eram suficientes para romper com o clientelismo e a
patronagem dominante.
No entanto, o padrão de interação Estado/sociedade na Baixada é freqüentemente
marcado por mecanismos excludentes de amplos segmentos da população, o que em geral
incentiva as relações clientelistas. Nesse sentido, tais características acabam inviabilizando
a construção e a explicitação dos significados da esfera pública como condição estrutural
para a existência da cidadania. Nesse sentido, é que podemos afirmar que as políticas
públicas de saneamento para a Baixada Fluminense, em sua maior parte não criaram as
condições institucionais favoráveis à afirmação e ao reconhecimento da cidadania, na
medida em que, ao longo desse processo, não ocorreu uma ampliação efetiva da esfera
política e nem mudanças substanciais na relação Estado/sociedade, com o intuito da
partilha do poder e do estabelecimento de uma dinâmica institucional baseada em regras
claras e critérios objetivos, impessoais e universais no acesso aos recursos públicos
estaduais para as políticas de saneamento.
Nesse cenário, é importante perceber que a questão de fundo está diretamente ligada
às relações de dominação e, portanto, à disputa pelo padrão das políticas desenvolvidas na
149
Baixada Fluminense, no que se refere tanto aos mecanismos de sua produção como nos
valores e à representação simbólica que lhes dão fundamento. Em outros termos,
poderíamos discutir qual o projeto de sociedade que está em disputa na Baixada
Fluminense: a reprodução das relações clientelistas e do poder das elites ou a construção da
cidadania plena e da democracia? Comprometidos com esta última perspectiva, duas
questões nos interessam particularmente e deveriam fazer parte da nossa agenda de
reflexão: (i) quais as condições para a emergência de um novo ator social, capaz de
mobilizar a sociedade, ocupar a cena pública e se constituir em interlocutor do poder
público? e (ii) quais os desafios para uma política de saneamento ambiental que supere a
histórica desigualdade social que marca a região e que promova o reconhecimento dos
direitos sociais e políticos da população? Sem ter a pretensão de responder as questões
levantadas, buscamos refletir, a fim de levantar algumas idéias que permitam avançar na
elaboração de políticas públicas de saneamento ambiental, voltadas para a justiça
ambiental.
A retirada do poder público das políticas sociais como preconiza o neoliberalismo e
a sua conseqüente redução às funções do chamado Estado mínimo nos leva a pensar a cerca
de novas formas de gestão pública, a partir da relação entre Estado e sociedade civil, assim
como entre público e privado. Nesse sentido, afirmamos a necessidade da instituição e do
alargamento de esferas públicas democráticas, assim como a criação de novas instituições
políticas que promovam a participação ativa da cidadania e a extensão das atividades
públicas para uma área compartilhada entre o Estado e a sociedade. O controle público
sobre a gestão estatal é a questão para a qual estão desafiados os novos atores da luta pelo
saneamento ambiental na Baixada Fluminense.
Os novos contornos da luta política pelo saneamento ambiental na Baixada
Fluminense tem o desafio de construir uma agenda política societária, articulada a direitos
individuais e coletivos, promotora de uma justiça distributiva e capaz de estabelecer canais
efetivos de reflexão da política. Enfim, o desafio é o de criar um novo paradigma
sociopolítico que seja capaz de assegurar o bem-estar econômico e social, a segurança, a
identidade coletiva e a legitimidade da governança.
150
A nosso ver, o desafio para o estabelecimento de uma nova agenda pública de
saneamento para a Baixada é exatamente incorporar os elementos da noção que Boaventura
Santos (1999) denomina de contrato social: legitimidade do governo, bem-estar econômico
e social, segurança e identidade coletiva. Reafirmar essa perspectiva é, de certa maneira,
enfrentar a agenda neoliberal das políticas levadas a cabo pelo poder público,
caracterizadas pela contratualização liberal, discutida pelo autor como o não
reconhecimento do conflito nem tampouco da luta social como um aspecto relevante, ou
mesmo estrutural. A nova contratualização liberal teria como premissa o indivíduo e estaria
formulada com base em um contrato civil e não social, no qual não seria mais possível
produzir agregações de interesses políticos e sociais divergentes. O estado de apatia seria
uma condição fundamental para o seu estabelecimento.
Assim, para Santos (op. cit.), a nova contratualização se constitui, de fato, num falso
contrato, ou mesmo numa frágil aparência de compromisso, na medida em que as
demandas e reivindicações dos atores sociais não são reconhecidas nem legitimadas e as
próprias condições do contrato são impostas sem o diálogo com os sujeitos sociais capazes
de representar os interesses coletivos dos setores mais frágeis. Enfim, estaríamos diante de
um cenário marcado pela anulação da política, com toques refinados de diálogo e
participação que dão a impressão de estarmos diante de uma esfera pública democrática.
Para nós, esse é o caso do Programa Nova Baixada. Não obstante existirem mecanismos da
participação difusa da sociedade local trata-se, na verdade, de uma esfera pública reduzida
de baixo impacto na produção da política, uma vez que a fala daqueles que são convidados
a emitirem as suas opiniões não produz eco na formulação da política, o que, ao fim e ao
cabo, representa um processo de legitimação de um padrão de política que historicamente
tem produzido e reproduzido o poder das elites políticas, seja na Baixada Fluminense, seja
no conjunto do país.
A ênfase nessa discussão não é sem razão. A importância da ampliação da esfera
pública pode ser ilustrada na reflexão sobre os resultados dos diferentes programas
implementados na Baixada Fluminense. Apesar da baixa efetividade constatada em uma
avaliação geral dos investimentos realizados, nossa análise indica que os momentos de
maior efetividade das políticas de saneamento na região estiveram diretamente ligados ao
estabelecimento de esferas públicas, como espaço de encontro e articulação dos atores
151
dessa política pública em torno de uma agenda pública marcada por intervenções de caráter
universalista.
É importante destacar que o movimento de ampliação e restrição dos espaços de
participação social foi determinante para essa baixa efetividade. Com efeito, não é
descabido afirmar que as políticas públicas estiveram mais próximas de atingir seus
objetivos manifestos nos momentos em que a interação com todos os atores, sobretudo os
movimentos populares, foi maior. A questão da participação se mostrou fundamental para o
êxito das políticas públicas na região, o que nos leva a concluir que qualquer intervenção
pública na área de saneamento que se pretenda universalista e integradora, e que portanto,
deseje enfrentar o quadro de desigualdades socioambientais, para ser efetiva, terá que
possuir em seu vértice a participação direta da população como um instrumento capaz de:
(i) dar novo sentido à intervenção pública na região e; (ii) instaurar mecanismos que
estabeleçam uma ruptura com a essência patromonialista e clientelista.
A disputa de projetos para a Baixada Fluminense: os desafios na perspectiva da democracia e da cidadania
Numa região marcada pelo acesso precário aos serviços de saneamento, os
investimentos por menor que sejam tendem a produzir enorme impacto na população.
Entretanto, nossa questão não se relaciona apenas ao acesso aos serviços, mas, sobretudo,
se esse acesso expressa a ampliação da cidadania política da população. Como vimos, no
caso das políticas de saneamento da Baixada Fluminense, o padrão de políticas que vigora
até o momento não permite tal ampliação, na medida em que o acesso aos serviços se dá
num quadro de concessão, subordinado à lógica clientelista, o que significa dizer que a
integração social não é acompanhada da integração política, não constitui atores e, portanto,
gera e reproduz cidades sem cidadania, sem cidadãos plenos. Em outros termos, podemos
dizer que o clientelismo promove a integração social já que leva o saneamento as camadas
populares, fato importante se considerarmos o saneamento como elemento vital para a vida
urbana. Porém, a integração social pelo clientelismo em geral se constitui numa via de
negação da integração política, tanto pelo seu sentido como pelos seus mecanismos. No
entanto, não há resposta definitiva. Cada caso pode ter desdobramentos distintos, de acordo
152
com os processos particulares cuja dinâmica depende, de um lado, do enfraquecimento da
“cultura cívica” que orienta o sentido da política e, do outro, do enfraquecimento dos
mecanismos da dominação.
Sem aprofundar, gostaríamos ainda de destacar dois elementos fundamentais no
desenvolvimento de políticas públicas de promoção da cidadania na Baixada Fluminense,
ligados as condições apontadas por Chaui (2000) para a existência da própria sociedade
civil: a igualdade e a liberdade. Para a autora, o poder público está encarregado de repor,
política e juridicamente, esses elementos sem os quais a cidadania será sempre parcial.
Assim, a fim de provocar a reflexão sobre a perspectiva de superação desse quadro
na direção da promoção da cidadania, levantamos um conjunto de diretrizes que poderiam
orientar a elaboração e execução das políticas de saneamento na Baixada Fluminense.
1. As políticas públicas de saneamento, dentro de um preceito democrático e cidadão,
devem representar um movimento de ruptura com o padrão patrimonialista e
clientelista de gestão, produzindo o deslocamento, o bloqueio e a substituição de
suas práticas tradicionais, constituindo-se numa verdadeira estratégia de promoção
da cidadania.
2. É necessário a criação de esferas públicas de participação segundo regras claras de
natureza impessoal e universal, com base em critérios de justiça distributiva na
alocação de recursos públicos. Nesta direção, torna-se essencial o estabelecimento
de uma esfera pública ativa de co-gestão de um fundo público estadual para a
universalização dos serviços de saneamento, criando, assim, uma nova
racionalidade política, baseada em regras de distribuição de recursos públicos que
devem ser pactuadas entre o executivo e os demais atores sociais e políticos. A sua
dinâmica e o seu funcionamento instauram uma nova lógica contratual favorável ao
estabelecimento da diferença entre o “publico” e o “privado” e, portanto, enfrentam
de forma qualitativa as práticas clientelistas que caracterizam o exercício
patrimonilista do poder.
3. É fundamental a afirmação da abordagem de saneamento ambiental nos projetos
implementados, como forma de ampliar e garantir a inversão de prioridades para
153
aplicação de recursos públicos, além de articular a intervenção pública com as
demais esferas da política urbana, visando assegurar a sustentabilidade das políticas
implementadas e o enfrentamento das desigualdades socioambientais, que
bloqueiam a possibilidade da ampliação da qualidade de vida de milhões de pessoas
da Baixada Fluminense.
4. A elaboração e implementação dos macro-projetos de saneamento devem estar
fundadas e ligadas a um projeto de desenvolvimento para a região que seja capaz
de direcionar a ação pública nas áreas social e econômica para a integração da
população excluída da dinâmica social, econômica, política e cultural.
5. Para tanto, é necessário repensar o atual marco regulatório de gestão, tendo em vista
a criação de um órgão gestor regional da política de saneamento na Baixada que
seja capaz de conceber, executar e monitorar a política para o setor, e que articule as
diversas secretarias estaduais vinculadas ao tema, as prefeituras municipais, a
companhia estadual de água e esgoto, as instituições acadêmicas e as entidades da
sociedade civil representativas da comunidade e do setor de saneamento.
6. Deve fazer parte dessa política a incorporação da dimensão do monitoramento
social como um instrumento potencializador e capacitador dos atores públicos e
privados na gestão e no controle social das políticas públicas de saneamento. O
monitoramento social traz consigo a necessidade de uma metodologia de
participação que combine análise, verificação, fiscalização e elaboração de novas
políticas públicas, onde o acesso à informação é uma das premissas fundamentais
para o seu pleno exercício.
7. Nessa concepção, o monitoramento social é pensado como um sistema de
participação e controle, o que torna fundamental a reflexão a respeito dos
movimentos sociais. Assim, o atual processo de reconfiguração pelo qual passam os
movimentos sociais indica que se deve levar em consideração (i) os novos arranjos
institucionais que vão sendo construídos pela própria sociedade organizada, nos
quais se destacam as redes de atores que emergem com força de articulação e
mobilização social; (ii) a ampliação da abordagem conceitual em torno do
saneamento ambiental, inserindo-a no contexto de luta por direitos econômicos,
sociais, culturais e ambientais e pela ampliação da democracia. Aqui, vale sublinhar
154
que a noção de justiça ambiental deve se constituir no “pano de fundo” da ação
política dos atores sociais que passam a incorporar a luta pela ampliação do acesso
aos serviços de saneamento num contexto de desigualdades ambientais e (iii) a
necessidade de estabelecimento de esferas públicas de proposição e negociação das
políticas de saneamento ambiental para região, de forma a ampliar a participação
para um conjunto plural de atores e tornar as decisões políticas e de investimentos
transparentes e sob o controle da sociedade.
8. Com efeito, uma política pública deve e pode incorporar como preocupação central
o fortalecimento dos atores sociais da Baixada Fluminense e da Região
Metropolitana, tendo como premissa a necessidade de inclusão de posições
diferentes ao debate sobre a concepção das políticas, com base no reconhecimento
público da legitimidade dos atores. Desta forma, é preciso estabelecer uma ruptura
com o modelo atual em que a participação é instrumental e fragmentada, além de ser
em muitos casos, uma imposição de fora para dentro, como é o caso dos programas
que têm financiamento de organismos multilaterais. A incorporação de atores
sociais às políticas de saneamento deve passar por uma clara estratégia de
empoderamento das redes de atores que se estabelecem nos espaços onde as
intervenções são realizadas. Enfim, sem enfrentar essa questão, estaremos diante de
uma retórica que, ao fim e ao cabo, tem por objetivo criar as condições para
legitimação do padrão patrimonialista e clientelista e de intervenção pública de
baixo impacto.
Os novos movimentos populares em luta pela ampliação do acesso aos serviços de
saneamento encontram-se diante do desafio de produzir uma relação dinâmica entre
saneamento e cidadania, que seja capaz de produzir alterações no padrão da política de
saneamento em curso na Baixada, tornando-a um instrumento efetivo na construção dos
direitos de cidadania da população.
Assim, os novos atores da luta pelo saneamento terão como desafio inserir essa temática
num contexto mais amplo das desigualdades ambientais, no qual o debate esteja colocado
na direção da construção dos direitos políticos e civis e no aprofundamento da dinâmica
democrática da Baixada Fluminense. Nesse sentido, a luta pela melhoria e ampliação da
155
qualidade de vida deve se fazer valendo-se da constatação dos riscos ambientais a que estão
submetidas as populações mais pobres das cidades, e as reivindicações prioritárias devem
estar articuladas numa ação afirmativa de direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais.
Para levar a cabo tal desafio é preciso recriar a sua identidade, ampliando a sua base
de sustentação política, tornado-a mais plural e ao mesmo tempo mais consistente no
enfrentamento com o patrimonialismo e clientelismo na região. Enfim, o desafio é o de
criação de um movimento popular de novo tipo, sem a prerrogativa da existência de
sujeitos históricos determinados, mas que seja capaz de assegurar a fala daqueles que hoje
são objeto da política e ao mesmo tempo ser a expressão viva das necessidades socialmente
construídas por uma parcela significativa da população.
Enfim, o desafio é de construção das condições necessárias ao estabelecimento da
cidadania plena, onde o cidadão possa ser reconhecido como um sujeito dotado de razão e
seja capaz de tomar decisões a partir de seus interesses. Desta forma os movimentos
precisam assumir os limites da cidadania social e assumirem a necessidade de uma nova
agenda pública para o saneamento onde os direitos de cidadania para serem efetivos
necessitam do fortalecimento de uma cultura cívica e do estabelecimento de esferas
públicas como espaços fundamentais de participação e criação de uma dinâmica
democrática nas cidades da região.
Por fim, acreditando que os desafios não estão apenas centrados nos movimentos
populares, gostaria de destacar a importância da articulação de um campo de forças sociais
progressistas em torno de um projeto alternativo para a Baixada Fluminense que seja capaz
de alterar a atual correlação de forças que domina politicamente aquele espaço. Um projeto
que inaugure novas práticas sociais, que fortaleça o capital social historicamente
estabelecido nesse espaço, que enfrente as desigualdades socioambientais que caracterizam
essa região, enfim que seja capaz de desatar o nó produzido por um sistema político
excludente e segregador, que bloqueia a cidadania de milhões de pessoas na Baixada
Fluminense e no Brasil.
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